Download - Dissertacao Maria Luiza Quaresma Tonelli
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
Maria Luiza Quaresma Tonelli
TICA E POLTICA: QUAL LIBERDADE?
So Paulo
2008
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Maria Luiza Quaresma Tonelli
Dissertao apresentada ao programa
de Ps-Graduao em Filosofia do
Departamento de Filosofia da Faculdade
de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
da Universidade de So Paulo, para
obteno do ttulo de Mestre em
Filosofia sob a orientao do Professor
Doutor Renato Janine Ribeiro
So Paulo 2008
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Jamais houve uma poca que no se
sentisse moderna, no sentido excntrico
do termo, e no acreditasse estar diante
de um abismo iminente. A lcida
conscincia desesperada de estar no meio
de uma crise decisiva algo crnico da
humanidade.
Walter Benjamin
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Para Bruna e Miguel, Esperanas de Futuro
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Agradecimentos
Agradeo de modo especial ao meu orientador, Prof. Renato Janine Ribeiro pela
oportunidade que me foi dada, pela confiana, pacincia, sobretudo por suas
valiosas crticas que contriburam para a elaborao deste trabalho.
Aos colegas e amigos, Andres, Gabriela, Alfredo, Patrcia e Roberto pelos nossos
ricos encontros, especialmente ao Ari, por sua generosidade, ateno e amizade
Ao Prof. Edson Teles e Profa. Olgria pelas importantes crticas e sugestes na
minha qualificao.
s funcionrias do Departamento de Filosofia pela ateno, dedicao e delicadeza,
especialmente Maria Helena, Geni e Marie.
s minhas amigas queridas, Marta, Cinara e Terezinha Bezerra pelo grande
incentivo e carinho.
minha amiga Vilma, pelo carinho e cultivo de nossa longa amizade.
A meus pais, pelo exemplo de vida, amor e dedicao.
A meus filhos, Renato e Graziela por terem vindo ao mundo para me tornar melhor.
A Rui, pelo amor, pacincia e compreenso ao longo de nossa jornada.
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RESUMO
Tonelli. Maria Luiza Quaresma, TICA E POLTICA: QUAL LIBERDADE? 2008. 151 f. Dissertao (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008. Este trabalho consiste na abordagem de aspectos que caracterizam a
antiguidade grega clssica e a modernidade iluminista como experincias
distintas do modo de existncia humana que compem o legado da civilizao
ocidental, no que se refere tica e a poltica. tica e poltica eram
indissociveis na antiguidade clssica, onde a liberdade era uma questo moral
coletiva e poltica. Ser livre na democracia grega era pr-requisito para a
cidadania. Com a democracia moderna a liberdade, como valor poltico, uma
questo de direito do indivduo na condio de cidado. Na modernidade a
liberdade uma questo individual. Se o sentido da tica e da poltica a
liberdade, o objetivo deste trabalho investigar se, e at que ponto, a liberdade
moderna pode estar no centro da problemtica relao entre tica e poltica em
nossa atualidade.
Palavras-chave: poltica, tica, liberdade, democracia, razo, modernidade
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ABSTRACT
Tonelli, Maria Luiza Quaresma, ETHICS AND POLITICS: WHAT LIBERTY? 2008. 151 f. Thesis (Master Degree) - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008.
The aim of this work is to analyze the features that characterize the classical
ancient Greece and the modern Enlightenment as distinctive experiences of
western history in relation to ethics and politics. In classical ancient Greece
ethics and politics were inseparable and liberty was a communal and political
moral question. Liberty in the ancient Greek democracy was a requirement to
citizenship. With the advent of modern democracy, freedom, as a political value,
becomes a question of rights, which belong to all the individuals as citizens. In
the Enlightenment liberty became an individual question. If the sense of politics
and ethics is liberty, the aim of this work, then, is to investigate whether or not,
and up to which point, modern freedom might be in the epicenter of the
problematic relationship between ethics and politics at the present time.
Key words: politics, ethics, liberty, freedom, democracy, reason, Enlightenment
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SUMRIO
Introduo 9
Primeira parte
A idia de crise e a inveno da Filosofia, da tica, da
Poltica e da Democracia 16 Captulo I 1. Do mito ao logos 162. Palavra e verdade na Antigidade grega 203. Os sofistas: os mestres da opinio 274 A tragdia e a filosofia moral 335. A tica e a poltica: a filosofia na polis grega 43 Segunda parte
Modernidade: A Reinveno da tica e da Poltica 53 Captulo II
1. Da virtude ao dever: o nascimento da Vontade 532. Poltica democrtica entre antigos e modernos: 773. Modernidade: O tempo da razo 101
Consideraes finais 127
Bibliografia 143
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Introduo
Aristteles inicia sua Metafsica afirmando que todos os homens tm,
por natureza, o desejo de conhecer. Hobbes dir, no Leviat: o desejo de
saber o porqu e o como chama-se curiosidade e no existe em qualquer
criatura viva a no ser no homem.
O desejo de entender o que se passa de to problemtico na relao
entre tica e poltica em nossa atualidade a razo desta pesquisa. Parto da
hiptese de que a liberdade est no cerne da questo.
verdadeira a afirmao de que nunca fomos to livres como hoje.
Todavia, inegvel que cada vez menos os indivduos se interessam pela
poltica sob a alegao de que as coisas so como so e nada se pode fazer
para mudar o mundo da poltica. Assim, no basta dizer, conforme Hannah
Arendt, que o sentido da poltica a liberdade. Resta saber de qual liberdade
estamos falando, e em que medida a liberdade por si s o fundamento da
poltica, bem como se apenas uma concepo especfica de liberdade poderia
justificar a afirmao de que tica e poltica so indissociveis.
Por poltica podemos entender, conforme Hannah Arendt, a convivncia
entre indivduos diferentes que se organizam para certas coisas em comum.
Pela poltica os indivduos se organizam politicamente para manter, reformar ou
transformar o poder vigente. O termo politicamente significa aqui um modo
especfico do agir humano que se caracteriza pela liberdade, tendo em vista a
pluralidade dos homens. O sentido da poltica , realmente, a liberdade; no h
como pensar a poltica como esfera de ao e de transformao sem que os
homens individualmente e em conjunto sejam livres.
Este trabalho divide-se em dois captulos: A idia de crise e a inveno
da Filosofia, da tica, da Poltica e da Democracia e Modernidade: A
Reinveno da tica e da Poltica.
A primeira parte refere-se abordagem de temas que fizeram da
Antiguidade grega uma poca inigualvel da civilizao ocidental pelo qual
costumamos chamar de milagre grego.
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A poltica inveno dos gregos. Isso no significa dizer que outros
povos j no vivessem um modo de vida poltico. Conforme Cornelius
Castoriadis, os gregos no inventaram o poltico em sua dimenso de poder
explcito, pois este sempre esteve presente em toda sociedade, mas certo
que os gregos no sculo V a.C. puderam criar a poltica porque, tal como foi
criada, ela foi o questionamento explcito da instituio estabelecida da
sociedade. Os gregos puderam criar a poltica e alm dela, a democracia e a
filosofia, segundo Castoriadis, porque no tinham um Livro sagrado nem
profetas; tinham poetas, filsofos, legisladores e politai. Deste modo a poltica
tal como foi criada pelos gregos nada tinha de natural nem de sagrado, mas
dependente do nomos da polis. Apesar da existncia na polis de uma religio
oficial, a poltica era laica no sentido de que havia clareza na distino entre as
leis divinas e as leis da polis.
A poltica grega era a atividade coletiva refletida e deliberada e tinha
como objetivo a instituio da sociedade como tal. Por saberem que os homens
s podem viver em uma polis regida pelo nomos apropriado e que no h
nomos natural, os gregos descobriram o arbitrrio do nomos, bem como a sua
dimenso constitutiva para o ser humano individual e coletivo, segundo
Castoriadis. Tal descoberta abre desde ento uma discusso interminvel,
segundo o filsofo, sobre o justo e o injusto e sobre o bom regime.
Para Castoriadis, a criao da poltica e da filosofia pelos gregos se
constitui no primeiro projeto de autonomia coletiva e individual. Ser livre fazer
o prprio nomos, assim como ser livre tambm significa que ningum deve nos
dizer o que devemos pensar. Porm, a liberdade de fazer o prprio nomos leva
a outras questes: que lei devemos fazer? O que devemos pensar? A liberdade
de fazer o prprio nomos, para o grego da polis no exclui o dever ser. Deste
modo, falar em relao entre tica e poltica como dimenses distintas e
separadas do agir humano no contexto da polis grega do sculo V a.C. no
faria sentido, uma vez que a tica surge como modo se ser virtuoso em funo
de uma vida na comunidade poltica. No se trata de uma tica como ancilla
politicae. Trata-se de uma tica sem a qual no seria possvel a realizao da
vida poltica; uma tica sem a qual seria invivel a poltica concebida como vida
boa e justa. Ser cidado significava, em primeiro lugar, ter aret e isso
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pressupunha o que os gregos chamaram de paidia (formao). Segundo
Castoriadis a radicalidade e a conscincia da fabricao do indivduo pela
sociedade foi o que levou Plato a elaborar a utopia de uma cidade ideal que
em nada se parecia com a democracia. Para Hannah Arendt o que levou
Plato a essa radicalizao teria sido seu desencantamento com a poltica
aps a condenao e morte de Scrates justamente na democracia, que o
regime da palavra, da persuaso; democracia, que surge como ruptura na
civilizao grega, caracterizando-se como o verdadeiro regime do
convencimento. A palavra, a partir de ento, ir substituir o poder e a violncia
fsica e simblica. Nesse novo contexto, o instrumento exclusivo da ao
poltica ser o discurso. Em um regime onde a palavra de um equivale
palavra de outro como um jogo civilizado, em que a simetria da palavra o
prprio pilar da nova sociedade democrtica, a identificao da democracia
com o prprio exerccio da palavra implica que ameaar a palavra o mesmo
que ameaar a democracia como sistema poltico.
O lao indissolvel entre a tica e a poltica na antiguidade uma das
caractersticas da democracia grega, mas o que torna a democracia dos
antigos um regime de cidados livres e iguais em nada se aproxima da idia
moderna de moralidade na poltica a fim de preservar o respeito igualdade e
liberdade entre os cidados. Primeiramente, tinham que ser livres para serem
iguais na vida poltica, ou seja, no era a poltica que transformava o homem
em cidado; ao contrrio, ser livre era a condio a priori daquele que no s
podia como devia participar da vida poltica, estando excludos desta os
escravos, as mulheres e os estrangeiros. Uma vez que eram livres, ou
cidados, eram iguais no direito de falar. A igualdade entre os cidados, ou
isonomia, era resultado da isegoria, igual direito de todos de manifestar sua
opinio, de participar nas decises da comunidade atravs da palavra.
