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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERRIA E LITERATURA COMPARADA
DOIS CES COMO OBJETO: ELEMENTOS SURREALISTAS EM
JOO CABRAL DE MELO NETO. APROXIMAES COM O
CINEMA.
Dissertao apresentada Banca Examinadorada Universidade de So Paulo como exigncia parcial para aobteno do ttulo de Mestre em Teoria Literria e Literatura
Comparada.
Orientador: Prof. Dr. Roberto Zular
Jos Roberto Arajo de Godoy
So Paulo2009
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A meus avs maternos a quem no conheci. A Joo Cabral de Melo Neto que os trouxe
mais prximos.
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Agradecimentos
Agradeo banca examinadora que participou de meu exame de qualificao,
Profa. Dra. Betina Bishof e Prof. Dr. Aguinaldo Jos Gonalves, pela generosa acolhida a
este trabalho de natureza incomum. Particularizo aqui o agradecimento ao Prof.
Aguinaldo, um dos precursores nos estudos comparados entre a obra de Joo Cabral de
Melo Neto e outras prticas artsticas.
A meu orientador, Prof. Dr. Roberto Zular, pelo dilogo constante, pela relao de
amizade, pelos instigantes desafios intelectuais que me props, possibilitando um contato
mais prximo com as mltiplas lacunas de minha formao.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico pela
concesso de uma bolsa de estudos que muito auxiliou-me durante a produo deste
trabalho.
Aos companheiros do Grupo de Estudo comandado pelo Prof. Zular, em especial a
Fernando Augusto Monteiro, grande amigo e agudo pesquisador da obra de Joo Cabral.
Aos funcionrios da Fundao Casa de Rui Barbosa no Rio de Janeiro pelo auxlio
em minha pesquisa junto ao arquivo de Joo Cabral de Melo Neto, fundamental na
produo desta dissertao.
A meus pais, Pedro e Ivete, que sempre fizeram da educao prioridade entre seusfilhos.
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A Mariza, pelo apoio nestes mais de trs anos de trabalho. Parceira, cuja
compreenso da importncia desta dissertao em minha trajetria acadmica e pessoal,
foi determinante para o seu feitio.
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Resumo
Esta dissertao analisa a presena de elementos surrealistas na obra do poeta Joo
Cabral de Melo Neto (1920 1999), na primeira dcada de sua produo potica operodo que vai de sua estria literria, em 1942, com Pedra do sono, a 1950, ano de
lanamento de O co sem plumas.
Nesse livro-poema, produzido em sua longa temporada afastado do pas, nos
deteremos com maior acuidade, estabelecendo relaes com procedimentos do cinema
surrealista, em especial as conexes entre montagem e metfora e a utilizao do smile
como modo de composio do poeta. Alm da anlise de marcas textuais que delimitam o
itinerrio temtico das relaes entre Joo Cabral, expresses surrealistas e a criao
cinematogrfica.
Alm disso, perpassar nosso percurso o dilogo do poeta, ainda no Recife, com
dois personagens fundamentais na sua formao intelectual: Willy Lewin e Joaquim
Cardozo. Interlocutores cuja influncia pode ser percebida no conjunto de sua produo
potica.
Palavras-chave: Joo Cabral de Melo Neto, Surrealismo, O co sem plumas, Luis
Buuel, Literatura Comparada.
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Abstract
This dissertation examines the presence of surrealistic elements in the poetic work
of the poet Joo Cabral de Melo Neto (19201999), from his literary debut withPedra do
sono, in 1942, until O co sem plumas (1950).
This work, written by the poet during his long sojourn abroad, it will be the main
object of this study, the corpus where well describe the relation between the surrealistic
procedure, mainly its filmic aspect, and procedures operated by the poet, like the relation
between montage and metaphor, and the use of simile as a way of composition by the
poet. It will help us to point textual marks that makes possible a kind of thematic itinerary
of the relation among Joo Cabral, surrealistic expression and film creation.
At last, well recompose the poets dialogue with two characters from his Recifes
background: Willy Lewin and Joaquim Cardozo. Detailing the way them influences will
be noted in the body of his work.
Key-words: Joo Cabral de Melo Neto, Surrealism, O co sem plumas, Luis Buuel,
Comparative Literature
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SUMRIO:
Introduo............................................................................................................................. 9
Captulo I- Primeiros passos do poetabreve itinerrio de sua formao ........................ 15
1)
Antes da pedra, o sonho ............................................................................................. 15
2)Alm das epgrafesAnotaes aPedra do sono.................................................... 18
3)A Willy Lewin, vivo .................................................................................................. 20
4)Tenses poticas em Fbula de Anfion.................................................................. 27
5)
O lxico entrePrimeiros poemase O engenheiro. Intertextualidades ...................... 30
Captulo IIO poeta vai ao cinemaAproximaes ........................................................ 40
Introduo ............................................................................................................................. 40
1)O cinema como tema ................................................................................................. 42
2)Modos de composio ............................................................................................... 47
3)
Processos flmicos ..................................................................................................... 54
4)Anexo: Episdios para cinema............................................................................... 57
Captulo IIIO co sem plumas....................................................................................... 59
1)Figuraes de linguagem: Joaquim Cardozo, parte do Recife .................................. 60
2)Novos modos de intertextualidade ............................................................................ 71
3)Os porqus do aquele ................................................................................................. 73
4)Uma narratividade cindida ......................................................................................... 77
5)
Uma nova potica ...................................................................................................... 82
6)Sob o domnio da metfora e a transfuso do smile ................................................. 90
Consideraes Finais: Cabral, Mir, Buuel ................................................................ 99
AnexoO Surrealismo flmico ................................................................................... 106
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1)
A cidade e seu inconsciente ..................................................................................... 110
2)Um mtodo a decifrar .............................................................................................. 112
3)A cidade como cenrio ............................................................................................ 114
Referncias Bibliogrficas.............................................................................................. 120
1)De Joo Cabral de Melo Neto .................................................................................. 120
2)Sobre Joo Cabral de Melo ...................................................................................... 120
3)Sobre Surrealismo.................................................................................................... 121
4)Sobre cinema e Luis Buuel .................................................................................... 123
5)
Bibliografia Geral .................................................................................................... 124
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Eu fui um falso surrealista.1
Joo Cabral de Melo Neto
Introduo
O objetivo desta dissertao de mestrado, desenvolvida para o programa de Teoria
Literria e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras eCincias Humanas da
Universidade de So Paulo, averiguar processos comuns potica de Joo Cabral de
Melo Neto e o movimento artstico nomeado Surrealismo.
Tal interseco apontada desde a primeira aproximao crtica obra do poeta
o artigo que Antonio Candido escreve a respeito da estria literria de Cabral, com Pedra
do sono, para a coluna Notas de Crtica Literria, publicada naFolha da Manh, em 13
de junho de 1943, em que fica exposta uma articulao em mo dupla: do mesmo modo
que o dilogo de Cabral com o grupo de Breton afirmado, delimita-se tal influncia a
este momento inicial de sua produo.
Assim, o processo de maturao cabralino se daria a partir de uma premissa de
rompimento, em que o poeta contraporia aos elementos que compem seu primeiro livro
[...] imagens livremente associadas ou pescadas no sonho, sobre os quais o autor age
como moderador2 os temas e parmetros estticos que passam a identific-lo at os
nossos dias, a saber: o antilirismo, a poesia de base social, a reflexo sobre o fazer potico,
a quadra como molde dos versos, a importao de procedimentos da Arte Mayor
espanhola etc.
nosso interesse averiguar de que modo se d esse rompimento.
1CASTELLO, Jos.Joo Cabral de Melo Neto: O homem sem alma & Dirio de tudo. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2006, p. 47.2CANDIDO, Antonio. Um velho artigo In:Revista Colquio/Letras, nmero 157/158, Lisboa: FundaoCalouste Gulbenkian, 2000, p. 15.
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Com este intuito, nos deteremos na primeira dcada da produo de Joo Cabral
que vai de sua primeira fixao em livro em 1942, at 1950, ano de publicao de O co
sem plumas, ponto de partida em sua longa temporada afastado do pas e objeto principal
desta anlise.
Livro-poema produzido em Barcelona quando o poeta contava 29 anos, cabe-nos
verificar se nesta obra, produzida oito anos aps a publicao de Pedra do sono,
desaparece por completo a presena surrealista em sua potica. Ou, se tal influncia j fora
absorvida no amplo processo de construo artstica a qual o poeta se dedicara ao longo da
dcada, e no qual a primeira obra de seu perodo espanhol surge como pea mais bem
acabada.
Se por um lado O co sem plumas lana as pedras fundamentais da potica que
Cabral consolidaria no prosseguimento de sua produo; de outro, a obra apresenta
especificidades inditas no mais reproduzidas ao longo de sua trajetria artstica: um
instrumental retrico, a ordenao estrfica e a abordagem do contexto social atravs de
novos modos de articulao. Alm de imagens, figuraes lingsticas, nas quais o smile
desempenha papel fundamental, e que se abrem a dilogos em princpio insuspeitados.
So esses elementos inditos que desejamos cotejar s prticas surrealistas, porm,
contornando os estudos comparados restritos a um mesmo campo artstico3. desse modo
que esta anlise se dar no embate das complexas relaes entre campos e prticas
artsticas distintas, especificamente, a poesia e o cinema.
Constitui-se assim nosso propsito, mesmo com os riscos que a proposta apresenta,
de cotejar O co sem plumas vertente flmica do Surrealismo, delimitada na abordagem
3Seguiremos nesta dissertao o conceito de campo artstico desenvolvido por Pierre Bordieu emAs regrasda arte.So Paulo: Cia das Letras, 1996.
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de Un chien andalou, de Luis Buuel. Tal proposta, to ambiciosa quanto arriscada, traz
em seu cerne o franco desejo de reconfigurar a rede de influncias do cinema sobre outras
expresses do sculo XX; repensar a recepo do Surrealismo em nosso pas; e reler, se
assim formos capazes, a trajetria de Joo Cabral em nova chave e perspectiva.
