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ENTRE O ‘DESPOTISMO ABSOLUTISTA’ E A ‘ANARQUIA
REPUBLICANA’: A MONARQUIA CONSTITUCIONAL NO
PENSAMENTO POLÍTICO DE JOSÉ BONIFÁCIO
WILLIAM ZOLINGER FUJII1
Resumo: O presente trabalho tem como objeto o pensamento político de José Bonifácio de
Andrada e Silva, mais especificamente sua concepção de Estado monárquico constitucional
centralizado para as províncias luso-brasileiras. O artigo propõe-se a percorrer algumas das
ideias políticas de José Bonifácio e sua visão sobre a monarquia constitucional e o Estado,
incluindo suas críticas aos regimes absolutista e republicano. Nesse sentido, a pesquisa parte de
uma premissa de que o pensamento político de Bonifácio e seu projeto de Estado constituíram
uma alternativa liberal moderada de centro, em oposição àquilo que ele considerava
‘despotismo absolutista’ do Antigo Regime e ‘anarquia republicana’ que varria a América
espanhola.
Palavras-chave: José Bonifácio; monarquia constitucional; republicanismo; absolutismo.
Introdução
O processo de independência do Brasil deu origem a uma disputa acerca do modelo
de Estado que seria construído no novo país independente, com diversos setores das
elites luso-brasileiras competindo para levar adiante seus projetos políticos. Em
especial, José Bonifácio de Andrada e Silva se destacou como liderança política nesse
processo devido ao papel central que teve tanto para a independência brasileira quanto
para o projeto de Estado monárquico-constitucional que foi implantado no Brasil
independente. Este trabalho pretende percorrer as ideias de Bonifácio sobre a edificação
do Estado brasileiro na forma monárquica-constitucional, bem como sua participação na
disputa política surgida ainda durante o processo de independência do Brasil, ou das
províncias luso-brasileiras, termos que serão utilizados indistintamente neste trabalho.
A ideia de monarquia constitucional
Assim como o parlamentarismo, o surgimento da monarquia constitucional não se
deu em um único momento histórico, nem foi resultado de formulações teóricas de
1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (UnB)
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apenas um pensador político. Sua construção teórica e aplicação prática ocorreram
gradualmente em um longo processo histórico associado ao constitucionalismo, do qual
decorreu a ideia de monarquia constitucional. Como marco histórico, normalmente
atribui-se à imposição da Magna Carta ao rei John I pelos barões ingleses um caráter
precursor do constitucionalismo inglês, o mais antigo entre os diversos
constitucionalismos.
Para Canotilho, constitucionalismo pode ser definido como ‘uma teoria ou ideologia
que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em
dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade’ (2003: 57).
Em outras palavras, o constitucionalismo visa à limitação dos poderes do Estado e à
instituição de um governo limitado, ao mesmo tempo em que busca garantir
determinados direitos dos cidadãos que integram determinada sociedade. E o
instrumento central dessa teoria ou movimento é a Constituição, que, segundo Bobbio
(1997), representa a estrutura de uma comunidade política organizada, a ordem que
decorre da designação de um poder soberano e dos órgãos que o exercem. Na Idade
Moderna, o constitucionalismo representou uma reação ao paradigma absolutista e às
teorias políticas que buscavam legitimá-lo, como as formuladas por Maquiavel (1532),
Jean Bodin (1576) e Thomas Hobbes (1651).
Rejeitando as teorias legitimadoras do absolutismo, John Locke elaborou uma teoria
do contrato social que rompeu com o paradigma absolutista e inseriu ideias liberais no
debate teórico-político da época, assentando a legitimidade do governo no
consentimento dos governados e na limitação do próprio poder estatal. Na obra Segundo
tratado sobre o governo civil, Locke resgata a tradição jusnaturalista e defende os
direitos naturais do homem à liberdade, à propriedade e à vida. Para o pensador inglês, a
legitimidade do Estado é dependente de sua capacidade de garantir os direitos naturais
no homem – que, afinal, precedem à própria existência do Estado –, e tal garantia não
poderia existir sem que o soberano fosse responsável perante seus súditos e tivesse
poderes limitados. Por essa perspectiva, a soberania única manifestada na figura do
monarca, pedra angular do absolutismo monárquico, torna-se um problema, e a solução
proposta por Locke é a divisão dos poderes do Estado em Executivo e Legislativo
(BRITO, 2012: 125). Nessa divisão, a capacidade e a legitimidade legislativa do
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monarca seriam transferidas ao Poder Legislativo, composto por representantes do
povo2, que por sua vez passava a ser co-titular da soberania nacional. Isto é, para o
pensamento lockeano, fundador do liberalismo político, dever-se-ia conferir maiores
poderes aos representantes do povo em detrimento do soberano, que então veria seus
poderes limitados. A monarquia deveria transitar de sua forma absoluta para a
parlamentar e constitucional, ideia colocada em prática em terras britânicas, onde a
Revolução Gloriosa de 1688 marcou o declínio definitivo do poder relativo da Coroa
perante o Parlamento.