O ethos, ou modo de ser da poltica democrtica era o modo
essencialmente discursivo, donde a palavra de todos tinha o mesmo peso e
valor; tomar a palavra ou fazer uso da palavra era o modo de fazer poltica
por todos e qualquer um que fosse livre. Se o objetivo da poltica era o Bem
comum, o bem da cidade, porque o bem aquilo a que todas as coisas
visam, segundo Aristteles no Livro I da tica a Nicmacos, a comunidade
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poltica, por ser a comunidade que estava livre da necessidade, absolutamente
separada dos interesses privados, era a comunidade perfeita e acabada, ento
o bem da cidade era o Soberano Bem, ou Bem Comum. Assim, a tica dos
antigos era fundamentalmente a busca virtuosa de um bem, ou seja, de atingir
uma finalidade.
A tica dos gregos da antiguidade um olhar para fora. No havia,
possibilidade de uma tica que no fosse voltada para a vida em comum; o
homem grego no podia pensar em si mesmo separado de sua comunidade.
O senso de comunidade era algo que se exprimia no carter do homem grego,
refletindo no seu modo de existir como necessariamente um modo de estar-
junto. A tica dos antigos era uma tica das virtudes para viver em
comunidade; uma tica teleolgica, finalista, no uma tica do dever. Falar
sobre tica e poltica na polis no faria sentido para o homem grego, pois no
pensamento filosfico poltico da poca no h propriamente uma relao entre
tica e poltica, mas um lao indissolvel entre ambas, ou seja, no se tratava
de um pensamento moral voltado para a interioridade, para a conscincia
individual, tal como concebemos modernamente. Toda a tica um olhar para
fora; um modo de ser para ver e ser visto, uma tica pela qual o homem se
define pela relao que estabelece com os outros.
Sem esse ethos, esse modo de ser, de existir em comunidade, talvez
no fosse possvel que os gregos pudessem inventar a democracia, o regime
que se tornou a marca da poltica ocidental.
A segunda parte deste trabalho fundamentalmente uma abordagem
sobre aspectos que diferenciam a tica e a poltica entre antigos e modernos;
diferenas profundas, que permitem nossa viso de uma verdadeira
reinveno da tica e da poltica, no sentido de que a modernidade d incio a
um novo homem, um novo modo de relao entre os homens e uma nova
relao destes com o mundo.
A abordagem de alguns aspectos da moral das virtudes dos antigos, e
da moral do dever dos modernos nos permite perceber que a tica dos antigos
e a tica dos modernos determinada pela forma pela qual os homens vivem
social e politicamente. Na polis democrtica a tica era um modo de ser
virtuoso, uma tica voltada para a vida em comum em que os homens estavam
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sujeitos ao escrutnio da coletividade. Com os modernos surge uma tica do
indivduo, com base no dever e no nas virtudes; uma tica da autonomia onde
o indivduo d a si as prprias leis. A autonomia dos antigos era o poder que
os homens tinham de instituir as leis da cidade. Autnoma, portanto, era a polis
e no o sujeito. Com a modernidade o indivduo autnomo se for capaz de
dar a si as prprias leis. Deste modo, a autonomia dos gregos era poltica, e
social, pois era autonomia da polis, ao passo que com os modernos a
autonomia do sujeito. Se a liberdade dos antigos era a capacidade de poder
escolher e deliberar sem ser constrangido por um senhor ou por uma
circunstncia, a liberdade moral dos modernos a faculdade da vontade do
indivduo, que determina o dever, ou seja, a vontade da razo individual. Por
isso, segundo Hannah Arendt, a moral dos antigos era do mbito do Eu-Posso,
enquanto a dos modernos a do EU-Devo.
Em suma, a vontade no estava presente na moral dos antigos, que por
seu modo comunitrio de existncia louvavam os grandes feitos. Por isso,
podemos dizer que se tratava de uma sociedade em que a vergonha era o
sentimento de reprovao moral de cunho social. Com os modernos, a partir da
filosofia de Kant, a moral surge como um querer autnomo e o que torna essa
vontade boa no so seus xitos, mas a vontade de agir por dever; uma
vontade desinteressada de propsitos, a no ser que se considere o interesse
da razo exclusivamente pelo dever. Com isso, o sentimento de reprovao
moral a culpa, sentimento individual que enseja a idia de responsabilidade.
Quando dizemos que os modernos reinventam a poltica no sentido
de que a diferena entre democracia direta da polis antiga e a democracia
moderna no se resume representatividade poltica como nico fator de
diferenciao entre ambas. Isso significa que a representao a diferena na
forma da democracia como o regime onde a origem do poder est no povo que
elege os seus representantes. H, porm, outras diferenas entre as
democracias antiga e moderna, que no se referem sua forma, mas
diferenas de contedo. Tais diferenas so teses levantadas por Renato
Janine Ribeiro, no sentido de que na democracia antiga o poltico e o social
eram inseparveis, ou seja, ao no separarem o povo enquanto sujeito de
direitos polticos e de direitos sociais, os gregos deram incio a uma democracia
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poltica e social. Com a democracia moderna a novidade que se opera uma
separao entre o social e o poltico, ou seja, primeiro a democracia poltica,
depois social. Com a excluso do social na democracia, o social reintroduzido
como algo que lhe externo e adicional. Se na democracia antiga havia uma
indistino entre o social e o poltico, com a modernidade isso no acontece,
por isso entendemos o social e o poltico separadamente, segundo Janine
Ribeiro. Alm dessas diferenas, Janine aponta para o fato de que o carter
democrtico da poltica dos modernos, que depende mais dos direitos do que
da representao, sendo que estes so de teor cada vez mais social, ento tais
direitos tm origem no desejo. Se a matria prima dos direitos o desejo,
ento, a democracia o regime do desejo. Portanto, se o desejo da ordem
dos afetos, das paixes, podemos dizer que isso justifica que a democracia
seja legitimamente o regime dos conflitos e no do consenso.
Para Renato Janine Ribeiro, a poltica moderna do ocidente pagou um
alto preo por excluir a democracia do mundo dos afetos ao convert-la em
uma atividade humana exclusivamente racional.
Na ltima parte do segundo captulo tratado o tema da modernidade
como o tempo da razo. A modernidade inaugura um novo tempo de f na
razo como f na cincia moderna. Ao romper com o tempo linear cristo
medieval, a modernidade dessacraliza o tempo modificando a relao do
homem com o futuro, uma vez que o toma em suas mos para ser o senhor do
seu destino. quando surge a idia de necessidade histrica; o tempo da
modernidade o tempo histrico.
A modernidade fez surgir no sculo XVII o Iluminismo, com seu apogeu
no Sculo XVIII. O Iluminismo foi fundamentalmente um projeto civilizatrio da
razo esclarecida, de uma razo emancipadora. Dizer que o projeto iluminista
civilizatrio reconhecer que a poca das Luzes se caracteriza pela
confiana no progresso. Acerca do iluminismo Adorno, em parceria com
Horkheimer, afirma que seu projeto era o de livrar o mundo do feitio, dos mitos
e anular a imaginao, por meio do saber.
O iluminismo no se constituiu definitivamente como um movimento
puramente laicista, pelo fato de ter rompido como as foras da religio em face
de um mundo novo que se afigurava como o tempo do conhecimento
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cientfico. A hostilidade em face da Igreja e a luta contra a religio no se trava
apenas em torno dos dogmas, mas em torno do modo de certeza da religio e
das modalidades e da direo da f como tal. O sculo das Luzes depositou
uma confiana incondicional na razo, ou seja, a crena de que o homem
capaz de realizar sua liberdade se viver num mundo livre da dominao de
foras externas. A f na razo esclarecida de um novo tempo que visava a um
futuro auspicioso, de uma promessa de felicidade para a humanidade atravs
do aumento do saber cientfico e que seria capaz de propiciar o progresso
material e moral caracteriza o otimismo do movimento iluminista.
As idias iluministas influenciaram as Revolues Francesa e
Americana. A liberdade foi o ideal poltico revolucionrio que deu origem
Revoluo americana; a igualdade era o ideal que estava na base da
Revoluo Francesa, alm da liberdade, pois tratava-se de instaurar uma
repblica com base na virtude, o que fez com que a prpria virtude passasse a
ser associada ao terror jacobino.
Para responder questo sobre o fracasso da dos jacobinos Benjamin
Constant proferiu em 1819 a clebre conferncia no Ateneu Royal de Paris
sob o ttulo A liberdade dos antigos comparada liberdade dos modernos.
Para Constant, o resultado catastrfico da Revoluo Francesa que conduziu
ao Terror teve como motivo uma equivocada viso de liberdade: a liberdade
dos antigos. Sem atribuir valor negativo aos antigos, Constant considerava que
viviam em outros tempos, com outras necessidades, muito diferentes da
realidade de um governo popular que os revolucionrios de 1789 queriam
implantar na Frana. A partir de ento, a polmica entre antigos e modernos
se converte em uma questo relevante de qualquer reflexo poltica sobre a
opo entre duas concepes antagnicas da relao homem-sociedade.
Vivemos um tempo marcado pelas crises, principalmente no que se
refere poltica e sua relao com a tica, ou falta de tica na poltica.
Repensar a poltica no significa que tenhamos que renunciar aos princpios
democrticos. Pelo contrrio, repensar a poltica o desafio do nosso tempo.
Se este trabalho contribuir, de alguma forma para isso, ter atingido seu
objetivo.
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Captulo I
A idia de crise e a inveno da Filosofia, da tica, da Poltica e da
Democracia
1. Do mito ao logos
Se quisssemos citar uma palavra para caracterizar o nosso tempo,
esta, sem dvida, seria a palavra crise. Para Gerd Bornheim, o conceito de
crise alcanou hodiernamente uma abrangncia que o faz perpassar por
praticamente todas as esferas do real.1 Crise da razo, crise dos valores, crise
da civilizao, crise da poltica, crise econmica, enfim, a palavra crise est
presente em nosso cotidiano sempre com conotao negativa, associada
noo de decadncia.2 Todavia, vale lembrar que o conceito de crise
ambguo e contraditrio.