Uma hiptese e seus complicadores
A veces digo que el Surrealismo triunfo en lo accesorio y fracas en lo esencial.4
Luis Buuel
Na produo inicial de Joo Cabral de Melo Neto, notadamente seu livro de
estria, Pedra do sono, e em seus primeiros poemas, escritos nos anos derradeiros da
dcada de 1930 e coligidos por Antonio Carlos Secchin em 19905, Cabral ir se valer de
processos definidos pelo prprio poeta sob o conceito de forja:
A situao era a seguinte: aquele grupo que eu freqentava no Recife era profundamenteinfluenciado pelo Surrealismo. Mas, o Surrealismo, na minha opinio, sempre foi o traumatismoda escrita. Como eu era absolutamente incapaz de fazer a tal escrita automtica, com a qual eu noconcordava, e, ao mesmo tempo, desejava continuar fazendo parte do grupo do Caf Lafayette, eu
forjeium tipo de Surrealismo, quer dizer, meu Surrealismo era algo construdo.6
(grifo meu).
Como afirma o poeta, seus versos eram fabricados a partir de uma espcie de
Surrealismo muito peculiar, racionalizado. Um Surrealismo construdo, distante de
procedimentos como o automatismo, da necessria ateno s frases mais ou menos
fragmentrias que, quando estamos inteiramente sozinhos e prestes a adormecer, afloram
superfcie da mente, como afirmava Breton7. Realizado no interior da obra atravs de um
4BUUEL, Luis.Mi ltimo suspiro. Barcelona: DeBolsillo, 2004, p. 139.5Primeiros poemas, de Joo Cabral, reaparecem no primeiro volume da reedio de sua obra pela editoraObjetiva, em 2007.6Entrevista a Cadernos de literatura brasileira, So Paulo: IMS, 1996, p. 24.7BRETON, Andr.Primeiro Manifesto Surrealista. Nau Editora: Rio de Janeiro, 2001, p. 34.
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prvio trabalho de composio, distante das associaes da obra artstica a uma espcie de
receptculo de contedos revelados, ou de um ditado do pensamento, suspenso qualquer
controle exercido pela razo.8
Tal percepo expe o fio tnue em que caminha esta anlise. Se o Surrealismo
como o entendemos, como o abordaremos nesta dissertao, notadamente um processo
de construo artstica, por mais que seus prprios criadores desejassem imant-lo numa
nuvem difusa a invadir a conscincia adentro que, em muita medida, a prpria origem
das diluies que o reduzem ao nonsense9. De imediato somos desafiados a cotejar o modo
com que Cabral diz imitar seus resultados, com os procedimentos que seus fundadores
estabeleceram como modelo de criao, mesmo que desconfiemos da distncia entre este
discurso e suaprxis.
Ora, se o Surrealismo procedimento, ou uma srie de processos constitutivos
reproduzidos na materialidade de cada obra, a hiptese cabralina passa a ser reduzida a
uma nica alternativa: um modelo de reinterpretao destas prticas.
Este o nosso primeiro complicador.
O segundo permear esta anlise a partir de seu adensamento. A quem analisa a
obra de Joo Cabral de Melo Neto, retroativamente, a partir dos dias de hoje, percorrendo
a acumulao das mais diversas leituras, e tendo na mirada uma obra encerrada, como
acreditar que o poeta pde realizar um projeto artstico como o seu, em que a construo
se choca com a imitao de determinados procedimentos? Por mais que o choque entre a
autonomia da linguagem, na qual a escrita automtica surrealista exemplo freqente, e a
8idem. Ibidem. p.40.9As pessoas acham que, para ser surrealista, preciso obrigatoriamente colocar uma lata de lixo na cabea.Meu sogro me disse um dia: Henri, voc no tem bom senso!. O bom senso no foi uma qualidade
primordial para os surrealistas. O Surrealismo no o chapu engraado, mais do que isso. Entrevista deHenri Cartier-Bresson para Miguel Guerrin. Reproduzido porFolha de S. Paulo, Caderno Ilustrada, SoPaulo, 06/08/2004.
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construo potica, esteja no cerne do trabalho do poeta moderno, entre o manual de
processos dos surrealistas e a composio atravs da construo de fora para dentro do
poema, h um fosso que impe tenses profundas a um poeta como Cabral, consciente do
distinto funcionamento dessas vertentes de criao.
Diante de tal impasse, do cinema de expresso surrealista que retiramos
elementos que podem nos auxiliar a dar conta das contradies em que o poeta nos lana.
H no Surrealismo flmico, limitadores, aspectos tcnicos e de linguagem, que
propiciaro o surgimento de um modo prprio de composio, distinto das vertentes
pictrica e potica do movimento. Essas solues s quais cineastas como Luis Buuel se
valero em suas pelculas nos fazem refletir a respeito do modo como Joo Cabral
empreende sua construo potica, e as imitaes de processos surrealistas a que se lana
em suas primeiras experincias artsticas.
Em princpio, os filmes surrealistas rompem com as noes de automatismo e
arbitrariedade possveis s expresses poticas e pictricas. Entre o automatismo de um
roteiro e o resultado final na pelcula, uma pesada intermediao tcnica e de
colaboradores interposta, transformando o arbitrrio em procedimento tcnico. Com o
advento da montagem, o cinema passa a ter dentro da materialidade que lhe prpria, um
mecanismo de combinaison et de lagencement10, que atua sobre os sintagmas visuais
(flmicos) em chave prxima ao desdobramentos da metfora no campo potico 11. Diante
desses elementos, possibilidades insuspeitadas se abrem no campo dos estudos
10AUMONT, Jacques... [et al.].Esthtique du film. Paris: Armand Colin Cinma, 2008, p. 37.11Modesto Carone prope que a montagem seja pensada como um conjunto de metforas visuais agrupadassem necessidade lgica, ou seja, reunidas num sistema semiolgico em que uma no decorrenecessariamente da outra, e complementa: a montagem uma metfora, na medida em que se apresentacomo idia que salta da coliso de signos ou imagens justapostas. CARONE, Modesto.Metfora emontagem. So Paulo: Perspectiva, 1974, p. 15.
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comparados, e nos motivam a aproximar-nos, de modo mais acurado, do entroncamento
entre a potica de Joo Cabral de Melo Neto e elementos da composio flmica.
Por fim, as diferentes etapas de maturao artstica de Joo Cabral e Luis Buuel
ao produzirem os objetos desta dissertaoenquanto Cabral lanava sua quinta coletnea
de poemas, Buuel estreava como cineastaalm das peculiaridades de cada campo
artstico, e as dificuldades em cotejar linguagens to distintas, constituem nosso terceiro
complicador.
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Captulo 1 - Primeiros passos do poetabreve itinerrio de sua formao
H um esprito novo: um esprito de construo e de sntese guiado por uma concepo clara.12
Le Corbusier
Neste primeiro captulo abordaremos os primrdios da produo de Joo Cabral de
Melo Neto. Como se estruturam seus primeiros poemas na metade final dos anos 1930.
Tema, referncias e as relaes de mediao que o poeta comea a empreender em seu
projeto potico. Seguimos pelas coletneas da dcada de 1940, Pedra do sono (1942) eO
engenheiro (1945) e pelo poema Fbula de anfion (1946/47), itinerrio que ir
culminar em O co sem plumas, em1950. A partir desse corpusretornaremos a algumas
influncias menos notadas, como a de Willy Lewin, e as relaes intertextuais entre Joo
Cabral e o crtico e poeta pernambucano. Por fim, pontuaremos no corpo dos poemas
analisados as diversas marcas textuais que remetem produo flmica e ao Surrealismo.
1. Antes da pedra, o sonho
A primeira dcada da produo potica de Joo Cabral de Melo Neto composta
por quatro obras, alm de uma srie de poemas dispersos, produzidos entre 1937 e 1940,
que iro reaparecer na edio dePrimeiros poemasque Antonio Carlos Secchin organiza
em 199013.
Neste percurso, deter-se por alguns instantes nas dedicatrias e epgrafes de tais
obras pode nos servir como um primeiro orientador de algumas escolhas e influncias com
as quais o poeta dialogou durante o itinerrio inicial de sua produo.
12LE CORBUSIER, Programe de lesprit nouveau. APUD AZEVEDO, Ricardo Marques de. Metrpole:Abstrao. So Paulo: Perspectiva, 2006.13MELO NETO, Joo Cabral de. Antnio Carlos Secchin (org).Primeiros poemas. Rio de Janeiro:Faculdade de Letras da UFRJ, 1990.
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Principiamos pela coletnea de seus primeiros exerccios poticos, dispersos, sem a
estrutura de uma obra elaborada, que tardiamente vm a pblico em 1990.
Dezenove poemas de temtica diversa. Destes, apenas um, O momento sem
direo, de 1938, apresenta dedicatria ao poeta Carlos Drummond de Andrade. No
eixo temtico, dois so nomeados com o nome do dramaturgo italiano Luigi Pirandello
(Pirandello I e Pirandello II) e um com as iniciais do poeta de Itabira (C.D.A).
Seguindo por sua estria literria, em 1942, com Pedra do sono, que reproduz o
procedimento de Drummond em Brejo das almas, associando o ttulo da obra a uma
pequena localidade de seu estado de origem14, Cabral volta a homenagear o poeta mineiro
que, junto a seus pais e o crtico literrio e membro de seu grupo no Recife, Willy Lewin,
formar a trinca de dedicatrias desse volume, somada epgrafe mallarmaica (Solitude,
rcif, toile...).
As homenagens a Drummond seguem em 1943, com o auto Os trs mal amados,
inspirado em Quadrilha, poema da estria do poeta mineiro (Alguma poesia, de 1930). A
epgrafe formada pelos dois primeiros versos do poema de Drummond. J em O
engenheiro, de 1945, alm da epgrafe de Le Corbusier (Machin mouvoir...), a obra
novamente dedicada a Drummond, secundada pela apresentao coloquial meu amigo,
gesto especular epgrafe do livro de estria de Drummond, dedicado a Mrio de
Andrade.
