Enunciadores precários: Claraboia e possíveis relações enunciativas e de gêneros sexuais
em Saramago
Rafaela Viana Sêrpa (PIBIC - IFPR Palmas)1
Resumo: Após o falecimento de José Saramago, em 2011, fomos surpreendidos com a
publicação daquele que, na verdade, seria um de seus primeiros romances (logo após Terra do
pecado, de 1947): Claraboia, de 1953. Esta obra chama a atenção por antecipar possíveis
elementos que serão recorrentes na ficção romanesca do autor português, principalmente no
que diz respeito à enunciação. Com isso, buscamos uma leitura comparativa entre este romance
e outros - como História do cerco de Lisboa e Ensaio sobre a cegueira - pertencentes a outros
momentos de produção do autor. Buscamos, neste estudo (que é bolsista PIBIC dentro do
projeto mais amplo "Angústia e gêneros sexuais: aspectos da poética de Saramago",
coordenado pelo Prof. Dr. Jacob dos Santos Biziak, do IFPR Palmas), analisar o funcionamento
discursivo da enunciação diante da representação da realidade, em especial, a dos gêneros
sexuais, de maneira a se pensar uma possível poética de Saramago. Com isso, buscamos um
estudo dentro do horizonte dos estudos do discurso e não da análise de conteúdo, uma vez que
entendemos o sentido como prática discursiva histórica e ideológica marcada pela opacidade,
a não transparência da significação. Para tanto, buscamos apoio na perspectiva da análise do
discurso de Pêcheux, na teorização de heterogeneidade enunciativa de Authier-Revuz e na
crítica saramaguiana empreendida por Biziak.
Palavras – chave: Enunciação, realidade, gêneros sexuais.
Abstract: After José Saramago’s death in 2011, we were surprised by the publication of what
was, in fact, one of his early novels (shortly after Terra do pecado, 1947): Claraboia, 1953.
This book draws attention by anticipating possible elements that will recur in the romance
fiction of the Portuguese author, especially regarding to enunciation. Therewith, we look for a
comparative reading between this novel and others - like História do cerco de Lisboa e Ensaio
sobre a cegueira - belonging to other moments of the author’s production. In this study (which
is PIBIC scholarship in the broader project "Anguish and sexual genres: aspects of Saramago's
poetics", coordinated by Prof. Dr. Jacob dos Santos Biziak, IFPR Palmas), we analyze the
discursive functioning of enunciation against the representation of reality, especially of sexual
genres, in order to think about a possible poetics of Saramago. Hereupon, we seek a study
within the horizon of discourse studies and not content analysis, since we understand the
meaning as historical and ideological discursive practice marked by opacity, not transparency
of meaning. Therefore, we seek support from the perspective of Pêcheux's discourse analysis,
Authier-Revuz's theorizing of enunciative heterogeneity and the criticism undertaken by Biziak
of Saramago.
Key words: Enunciation, reality, sexual genres.
1 Acadêmica do curso de Letras – Português/Inglês do Instituto Federal do Paraná – Campus Palmas.
Todos nós ingerimos diariamente a nossa dose de morfina que adormece o
pensamento. Os hábitos, os vícios, as palavras repetidas, os gestos repisados,
os amigos monótonos, os inimigos sem ódio autêntico, tudo adormece. Vida
plena!... quem há aí que possa declarar que vive plenamente? Todos trazemos
ao pescoço a canga da monotonia, todos esperamos, sabe o diabo o quê! Sim,
todos esperamos! Mais confusamente uns que outros, mas a expectativa é de
todos... (Saramago. 2011, p. 254)
Os romances do autor português, Saramago, são reconhecidas em quase todo o mundo,
suas características literárias são admiradas por diversos leitores e escritores, e por ser um
grande nome possui romances que são estudados sob diversos vieses teóricos. O contato com
a obra Claraboia, romance do autor, pode modificar e ressignificar parte da leitura de suas mais
famosas obras, pois o jovem Saramago em 1953 escreve uma obra que antecipa características
e mostra um futuro brilhante, como pode ser notado no trecho acima.