Em sua origem grega, a palavra crise no tem o sentido negativo que
comumente atribumos a ela.3 Derivada do verbo grego krn (separar, decidir,
distinguir, discernir, pronunciar, debater) a palavra crise, do grego krisis, (ao
ou faculdade de distinguir, ao de escolher, decidir, julgar) d origem s
palavras critrio (do grego kritriom,ou 'faculdade de julgar, regra para
distinguir o verdadeiro do falso, base para uma escolha ou deciso) , crtica (do
grego kritik 'que julga, decide, critica', julgamento, exame racional
independente de preconceitos, convenes ou dogmas) e crtico (do grego
kritiks; quem julga, avalia, aprova, desaprova; estado difcil ou embaraoso de
uma situao, aspecto perigoso ou de risco) . Em latim, crsis significa
momento de deciso, de mudana sbita.
1 Bornheim, G. Crise da idia de crise. In: Adauto Novaes (org.) A crise da razo. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 47. 2 Para Bornheim, Convm desde logo chamar a ateno para um aspecto do tema que si permanecer esquecido pela generalidade dos manipuladores da palavra crise: que ela passa a ostentar uma dimenso essencialmente negativa toda crise seria em si mesma negativa. Op. cit., p. 49. 3 Idem, p. 49.
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A palavra crise foi utilizada por Tucdides em A Guerra do Peloponeso
para marcar o momento de deciso da batalha. Hipcrates fez amplo uso da
palavra crise, tanto que a palavra, por muitos sculos, esteve mais circunscrita
medicina, como o momento que define a evoluo de uma doena para a
cura ou para a morte, do que para acontecimentos sociais.
O antnimo da palavra crise, conforme o dicionrio Houaiss da Lngua
Portuguesa, a palavra desdita (des- + dita), que significa falta de dita (sorte
favorvel'), m sorte, infortnio, desgraa. Associada ao significado de desdita
temos a palavra revs (aspecto desfavorvel de alguma coisa, contrariedade,
golpe, acontecimento imprevisto que reverte uma situao boa para m;
revertrio).
Portanto, podemos observar que a carga negativa que damos palavra
crise em nosso tempo, em sua origem no est nela mesma; a negatividade
est sempre em seu oposto. O sentido da palavra crise e de seus derivados
remete idia do pensamento em ao, na busca de uma sada e no no
sentido de decadncia, de fracasso; tampouco remete idia de apatia (do
grego apatheia; sem sensibilidade), estado de passividade e indiferena, falta
de qualquer iniciativa.
Se pensarmos que a palavra crise, mesmo isenta de qualquer carga de
negatividade, traz consigo a necessidade de superao de uma situao
problemtica, embaraosa, ento certo que uma situao de crise aquela
pela qual alguma coisa colocada em questo, problematizada. Deste modo,
podemos dizer que o conceito de crise em sua origem grega inerente ao
nascimento ou inveno da filosofia, da tica, da poltica e da democracia.4
inerente ao nascimento da filosofia, porque os filsofos pr-socrticos
foram os primeiros a colocar em questo a explicao de ordem mitolgica da
realidade pela tradio. Ao observarem a natureza, os filsofos da physis
lanaram-se na busca de critrios para outra explicao da origem do mundo e
das coisas que no fosse de ordem divina. Para Tales, por exemplo, o
kritriom utilizado para sua deciso entre a explicao de ordem mitolgica e a
physis era a gua como elemento primordial, o princpio de todas as coisas. 4 Digo nascimento ou inveno no sentido de que a filosofia, a tica, a poltica e a democracia tiveram seu incio devido capacidade criativa do gnio grego.
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Claro que no podemos dizer que bastou ter colocado em questo a explicao
de ordem mitolgica e simplesmente apontar a gua como a arqu de todas as
coisas para que Tales tivesse dado incio ao pensamento racional ou filosfico.
A prpria mitologia j apontava, com Homero, que tudo vem da gua com o
deus Oceano. Como estamos falando em crise como conceito inerente ao
incio da filosofia, o que houve foi o incio de uma nova mentalidade na Grcia
do sculo VI a.C. atravs de uma verdadeira aventura intelectual operada pelos
filsofos da physis. 5 Tales d incio Filosofia ao afirmar que a gua o
princpio, a unidade primordial. Isso tem como conseqncia o fato de que
atravs da Filosofia chega-se conscincia de que o um a essncia, o
verdadeiro e do ponto de vista filosfico somente o um a realidade verdadeira
e efetiva.
Para Nietzsche,6 embora possa parecer absurda a idia de que a
filosofia grega tenha nascido com a proposio de Tales ao afirmar que a gua
a origem e a matriz de todas as coisas, preciso lev-la a srio justamente
por que nela est contido o pensamento Tudo um. Se Tales tivesse dito
simplesmente da gua provm a terra, segundo Nietzsche, tratar-se-ia de
uma hiptese cientfica, falsa, mas dificilmente refutvel. Porm, Tales foi alm
do cientfico expondo tal representao de unidade atravs da hiptese da
gua. Tales no superou o estgio que Nietzsche chama de inferior das
noes fsicas da poca mas, no mximo, saltou, por sobre ele.7 Este no o
lugar apropriado para aprofundarmos esse tema, porm, vale a pena levantar a
questo se o kritriom de Tales para colocar em questo a explicao da
origem de todas as coisas pela via mitolgica e que faria dele o inventor da
filosofia teria sido o elemento gua, como foi dito anteriormente, ou se o
critrio teria sido o pensamento de que Tudo um. 8
5 Pouco do que foi escrito pelos primeiros filsofos, pr-socrticos, ou filsofos da phyis, ou da natureza, chegou at ns a no ser atravs de fragmentos. O termo physis, no o que entendemos hoje por natureza, principalmente se levarmos em conta nossa concepo moderna de conhecimento cientfico. 6 Ver comentrio de Nietzsche sobre Tales e o incio da Filosofia na Coleo Pensadores, Pr Socrticos Vol. 1, Nova Cultural, So Paulo, 1989, p.p. 10-12. 7 Idem, p. 10. 8 Se o critrio simplesmente a gua, como elemento primordial, Tales pode ser considerado um filsofo naturalista. Se o critrio o tudo um, Tales o precursor da metafsica.
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O que importa aqui que o advento da filosofia na Grcia marca o
declnio de uma forma de pensamento mtico e d incio a um saber racional
em um contexto onde a origem do mundo se baseava exclusivamente nas
explicaes dramticas das teogonias e cosmogonias.9 Conforme aponta Jean-
Pierre Vernant,10 com os filsofos da physis o carter positivo invadiu de chofre
a totalidade do ser e a partir de ento, nada existe que no seja natureza
(physis), Isso significa que tanto os homens, como as divindades e o mundo
formam um universo unificado, num mesmo plano. Havendo a partir de ento,
uma s natureza, uma s temporalidade, o original e o primordial despojam-se
no somente de sua majestade como de seu mistrio. Conforme Vernant, j
no o original que ilumina e transfigura o cotidiano; o cotidiano que torna o
original inteligvel, fornecendo modelos para compreender como o mundo se
formou e ordenou.11 O que ocorreu a partir de ento foi uma verdadeira e
sbita revoluo intelectual, considerada inexplicvel, de modo a ser
considerado o que muitos chamam de milagre grego.
certo que os filsofos da physis, pelo carter de positividade de sua
filosofia, abriram as portas para a cincia, mas isso no significa que a
inveno da filosofia tenha sido uma forma exatamente laica de conhecimento
ou de pensamento. Vernant lembra que para F.M. Cornford a primeira filosofia
em nada se aproxima do que hoje chamamos de cincia e que, na verdade, se
aproxima mais de uma construo mtica do que de uma teoria cientfica; que
no se trata de uma reflexo ingnua e espontnea da razo sobre a natureza,
mas de uma forma de pensamento que se transpe sob a forma laica e num
vocabulrio mais abstrato a concepo elaborada pela religio. 12 Isso no lhe
retira o carter de um pensamento racional. Cornford cita o exemplo da
escolstica medieval para mostrar como uma filosofia pode ser racional e, no
entanto, retirar da revelao as suas premissas deduzindo todo um sistema do
9 Vale salientar que o problema da existncia de um princpio unitrio j estaria implcito na Teogonia de Hesodo, onde ele, ao estabelecer que uma coisa preceda da outra, procura coordenar a realidade. Todavia, Hesodo no afirma a existncia de um princpio supremo de todas as coisas porque para ele tudo est sujeito a um eterno devir, gerao e corrupo. Sobre isso, ver Battista Mondin, Curso de Filosofia, vol. 1, p. 17. 10 Vernant, Jean-Pierre, As Origens do Pensamento Grego,Difel, Rio de Janeiro, 2006, p. 110. 11 Idem, p. 110. 12 Ibidem, p.111.
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universo sem a necessidade de verificao de suas concluses atravs de
fatos observveis empiricamente.13
At aqui falamos sobre a inveno ou o nascimento da filosofia14 com os
filsofos da physis citando apenas Tales de Mileto como exemplo dos primeiros
pensadores que se dedicaram busca da existncia de uma arqu, uma causa
primeira de todas as coisas. 15 No obstante a importncia dos outros filsofos
pr-socrticos para a filosofia,16 o que digno de ateno sobre Tales de
Mileto no se refere apenas ao fato de ter sido ele o primeiro filsofo de que se
tem notcia, mas por ser reconhecidamente o primeiro pensador cujo discurso,
por se distinguir do discurso dos poetas, marca a passagem no ocidente do
mito para o logos.
2. Palavra e verdade na Antigidade grega
possvel que pouca gente se d conta do papel efetivo que a palavra
ocupa em todas as sociedades, desde as mais primitivas s mais
desenvolvidas e complexas. A palavra sempre esteve associada idia de
verdade. Quando dizemos que damos nossa palavra significa que estamos
afirmando que verdadeiro aquilo que estamos dizendo, ou pelo menos
esperamos que o ouvinte confie naquilo que est sendo afirmado. Assim, a
palavra dotada de um contedo moral na medida em que est associada
idia de sinceridade, de honestidade, mas tambm de um contedo poltico,
como instrumento de poder, em razo da capacidade que temos de nos colocar
diante do outro quando argumentamos com a finalidade de convencer algum
a respeito de nossas idias, convices, enfim, de dizermos aquilo que
acreditamos ser verdadeiro e que por isso mesmo nos possibilite agir tanto na 13 Cf. F.M.Cornford em Principium Sapientiae, As origens do pensamento filosfico grego. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1989, p. 257. 14 Historiadores da filosofia situam o seu nascimento no final do sculo VII e incio do sculo VI a.C. 15 Os outros filsofos no citados so Anaximandro e Anaxmenes chamados filsofos jnios, todos de Mileto, na sia Menor. Isso significa que a filosofia ocidental no nasceu em Atenas, mas nas colnias gregas do Ocidente, ou seja, na Jnia e na Magna Grcia. 16 Em especial, Parmnides, considerado o primeiro metafsico da histria da filosofia, em cujo pensamento o ncleo central a distino entre o ser e o no-ser para afirmar a exclusiva realidade do ser e Herclito, cujas linhas mestras do pensamento baseiam-se na idia do vir-a-ser, na contradio, na eterna transformao.