O breve itinerrio de homenagens de que nos cercamos, se bem refora uma
presena de Drummond como parmetro e influncia, nada nos diz sobre as obras citadas,
14Drummond expe com clareza o procedimento amplamente relacionado ao modo modernista: A poesiamodernista foi, em grande parte, poesia de regio, de municpio e at de povoado, que se atribuiu a missode redescobrir o Brasil, considerando-o antes encoberto do que revelado pela tradio literria de cunhoeuropeu. ANDRADE, Carlos Drummond de.Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988, p.1441.
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sobre a materialidade dessa influncia. Mas justamente essa averiguao que
pretendemos evitar15. esse percurso sedimentado pela acumulao das leituras16, que
precisamos obliterar para que nosso projeto caminhe.
15Prova material da intensa influncia de Drummond sobre Cabral durante esse perodo o poema escritoem papel timbrado do Departamento Administrativo do Servio Pblico no Rio de Janeiro, onde Cabraltrabalhava em sua temporada na ento capital federal, endereado ao poeta mineiro, tambm funcionrio
pblico no perodo, datado de 29/09/1943:
Difcil ser funcionrioNesta segunda-feiraEu te telefono, Carlos,Pedindo conselho.
No l fora o dia
Que me deixa assim,Cinemas, avenidasE outros no-fazeres.
a dor das coisas,O luto desta mesa; o regimento proibindoAssovios, versos, flores.
Eu nunca suspeitariaTanta roupa preta;To pouco essas palavrasFuncionrios, sem amor.
Carlos, h uma mquinaQue nunca escreve cartas;H uma garrafa de tintaQue nunca bebeu lcool.
E os arquivos, Carlos,As caixas de papis:Tmulos para todosOs tamanhos do meu corpo.
No me sinto corretoDe gravata de cor,E na cabea uma moa
Em forma de lembrana
No encontro a palavraQue diga a esses mveis.Se pudesse encarar...Fazer sem nojo meu...
Carlos, dessa nuseaComo colher a flor?Eu te telefono, Carlos,
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2. Alm das epgrafesAnotaes a Pedra do sono
Os poemas produzidos em 1940 e 1941, que estaro presentes em Pedra do sono,
delimitam o espao onrico s imagens e, em oportunidades menos constantes, ao tema. . O
poeta busca um molde a partir do qual se diferencie essa produo de suas primeiras
experincias (desprezadas em sua maioria nesta primeira coletnea), o que surge
explicitado logo no poema de abertura.
Em Poema17, pea em trs estrofes, j possvel atentar a um ritmo que se
consolidaria em sua trajetria posterior, em que a quadra d liga ao andamento.
Poema
Meus olhos tm telescpios
espiando a rua,
espiando minha alma
longe de mim mil metros.
Mulheres vo e vm nadando
em rios invisveis.
Automveis como peixes cegos
compem minhas vises mecnicas.
H vinte anos no digo a palavra
Pedindo conselho.Cadernos de literatura brasileiraJoo Cabral de Melo Neto, So Paulo: IMS, 1996, p.60-61.16Lugar comum da crtica cabralina: h duas guas na poesia de Joo Cabral, delimitadas pela diferenaentre realidade e poesia, e assim nomeadas, com as inevitveis e nem sempre negligenciveis variaesde idioma: a da referncia ao real e a da reflexo sobre a linguagem potica. Poesia que fala das coisas e damaneira de falar das coisas. Baptista, Abel Barros. Ortopedia do smile. In:Revista Colquio/Letras,nmero 157/158, Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2000, p. 273.17MELO NETO, Joo Cabral de. O co sem plumas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007, p. 23.
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que sempre espero de mim.
Ficarei indefinidamente contemplando
Meu retrato eu morto.
No eixo temtico brotam referncias j descritas. Exemplo mais explcito o verso
de abertura Meus olhos tm telescpios/espiando a rua, que remete a as casas espiam
os homens/que correm atrs das mulheres, de Poema de sete faces, importante pea na
estria do poeta de Itabira. Mas, se o verso, primeira quadra da trajetria que se inicia,
reverencia seu precursor imediato, tambm j aponta as mediaes entre poeta e mundo.
Os olhos deste tm telescpios, que captam a realidade atravs de um equipamento de
ampliao, de uma lente, que ir distanci-lo do impalpvel, do inexplicvel, delimitados
numa alma longe de mim mil metros. Do mesmo modo, Cabral logo anuncia neste
primeiro poema uma percepo aguda da intensa presena da mquina, da exploso
tecnolgica, na qual o cinema ter papel importante como prtica artstica capaz de dar
conta do movimento, das novas relaes de deslocamento que passam a preencher o
mundo, fartamente percebidas, nas dcadas anteriores, pelas expresses vanguardistas
europias. Os versos que fecham a segunda quadra do poema trazem tona essa nova
relao.
Automveis como peixes cegos
compem minhasvises mecnicas.
Motivo comum produo flmica do perodo: automveis a atravessaravidamente
as ruas das cidades, que se reconfiguram nas primeiras dcadas do sculo. Imagens que
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remetem, por exemplo, aBallet mcaniquede Fernand Lger18, e aos primeiros filmes de
LuisBuuel, Un chien andaloueLage dor.
Nestes poemas iniciais, este compartilhamento de determinados temas, codificados
em operaes de ordem semntica, a partir de interrelaes que passam quase
despercebidas em meio presena macia de referenciais recorrentes o eixo de
influncias, continuadamente reafirmado, formado por Drummond, Mallarm e Valry ,
instiga-nos a detalhar outros dilogos pouco notados nas primeiras experincias do poeta.
a partir dessas observaes que esta anlise se abre no detalhamento de uma influncia
aparentemente difusa na configurao do projeto cabralino.
3. A Willy Lewin, vivo
A Willy Lewin morto
Se escrevermos pensandocomo nos est julgando
algum que em nosso ombrodobrado imaginamos,
e o primeiro que assiste
ao enredado e incertoque como no papel
se vai nascendo o verso,e testemunha o aceso
de quem est no estadodo arqueiro quando atira,mais tenso que seu arco,
foste ainda o fantasmaque prele o que fao,
e de quem busco tantoo sim e o desagrado.
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Joo Cabral de Melo Neto
18O caso da evoluo da forma do automvel um exemplo perturbador do que eu digo, mesmo curiosoque, quanto mais o carro se aproximou de seus fins teis, mais belo se tornou. F. LGER. Apud AZEVEDO,Ricardo Marques de.Metrpole: Abstrao. So Paulo: Perspectiva, 2006, p. 52.19MELO NETO, Joo Cabral de.A educao pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.72-73.
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A um sutil ponto de bifurcao, observado em nossa breve passagem pela epgrafe
de Pedra do sono, nos deteremos. Ao lado de Drummond, de seu pai e sua me, Cabral
dedica seu livro de estria a Willy Lewin.
Poeta, crtico, funcionrio pblico em Pernambuco, Lewin funciona no final dos
anos 1930 e o incio dos anos 1940 como um catalisador cultural, impulsionando os
estudos e as relaes de um grupo de jovens poetas, artistas plsticos e escritores no
Recife, que contava, entre outros, com o pintor Vicente do Rego Monteiro, o poeta Ldo
Ivo e Joo Cabral de Melo Neto20.
Seguindo nesse fio biogrfico e ligando-o a referentes textuais na obra de Joo
Cabral, ainda em Pedra do sono, em sua primeira edio, feita no Recife numa pequena
tiragem21, iremos encontrar o prefcio de Lewin, que no deixa de nos surpreender ao
localizar as influncias do jovem Cabral, e de notar o desejo do poeta em contorn-las:
[...] claro que Joo Cabral de Melo Neto adora um Mallarm ou um Valry. Os seus
versos, porm, podem se parecer com qualquer cousa, menos com Laprs-midi dun
Faune ou um Cimetire Marin. O que merece ser salientado em nossos dias, quando o
captulo influncias poticas em geral interpretado e justificadode maneira pouco
diversa.22(grifo meu).
O que Lewin observa, em texto contemporneo primeira fixao da obra do
jovem poeta em livro, se ope ao eixo consolidado de influncias de Cabral, e que ser
20CASTELLO, Jos.Joo Cabral de Melo Neto: O homem sem alma & Dirio de tudo. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2006,p. 46.21O livro, que sai em edio restrita, no sairia sem a ajuda do socilogo Gilberto Freyre, seu primo pelolado materno. Freyre acaba de lanar uma edio de um Guia de Olinda, em papel alemo importado. Cede asobra do papel ao primo.Pedra do sonosai em uma edio de cinqenta exemplares de luxo, [...] e outra deduzentos exemplares em papel comum.. In Jos Castello.Joo Cabral de Melo Neto: O homem sem alma &Dirio de tudo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 49.22LEWIN, Willy, Joo Cabral de Melo Neto e sua poesia APUD MAMEDE, Zila. Civil Geometria. SoPaulo, Nobel: 1987, p. 358.
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notado e referendado pela crtica a posteriori. Prximo obra no eixo temporal, o texto
que serve, sobretudo, como apresentao, carto de visitas de uma carreira que se inicia
dialoga com elementos que no poderiam ser notados pelos que estabeleceram contato
com o poeta a partir de suas obras editadas: a saber, os primeiros exerccios poticos de
Joo Cabral, o ambiente cultural em que o poeta se formou.
O prprio Cabral ir, ao longo das dcadas seguintes, reduzir, limitar a influncia
deste perodo, sobretudo ao estabelecer os textos de edies subseqentes, cortando
poemas e procedendo modificaes nas estruturas de suas primeiras obras, de modo a
fortalecer uma coerncia esttica a seu projeto potico desde seu nascedouro. Como
exemplo, a pequena primeira edio de Pedra do sono composta por seis poemas que
no foram mantidos nas edies posteriores. Na edio de Poesias reunidas, que a editora
Orfeu lana em 1954, h trs poemas, sem ttulo, que s voltam a ser publicados como
anexo, na edio da UFRJ de 1990. A asa, poema de O engenheiro, seria retirado das
edies posteriores da obra, reaparecendo apenas na coletnea realizadas por Secchin, e,
ainda, h a edio de 1982 dePoesia crtica, antologia de poemas em que o poeta exercita
a verve crtica, selecionado poemas com esta temtica.
