PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Faculdade Mineira de Direito
Programa de Pós-Graduação em Direito
DIREITOS REAIS, SITUAÇÃO JURÍDICA E TIPICIDADE: Uma Contribuição da Teoria da Situação Jurídica à Evolução do Estado
Democrático de Direito
Débora Fernandes Pessoa Madeira Menjivar
Belo Horizonte 2011
Débora Fernandes Pessoa Madeira Menjivar
DIREITOS REAIS, SITUAÇÃO JURÍDICA E TIPICIDADE: Uma Contribuição da Teoria da Situação Jurídica à Evolução do Estado
Democrático de Direito
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Mineira de Direito, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais como um dos requisitos exigidos para a titulação de Mestre. Linha de pesquisa: Reconstrução dos paradigmas do direito privado no contexto do Estado Democrático de Direito Orientador: Prof. Dr. Adriano Stanley Rocha Souza
Belo Horizonte
2011
FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Menjivar, Débora Fernandes Pessoa Madeira M545d Direitos reais, situação jurídica e tipicidade: uma contribuição da teoria da situação
jurídica à evolução do estado democrático de direito / Débora Fernandes Pessoa Madeira Menjivar. Belo Horizonte, 2011.
80f.. Orientador: Adriano Stanley Rocha Souza Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de
Pós-Graduação em Direito
1. Direitos reais. 2. Estado de direito. I. Souza, Adriano Stanley Rocha. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.
CDU: 347.2
Débora Fernandes Pessoa Madeira Menjivar
DIREITOS REAIS, SITUAÇÃO JURÍDICA E TIPICIDADE: Uma Contribuição da Teoria da Situação Jurídica à Evolução do Estado Democrático de
Direito
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Mineira de Direito, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais como um dos requisitos exigidos para a titulação de Mestre.
Professor Doutor Adriano Stanley Rocha Souza (Orientador) Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Professora Doutora Taisa Maria Macena de Lima Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Professor Doutor Giordano Bruno Soares Roberto Universidade Federal de Minas Gerais
Professor Doutor Leonardo Polli Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Dedico este trabalho à minha família; Jesus, Ian e Liz, e a Deus, que me permitiu mais este passo...
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos mestres, Professores Walsir Edson Rodrigues Junior, Taísa Maria Macena de
Lima e Leonardo Polli pelas lições, incentivo e oportunidades.
Agradeço em especial ao meu orientador Professor Adriano Stanley, que eu muito admiro
pela dedicação à carreira acadêmica, pela disponibilidade aos alunos e, sobretudo, pela
humildade no momento de transferir o robusto conhecimento acumulado.
Aos colegas, principalmente à Luciana Leão, à Juliana Evangelista, à Áurea e à Silvana pelo
apoio, cópias tiradas, e pelo incentivo que me deram nesta caminhada.
À secretária dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade Mineira de Direito/PUC
Minas.
Aos meus pais, José Geraldo e Nora Nei, e à minha irmã, Sabrina, por acreditarem nos
meus sonhos e me ajudarem a realizá-los e pelo amor incondicional, que foi fonte de
inspiração.
Aos meus sogros, Lúcia e Maurinho, pelo carinho, atenção e ajuda de sempre.
Às minhas cunhadas, Tóia e Zizi, pela força e torcida.
À Tia Nata, meus primos Vanessa, Helverson, Duty e Adilson, pela hospitalidade, pelas
risadas e apoio.
Agradeço, de forma muito especial e carinhosa, ao meu marido, Jesus, pelo amor que me
motiva, me alegra, pela dedicação e pela compreensão diante da minha ausência.
Aos meus filhos, Ian e Liz, por serem meu esteio e minha motivação para continuar.
Conquanto se saiba que as supostas essências da teoria geral são fruto de uma atividade
generalizadora e simplificadora, em ordem a objetivos de uma exposição mais fecunda, das
relações que realmente se estabelecem na vida – relações que, nas partes especiais, se colhem
muito mais próximas da seiva; conquanto se saiba o que há de necessariamente escamoteante,
de necessariamente deformante, nessas generalizações, e se não ignore que muitas delas são
bem menos gerais que se pode supor-se, como acontece com a ideia de negocio jurídico,
praticamente sem reflexos em matéria de testamento; conquanto se saiba o que há de
construído, de posto com mero intuito de articulação e de simetria – num sistema que nunca
perdeu a tentação de arquitetura – e, por conseguinte, de normativamente inócuo, nessas
essências ou ligações entre essências; conquanto se saiba, enfim, que o Direito não e uma
contemplatio de essências ou de ideias aéreas, mas uma acao do cotidiano, uma
regulamentação de interesses, que so na vida e a flor da vida se vislumbram [...]
(Orlando de Carvalho, Para uma teoria da relação jurídica civil:
a teoria geral da relação jurídica)
RESUMO
No presente trabalho, buscou-se analisar a teoria dos direitos reais e adequá-la aos ditames e
princípios do Estado Democrático de Direito. Vislumbrou-se, nesta análise, que os direitos
reais ainda são tratados sob a estrutura de uma relação jurídica entre o titular dos direitos reais
e a coletividade e, além disso, são vistos sob a ótica de um rol taxativo descrito no artigo 1225
do atual Código Civil. Tendo em vista que o nascimento da teoria relacional deu-se na Escola
dos Pandectistas, na Alemanha e influenciou a criação do BGB, em uma estrutura jurídica
positivista, neste trabalho foi analisada uma nova forma de vislumbrar os direitos reais que
não abstratamente pela relação jurídica. A teoria situacional, desta forma, foi vista como uma
maneira mais concreta de analisar as situações jurídicas reais, desconsiderando, desta maneira
a figura abstrata do sujeito passivo universal. Ademais, partindo-se da idéia dos direitos reais
como uma situação jurídica, foi analisada a característica da tipicidade, inerente aos direitos
reais desde a sua concepção liberal. Propusemos, ao final, uma nova visão da tipicidade, que
não se desse simplesmente da enumeração do artigo 1225, mas da análise dos caracteres que
identificam um direito subjetivo como real.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos Reais. Situação Jurídica. Estado Democrático de Direito.
Tipicidade.
ABSTRACT
In the present work, one searched to analyze the theory of the rights in rem and to adjust it it
the ditames and principles of the Democratic State of Right. It was glimpsed, in this analysis,
that the rights in rem still are treated under the structure of a legal relationship enter the bearer
of the rights in rem and the collective and, moreover, are seen under the optics of a described
taxing roll in article 1225 of the current Civil Code. In view of that the birth of the relationary
theory was given in the School of the Pandect ones, in Germany and influenced the creation
of the BGB, with positivistas interpretativos parameters and in a positivista legal structure, in
this work a new form was analyzed to glimpse the rights in rem that not abstract for the legal
relationship. The situacional theory, in such a way, was seen as a more concrete way to
analyze real the legal situations, disrespecting, in this way the abstract figure of the universal
passive citizen. Ademais, breaking itself of the idea of the rights in rem as a legal situation,
was analyzed the characteristic of the vagueness doctrine, inherent to the rights in rem since
its liberal conception. We considered, to the end, a new vision of the vagueness doctrine, that
not if of this simply of the enumeration of article 1225, but of the analysis of the characters
that identify a subjective right as real.
KEY- WORDS: Rights in rem. Legal situation. Democratic state of Right. Vagueness doctrine.
SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9 2 A INTERFERÊNCIA DA EVOLUÇÃO DOS DIREITOS REAIS NA CONSTRUÇÃO DO ATUAL ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO............. ...................................... 16 3 TEORIA DA RELAÇÃO JURÍDICA ............................................................................... 31 3.1 Origem e contextualização da teoria relacional ............................................................. 33 4 TEORIA DA SITUAÇÃO JURÍDICA .............................................................................. 40 4.1 Precursores da teoria........................................................................................................ 42 4.2 Conceito e fundamentos da situação jurídica ................................................................ 46 4.2.1 O fato jurídico e a qualificação jurídica ........................................................................ 46 4.2.2 A situação jurídica e sua classificação .......................................................................... 47 5 DIREITOS REAIS E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ............................ 51 5.1 Caracteres dos Direitos Reais .......................................................................................... 51 5.1.1 Absolutismo ..................................................................................................................... 51 5.1.2 Sequela ............................................................................................................................ 52 5.1.3 Preferência ...................................................................................................................... 52 5.1.4 Registro e tradição .......................................................................................................... 53 5.1.5 Tipicidade ........................................................................................................................ 54 5.2 Adequação dos direitos reais à realidade do Estado Democrático de Direito ............ 56 6 DIREITOS REAIS: SITUAÇÃO JURÍDICA E TIPICIDADE .. .................................... 62 6.1 Direitos reais como uma situação jurídica ..................................................................... 62 6.2 Caracterização dos direitos reais para além da tipicidade ........................................... 71 7 CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 74 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 78
9
1 INTRODUÇÃO
Ao trazer à baila alguma discussão sobre relação jurídica há se de ressaltar o
saudosismo dos juristas pátrios por toda dogmática do Direito Civil que foi construída após a
Revolução Francesa, principalmente pelos juristas europeus. A maioria dos juristas pátrios
discute a visão do direito civil através do conceito de relação jurídica, parte-se deste conceito
pandectista inelutável para analisar os problemas e os fatos jurídicos.
A teoria relacional, que vislumbra o direito civil a partir da estrutura da relação
jurídica, entende que o direito civil, em todos os seus meandros, pode ser visto sob à ótica de
uma relação: todas as relações privadas que são juridicamente relevantes são estruturadas pela
relação jurídica.
Esta idéia do direito civil remonta da Escola dos Pandectistas, na Alemanha, quando o
mundo passava pela ‘segunda onda’ do Movimento da Codificação.
Após a Revolução Francesa e a consequente promulgação do Código Civil Francês,
que exerceu enormes influências nas codificações oitocentistas, o Código Civil Alemão – 1º
de janeiro de 1900 - iniciou uma nova onda de codificação, que exerceu influência relevante
nas codificações que lhe sucederam.
Os pandectistas, juristas que representaram a base teórica do Código Civil Alemão,
entendiam que, ao contrário da sistemática utilizada no Código Civil Francês – onde o código
iniciava com as matérias jurídicas (obrigações, família e sucessões) -, um código civil deve
preceder de uma ‘Parte Geral’.
A parte geral do Código Civil Alemão trazia, como o próprio nome indica, regras
gerais, que serviriam de modelos para possibilitar a interpretação das regras jurídicas
específicas. Uma das principais criações destes ‘moldes’ contidos na parte geral foi a relação
jurídica que, como mencionado, seria uma estrutura padronizada para todas as relações
privadas relevantes juridicamente.
Tendo o modelo positivado modelos para as relações que julga relevantes, ou dignas de regulação e proteção, só pode haver direito subjetivo [...] no âmbito dessas relações. O Estado-legislador, por meio de tal proceder, impõe molduras jurídicas em que pretende não só abarcar as potenciais relações travadas no mundo dos fatos, mas dirigir o comportamento social ao preenchimento de tais molduras (FACHIN; RUZYK. 2003, p. 93).
A primeira codificação brasileira – o Código Civil de 1916 - foi fortemente
influenciada pelo raciocínio pandectista, base do pensamento liberal. Sendo assim, o Código
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Civil era dividido em parte geral e partes especiais e, logo no art. 1º do antigo código, havia
menção expressa da adoção da teoria relacional.
O Código Civil de 2002, apesar de ter sido encomendado em 1969 (ROBERTO, 2008,
p. 66), quando o Brasil ainda era constituído um Estado Social1, foi promulgado em 2002,
quando a Constituição da República de 1988 já havia instaurado o atual Estado Democrático
de Direito.
Em que pese este fato, a estrutura do Código Civil atual ainda remonta da técnica
pandectista, o legislador manteve a ‘Parte geral’, apesar de não ter mantido expressamente a
adoção da teoria relacional.
Dessa forma, os juristas que interpretam o direito civil a partir da visão do Código de
2002, ainda vislumbram as relações privadas por meio da estrutura da relação jurídica. E,
dessa maneira, as discussões são as mesmas no que se refere aos elementos que compõe uma
relação jurídica.
Para a teoria clássica, tendo como expoente Miguel Reale (2004, p. 214), a relação
jurídica é uma relação social caracterizada pela presença de um sujeito ativo, outro passivo e
um objeto, sendo que os sujeitos da relação devem ser determinados ou, no mínimo,
determináveis. Ademais, explicita a necessidade do vínculo jurídico entre os sujeitos, ou seja,
a relação deve corresponder a uma hipótese normativa.
Não há discussão acerca da aplicabilidade da teoria mencionada acima em se tratando
de uma relação jurídica obrigacional2, onde os sujeitos são determinados ou facilmente
determináveis. Aliás, a indeterminação “ad eternum” de um dos sujeitos descaracteriza a
própria relação, vez que esta se torna inexistente3.
Lado outro, em se tratando de uma relação jurídica de direito real, a doutrina também
visualiza a aquisição de um direito real por um titular através da teoria relacional e traz duas
correntes para justificar esse tipo “sui generis” de relação: a teoria clássica (ou realista) e a
teoria moderna (ou personalista).
1 Na verdade, em 1969, o Brasil passava por um período de transição. A CF de 1967 tinha a pretensão de
redemocratizar o Estado Brasileiro, não teve êxito neste propósito, pois que com a promulgação de uma emenda constitucional em 1969, a Junta Militar retomou o poder. O fato é que somente a CF de 1988 é que pôs fim ao período autoritário vivenciado desde 1964 (MENDES; COLEHO; BRANCO, 2003, p. 177-179).
2 Relação jurídica de direito obrigacional caracteriza-se pela existência de um devedor (sujeito passivo) e de um credor (sujeito ativo), de forma que este possa exigir daquele um comportamento específico que seja caracterizado por uma prestação de dar, fazer ou não fazer. Assim o termo obrigação confere um dever específico que vincula determinada pessoa em relação à outra.
3 O negócio jurídico - que pressupõem uma relação jurídica - , para ser considerado existente, precisa dos seguintes elementos: sujeitos, objeto, forma e vontade. A indeterminabilidade de um dos sujeitos, por si só, torna o negócio jurídico e, conseqüentemente a relação jurídica, inexistente; inócua.
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A teoria realista defende a idéia de que a relação jurídica sustenta-se pela existência de
apenas dois elementos - o titular e a coisa -, através de um poder direto e imediato daquele
sobre esta. Adepto desta teoria e vislumbrando a possibilidade de uma relação jurídica entre
um sujeito e uma coisa, Silvio de Salvo Venoza assevera que “os direitos reais traduzem
relação jurídica entre uma coisa, ou conjunto de coisas, e um ou mais sujeitos, pessoas
naturais ou jurídicas”. (VENOZA, 2005, p. 3).
A Teoria personalista, por sua vez, defende que a relação jurídica de direito real ocorre
entre um sujeito ativo – o titular da coisa – e um sujeito passivo universal, compreendendo
todas as demais pessoas, de forma que, enquanto o sujeito ativo exerce o poder de fato sobre a
coisa, o sujeito passivo deve abster-se em relação a ela. Caio Mário Pereira, neste sentido,
enuncia:
No direito real existe um sujeito ativo, titular do direito, e há uma relação jurídica, que não se estabelece com a coisa, pois que esta é o objeto do direito, mas tem a faculdade de opô-la erga omnes, estabelecendo-se desta sorte uma relação jurídica em que é sujeito ativo o titular do direito real , e sujeito passivo a generalidade anônima dos indivíduos. (PEREIRA, 1999, p. 02-03).
Essa última teoria, a personalista, vem há muito satisfazendo a doutrina e os
jurisconsultos como um todo, mas o fato é que se trata de uma teoria falha, incompleta,
quando é analisada em todos os seus aspectos.
Partindo, então, da idéia de um sujeito passivo universal e conseqüentemente,
classificando o direito real como uma relação jurídica, é que surgiram questionamentos sobre
algumas peculiaridades dessa suposta relação jurídica: há necessidade de um sujeito passivo
universal para configurar a ingerência sócio-econômica do titular de direito real sobre a coisa?
E mais, será que não se poderia incluir um sujeito passivo universal a cada direito subjetivo?