Formação intelectual de José Bonifácio
Em comparação à Grã-Bretanha, a superação do paradigma absolutista se deu
tardiamente em Portugal, país aonde José Bonifácio chegou em 1783 para estudar na
Universidade de Coimbra. Embora Portugal ainda fosse formalmente uma monarquia
absoluta, onde a soberania nacional se manifestava na figura do monarca e o poder real
era virtualmente ilimitado, Bonifácio encontrou um ambiente intelectual em Coimbra
afetado pelas reformas pombalinas instituídas a partir de 1772. Principal representante
do reformismo ilustrado3 em terras portuguesas, o marquês de Pombal implantara
reformas modernizadoras no país em diversas áreas, cujos reflexos na educação se
manifestaram através do aumento de investimentos públicos e reformas curriculares que
incluíam maior ênfase às ciências naturais. Desta forma, o clima intelectual que José
Bonifácio encontrou em Coimbra era relativamente liberal para um país que ainda vivia
sob a égide do absolutismo, tendo lido obras de importantes pensadores iluministas
como Locke, Rousseau, Voltaire, Montesquieu e Adam Smith (CALDEIRA, 2002: 13).
Durante o período de estudos em Coimbra, onde cursou Direito e Filosofia Natural, o
intelectual paulista foi influenciado por ideias tipicamente iluministas que
2Locke não defendeu o sufrágio universal, visto que o conceito de povo no século XVII (e nos XVIII e
XIX) possuía uma conotação muito mais restrita em comparação ao seu sentido atual. 3 Também conhecida como despotismo esclarecido, forma de governar marcada pela introdução de
reformas modernizadoras nos campos da administração pública, economia, cultura, ciências e educação,
ao mesmo tempo em que o poder político mantinha-se concentrado nas mãos do Estado, a quem incumbia
liderar o processo de modernização. Tratou-se de uma reação ao iluminismo e às mudanças trazidas pela
Revolução Industrial, diante dos quais as monarquias absolutas buscaram empreender reformas que
contribuíssem para a superação de seu atraso perante economias mais dinâmicas, sobretudo a Grã-
Bretanha e as Sete Províncias Unidas dos Países Baixos. Em Portugal, manifestou-se na figura do
marquês de Pombal, ministro de D. José I que governou de 1750 a 1777.
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caracterizavam o liberalismo político e econômico, vindas sobretudo da França e da
Grã-Bretanha, desenvolvendo uma concepção da economia essencialmente liberal: a de
que Estado deve garantir determinados direitos naturais e criar as condições para o
progresso econômico, em oposição à ideia de que ele, o Estado, deveria ser o principal
dirigente da economia. É essa a ideia central de sua obra Memória sobre a pesca das
baleias e extração de seu azeite, de 1790, onde Bonifácio expõe argumentos decorrentes
da ideia de que o Estado deve atuar como regulador da economia e não como gerador
direto de riquezas, função que caberia aos indivíduos. Para remediar o atraso econômico
no qual o país se encontrava, Portugal deveria superar o paradigma mercantilista,
romper com o sistema de monopólios e estimular a livre concorrência (SILVA, 2002:
51-56). Nesse ponto, pode-se dizer que a visão de Bonifácio, a essa época, era contrária
à ideia predominante no governo português segundo a qual o Estado era o principal
condutor dos negócios econômicos do país.