Questões filosóficas, discurso indireto-livre, críticas sociais, diversas formas de
valorizar o narrador, entre outros traços de estilo que já podem ser encontradas neste romance
que, é por muitos, considerado imaturo e simples, porém em Claraboia são visíveis estes
elementos que se tornarão comuns no decorrer de suas produções, antecipando assim, questões
que envolvem principalmente a enunciação. Personagens marcantes e belas histórias é o que
configura o romance Claraboia, mas acima disso podemos considerar como um presente para
os leitores, sendo então, digno de ser analisado, estudado e lido com muita atenção.
Para a análise proposta serão utilizados os principais conceitos da Análise do Discurso
de linha francesa, trazidas por teóricos como Michel Pêcheux, que é considerado um dos nomes
da AD, e por uma leitora deste, Athuier-Revuz, que propõe a reformulação de conceitos
essenciais de Pêcheux. A escritora traz a heterogeneidade discursiva que se dá pela
reformulação de discursos que já foram enunciados em algum momento. A teórica Butler
também é essencial para análise, pois através de seus estudos, percebemos como o binarismo
sexo/gênero se dará apenas na materialidade do discurso de cada sujeito, sendo assim, os papéis
de gêneros são percebíveis a partir das enunciações.
O objetivo deste referido trabalho é analisar elementos que se iniciam em Claraboia
(2011), mas que serão aprofundados e aperfeiçoados em romances, como Ensaio sobre a
Cegueira (1995) e História do Cerco de Lisboa (1989), obras estas que serão produzidas em
épocas posteriores, mas, ainda, ambas em épocas diferentes do autor. É esta uma análise
comparativa, com a intenção de produzir uma análise dentro dos horizontes dos discursos e
enunciações, e não apenas uma mera análise de conteúdo da obra.
Biziak propõe, em Entre o Claro e o Escuro, que as obras do autor Saramago podem
ser percebidas de formas diferentes, dependendo da época em que foram produzidas, devido,
principalmente, a uma mudança em relação ao sujeito, pois, em História do Cerco de Lisboa,
os corpos são vistos a partir de um ângulo que aparenta ser externo a eles, percebendo o quanto
o exterior acaba sendo essencial para a formação desses personagens, e este é um elemento que
já aparece em Claraboia, um dos seus primeiros romances. Os sujeitos ali são muito bem
definidos, colocados com nome, cada qual com sua família e seus problemas, então é essencial
relacionar o externo com os sujeitos para melhor compreensão de como cada um significa
diante sua ideologia. O que acaba diferindo de Ensaio sobre a cegueira, pois o externo já não
é o principal responsável pela compreensão dos sentidos, mas, sim as percepções de mundo
que cada um traz, já que o autor parece se debruçar menos em questões históricas e mais na
constituição subjetiva dos sujeitos. Agora, os sujeitos são analisados sob uma visão
interiorizada, e esta significativa diferença interfere significativamente na estrutura estética da
obra e na recepção dos leitores. Estes são uns dos motivos do autor Saramago ser tão estudado
e considerado uma das personalidades literárias mais complexas de serem lidas, pois ele
modifica toda a significação que o leitor possui do personagem que entra em contato.
No entanto, na obra Claraboia o externo é tão importante que é ele quem define, muitas
vezes, o estado de espírito das personagens, mostrando, também, o quanto aquele Outro2 diz
sobre o próprio Eu.
Estavam tão certas uma para a outra – ela e a casa – que, vendo-as, se
compreendia imediatamente por que uma e outra eram assim e não de outro
modo. Justina só podia existir naquela casa, e a casa, assim tão nua e
silenciosa, não poderia ser o que era sem a presença de Justina. [...] A seus
pés veio enroscar-se o gato, seu único companheiro de serões. Era um animal
tranquilo, de olhos interrogadores e andar sinuoso, que parecia ter perdido a
faculdade de miar. Aprendera com a dona o silêncio e, como ela, ele se
abandonava. (Saramago, 2011, p.36-37)
O elo entre a casa, o gato e a personagem é visível, o narrador faz questão de colocar
diversos elementos que parecem ser afastados, mas que se analisados, percebe-se que formam
o eu da personagem. Há, então, o espelhamento entre o mundo e os enunciados dos sujeitos –
2 Sendo este “Outro” um conceito Lacaniano, que difere do “outro”. Outro com maiúsculo corresponde a instância
que chega a nós e nos faz como sujeitos.
os silêncios, neste caso – vemos esse efeito na personagem Justina, Adriana e Lídia, e, somado
às comparações que o narrador faz, o leitor consegue traçar um perfil completo da personagem,
sendo essa uma técnica recorrente do autor para descrever os personagens em seus romances.