Além disso, foi necessária a análise deste dever de “abstenção da coletividade” em
relação ao direito subjetivo: esta seria uma característica inerente aos direitos reais ou estaria
presente em todo e qualquer direito subjetivo?
Portanto, no presente trabalho, buscamos fomentar a discussão da eficácia desse
dogma jurídico da “relação jurídica de direito real” e estabelecer um novo paradigma para
determinação da natureza jurídica desse direito. Analisamos se vislumbrar o direito civil,
especificamente os direitos reais, sob à ótica da teoria relacional é condizente com o momento
jurídico-social em que se vive: o Estado Democrático de Direito.
O Direito, nos clássicos dizeres de Miguel Reale, é um fato social e, desta forma, não
pode ser vislumbrado como algo que seja imposto ou que esteja em apartado da sociedade. Ao
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contrário, a regulamentação jurídica e a interpretação dos institutos jurídicos deve ser um
retrato da sociedade em que se está inserida.
No Brasil, desde a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, vive-se a realidade de um Estado Democrático de Direito, fundado por uma densidade
principiológica e valorativa em que “o modo que o poder de auto-regulamentação concedido
aos cidadãos esbarra em limites impostos pelo bem comum e pela solidariedade”
(RODRIGUES; RUGER, 2007, p. 10), tendo por finalidade a dignificação da pessoa humana.
Todavia, em que pese o fato de se vivenciar, jurídica e socialmente um Estado
Democrático de Direito, a partir do surgimento do Estado Liberal; cujos ideais eram
liberdade, igualdade e fraternidade, a função do Estado permeou um caminho longo e de
rupturas jurídicas, que justificam o tema desenvolvido.
A Constituição Francesa de 1791 representou o início do Estado Mínimo, em que não
cabia ao constituinte a legislação das relações privadas, primava-se pela liberdade de
contratação e pela igualdade perante a lei.
A partir dessa realidade, Napoleão Bonaparte promulgou o Código Civil Francês:
verdadeiro símbolo de “constituição do direito privado”. As relações privadas foram
centralizadas no Código Civil e, ao Estado, cabia a não intervenção: nascia aí o Estado
Liberal.
Neste contexto, nos dizeres de Janice Silveira Borges:
Os direitos do homem liberal, na esfera pública, consistiam em direitos opostos ao Estado; isto é, eram direitos contra o Estado para impedir que este interferisse na liberdade individual (direitos defensivos). [...] Neste contexto, [...] o termo pessoa passou a ser identificado com a expressão ‘sujeito de direito’, um sujeito simulacro, abstrato, descarnado das concretas pessoas. (BORGES, 2007, p. 18).
No contexto do Estado Liberal, este justificava-se na autonomia da vontade, pode-se
dizer até que no contrato, visto que os indivíduos, considerados livres e iguais – formalmente
-, viam-se com força jurídica para realização autônoma de suas necessidades, realidade que se
confundiu com democracia.
Assim, “a personalidade era reconhecida aos que tinham autonomia, ou seja, aos que
não estavam sob o jugo de um dominus, no direito das coisas, de um pater famílias, no direito
de família.” (RODRIGUES; RUGER, 2007, p. 4).
A pessoa era vista enquanto inserida numa relação jurídica como sujeito de direito,
como contratante, proprietário, marido, pai de família, entre outras designações. A igualdade e
a liberdade garantidas por lei – formais - conferiam ampla movimentação contratual e, por
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isso, “fundamentavam-se na propriedade privada”, o sujeito deveria ser detentor de algo para
ser sujeito de direito.
Ora, aí iniciou-se um verdadeiro “fetiche” do direito privado, especificamente do
Direito Civil, pela propriedade – especificamente propriedade imóvel – e conseqüentemente
pelos Direitos Reais, a própria autonomia da vontade designada no liberalismo era uma
espécie de propriedade, visto que “esse poder de auto-conformação do ser no mundo é
conseqüência do reconhecimento do status de pessoa pelo meio social [...]: a sociedade
dividia-se entre sujeitos-proprietários e indivíduos-propriedade.” (RODRIGUES; RUGER,
2007, p. 4).
Os direitos reais, por representarem o porto seguro de toda esta liberdade, visto que
regulamentavam a garantia de se continuar no contexto desta exacerbada liberdade, acabaram
por se tornar, dentro do direito civil, um dogma cerceado de garantias individuais:
perpetuidade, taxatividade, legalidade, entre outras.
Os proprietários, então, para gozar do direito de liberdade, como mencionado, tinham
garantias outorgadas pelo Estado e regulamentadas por ele: a taxatividade, neste contexto,
determinava que apenas nas hipóteses elencadas por lei é que se poderia falar em direitos
reais.
Ao mesmo tempo e considerando que os proprietários eram pessoas – no sentido de
sujeitos de direito – e como tal deveriam estar inseridos numa relação jurídica, os direitos
reais, como visto acima, foram vislumbrados como uma relação entre o titular – sujeito de
direito – e a coletividade, sujeito passivo universal.
Ocorre que o liberalismo previu as situações de fato em abstrato, regulamentando
sujeitos e não pessoas, ficando, desta forma, distante da concreta realidade, relegando do
Direito àqueles que não estivessem previstos nestas hipóteses legais abstratas, o não-
proprietário, o não-contratante, etc.
Segundo, Luiz Edson Fachin e Carlos Esduardo Pianovski Rusyk, falando sobre a
estrutura da relação jurídica: “Os direitos, nessa racionalidade, não surgem por conta da
existência concreta da pessoa humana dotada de dignidade – e sujeita a necessidades -, mas,
sim, pela sua inserção e um modelo de relação jurídica.” (FACHIN; RUZYK, 2003, p. 95).
O Estado Liberal acarretou, desta maneira, desigualdades de fato e, visando a
concretude da solução de impasses jurídicos, com vistas à Justiça, deu-se a ruptura do
liberalismo, o que fez surgir o Estado Social.
Nota-se que o Estado Social, diante de uma realidade social totalmente fragilizada
(sociedade mundial do pós-guerra), passou a intervir, novamente, nas relações privadas.
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No Estado Social, manteve-se a centralidade do Código Civil, mas foram aos poucos,
para suprir a necessidade social vivenciada na interface das relações privadas, surgindo os
microssistemas. O Estado modificou-se, as normas que a princípio regulamentavam o Direito
Público, foram reestruturadas, as funções do Estado passaram a ser reanalisadas.
Apesar da reestrutura, radicais e insuficientes foram o Estado do liberalismo e o do
bem-estar social, um por não intervir e deixar sobressair as desigualdades, outro por intervir
demais, a ponto de não permitir a livre promoção da pessoa humana.
Passada esta breve contextualização do tema, considerando-se o Estado Democrático
de Direito, tem-se que, quanto à relação jurídica de direito real, “a doutrina moderna passa a
preocupar-se mais com os poderes, as faculdades, as restrições e as obrigações (meio-
ambiente, vizinhança, solidariedade social) que dizem respeito ao titular do direito real, do
que a formalidade abstrata da relação jurídica universal”. (GONDINHO, 2001, p. 41).
Fato é que a densificação de princípios trazidos pela CF/88 reflete, hoje, em
reconstrução dos paradigmas do direito privado e, por óbvio, também dos direitos reais.
Necessário, então, explicitar que a pretensão deste trabalho foi reconstruir a teoria do
direito, coadunando com a época em que se vive juridicamente, o que não significou, de
forma alguma, a construção de conceitos e bases fixos. Entendemos que a forma de pensar os
direitos reais pode se adequar ao Estado Democrático de Direito, mas não por uma
formulação absoluta, infalível e imutável.
Nenhum direito ou ramo do direito admite a paralização no tempo: mesmo que as normas não mudem, muda o entendimento das normas, mudam os conflitos de interesses que se têm de resolver, mudam as soluções de direito, que são o direito em acção. Nenhum direito é definitivamente factum: é sempre alguma coisa in fieri. (CARVALHO, 1981, p. 50-51).
Neste trabalho, na busca pela identificação da natureza jurídica dos direitos reais,
acredita-se que mais viável é a sua estrutura como situação jurídica visto que, assim, pode o
direito real ser visto e analisado a cada caso, desde que presente a ingerência de um sujeito
sobre uma coisa: deixa-se de lado a abstração jurídica para buscar a sua concreção.
Não cabe mais, a partir da releitura dos direitos reais à luz do Estado Democrático de
Direito, a estrutura abstrata de um sujeito passivo universal, não que não se abster-se a
coletividade em relação ao direito real alheio, mas este dever decorre do Princípio de Não
Violação de Direito Alheio e da Solidariedade e não da relação jurídica de direito real.
15
Lado outro, discutiu-se, após a conclusão acerca da natureza jurídica dos direitos reais,
a melhor forma de interpretar a característica da taxatividade dos direitos reais no contexto do
direito atual.
Importante considerar que não se pretendeu retirar do Estado a regulamentação dos
direitos reais, visto que, concordando com o que enuncia Adriano Stanley (SOUZA, 2007, p.
222-223), os direitos reais possuem características que permitem ao Estado maior controle,
mas com o intuito de assegurar interesses coletivos.
Então, noutra tônica, discutimos e analisamos se outras situações como o direito de
retenção, o direito de preferência descrito na Lei do Inquilinato ou até mesmo a posse podem
ser considerados direitos reais não apenas por estarem ou não enumerados no rol destes
direitos, mas por serem, em essência, direitos reais. Assim, seriam estendidas a outros
direitos, não elencados no referido rol, as características e as garantias reais, além de, sendo
desta forma reconhecidos, poder o Estado controlá-los na mesma maneira, exigindo-lhe
registro, por exemplo.
Importante elucidar que não foi objeto deste trabalho a discussão da posse ou do
direito de retenção ou preferência e sim a análise da tipicidade dos direitos reais, como ela
deve ser interpretada.
José de Oliveira Ascensão
[...] sustenta que a tipicidade diz respeito tão-somente ao monopólio reservado à lei para a criação dos direitos reais, nada impedindo que, uma vez criado pela lei, um direito seja qualificado como real, nada obstante não tenha recebido essa epígrafe, mas em razão do regime a que é submetido (ASCENSÃO, 2000, p. 156-157).
Por derradeiro, ressalta-se que buscamos, com este trabalho, a reconstrução dos
paradigmas dos direitos reais, que ainda parecem inseridos, no que se refere à sua natureza
jurídica e à falta de flexibilidade da sua taxatividade, inseridos em outro contexto, que não o
do Estado Democrático de Direito.
16
2 A INTERFERÊNCIA DA EVOLUÇÃO DOS DIREITOS REAIS NA CONSTRUÇÃO DO ATUAL ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A Constituição da República de 1988 instituiu no Brasil o atual Estado Democrático
de Direito, realidade jurídico-social ainda em construção, mas que é marcada pela realização
dos Direitos Fundamentais, através da participação do povo e visando a proteção e a
promoção da pessoa humana.
Esta mudança de paradigma constitucional é uma realidade não somente brasileira,
mas de vários outros Estados, que já passaram pela experiência de outros tipos estatais, em
outros contextos históricos e sociais.
No Brasil, entretanto, ocorreram inúmeras influências internacionais, principalmente
da cultura européia, que fez que passássemos, juridicamente, pelos estados liberal, social e
democrático, o que determinou fortes influências no direito privado e na determinação de seus
princípios.
Atualmente, pode-se afirmar que o Direito Civil encontra-se em crise – crise no
sentido de superação de paradigmas. Os três principais eixos do Direito Privado deste a
instituição do Estado Liberal – autonomia da vontade, propriedade e família - estão passando
por modificações profundas; está ocorrendo também uma crise na sistematização do Direito
Privado e na sua interpretação.
Atualmente, no contexto do atual Estado Democrático de Direito, não cabe mais a
autonomia da vontade4, no sentido de que pela vontade os sujeitos podem negociar sem
limites; mas sim a autonomia privada. Houve a ruptura do voluntarismo e “o substrato da
autonomia passou a se assentar no reconhecimento jurídico de um ato volitivo compatível
com o interesse público, a lealdade e boa-fé.” (RODRIGUES; RÜGER, 2007, p. 06).
Estas modificações decorrem da evolução das funções do Estado não somente no
âmbito interno – no Brasil -, mas também no âmbito internacional, o que representou,
também, fortes influências no direito interno.
Falar sobre Estado, sobre as suas funções ou sobre o tipo de Estado em que se
constituem as normas jurídicas, exige o estudo de apontamentos evolutivos e a
contextualização dos três principais tipos de Estado, ao longo da história mundial e nacional:
Estado Liberal, Estado Social e Estado Democrático de Direito.
4 A vontade individual era reconhecida como fonte de poder. O contexto da autonomia da vontade era de “uma
comunidade a qual era reconhecida a qualidade de personas, iguais e autônomas, a vontade passou a ser substrato das relações negociais”. (RODRIGUES; RÜGER, 2007, p. 05).
17
Todavia, o que se pretende com este intróito evolutivo, é explanar o que os Direitos
Reais, no decurso do tempo, têm contribuído e podem contribuir para o estabelecimento do
atual Estado Democrático de Direito.
Segundo Nina Beatriz Ranieri “A complexidade das funções do Estado
contemporâneo, é sabido, constitui uma maneira de justificar, in concreto, a legitimidade do
poder”. (RANIERI, 2001, p. 135). Portanto, a modificação do Estado e da sua relação com a
sociedade, justifica a época em que ele se passa e visa a justificação e manutenção do poder
estatal.
Noutro giro, importante lembrar que a modificação a estrutura do Estado, faz
modificar também as bases do Direito Privado, especificamente do Direito Civil, visto que a
crise estatal representa não o seu declínio, mas uma mudança de paradigmas, a superação do
paradigma anterior e, por via de conseqüência, uma adaptação à nova realidade social.
Iniciando o nosso estudo pelo Estado Liberal, este foi resultado de uma formação
absolutista, em que o poder concentrava-se nas mãos do príncipe. Na verdade, o liberalismo
resultou-se do declínio do Estado Moderno.
A Idade Moderna (entre a queda de Constantinopla – 1453 – e a Revolução Francesa
de 1789) caracterizou-se pela presença de
[...] importantes processos de natureza política, econômica, social, religiosa e cultural que nela se verificaram, dos quais os mais importantes, com profunda repercussão no Direito Privado, foram a revolução comercial, a reforma religiosa, o desenvolvimento dos estados nacionais e os governos absolutos, a revolução intelectual do racionalismo e o desenvolvimento do individualismo. (AMARAL, 2008, p. 153).
No contexto do absolutismo do Estado Moderno, inicialmente a sociedade era dividida
verticalmente conforme a casta social que se ocupava, e na figura do príncipe, sito na casta
superior hierarquicamente, concentrava o poder decisório, justificado por esta estrutura
absolutista.
Com a evolução do Estado Moderno, a sociedade passou a se organizar de forma
horizontal, em razão dos interesses de uma classe burguesa de se ascendia economicamente e,
desta forma, o que antes era apenas público, passou a repartir os brios com o privado.
É que no Estado Absoluto – Moderno -, os interesses do Estado eram apenas públicos,
o príncipe reinava em conformidade com o que ele achava relevante e importante, não se
falava em proteção ou preocupação, por parte do Estado, com os interesses privados.
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O fato é que uma nova classe social surgiu, a classe burguesa, e passou a ter interesses
próprios, que não coadunavam com os interesses do Estado, ela pretendia autonomia – em
relação ao Estado -, para buscar a realização dos seus próprios interesses: houve um
distanciamento entre o público e o privado, entre o político e o social.
Neste contexto, a noção de poder também passou a ser alterada. É que toda vez que se
remetia à noção de poder, no contexto do Estado Moderno, não havia dúvidas na resposta que
remetia poder ao Estado. Porém, o Estado não pode inibir a composição de interesses por
particulares e era o que estava ocorrendo com a classe burguesa, que passou a travar relações
privadas, em interesse privatístico.
Em oposição ao direito do Estado, em que a noção-chave é o Estado, (ou os comandos ou prescrições com que se dirige aos indivíduos), a noção-chave é aqui a de pessoa (ou o seu poder de gerir autonomamente os seus interesses). (CARVALHO, 1981, p. 31).