As notas biogrficas acabam assim auxiliando-nos a reconstituir um perodo que o
prprio poeta no tem maior interesse em preservar23, aproximando-nos de impresses
iniciais, das primeiras observaes crticas e do conjunto bruto desta obra antes de sua
fixao definitiva.
23Mesmo antes de public-lo [aPedra do sono], eu j comeara a me impor outro caminho. Entrevista aJornal do Brasil. Apud MAMEDE, ZILA, Civil Geometria. So Paulo: Nobel, 1987, p. 130.
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II
EmPedra do sono, Dentro da perda da memria dedicado a Jos Guimares de
Arajo, escritor pernambucano que apresenta Cabral a Lewin24. Formavam um grupo, que
Cabral definia como profundamente influenciado pelo Surrealismo25, que se reunia no
Caf Lafayette, no centro do Recife, homnimo do logradouro parisiense em que Breton
localiza seu romance Nadja, para trocas literrias e indicaes de leituras. Os primeiros
poemas de Joo Cabral so parte desseambiente, como Lewin sugere em seu prefcio.
Retornando a Primeiros poemas, analisaremos as duas partes da homenagem de
Cabral a Pirandello26, verso revista de Sugestes de Pirandello27, de 1937. Iniciamos
com Pirandello I.
Pirandello I28
A paisagem parece um cenrio de teatro
uma paisagem arrumada.
Os homens passam tranqilamente
com a conscincia de que esto representando.
Todos passam indiferentes
como se fosse a vida ela mesma.
24O poeta o conhece por meio de Jos Guimares Arajo, em encontro casual numa livraria do Recife. InCASTELLO, Jos.Joo Cabral de Melo Neto: O homem sem alma & Dirio de tudo. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2006, p. 46.25Entrevista a Cadernos de literatura brasileiraJoo Cabral de Melo Neto. So Paulo: IMS, 1996, p. 24.26Cabral odeia teatro; mas, contradio que no o incomoda, considera Luigi Pirandello um dos grandes
gnios do sculo XX. CASTELLO, Jos. Op. cit., p. 45.27De Sugestes a Pirandello, redigido originalmente em trs partes, restam duas: Pirandello (I) ePirandello (II), que s sero publicadas na tardia dcada de 1990. CASTELLO, Jos.Joo Cabral deMelo Neto: O homem sem alma & Dirio de tudo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 45.28MELO NETO, Joo Cabral de. O co sem plumas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007, p. 159.
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O cachorro que atravessa a rua
e que deveria ser faminto
tem um ar calmo de sesta.
A vida ela prpria no parece representada:
as nuvens correm no cu
mas eu estou certo que a paisagem artificial
eu que conheo a ordem do diretor:
_ No olhem para a objetiva!
e sei que os homens so grandes artistas
o cachorro um grande artista.
Neste poema, escrito em 1937, meses depois do falecimento do escritor italiano, j
aparecem alguns elementos que se misturam pela primeira vez na obra do poeta. O
primeiro verso j pontua a rede de relaes de intermediao, que mesmo precocemente
Cabral identifica. O primeiro verso d o tom: A paisagem parece um cenrio deteatro
(grifo meu). Se a operao reafirma de imediato a homenagem ao dramaturgo, em outra
chave deixa clara a desconfiana do poeta em relaes no mediadas na linguagem. O
poema prosseguir absorvendo um vocabulrio extrado da linguagem cinematogrfica (o
diretor, a objetiva), que se mistura a elementos dramatrgicos (atores, cenrios etc.),
ambos permeados por uma idia de representao, de mediao a partir dos artifcios que o
artista se utiliza em seu trato com a realidade. Os homens tm conscincia de que esto
representando, mas so to indiferentes que a vida parece ser ela mesma. Observa-se
tambm no jovem poeta que o que viria a se tornar cido, crtico, corrosivo tem tons
irnicos. O co de Pirandello I, ao contrrio do co de O co sem plumas (por demais
espesso), um co artista e seu aspecto, que deveria ser famlico deveria estar
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faminto , como faria o co vivo/dentro de um bolso, o co vivo debaixo dos lenis
do livro-poema de 1950, tem um ar calmo de sesta.
Em outra chave, um motivo ir ligar o poema de 1937 ao livro-poema de 1950: a
movimentao do co, seu modo de deslocar-se na cidade. Os versos se equiparam numa
notvel similaridade semntica, relacionando-se tambm a um campo de significados j
delimitados nesta anlise ao repertrio flmico das vanguardas dos anos 1920. A estrofe de
1937: o cachorro que atravessa a rua/e que deveria ser faminto, espelhado no trecho do
poema de 1950: A cidade passada pelo rio/como uma rua/ passada por um cachorro.
Cortar, passar, atravessar, este eixo de significados, que o poeta preservar em poemas to
dspares de seu conjunto potico, alcana em interseco a obsessiva repetio desses atos
transpostos em imagem de Un chien andalou, de Buuel. Na pelcula, o cineasta espanhol
compe em cenas diferentes representaes desse campo de significados. Assim,
observamos nos primeiros minutos de exibio:
Um olho cortado, extirpado, uma rua deserta atravessada por um cachorro, um ser andrgino
atravessaessa rua de bicicleta, um homem atropelado (atravessado por um carro)no meio da
rua.
Essas aproximaes semnticas reforam um repertrio de idias-fixas comuns a
Cabral e Buuel, que as transformam em elementos estticos nas peculiaridades de cada
expresso artstica de que se utilizam.
Seguimos na anlise da segunda parte do poema a Pirandello, os grifos reforam
trechos que detalham essas inflexes no poeta pernambucano.
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Pirandello II29
Sei que h milhares de homens
se confundindo neste momento.
O diretor apoderou-se de todas as conscincias
num saco de vspora.
Fez depois uma multiplicao
que no era bem uma multiplicao de pes
de um por dez por quarenta mil.
Tinha um gesto de quem distribui flores.
A mim me coube um frade
um pianista e um carroceiro.
Eu era um artista fracassado
que correra todos os bastidores
vivia cansado como os cavalos dos que no so heris
serei um frade
um carroceiro e um pianista
e terei de me enforcar trs vezes.
No jovem Cabral a conscincia vira joguete na mo de um diretor que estabelece
os papis dos atores (dos homens) que esto misturados num saco de vspora (espcie de
jogo de loto). Refm de uma entidade a quem obedece, e que no tem por base a religio,
ao contrrio, que chega a ironiz-laFez depois uma multiplicao/que no era bem uma
multiplicao de pes , mais se assemelhando ao acaso. Os homens sem conscincia se
confundem, esperam pelo sorteio do diretor para seguir desempenhando os novos papis
que lhe cabem a partir da nova ordem que o diretor (acaso) impetra. O narrador, e o termo
no nos parece equivocado diante da funo que opera nesse poema prximo a um
29MELO NETO, Joo Cabral de. O co sem plumas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007, p. 160.
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episdio ou cena flmicos, por fim constata sua prpria relao de subordinao a partir da
posio em que atua: A mim me coube um frade/ um pianista e um carroceiro [...]
serei umfrade, um carroceiro e umpianista. [...] e terei de me enforcar trs vezes
Constatao do poeta imaturo diante de sua incapacidade em domar a linguagem.
4. Tenses poticas em Fbula de Anfion
Retornamos a Lewin e s possveis aproximaes de seus poemas com a primeira
dcada da produo de Joo Cabral. Seguimos com trecho do poema do crtico
pernambucano, que servir de epgrafe para a conferncia que Cabral realizar no Primeiro
Congresso de Poesia do Recife, em 1941.
Trecho de Willy Lewin
O sono, um mar de onde nasce
Um mundo informe e absurdo,Vem molhar a minha face:
Caio num ponto morto e surdo.30
O que logo de incio nos desperta a ateno na quadra de Lewin a semelhana entre
seus motivos e o desfecho de Fbula de Anfion, longo poema que Cabral produziria
entre 1946 e 194731, e publicaria em 1947, junto a Psicologia da Composio e
30MELO NETO, Joo Cabral de.Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.11.31Uma flauta: como prever
suas modulaes,cavalo solto e louco?
Como traar suas ondasantecipadamente, como faz,
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Antiode. No derradeiro discurso de Anfionque dialoga com trechos dos primeiros
poemas do poeta pernambucano, o acaso, imagem no explicitada, mas sugerida em
Pirandello I, ressurgir nomeado na segunda das trs sees do poema O acaso ataca
e faz soar a flauta , e se no poema-homenagem ao dramaturgo italiano este se traduz
num jogo de azar, em Fbula de Anfion passa a funcionar como um violador da
mudez32.
O acaso ataca e faz soar a flauta
acaso! O acaso
sbito condensou:
em esfinge, na
cachorra de esfinge
que lhe mordia
a mo escassa;
que lhe roia
o osso antigo
logo florescido
de flauta extinta:
ridas do exerccio
puro do nada.33
no tempo, o mar?
A flauta, eu a jogueiaos peixes surdos-mudos do marMELO NETO, Joo Cabral de. O co sem plumas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007, p. 120.
32Mais que a tentao do silncio, a tentao da fala, aqui mediada pelo acaso, violador da mudezalcanada por Anfion no rigor do deserto.. CARONE, Modesto.A potica do silncio. So Paulo:Perspectiva, 1979, p. 89.33MELO NETO, Joo Cabral de. O co sem plumas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007, p. 116-117.