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dimenso privada como na dimenso pblica de nossa existncia. Nesse
sentido, o uso da palavra um ato de fala. Todavia, nem sempre os
proferimentos dizem respeito ao que verdadeiro ou falso.
J.L.Austin, filsofo da linguagem, afirma que h proferimentos
verdadeiros ou falsos, que ele chama de proferimentos constatativos (por
exemplo, quando digo que a porta est aberta algum pode constatar a
veracidade ou a falsidade do proferimento) e os proferimentos performativos,
ou seja, aqueles em que o ato de dizer uma palavra j uma ao, pois com
esse tipo de proferimento o ato de dizer fazer e, em decorrncia dele, um
estado de coisas pode ser modificado. Um exemplo de proferimento
performativo afirmar eu prometo que estarei aqui amanh. No se trata,
neste caso, de uma afirmao passvel de ser verdadeira ou falsa, mas feliz ou
infeliz (bem sucedida ou mal sucedida), porque de qualquer forma um ato j foi
realizado: o ato de prometer. Caso eu cumpra o prometido, meu ato ser bem
sucedido, ou seja, no o caso de dizer que a promessa tenha sido
verdadeira. O que Austin pretende com sua teoria dos atos de fala
fundamentalmente ressaltar o carter de compromisso do uso da palavra. 17
Sabemos que uma palavra um signo e, como tal, representa algo que
no est presente. Na Grcia arcaica as palavras faziam parte do mundo das
coisas e dos acontecimentos, segundo Luiz Alfredo Garcia-Roza.18 Naquele
contexto a palavra era voz e gesto, dia e noite, vero e inverno. Desse modo,
as palavras eram tanto signos mundanos como sagrados, uma vez que
remetiam o indivduo para outro tempo que no era aquele em que estava
vivendo, ao tempo dos heris e das divindades. A palavra no valia
simplesmente pelo seu sentido manifesto, mas como signo a ser decifrado
para que um outro sentido, oculto e misterioso, pudesse emergir num
interminvel de decifraes19 e essa era exatamente a palavra do aedo
(poeta), ou seja, a palavra que era portadora da verdade (alethia). O aedo,
desta forma, era um ser excepcional pelo fato de enviar os homens, atravs da
palavra potica, ao tempo mtico das origens. Os poetas, lembra Garcia-Roza, 17 Sobre a teoria dos atos de fala em Austin, ver J.L.Austin, Quando dizer fazer: palavras e ao. Edit. Artes Mdicas, Porto Alegre, 1990 18 Ver Luiz Alfredo Garcia-Roza em Palavra e Verdade na filosofia antiga e na psicanlise, Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1995, p. 7 19 Idem, p. 7.
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no eram inventores de fices; eram portadores de verdades reveladas.
Todavia, esse tempo no era um tempo cronolgico, nem um passado, mas
outra dimenso do Cosmo qual apenas o aedo tinha acesso.20 Vale ressaltar
aqui o papel da memria, conferida ao aedo pela Mnemosyne,21 que a
possibilidade que o aedo tinha de acesso a outro mundo para, ao retornar ao
mundo dos mortais, cantar aos homens a realidade primordial. Alm de
propiciar a lembrana ao aedo, a deusa Mnemosyne igualmente propiciava a
lethe (esquecimento), pois para que o poeta tivesse acesso ao tempo
primordial teria que se esquecer do tempo presente.22 Apenas pelo
esquecimento do tempo atual o poeta teria acesso ao mundo das divindades.
Como no havia no mundo arcaico uma separao ntida entre o mundo
dos deuses e o mundo dos homens, competia ao aedo cantar a distncia entre
essas duas ordens. Porm, com Hesodo e com Homero a poesia comea a
ter outra funo. A poesia, alm de passar a ser escrita, se transforma na
narrativa dos grandes feitos dos guerreiros. Deste modo, todo ato herico
passava primeiramente pela palavra do poeta; exatamente pela palavra do
poeta que os atos hericos se eternizam. Para o guerreiro a morte cantada e
lembrada , ento, prefervel sobrevivncia no esquecimento. Deste modo, a
morte pela ausncia da palavra era, para os gregos dos tempos homricos, a
maior de todas as ameaas.23 Todavia, com o aparecimento da filosofia e da
poesia laica h uma dessacralizao da memria e da palavra. Nesse
momento a memria do filsofo j estar ligada ao conhecimento. Com a
dessacralizao do saber e com o advento de um pensamento exterior
religio modifica a estrutura social e mental da polis grega.
No limiar dos sculos VI e V a.C. a verdade (alethia) filosfica comea
a se configurar com Parmnides. Todavia, vale lembrar que a alethia em
Parmnides no ser a verdade do filsofo, tal como ser pensada por
Plato.24 Em Parmnides a alethia desvelamento, no adequao entre o
pensamento e a coisa, ou seja, a alethia concebida por Parmnides como
20 Ibidem, p. 26 21 Mnemosine, na mitologia grega, filha de Urano e Gaia a deusa da memria. Sua funo proteger os homens dos perigos do esquecimento (Lethe). 22 Garcia-Roza, op. cit., p. 27 23 Idem p.31 24 Ibidem, p. 11
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caminho atravs do qual ser e pensar podem dar-se.25 A alethia, como
desvelamento, caminho ou abertura para o ser e o pensar, no pode se dar
pelo caminho da doxa (opinio).26 Por isso, a alethia em Parmnides no se
refere a uma evidncia, mas por um desvelamento no qual est includo um
ocultar-se. Portanto, em Parmnides no h alethia sem lethe, ou seja, um
desvelamento sem um velamento.27
A oposio entre verdade (alethia) e opinio (doxa) em Parmnides ir
desempenhar um papel de enorme importncia no pensamento ocidental tendo
em vista que a opinio (doxa) a crena que se baseia nos dados sensveis e
a verdade, em oposio s coisas sensveis, a convico fundada em
argumentaes racionais. Em Parmnides a verdade pode ser formulada em
termos lgicos. Sua doutrina do ser (o ser ; o no ser no ) fundamenta-se
na reduo da ontologia lingstica, ou seja, a realidade do mundo
necessariamente coincide com a anlise do verbo ser em termos lingsticos.
Deste modo, no conceito de ser em sua coerncia lgica que devemos
procurar a verdade, no no mundo sensvel. O que , segundo Parmnides,
ser para sempre. O ser , desta forma, fixo, homogneo, indivisvel, eterno e
jamais poder estar submetido a um devir.
Oposto ao pensamento de Parmnides, dentre os pr-socrticos, em
Herclito tudo devir. Tudo flui, nada permanece; a nica permanncia a
eterna mudana. A lei que governa o mundo o logos. Para Herclito todo
homem participa do logos universal, todavia, h diferenas na maneira de
pensar entre os indivduos. H indivduos adormecidos e indivduos despertos.
Os ltimos seriam os filsofos que, ao contrrio dos primeiros que se limitam
percepo do mundo sensvel, utilizam o logos para penetrar com profundidade
na verdade da natureza (physis). Para Herclito, ao contrrio de Parmnides,
no a alethia que se esconde e sim a physis. Desse modo, tanto a alethia
de Parmnides como a physis de Herclito so caracteristicamente
enigmticas, na medida em que ambas so aquilo que ao mesmo tempo
revelam e ocultam.28 Em Herclito a palavra logos, porm, o Logos no
25 Ibidem, p. 12 26 O caminho da verdade em Parmnides o discurso da no-contradio 27 Garcia-Roza, op cit, p.12 28 Idem, p. 49
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apenas a palavra, pois este excede a palavra. Em Herclito, vale salientar,
ainda no h separao entre as palavras e as coisas, mas uma cumplicidade
entre ambas. As palavras so parte da physis e como esta tambm se oculta,
as palavras e as coisas so enigmas que precisam ser decifrados.29
ainda no sculo V a.C. que a doxa passar a ser valorizada em
detrimento da alethia. Se a palavra do aedo era portadora de alethia e esta,
por sua vez, era uma verdade sagrada, a palavra do guerreiro nos poemas
homricos era uma palavra que dizia respeito aos grandes feitos, desvinculada,
a partir de ento, da alethia. A palavra do guerreiro no visava verdade,
mas a peith, a persuaso e, segundo Garcia-Roza, exatamente isso que ir
abrir caminho para a palavra do filsofo e do sofista.30
O estatuto da palavra na sociedade democrtica ateniense
radicalmente diferente daquele que ela possui na sociedade arcaica ou mtica.
Uma importante ruptura ocorreu no sentido de que a palavra do poder se
transforma no poder da palavra. Deste modo, a palavra adquire um estatuto
eminentemente instrumental, na medida em que se tornar o instrumento de
poder para a transformao da ordem social e poltica. Deste modo, talvez
no seja equivocado afirmar que houve uma inveno da palavra democrtica
como meio para uma nova ordem poltica, pois a democracia ateniense,
tambm caracterizada como o regime da igualdade dos cidados livres,
pressupe a isegoria, o valor igual da palavra de cada cidado. Uma
democracia direta em que todos os cidados, igualmente, possuem
competncia para deliberar e decidir sobre assuntos de ordem pblica, no
poderia admitir que a poltica fosse coisa para especialistas, idia defendida
por alguns em nossa atualidade, onde na democracia representativa os
polticos so profissionais. Na democracia ateniense os cidados livres, ora
governantes, ora governados, eram eles mesmos, em plena igualdade, os
responsveis pelo exerccio do poder poltico.