Há uma única parte do ambiente que não corresponde a nenhuma característica
específica dos personagens: o prédio. Mesmo sendo ali o lugar onde se encontram todas as
famílias, sua função principal não é definir algum personagem específico, mas sim auxiliar o
narrador, pois é através do prédio que consegue se fazer o organizador da obra. Daí vem o
nome Claraboia, como título do romance, pois claraboia é uma abertura no alto de uma
construção, ela é geralmente responsável pela permissão da entrada de luz e a passagem da
ventilação. No caso da obra é esta abertura que permite o narrador observar o espaço privado
e a intimidade de cada família.
O prédio não é responsável por auxiliar o leitor a definir a identidade de cada sujeito,
como no caso dos animais ou no próprio apartamento, mas ele é responsável por caracterizar o
narrador. A rua e os locais da cidade são poucos, ou nada explorados, até a própria rua onde o
prédio está localizado é visto poucas vezes, sendo então, a representação da vida entre quatro
paredes a única importante. Esta relação de aprisionamento do sujeito em si mesmo e no
ambiente onde está é uma das características a serem desenvolvidas, no futuro, por este grande
autor.
As relações complexas do leitor com os personagens se dão a partir de um vínculo que
se cria de cada sujeito do romance com os Outros que o rodeiam, uma vez que nota-se em
Claraboia a importância do Outro para a construção de cada personagem, como explanado
anteriormente. Por exemplo, Isaura só se identifica e se vê como sujeito, pois olha para sua
irmã, Adriana, e para os personagens de seus romances, pois são estes Outros que a fazem
significar neste mundo, porém o contrário ocorre com sua irmã. Adriana, mesmo adorando o
musicista Beethoven, não se identifica com ele, e fica claro o quanto nega olhar para Isaura, de
forma que essa negação é analisada como uma forma de não se perceber como sujeito.
Adriana, por este motivo, não aparenta possuir desejos que a impulsionem para uma
possível nova vida, vive angustiada com aquele medo absurdo de ser feliz, o que a move mesmo
que lentamente é o fato de escrever no diário todos os seus sentimentos, expondo ali todas as
suas inseguranças. Talvez, naquela situação de mulher que, aparentemente, não se identifica
com nada, com ninguém, possuindo uma imensa dificuldade em admirar o belo, esta seja a sua
única forma de suportar uma vida insuportável cheia de faltas. Através dos enunciados de cada
uma delas, percebemos a sua relação com o mundo e com a exterioridade, consequentemente,
com sua verdade que é colocada a prova quando visões de mundo e de verdades são
confrontadas.
Saramago é conhecido no universo literário por abordar questões polêmicas, sempre
relacionadas às críticas sociais, o que ocorre é que em Claraboia já vemos estes indícios, pois
é um romance que ainda não faz parte da produção madura e complexa do autor, porém fica
visível esta vontade típica do autor. Em Ensaio e História do Cerco, essas críticas são mais
visíveis e talvez melhor elaboradas. É explorado, nesta obra, o caso das irmãs supracitadas que
estão relacionadas ao incesto, não concretizado, mas com desejo o suficiente para ser motivo
de mudança nas concepções de cada uma delas. “Lentamente, as mãos de Isaura moveram-se
na direção da irmã. As pontas captaram o calor da irmã a um centímetro de distância”
(Saramago, 2011, p. 171). Neste caso, nota-se que a formação ideologia na qual as irmãs estão
inseridas permitem que os sentidos produzidos funcionem de determinada maneira e não de
outra.
Porém, a personagem Isaura se inscreve em uma outra formação discursiva, ao fazer
leituras que trazem outras realidades, sendo totalmente diferente daquelas que lhe produziam
sentido anteriormente, pois, antes, a formação discursiva dada a ela como única possível
determinava seu comportamento e seus enunciados. O conceito de Formação Discursiva é
considerado polêmica para Eni Orlandi, que a define como “aquilo que numa formação
ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada
– determina o que pode e deve ser dito”. (2015, p.41). Dito isso, Isaura até aquele momento
enunciava da única forma que lhe era possível, porém ela lê, e neste instante conhece outros
mundos, outras realidades e, consequentemente, outras formas de se significar como sujeito.