Ainda no contexto da superação do Estado Moderno, a revolução comercial foi um
fator de fundamental importância na evolução social, visto que ela foi o processo econômico
do qual originou-se o capitalismo. A revolução comercial fez surgir uma nova classe social, a
burguesia, que foi peça chave para modificações políticas, econômicas e jurídicas na estrutura
européia moderna.
Com a expansão do comércio desenvolveu-se uma nova classe, a burguesia mercantil, que iria ter grande papel no processo de evolução política, econômica e jurídica da sociedade européia. Política porque ‘desejosa de paz e estabilidade, necessárias ao bom andamento dos negócios, favoreceu a centralização do governo e o fortalecimento do poder real’. Econômica, por ser a base de criação e desenvolvimento do capitalismo. E jurídica porque com ela se consagrava o individualismo como princípio fundamental da ordem jurídica moderna. (AMARAL, 2008, p. 153).
Além da revolução comercial, outros fenômenos foram, de igual maneira, importantes
no Estado Moderno, como a reforma religiosa – protestantismo em 1517 – e o surgimento do
Estado – nação, fenômenos que fizeram fortalecer o poder do príncipe e, por conseqüência, o
absolutismo.
Ocorre que, também no Estado Moderno, ocorreu um progresso da filosofia e da
ciência, a Revolução Intelectual, que deu origem ao racionalismo e ao individualismo.
O individualismo defendia que as forças políticas e jurídicas de um Estado devem
colocar-se frente aos interesses particulares.
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[...] a autoridade pública não deve perverter o resultado livre do jogo das atividades econômicas individuais, mas deve reduzir sua intervenção no domínio econômico ao mínimo, concentrando-se a garantir a cada um a liberdade de trabalho e do comércio e o benefício da propriedade de seus bens (individualismo econômico), ou ainda, que o indivíduo é a única finalidade de todas as regras do direito, a causa final de toda atividade jurídica do Estado ou, também, a fonte das regras de direito ou de mutações jurídicas (individualismo jurídico. (AMARAL, 2008, p. 154).
Bom, de todos estes fenômenos, o absolutismo fez-se substituir pelo liberalismo –
Estado Liberal -, principalmente após a Revolução Francesa e tendo como antecedente
imediato o “Bill of Rights inglês de 1689, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
de 1789.” (AMARAL, 2008, p. 155).
O crescimento dos interesses organizados, aliado à conscientização dos valores individuais e à continua e progressiva erosão do poder absoluto do rei, favorece uma nova concepção de Estado, com poderes funções limitados pela mediação jusnaturalista e contratualista. (AMARAL, 2008, p. 138).
O Estado liberal surge imbuído na idéia de que cabe ao Estado as coisas públicas,
organizacionais e não lhe é permitido, pelo fato de não lhe competir, a intervenção no
mercado, na esfera social; nos interesses privados.
[...] ao Estado compete um domínio residual, que compreende as ações relativas à soberania e à ordem pública. Todas as demais áreas da vida social, notadamente no que concerne à economia, são franqueadas pela iniciativa privada, abstendo-se o Estado de qualquer interferência no funcionamento do mercado”. [...] “Aí se encontra as bases do Estado mínimo, em respeito à autonomia social e à redução das funções estatais, asseguradas pelo Estado de direito e pelo princípio da liberdade do mercado, que se traduzem, em termos jurídicos, no dogma do caráter subsidiário da intervenção estatal. (AMARAL, 2008, p. 139).
No Estado Liberal, também dito Estado de Direito, é caracterizado:
a) império da lei, no sentido de que todos os poderes dela derivam, como expressão de vontade geral. O primado da lei é a característica fundamental, subordinando-se a lei à Constituição, conforme a hierarquia das normas; b) divisão dos poderes, respectivamente, legislativo, judiciário e executivo, a que correspondem três momentos do processo jurídico: formação, aplicação e execução das leis [...]; c) generalidade e abstração das normas jurídicas; d)distinção entre o público e o privado; [...]; e) crença na completude e neutralidade do ordenamento jurídico; f) concepção do homem como um abstrato sujeito de direito. (AMARAL, 2008, p. 156).
Por fim, o “Estado de Direito é o Estado da legalidade e da liberdade dos indivíduos,
livres e iguais” (AMARAL, 2008, p. 156). No Estado Liberal, é possível notar que igualdade
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jurídica significa direitos iguais e igualdade perante a lei e, em razão da não intervenção
estatal, o público é diferente e oposto ao privado.
No Direito Privado, o surgimento do Estado Liberal e o distanciamento entre o direito
público e privado fez surgir o ‘Movimento da Codificação’, com início no século XVIII. A
idéia é que o Código, fruto do racionalismo jurídico, representaria um corpo unitário, um
sistema de regras privadas para que a burguesia pudesse exercer suas transações,
seguramente.
“Um código, ao contrário, dirige-se a uma planificação global da sociedade através da
reordenação sistemática e inovadora da matéria jurídica” (ROBERTO, 2008, p. 28).
A codificação traria facilidade de conhecimento dos direitos, sistematizaria o saber
jurídico, facilitaria a interpretação em conformidade com o ditames positivistas (interpretação
lógico-dedutiva e sistemática do Direito).
O principal pensador da codificação foi Jeremy Bentham, que “acreditava na
possibilidade de estabelecer leis racionais válidas para todos os homens [...]. [...] para ele, essa
codificação deveria ser universal”. (ROBERTO, 2008, p. 23)
O movimento da codificação teve por primeiras elaborações relevantes o Código da
Prússia – em 1794 – e o Código da Áustria – 1786, completado em 1811. Todavia, este
movimento teve seu ápice com o Código Civil de Napoleão – o Código Civil Francês.
O direito da Revolução Francesa afeiçoou ao seu individualismo o sistema das Institutas – personae, res e actiones – e construiu o seu Code Civil na tal feição antropocêntrica, naquele jeito de biografia humana, que foi depois tradicional neste domínio: do homem e dos seus direitos partia-se para o modo de realização dos direitos. [...] O que se pode dizer e foi dito é que o homo juridicus do Código de Napoleão era, não tanto o homem abstrato dos enciclopedistas, quanto o burguês já devorado pelas suas possessões, na expressão de MARCEL, o burguês sedentário e proprietário, um homem que se resume todos os seus direitos a possuir e saber possuir. [...] Foi, em suma, a epopeia burguesa do direito privado – o código típico para o burguês, a sua família e o seu patrimônio. (CARVALHO, 1981, p. 32-35).
O Código Civil Francês foi modelo seguido em diversos países europeus e também
entre os países latino-americanos. O fato é que “o sucesso do Código francês é, na verdade, o
sucesso da idéia de codificação.” (ROBERTO, 2008, p. 36).
Além deste importante Código, o BGB – Código Civil Alemão -, também representou
influências no mundo. Na Alemanha, buscava-se um código para criação de um direito civil
geral alemão e , por consequência, para o fortalecimento global da consciência da nação.
(ROBERTO, 2008, p. 37).
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Savigny, um dos grandes teóricos da codificação alemã, entendia que o direito
codificado seria uma maneira artificial de impor regras jurídicas – partiria-se da norma para se
criar o ‘espírito do povo’.
O Código Civil alemão – de 1º de janeiro de 1900 -, também exerceu forte influência
nas codificações realizadas no séc. XX.
No Brasil, não vivemos socialmente toda esta evolução, mas a idéia nos foi importada
e, tardiamente, o Código Civil Brasileiro foi promulgado, em 1916 - com fortes influências da
codificação alemã e também da francesa - o que representou aqui, o reflexo do Estado
Liberal5 instaurado com a CF de 1891.
Em sede os direitos reais, o movimento da codificação e a promulgação do CC/16,
somente coadunou os direitos reais com as pretensões liberais.
A propriedade, um dos principais pilares do Direito Privado e, por via de
conseqüência, dos direitos reais, por ser a principal fonte de riqueza e de poder da classe
burguesa, precisava estar longe da autonomia da vontade.
Desta maneira, desde o Código Napoleônico e também no Código Civil alemão, com
reflexos claros no Código Civil Brasileiro, ela foi erguida como absoluta e perpétua.
Além disso, ao contrário das relações obrigacionais, em relação aos direitos reais não
havia de se falar em autonomia, eles deviam ser categoricamente elencados pela regra jurídica
através da técnica da tipicidade. Segundo André Osório Gondinho: “o legislador
revolucionário, ao mesmo tempo em que consagrava a mais ampla liberdade no campo dos
direitos obrigacionais, tentava impor um rol preconcebido de direitos reais.” (GONDINHO,
2001, p. 23).
Dessa forma, a noção dos direitos reais, como inseridos numa estrutura fechada, sem
flexibilidade ou autonomia, mas ao mesmo tempo como um ‘porto seguro’ à burguesia, que
ainda tinha na propriedade a principal fonte de produção, veio desde a Revolução Francesa e,
no Brasil, esta estrutura foi codificada em 1916.
[...] na sociedade liberal do século XIX a propriedade, na sua feição funcional, era interpretada como instrumento de afirmação da inteligência e da liberdade humana com base no poder de contratar e dispor do sujeito de direito em que preponderava o individualismo absoluto. (SOARES, 2007, p. 453).
5 Não vivemos aqui um liberalismo em essência, visto que não passamos pelo absolutismo. Desta forma,
importamos um liberalismo sem termos a maturidade de vivenciá-lo, sem sentirmos jurídica e socialmente a necessidade de vivenciá-lo, mas por termos achado conveniente a utilização deste modelo de Estado naquele momento.
22
Ademais, como já dito, o Código Civil Brasileiro sofreu fortes influências do Código
alemão e na sistematização deste, inaugurou-se o que não havia nos Códigos elaborados
durante o séc. XIX, uma parte geral do direito civil.
Os teóricos civilistas da época pretendiam criar fórmulas jurídicas postas, fixas, para
que os fatos sociais pudessem se adequar, eles acreditavam que a partir de uma parte geral do
direito civil seria possível entender toda parte especial – obrigação, propriedade, família e
sucessão.
Na parte geral, uma das bases construídas para o entendimento do direito civil era a
relação jurídica. Para os juristas alemães, todas as relações da vida poderiam se encaixar na
formulação – sujeitos, objeto e vínculo atributivo.
A partir deste fato, de que todas as relações privadas se reduzem à fórmula da relação
jurídica, os direitos reais passaram a ser estudados como uma relação entre o titular do direito
e a coletividade em relação ao objeto coisa, sendo que os direitos reais somente seriam
considerados reais se claramente previstos no código como tal.
O Estado Liberal, no entanto, declinou-se. Na sua vigência, ocorreram a 1ª Guerra
Mundial e a crise de 1929, que deixaram os países frágeis socialmente, o mercado e os
interesses privados não conseguiriam se recuperar destes impactos sem a pretensa ajuda do
Estado.
Ora, no Brasil, então, quando mundialmente o Estado Liberal iniciava seu declínio em
função das novas condições sociais, iniciava-se o liberalismo, através da codificação de 1916,
que antes mesmo de iniciar sua vigência, já ficava ultrapassado.
Internacionalmente, principalmente os países europeus, o Direito Civil atravessou e
‘sentiu’ esta crise, essa mudança de paradigmas. Os códigos civis, que no Estado Liberal eram
considerados verdadeiras constituições privadas, representavam a total separação do público e
do privado, a autonomia da vontade e os pilares do liberalismo – propriedade absoluta e
contratação sem limites -, já necessitavam de mudanças.
A incapacidade do mercado econômico, de resolver sozinho os problemas relativos ao
seu funcionamento, fez, cada vez mais, aumentar e tornar evidente a necessidade de
intervenção do Estado nas relações privadas.
Com a intervenção crescente do poder público na economia e no trabalho, reconhecendo o direito dos trabalhadores, protegendo a família, instituindo a previdência social, criando mecanismos de controle de preços, intervindo, enfim, na matéria até então reservada à iniciativa individual, o Estado de Direito transforma-se em Estado Social. (AMARAL, 2008, p. 187).
23
O Estado, então, viu-se numa crise de ingovernabilidade6. Importante, neste sentido,
entender que a modificação estrutural do Estado é uma forma de justificação e manutenção do
seu poder e representa o fato de que o Estado, da maneira em que se encontra, não está
conseguindo governabilidade.
É o que ocorria, no contexto europeu, no declínio do Estado Liberal; este se via cada
vez mais na necessidade de intervir nas relações privadas e sociais, passando a gerir as
necessidades ditas básicas da sociedade: passava-se de um Estado dito mínimo para um
Estado máximo.
No que se refere aos Direitos Reais, a Constituição da Alemanha – fragilizada pelo fim
da 1ª Guerra -, estabeleceu o início de uma nova fase. Ficou prescrito constitucionalmente que
‘a propriedade obriga’7. Isto representou a necessidade, ditada pelas próprias condições
sociais, de o Estado intervir nas relações privadas.
A propriedade continuava sendo fonte de riqueza, mas, ao mesmo tempo, ela precisou
ser vista como fonte de moradia, fonte de bem estar social.
O princípio da Função Social da propriedade e dos direitos reais como um todo, na
vigência do surgimento do Estado Social intervencionista tinha uma conotação diferente da
que hoje se tem.
Conferir função social significava, efetivamente, proporcionar a realização dos direitos
sociais através do direito de propriedade, significava, de uma certa maneira, a exclusão dos
interesses individualistas, egoísticos.
A Constituição da Alemanha, mais conhecida como Constituição de Weimar,
representou um marco para o princípio da função social. Tal corpo legislativo surgiu no
contexto alemão do entre guerras - quando a Alemanha passava por uma crise profunda,
oriunda das consequências trazidas da 1ª Guerra Mundial. Nesta época, os imóveis desse país
encontravam-se arruinados e, diante dessa situação, os aluguéis aumentavam em progressões
absurdas. Diante disso, essa constituição limitou o direito á propriedade com o intuito de
evitar o mau uso desta. É o que melhor explica Claude Witz:
6 Sobre as causas de ingovernabilidade, esta pode se dar no plano conjutural e estrutural: a) Conjuntural
(PASQUINO, 1991, p. 548): como resultado da sobrecarga de exigências sociais; como problema político, relativo à autonomia, complexidade. b) Estrutural (OROZCO, 1996); pela decadência política, resultante da inapacidade de o governo captar e absorver tipos mutantes de organização e reivindicações políticas inerentes à modernização; pela autoclausura dos processos de direção; pela exploração de complexidade. (RANIERI, 2001, p.155).
7 A Alemanha, àquela época, encontrava-se em ruínas e os donos dos imóveis que restaram passaram a cobrar aluguéis com preços absurdos, o que dificultou o acesso à moradia e, diante desta realidade, o Estado viu-se compelido a intervir nas relações privadas com o fito de estabelecer limites; no sentido negativo da palavra.
24
O colapso do Reich em novembro de 1918 e a instauração da República de Weimar tem por consequência não apenas uma institucional agitação, mas também, tendo em conta a profunda crise económica e os assuntos monetários do pós-guerra, benefícios significativos em todos os ramos do direito. Direito do trabalho tomou impulso. Em direito civil, o Parlamento interveio por duas leis em margem do BGB, visando proteger os inquilinos de habitação: ato de 1922 estabelece autoritariamente as rendas (Reichsmietengesetz) e 1923 outra lei, protegendo os locatários contras as resilições unilaterais do (leasing). O conteúdo social destas leis é ainda melhor na constituição de Weimar, em que a ’propriedade obriga’. Seu uso deve ser usado simultaneamente para o bem comum. (WITZ, 2001, p. 19, tradução livre).8
Lado outro, no que tange à doutrina da época, faz-se mister destacar o francês Leon
Duguit, considerado o precursor da moderna concepção do direito de propriedade, que deve
cumprir sua função social.
A propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar a função social do detentor da riqueza mobiliária e imobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza uma obrigação de emprega-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só o proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder. (LEONETTI, 2000).
Portanto, tem-se que, neste contexto, o princípio da função social da propriedade surge
como um limite negativo ao exercício do direito subjetivo de propriedade, o que foi, aos
poucos, sendo modificado.