Dizer que a democracia ateniense se fundamenta na isonomia31 dos
cidados e que esta significa o poder da palavra de todos de maneira igualitria
29 Ibidem, p. 52 30 Ibidem, p.p. 36-37 31 Segundo Hannah Arendt, o sentido da poltica a liberdade. Tal liberdade significa que os homens estabelecem entre si relaes para alm da fora e do domnio. Uma poltica centrada
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(isegoria), afirmar a simetria democrtica, ou seja, que a palavra de cada um
vale a mesma coisa. Nesse sentido, uma verdadeira revoluo democrtica
ocorre quando a palavra democrtica concebida como colocando em ao
uma constante reciprocidade.32 Tal ordem democrtica significa, igualmente,
uma revoluo nas mentes tendo em vista que essa nova ordem democrtica
ateniense se configura como uma nova ordem da natureza que no mais
hierrquica. Segundo Jean-Pierre Vernant, esse novo espao social, a partir de
ento, centrado. A gora (praa), sob o terreno dessa nova ordem espacial,
forma o centro de um espao pblico e comum.33 Isso significa que o kratos, a
arch e a dynasteya no se encontram mais no pice da escala social, mas no
centro (es meson). 34 Interessante notar que a salvao da polis depende
desse centro (o espao poltico), que a partir de ento passa a ser valorizado e
os indivduos que tm acesso a esse meson, aqueles que nele penetram, se
definem como isoi (iguais) ocupando posies simtricas com relao a esse
centro (que o ponto de equilbrio da polis). 35 Desse modo, todos aqueles que
tm acesso ao espao poltico36 entram em relaes de perfeita reciprocidade
uns com os outros. 37
A democracia, segundo Phillipe Breton, surge como ruptura na
civilizao grega, caracterizando-se como o verdadeiro regime do
convencer38. A partir de ento a palavra ir substituir o poder e a violncia
fsica e simblica. Nesse novo contexto o instrumento exclusivo da ao
poltica ser o discurso. Dizer que a palavra de um equivale palavra de outro
dizer que se trata de um jogo civilizado em que a simetria da palavra o
prprio pilar da nova sociedade democrtica. Tal a identificao da
na liberdade como no-domnio, segundo Arendt, uma liberdade negativa. Uma relao de iguais com iguais e sem esses outros que so meus iguais no existe liberdade. Para Arendt, a isonomia no pode ser entendida, como igualdade perante a lei, mas que todos tm o mesmo direito ao exerccio poltico. Isonomia, portanto, antes de tudo, a liberdade de falar, o mesmo que isegoria. Nesse sentido, a isonomia, tal como a entendemos hoje, com o significado de igualdade perante a lei, associado idia de justia um pensamento equivocado. A isonimia, portanto, no tem nada a ver com justia e sim com liberdade. Ver Arendt. H., O que poltica. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 48-49. 32 Cf. Breton, Philippe. Elogio da palavra. So Paulo: Edies Loyola, 2006, p. 150 33 Vernant, J.P., As origens do pensamento grego, So Paulo: Difel, 2006, p. 135. 34 Idem. 135. 35 Ibidem, p. 135. 36 Vale lembrar que a democracia ateniense era restrita aos cidados e, deste modo, no tinham acesso a esse centro poltico os escravos, os estrangeiros e as mulheres. 37 Vernant, J.P., Op. cit, p. 136 38 Breton, P., A manipulao da palavra, So Paulo: Edies Loyola, 1999, p. 27.
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democracia com o exerccio da palavra, que cada vez que esta se encontra
ameaada, a democracia poltica mesma que estar ameaada como
sistema poltico. 39
Sabemos o quanto a inveno grega da democracia marcar a evoluo
da civilizao ocidental e o quanto a democracia moderna est distante da
democracia ateniense como forma de sistema poltico. Sabemos tambm das
profundas transformaes sofridas pela palavra no transcorrer da histria. O
ocidente, desde a inveno da democracia grega, passou por grandes avanos
e retrocessos e sabemos tambm o quanto a palavra tem sido manipulada ao
longo daquilo que conhecemos por civilizao ocidental. No podemos deixar
de concordar com a afirmao de Hannah Arendt de que o sentido da poltica
s pode ser a liberdade e, da mesma forma, podemos concordar com a filsofa
que o sentido de isonomia tambm pode ser pensado como liberdade e no
exclusivamente com o sentido de justia (igualdade de todos perante a lei),
principalmente se pensarmos que a ameaa liberdade de expresso sempre
paira sobre a democracia, tanto na Atenas do sculo V a.C., como nos dias de
hoje.
Se ainda defendemos tanto a liberdade da palavra (ou modernamente
como liberdade de expresso) como garantia da democracia, como o melhor
regime poltico at hoje inventado, por que a poltica hoje est to
desacreditada quando vivemos justamente na era da comunicao, justamente
quando vivemos em sociedades em que o conceito de esfera poltica est
diretamente associado ao conceito de opinio pblica? Quem defende
realmente a democracia como o melhor regime no pode se afastar do ideal
grego de poltica como atividade para no especialistas, apesar de sabermos
que em nossas sociedades a palavra cada vez mais ela mesma
especializada. Vivemos em um mundo de sociedades complexas, onde cada
profisso e os temas que lhe so inerentes, com sua linguagem especializada
(linguagem jurdica, econmica, mdica, etc.) invadem a cena pblica e, nesse
sentido, a poltica se torna cada vez mais incompreensvel para o cidado.
Ento, de se questionar uma opinio pblica que hoje est mais prxima da
adeso do que para a escolha, para um discernimento, ou seja, de sermos
39 Idem, p. 29
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capazes de formar uma opinio efetiva sobre as instituies, sobre nossos
representantes polticos e sobre temas e questes que nos dizem respeito
como indivduos e como cidados.
Se concordarmos com a afirmao de que a democracia, bem como a
prpria poltica em seu sentido autntico, no coisa para especialistas,
havemos de concordar que a poltica no da ordem do conhecimento e que,
portanto, o que a caracteriza a opinio (doxa) e no a verdade (alethia), ou
seja, que o carter de cientificidade que muitos querem atribuir poltica em
tudo representa a prpria negao da poltica e da democracia, tendo em vista
que a defesa dessa idia uma forma de excluso dos cidados do debate
pblico. Tal concepo o que embasa a idia aristocrtica, hierrquica e
conservadora de poltica, que por ser conservadora tambm reduz,
freqentemente, os julgamentos polticos esfera exclusiva da moralidade,
melhor dizendo, de uma hipocrisia moralista
Diante dessas questes, uma abordagem sobre os sofistas se faz
necessria devido a sua importncia, ainda no suficientemente reconhecida,
na formao do pensamento poltico democrtico ocidental.
3. Os sofistas: os mestres da opinio
A filosofia pr-socrtica chega ao fim com a sofstica, movimento de
idias presente no mundo grego no sculo V a.C., quando a Grcia ainda
dividida em pequenas cidades que guerreiam entre si, apesar de cultuarem
deuses em comum, falarem uma mesma lngua e compartilharem a mesma
cultura. O aparecimento dos sofistas se deve a razes no apenas de ordem
filosfica, mas tambm e principalmente de ordem poltica. A razo de ordem
filosfica se deve ao fato de que os pensadores do sculo V antes de nossa
era consideraram que era intil insistir na pesquisa metafsica sem estudar o
homem em profundidade e determinar o alcance de sua capacidade
cognitiva.40 As razes de ordem poltica para o aparecimento da sofstica se
devem ao fato de que a vida na polis exigia a dedicao dos cidados
40 Ver Battista Mondin, Curso de Filosofia, vol. I, So Paulo: Edies Paulinas, 1981, p. 40.
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atividade poltica41. Nessas cidades a educao se dirigia fundamentalmente
para a moral e para a arte da guerra e com a inveno da poltica como
democracia, onde os cidados livres deliberam em praa pblica e a palavra se
torna um valor e uma necessidade, os sofistas sero aqueles que no apenas
ensinaro os homens a falar bem, mas acima de tudo a persuaso, a arte da
argumentao e do convencimento. 42
Os sofistas eram profissionais que cobravam para ensinar a falar bem e
a manejar com habilidade os argumentos a fim de que seus discpulos
pudessem convencer nos tribunais, tanto no que se referia a problemas de
ordem privada como nas assemblias pblicas onde eram tratadas,
deliberadas e decidas as questes polticas. Um dos motivos da pssima
reputao atribuda aos sofistas est no fato de ensinarem a tchne rhetorik, a
arte de convencer, sob a exigncia de pagamento, ou seja, os sofistas atuavam
profissionalmente.
A palavra sofista vem do grego sophos, sbio. Originariamente, seu
significado era relativo ao detentor de alguma habilidade, percia. Em Homero,
por exemplo, um construtor de navios algum que tem sophia; um cocheiro,
um piloto de navio, um escultor so sophoi.43 squilo dir que o sophs no
o homem que sabe muitas coisas, mas aquele cujo conhecimento til. 44 Um
sophistes , ento, aquele que, dotado de percia especial, habilidade ou
conhecimento para comunicar, possui sophia prtica, tanto nos campos da
conduta e poltica como nas artes tcnicas. 45
A sofstica surgiu num contexto de crise em que a precariedade das
mltiplas solues propostas para as questes referentes natureza ltima das
coisas e do seu princpio, do sentido da vida e do valor da lei moral exigia
outras formas de reflexo e outras respostas. Os sofistas, levantando essas
questes, foram os primeiros a responder que a realidade e a lei moral
transcendem a capacidade cognitiva do homem. Tudo o que o homem conhece 41 Para uma leitura sobre o cotidiano do cidado livre em Atenas e como a democracia foi um regime que exigia muito dos cidados, ver Foustel de Coulanges, A cidade Antiga. So Paulo: Martin Claret,2001, p.p. 358-360. 42 O surgimento de tcnicas especficas na arte de falar bem dar origem ao que se conhece por retrica. 43 Sobre O que o Sofista, ver W.K.C. Guthrie,Os Sofistas. So Paulo: Paulus, 1995, cap. III 44 Idem., p. 32 45 Ibidem., p. 34
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sobre a filosofia e sobre a tica por ele mesmo arquitetado e no proveniente
de quaisquer divindades. Os sofistas ensinavam aos seus discpulos que s
existe conhecimento provvel; no pode existir conhecimento verdadeiro.