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O que subjaz a Anfion a prpria impossibilidade, a incapacidade do discurso
potico, em que o silncio tematizado a metfora eficiente do indizvel34. Esta
percepo transformada em tenso potica de potncia, at ento indita na poesia de Joo
Cabral, se d, em muita medida, no choque entre procedimento e composio que se
desenrola nas obras da primeira dcada da produo do poeta. Fruto deste embate, o
receiturio de procedimentos que demarcam o discurso dos surrealistas no se sustenta
diante do peso que Cabral percebe no prprio exerccio do fazer potico. Neste ponto,
descrer numa linguagem autonomizada, capaz de produzir a prpria poesia, condio
primordial para prosseguir a escrever. O que vale dizer que, diante da conscincia deste
impasse, prprio experincia da poesia moderna, s resta ao poeta dedicar-se ao
controle permanente sobreo poema35, o que equivale a dizer que o exerccio de forjar
processos s resistir no projeto cabralino, como modo constitutivo, quando reposto como
metfora, smile, figuraes lingsticas dispostas no corpo do poema.
O esforo que a construo de Fbula de Anfion demanda, e as dvidas que
acompanham o poeta aps seu trmino sero verbalizadas nos anos seguintes, no perodo
que separa a obra de 1947 da feitura de O co sem plumas. O livro-poema, produzido j
em territrio espanhol, ser fruto assim do prosseguimento das tenses no campo da
expresso e do profundo questionamento sobre sua prpria vocao potica.
Fecha-se assim um ciclo de uma dcada, que separa os poemas em homenagem a
Pirandello, da verso de Cabral para o libreto de Valry. Perodo em que a reflexo
34CARONE, Modesto.A potica do silncio. So Paulo: Perspectiva, 1979, p. 89.35Idem. Ibidem, p. 91.
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crtica36do poeta exercitada em seus poemas; se, por um lado, amplia-se numa linguagem
cada vez mais sofisticada, produz um impasse entre esta e o fazer potico, no equilbrio
entre expresso e composio. Cabral j sinaliza em Anfion que lidar com essas
tenses atravs de uma composio que rearticula a sintaxe e os sintagmas, retirando da
linguagem a funcionalidade com que seu uso rotineiro a imanta. Porm, a soluo no
parece ser suficiente para a crise que atingir o poeta no final dos anos 1940. O salto que
possibilitar o prosseguimento de sua carreira potica s ser possvel quando s
conquistas de Anfion for somado o aperfeioamento das escolhas lexicais que o poeta j
empreendera anteriormente, e que se realizaro amplificadas na composio de O co sem
plumas.
5. O lxico entre Primeir os poemase O engenheir o. Intertextualidades
Vinte palavras sempre as mesmasde que conhece o funcionamento,
a evaporao, a densidademenor que a do ar.
37
Joo Cabral de Melo Neto
O perodo compreendido entre as experincias poticas do final dos anos 1930 e a
trade de poemas produzidos no binio 1946/47 serviram como um longo aprendizado no
trato do lxico por Joo Cabral de Melo Neto. E a correspondncia entre o poeta e Willy
Lewin, junto aos espelhamentos entre as obras dos dois poetas pernambucanos, auxiliam-
36Para poder continuar a freqentar o grupo, passei a escrever poesia. Mas tentei fazer poesia crtica: deautores, de realidades. Entrevista a Cadernos de literatura brasileiraJoo Cabral de Melo Neto. SoPaulo: IMS, 1996, p. 20.37A lio de poesia In Melo Neto, Joo Cabral de. O co sem plumas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007, p.94.
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nos na anlise deste itinerrio. Em carta de 20 de dezembro de 1942 38, Lewin envia a
Cabral dois poemas; o primeiro, Poema, texto homnimo abertura de Pedra do sono:
Poema
Willy Lewin
A noite lambe a vidraa
E beija os seios do jardim.
A presena do inseto invisvel
Destila um sono insuficiente.
O copo e a luva esquecida
Compem uma atmosfera
Obscuramente perversaSobre a mesa, junto ao tinteiro.
Que nascer da tua boca:
Uma lmpada, a asa de um pssaro
Ou um desejo em forma de pssego?
Alm da homonmia do ttulo, o poema de Lewin parece compartilhar de um
lxico prximo ao utilizado por Joo Cabral em seus Primeiros poemase que, alguns anos
depois, seria fixado emPedra do sono.
A obra de Lewin, e seu cotejamento produo de Cabral, possibilita-nos verificar
que o aspecto lunar39ressaltado por Antonio Candido em seu texto crtico sobre Pedra do
sono j se faz presente nas primeiras experincias poticas cabralinas. Esto l, por
exemplo, termos caros temtica como a noite, um sonoe umaatmosfera obscura. Alm
38Acervo Joo Cabral de Melo Neto. Arquivo Museu de Literatura BrasileiraFundao Casa de RuiBarbosa.39CANDIDO, Antonio. Um velho artigo In:Revista Colquio/Letras, nmero 157/158, Lisboa: FundaoCalouste Gulbenkian, 2000, p. 15.
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de aproximaes a outros temas que j apontam para outras inflexes do poeta. Fiquemos
com os exemplos que se seguem.
O primeiro trecho de O sbio louco, poema de 1938:
que caam como chuva
que vinham nas asas das abelhas
e nos sinais dos telgrafos Morse.40
O segundo trecho de A poesia da noite, do mesmo ano:
Sobre o pano da mesae nos jarros de um gosto improvvel
colocaram flores e gestos de parentes extintos41
Poemas contemporneos entre si, mas que formam um conjunto coeso em lxico e
tema com o poema que Lewin enviaria a Cabral quatro anos depois. Os exemplos se
repetem, mesmo em trechos sucintos como estes, em paralelismos explcitos. As asas das
abelhas, em Cabral, a asa de um pssaro em Lewin Cabral voltaria a tematizar o
vocbulo em A asa, possivelmente de 1944, poema de O engenheiro, posteriormente
retirado da obra. Sobre o pano da mesa, em Cabral, reverbera em Sobre a mesa, em
LewinCabral tambm retomaria ao tema em O engenheiro, com o poema A mesa. E
neste eixo que se abre, em que o poema de Lewin acaba por facilitar conexes
insuspeitadas entre os poemas iniciais de Cabral e O engenheiro, o melhor exemplo nos
parece ser A bailarina, terceiro poema do livro lanado em 1945, com poemas
produzidos entre 1942 e o ano de sua publicao.
40MELO NETO, Joo Cabral de. O co sem plumas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007, p. 165.41Idem. Ibidem, p. 167.
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A bailarina
A bailarina feitade borracha e pssaro
dana no pavimento
anterior do sonho.
A trs horas de sono,
mas alm dos sonhos,
nas secretas cmaras
que a morte revela.
Entre monstros feitosa tinta de escrever,
a bailarina feita
de borracha e pssaro.
Da diria e lenta
borracha que mastigo.
Do inseto ou pssaro
que no sei caar.42
Seguindo pelos espelhamentos lexicais entre Poema de Lewin (tinteiro;
inseto, pssaro) e A bailarina de Cabral (tinta de escrever; inseto, pssaro), e pela
percepo da delimitao de ambos os poemas por uma percepo insone (ou de quase
conscincia), j ntido o adensamento da potica de Joo Cabral no sentido da
valorizao da composio potica e a custosa busca por uma articulao que d valor ao
trabalho do poeta, mesmo que nesse momento este ainda seja realizado no pavimento
anterior do sonho. Ciente das dificuldades que o ofcio lhe oferece, Joo Cabral expe a
42MELO NETO, Joo Cabral de. O co sem plumas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007, p. 73.
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clareza de quem visualiza em sonho a matria de sua poesia, mas que no sabe como
preserv-la na conscincia, que em imagem potente se transmuta em inseto ou pssaro
que no sei caar. Mas mesmo que no concretize em composio, ao menos j distancia
Cabral de seu conterrneo.
Lewin demarca as diferenas entre os poetas em carta a Cabral de 1943:
pobre de mim que sou um bicho inquieto e pulador de galhos [...]43.
O que acaba referendado na inquietao do poema enviado a Cabral se espelha no
em esforo de construo potica, mas sim em ddiva do acaso (Que nascer da tua
boca:/Uma lmpada, a asa de um pssaro/Ou um desejo em forma de pssego?). A
interrogao expressa a passividade de seu estado. Limitado pela distncia geogrfica
Cabral no Rio de Janeiro, Lewin em Recifeo contato entre os escritores passa a ser cada
vez mais espaado, e a correspondncia entre Cabral no exterior e Lewin j no Rio, nos
anos seguintes, praticamente inexiste. Como se a tomada de conscincia do jovem poeta
sobre seu prprio projeto potico fosse conflitante com as antigas idias de seu mentor
pernambucano.
Como nota Luiz Costa Lima se O engenheiro representa uma etapa capital na
elaborao potica de Cabral assim acontece porque nele entram em choque duas
configuraes poticas opostas: uma em que se fundamentava a feitura de Pedra dosonoe
outra que, embora neste livro de estria j pressentida, ainda no entrara em pleno
funcionamento.44O certo que alguns dos poemas do livro de 1945 j estavam prontos
quando do lanamento de sua obra de estria em 1942, e aparecem em O engenheirocomo
43Acervo Joo Cabral de Melo Neto. Arquivo Museu de Literatura BrasileiraFundao Casa de Rui
Barbosa.44LIMA, Luiz Costa. A traio conseqente ou a poesia de Cabral. InLira e antilira. Rio de Janeiro:Topbooks, 1995, p. 243.
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espcie de sobra de seu livro anterior. E, ao menos desde 1943, o poeta j se dedicava
maturao dos poemas que seriam fixados na obra. o que em carta de 23 de maro de
1943, Lewin comenta sobre a obra do amigo, que j tinha at ttulo escolhido na data:
"Acho que voc deve continuar construindo minuciosamente O engenheiro. No saberia, creio,
imit-loao menos por enquantonessa determinao vigilante, nesse enrgico esprito de plano [...]45
O segundo poema que Lewin envia a Cabral em dezembro de 1942 46 Os
mistrios do mar (segundo Georges Mlis), em que o eixo temtico se abre em novas
interpretaes. Exerccio em prosa, desde seu ttulo tematiza o cinema com a homenagem
a Mlis, pioneiro da stima arte, precursor e inventor de novas tcnicas, que atuava
tambm como mgico. O poema de Lewin mais se assemelha a um roteiro do que ao
poema, em prosa, que pretende ser:
Os mistrios do mar (segundo Georges Mlis)
Willy Lewin
A cena representa o convs de um navio.