Tal concepção representava um traço essencial do absolutismo que havia sido
superado em países que adotaram o liberalismo político e econômico, mas que ainda se
mostrava hegemônico em Portugal. É notória a influência da economia política britânica
nesse aspecto do pensamento de José Bonifácio, que lera A Riqueza das Nações, de
Adam Smith, publicado em 1776. Ao mesmo tempo, Bonifácio se associava ao regime
absolutista português como um intelectual fundamentalmente ligado ao Estado que
aderia a um sistema em cujo centro estava uma monarquia absoluta (VARELA, LOPES,
FONSECA, 2004: 2), contrariando suas convicções políticas que o aproximavam do
liberalismo inglês, não do absolutismo português. Pragmático e contraditório ao mesmo
tempo, José Bonifácio conciliava seu pensamento marcadamente liberal com suas
relações íntimas com o Estado absolutista lusitano, o que implicava ser um liberal no
campo das ideias e aceitar, ainda que tacitamente, os pilares do absolutismo4 na prática.
Após a conclusão dos estudos em Coimbra, tendo se formado jurista e filósofo
natural, José Bonifácio ingressou na Academia de Ciências de Lisboa em 1789, onde
permaneceu por pouco tempo. Já em 1790, partia para o que seria uma longa viagem de
4 Tais como a existência de uma sociedade altamente hierarquizada, a ampla influência da Igreja em todas
as esferas da vida, o direito a privilégios por parte da nobreza e a concentração de poderes nas mãos do
monarca.
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estudos e pesquisa em Mineralogia, Filosofia e História Natural pela Europa, sendo o
primeiro destino a França. Embora o objetivo dessas viagens, financiadas pelo governo
português, fosse o estudo de Mineralogia, Bonifácio se aprofundou em estudos de
outros campos do conhecimento, inclusive as ciências humanas. O contato que tivera
com obras de pensadores iluministas em Coimbra se aprofundaria durante esse período
durante o qual Bonifácio também bebeu na fonte de autores clássicos como Platão,
Cícero e Tito Lívio (DOHLNIKOFF, 2012: 41).
Em Paris, presenciou em primeira mão as turbulências da Revolução Francesa, o que
teria profundo impacto no pensamento político bonifaciano. Se José Bonifácio era um
intelectual com ideias liberais influenciadas pelo iluminismo filosófico, científico e
econômico, os excessos cometidos durante a revolução, principalmente na Fase do
Terror (1792-1794), fizeram com que o paulista passasse a desconfiar fortemente das
paixões populares, concorrendo para a formação de sua convicção de que grandes
mudanças não devem ser conduzidas pelo povo. Trata-se de um importante componente
do pensamento político de José Bonifácio que teria consequências práticas no processo
de independência e de construção do Estado brasileiro, dos quais o pensador participou
ativamente tendo como um de seus princípios guiadores a desconfiança de mobilizações
das massas (COSTA, 1998: 46). Por outro lado, a Revolução Francesa trouxe
definitivamente para o centro do debate político europeu a ideia de governo
representativo – cuja instituição, na Europa, já havia ocorrido em Londres –, fato que
também exerceu importante influência sobre o pensamento político de José Bonifácio.
Se ele já pensava (quase) como um liberal no tocante à economia e aos direitos
individuais, a ideia de governo representativo, pedra angular do liberalismo político,
também seria incorporada ao pensamento bonifaciano. Bonifácio via o Antigo Regime
ruir no coração da Europa e a monarquia absoluta ser derrubada, mas ao mesmo tempo
não aceitava a via revolucionária por considerá-la sinônimo de anarquia. Como, então,
conciliar a ideia de um governo representativo e potencialmente instável que garante os
direitos naturais de seus cidadãos e a ordem ao mesmo tempo? A resposta a que José
Bonifácio chegaria era a monarquia constitucional.
Após dez anos de excussões científicas que incluíram, além da França, Saxônia,
Áustria, Península Itálica, Países Baixos, Suécia, Noruega, Dinamarca e Grã-Bretanha
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(DOHLNIKOFF, 2012: 33), Bonifácio retornou a Portugal em 1800, assumindo a
cátedra de Mineralogia na Universidade de Coimbra no ano seguinte. Daí até seu
retorno ao Brasil em 1819, ocupou uma série de cargos no Estado português, tornando-
se, além de intelectual e cientista, um homem de Estado Apesar de todo seu preparo
intelectual e de suas ligações com a Coroa, Bonifácio não teve maiores ambições
políticas em Portugal, decidindo retornar à terra onde havia nascido; ironicamente, ao
voltar à parte americana do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, Bonifácio
buscava se afastar da política e viver tranquilamente em um sítio, isolado e longe dos
grandes acontecimentos, de onde pretendia realizar pesquisas mineralógicas pelo
interior do Brasil.