Cabe então aos estudos do discurso analisar como a linguagem e a ideologia estão se
relacionando, pois a linguagem é a responsável pelos sentidos que os sujeitos produzem,
sentidos estes que se farão diferentes, dependendo da sua relação com a ideologia. Sendo assim,
as formações discursivas são provisórias, e o contato com outra FD será mostrada através da
enunciação – linguagem. A mudança pode ser extremamente radical dependendo do grau de
identificação que se cria, no caso da personagem citada, as mudanças não são mínimas e
insignificantes, pois ela projeta na irmã todos os desejos contidos nos romances, mas que até
então eram desconhecidos.
Pensando nesta perspectiva, as FD podem ser imaginadas como grandes redes que
ligarão um sujeito a outro, formando uma cadeia de transformações. A partir do momento em
que Isaura desenvolve outros sentimentos, transmite para a irmã, que, da mesma maneira,
nunca havia tido qualquer experiência sexual, mas, depois de toda a situação, as duas começam
uma nova relação de si com o Outro e principalmente com os papéis que até então estavam pré
estabelecidos e que reproduziam sem questionar.
Exausta, Isaura acabou por adormecer. Adriana, não. Até que na janela a luz
azulada da noite se transformou na luz parda da madrugada e que esta foi
substituída, em lentas gradações, pela brancura da manhã, esteve acordada.
Imóvel, os olhos fitos no teto, as fontes latejando, resistia, obstinadamente,
ao despertar da sua fonte de amor, também recalcada, também escondida e
frustrada. (Saramago. 2011, p.175)
Neste trecho, percebe-se que, por mais que esse desejo já existisse em algum lugar, foi
o contato com a irmã que a fez perceber o quanto aquilo fazia falta, sendo percebido, também,
a relação da personagem com o exterior – o céu que se modificando ao passar das horas – com
o seu sentimento que também se transforma, acompanhando o tempo do céu. Há outros casos
semelhantes a este no decorrer do romance Claraboia, por exemplo, Claudinha é uma jovem
menina que só vê uma possibilidade de ser e viver diferente daquilo vive, depois que conhece
sua vizinha Lídia, pois é uma mulher que demonstra ser empoderada, independente e dona de
si, possui uma vida de causar inveja, sempre bonita, perfumada e com dinheiro. Claudinha, ao
vê-la, identifica-se instantaneamente com essa mulher, vendo-se como ela em um futuro nada
distante. Interessante observar, que a jovem deseja tanto aquela vida que tenta estabelecer um
relacionamento com o cliente exclusivo de Lídia. Tanto no trecho anterior, quanto na história
de Claudinha, as jovens acabam por entrar em contato com outra formação discursiva, e isso
lhes permite modificar suas formas de verdade, fazendo com que seus dizeres mudem de
posição produzindo outros sentidos, deixando claro o quanto estas formações discursivas são
uma espécie de quebra cabeça, elas se fazem a partir de ideologias semelhantes e contrárias, e
irão se fazendo a partir de discursos heterogêneos.
As morais da sociedade são, nesta obra, reavaliadas e postas não como verdades
absolutas, mas as atitudes, sentimentos e ações só poderão ser colocadas como certas ou erradas
a partir de uma série de fatores discursivos. O mesmo acontece na obra Ensaio sobre a
Cegueira, em que “as ideias de ordem, caos, cultura, barbáries, prazer e dor são
redimensionadas” (Biziak, 2016, P.87). Não cabe ao narrador julgar os personagens, pois os
enunciados são produzidos a partir da perspectiva de realidade que cada um possui, e mesmo
que o narrador parta de uma outra formação ideológica, diferente dos restantes personagens, a
enunciação não será concretizada em sua completude, deixando esses dizeres precários, com
faltas e falhas.
Interessante observar que esta visão de mundo em relação a si próprio e ao Outro
também pode estar ligada à questão do binarismo gênero/sexo trazida por Butler.
A distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que o sexo
pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído:
consequentemente, não é nem o resultado causal do sexo nem tampouco tão
aparente fixo quanto o sexo. Assim, a unidade do sujeito já é potencialmente
contestada pela distinção que abre espaço ao gênero como interpretação
múltipla do sexo. (Butler, 2017, p. 25-26)
Na família das duas irmãs, a mãe, principalmente, deixa claro o quanto os papéis de
gênero que devem ser repetidos e reproduzidos na casa, controlando- as de tal maneira, que
acaba sendo uma espécie de prisão e, assim as priva de descobrir outras formas de viver.
Mesmo a tia tendo que assumir o papel masculino na casa, que na formação discursiva em que
se inscreve está totalmente relacionado com o ser homem, as meninas devem trabalhar com a
costura, pois é isto que lhes resta, ganhar um pouco de dinheiro com o trabalho digno que uma
mulher deve ter. Para Butler (2017), é inadmissível criar essa hipótese de que há uma relação
estável entre sexo e gênero, pois se assim fosse o sexo definiria o gênero, e exemplificando
com o romance, Adriana e Isaura são mulheres e desta forma devem seguir o gênero que está
associado, neste caso feminino. Porém, nesse mesmo caso a tia acaba por assumir um gênero
que diverge com seu ser mulher, pois ela é responsável por tudo que acontece na casa e na vida
das pessoas que ali moram, e socialmente este seria o papel de um homem/masculino.
Deixando justificado, o trecho citado, que não se pode restringir o gênero feminino pelo sexo
mulher ou gênero masculino pelo sexo homem, pois são construções sociais e culturais, não
permanecendo sempre fixo, já que o conceito para definir é performatividade, ou seja, os
gêneros são performáticos.
Ainda seguindo esta ideia de binarismo, Butler ainda propõe em sua obra Problema de
Gênero (2017), anular a distinção entre estes dois termos, pois segundo foi até então definido;
sexo, resumidamente, o biológico e gênero, aquele construído culturalmente. Para contestar
esse binarismo, a filósofa argumenta que “talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal
forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nula” (2017, p. 27). Isso
ocorre, pois, para a filósofa o sexo não vem do biológico, como por muitos é colocado, mas é
da mesma forma que o gênero, uma imposição cultural e ideológica, não sendo essenciais e
nem sentidos prontos, não havendo necessidade de haver dois termos para conceitos
praticamente iguais. Cabendo, então aos sujeitos se colocarem como alguém que legitime esses
papéis de sexo/gênero, seja reproduzindo ou transgredindo.
As irmãs agem de determinadas formas, pois a sociedade dita regras machistas e
masculinistas, o quase incesto entre elas, comprovam o quanto os papéis de gêneros interferem
na realidade de cada sujeito. A tia fala que elas são meninas e por isso não podem se entregar
para homens, ou seja, se aproximar de qualquer coisa que desperte a sexualidade, pois mulher
deve se privar do sexual, este é um instinto masculino, e uma vergonha para a mulher. O
narrador conta os sentimentos de Isaura quando sente esse desejo antes desconhecido, um
sentimento tão desconhecido a ponto de fazer coisas que são contra as morais até então ditas
como corretas.
Toda essa relação de sexo/gênero está permeando a obra, além de ser percebida na
família de Isaura e Adriana, é vista claramente na relação entre Anselmo e Rosália, Lídia,
Claudinha, entre outros personagens, porém sempre havendo uma significativa diferença. Os
papéis de gêneros são muito bem estabelecidos na casa de Anselmo, e cada qual desempenha
o papel de gênero que seu sexo determina. Rosália, esposa, obediente, submissa, dona de casa.