No Brasil, o estabelecimento do Estado Social somente repercutiu nos direitos reais
com a promulgação da CR/88, que, claramente trouxe à baila o Princípio da Função Social da
Propriedade9 como uma garantia fundamental da constituição10.
Ainda no contexto do Estado Social, os direitos reais continuaram sendo tratados de
forma absoluta – sem possiblidade de interferência da autonomia privada -, mas deixaram de
8 L’effondrement du Reich em novembre 1918 et I’instauration de la Rèpublique de Weimar ont entrîné non
seulement des bouleversements institutionnels, mais également, eu égard à la profonde crise économique et monétaire de I’apès-guerre, des retombées notables dans toutes lês branches du droit. Lê droit du travail a pris son essor. Em droit civil, lê législateur est intervenu, par deux lois em marge du BGB, em vue de proteger lês locataires d’habitations: loi de 1922 fixant autoritairement lês loyers (Reichsmietengesetz) et loi de 1923 protégeant lês locatairiescontre la resésiliation umilatérale du bail ( ). Lê contenu social de ces lois se comprend d’autant mieux que, selon la Constitution de Weimar, La propriété oblige. Son usage doit servir même temps au bien commun.
9 Não se pretende alargar muito a discussão acerca da função social, por não ser ela objeto de estudo deste trabalho, mas inevitável é sua menção pelo fato de ser este princípio fundamental para construção dos direitos reais, no atual contexto do Estado Democrático de Direito.
10 As Constituições Federativas de 1934, 1946 e 1967 traziam algum condicionamento da propriedade ao bem-estar social, mas somente a Constituição Federativa de 1988 é que elevou a função social ao status de garantia fundamental constitucional.
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ser vistos como absolutos no sentido de não poderem sofrer nenhum tipo de interferência, os
direitos reais já eram vistos como funcionalizados.
No que se refere à tipicidade, técnica legislativa utilizada pra inserir os direitos reais
em um numerus clausus, ela continuou inserida como caractere dos direitos reais.
No Brasil, na vigência do Código Civil de 1916, a mantença da tipicidade visava aos
interesses capitalistas (os mesmos interesses visados pela classe burguesa quando do
surgimento da classe burguesa – realidade europeia).
Segundo Adriano Stanley:
Em defesa do princípio numerus clausus, a doutrina apresentava as seguintes características: a)segurança jurídica: à medida que somente o Estado pode criar e regular os direitos reais, decorre, daí, segurança jurídica para a sociedade, que não corre o risco de ser surpreendida por atos de proprietário da coisa que possam implicar em comprometimento e desvalorização desta; b) publicidade dos direitos reais: o princípio do numerus clausus, por exigir forma especial de constituição dos Direitos Reais, termina por propiciar a publicidade deles. O sistema aberto dificultaria imensamente o funcionamento dos registros (responsáveis por tal publicidade). (SOUZA, 2007, p. 219).
Noutro giro, no que se refere à visão dos direitos reais através da teoria relacional, isto
permaneceu na vigência do Estado Social.
No Brasil, nada modificou, pois enquanto o Estado Brasileiro passava por uma
alteração de paradigma, o direito civil ainda estava na mesma estrutura, com o mesmo Código
Civil, em que pese o fato de os juristas já terem percebido a necessidade de mudança. Os
direitos reais, como dito, somente mudaram o paradigma interpretativo a partir da
Constituição de 1988.
Ocorre que, enquanto nos países europeus já se vivia, em 1916, a ruína do Estado
Liberal, aqui, este estava se construindo através da promulgação do Código Civil.
E assim, o modelo estatal protecionista, intervencionista também se ruiu, visto que não
conseguiu sustentar a idéia de ser o único gestor dos interesses públicos e privados (que se
tornaram públicos).
Também o Estado Social sofrera uma crise de ingovernabilidade, em palavras simples,
o Estado faliu. O Estado intervencionista precisava, para se sustentar, de participação social, o
que Ranieri denomina governabilidade democrática:
A reforma do Estado, por via de conseqüência, é parte de um amplo processo de fortalecimento das condições de governabilidade democrática; condições estabilizadoras da ordem jurídico-institucional que pressupõem, além da coerência das decisões estatais e das já mencionadas eficácia e efetividade de suas políticas,
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uma relação politicamente bem intermediada entre as bases sociais, representação partidária e processo decisório. [...] Esta postura impõe, desde logo, a ruptura da polaridade Estado-mercado, na qual o Estado figura como único e exclusivo promotor do bem público e representante dos interesses gerais, e o mercado como fator de eficiência e racionalidade. (RANIERI, 2001, p. 155).
No Brasil, nos anos 80, o governo se viu impossibilitado de continuar fornecendo
aqueles financiamentos protecionistas que transformaram o país num modelo urbano-
industrial e iniciaram as discussões sobre a reforma do Estado.
[...] o discurso oficial acerca da reforma do Estado brasileiro propõe a redução de tarefas e sua prestação em moldes gerenciais, baseados na economia de mercado, com o objetivo de alcançar maior eficácia, numa perspectiva ‘social-liberal’, ‘social porque continuará a proteger os direitos sociais e a promover o desenvolvimento econômico; liberal, porque o fará usando mais controles do mercado e menos os controles administrativos. (RANIERI, 2001, p. 156).
Foi neste contexto que surgiu o Estado Democrático de Direito11 e no Brasil, com a
promulgação da Constituição da República de 1988.
A CF/88 significou, em sede de direitos reais, a consagração do Princípio da Função
Social da Propriedade. No contexto no Estado Democrático de Direito, a função social não se
constrói da mesma maneira que na época de Weimar, ela representa um limite positivo ao
direito de propriedade, no sentido de exigir do dono da coisa atos que implementem função
social ao bem.
É claro que no exercício do direito de propriedade os interesses individuais podem ser
realizados e implementados, mas desde que as obrigações em relação à coisa, como pagar os
impostos, respeitar o meio ambiente, entre outras, sejam satisfeitas.
Segundo Sávio de Aguiar Soares:
[...] resta afastada a visão negativa da função social como limite ao direito de propriedade na medida em que referida expressão vem a disciplinar os interesses do particular (direitos e deveres do proprietário) diante do interesse social ou coletivo. Aplica-se, por via de consequência, no âmbito da propriedade o princípio do solidarismo social com base na necessidade de equilíbrio entre o valor da dignidade humana e os valores coletivos. (SOARES, 2007, p. 458).
11 “A incorporação de estruturas do direito privado ao direito público, ou melhor, a conjugação de ambos para
melhor servir o cidadão e revitalizar o modelo de Estado a partir das alterações na ordem jurídica deve ser vista, pois, como meio de realização do Estado cooperativo que, mantendo os princípios do Estado social, cumpre a missão primordial de garantir os direitos humanos que, afinal, é o que legitima o poder do Estado”.
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O Estado Democrático de Direito, instituído com a CF/88, tem por fundamento a
Dignidade da Pessoa Humana e fundamentar-se na dignidade da pessoa é trazê-la para o
centro do ordenamento jurídico12, é elevá-la à razão das regras de direito. Neste contexto, no
que se refere aos Direitos Reais, o mesmo poder constituinte elevou a função social da
propriedade como garantia fundamental da constituição.
Os direitos reais, portanto, não estão mais inseridos em um emaranhado de
justificativas individualistas e liberais; os direitos reais estão inseridos num contexto em
construção, em que o objetivo é proteger a pessoa humana, mas não atribuindo todo o
provimento dessa proteção ao Estado e sim permitindo à pessoa escolhas, participação na
construção do Estado e estabelecendo, por óbvio, consequências pelas escolhas feitas.
Segundo Francisco Amaral:
Atribuir ao direito uma função social significa considerar que os interesses da sociedade se sobrepõem aos do indivíduo, sem que isso implique, necessariamente, a anulação da pessoa humana, justificando-se a ação do Estado pela necessidade de acabar com as injustiças sociais. Função social significa não-individual, sendo critério de valoração de situações jurídicas conexas ao desenvolvimento das atividades da ordem econômica. [...] A idéia de função social deve entender-se, portanto, em relação ao quadro ideológico e sistemático em que se desenvolve, abrindo a discussão em torno da possiblidade de se realizarem os interesses sociais sem desconsiderar os do indivíduo. Sistematicamente, atua no âmbito dos fins básicos da propriedade, da garantia de liberdade, principalmente contratual, e, consequentemente, da afirmação da pessoa. (AMARAL, 2008, p. 87).
Ora, mas neste contexto, se a leitura dos direitos reais for feita através do Código Civil
de 2002, não houve mudanças significativas, os direitos reais mantiveram muitos dos seus
caracteres e, além disso, continuaram sendo vistos a partir de um numerus clausus, só que
frente a um Princípio da Função Social e em um Estado Democrático de Direito.
O Código Civil de 2002, em que pese a sua promulgação na vigência de um Estado
Democrático de Direito, possui bases também liberais e a estrutura do atual Código manteve a
mesma estrutura do Código Civil de 1916, inclusive no que se refere à sua divisão : parte
geral e especial do Código Civil.
Sendo assim ,mesmo que sem uma menção expressa, as relações jurídicas privadas
que são reguladas pelo código são representadas pela estrutura das relações jurídicas.
12 Não entendemos que a Dignidade da Pessoa Humana é uma conceito vago, sem qualquer parâmetro
interpretativo. A dignidade deve se pautar em limites que são delineados pelo ordenamento jurídico, tais como a segurança jurídica, a boa-fé objetiva, a função social, pois que somente assim alcançamos a dignificação da pessoa, em cada caso concreto, porém de forma medida, com limites.
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Dessa forma, a abstração da matéria civilística, fruto de uma Alemanha liberal,
legalista e positivista, que influenciou o Brasil quando da codificação de 1916, foi mantida na
realidade do Estado Democrático de Direito.
No que se refere aos direitos reais, mesmo na vigência da atual Constituição de 1988,
eles são estudados como sendo uma relação jurídica típica, ou seja, os direitos reais são uma
relação entre o titular e a coletividade em razão de um objeto e somente nas hipóteses
elencadas pelo art. 1225 do Código Civil.
Nesta sistemática, antes de analisar os fatos da vida em si, devemos encaixá-los numa
abstrata relação jurídica. Segundo Orlando de Carvalho, quando ele fala sobre a teoria
relacional dita na parte geral do direito civil: “O seu ponto de partida não é, pois, a
regulamentação de um fenômeno real e típico, mas uma forma jurídica abstrata.”
(CARVALHO, 1981, p. 70).
No atual contexto brasileiro, não cabe mais uma interpretação jurídica formal, fechada,
que parte da norma, para recair aos fatos sociais, como é a interpretação da teoria relacional.
O direito deve ser construído a partir da sociedade, até porque não conseguem as regras
jurídicas acompanharem a evolução social que cresce de forma muito abrupta e acelerada.
Ademais, visualizar o direito privado a partir da relação jurídica, representa colocar o
ser humano como um sujeito de direito, ao lado dos demais elementos da relação jurídica;
significa colocar o ser humano como um elemento abstrato da relação, sem considerar suas
particularidades, sua concretude, sua realidade.
A parte geral das codificações civis coloca o sujeito de direito como mero elemento da relação jurídica, ao lado do objeto, do vínculo de atributividade e do fato propulsor, levando ao ápice sua abstração. O sujeito, assim, só tem relevância como elemento da relação jurídica. [...] Os direitos, nesta recaionalidade, não surgem por conta da existência concreta da pessoa humana dotada de dignidade – e sujeita a necessidades -, mas, sim, pela sua inserção e um modelo de relação jurídica. (FACHIN; RUZYK, 2003, p. 94-95).
Não é objeto deste trabalho a análise da inutilidade ou não da inserção de uma parte
geral13 em um Código Civil ou a própria necessidade, no contexto atual brasileiro, de um
Código Civil, mas o fato é que a visão das relações privadas pela visão reducionista das
13 “Conquanto se saiba que as supostas essências da teoria geral são fruto de uma atividade generalizadora e
simplificadora, em ordem a objetivos de uma exposição mais fecunda, das relações que realmente se estabelecem na vida – relações que, nas partes especiais, se colhem muito mais próximas da seiva; [...] conquanto se saiba, enfim, que o Direito não é uma contemplativo de essências ou de idéias aéreas, mas uma acção no quotidiano, uma regulamentação de interesses, que só na vida, à flor da vida se vislumbram [...]”. (CARVALHO 1981, p. 58-59).
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relações jurídicas não coaduna com o contexto democratizado e de promoção da pessoa
humana em que vivemos hoje.
Em sede de direitos reais, além de ainda se vislumbrar os direitos reais pelo olhar
pandectista de um relação jurídica, a doutrina tem expandido tamanha abstração através da
inserção da figura do sujeito passivo universal: para encaixar os direitos reais como sendo
uma relação jurídica, criou-se o fato de que o titular do direito relaciona-se com a coletividade
das pessoas – que seria o sujeito passivo da relação -, com o objetivo de exercer uma
ingerência sobre uma coisa.
Tendo em vista esse descompasso da interpretação dos direitos reais com as bases do
Estado Democrático de Direito, devemos procurar uma interpretação que parta de algo mais
concreto, menos abstrato, mais real: do fato social em si.
Dessa maneira, a teoria situacional, ou da situação jurídica entende que o direito
regulamenta fatos, não necessariamente fatos que se enquadram em relações interumanas, mas
fatos que são qualificados pela norma jurídica, não de forma generalista, ou numa teoria geral
do direito civil, mas uma qualificação que busca o conteúdo em si a partir do fato da vida e
não a partir do enquadramento de uma relação jurídica.
Entender os direitos reais como uma situação jurídica – o que será detalhadamente
explicado em momento oportuno neste trabalho -, não é apenas desconsiderá-los como uma
relação jurídica, mas é interpretá-los dentro da lógica da Constituição de 1988, valorizando os
atos e fatos que na vida concreta ocorrem com as pessoas, sejam elas humanas sejam elas
jurídicas.
Noutro giro, os direitos reais foram estabelecidos no atual Código, através da técnica
legislativa da tipicidade, num rol taxativo.
Entendemos, concordando com Adriano Stanley, que o numerus clausus se justifica
dentro do contexto em que vivemos atualmente. Segundo ele:
Assim, o princípio do numerus clausus, que no início do século XX fora utilizado por nosso ordenamento jurídico como instrumento hábil a garantir a integralidade do valor propriedade, por meio da conservação do ideal de um Estado liberal vigente à época, é mantido em nosso novo ordenamento civil, entretanto, com a condição de que seja interpretado sob o novo prisma, sob o prisma de nossa Constituição, numa interpretação conjunta com os princípios constitucionais atuais (dignidade humana, autonomia privada, solidariedade social; capacidade contributiva e igualdade substancial). Dessa forma, os velhos instrumentos registrais, que tanto prestaram aos fins patrimoniais de outrora, são mantidos, agora, entretanto, com o objetivo claro de servirem como instrumentos apaziguadores da desigualdade social que os assola. (SOUZA, 2007, p. 225-226).
30
Quando o referido autor defende a manutenção do numerus clausus como forma,
inclusive, de dignificação da pessoa humana, com vistas a impedir o aumento das
desigualdades sociais, ele o faz repelindo a idéia de existência da autonomia privada no
momento da gênese dos direitos reais.
Apesar de também entendermos que a autonomia privada, a princípio, não deve reinar
em sede de direitos reais, entendemos, por outro lado, que a gênese dos direitos reais não deve
se dar por um simples olhar à legislação: caso um determinado direito tenha sido promulgado
como real, ele será classificado como tal.
A conceituação dos direitos reais deve se dar pela sua natureza jurídica que, como
vimos, não corresponde mais a uma relação jurídica.
Bom, tratando os direitos reais como uma situação jurídica, pensamos que podemos
identificar nos fatos jurídicos trazidos pela norma jurídica como reais, uma caracterização
comum. Partindo do fato, do caso concreto e não da simples declaração normativa,
poderíamos classificar um direito como sendo ou não real, tendo em vista a presença ou não
dos caracteres comuns aos direitos reais.