Os marinheiros a postos junto bomba de ar fazem os ltimos preparativos
para o mergulho do escafandrista.
Rpida mudana de dcor. Contemplamos agora o fundo do mar. O escafandrista atravessa
lentamente a cena,
arrastando com dificuldade os seus ps de chumbo.
45Acervo Joo Cabral de Melo Neto. Arquivo Museu de Literatura BrasileiraFundao Casa de Rui
Barbosa.46Acervo Joo Cabral de Melo Neto. Arquivo Museu de Literatura BrasileiraFundao Casa de RuiBarbosa.
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Brandindo uma machadinha, cercado por uma miraculosa flora submarina, ele abre
caminho entre as algas balanantes.
Peixes triangulares e fosforescentes esbarram s vezes no vidro do seu capacete esfrico.
Meio oculto pelo mastro partido de um veleiro naufragado, um polvo gigantesco distende
preguiosamente os seus tentculos, pressentindo a aproximao do estranho ser de ferro e
de borracha.
Como o procedimento de Cabral em Pirandello I e II, Lewin vai construir seu
poema atravs da descrio. Porm, o processo acaba se configurando num trabalho de
objetivao em que o poeta atua mais como uma testemunha do que como participante do
projeto. De qualquer modo, o que ir nos interessar na passagem a tematizao do
cinema como objeto potico. Interesse mais do que explcito tambm nos primeiros
poemas de Joo Cabral, como podemos averiguar a seguir:
O tema surge em As estradas em long-shot todas/se reuniram numa s estrada/
que corria entre representaes ideais, de Poema, de 1938. Em [...] os catlogos e os
guias haviam sido executados por terem atacado a carruagem do rei. Tampouco entre as
multides de extras do cinemafoi reconhecido. Ou (ele ainda no se retirara a despeito
da catstrofe iminente que julguei ser para algum efeito surpreendente de montagem),
ambos de Acontece que ele ignorava..., de 1940. E mais especificamente em Episdios
para cinema, de 1938, ao qual nos deteremos no captulo seguinte desta dissertao.
De todo modo, como tema que se desdobra em diversas imagens, o cinema um
elemento bastante presente nessas primeiras experincias do poeta, e assim como sua
relao com amigo e tutor Willy Lewin, essa matria que se es tabelece entre o convvio,
o dilogo e o acesso a um repertrio cultural comum, fazem parte do Joo Cabral que
segue para o Rio de Janeiro em 1942 e chega em 1947 Espanha.
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II
Em outro vis, o burilamento lexical entre a produo dos anos 1930 e a
consolidao que o poeta realizar em Fbula de Anfion merecem maior detalhamento.
Nesse processo vai se tornando mais ntida a predominncia e o amadurecimento de um
projeto de composio potica. Deteremo-nos agora na ampliao do campo de
significados de alguns termos na obra do poeta.
Iniciemos pelas modificaes do vocbulo co ao longo do perodo estudado.
Do ar calmo de sesta, na homenagem a Pirandello em 1937, passamos pelo
deslocamento posio que este ocupar na obra subseqente de Cabral, cujo exemplo
maior ser O co sem plumas. Mais do que uma objetivao da fome, transformada em
exemplo, o co com sua capacidade de ao instintiva (e ainda em Pirandello, fruto do
acaso) ir ser transposto para a posio de sujeito da ao cachorra de esfinge/que lhe
mordia/a mo escassa;/que lhe roia/o osso antigo em Fbula de Anfion. Uma ao
preciso que se digaincua, a expor o esvaziamento (ridas do exerccio puro do nada).
Por outro lado essa cachorra de esfinge de quem se espera u ma imobilidade de esttua
age como corpo vivo, limitado pela escassez prxima a mo escassa, o osso antigo
que tenta roer. O salto em O co sem plumasse d num processo de preenchimento do
vocbulo atravs de oposies, ou de uma caracterizao s avessas, operada a partir de
aproximaes semnticas intermediadas pelo smile. interessante notar como logo na
primeira apario do vocbulo no poema haja uma referncia explcita a Pirandello I.
Se, em 1937, descrevia Cabral o cachorro que atravessa a rua/ e que deveria ser
faminto/ tem um ar calmo de sesta., no livro-poema de 1950 ele retomar ao tema em seu
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verso de abertura A cidade passada pelo rio/ como uma rua/ passada por um
cachorro/. Os paralelismos aumentam ainda mais pela adjetivao do co em Pirandello
famlico , num campo de significados muito prximo argumentao derradeira de
O co sem plumas, em que em mltiplos desdobramentos co e fome figuram numa
mesma cadeia de sentidos, combinados em valores semnticos, a vocbulos como espesso,
sangue, ma47, que se concretizam na operao mais potente do poema, a de renomear o
rio (Capibaribe) pelo somatrio de suas ausncias note-se que nessa articulao que
ocorre em Discurso, parte derradeira do poema, o termo co passa a ser substitudo
por seu sinnimo cachorro, em novo espelhamento a Pirandello I. A sofisticao do
processo cabralino to intensa que as ligaes perceptveis imediatamente, como tendem
a ser as semelhanas lexicais, apenas reforam o salto que o poeta empreende a partir da
maturao de sua potica. assim que o que h de imediato nas conexes entre
Pirandello I e II e O co sem plumas no resiste aos modos de rearticulao dos
vocbulos que o poeta empreender na construo do poema de 1950.
Retornando s articulaes do lxico, das figuraes na linguagem. Se para Lewin o
mar48,na quadra j reproduzida, passa a ser o resultado da construo imagtica do sono,
de seu material absurdo e sem formas, em Fbula de Anfion, Joo Cabral o
preencher de contedos semnticos que o aproximam de uma idia de projeto
antecipadamente, como faz,/no tempo, o mar? (grifo meu) , de controle sobre o que
parece incontrolvel, ou que ainda no se sabe como controlar, reforado por um franco
desejo de aprendizado Como traar suas ondas como faz, no tempo, o mar? (grifo
47Como um cachorro/ mais espesso do que uma ma./Como mais espesso/um homem/do que o sanguede um cachorro.48O sono, um mar de onde nasce/Um mundo informe e absurdo In MELO NETO, Joo Cabral de. Prosa.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.11.
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meu). O vocbulo ir reaparecer em O co sem plumas, mas j em nova chave. Atravs de
metforas que lhe lanaro em outras relaes de significados, de interseces
movimentadas pelo smile (como camisa ou lenol; podia ser uma bandeira), que
possibilitaro ao termo extrapolar seus usos comuns, relacionando-se com significados a
priori impensveis, como as caracterizaes de um co, ou de uma bandeira, vocbulo
que, j metaforizado atravs de processo similar (uma bandeira que tivesse dentes)
ganha caractersticas do campo semntico a que comparado os significados que se
associam palavra co, tornando possvel a contaminao dessas novas caractersticas
aos vocbulos que so tramados pelas relaes de comparao. assim que se o mar
podia ser uma bandeira, este tambm est sempre com seus dentes e seu sabo roendo as
praias.
Essa operao, elaborada entre Fbula de Anfion e O co sem plumas ir encerrar
em definitivo os dilogos entre Joo Cabral e Willy Lewin. A partir deste momento as
poticas dos dois poetas pernambucanos iro bifurcar. Ambos se aproximam com a
linguagem dos limites onde o real, intransponvel, se oferece como realidade. Lewin faz
desse momento paralisia, expressa em tentativa fracassada, e se dedicar a um Surrealismo
plido, em que a imaginao e o inconsciente no so preo para as limitaes operadas na
articulao. J Cabral o transforma em negatividade, em no fazer, em no dizer,
utilizando-se de sua potncia imagtica para estabelecer uma linguagem que mais do que a
simplificao da reproduo mimtica, somada s imagens de efeito com que Lewin ir
adornar sua obra, se formula internamente num potente processo de construo potica.
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Captulo 2 - O poeta vai ao cinema - Aproximaes
O movimento de Cultura Popular do Recife, dirigido por Germano Coelho e autarquia daPrefeitura de Recife, firmou convnio com um grupo de cineastas do Rio para Leon Hirshman,
diretor de Pedreira de So Diego (uma das histrias de Cinco vezes favela) dirigir um filme doRecife. A histria escolhida foiMorte e Vida Severinae O rioincluso. Leon e eu faremos o roteiro
e o filme ser todo rodado em Pernambuco, com capital pernambucano etc. O roteiro j estiniciado e est empolgando a turma. Falta: a sua autorizao para o uso da histria e quais as basesque voc determina: quanto quer de dinheiro pela histria? Se quer colaborar tambm na feitura do
roteiro ou dos dilogos? se quer corrigir o roteiro e o dilogo? e todas essas coisas comerciais."(Carta de Flix Athayde, de 02/08/1962)49
"Suspenda imediatamente qualquer providncia tomada qualquer propaganda ou notciasobre filme abraos Joo" (Telegrama de JCMN, em 17/09/1962)50
Neste captulo a srie de mediaes com as quais Joo Cabral de Melo Neto, desde os
momentos iniciais de sua produo, empreende seu projeto potico, cotejada ao campo
flmico. Os elementos associados ao Surrealismo em seus primeiros poemas so
analisados a partir dos procedimentos de composio surrealistas, ancorados pelas
anlises que Michel Riffatere estabelece no contato com essas estruturas.
Introduo
Abrimos o captulo com a correspondncia entre Joo Cabral de Melo Neto e o
jornalista e escritor Flix de Athayde, no incio dos anos 1960. A averso do poeta
proposta de uma verso cinematogrfica de seus livros to notvel que ganha ares
anedticos. Mas, se com um tom assertivo o poeta trata dos possveis desdobramentos de
sua produo51, o cinema como tema ir aparecer em sua poesia muito precocemente,
desde os primrdios de sua escrita.