Anselmo, trabalhador, opressor, superior, pai de família. Ela, a representação de uma mulher
feminina inicia e termina o romance como mulher feminina e ele, a representação de homem
masculino chega ao final com o mesmo comportamento de homem masculino, papéis estes que
são divergentes quando o narrador mostra a casa de Justina e Caetano, pois ele inicia exercendo
todo o poder, mas aos pouco ela assume esta postura masculina, até o último momento narrado,
Justina exerce o poder e o controle sobre toda a casa. Essas personagens femininas são
transgressoras no romance, pois seguem todo o papel de gênero que lhe é condizente com o
sexo, mas que a partir de uma determinada situação assumem o que não deveria ser seu. Tudo
isso, não é só possível, mas necessário, pois o gênero é performativo3, ou seja, são
representações de como nos mostramos diante certa realidade e verdade, podendo então,
3 Termo este trazido por Butler em sua obra Problema de Gênero publicado inicialmente em 1990. Segundo a
autora o gênero é internalizado a ponto de parecer ser uma realidade única, uma verdade absoluta, é um fenômeno
reproduzido há tanto tempo que ao propor esta relação entre performatividade e gênero, diz que ninguém pertence
a um gênero específico e único, não sendo essência de nenhum sujeito, mas interpretações e representações em
determinados momentos que produzem efeitos de sentidos diversos.
representar-se de diversas formas. Cada mulher no romance interpreta o seu gênero, já que essa
ação é crucial, e é isso que produz todos os efeitos.
Percebe-se também que nos momentos em que são narradas as histórias de Lídia e
Paulinho, os papéis de gêneros são transgressores até certo ponto, pois apesar de ser a única
mulher independente financeiramente da história, aquela que faz o que deseja, sendo esta a
única vida que é possível viver, é a única que lhe resta, a prostituição. No início do romance o
narrador a descreve como uma mulher com característica distintas das outras personagens
mulheres, sendo o fato de ser independente o mais comentado, mas ao desenrolar da história é
percebido o quanto ela é insegura e faz aquilo que lhe é permitido fazer naquela FD em que
está inserida.
Nas condições de produção em que se deu a obra, as representações de mulheres se
davam de duas formas: a dona de casa, esposa, fiel e submissa, ou a mulher vulgar,
independente, ligada a promiscuidade e, consequentemente, a prostituição. Lídia assume o
masculino ao se portar de determinadas maneiras, já que sustenta a mãe e toma conta da própria
vida, mas tenta em todos os momentos se mostrar como mulher digna da feminilidade que lhe
é exigida, mostrando que o feminino e o masculino estão relacionados com a intensa luta pelo
poder. Está sempre arrumada, bonita, cheirosa e está à disposição do homem o tempo todo.
Como pode ser observada no seguinte trecho:
Lídia devia recebê-lo em camisa de noite, amplamente decotada, braços nus
e cabelo soltos. A camisa devia ser de seda, nem transparente de mais que
tudo deixasse ver, nem de menos que tudo ocultasse. O resultado era um jogo
de claridades e sombras que lhe encandescia o cérebro nas noites em que se
sentia “em forma” ou arregalava a vista nos dias cansados. (Saramago, 2011,
p. 145)
Ela reproduz o ideal de mulher que se tem na obra, não sendo transgressora como
aparenta ser, tanto para o narrador como para outras personagens, pois há momentos em que
as próprias personagens invejam a vida que leva, sendo alvo de comentários pelas famílias tidas
como “tradicionais”, por exemplo, Claudinha deseja ser o que Lídia é, “esqueceu-se do cinema
para se lembrar da visita que fizera a casa de d. Lídia. Que bonita era d. Lídia! ‘Muito mais
bonita que eu...’ Teve pena de não ser como d.Lídia.” (Saramago, 2011, p.54), já Justina a
invejava, “Tinha-lhe raiva porque ela era bonita e, sobretudo, porque era uma dessas mulheres
que estão por conta, e ainda tinha uma casa bem-posta, dinheiro [...] para mandar vir as
refeições de restaurante, sair a rua carregada de joias e rescendentes perfumes” (Saramago,
2011, p. 38), mostrando também a visão que cada sujeito possui do outro, a forma com que
cada um interpela os que fazem parte de sua vida, direta ou indiretamente, pois a personagem
Lídia não se identifica com a forma como as vizinhas lhe descreve, sente-se o tempo todo
reprimida pela sociedade que a interpela a ser o que é.