Tendo se formado intelectualmente em um país onde o paradigma absolutista ainda
sobrevivia e sido patrocinado por uma monarquia absoluta durante muitos anos, não era
óbvio, em 1819, que em apenas dois anos José Bonifácio não só rejeitaria a alternativa
absolutista para o Estado brasileiro, mas seria personagem central no processo que tirou
do Império português justamente sua porção mais rica. A Revolução Liberal do Porto e
as subsequentes decisões das Cortes que se instalaram em Lisboa, no entanto,
colocariam Portugal em rota de colisão com os interesses brasileiros, dos quais José
Bonifácio passaria a ser um dos principais representantes.
Os diferentes projetos políticos para o Estado brasileiro independente
Antes mesmo do Sete de Setembro, os diferentes grupos da elite nacional que
haviam se aglutinado em torno do príncipe regente com o objetivo de resistir às
pressões das Cortes de Lisboa passaram a atuar no sentido de avançar seus diferentes
projetos políticos, estando divididos, em linhas gerais, segundo Emília Viotti da Costa
(1998), em três ‘partidos’5. O partido brasileiro, do qual a principal figura era José
Bonifácio e que até meados de 1822 ainda flertava com a manutenção do Reino Unido
de Portugal, Brasil e Algarves por meio da instalação de uma monarquia dual que
permitiria à parte americana do reino manter sua autonomia; o partido português, que
buscava restabelecer os antigos privilégios coloniais de Portugal; e dos ditos liberais
radicais, entre os quais havia republicanos, de tendências democráticas e que defendiam
5 Não no sentido formal e moderno do termo, mas no sentido de agrupamentos de pessoas com os
mesmos interesses políticos.
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não só a secessão do Brasil do Reino Unido e sua constitucionalização, mas também a
participação popular no processo de construção do novo Estado.
É importante mencionar que o assim chamado partido brasileiro, que defendia a
edificação do Estado Nacional sobre pilares monárquico-constitucionais, era ainda
subdividido entre federalistas e unitários: estes visavam à concentração do poder
político no Rio de Janeiro, de modo a estabelecer um governo unitário onde a União
fosse o único centro de poder; aqueles, que, embora buscassem instaurar uma
monarquia constitucional, defendiam a descentralização política onde as diversas
províncias brasileiras se uniriam por meio de laços federativos, com cada uma
mantendo sua autonomia política perante o governo central no Rio de Janeiro. Esse
grupo criaria uma dissidência entre os partidários da monarquia constitucional,
afastando-se dos centralizadores e surgindo como principal facção de oposição ao
governo imperial a partir dos trabalhos da Assembleia Constituinte, em maio de 1823.
No entanto, este artigo não abordará o projeto dos monarquistas federalistas, visto que
tal escopo demandaria um trabalho mais amplo.
José Bonifácio e a opção de centro: o projeto de monarquia constitucional
centralizada
José Bonifácio tornou-se ministro do Reino e dos Negócios Estrangeiros em janeiro
de 1822, pouco depois do episódio do ‘Dia do Fico’, que selou a permanência de D.
Pedro do Rio de Janeiro. Na verdade, o ‘Fico’ representou o desfecho de um processo
que teve início com a chegada dos decretos das Cortes de setembro de 1821, que
desvinculavam politicamente do Rio de Janeiro as demais províncias e as subordinavam
diretamente a Lisboa, aboliam órgãos judiciais e exigiam o retorno imediato de D.
Pedro a Portugal (LUSTOSA, 2006: 235-6). Chegando ao Brasil apenas em dezembro,
as notícias sobre as medidas das Cortes acarretaram uma intensa mobilização pela
permanência do príncipe no país. Representando o governo paulista, do qual era Vice-
Presidente, José Bonifácio redigiu uma carta a D. Pedro incitando-o a desafiar as Cortes
e permanecer no Brasil, além de articular a formação de uma frente de apoio ao príncipe
com as elites das províncias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais.