Tampouco para os sofistas existe uma lei moral absoluta; todas as leis so
convencionais. Para eles, as leis humanas e os costumes variam de uma
cidade para outra, por isso so meras convenes. Conforme o caso, o termo
nomos significa lei, costume ou conveno. em torno da controvrsia nomos-
physis que os problemas polticos sero abordados de diferentes maneiras
pelos diversos sofistas. do contraste entre reino da necessidade, que o da
physis, e de uma necessidade que depende das prescries da lei que nasce a
controvrsia entre physis e nomos.46 Todavia, vale ressaltar que h divergncia
entre os sofistas a respeito de physis e nomos. H aqueles que so os
chamados defensores da physis e aqueles que so os defensores do nomos.
No cabe aqui uma abordagem aprofundada a esse respeito, mas para efeito
de esclarecimento, os defensores da physis eram os sofistas que atacam o
nomos como restrio s operaes da physis47 Os defensores do nomos
eram aqueles que rejeitavam a idia de um mundo ordenado por natureza.
Os sofistas foram atrados para Atenas em virtude das novas condies
polticas com o objetivo de ensinar os cidados de uma forma diferente daquela
que caracterizava a formao guerreira dos poetas. O que os sofistas faziam
em Atenas era formar politicamente os cidados. Eram os mestres da tcnica
do discurso e o caminho que percorriam no era o da verdade, mas o da
opinio. Com o aparecimento do movimento sofista surge a primeira crtica da
razo poltica porque, para os sofistas, a poltica no da esfera da verdade
(alethia) mas da opinio (doxa) da a oposio dos filsofos, que estavam em
busca da verdade. Os sofistas, nesse sentido, so os primeiros a fundarem
uma filosofia da democracia.
Sabemos que a democracia grega, no foi um ideal de igualdade tal
como o concebemos hoje, pois tratava-se de uma sociedade escravagista.48
46 Cf. Alonso Tordesillas, Uma crtica da razo poltica: os sofistas. In: Histria da Filosofia Poltica 1, A liberdade dos antigos. Lisboa: Instituto Piaget, 2001,p. 185. 47 Sobre os defensores da physis, que se opem ao nomos como restrio s operaes da physis, ver em W.K.C. Guthrie, op. cit., p. 97. 48 Os sofistas, ao contrrio dos filsofos, como Aristteles, entendiam que ningum escravo por natureza e sim por conveno.
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Em termos polticos, portanto, a nica desigualdade inaceitvel era a
desigualdade diante da palavra.49 Da a importncia exercida pelos sofistas por
parte dos cidados que tinham no apenas o direito, mas o dever de participar
da nova ordem democrtica. Na polis ateniense, segundo Phillip Breton,
explodem os usos da palavra e as pessoas passam a ouvir os sofistas com
ateno necessria para aprender a tomar a palavra50 em um ambiente no qual
tudo passa a depender dela e de seu uso eficiente.51 Alm, disso, vale
ressaltar que tomar a palavra no mundo grego democrtico torna-se um dever
cvico, pois a tomada da palavra, a partir de ento, a garantia de um recuo da
violncia nas relaes sociais e por isso ganha o estatuto de um ideal
pacificador na medida em que o instrumento mximo de transformao.52
Trata-se doravante de uma nova ordem social e poltica da qual, segundo
Breton, Roland Barthes chama de imprio da retrica.53 A retrica antiga,
segundo Breton, representa uma verdadeira reviravolta lingstica e o uso da
palavra num contexto poltico que se organiza em torno de um eixo constitudo
por novas modalidades de deciso significa que a prpria tomada de deciso
ela mesma uma modalidade de ao que no pode ser outro seno esse novo
uso da palavra 54 e ningum melhor do que os sofistas para ensinar o exerccio
da cidadania atravs da palavra eficiente.
Os sofistas foram sbios dotados de um esprito livre em relao a tudo
o que se referisse tradio,55 s normas, aos costumes e demonstravam
enorme confiana nas possibilidades da razo. Por isso, podem ser
considerados iluministas gregos.56 De todos os sofistas o mais importante foi,
sem dvida Protgoras de Abdera, autor da clebre frase O homem a
medida de todas as coisas, das coisas que so o que so, e das coisas que
no so o que no so. Isso quer dizer que para Protgoras nada existe a
no ser o que cada indivduo percebe ou conhece, o que para Aristteles trata- 49 Cf. Breton, P. Elogio da palavra. So Paulo: Edies Loyola, 2006, p. 154. 50 Na assemblia ateniense, aps a leitura de um projeto pelo arauto e aberta a discusso, este dizia: quem deseja tomar a palavra?. A esse respeito, ver Foustel de Coulanges, op. cit., p. 356. 51 Breton, P. Elogio da palavra, p. 156. 52 Idem, op. cit., p167. 53 Ibidem, p. 156. 54 Ibidem, p.p. 157-158. 55 Talvez pelo fato de no serem cidados atenienses. Os sofistas vinham de vrios lugares e por isso no estavam presos tradio e aos costumes de uma comunidade social e poltica. 56 Cf. Reali, G.; Antisseri, D., Histria da Filosofia vol. I, Paulus, p. 75.
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se de puro subjetivismo e relativismo.57 Realmente, Protgoras foi de um
subjetivismo extremo ao afirmar que tudo o que a um indivduo , para ele.
Ento ningum tem o direito de chamar o outro de errado, uma vez que para
ele nenhuma realidade existe atrs e independente das aparncias. 58 Tambm
no campo da tica Protgoras assume uma postura relativista. No Teeteto
(167 c-d), Protgoras diz E afirmo que os oradores sbios e bons fazem com
que as coisas benficas paream ser justas cidade em vez de defeituosas.
Pois aquilo que a cada cidade parece justo e belo isso para ela enquanto
assim o determinar, mas o sbio aquele que faz serem e parecerem
benficas cada uma das coisas que para os outros so defeituosas. 59 (grifo
meu). Vale ressaltar que os sofistas no podem ser considerados como
amorais, no sentido de um relativismo em torno dos predicados bom e mal. A
sofstica era simplesmente uma viso poltica realista e, portanto, preferir uma
ao boa em nada estava submetida moral. Ao substiturem o discurso dos
pr-socrticos os sofistas substituem o discurso da physis pelo discurso
poltico, inscrevendo o discurso poltico no registro do discurso comum, ou seja,
o discurso somente se manifesta como poltico e capaz de criar a cidade
atravs de um retorno sobre si prprio. Por isso Jacques Rancire afirma que a
as formas de constituio da democracia so simplesmente as formas de
constituio da poltica como modo especfico de um estar-junto humano.60
No dilogo platnico Protgoras, o sofista se apresenta como tal
anunciando que sua especialidade a arte poltica (319 a), a arte de tornar
os homens bons cidados (319 a). Segue-se posteriormente uma discusso
com Scrates se possvel ou no ensinar a virtude aos cidados. Para
Protgoras, as virtudes necessrias para a vida em comunidade, dik (justia)
e aidos (decoro), podem e devem ser ensinadas. As virtudes a que ele se
refere, todavia, no so virtudes ticas e sim virtudes polticas. A dik refere-
se a uma virtude poltica que antes de significar, para Protgoras,
simplesmente uma disposio para a justia, muito mais uma disposio para
agir de acordo com o nomos da polis. A virtude do decoro (aidos) a conduta
57 Idem, p. 174. 58 Ibidem, p. 176. 59 Plato, Teeteto, Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2005 60 Ver Rancire. J. A partilha do sensvel: esttica e poltica. So Paulo: Ed. 34, 2005, p. 104.
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de correo e decncia, ou seja, a arte de comportar-se bem em sociedade. No
mesmo dilogo, Protgoras elabora um mito de Prometeu, sua maneira, no
qual dike e aidos so apresentados no como virtudes morais, mas como
resultado de conveno (nomos) e, desta forma, como instncias produtoras de
ordem.61 Isso no significa que Protgoras concebesse a democracia como o
regime da ordem e da estabilidade. Pela prpria natureza do regime, fundado
no uso da palavra e da opinio, cada um pode dizer o que quer de maneira
diferente, podendo opor-se a todos os outros. A cidade, deste modo, o retrato
do desacordo permanente e ao mesmo tempo a nica instncia onde o
acordo possvel, porque o que se d pelo nomos emana do desacordo das
deliberaes pblicas. Na medida em que a cidade democrtica o solo do
desacordo, do dissenso, cada acordo ser sempre fugaz. 62
A idia de cidade democrtica em Protgoras, como o terreno do
desacordo permanente, mostra que a democracia o regime dos conflitos e
no do consenso. A clebre frase de Protgoras de que o homem a medida
de todas as coisas pode ser interpretada como cabendo apenas ao homem a
capacidade tanto de fazer como de aceitar o nomos. O nomos justo, para os
sofistas, sendo apenas o do homem, ser justo apenas durante o tempo em
que os homens decidirem que assim seja. A arte poltica, deste modo, a arte
da controvrsia e debater jamais deixar de interrogar-se; a democracia como
regime da controvrsia ser sempre aquele em que a controvrsia permitir
no a verdade, mas a opinio mais vantajosa para a cidade.
Se por um lado podemos dizer que se trata de uma viso extremamente
realista ou pragmtica da poltica, por outro lado, inegvel a contribuio dos
sofistas no que se refere participao poltica igualitria dos cidados num
regime democrtico, embora saibamos que nem todos tivessem esse direito
em Atenas. Quando os sofistas se propem ao exerccio de uma profisso que
se traduz numa paidia poltica do cidado no significa que quisessem formar
cidados para uma poltica de competentes ou de especialistas, mas para um
uso eficiente e igualitrio da palavra. Na medida em que a democracia era o
61 Cf. Tordesillas, A. op. cit., p.218. 62 Sobre democracia como dissenso ver Rancire, J. O Dissenso. In: Adauto Novaes, (org.) A crise da razo, So Paulo: Companhia das Letras, Ministrio da Cultura: Rio de Janeiro: Fundao Nacional de Arte, 1996.
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regime da opinio, os sofistas podiam reconhecer que a democracia se traduz
num permanente ato de linguagem e exatamente esse ato o instrumento sem
o qual para o elo social no seria possvel. sob essa idia de democracia
como regime da considerao igualitria da opinio que podemos dizer que a
democracia o regime do conflito e que, ao mesmo tempo, apenas e somente
pela palavra livre possvel a paz social e poltica.
4. A tragdia e a filosofia moral
Se a palavra crise uma constante nos discursos da atualidade, da
mesma forma a palavra tica, ou a falta de tica, tambm presena
constante, tanto nos meios de comunicao como nas ruas e sempre referida
poltica, ou conduta dos polticos. atravs dos juzos de valor, das
avaliaes sobre pessoas, coisas ou situaes que os homens so capazes de
julg-los como bons ou maus, como desejveis ou indesejveis. atravs dos
juzos de valor que fazemos nossas avaliaes e atravs deles que tomamos
determinadas decises ao longo da vida.