49Acervo Joo Cabral de Melo Neto. Arquivo Museu de Literatura BrasileiraFundao Casa de RuiBarbosa.50Idem51Um dia seu exlio voluntrio interrompido por uma carta em que os diretores do TUCA informamseudesejo de montarMorte e vida Severina. A carta acrescenta que o compositor escolhido o jovem Chico
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O cinema tem sido um elemento pouco ressaltado nos estudos comparados que tem
por objeto a produo potica do sculo XX. Os dilogos, influncias e interferncias
desta arte sobre os demais campos de produo artstica so considerveis, e, de certo
modo, os estudos poticos parecem os mais relutantes a tal aproximao.
Especificamente nesta dissertao, alm do contato de Cabral com a linguagem
flmica como espectador contemporneo de uma notvel produo, interessa-nos entender
como se d sua relao com a vertente surrealista desta prtica artstica.
De modo peculiar, o restrito repertrio de textos interdisciplinares a cotejar poesia
e cinema compensado pela presena marcante de objetos flmicos na crtica artstica, em
maior medida, a partir dos anos 1950 (algo que se combina mudana do eixo artstico
para os EUA no ps-guerra). A presena intensa deste campo artstico, no sculo recm-
encerrado, alimenta ainda mais o choque entre modelos de anlise que tendem a preservar
parmetros da arte moderna, e outros que se interessam por elementos novos que adensam
o repertrio de referenciais artsticos no sculo XX, alinhavando-se em movimentos de
oposio e prosseguimento aos ideais modernistas.52
Buarque de Holanda. O poeta desconhece completamente o trabalho de Chico. [...] A msica na verdade jest pronta. O poeta no pode impedir a montagem. In CASTELLO, Jos.Joo Cabral de Melo Neto: Ohomem sem alma & Dirio de tudo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 131.52O ps-moderno, novo clich dos anos 80, invadiu as Belas-Artesse ainda se pode falar assim, aliteratura, as artes plsticas, talvez a msica, mas antes de tudo a arquitetura e tambm a filosofia etc.,cansadas das vanguardas e de suas aporias, decepcionadas com a tradio da ruptura cada vez mais integrada
ao fetichismo da mercadoria na sociedade de consumo. Desde os anos 60, a arte, como acabamos de ver,distingue-se cada vez menos da publicidade e do marketing. O ps-moderno compreende,incontestavelmente, uma reao contra o moderno, que se tornou o bode expiatrio. COMPAGNON,Antoine.In Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Editora UFMG: 2003, p. 103.Ocorre-nos, a partir das constataes de Compagnon, que a crtica obra de Joo Cabral tem diante de seusolhos a transformao de uma obra que nasce praticamente artesanal, bancada pelo autor, em pequenastiragens, com diversas de suas edies produzidas manualmente pelo poeta em sua prensa na Catalunha, eque a partir dos anos 1960 passa a circular de outro modo, com edies maiores feitas pelas grandes casaseditoriais, at que em data recente tenha se tornado motivo de disputas comerciais entre editoras, passandoatualmente por um processo de relanamento.
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Assim a historiografia da (recente) arte cinematogrfica, se plenamente aceita
como fonte de dilogo na obra de diversos produtores a partir de determinadas leituras,
desconsiderada por abordagens mais tradicionalistas. Desse modo, obras surgidas entre a
ecloso das vanguardas no comeo do sculo e o ps-guerra, como a de Joo Cabral de
Melo Neto, situam-se numa zona cinzenta do possvel dilogo entre obras de campos
distintos.
1. O cinema como tema
Interessa-nos aqui entender as relaes que Joo Cabral estabelece com a prtica
flmica. O jovem Cabral que consolida esse interesse inicial, em lxico e tema, reafirmar
textualmente ao longo de sua trajetria tal aproximao. Mais. Esse interesse internaliza-se
no poeta, no mais como casca ou apreenso imediata da referncia textual, mas sim numa
aproximao mais aguda, como fonte de processos de composio artstica.
Em texto para revistaRenovao, de novembro de 1940, a respeito do primeiro
Congresso de Poesia do Recife, o poeta j demonstra essa preocupao subscrevendo o
texto junto a Vicente do Rgo Monteiro, Willy Lewin e Jos Guimares de Arajo:
[...] um Congresso destinado a debater problemas de ordem exclusivamente
potica, tomada a expresso no no seu sentido estrito (de arte potica), mas no de
qualquer categoria de arte que receba o toque de valores legitimamente lricos: a pintura, o
cinema, a fotografia, a arquitetura [...]53(grifo meu).
53Joo Cabral de Melo Neto, Vicente do Rgo Monteiro, Willy Lewin e Jos Guimares de ArajoCongresso de Poesia do Recife In RevistaRenovao2, novembro de 1940, pp. 6-7. APUD: MAMEDE,Zila. Civil Geometria. So Paulo, Nobel: 1987, p. 127.
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Dois anos antes, Cabral j havia realizado uma pea em que o cinema surge
tematizado desde o ttulo: Episdios para cinema54.
Poema em prosa, dividido em quatro partes, numeradas, mas no nomeadas. Mais
nos parecem episdios sonhados ou imaginados. Sob uma atmosfera nonsense, o poeta
mistura referncias cinematogrficas (como o heri Tom Mix) a personagens histricos
(Napoleo), que de modo caricatural grita anunciando seu retorno a Culver City, centro de
produo de filmes na Califrnia, sede dos estdios MGM. Implode-se a noo espacial
misturando-se referenciais de culturas distintas num mesmo ambiente, numa mesma cena.
Ao heri americano e ao general francs, so interpostas citaes da histria nacional,
como a batalha do Riachuelo.
A segunda parte iniciada com uma justificativa que tem por preceito a noo de
continuidade da narrativa cinematogrfica:
Na terceira esquina,sem transioaparecem os anjos. (grifo meu)
A ligadura com que so realizados estes episdios no obedece a procedimentos
narrativos como a preparao e o encadeamento, so cenas seqenciadas
independentemente de suas relaes de proximidade semntica ou de noes de
continuidade. importante que se note, no se trata aqui de colagem ou sobreposio, e
sim de um seqenciamento que obedece a outra operao, espcie de montagem flmica
juno artstica, j prevista no roteiro de seqncias de imagens e cenas individuais em
situao espao-temporais diferentes, que no esto vinculadas por relaes objetivas de
ao ou pensamento.55(grifo meu).
54Em razo de sua extenso, o poema ser anexado no final deste captulo.55CARONE, Modesto.Montagem e metfora. So Paulo: Perspectiva, 1974, p. 101-102.
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Nas partes III e IV, em que o tema prossegue como prolongamento, a idia de
sonho, de um espao no realista, afirma-se no verso no meu quarto, s sextas-feiras, era
comum reunirem-se algumas pessoas, quase sempre amigos que me tinham chegado em
sucessivas viagens.. A partir da Cabral d vazo aos personagens que permeiam esse
estado em que se fragiliza a apreenso amparada na realidade. Assim, vo se sucedendo
personagens que no se podiam nunca libertar de certos instrumentos prprios de suas
profisses. So encadeados a seguir, o eletricista com seus pombos-correio, um
automobilista com sua mquina ltimo tipo, invlidos de guerra, acrobatas de circo e os
fantasmas de um poeta silencioso que ganhava os maiores aplausos. Enquanto isso o
rdio anunciava a volta de um famoso aviador (seria Charles Lindbergh, que atravessara o
Atlntico anos antes?), que acaba se juntando aos demais. Soma-se a esses personagens a
presena marcante da mquina, da tecnologia, dos expoentes do mundo que as vanguardas
europias nas dcadas anteriores revelaram em suas obras: uma mquina ltimo modelo,
automveis, avies, rdios etc. Mas no ambiente onrico que embala o poema, mais se
percebe um tom de deslumbramento juvenil por esses equipamentos do que de qualquer
processo mais crtico, como o realizado pelos surrealistas.
O poema, escrito por Joo Cabral, aos 18 anos, ainda no consegue unir o tema aos
procedimentos poticos, e no nos causa estranhamento que a experincia inicial tome
forma a partir de uma sintaxe muito prxima a um exerccio de prosa, sem mtrica
aparente, obedecendo a uma coerncia interna de sentido, que trazia como nica conexo,
referentes externos, atravs de nomes, lugares e citaes que retrabalhados em novo
contexto, ganham a encenao de uma atmosfera nonsense.
Cabral ir precisar de alguns anos para extrapolar seu interesse mais bruto nos
processos flmicos e na transformao de uma mentao surrealista inicial em
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procedimento, livrando-se enfim das facilidades do estranhamento imediato e dedicando-
se a um trabalho de construo potica. J emPedra do sono, a relao prossegue, e de
onde retiramos Dois estudos:
Dois estudos
1
Tu s a antecipao
do ltimo filme que assistirei.
Fazes calar os astros,
os rdios, e as multides na praa pblica.Eu te assisto imvel e indiferente.
A cada momento tu te voltas
e lanas no meu encalo
mquinas monstruosas que envenenam reservatrios
sobre os quais ganhaste um domnio de morte.
Trazes encerradas entre os dedos reservas formidveis de dinamite
e de fatos diversos.
2
Tu no representa as 24 horas de um dia,
Os fatos diversos,
O livro e o jornal
Que leio neste momento.
Tu os completas e os transcendes.
Tu s absolutamente revolucionria e criminosa,
Porque sob teu manto
E sob os pssaros de teu chapu
Desconheo a minha rua,
O meu amigo e o meu cavalo de sela.
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O primeiro verso anuncia o eixo temtico. Tu s a antecipao/do ltimo filme
que assistirei.Retornemos nota biogrfica.