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Bonifácio percebera rapidamente que a figura de D. Pedro representava a
possibilidade – talvez única – de manter as províncias luso-brasileiras unidas, eis que
representava o poder monárquico, a Coroa, e era essa legitimidade dinástica que poderia
servir como força aglutinadora dos interesses contrários à política cada vez mais
recolonizadora das Cortes portuguesas para o Brasil. A intenção de manter as províncias
luso-brasileiras unidas, ainda que como parte integrante do Reino Unido, apareceria
como objetivo central de José Bonifácio a partir desse período, servindo mesmo como
um dos pilares do pensamento político do intelectual. Tamanha é a importância da
unidade nacional para José Bonifácio que se pode mesmo identificá-la, juntamente com
a questão da autonomia política, como núcleo de seu projeto de Estado – em um
primeiro momento, como parte integrante do Reino Unido na forma de uma monarquia
dual; a partir maio de 1822, como Estado soberano e independente (DOHLNIKOFF,
2012: 146).
É a partir do objetivo inegociável de consolidar a união político-territorial do Brasil
como país autônomo/independente que José Bonifácio vai moldar suas demais
concepções políticas acerca de seu projeto de Estado, tendo sempre como princípio
fundamental a busca simultânea pela autonomia e unidade nacional. Nesse sentido, a
monarquia constitucional não constituía um fim em si mesmo, mas um meio através do
qual se consolidaria a união de todas as partes do Brasil sob um único centro de poder,
no caso, a cidade Rio de Janeiro. Por essa razão, do momento em que assumiu o cargo
de ministro em janeiro de 1822 até meados do mesmo ano, o estadista Bonifácio atuou
no sentido de buscar a manutenção da autonomia do Brasil sem necessariamente romper
politicamente com Portugal. Buscava, assim, manter e aprofundar os laços tênues que
uniam as províncias brasileiras e defender a autonomia conquistada gradualmente desde
1808, pouco importando se o Brasil continuasse integrando o Reino Unido; isto é, para
o pensamento político bonifaciano, a questão da autonomia era mais importante do que
a da independência, e se a primeira se tornasse inviável, restaria o caminho da segunda
(COSTA, 1998: 50-55).
A concepção política segundo a qual a autonomia do Reino do Brasil era o objetivo a
ser perseguido já havia sido manifestada antes mesmo de Bonifácio tornar-se ministro
de Estado, aparecendo de forma inequívoca no documento Lembranças e
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apontamentos do governo provisório da província de São Paulo para os seus
deputados. O documento, redigido por José Bonifácio em outubro de 1821 na qualidade
de membro da Junta Provisória de São Paulo, teve o intuito de servir como orientação
para a delegação de deputados paulistas que participou dos trabalhos das Cortes de
Lisboa6. As instruções tratavam da organização política e de interesses da União – o
Reino Unido –, do Brasil e da província de São Paulo, que deveriam ser defendidos
pelos deputados paulistas em Lisboa na condição de constituintes. A
constitucionalização do Império português deveria se dar de modo a preservar a
autonomia do Brasil, que teria plena autonomia política, legislativa e administrativa,
sendo comum aos dois reinos pouca coisa além de questões relativas à guerra e à paz,
comércio e assinatura de tratados internacionais (LEMBRANÇAS E
APONTAMENTOS, 1821: 111-113).
Ocorre que as Cortes não só não estavam dispostas a aquiescer ao projeto de José
Bonifácio, como tinham como um de seus objetivos principais justamente o oposto, que
era a fragmentação do Brasil e sua subordinação política e econômica a Portugal através
de uma política que a historiografia denominou ‘medidas recolonizadoras’. Era evidente
que Bonifácio, em razão de suas convicções, não aceitaria o projeto das Cortes para o
Brasil. E, tendo influência sobre o príncipe regente e ocupando o cargo de ministro mais
poderoso do Brasil, estava em condições de resistir às medidas das Cortes e colocar em
prática suas ideias políticas e projeto de Estado.
Primeiro, era necessário assegurar a unidade das províncias brasileiras em face da
decisão das Cortes de submetê-las diretamente a Lisboa, e Bonifácio propôs a D. Pedro
a instalação de um Conselho de Procuradores-Gerais das Províncias para servir como
centro aglutinador dos interesses das diversas forças políticas presentes no país e
analisar as decisões das Cortes que chegariam dali em diante. Como consequência, o
príncipe assinou um decreto em 16 de fevereiro de 1822 criando o Conselho e definindo
suas atribuições e regras para a eleição de seus membros, que deveriam ser eleitos de
forma indireta nas províncias (SENADO FEDERAL, 1973).