A identificação do que sejam os direitos reais continuariam num numerus clausus,
tendo em vista a impossibilidade de incidência da autonomia privada na criação de novos
direitos reais, mas a interpretação do que e de quais seriam os direitos reais se daria caso a
caso, onde ficasse clara a presença, num determinado direito, da natureza jurídica real e das
características comuns aos direitos reais.
A interpretação dos direitos reais desta maneira poderia coadunar a matéria dos
direitos reais à realidade do Estado Democrático de Direito, pois deixaríamos, de uma vez por
todas, a interpretação liberal-positivista em sede de propriedade e dos demais direitos reais.
As idéias positivistas, formadas no contexto do Estado Liberal, serviram de
fundamento e justificativa para toda estrutura social e jurídica do liberalismo, mas não nos
serve mais.
Assim, no que tange à tipicidade dos direitos reais, técnica legislativa que faz surgir o
princípio do numerus clausus, ela foi mantida no CC/02 e o que se pretende propor neste
trabalho é a adequação desta realidade ao atual Estado Democrático de Direito.
31
3 TEORIA DA RELAÇÃO JURÍDICA
É fato que todas as Ciências implicam relações, e por conseqüência é necessário
delimitar o objeto que servirá de parâmetro para a incidência de cada uma das diferentes
ciências em que o fenômeno da relação será observado. Assim, todos os cientistas estudam
relações entre fatos antecedentes, concomitantes ou conseqüentes, independente da ciência a
que estiverem vinculados: Química, Física, Astronomia, e, também, o Direito.
O conceito do vocábulo relação é vasto e oscilante, contudo, na maioria das vezes,
pode-se vislumbrar uma noção de ligação, analogia ou conexão ente fatos, sujeitos, normas,
etc.
Pode se depreender do dicionário, a acepção da palavra relação como sendo:
Ato de referir, de relatar; descrição; notícia; nota; lista; rol: relação dos candidatos; analogia; semelhança; conexão; (mat.) resultado de comparação entre duas quantidades comensuráveis; tribunal judicial de segunda instância; (mús.) intervalo entre dois sons; pl. trato social; convivência; pessoas com quem se convive: tem boas relações; intimidade; em relação a ( loc. Prep.): em proporção de; quanto ª ( Do lat. relatione.)”. Nesse sentido, pode-se depreender como sendo um dos sentidos do vocábulo relacionar: “adquirir relações. (FERNANDES; LUFT; GUIMARÃES, 1997)
Segundo Miguel Reale (2004, p. 215), a relação jurídica é uma espécie de relação
social, reconhecida pelo Estado ou surgida em virtude de ato constitutivo do próprio Estado.
O importante é extrair a essência da acepção do vocábulo relação que interessa ao
Direito enquanto ciência, que repousa na caracterização da relação como uma conexão entre
sujeitos de direito. Portanto, não se deve conceber uma relação jurídica onde não se vislumbre
a possibilidade de conexão entre dois sujeitos de direito.
A partir dessa noção de relação, há necessidade de se ressaltar a origem desta no
âmbito jurídico.
Na doutrina pandectista-alemã, tem-se a origem do conceito de relação jurídica. O
conceito, introduzido por Savigny, indicava que a relação jurídica aparece como um vínculo
de pessoa a pessoa – elemento material –, determinado por uma regra de direito – elemento
formal.
Partindo da idéia esplanada por Savigny, hoje tem-se a concepção personalista de
relação jurídica que estabelece que esta ocorre entre pessoas e que estas, por sua vez, contem
32
poderes e deveres recíprocos. Ademais, essa teoria sustenta dois elementos integrantes de toda
e qualquer relação jurídica. É o que enuncia, Francisco Amaral:
Temos, assim, que a concepção personalista pressupõe dois elementos para que se forme uma relação jurídica: um, de ordem material, que é a relação social; outro, de ordem formal, que pé a determinação jurídica que transforma a relação de fato em relação de direito; por isso a definição – relações sociais reguladas pelo sistema jurídico. A relação jurídica surge, conseqüentemente, como uma totalidade de efeitos jurídicos, um complexo de direitos e deveres derivado da relação entre duas pessoas. (AMARAL, 2003, p. 167).
Uma segunda concepção de relação jurídica é a concepção normativista para a qual a
relação jurídica “é o vínculo entre os respectivos sujeitos e o ordenamento jurídico, ou entre
pessoas e coisas, pessoas e lugares.” (AMARAL, 2003, p. 167).
Há de se ressaltar, ainda, outra concepção, estruturada por Pietro Perlingiere, segundo
a qual a relação jurídica não ocorre entre sujeitos e sim entre centros de interesses. Ele
evidencia o seguinte: “O sujeito não é elemento essencial para existência da situação,
podendo existir interesses – e, portanto, situações – que são tutelados pelo ordenamento
apesar de não terem ainda um titular”. (PERLINGIERI, 2002, p. 107).
Todas essas teorias partiram da mesma estrutura teórica, elaborada pelo Escola dos
Pandectistas, na Alemanha. Os pandectistas acreditavam que um Código Civil não deve ser
simplesmente repartido e organizado por matérias a serem tratadas – obrigações, propriedade,
família e sucessões -, mas deveria conter uma parte geral, que introduziria as regras
determinadas em uma codificação.
O propósito da inclusão de Parte Geral num código era elaborar regras gerais e
abstratas que permitissem a elaboração de modelos gerais de relações jurídicas que pudessem
conter nas partes especiais do mesmo código.
O antepor-se uma teoria geral aos especiais domínios das obrigações, do direito das coisas, do direito de família, e do direito sucessório – teoria geral onde se analisa o summum genus da relação jurídica, com os vários elementos dos sujeitos, do objeto, do facto jurídico e da garantia -, sugere que essa teoria geral é caput et fundamentum de toda regulamentação das relações jurídicas civis, por modo que aí se encontra toda a disciplina de fundo, destinada a preencher quanto no resto se diga a esclarecer quanto no resto seja vago. (CARVALHO, 1981, p. 57).
Assim, partia-se do pressuposto que as relações privadas, todas elas, pudessem se
estruturar por meio da fórmula da relação jurídica, o que implica na necessidade de se estudar
minuciosamente a teoria relacional.
33
3.1 Origem e contextualização da teoria relacional
A notícia histórica que se tem da teoria relacional remonta da doutrina pandectista
alemã.
Nos fins do século XVIII, com o movimento da codificação, influenciado pelas
doutrinas jus-racionalistas, Estados como a Prússia – 1794 -, a Áustria – 1811 -, Portugal –
1778 e, sobretudo a França, como produto da Revolução Francesa, elaboraram os primeiros
Códigos Civis.
Passava-se pela fase legalista e positivista, que sobressaltavam a lei em relação à
doutrina – que tinha o papel subsidiário de auxiliar a hermenêutica – e a jurisprudência – a
quem restava o papel de aplicar os ditames legais. “A lei – nomeadamente esta lei
compendiada e sistematizada em códigos – adquiria, assim, o monopólio da manifestação do
direito. A isto chamou-s leglismo ou positivismo legal (gesetzpositivismus)”. (HESPANHA,
1997, p. 177).
Nesta fase histórica européia, surgiram escolas que visavam estudar o direito sob um
determinado paradigma, sob um determinado ponto de vista. As principais eram a Escola da
Exegese, a Escola Histórica Alemã – organicista e tradicionalista – e a Escola Histórica
Alemã – vertente formalista ou conceitualista, a Pandectística -, que iremos tratar com maior
zelo pelo fato de representar a contextualização da teoria relacional.
Ao invés do pensamento jurídico francês, o pensamento jurídico alemão não se pretendia ideológico: pretendia-se estritamente científico, rejeitando, por consequência, todo o sistema de idéias (como as fornecidas pelas escolas de Direito Natural) que se oferecesse como medida de valor das intenções do Direito positivo. (CARVALHO, 1981, p. 39)
Os pandectistas defendiam a construção sistemática do Direito, pois que este emanaria
de um todo orgânico, o ordenamento jurídico. Desta maneira, aos juristas caberia o trabalho
de interpretar o Direito em conformidade com o conhecimento lógico de todo conteúdo da
legislação e não a partir de conceitos jurídicos previamente pensados. “[...] o trabalho
intelectual dos juristas devia consistir sobretudo na construção de um sistema de conceitos
jurídicos não puramente pensados, mas extraídos pelo tratamento formal do direito positivo.”
(HESPANHA, 1997, p. 186).
34
Dessa maneira, o trabalho do jurista se equipararia ao de um cientista exato- que
estuda fenômenos naturais -, posto que caberia a ele extrair princípios gerais a partir da
observação do real.
No caso do direito, os princípios e conceitos obtidos pelo tratamento formal do material histórico e legislativo de um direito nacional seriam princípios como o princípio da vontade no domínio dos negócios jurídicos, o princípio da elasticidade no domínio da propriedade [...] (HESPANHA, 1997, p. 187).
Como estes princípios gerais seriam extraídos da norma jurídica e não da moral,
filosofia ou da política, os juristas fariam a identificação desses princípios de forma neutra.
A pandectística tinha uma posição individualista – na medida que seus dogmas e
princípios decorreram do jus-racionalismo.
Neste sentido: “decorrem logicamente do princípio de que a sociedade resulta da
combinatória de actos de vontade de indivíduos livres e titulares de um direito originário a
essa liberdade.” (HESPANHA, 1997, p. 188).
Ao mesmo tempo, a pandectística era relativista, pelo fato de não atribuir conteúdo
axiológico à liberdade individual.
Em síntese, a Escola dos pandectistas pensava que deveria haver um pacto de
neutralidade e objetividade dos juristas, o que somente poderia ser alcançado através do
formalismo e do legalismo. Como afirma Orlando de Carvalho “[...] o sistema das Pandectas,
com seu aparente neutralismo, tecnicismo e organicismo, tender a apresentar-se como espelho
fiel [...] da realidade normativa em si mesma.” (CARVALHO, 1981, p. 56).
Os pandectistas influenciaram diversos sistemas jurídicos, que passaram a interpretar
os seus Códigos de forma sistemática e a partir de dogmas como a Teoria da Subsunção, da
Plenitude Lógica do Ordenamento Jurídico e da Interpretação Objetivista.
A Teoria Relacional foi, então, produto dos pandectistas.
[...] o sistema dos pandectas opõe um estilo teórico, retraído, neutral, um estilo manualístico e desprovido de paixão, como se o Direito não fosse de homens e para homens. No centro do Direito já não está a personagem humana, [...]; estão conceitos cada vez mais tênues e fluidos, ou, como dizia IHERING antes da sua conversão , os ‘corpos jurídicos’ mais ‘sublimados’ ou mais ‘simples’. No campo do direito civil um desses corpos mais simples foi o conceito de relação jurídica. (CARVALHO, 1981, p.43-44)
Os pandectistas foram autores da abstração do direito privado, especificamente do
direito civil. Eles pensaram o direito civil a partir da sua divisão em direito das obrigações,
35
das coisas, da família e das sucessões, todos os ramos partindo de uma base que eles
classificaram como ‘Parte Geral’14.
É como se houvessem preceitos básicos do direito civil que tivessem que ser vistos
abstratamente para que a compreensão do direito civil fosse possível (das pessoas, das pessoas
coletivas, do negócio jurídico, etc.).
No cume desta parte geral, os pandectas vislumbraram que o Direito existe enquanto
em uma relação jurídica abstratamente considerada. Seriam situações típicas trazidas pela
normativa legal em que as relações sociais deveriam se encaixar para serem juridicamente
relavantes.
A idéia de relação jurídica teve seus primórdios em Savigny que, como mencionado
acima, considerou a relação jurídica como relação de pessoa a pessoa, determinada pela regra
jurídica.
Toda relação jurídica aparece-nos de pessoa a pessoa, determinada por uma regra de direito que confere a cada sujeito um domínio onde sua vontade reina independente de qualquer vontade estranha. Em conseqüência, toda relação de direito compõe-se de dois elementos: primeiro, uma determinada matéria, a relação mesmo; segundo, a idéia de direito que regula esta relação. O primeiro pode ser considerado como elemento material da relação de direito, como um simples fato; o segundo, como elemento plástico que enobrece o fato e lhe impõe a forma jurídica. (SAVIGNY apud AMARAL, 2008, p. 198).
Esta corrente de pensamento deu origem a uma teoria denominada Teoria Personalista,
que entende que as relações sociais entre pessoas e regulamentadas pelo direito seriam o que
se chama de relação jurídica.
Por outro lado, também com origem na pandectística-alemã, Ihering, inaugurando o
que hoje se denomina de Teoria Realista: “identifica a relação jurídica com o direito subjetivo
dizendo que todos os direitos privados, exceto os de personalidade, dariam fundamento a uma
relação entre o titular e o mundo exterior, pessoas e coisas”. (AMARAL, 2008, p. 199).
O fato é que ambas as teorias tiveram o mesmo propósito racionalista, criar um
modelo abstrato de relação jurídica, onde se poderiam encaixar, abstratamente os sujeitos de
direito.
14 [...] a maior parte dos civilistas contemporâneos, designadamente de países em que a codificação obedecia às
velhas linhas da codificação napoleônica, cedo se sentiu atraída por uma aparência de rigor extremamente lisonjeira da importância de seu ofício. Que o direito civil se divide em direito das obrigações, direito das coisas, direito de família e direito sucessório; que a tudo isto preside uma parte geral (allgemeiner Teil) centrada na relação jurídica civil, summum genus das múltiplas relações quotidianas que se organizam homogeneamente naqueles grupos. (CARVALHO, 1981, p. 47-48).
36
Tendo o Direito positivado modelos para as relações que julga relevantes, ou dignas de regulação e proteção, só pode haver direito subjetivo - e, portanto, direitos fundamentais - no âmbito de tais relações. O Estado-legislador, por meio de tal proceder, impõe molduras jurídicas em que pretende não só abarcar as potenciais relações travadas no mundo dos fatos, mas dirigir o comportamento social ao preenchimento de tais molduras. A Escola Pandectista buscou, portanto, criar uma pretensa "realidade jurídica" baseada em modelos: o Direito apreende situações fáticas do passado, positiva no presente por meio de modelos que busquem um máximo de generalidade e de abstração, com vistas a oferecer respostas prévias para o futuro. (FACHIN; RUZYK, 2003, p. 93).
Então, a teoria relacional surge imbuída de conceitos racionalistas e individualistas,
fruto do fracasso do absolutismo e da formação de um Estado Liberal.
A relação jurídica surge, então, como um conceito representativo da idéia de ligação entre vontades autônomas e diversas, e que por isso mesmo se coloca no centro do sistema de direito civil, numa perspectiva interindividual: a vontade do sujeito como fundamento do individualismo jurídico, e este como justificação axiológica do poder dos particulares. (AMARAL, 2008, p. 202).
A relação jurídica é a representação abstrata dos fatos sociais regulamentados pelo
direito, o Direito regulamenta as relações entre sujeitos que estão também abstratamente
previstos no ordenamento.
A partir desta idéia de relação jurídica, criou-se o dogma de os sujeitos de ligam,
juridicamente, por meio de relações jurídicas, que se dão, necessariamente, entre sujeitos.
A teoria relacional foi e ainda é utilizada para justificar a ligação entre os sujeitos nas
relações jurídicas de conteúdo não apenas cível, mas também administrativo e processual,
visto que o processo judicial surge a partir de uma relação jurídica processual. É claro que
cada uma destas modalidades de relações possuem seus caracteres próprios, que as
individualiza e determinam a diferenças delas entre si.
Todavia, todas as relações jurídicas - sejam de conteúdo cível, processual ou outro
ramo jurídico - surgiram desta mesma construção doutrinária: de que, abstratamente, os
sujeitos se ligam juridicamente.
A relação jurídica, como pensada pelos pandectistas e aplicada em grande parte das
codificações, é considerada como um modelo abstrato que somente tem aplicação quando o
fato social se encaixar ao modelo delineado. A relação foi pensada a partir de elementos
estáticos e, como dito, tipificados pela norma jurídica: os sujeitos, o objeto e o fato jurídico, o
que, nas palavras de Orlando de Carvalho, determinou a desumanização da teoria geral do
direito civil:
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[...] que nessa relação jurídica, abstratamente pensada, o homem é um elemento ao lado de outros elementos – do objeto, do facto jurídico, da garantia -, nem sequer possuindo, na qualidade de sujeito, qualquer específica posição de privilégio (pois condivide esse estatuto com outros sujeitos de direito); que não nos deve surpreender, enfim, essa formalização das relações ou esta desumanização do homem [...]. (CARVALHO, 1981, p. 48).