[...] o cinema, por exemplo, uma coisa que sempre me fascinou. Mas o cinema
ambguo. O cinema, ao mesmo tempo em que ele espacial, porque voc est olhando a
composio naquele momento, aquela imagem vai se transformando, de forma que uma
srie de pinturas, de quadros, que seguem uma estrutura meldica. [...] os cineastas que
mais me interessam so aqueles que exploram a beleza plstica, no aqueles que se
interessam maispela coisa musical, que a continuidade.Porque, voc repare, o cinema
so duas coisas: a coisa do tempo e, a cada momento, um corte no espao..56 (grifos
meus).
O modo com que Cabral utilizava-se da sintaxe para encadear Episdios para
cinema no lhe serve mais. As mquinas que deslumbravam o poeta em Dois estudos
so caracterizadas como monstruosas, a envenenar reservatrios. A mquina, na
verdade, ser internalizada, e o poema, mquina potente, ter a funo de emocionar,
como anunciar a epgrafe de O engenheiroque remete a Le Corbusier. A relao com o
cortea cada momento, um corte no espao, diz o poeta , que associamos no
vocabulrio potico cesura, possibilitar um maior grau de experimentao em
elementos de construo, como o verso e a quadra. Se em Dois estudos o mecanismo
ainda incipiente, em Infncia e Marinha, poemas dePedra do sono, o processo j
outro.
56Resposta a Sebastio Uchoa Leite, 34 Letras, Rio de Janeiro, no. 3, mar. 1989. Apud: ATHAYDE, Felix.Idias fixas de Joo Cabral de Melo Neto.Rio: Nova Fronteira, 1998, p. 20.
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2. Modos de composio
Abrimos com os dois poemas dePedra do sono, que nos serviro de exemplo.
Infncia
Sobre o lado mpar da memria
o anjo da guarda esqueceu
perguntas que no se respondem.
Seriam hlices
avies locomotivas
timidamente precocidadebales-cativos si-bemol?
Mas meus dez anos indiferentes
rodaram mais uma vez
nos mesmos interminveis carrossis.
Marinha
Os homens e as mulheres
adormecidos na praia
que nuvens procuram
agarrar?
No sono das mulheres
cavalos passam correndo
em ruas que soam
como tambores.
Os homens tm espelhos de bolso
onde os gestos das amadas
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(as amadas demoradas)
se repetem.
Vi apenas que no cu do sonho
a lua morta j no mexia mais.
Mesmo compostos em perodos prximos, e estarem organizados no corpo de
Pedra do sono, h entre Dois estudos e Marinha (ou Infncia) um salto de processos
na potica de Joo Cabral. Dois estudos o nico poema de sua estria literria
organizado em partes (1 e 2), estrutura que s voltaria a ser repetida pelo poeta em O
engenheirocom A lio de poesia este poema, com suas trs divises, j se utiliza de
uma organizao sinttica e de versos moldados numa inflexo que seria recorrente em sua
produo, especialmente a quadra. J Dois estudos nos parece o acaso de um domnio
do tema sobre a composio, que marcou seus primeiros poemas. Como vimos em
exemplos como Episdios para cinema e Pirandello I e II, em que o assunto tratado
sobrepunha-se ao modo de faz-lo, Cabral passar a equilibrar essas tenses a partir de
uma organizao rgida que permear sua produo subseqente.
Em Marinha e Infncia o que verificamos a articulao de um verso seco, da
dominante da quadra e do terceto e de combinaes entre estes, longe das amarras do
soneto, utilizando-se de uma organizao em que as estrofes funcionam como limites da
frase potica. A frma de seus versos passa assim a funcionar a partir de frases completas
de sentido, que se subdividem em versos, dando coeso a cada uma das estruturas
(quartetos, tercetos). A pontuao obedecer claramente essa organizao, principiando as
estrofes em maisculas e respeitando a pontuao aps a ltima palavra do verso
derradeiro de cada estrofe, como exemplo a quadra No sono das mulheres/cavalos
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passam correndo/em ruas que soam/como tambores.. Essa conscincia da coeso das
micro-estruturas, como apontamos brevemente em nossa tentativa de equiparar a
linguagem potica das estruturas flmicas, ser de considervel importncia em nossa
argumentao futura.
Se tal organizao sinttica sinaliza claramente o amadurecimento do poeta em
relao a seus poemas iniciais, esta torna ainda mais clara a presena de um ambiente
onrico, que se em Marinha explicitado em lxico adormecidos na praia; sonho das
mulheres; no cu do sonho em Infncia combina-se com a memria, em pleno
contraste recuperao que Joo Cabral far de contedos memorialsticos em O co sem
plumas. Em outra chave h uma tendncia do poeta de no mediar relaes que simulem
as noes de arbitrariedade dos surrealistas, ou caractersticas como as que j descrevia
Pierre Reverdy57 em 1918, resultando ora em ligaduras imediatas que no alcanam o
deslocamento proposto pelo modelo automtico de escrita, como no trecho em que
homens e mulheres do formatos s nuvens Os homens e as mulheres/adormecidos na
praia/que nuvens procuram/agarrar?, ora em derivaes ainda muito presas a um desejo
de compreenso por parte do leitor, como a relao entre cu e lua no verso final no cu
do sonho/a luamorta no mexia mais.
Como aponta Michel Riffaterre em relao poesia surrealista: o arbitrrio dessas
imagens s existe em relao aos nossos hbitos lgicos, nossa atitude utilitria diante da
realidade e da linguagem. [...] Impe-se uma lgica das palavras que nada tem a ver com a
comunicao lingstica normal: ela cria um cdigo especial, um dialeto no seio da
57Quanto mais as relaes das duas realidades aproximadas forem longnquase justas, mais a imagem serforte, mais fora emotiva e realidade potica ela ter. REVERDY, Pierre. Nort -Sud APUD Breton,Andr.Primeiro manifesto surrealista. Nau Editora: Rio de Janeiro, 2001, p. 35.
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linguagem que suscita, no leitor, o deslocamento da sensao, considerado pelos
surrealistas o essencial da experincia potica58.
EmPedra do sono, talvez pela prpria desconfiana nesses princpios, ou por sua
prpria imaturidade artstica, Joo Cabral no realizar esse intento por completo. Por
outro lado, seus primeiros poemas funcionam como uma prvia do projeto de construo
potica que ir empreender, possibilitando-lhe estabelecer os limites que regem as noes
de arbitrariedade entre os signos lingsticos e os objetos. Como observa Jakobson 59essa
arbitrariedade atende a determinadas gradaes. As sonoridades, as relaes entre fonemas
distintos, so capazes de criar motivaes. Assim, como h no lxico, palavras em que
sons e sentidos se equivalem. Nessas modulaes, variaes da arbitrariedade passam a
ser matria do poeta a partir do momento em que se volta ao burilamento da linguagem. J
h a conscincia, provavelmente desenvolvida a partir de seus primeiros poemas, dos
limites da transposio do real em linguagem, mas falta ainda ao poeta testar os limites
internos da expresso potica, dos sistemas interiores a esta. Nestes poemas de sua estria
literria, o que Joo Cabral de Melo Neto aprender so as gradaes no trato dos signos
lingsticos, a partir do momento em que estes se deslocam de sua funo utilitria. Um
processo em que se modifica o modo de relacionar internamente as imagens e as noes de
aceitabilidade dessas proposies.
Riffaterre ir cunhar um termo para definir de que forma essas imagens se
conectammetfora tecida. Uma srie de imagens ligadas umas s outras atravs da
sintaxeelas fazem parte da mesma frase ou de uma mesma estrutura narrativa ou
58RIFFATERRE, Michel. A metfora tecida na poesia surrealista InA produo do texto. So Paulo:Martins Fontes, 1989,p. 195.59Idem. Ibidem, p. 62.
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descritivae atravs do sentido: cada uma exprime um aspecto particular de um todo,
coisa ou conceito, que a primeira metfora da srie representa 60.
Grifamos algumas passagens em Marinha:
Os homens e as mulheres
adormecidos na praia
que nuvens procuram
agarrar?
No sono das mulheres
cavalos passam correndoem ruas que soam
como tambores.
Os homens tm espelhos de bolso
onde os gestos das amadas
(as amadas demoradas)
se repetem.
Vi apenas que no cu do sonho
a lua morta j no mexia mais.
Desde a primeira estrofe o poeta localiza o leitor espacialmente (na praia), assim
como caracteriza os objetos do poema: homens e mulheres adormecidos. A partir da
dar incio s aproximaes internas de sentido, principiando pelas que compartilham um
mesmo campo semnticoadormecidos/sonopara ento tramar relaes metafricas
facilmente reconhecveis, como agarrar nuvens. Dessas primeiras operaes o que se
60 Idem. Ibidem, p.195-196.
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segue a extrapolao de sua proposio original. Assim que no sono das mulheres
adormecidas h cavalos correndo em ruas que soam como tambores.
Seguindo a terminologia de Riffaterre, a metfora tecida substitui a funo
referencial da linguagem atravs de uma referncia prpriaformada mensagem
lingstica atravs daquilo que Jakobson chama a funo potica que deve, segundo
Breton, fazer o esprito apreender a interdependncia de dois objetos de pensamento
situados em planos diferentes, entre os quais o funcionamento lgico do esprito no est
apto a lanar qualquer ponte e se ope a priori a que qualquer espcie de ponte seja
lanada61.
O que pode ser notado nessas primeiras experincias de Cabral que a
extrapolao ainda tmida. O poeta ao localizar o espao dessas imagens mais
contrastantes no sono, e seus personagens-objetos como seres inanimados
(adormecidos) fixa uma aproximao semntica que ainda mantm o leitor em ambiente
conhecidono soa to absurdo que mulheres sonhem com cavalos em ruas trepidantes,
nem que no cu do sonhoa lua oferea-se imvel. No soa absurdo, pois, quando
localizamos textualmente essas aes no ambiente onrico, imediatamente flexibilizamos
nossas relaes de verossimilhana.
Em Infncia o poeta se desprende um pouco mais de suas ncoras de sentido. O
verso inicial localiza as im