6 Oficialmente, Assembleia Constituintes do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
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Em oposição a Bonifácio, os assim chamados liberais radicais defendiam uma maior
participação popular no encaminhamento das questões relativas à autonomia ou
independência do Brasil, e viam a ideia de um Conselho de Procuradores como uma
alternativa conservadora, defendendo a convocação de uma Assembleia-Geral
Constituinte. Parte desse grupo, incluindo seus principais líderes, Gonçalves Ledo e
Januário Barbosa, tinham antigas aspirações republicanas e simpatizavam com a ideia
de abolição da monarquia e a instalação de um regime republicano no Brasil (COSTA,
1998: 49), o que, afinal, se apresentava como caminho natural no continente americano.
Para José Bonifácio, contudo, a ideia de república era indissociável das de desordem e
anarquia, visão reforçada pela experiência da América espanhola, cujo processo de
independência havia levado à sua fragmentação através do surgimento de diversas
repúblicas independentes mergulhadas em guerras civis. Ainda que não se chegasse tão
longe no tocante à instalação de uma república – ao longo do primeiro semestre de
1822, sequer a ruptura com Portugal parecia inevitável –, Bonifácio preocupava-se com
um possível envolvimento direto das camadas populares na campanha autonomista que
ele encabeçava. A Revolução Francesa havia mostrado que a mobilização das massas
em acontecimentos políticos turbulentos carregava um alto grau de imprevisibilidade, e
isso não era aceitável para José Bonifácio.
Sempre fiel ao princípio da ordem em seu pensamento e atuação política, Bonifácio
não poderia ser favorável a um regime que havia se mostrado empiricamente instável
nos países vizinhos, dando origem a turbulências das quais muitas dessas repúblicas
ainda não haviam saído. Mais que isso, a alternativa republicana aparecia para
Bonifácio como o início do fim da unidade nacional brasileira, uma vez que, da mesma
forma que o retorno de D. Pedro a Portugal na época do ‘Dia do Fico’ resultaria na
separação de várias províncias brasileiras, a instauração de uma república no Brasil
levaria a uma onda separatista que terminaria com o fim do reino na forma como ele
existia em 1822. De fato, o risco de secessão de várias províncias brasileiras era uma
realidade durante o período e aumentaria após a Independência, e Bonifácio, ciente
dessa ameaça, buscou o fortalecimento de um centro de poder e unidade em torno do
qual as províncias se organizariam (DOLHNIKOFF, 2012: 138), que era a capital do
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país7. Sem embargo, o processo de Independência do Brasil foi essencialmente um
projeto das elites das províncias de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, havendo
províncias que permaneceram leais a Lisboa, como a Bahia, a Cisplatina, o Grão-Pará, o
Maranhão e o Piauí, e Pernambuco, que se encontrava sob o controle dos ditos liberais
radicais – monarquistas federalistas e republicanos. Impunha-se, então, não só a
necessidade de consolidar a Independência e instalar uma monarquia constitucional no
país, mas também de assegurar que essa monarquia fosse unitária e centralizada, com
um único centro de poder e com D. Pedro à frente da chefia política do nascente Estado.
Com a ruptura política, fortalecia-se a necessidade de se criar uma nação brasileira
independente Eis mais um objetivo fundamental do projeto nacional de José Bonifácio:
a construção da nação brasileira. Bonifácio via como essencial a criação gradual de uma
verdadeira nação brasílica, devendo tal processo ser conduzido pelo Estado. Aqui, é
possível identificar outro objetivo fundamental que José Bonifácio perseguiria e que
poderia ser realizado por uma monarquia constitucional forte. Diferentemente do José
Bonifácio dos anos 1790, o estadista do início dos anos 1820 abandonara o princípio
liberal de atuação limitada do Estado para conceber um poder estatal que liderasse um
projeto nacional, um poder que construísse uma nação genuinamente brasileira. Esse
projeto seria oposto pela maioria das forças políticas e econômicas do país por envolver
uma série de reformas profundas na sociedade, tais como a abolição gradual da
escravidão, a ‘civilização’ dos índios, uma espécie de ‘reforma agrária’ e a
miscigenação racial, sendo enterrado de vez com o fechamento da Assembleia
Constituinte por D. Pedro em novembro de 1823. Muito provavelmente, as reformas
propostas por Bonifácio jamais teriam sido aprovadas, mas elas revelam o modelo de
nação que o intelectual e estadista pretendia construir no Brasil, sendo a monarquia
constitucional, também aqui, um meio através do qual se chegaria a um fim – que, neste
caso, era a construção da nação brasileira.