É que a teoria relacional não vislumbrava o Direito Civil a partir dos fatos concretos e
sim a partir da norma jurídica e esta, por sua vez, no modelo de codificação trazido pelo BGB,
era abstrata por demais.
Visualizar, entretanto, a relação, em si, entre os sujeitos, é possível e relativamente
óbvio. Os pandectistas, porém, ao elaborarem a teoria relacional como fundante da parte geral
do direito civil, cometeram dois deslizes.
O primeiro foi generalizar, de maneira altamente abstrata, as relações jurídicas. É claro
que relações entre privados – particulares -, na busca por salvaguardar seus próprios
interesses, vai existir e isso necessita de uma regulamentação jurídica, mas os juristas que
explicam o Direito – que é o caso dos pandectistas -, não podem ter a pretensão de reduzir das
hipóteses de relações entre pessoas a algumas tipificações fixas.
Outro deslize está na incoerência da teoria relacional quando os sujeitos que se inter-
relacionam são colocados perante o objeto.
Importante, neste ponto, elucidar o que seria o objeto de direito. Wille Duarte Costa
refere-se a ele da seguinte maneira:
[...] o direito é, então, a faculdade ou conjunto de poderes, atribuídos ao titular pela ordem jurídica, com o fim de satisfazer a um interesse (interesse seu, como regra) inerente ao direito conferido. [...] O objeto do direito será, por consequência, aquilo sobre o qual recaem os poderes do titular, como mesmo fim de satisfação de seu interesse. (COSTA, 1994, p. 39).
Dessa maneira, partindo do pressuposto de que o objeto do direito é a própria coisa, é
o crédito, qual é, na relação jurídica, o liame existente entre o sujeito e o objeto?
Na relação obrigacional, é fácil visualizar que o objeto, neste caso uma prestação de
dar, fazer ou não fazer algo, é a finalidade da ligação entre os sujeitos devedor e credor.
Ora o credor estaria ligado ao objeto prestação, pois que dela nasce o direito de crédito
que possui perante o devedor. E este, por sua vez, estaria ligado ao objeto prestação, visto que
dela há a definição exata do que deve ser prestado por ele.
Todavia, cabe questionar o liame entre os sujeitos e objeto na dita relação jurídica real.
O objeto está diretamente ligado ao titular do direito real ou a ligação está entre os sujeitos –
sujeito passivo universal e titular – em razão de um objeto – coisa?
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Pontes de Miranda, explicando a relação jurídica real, especificamente o sujeito
passivo universal: “a respeito do terreno de 50x100 metros da rua A, todos menos um, que se
acham no território de um Estado e, eventualmente, que se acham na Terra, estão em relação
inter-humana com todos menos um”. (MIRANDA, 1970, p. 118).
Ora, não se pode conceber, no contexto de um Estado Democrático de Direito, uma
abstração tamanha que permita que o direito real seja justificado numa relação entre um e
todos menos um.
Neste sentido, concorda Wille Duarte Costa:
O direito não se resume no conjunto de relações jurídicas. Com estas não se confunde e tem um conteúdo mais amplo. Por isso, não nos passa a idéia de que, nos direitos reais, existe um eixo direito-dever entre ‘todos menos um’ e o sujeito de direito. É estranho que ‘todos menos um que se acham na Terra’ fiquem subordinados ao poder de um só. Que força o sujeito isolado teria para exigir a reparação do seu direito, se violado? A quem recorrer se todos, menos ele, estão do outro lado em suposta oposição? (COSTA, 1994, p.54)
O autor mencionado, assim como nós, não concorda com o fato de o direito real ser
visto como uma relação entre o titular do direito e um sujeito passivo universal e, seguindo os
ensinamentos de Clóvis Beviláqua, supera esta idéia, sem quebrar o dogma da teoria
relacional.
Clóvis Beviláqua entendia que a relação jurídica somente pode se dar entre sujeitos e
jamais entre sujeito e objeto, mas que é possível falar em relação entre sujeito e objeto, o que
ele denominou ‘poder de dominação’.
A relação de direito somente se pode estabelecer entre pessoas, ensinam muitos dos mais notáveis civilistas; porém, melhor traduzem a verdade dos fatos os que distinguem duas categorias de relações, umas atuando sobre objetos naturais, e outras ligando pessoas entre si, as quais podem denominar-se direitos de dominação e direito que impõem deveres diretos a outras pessoas. (BEVILAQUA, 1954, p. 66).
Dessa maneira, teria o titular de direito real um poder de dominação sobre o objeto,
que não seria absoluto, mas teria restrições estabelecidas pela ordem jurídica. Todavia, esta
não seria uma relação jurídica; a relação jurídica de direito real se daria, efetivamente, entre o
titular e a coletividade.
há relação entre o sujeito e o objeto do direito, decorrente do poder de dominação, sem que, necessariamente, haja um outro sujeito passivo na espécie. A relação não se traduz em relação jurídica, como por nós vista e analisada. O que existe é um direito de dominação, que decorre dos direitos chamados reais. (COSTA, 1994, p. 60).
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Concordando com o exposto acima pelo Wille Duarte Costa e Clóvis Beviláqua, não
cabe admitir que o direito real se dê pelo simples liame entre um sujeito e todos menos um da
coletividade, mas não concordamos com a conclusão apresentada pelo autor. Será que a única
forma de se visualizar direitos é por meio de relações jurídicas? Será que o dito poder de
dominação não seria simplesmente a inexistência da relação jurídica? Não poderíamos
simplesmente dizer que não há de se falar em relação jurídica real?
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4 TEORIA DA SITUAÇÃO JURÍDICA
O termo situação, no dicionário Silveira Bueno, designa:
Posição; disposição das diferentes partes de um todo; fase governamental ou ministerial; o governo, relativamente à atualidade ou a uma dada época; estado de negócios; estado moral de uma pessoa; estado ou condição; ocorrência. (BUENO, 1989, p 627)
A partir da idéia acima exposta, de situação, pode-se determinar que, neste trabalho, o
termo situação jurídica será empregado no sentido de uma posição, conferida pela norma
jurídica ao sujeito, estado este que se dará sempre em relação a um objeto, podendo outro
sujeito estar envolvido nesta situação, opondo-se à situação do primeiro sujeito, ou podendo
não existir qualquer relação intersubjetiva.
Os autores que até hoje discutem e estudam a teoria da situação jurídica têm um
objetivo comum; a superação do conceito clássico da relação jurídica e a reconstrução15 da
teoria do direito, tendo em vista o momento social e jurídico atual.
O fato é que atualmente, no contexto estatal democratizado, não pode ser mais
admitido que o direito e os fatos jurídicos sejam vistos sob a ótica abstrata da teoria da relação
jurídica, em que o sujeito se relaciona com o outro, posiciona-se perante o outro e em que o
Direito só se constrói a partir desta formulação.
O direito é problemático e, portanto, constrói-se a partir de situações existenciais que
necessitam de soluções jurídicas. Desta forma, cabe ao Direito adequar o fato à uma solução
jurídica concreta, que seja pertinente ao fato que gerou o problema de direito e não o
contrário.
O que é adequado em termos de solução jurídica é partir do fato, retirar dele suas
particularidades, observar se há norma jurídica que seja adequada para solucionar aquele
problema jurídico, hipótese em que o fato simples transforma-se em jurídico.
A lei jurídica reflete no seu conteúdo a problematicidade inerente ao fenômeno jurídico concreto. As suas proposições contêm, de um lado, o problema, enunciado sob o esquema do fato jurídico; e de outro, a solução, ou seja, os efeitos ou conseqüências o problema fático: ‘a eficácia do direito’ (CASTRO, 1985, p. 6).
15 No contexto do Estado Liberal, observou-se uma enorme construção de teorias do Direito, que fundamentaram
todo o raciocínio e a realidade jurídica experimentada à época, porém essas teorias já não servem de fundamento ao Estado Democrático de Direito, que demanda uma reconstrução teórica.
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Dessa forma, para aplicarmos a este trabalho a teoria situacional, temos que partir do
pressuposto de que o fato, com as suas particularidades, é a causa no nascimento do direito,
pois é dele que surge o problema que cabe ao Direito solucionar.
As normas jurídicas, então, têm o papel de qualificar as situações que sejam relevantes
para o Direito, trazendo-lhes uma solução adequada, o que implica em conferir eficácia
jurídica ao fato.
Segundo Torquato Castro “O pensamento jurídico não é sistemático, mas
profundamente dialético, porque circunstancial”. (CASTRO, 1985, p. 8) Sendo assim,
partindo a análise do Direito – dos problemas de Direito -, a partir do fato, podemos fazer uma
análise que alcance eficácia, pois que todas as informações serão extraídas do fato, para
depois, qualificá-lo juridicamente.
No Direito Privado Brasileiro – e latino-americano de forma geral -, a análise a partir
do fato é ainda mais importante, com vistas a alcançar a eficácia, pois que é impossível
alcançar homogeneidade de interpretação dos fatos em um Estado tão eclético.
Nesse sentido, Lorenzetti, em explicação à crise cultural do Direito Civil, explica que
os países latino-americanos, de tradição européia e com forte influência francesa, representam
uma grande mescla cultural, o que torna impossível uma interpretação sistemática ou
homogênea do direito privado e das situações que lhe são pertinentes.
[...] se nos ativermos ao cânon hermenêutico da autonomia, e reconhecermos o objeto como tal é, poderemos perceber que homogeneidade não há, o que existe é uma evidente diversidade. [...] Na atualidade é quase imprescindível empreender esta tarefa latino-americana, reconhecendo os princípios comuns e harmonizando os Direitos na medida do possível. (LORENZETTI, 1998, p. 63-67).
Lado outro, se trilharmos o caminho interpretativo inverso, tentando, de forma
subsuntiva16, solucionar problemas, não chegaremos a uma solução adequada, pois que os
fatos não seriam considerados em suas particularidades. O direito só nasceria a partir da
adequação do fato á norma abstrata, como em uma fórmula matemática ou física.
Por fim, cumpre salientar que não é o sistema que oferecerá respostas para os
problemas casuísticos, mas os fatos e, é a partir deles que buscaremos os elementos
necessários para que a norma possa conferir-lhes eficácia, dar-lhes efeitos jurídicos. “É o
16 TEORIA DA SUBSUNÇÃO: “a teoria segundo a qual a realização da justiça nos casos concretos seria
assegurada subsumindo os factos ao direito, nos termos de um raciocínio tipo silogístico, em que a premissa maior era um princípio de direito e a premissa menor a situação de facto a resolver. A teoria da subsunção – que conhece também uma versão legalista em que a premissa maior é a lei – tende a reduzir a actividade jurisprudencial a uma tarefa estéril de aplicação automática dos princípios jurídicos” (HESPANHA, 1997, p. 191).
42
problema, e não o sistema, o que constitui o centro de gravidade do pensamento jurídico”
(CASTRO, 1985, p. 17).
Quanto ao fundamento da teoria situacional, tem-se que ela se apóia na “Ética da
situação”, que se trata de uma superação da visão positivista, no sentido de não considerar o
homem em função das regras de direito, mas pela situação real e concreta em que ele se
encontre.
Com base neste fundamento, Francisco Amaral conceitua situação jurídica da seguinte
forma:
[...] as situações jurídicas são conjuntos de direitos ou de deveres que se atribuem a determinados sujeitos, em virtude das circunstâncias em que eles se encontram ou das atividades que eles desenvolvem. Surgem como efeitos de fatos ou atos jurídicos e realizam-se como possibilidade de ser, pretender ou fazer algo, de maneira garantida, nos limites atributivos das regras de direito. (AMARAL, 2008, p. 222).
Portanto, no presente trabalho, partiremos da idéia de que a teoria situacional não será
analisada numa estrutura positivista e sim através da análise concreta dos fatos, para que
depois possa se analisar a qualificação jurídica que a norma confere aos fatos.
Para tanto, seguiremos o estudo da teoria situacional, desde o seu surgimento até o
desenvolvimento que se pretende dar à teoria no enfoque proposto neste estudo.
4.1 Precursores da teoria
O surgimento da situação jurídica deu-se em Josef Kohler (apud CASTRO, 1985, p.
54), que definia a situação jurídica como sendo situações relevantes para o direito que não
estão inseridas na idéia, naquela época ideal, da relação jurídica.
Por situação jurídica entendia Kohler as situações que não se compreendiam na categoria típica e clássica do direito subjetivo, mas, ao seu ver, significavam um elemento ou etapa de nascimento e desenvolvimento desse direito (CASTRO, 1985, p. 54).
Kohler, então, não conseguia visualizar o direito subjetivo como nascido de uma
situação jurídica, ele não pretendia substituir, nem sequer superar a teoria relacional, ele
visava implementá-la.
43
Após, positivista da escola sociológica, Léon Duguit trouxe a situação jurídica como
uma estrutura social. Ele via o direito como social e externo às categorias jurídicas e, desta
maneira, a situação jurídica era uma estrutura social que ao direito cabia objetivar.
Em crítica a este pensamento, a doutrina aponta-se da seguinte forma: “Não se vê o
direito quando se percebe apenas sua matéria social. Duguit identificou como situacional o
fenômeno jurídico; mas em lugar de descrevê-lo, limitou-se a acenas para suas bases sociais”
(CASTRO, 1985, p. 57).
O fato é que Duguit pretendia expurgar os ideais individualistas de que o direito
poderia nascer da vontade de sujeitos, de poderes destes. Todavia, a concepção dele sobre
situação jurídica era genérica demais, referia-se ao fenômeno jurídico como um todo, o que, a
princípio, não guarda identidade com a situação jurídica da forma que pretendemos delinear
neste trabalho.
Após Duguit, tivemos Julien Bonnecase (1931); que dividia as situações jurídicas em
abstratas e concretas, sendo que aquelas eram, segundo ele, provenientes da norma (como
direito a liberdade, personalidade) e as concretas, provenientes dos fatos jurídicos; e Paul
Roubier que rejeitou a idéia de Bonnecase dizendo inexistir situações abstratas, para ele
“situação jurídica é um conjunto de direitos e deveres, prerrogativas e obrigações, que se cria
em torno de um fato, uma situação ou um ato, capaz de gerar efeitos jurídicos”.
Como se pode perceber, ambos os autores partem de uma idéia comum àqueles que
defendem a existência de situações jurídicas: o direito se constrói e inicia-se a partir dos fatos
que, se jurídicos, incidirão sobre as normas.
Todavia, a teoria iniciou-se numa visão ainda absolutista de que as situações deveriam
necessariamente partir das normas. Portanto, a idéia inicial de situação ainda era limitada, sem
contornos críticos específicos.
Ainda é importante mencionar a visão de Carnelutti (apud CASTRO, 1985, p. 57) que,
estudando a estrutura do direito, identificou na situação jurídica os elementos: sujeitos, que
estariam ligados, e objeto, numa estrutura triangular em que “os elementos pessoais são
distinguidos dos reais: ‘partes’, de um lado; bens da vida e relação jurídica, de outro”
(CASTRO, 1985, p. 58).
Carnelutti não tinha o intuito de desconstruir ou criticar, sequer superar a teoria
relacional17, mas trouxe uma enorme contribuição para a teoria situacional, ele identificou que
17 Ele afirma “que a relação entre sujeitos, seria nesse contexto global o único elemento propriamente jurídico;
pois que, para ele, deve-se dizer dos outros elementos, do objeto e das partes, que não são conceitos exclusivamente jurídicos” (CASTRO, 1985, p.59)
44
os sujeitos, por si só, não formam a relação, mas eles, quando ligados em função de um
objeto.
Após este início de desenvolvimento da teoria, que teve primordial importância, para
entender detalhadamente o conceito de situação jurídica, convém iniciar pelo pensamento de
Emílio Betti.