O que chamamos de juzos de valor tico, so de ordem subjetiva, na
medida em que dizem respeito quele que avalia, e de ordem intersubjetiva,
uma vez que impensvel que algum faa juzos de valor tico, que dizem
respeito ao dever ser, sem a presena de outrem. Assim como o direito s
existe em sociedade, a moral tambm s faz sentido na medida em que o
homem vive coletivamente. Deste modo, em sociedade que a moral
instituda; so os homens que, vivendo coletivamente, instituem valores
referentes ao que consideram bem e mal, desejvel e indesejvel, enfim,
valores que consideram e que esperam serem vlidos e aceitos pela maioria
dos indivduos.
A tica, desde suas origens com os filsofos da Grcia clssica, uma
espcie de saber normativo, voltado orientao das aes dos homens
vivendo em comunidade. A moralidade, 63 grosso modo, diz respeito questo
63 No transcorrer deste trabalho usarei as palavras tica e moral como sinnimas, embora na minha concepo no signifiquem a mesma coisa. A moral tem mais a ver com os costumes, e com as condutas individuais, mesmo quando esse indivduo um grupo, uma comunidade,
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como devo agir, o que significa que ela se refere ao do sujeito que se
relaciona com os outros, bem como aos critrios que orientam tal ao. Uma
vez que os critrios so as razes que levam o sujeito escolha de um agir
bem ou mal, desejavelmente ou indesejavelmente, o que caracteriza uma ao
como moral ou imoral, a questo da moralidade implica uma relao direta com
a liberdade. Assim, toda ao moral, pressupe-se, aquela em que o sujeito
livre e dotado de vontade e razo capaz no apenas de orientar seus atos,
mas acima de tudo de assumir as conseqncias de suas aes. Em suma,
moralidade, liberdade e responsabilidade so indissociveis.
Se a moral tem a ver com a liberdade de escolha dos critrios e das
decises e, ao mesmo tempo, com a responsabilidade, ou seja, com a
obrigao do sujeito em arcar com as conseqncias de seus atos, de se
supor que a moralidade, ou a tica, no se reduz mera escolha entre o bem e
o mal, entre o desejvel e o indesejvel, ao permitido e o proibido, mas a uma
escolha que pode envolver conflitos, pois a tica diz respeito s aes
orientadas por um querer razovel. 64
Dizer que na Grcia de Homero a Pricles que se encontra o
fundamento da civilizao ocidental reconhecer que o homem do ocidente
herdeiro de um povo que atingiu um estgio de desenvolvimento notvel, em
face dos povos do Oriente, em tudo o que se refere vida em comunidade.
Sem desconsiderar as realizaes religiosas, polticas e artsticas dos povos
anteriores ou de povos contemporneos dos gregos da antiguidade clssica,
uma sociedade. Penso que a moral se relaciona com a idia de dever, de obedincia a preceitos. A tica, no meu entender, tem a ver com o discernimento no sentido de uma ponderao, que requer autonomia. Est mais voltada para o juzo de razoabilidade. No significa que agir por dever no exija ponderao, nem que a tica tenha necessariamente que estar desvinculada de normas. Em poucas palavras, entendo que a moral um modo de dever ser enquanto que a tica est mais voltada para o dever de reflexo sobre as aes. 64 Digo razovel, ou bom senso, ao invs de racional, pois um juzo de razoabilidade aquele em que o sujeito da ao, diante de situaes conflitantes, ou que chamamos comumente como dilemas morais, pode se deparar com uma questo embaraosa ou incmoda. Uma ao moral, no pode ser reduzida escolha entre o bem e o mal. Muitas vezes precisamos decidir entre dois bens ou mesmo optar pelo mal menor e isso no significa uma tica de exceo. O juzo de razoabilidade seria ento, no a escolha entre os dois lados da balana da nossa capacidade de julgar, mas um juzo moderado, ou seja, um justo equilbrio ou bom senso. Uma ao moral orientada pelo juzo de razoabilidade seria aquela digna de aprovao porque baseada em razes aceitveis e justas (equilibradas).
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possvel dizer que a histria daquilo a que podemos com plena conscincia
chamar cultura s comea com os Gregos. 65
na viragem do sculo VIII ao sculo VII que a Grcia toma um novo
rumo, se confrontada com o background micnico, explorando a partir de ento
as vias que lhes so prprias, ou seja, trata-se de uma poca de mutao
decisiva que ir lanar os fundamentos do regime da polis,66 assegurando por
essa laicizao do pensamento poltico o advento da filosofia.
nesse contexto em que a polis se caracteriza por distinguir um domnio
pblico, visando ao interesse comum, em oposio aos assuntos privados. As
questes de interesse da comunidade poltica, ou da polis, eram decididas em
plena publicidade, onde tudo era submetido ao olhar de todos.
, portanto, na estrutura social da vida na polis que a cultura grega
atinge a forma clssica. 67 Como forma de vida mais firme e acabada da vida
social, a polis representa um princpio novo. Segundo Werner Jaeger,
Descrever a cidade grega descrever a totalidade da vida dos Gregos68
possvel, diz Jaeger, escrever uma histria da cultura alem abrangendo um
longo perodo sem que se faa qualquer aluso poltica, ao contrrio da
cultura grega, que tinha a polis como marco social da histria de sua
formao.69 Se os gregos foram os criadores da idia de cultura (paidia), diz
Jaeger,70 isso ocorre porque com os gregos que, pela primeira vez, se
estabelece um ideal de cultura de modo consciente. 71
Ao atingir a conscincia de si prprio o povo grego descobrir as leis e
normas objetivas. O conhecimento dessas leis e normas dar ento no s ao
pensamento, mas ao uma segurana anteriormente desconhecida.
Segundo Jaeger, o povo grego tinha a plena conscincia de uma legalidade
65 Cf. Jaeger W., Paidia, So Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 5 66 Cf. Vernant, Jean-Pierre, o advento da polis situa-se entre os sculos VIII e VII, marcando uma verdadeira inveno; nela que os gregos conhecero uma nova forma de vida e de relaes sociais. A polis grega passa por vrias formas e etapas que tero conseqncias no plano intelectual e no domnio das instituies. Op. cit., p. 53. 67 Jaegger, W. op. cit., p. 106 68 Idem, p. 106 69 Ver Jaeger, W., op. cit, p. 107 70 Idem, p 8 71 Ibidem, p. 10
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imanente das coisas, bem como o senso inato do que significa natureza.72 O
prprio conceito de natureza, criado pelos gregos, tem origem na sua
constituio espiritual, pois antes de terem esboado tal idia j eram capazes
de perceber as coisas do mundo no como partes isoladas, mas como um todo
ordenado, em conexo, onde tudo tinha posio e sentido. 73
O povo grego, filosfico por excelncia, tem em sua arte e em sua
poesia uma ligao ntima com a teoria de sua filosofia. 74 No que se refere
histria da literatura grega, no possvel separ-la da comunidade social, de
onde surgiu, e qual se dirigia. do profundo enraizamento na vida
comunitria que depende a fora do esprito grego, logo, O Homem que se
revela nas obras dos grandes gregos o homem poltico.75 Para Jaeger, o fato
fundamental de toda a educao grega estava na humanidade, o ser do
Homem essencialmente vinculado s caractersticas do Homem como ser
poltico.76
Se a paidia era a palavra que significava a cultura, na palavra aret
que chamamos de virtude, que se encontra o tema essencial da formao do
homem grego.77 De importncia fundamental para a compreenso da tica
grega, a arete um conceito que permeia toda a cultura do povo grego da
Antigidade desde Homero, seu o primeiro educador.
Conceito utilizado para designar tanto excelncia humana como a
superioridade dos seres no humanos, a arete o atributo de nobreza, virtude
com sentido de distino. O homem comum e o escravo no eram dotados de
arete, que significava atributo incomum. Vigor e sade so arete do corpo,
assim como a sagacidade arete do esprito. Se na polis o conceito de arete
tinha um sentido de aceitao social, de respeito e de prestgio, em suas
origens a palavra designava um valor objetivo para qualificar algum ou alguma
72 Ibidem. p. 10 73 Ibidem, p. 11 74 Ibidem, p. 12 75 Ibidem, p. 12 76 Ver Jaeger, W., op cit., p. 17 77 Cf. Jaeger, W., a palavra virtude, na sua acepo no atenuada pelo uso puramente moral, e como expresso do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta corts e distinta e ao herosmo guerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega. Basta isto para concluirmos onde devemos procurar a origem dela, s concepes fundamentais da nobreza cavaleiresca que remonta a sua raiz. Na sua forma mais pura, no conceito de arete que se concentra o ideal dessa poca. Ver op. Cit., p. 25
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coisa, ou seja, tratava-se de uma fora que constitua sua perfeio. Vale ento
ressaltar que apenas posteriormente, na polis, a aret passar a ter um carter
de virtude moral.
No fcil para o homem contemporneo do ocidente compreender
como o povo grego da antiguidade clssica alcanou um nvel to elevado de
desenvolvimento onde na polis estavam presentes ao mesmo tempo a arte
tica, a poltica, a religio e o direito, onde todas essas instncias se
entrelaavam, principalmente se levarmos em conta que naquele contexto a
vida pblica era nitidamente separada da vida privada. Se a arete, mesmo com
suas transformaes,78 se constituiu no conceito fundamental da formao do
esprito grego e inerente vida em comunidade, a dike (justia), que em
princpio pode ser definida como direito, tambm outro conceito fundamental
para a vida poltica. Arete e dike so conceitos indissociveis.
Foi em Atenas que a poltica encontrou na democracia a sua expresso
mxima. Porm na Jnia, regio de intenso movimento espiritual e poltico da
Grcia, que possvel encontrar as origens das novas idias polticas. 79 Os
jnios desempenharam um papel importante no desenvolvimento da histria do
esprito grego: o de libertar as foras individuais, inclusive no campo poltico.80
Porm, os Estados jnicos, que eram colnias gregas, no tinham aptido para
organizar essas foras, nem para reforar-se com elas, como aponta Jaeger.
Apesar disso, foi l que as primeiras idias polticas foram introduzidas, dando
origem nova organizao do Estado da metrpole.81 Nos poemas homricos
se encontram os primeiros reflexos da vida na polis jnica.82.