No mês que se seguiu à declaração de Independência, uma nova disputa entre José
Bonifácio e o grupo de Gonçalves Ledo seria travada em torno da extensão dos poderes
7 O projeto político de Bonifácio incluía a transferência da capital nacional para uma cidade a ser
construída no interior do país, na comarca de Paracatu, a cerca de 200km do atual Distrito Federal, com o
nome de Petrópole ou Brasília. A proposta foi apresentada à Assembleia Constituinte do Brasil em 1823,
no documento Memória sobre a necessidade de edificar no Brasil uma nova capital.
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que o imperador teria na configuração política do novo país. Nas negociações que
ocorreram principalmente na loja maçônica Grande Oriente, da qual Bonifácio, Ledo e o
próprio D. Pedro eram membros, os liberais radicais buscaram extrair um juramento
prévio do príncipe aos princípios da Constituição que ainda seria elaborada. Ao buscar
tal compromisso, Ledo pretendia submeter a autoridade imperial ao Parlamento, o que,
aliás, era coerente com os preceitos da monarquia constitucional. Por que, então, opôs-
se José Bonifácio a essa ideia? Afinal, a despeito das desavenças que tinha com
Gonçalves Ledo, a proposta deste parecia razoável na medida em que garantiria tanto a
continuidade da monarquia quanto sua natureza constitucional, ambos objetivos
perseguidos por Bonifácio.
É importante salientar que, na visão de José Bonifácio, a monarquia constitucional é
a manifestação de um pacto, um contrato entre monarca e as várias elites nacionais, e
como tal a Carta Política do Brasil deveria ser aceita por ambas as partes em uma
espécie de soberania compartilhada (BASILE, 2003: 369). Da maneira como queriam os
liberais liderados por Gonçalves Ledo, Clemente Pereira e Januário Barbosa, ao
imperador não caberia aceitar ou recusar a Constituição, independentemente de seu
conteúdo. Se José Bonifácio buscava a instalação de uma monarquia constitucional,
essa monarquia deveria ser forte e centralizada de modo a conferir-lhe instrumentos
para comandar o processo de consolidação da Independência e a assegurar construção
do novo Estado-nação, inclusive no que tange à manutenção da unidade das províncias e
ao combate a desígnios separatistas. E o juramento prévio à Constituição significaria, na
prática, a assinatura de um ‘cheque em branco’ que poderia inviabilizar esse projeto.
Conclusão
O nascimento do Brasil independente como monarquia constitucional centralizada,
embora não fosse objetivo de uma só pessoa, mas de muitas, significou a vitória de um
projeto político cujo principal mentor e expoente foi José Bonifácio. Rejeitando tanto
ideias à direita que flertavam com a manutenção da monarquia absoluta quanto à
esquerda, que defendiam ampla participação popular no processo político e até mesmo a
alternativa republicana, Bonifácio liderou um projeto de centro que combinava a
primazia do Poder Executivo com a existência de uma instância representativa; a força
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da Coroa com a garantia de direitos civis e políticos; uma vasta base territorial com um
governo centralizado no Rio de Janeiro. Apesar disso, em 1823, quando caiu do
ministério, José Bonifácio não dava como certa a consolidação de seu projeto político,
que só se consolidaria nos anos 1840, após o fim do Período Regencial. Assistindo à
derrota de seu projeto de nação na Assembleia Constituinte, Bonifácio não viveu para
ver seu projeto de Estado vitorioso, tendo falecido em 1838, em pleno auge das revoltas
regenciais que ameaçavam a unidade político-territorial do Império. Pouco tempo
depois de sua queda do governo, José Bonifácio lamentava:
‘’O Brasil agora é feito para a democracia ou para o despotismo. Errei em querer
dar-lhe uma monarquia constitucional. Onde está uma aristocracia rica e instruída?
Onde está um corpo de magistratura honrado e independente? E que pode um clero
imoral e ignorante, sem crédito e sem riqueza? Que resta pois? Uma democracia sem
experiência, desunida, corrompida e egoísta, ou uma realeza sem confiança e sem
prudência; fogosa e despótica, sem as artes de Augusto, nem a dissimulação
profunda de um Tibério. A catástrofe é inevitável’’.
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