Ele parte do pressuposto de que numa relação jurídica o fato18 contemplado na norma
jurídica pode produzir situações jurídicas no polo ativo e passivo. Partindo dessa premissa, ele
defende que, no polo ativo, uma das situações jurídicas produzidas para o sujeito ativo é a
aquisição19.
A aquisição por parte de uma pessoa consiste em tornar-se esta titular de um determinado direito subjetivo. [...] O exercício de um direito subjetivo consiste em realizar, com referência a outros, um estado de fato ou uma situação jurídica conforme aquele interesse para cuja proteção ele foi criado. [...] Na situação jurídica conforme ao interesse protegido, realiza-se o poder que a ordem jurídica sobrepõe ao interesse, quando, precisamente, o protege. Por conseguinte, na medida em que a proteção jurídica é posta à disposição de sujeito interessado, este tem a possibilidade de lhe promover a efetivação, e de defender o direito, tanto pela via extrajudicial, como através do processo. (BETTI, 2003, p. 37).
A grande contribuição de Betti foi ter trazido a idéia de que a análise jurídica deve
partir do fato e não da norma:
[...] a lei por si só, não dá jamais vida a novas situações jurídicas se não se verificam certos fatos por ela previstos: não porque os fatos se transformem em direito, e sim porque uma situação jurídica preexistente se converte, com o advento do fato novo, em uma situação jurídica nova. (BETTI, 2003, p. 5).
Betti constrói a situação jurídica a partir do fato, mas o fato observado e qualificado
pela norma, todavia ele “define as posições do sujeito de direito como ‘perfis de relações
jurídicas’, reduzindo, afinal, todo o fenômeno a essa relação entre sujeitos.” (CASTRO, 1985,
p. 64-65).
Como se pôde perceber nos enunciados de Betti, a teoria defendida por ele parte de
que o ordenamento jurídico regulamenta genericamente a posição jurídica que porventura
esteja sendo ocupada por um sujeito e, este, por sua vez, tem a proteção jurídica desta posição
à sua disposição, podendo efetivar, desta maneira, seus interesses.
18 Pela teoria de Miguel Reale, toda norma jurídica precede de fato e valor. Na verdade, a partir do fato – juízo
de realidade -, faz-se um juízo de valor com o fito de observar os valores e as necessidades da sociedade – como deve ser – e é exatamente este valor que justifica a produção da norma.
19 Apesar de Emílio Betti referir-se à aquisição, far-se-á, durante o trabalho, uma conversão e/ou uma analogia entre aquisição e direitos reais.
45
A teoria de Betti representa, mais do que um marco, um ponto de partida para o que se
pretende no presente trabalho, apesar de Betti não ter regredido em relação à Carnelutti, que já
havia percebido os elementos ‘partes’ e ‘objeto’ e não apenas a idéia de vínculo de sujeito a
sujeito, de pessoa a pessoa.
Noutro campo do Direito – no Direito Processual Civil – Aroldo Plínio Gonçalves
também enfrentou o tema da situação jurídica. Na verdade, o referido autor não escreve sobre
a relação jurídica em sede de direito material especificamente, mas enquanto fala sobre a
relação jurídica processual, ele critica e nega a existência da relação jurídica em si.
O autor parte da idéia de que a teoria da relação jurídica representa um dogma da
doutrina civilista que se alastrou para os processualistas, apesar de serem dois campos
diversos.
Segundo o autor, a teoria da relação jurídica surgiu no apogeu do individualismo e era
entendida como “um enlace normativo entre duas pessoas, das quais uma pode exigir da outra
o cumprimento de um dever jurídico.” (GONÇALVES, 1992, p. 73-74).
A maior crítica que ele faz a essa idéia clássica de relação jurídica é que nenhum
sujeito pode exigir do outro o cumprimento de alguma coisa, de forma a se admitir um poder
absoluto de alguém sobre a conduta alheia, é como se um sujeito estivesse submetido ao outro
e, como visto acima, a relação se desenvolve pela necessidade daqueles que se relacionam.
Partindo disso, ele determina que “A teoria da relação jurídica em breve se revelou
insuficiente para responder às situações jurídicas que, à evidência, não correspondiam a
vínculos entre sujeitos”. (GONÇALVES, 1992, p. 73-74).
Portanto, para o referido autor, a relação jurídica não satisfaz as diversas formas de
manifestação do direito. Ele nega a existência da relação jurídica, dizendo que ao invés de
relação jurídica há situações jurídicas. E mais, ele determina que “a teoria das situações
jurídicas nasceu para superar a doutrina da relação jurídica [...]” (GONÇALVES, 1992, p. 90)
e que:
[...] o despertar da doutrina jurídica para fragilidade do conceito de relação jurídica, como vínculo entre sujeitos, vínculo de exigibilidade, não teve como conseqüência necessária, como se viu, a destruição da concepção de direitos decorrentes da norma, mas a modificação de seus fundamentos e a sua visualização sob um novo prisma. (GONÇALVES, 1992, p. 93).
A teoria de Aroldo Plínio é muito importante visto demonstrar a grande fragilidade da
teoria da relação jurídica. O autor, no entanto, durante todo o seu raciocínio, atém-se à relação
jurídica processual, o que limita a utilização da teoria dele para o presente trabalho.
46
4.2 Conceito e fundamentos da situação jurídica
4.2.1 O fato jurídico e a qualificação jurídica
O fato jurídico, na visão pontiana, seria a incidência direta da norma sobre o fato. Para
ele, tudo partiria da diferença entre o mundo social e o jurídico.
O direito teria a função de regulamentar o que, no mundo social, lhe fosse interessante
e, partir daí, quando a norma incidisse sobre um fato social, este transformar-se-ia em
jurídico.
Dessa maneira, a norma jurídica atua sobre os fatos que compõem o mundo,
atribuindo-lhes conseqüências específicas (efeitos jurídicos). A norma jurídica adjetiva os
fatos do mundo, conferindo-lhes uma característica que os torna espécie distinta entre os
demais fatos: - o ser fato jurídico.
Ocorre que, partindo deste conceito de fato e de fato jurídico, é importante entender,
na teoria situacional, a importância do fato, pois é dele que partiremos a análise jurídica das
situações relevantes para o direito.
O fato jurídico, quando é fato, e não pura hipótese de lei, é acontecimento sócio-humano que envolve pessoas (agentes) e interesses; pessoas enquanto sujeitos de ações ou pessoas em face de interesses concretos. É nele que se opera a concreção das pessoas e interesses que serão considerados pela norma, e na base dessa concreção é que a norma se determinará, para avocar a pessoa ou pessoas que serão sujeitos de direito, e para configurar o objeto da ação específica, ou da qualificação, que ela lhes impõe. (CASTRO, 1985, p. 43).
Do fato podemos retirar os dados e elementos concretos para que, a partir daí,
possamos observar a qualificação que a norma confere àqueles dados do fato com o intuito de
dar-lhe efeitos jurídicos.
A norma jurídica, assim, opera como qualificadora, conferindo efeitos jurídicos aos
fatos pois que realiza a qualificação do sujeito, do objeto, dos elementos do fato em si, que o
fazem ter efeitos jurídicos. Se a norma referente à locação determina que o contrato de
locação residencial sem prazo determinado pode findar-se através de notificação prévia de 30
(trinta) dias requerendo o locador a desocupação, ela está qualificando que, em relação à
posse direta, decorridos os trinta dias, teria o locador o poder direto sobre a coisa, objeto da
locação.
47
A norma, na medida do alcance que lhe concede o fato, opera ordenando sujeito e objeto – isto é, opera introduzindo na disposição dada a esses elementos pelo fato, uma disposição sua que será faticamente possível, e em que sujeito ou sujeitos se posicionam ao objeto em razão de um mérito do próprio sujeito, ou de cada sujeito. (CASTRO, 1985, p. 44).
A norma, portanto, é que vai determinar as qualificações que um determinado sujeito
precisa ter para posicionar-se perante um objeto específico.
Em relação aos direitos reais, por exemplo, a norma irá conferir qualificações ao
sujeito que pode ser titular de um direito real, à coisa que pode ser objeto de direito real e, por
via de conseqüência, vai conferir ao fato do qual ela conseguiu retirar estes elementos, efeitos
específicos dos direitos reais.
Por fim, cumpre destacar que a teoria situacional parte do fato para analisar a
incidência das qualificações normativas sobre ele, conferindo-lhe efeitos de direito. “A tarefa
de medir, conferir ou distribuir as posições de direito pertence exclusivamente à competência
da ordem jurídica.” (CASTRO, 1985, p.47).
4.2.2 A situação jurídica e sua classificação
Como visto, partiremos, para análise da teoria situacional, do fato, que é a situação
concreta da vida real e social, que pode ou não ter interesse jurídico, pode ou não ter sido
regulamentado pelo direito. O fato jurídico sempre parte de um fato social, da concretude de
acontecimento da vida.
Cada fato social, se qualificado pela norma de direito como sendo jurídico, pode gerar
diversos efeitos dentro do direito em relação aos sujeitos que participam dele e, assim,
diversas situações jurídicas surgem, diversas posições podem ser vislumbradas.
As posições dos sujeitos de direito, enquanto inseridos na situação jurídica, são estruturadas pela norma e assim relativizadas às posições de fato de onde se geram. Pelas posições dos sujeitos, a ordem jurídica os inclui na ordem de seus fins, isto é, são posições individuadas em sua concreção, limitadas em sua extensão e postas em função de uma causa que as estrutura, em razão de compatibiliza-las com o bem comum. (CASTRO, 1985, p. 46).
Então, neste trabalho, deixaremos de lado a visão puramente positivista da teoria
relacional e, numa análise problemática, partiremos dos fatos que qualificados como jurídicos,
48
geram posições jurídicas diversas. De um mesmo fato, pode-se ter várias posições de sujeitos
frente a um objeto: podem surgir várias situações jurídicas.
O Direito se opera, nesta ótica, da interpretação tópica dos problemas, o Direito não
pode ser visto numa dimensão meramente abstrata – no mundo do dever ser apenas -, o direito
é um fenômeno situacional. As figuras jurídicas devem sempre ser vistas a partir dos fatos e
não da norma; esta é também uma conseqüência dos fatos.
Quanto às posições dos sujeitos, que se traduzem em direitos ou em deveres, são conceituadas como categorias ideais, de existência anterior ao direito e indiferentes aos fatos jurídicos, que não teriam a virtude de gera-las. Nessa perspectiva, o papel do direito se constituiria, não na tarefa de dar existência a tais direitos e deveres, mas na de torna-los exigíveis de coação (ª Thon). E por serem puramente ideais tais direitos e deveres, puros assim de qualquer participação na concretude, nada impede sejam configurados como forma de conceitos universais abstratos, tais como dirietos absolutos do homem, ou deveres jurídicos genéricos, ou coisas dessa ordem. (CASTRO, 1985, p. 47).
Enfim, no que se refere aos fatos, temos que somente seles podem oferecer a base
ideal de interpretação, pois é dele que se retira o contexto social para interpretação da norma.
E, quanto à norma, ela é uma espécie de norma situacional, que vislumbra as mais diversas
situações provenientes de um fato, mas não de maneira abstrata e sim, concreta.
Torquato Castro, então, coadunando com o entendimento deste trabalho, nos oferece
de situação jurídica:
O direito revela-se, assim, no plano fenomênico, como um concretum situacional, consistente em uma disposição normativa de objetos certos ou medidos, enquanto referidos a sujeito ou sujeitos individualizados. Nessa ordem dispositiva, instaurada pela norma, todo sujeito será aquele que for referido ou posicionado ao objeto, ocupando, assim, uma posição. Esse concretum situacional denomina situação jurídica. (CASTRO, 1985, p. 50).
O interessante, nesta idéia, é considerar que mesmo quando um sujeito, visto sob uma
situação jurídica, relacionar-se com outro, em outra situação, as situações não serão estudadas
como se um sujeito estivesse submetido ao outro e sim vinculados a um mesmo objeto.
Pensando dessa maneira, o autor entende que no momento em que a norma incide
sobre o fato, este se transforma em fato jurídico e os diversos efeitos originados desta
incidência serão estudados de maneira concreta, em cada situação originada.
Partindo, dessa maneira, de todas as premissas acima analisadas, temos que os
elementos constitutivos da situação jurídica são: a) sujeito; b) objeto; c) posição de sujeito
(posição deferida pela norma ao sujeito, em relação ao objeto). Esses três elementos podem
49
fazer surgir um quarto, em decorrência da relação que possa surgir entre sujeito, em relação a
um objeto d) relação intersubjetiva.
O conceito destes elementos não difere muitos dos mesmos conceitos em sede da
teoria relacional, o que há de diferente é a forma de visualizá-los. Os sujeitos são aqueles que
foram qualificados pela norma jurídica como titulares de algum direito ou de alguma
obrigação e que, em função deste direito ou obrigação, estão ligados a um objeto, que pode
ser um direito, uma prestação ou uma coisa. A posição do sujeito perante o objeto é que vai
fazer surgir as mais diversas situações jurídicas, inclusive aquela em sujeitos estão
posicionados de maneira correlata – o que implica o quarto elemento (relação intersubjetiva).
As situações jurídicas, em conformidade com a posição do sujeito perante o objeto, se
classificam ou se dividem em situações uniposicionais e relacionais.
Quanto às situações uniposicionais, a norma perfaz o papel de qualificar os sujeitos e
os objetos e esta qualificação pode ser completa, independente de fatores externos a ela, ou
não. Quando a norma cumpre o papel qualificador-atributivo por completo, tem-se as
situações uniposicionais, que podem se representar da seguinte maneira: A → O. Ou seja, o
sujeito não se relaciona com outro e está posicionado diretamente ao objeto.
São situações jurídicas uniposicionais: o estado das pessoas, os direitos
personalíssimos, os direitos reais, a posse, entre outras.
Nas situações jurídicas reais, que são objeto deste trabalho, tem-se que a norma
jurídica qualifica alguns direitos como sendo reais, atribuindo-lhes caracteres que lhes são
peculiares – o que ainda será tratado neste trabalho – e, a partir daí, toda vez que o fato social
tiver os caracteres atribuídos pelas norma, tratar-se-á de um direito real. O titular do direito
real posiciona-se diretamente perante o objeto – a coisa -, independendo o exercício do seu
direito de aspectos externos.
Então, ao contrário do que defende a teoria relacional, o titular do direito real não
depende de uma relação com a coletividade – sujeito passivo universal -, para se posicionar
diretamente em relação ao objeto – coisa. Os poderes atribuídos pela ordem jurídica ao titular
do direito real sobre a coisa independem de qualquer relação intersubjetiva.
Por outro lado, no que se refere às situações jurídicas relacionais20, elas podem ser
representadas como um triângulo ente dois sujeitos e um objeto, mas não como na relação
jurídica tradicional, mas de maneira que cada sujeito esteja em sua própria situação jurídica,
mas ambos os sujeitos estejam posicionados em relação a um mesmo objeto. Em função do
20 Há situações que envolvem no mínimo dois sujeitos, diversamente posicionados (postos em confronto) diante
do objeto. Dizem-se, por isso, situações relacionais. (COSTA JUNIOR, 1994, p. 18).
50
objeto é que estes sujeitos se relacionam e não em função de alguma submissão de um em
relação ao outro.
Numa relação jurídica obrigacional de crédito, por exemplo, o objeto é a obrigação de
pagar um determinada quantia. A situação jurídica de crédito é qualificada pelo ordenamento
da seguinte forma: o sujeito titular desta posição tem o direito de receber a quantia e, na
hipótese de inadimplemento, pode exigir seu pagamento. A situação jurídica de débito, por
sua vez, é qualificada pelo fato de o titular da posição ter a obrigação de pagar a quantia em
conformidade com os termos do acordo. As duas posições jurídicas, pelo fato de incidirem
sobre um mesmo objeto, se relacionam: um sujeito depende do outro para exercer os direitos e
deveres advindos da sua posição perante o objeto. Tem-se, então, neste exemplo, uma
situação jurídica relacional.