Em Ensaio sobre a cegueira são colocadas questões cotidianas mecanizadas, são
práticas naturalizadas, como trazida na análise até então, pois segundo Pêcheux, esta é a função
da ideologia, sendo influenciado por Althusser, propõe que o sujeito através da ideologia possui
ilusão de ser o que é, e fazer o que deseja, porém esta que sugere a possível liberdade é a mesma
que convence ser tudo óbvio e natural, sendo assim, os sujeitos seguem suas rotinas sem
qualquer questionamento. Através de suas produções individuais de língua, que são as
enunciações, os sujeitos de Claraboia, também demonstram uma naturalidade de viver,
Rosália, por exemplo, traz essa vida que não é digna de ser questionada, repete, faz, obedece,
pois isso é o que deve ser feito, segundo ela, é apenas a vida da filha que pode ser mudada, a
filha é jovem, para Rosália estar casada não permite que sua concepção de mundo seja mudada,
tudo já está pronto e estagnado.
Os enunciados da personagem trazem discursos de um sujeito que cumpre o papel de
esposa e submissa, pois a sua realidade será exposta segundo o seu lugar de enunciar, neste
sentido seria impossível um sujeito enunciar de um lugar que não condiz com sua realidade e
seu ponto de vista sobre a verdade. Observado isto, percebe-se que as personagens, em sua
maioria, são corpos que vivem sem interrogar o motivo de suas existências.
Em contraste a isso, o autor também propõe em suas obras reflexões filosóficas,
colocando personagens que se assemelham tanto a aquele que é interpelado a ser alienado,
quanto aquele crítico, que procuram entender e compreender a ideologia em que se está
inserido, não se deixando alienar, como é o caso de Silvestre e Abel, estes estão o tempo todo
trocando experiências e modificando os seus modos de ver e viver o mundo. Semelhante, então
àquelas obras aqui já comparadas, História do cerco de Lisboa e Ensaio sobre a Cegueira, que
a partir das enunciações, trazem personagens que seguem a naturalização do cotidiano, mas
também há aqueles que produzem reflexões profundas, sendo este mais um padrão das obras
de Saramago.
Quando se trata de um romance onde a enunciação é tão importante, é interessante
utilizar Anatol Rosenfeld (2009) que trata do processo de “desrealização do Romance”,
conceito este bem nítido nas obras do autor português, pois o narrador direciona a sua
enunciação para questionar e expor sua opinião sobre os personagens, o que ocorre é que este
narrador não possui domínio total das realidades, e por esse motivo deixa clara a não
possibilidade de narrar as emoções de todos os personagens. Então, nestes momentos fica
visível a precariedade da enunciação, pois ele vai relativizar os valores encontrados na vida de
cada personagem, tentando o tempo todo retirar a ideia de hierarquia entre eles, mostrando,
então, através de seus enunciados que a verdade só é entendida a partir do olhar de cada um, é
a partir do enunciador que se percebe que as verdades não são absolutas.
A desrealização, neste caso, é necessária, segundo Biziak, “para estarmos mais
próximos do Real4” (p, 84), pois o narrador tenta trazer a verossimilhança para os leitores, desta
maneira o narrador aos poucos vai fundindo-se com os personagens, através do discurso
indireto-livre, este narrador tem a vontade de desvendar todos os mistérios e anseios dos que
ali vivem, porém sua visão é limitada, e cabe a ele narrar as existências da forma que acha
melhor, possuindo, talvez uma falsa certeza dos sentimentos e práticas dos personagens, porém,
por Claraboia ser o início de suas produções, este aspecto ainda não é tão usual quanto em suas
obras posteriores, mas pode ser encontradas em alguns momentos.
E a insônia não a largaria enquanto aqueles pensamentos a não largassem. E
que pensamentos, Isaura! Que coisas monstruosas! Que aberrações
repugnantes! [...]. por quê, então, esta agitação dos instintos que quebravam
algemas e irrompiam na carne? Por que não o lera friamente, sem paixão?
(Saramago, 2011, p. 170)
O narrador, sendo heterodiegético, exatamente como em Ensaio sobre a Cegueira e
História do cerco de Lisboa, utiliza de um aparente poder soberano para se assim desejar,
redefinir a maneira como os personagens são colocados, já que não é um dos personagens
centrais, mas tem a função de contar o que vê. Porém, ainda na ideia de desrealização de
Rosenfeld, Saramago inicia em Claraboia a desvalorização do narrador como único possível
de narrar, e ele então adiciona suas impressões sobre as personagens, utilizando, então este
recurso do discurso, característica recorrente em todas as obras saramaguianas, sendo
impossível determinar se a voz é do narrador ou da personagem.