Desde os tempos primitivos at Herclito, atravs de Arquloco e
Anaximandro, a justia como fundamento da sociedade humana estende-se na
literatura jnica.83 Porm, ressalta Jaeger, a estima por parte de poetas e
filsofos pela dike no precede a realidade. Ao contrrio, o reflexo da
78 Refiro-me a transformaes no sentido de que a aret em Homero, significando habilidade, fora, vigor, depois passando a ser atributo de distino aristocrtica, na polis passa a ter tambm um sentido moral, como excelncia de carter. 79 Cf. Jaeger, W., Op. cit, p. 130 80 Idem, p. 131 81 Ibidem, p. 131 82 Quando Homero descreve a defesa de Tria ali esto presentes os traos de uma polis jnica. Cf. Jaeger, W., op. cit. p. 131. 83 Idem, p. 133.
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importncia dos progressos ocorridos na vida pblica desde os sculos VIII at
o incio do sculo VI. Num contexto histrico e cultural onde os nobres
administravam a justia sem leis escritas, o aumento da oposio entre os
cidados livres e aqueles gerou o abuso da magistratura levando o povo a
reivindicar leis escritas. Assim, A palavra direito, dike, se converte no lema da
luta de classes.84
Vale ressaltar que dike a palavra que designa o direito escrito, igual
para todos. Havia, contudo, outra palavra com significado de direito: a palavra
themis. Esta, entretanto, refere-se autoridade do direito, sua legalidade e
sua validade, enquanto dike significa o cumprimento da justia,85 Dike
significava ao mesmo tempo a deciso e o cumprimento da pena, quando se
diz, por exemplo, que as partes contenciosas do e recebem dike. Assim,
tanto o culpado, d dike ao pagar uma indenizao ao lesado, como este
recebe dike pela compensao pelo dano sofrido. Jaeger ressalta que o
significado fundamental de dike equivale aproximadamente, deste modo, a dar
a cada um o que lhe devido.86 interessante notar que a palavra dike se
converteu em grito de combate de uma poca em que se reivindicava a
consecuo do direito de uma classe que o recebia apenas como themis, ou
seja, como lei autoritria. 87 Mais importante ainda o fato de que a palavra
dike possua em sua origem o sentido de igualdade. Isto comprovado pela
obrigao do culpado, numa contenda, de dar compensao equivalente ao
prejuzo causado ao lesado. Este matiz de igualdade na palavra dike, conforme
Jaeger, estar presente no pensamento grego atravs de todos os tempos e
dele depender a prpria doutrina filosfica do Estado nos sculos
posteriores.88
A palavra dike tambm significa justia e pelo nomos (por conveno),
como j foi visto em outra parte, que os homens so capazes de uma vida
84 Isso ocorre atravs de Hesodo, que censura os senhores venais que atropelavam o direito ao realizarem sua funo judicial e isso significa o antecedente necessrio da reclamao universal por leis escritas. Cf. Jaeger, W.,Op. cit. p. 134. 85 Para os gregos, Dike, filha de Themis e Zeus, era a deusa da Justia. Themis, a guardi do juramento dos homens e da lei. Na mitologia romana, Dike a deusa Iustitia, vingadora das violaes da lei. 86 Ver Jaeger, W., op. cit. p. 135. 87 Idem, p. 135. 88 Isso significa que a democracia essencialmente, desde as origens, um estado jurdico.
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justa em comunidade. Porm, com as transformaes decorrentes de uma
nova ordem social e poltica no poderia deixar de ocorrer conflitos resultantes
da oposio entre o nomos da polis e as leis no escritas, as agraphoi nomoi,
leis divinas, eternas e imutveis, leis consideradas superiores pela sociedade,
fundadas na religio e na moral privada. Sob as agraphoi nomoi o universo
mental da civilizao grega foi forjado, logo era de se esperar que a profunda
transformao sofrida pela polis democrtica tambm resultasse num conflito
entre os costumes do oikos com suas leis no escritas e a Atenas democrtica,
caracterizada como politia, como um estado de direito, um conflito entre uma
sociedade de pessoas com uma formao moral de convices, obstinadas
quanto integridade, imutabilidade e superioridade das leis divinas e uma polis
poltica que exige dos cidados uma noo de leis que podem ser modificadas,
porque estabelecidas por conveno e cuja legitimidade estava no homem-
cidado e no em qualquer ordem divina. Isso significa, de alguma forma a
possibilidade de conflito entre a moral e a poltica, justamente num contexto
onde os filsofos, principalmente Aristteles, iro entender poltica e tica como
indissolveis. Porm, melhor seria dizer que se trata de um conflito entre moral
privada e moral pblica e no exatamente entre moral e poltica, simplesmente.
Ningum melhor do que Sfocles, na tragdia Antgona, soube retratar o
conflito entre as leis no-escritas e as leis escritas da polis. Sfocles soube
contrastar em Antgona o conflito entre a moralidade dos indivduos do oikos e
a norma social. Por isso, a tragdia de Antgona sempre atual.
A tragdia grega, tal como a filosofia e a poltica como democracia,
tambm foi uma inveno. Seu surgimento ocorreu no final do sculo VI a.C.,
mas o sculo do apogeu da tragdia foi o sculo V a.C.
A tragdia, gnero literrio apresentado no teatro grego, no mito, mas
dele se alimenta.89 Segundo Jean Pierre-Vernant, a tragdia como gnero
literrio original, apresentado sob forma de espetculo em festas pblicas na
polis, uma forma de expresso que traduz aspectos da experincia humana
at ento desconhecidos, marcando desta forma uma etapa na formao do
89 Cf. Freitag, B. Itinerrios de Antgona: a questo da moralidade. So Paulo: Papirus, 1992, p. 21
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homem interior, como sujeito responsvel.90 A tragdia no simplesmente
uma manifestao artstica do homem grego, mas uma instituio social 91
enraizada na realidade social da polis; todavia, segundo Vernant, no era um
reflexo de sua realidade, mas uma forma de question-la.92
O drama trgico se constitui numa lenda de heri de um passado da
cidade,93 mas de um passado longnquo o bastante a fim de que, entre as
tradies mticas e as novas formas de pensamento jurdico e poltico da
polis, os contrastes fossem percebidos de maneira claramente delineadas. Mas
esse passado longnquo tambm tem que ser percebido de maneira bastante
prxima para que os conflitos de valor sejam ainda dolorosamente sentidos e a
confrontao no cesse de fazer-se.94 Segundo Walter Nestle, citado por
Vernant, A tragdia nasce quando se comea a olhar o mito com olhos de
cidado.95 quando os valores fundamentais da cidade comeam a ser
questionados atravs do debate.96
Pela tragdia trazido cena o debate sobre um passado distante, mas
ainda vivo, para que ela possa cumprir sua funo catrtica, isto , como
expiao, como devida purificao do comunitrio.97 O heri trgico sempre
um tipo excepcional, mas problemtico, situado entre dois universos
irremediavelmente contraditrios. sempre algum que, em ao, se defronta
com uma situao ambgua e conflituosa e sem soluo. No se trata de uma 90 Vernant. J.P.; Vidal-Naquet, P., Mito e tragdia na Grcia antiga. So Paulo: Editora Perspectiva, 1999, p. 1. 91 Em Atenas a tragdia era apresentada no teatro com a presena de todos os cidados, escravos, estrangeiros e mulheres. A instituio de concursos premiava os melhores dramaturgos e para a realizao de tais concursos a cidade colocava todo o aparato judicirio e poltico. A encenao da tragdia, nesse sentido, se dava na forma de um teatro cvico. 92 Vernant. J.P; Vidal-Naquet, op.cit., p. 10 93 Cf. Vernant, J.P., A tragdia tem, como matria, a lenda herica. No inventa nem as personagens nem a intriga de suas peas. Encontra-as no saber comum dos gregos, naquilo que eles acreditam ser seu passado, o horizonte longnquo dos homens de outrora. Op. cit., p.214 94 Idem, p. 10 95 Ibidem, p. 10 96 Conf. Vernant., J.P., a matria da tragdia o pensamento social prprio da polis do sculo V com suas tenses e contradies, principalmente aqueles surgidas do aparecimento do direito e das instituies polticas que a partir de ento iro questionar o plano religioso e moral, antigos valores exaltados pela lenda herica. A tragdia toma os temas e os heris no para glorific-los, mas para discuti-los publicamente em nome de um ideal cvico no teatro grego, como uma espcie de assemblia popular. Op.cit., p.55. 97 A catarse (katarsis) uma maneira de purificao, um modo simblico de tirar a mancha comunitria quando pela encenao trgica os espectadores vivenciam as problemticas das personagens, quase sempre relacionadas vida poltica da cidade. Sobre isso, ver Raquel Gazolla, Para no ler ingenuamente uma tragdia grega. So Paulo: Ed. Loyola, 2001,p. 29.
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luta do bem contra o mal. Vale ressaltar que, segundo Vernant, na tragdia o
heri no mais aquele dos poemas homricos. Na tragdia o heri deixou de
ser um modelo tornando-se no s para si mesmo como para os outros um
problema. Para Vernant a tragdia, alm de uma inacreditvel inovao
artstica, uma instituio social e tambm um meio de colocar a questo do
homem e de seus atos no plano psicolgico. A tragdia, diz Vernant: no
coloca a questo: quem sou eu? E sim: o que vou fazer? Assim so colocadas
as questes de responsabilidade (o agente senhor de seus atos?), da
ambigidade do homem e de seus valores. A tragdia no uma resposta
terica a essas questes, mas uma interrogao, um questionamento. E um
questionamento espetacular.98
Vale ressaltar, todavia, que as questes de responsabilidade na
tragdia no podem ser interpretadas luz de nossa mentalidade moderna. O
sentido trgico de responsabilidade, segundo Vernant, surge quando a ao
humana d lugar ao debate interior, inteno. Porm, esse sujeito ainda no
tem autonomia suficiente para que sua ao baste-se integralmente a si
mesma. Deste modo, o domnio prprio da tragdia, segundo o helenista,
situa-se nessa zona fronteiria onde os atos humanos vm articular-se com as
potncias divinas, onde eles assumem seu verdadeiro sentido, ignorado do
agente, integrando-se numa ordem que ultrapassa o homem e a ele escapa.99
No havia entre os gregos do sculo V a.C. a noo de vontade, nem de
livre-arbtrio. O heri trgico, quando toma uma deciso sempre de qualqu