4 “Real” é um conceito trazido por Lacan, que faz referência a um universo primário e inacessível aos sujeitos.
Observa-se que a ironia em Saramago também é algo recorrente, Biziak (2016) coloca
que ela oferece complexidade à obra, pois ela é responsável por esconder o que quer dizer
através dos silêncios da palavra. A ironia está em Claraboia, podendo então, ser colocada como
um elemento que será comum nas obras de Saramago, o próprio definia seu trabalho como
irônico. Nesta obra, há momentos em que Lídia através de suas enunciações esconde o que
realmente quer dizer: devido a ser uma prostituta, deve o tempo todo satisfazer o seu cliente e
por isso utiliza em muitos casos desse recurso de esconder o seu dizer para falar o que deseja
sem ser entendida completamente, esses dizeres da personagem mostram a ambiguidade que
faz seus enunciados tão complexos.
Ainda sobre ironia como elemento enunciativo, Authier-Revuz reformula vários termos
e conceitos trazidos por Pêcheux, sendo um deles o de enunciação: trazendo a ideia de que a
enunciação é heterogênea, entende-se a partir disto que a linguagem quando materializada, é
feita de falhas e carrega rastros de várias outras partes. A autora define, então, a
Heterogeneidade Mostrada:
Gostaria, aqui, de me interrogar sobre um conjunto de formas que chamo de
“heterogeneidade mostrada” por inscreverem o outro na sequência do
discurso – discurso direto, aspas, formas de retoque ou de glosa, discurso
indireto, ironia – relativamente ao estatuto das noções enunciativas
(“distancia” etc.) evocadas acima, bastante problemático a despeito ou em
razão de seu caráter “natural”, “intuitivamente falando”. Parece-me que estas
noções estão, de fato, necessariamente ancorada no exterior da linguística
trazendo – de modo ingênuo ou teórico – concepções do sujeito e de sua
relação com a linguagem; (Revuz, 1990, p.25)
Este conceito podem caracterizar justamente os enunciados presentes nas obras de
Saramago. Anteriormente foi explanando como esta ironia pode ser encontrada em várias obras
do autor, então, para a referida autora tanto a ironia, quanto o discurso direto-livre, ambos já
abordados nesta analise, são técnicas utilizadas com a propósito de enunciar um segundo dizer,
porém sem deixar claro de onde ele parte. Esta, então, é a heterogeneidade mostrada, mas não
marcada, pois há a presença de um outro, não fica explícito, ao enunciar. Um possível motivo
para a utilização desses recursos em suas obras seria a intencionalidade de produzir sentidos
ambíguos, então, cumprindo a finalidade da Análise do Discurso, que vem guiar um estudo
onde não exista apenas a transmissão de informações, mas a construção de sentidos entre o
emissor e o receptor, onde este sentido se fará a partir de um grande processo conjunto.
Ao final da análise, foi compreendido, então, que realmente há no jovem Saramago
traços de um excelente escritor, trazendo questões pertinentes para o meio acadêmico, sendo
percebida a quantidade de características que são realmente recorrentes em toda a produção do
autor. Além de ser analisa a obra em si e seus enunciados, buscando através de teóricos como
Pêcheux, Butler, Revuz, entre outros, a compreensão de como os enunciados são essenciais
para a compreensão de todos os fatos ocorridos, pois enunciado é a unidade mínima que produz
sentido. A partir disso, foram analisadas as falas, diálogos e descrição dos fatos narrados, foram
também estudados os objetos presentes nas cenas, os ambientes em que cada sujeito interage,
os silêncios que são produtores de efeitos e, principalmente, a forma como cada sujeito se
apresenta, se representa e se desloca (ou se sente deslocado) na imagem de mundo que lhe
parece natural pelo efeito de interpelação. Consequentemente, vemos se os sujeitos presentes
no romance seguem ou não as regras impostas pela sociedade patriarcal e machista, sendo
observados esses fatores através da linguagem de cada sujeito, pois é através dela que o sujeito
se faz sujeito.
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