A nossa tendência, porém, é equiparar a situação jurídica relacional à relação jurídica.
Por óbvio, elas muitos se assemelham, pelo fato de os sujeitos se relacionarem, mas a teoria
situacional faz a qualificação a partir do fato social, permitindo o estudo fático e casuístico de
cada uma das posições que se inter-relacionam, o que não é feito na visão abstrata da teoria
relacional.
Todavia, apesar da relevância de se diferenciar detalhadamente a situação jurídica
relacional da relação jurídica, este não é objeto do presente trabalho, motivo que nos permite
não delongar esta discussão.
O que nos é importante, neste momento, determinar é a noção de situação jurídica que
teremos neste trabalho, a de Torquato:
Situação jurídica é a situação que de direito se instaura em razão de uma determinada situação de fato, revelada como fato jurídico, e que se traduz na disposição normativa de sujeitos concretos posicionados perante objeto certo, isto é, posicionados em certa medida de participação de uma res, que se define como seu objeto. (CASTRO, 1985, p. 50).
51
5 DIREITOS REAIS E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
5.1 Caracteres dos Direitos Reais
Todos os direitos reais possuem caracteres comuns, que identificam um determinado
direito como sendo real. Ao mesmo tempo, cada direito real possui caracteres específicos, que
faz com que um direito real seja diferente do outro, gerando, desta maneira, efeitos diversos
também.
Os direitos reais são caracterizados pelo seguinte: a) absolutismo; b) sequela; c)
preferência; d) registro imobiliário e tradição; e)tipicidade.
5.1.1 Absolutismo
Quando apenas lemos o caractere absolutismo, dos direitos reais, tropeçamos num
ledo engano: parece que ainda estamos nos referindo ao tempo em que os direitos reais eram
inquestionáveis e não comportavam quaisquer limites.
Todavia, o ‘ser absoluto’ dos direitos reais refere-se ao fato da sua oponibilidade erga
omnes, os direitos reais são oponíveis a terceiros.
Trata-se de uma característica que contrasta com os direitos obrigacionais, que são
relativos e, portanto, somente geram efeitos entre as partes envolvidas na relação de conteúdo
obrigacional.
Segundo Nelson Rosenvald “O absolutismo é traço básico que aparta os direitos reais
dos obrigacionais, marcados pela relatividade. De fato, nas obrigações não há poder jurídico
sobre um objeto oponível a toda a coletividade”. (ROSENVALD, 2004, p. 3).
Para melhor delineamento deste caractere, importante frisar que o absolutismo refere-
se à oponibilidade e não à inviolabilidade dos direitos reais.
Os direitos reais são absolutos porque o poder de fato que o titular dos direitos reais
tem sobre a coisa é oponível a todos. O fato de não se poder violar os direitos reais – a
inviolabilidade-, não é um traço identificador dos direitos reais, até porque, pela regra geral de
que é ilícito violar direito alheio, todos os direitos – seja pessoal ou real -, são invioláveis.
52
Adriano Stanley elucida a diferença, determinando: “Por inviolabilidade entenda-se a
posição do sujeito em relação à norma. Por isso podemos dizer que invioláveis são tanto as
relações jurídicas reais quanto também as obrigacionais” (SOUZA, 2007, p.214).
Desta maneira, tem-se que os direitos reais diferem-se dos obrigacionais pelo fato de
não serem relativos como estes, mas sim absolutos, no sentido de oponíveis contra toda
coletividade.
5.1.2 Sequela
Os direitos obrigacionais são classificados como pessoais porque o seu exercício
depende da atitude ou não atitude da outra parte e, por isso, são direitos travados e exercidos
de pessoa a pessoa.
Por outra via, os direitos reais são exercidos pelo titular, diretamente sobre uma coisa
e, desta maneira, independente de quem seja o titular da coisa, o direito poderá ser exercido
em relação à coisa. “Os direitos reais aderem à coisa, sujeitando-a imediatamente ao poder de
seu titular, com oponibilidade erga omnes”. (ROSENVALD, 2004, p. 4).
5.1.3 Preferência
Segundo Nelson Rosenvald, a preferência:
[...] consiste no privilégio do titular do direito real em obter pagamento de um débito com o valor do bem aplicado exclusivamente à sua satisfação. Havendo concurso de credores, a coisa dada em garantia é subtraída da execução coletiva, pois o credor real, v. g., pignoratício ou hipotecário – prefere a todos os demais. (ROSENVALD, 2004, p. 05)
A preferência decorre dos direitos reais de garantia. O credor que possui a garantia do
adimplemento através do gravame sobre um bem – hipoteca, penhor e anticrese -, não está
sujeito à concorrência, ele receberá o seu crédito através da alienação do bem gravado em
garantia – salvo na hipótese de existirem créditos previdenciários e trabalhistas a serem
satisfeitos (trata-se de um privilégio legal – Lei no 11.101 de 09 de fevereiro de 2005).
53
Apesar de o autor acima citado trazer a preferência como uma característica dos
direitos reais, de forma genérica, não concordamos com este posicionamento. Trata-se, a
nosso ver, de uma característica exclusiva dos direitos reais de garantia, que, como visto, pode
ser observada no momento de recebimento do crédito pelo credor que possui uma garantia
real.
Como, portanto, somente nos direitos reais de garantia é que temos a aplicabilidade da
preferência, neste trabalho desconsideraremos a preferência como característica dos direitos
reais como um todo.
5.1.4 Registro e tradição
Os direitos reais se efetivam por meio de uma situação jurídica em que o sujeito
exerce seu direito diretamente sobre uma coisa, objeto de direito.
A coisa, no entanto, pode ser um bem móvel ou imóvel e, no direito brasileiro, o
direito real sobre a coisa somente nasce depois do registro do direito real no Cartório de
Registro de Imóveis, se o bem for imóvel ou da tradição, se o bem for móvel.
O direito brasileiro, num meio termo entre o sistema alemão21 e francês22, a aquisição
de propriedade imóvel somente é adquirida com o registro, que gera presunção relativa de
veracidade, porém, o momento registrário se prende ao título – momento obrigacional.
O título, no sistema brasileiro, serve de causa ao registro. Neste sentido:
Em nosso sistema, o título simplesmente serve de causa à futura aquisição de propriedade, pois nosso ordenamento jurídico, diversamente do francês, não reconhece força translativa aos contratos. É fundamental a intervenção estatal, realizada pelo oficial do Cartório Imobiliário. O modo de aquisição é o fato jurídico que vincula o direito de propriedade ao adquirente do título. O registro exerce dupla eficácia: constitui e publica o direito real. (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 238).
21 No “Direito tedesco, os contratos produzem apenas obrigações. Para a transmissão da propriedade é abstraída
a causa (contrato), já que a passagem da propriedade resulta de uma segunda convenção – denominada convênio jurídico-real – realizada pelas mesmas partes perante o oficial de registro e completamente dissociada do título originário”. (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 237). O sistema registral alemão é o mais rigoroso, o registro gera presunção absoluta de veracidade e o título não está conexo ao registro. São momentos desvinculados.
22 No sistema francês “o registro imobiliário constitui mero instrumento de publicidade, pois os contratos isoladamente transmitem a propriedade e geram eficácia real. O simples consentimento legitimamente manifestado pelas partes sobre a coisa e o preço são suficientes para aquisição de propriedade.” (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 236).
54
No que se refere aos direitos reais sobre bens móveis, estes somente se operam ou se
constituem pela tradição.
A tradição é consagrada como sendo a efetiva entrega da coisa, com o intuito de
transferência de propriedade e pode se repartir em tradição real ou ficta. Na primeira
modalidade, a tradição se opera pela real entrega da coisa a outrem. Todavia, a tradição ficta
opera todos os efeitos da tradição, apesar de a coisa não ser efetivamente transferida das mãos
do alienante ao adquirente.
O importante, para este trabalho, é a compreensão de que a constituição dos direitos
reais sobre bens móveis dá-se através da efetivação da tradição e, da mesma forma que o
sistema imobiliário, há dois momentos interligados, mas com efeitos diversos: a) o momento
da convenção: que estipula a criação de direitos reais sobre bens móveis através de uma
situação jurídica obrigacional; b) a execução da tradição: que faz surgir o direito real, que
determina o seu nascimento.
5.1.5 Tipicidade
Quando atualmente se fala sobre os direitos reais, sobre as espécies de direitos reais,
refere-se, tão logo, ao art. 1225, do Código Civil, como sendo este o rol taxativo das espécies
de direitos reais existentes no ordenamento jurídico brasileiro.
Antes de limitar a tipicidade a tão pouco, importante elucidar o que vem a ser a
tipicidade, descrita em sede de direitos reais, tendo em vista que na maioria dos manuais sobre
os direitos reais, pouco se discorre a respeito desse tema.
Assim, o princípio da tipicidade dos direitos reais que norteia, no entendimento praticamente unânime dos autores, o Direito das Coisas é tratado com notório comedimento ou é relegado ao esquecimento. E, em suma, os autores nacionais pouco discorrem sobre ele, no mais das vezes apenas para assentar a impossibilidade de criação de outras categorias de direito real que não os estabelecidos em lei, o que, por si só, demonstra alguma confusão entre os dois princípios semelhantes, mas não idênticos. (GONDINHO, 2001, p. 4)
A tipicidade é uma técnica legislativa que decorre do Princípio do numerus clausus.
Este princípio, em sede de direitos reais, refere-se à impossibilidade de criação de outros
direitos reais, por meio da autonomia privada. A tipicidade, por sua vez, trata-se da técnica de
55
especificar em lei as espécies de direitos reais, regulamentando-os e trazendo, juridicamente,
caracteres que os identifiquem.
[...] a tipicidade é a previsão, pelo ordenamento, dos traços essenciais de determinada realidade jurídica, e não somente a sua nomeação pela lei, embora não raro se fale em tipicidade nessas hipóteses. A tipicidade se destina, funcionalmente, a fornecer uma regulamentação. (GONDINHO, 2001, p. 84).
Ocorre que a tipicidade não surgiu no direito brasileiro, tampouco com o Código Civil
de 2002 e o entendimento de que os direitos reais são regidos pelo Princípio do Numerus
Clausus também não é uma unanimidade.
A notícia histórica que se tem da clausura dos Direitos Reais é romana. Com a
codificação napoleônica, os direitos reais passaram a ser vislumbrados numa estrutura fechada
e limitada.
Não que antes da Revolução Francesa, os direitos reais fossem concebidos pela
autonomia privada, mas foi apenas com a codificação, fruto desta revolução, que o tratamento
tipificado dos direitos reais se deu por determinação de lei.
[...] a tipicidade real não foi, rigorosamente, introduzida pela Revolução Francesa, haja vista que, também, no período medieval, poder-se-ia falar em tipicidade, mesmo que assistemática. Na verdade, teria ocorrido uma mudança da fonte da tipicidade. Enquanto, no medievo, as formas admitidas de direito real tinham sua fonte nos costumes, e por isso, não raro, se fala em atipicidade; no Estado Moderno, introduzido pela Revolução Francesa e pelo Código de Napoleão, as formas de direito real passam a ser previstas única e exclusivamente pela lei. (GONDINHO, 2001, p. 21).
A Revolução Francesa, desta maneira, tem grande importância pelo fato de ter
introduzido o princípio do numerus clausus em relação aos direitos reais. “O legislador
revolucionário, ao mesmo tempo em que consagrava a mais ampla liberdade no campo dos
direitos obrigacionais, tentava impor um rol preconcebido de direitos reais.” (GONDINHO,
2001, p. 23).
No código napoleônico, em que pese o fato de ter trazido um rol fechado dos direitos
reais, não havia menção expressa de que eles seriam tratados num sistema numerus clausus, o
que gerou dúvidas quanto à possiblidade de se criar novas modalidades de direitos reais, como
fruto da autonomia da vontade, dentro de um sistema numerus apertus.
No Brasil, há defensores do sistema numerus apertus, como Whashington de Barros
Monteiro:
56
Outros direitos reais poderão ser ainda criados pelo legislador, ou pelas próprias partes, desde que não contrariem princípios de ordem pública. Vários autores sustentam este ponto de vista. Realmente, texto algum proíbe, explicita ou implicitamente, a criação de novos direitos reais, ou a modificação dos direitos reais já existentes. (MONTEIRO, 1990, p. 30).
Em que pese o fato de existirem autores que defendam o sistema numerus apertus, os
julgados brasileiros apontam entendimentos no sentido do sistema do numerus apertus: “a
atual doutrina e a hodierna jurisprudência têm-se mostrado pacíficas quanto à vigência, em
nosso Direito, do princípio do numerus clausus dos direitos reais” (GONDINHO, 2001, p.
32).
Neste trabalho, então, entendemos que os direitos reais são sim regidos por um sistema
numerus clausus, entretanto, quanto à técnica da tipicidade, não achamos que ela se restringe
à elaboração de um rol taxativo de direitos reais (art. 1225 do Código Civil).
Neste sentido, Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias entendem que a
restrição descrita pelo 1225 não está na possibilidade de existirem outros direitos reais que ali
não estejam descritos, mas na possiblidade de criação de direitos reais por autonomia privada:
“O fato de existirem direitos reais típicos no rol do art. 1225 certamente impede a criação de
novos direitos reais, mas não elimina a possibilidade de modelação expansiva dos direitos
reais já existentes.” (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 11).
Entendemos que os direitos reais são regidos, de forma comum, por regras e caracteres
que identificam um direito como sendo real e, desta maneira, havendo previsão legal – em
quaisquer partes do ordenamento jurídico -, de um direito que tenha identidade de caracteres
com os direitos reais, assim ele poderá ser tratado.
5.2 Adequação dos direitos reais à realidade do Estado Democrático de Direito
Como visto acima, os direitos reais, inseridos num Estado Democrático de Direito
onde, de fato, deve haver participação do povo nas decisões de interesse comum, ainda
continuam sendo tratados da mesma maneira: como uma relação jurídica tipificada num rol
taxativo, dentro de um sistema numerus clausus.
Diante desta constatação, questiona-se sobre a possiblidade de existência de um
descompasso entre os direitos reais e esta realidade estatal.
57
Primeiramente, os direitos reais ainda são vistos por grande parte dos doutrinadores
brasileiros como uma relação jurídica. Como visto acima, a teoria relacional não pode ser
desmerecida ou simplesmente criticada, ela representa a realidade dos códigos civis
oitocentistas e não mais se adequam à realidade jurídico-estatal que se perpassa no Brasil.
Quando elaborada, pelos pandectistas, a teoria relacional servia aos anseios de uma
classe burguesa que pretendia segurança para realizar suas operações capitalistas – com o
objetivo de acúmulo de riquezas.
Como já visto, o teoria relacional é fruto de uma abstração da teoria do direito civil. O
objetivo era criar uma fórmula, com tipos específicos de relações, com tipos específicos de
sujeitos de direito: somente seria relevante para o direito os fatos sociais que se adequassem
àquela realidade legal.
A tipificação e formalização das possíveis relações jurídicas, ou seja, a visão do direito
através de uma abstração foi uma idéia condizente com o positivismo e com o anseio de
tornar fixa e segura a aquisição de riqueza pela classe burguesa23, porém, é incompatível com
a valorização da pessoa humana.
[...] Este primado da relação da vida considerada como típica – do instituto, como diz SAVIGNY – sobre a norma ou disposição que a regulamenta, constitui, com certeza, um seguro progresso em ordem ao legalismo do SAVIGNY mais juvenil. Por outra via, constitui um progresso em ordem a um jusnaturalismo romanticamente individualista que partia, para falarmos como ROSSEAU, do ‘promeneur solitaire’, do homem sozinho, esquecendo aparentemente a alteridade do Direito, a sua profunda e indefectível socialidade. Não da vida, mas da vida em relação, nasce o Direito, pelo que só o nível das relações inter-humanas pode o Direito correctamente compreender-se. (CARVALHO, 1981, p. 44-45).
Dessa maneira, no que se refere à dita relação jurídica real, vários são os motivos que
a torna incompatível com o advento do Estado Democrático de Direito.
Primeiramente, pela própria abstração da teoria relacional que, como visto, não é
condizente com a estrutura do Estado Democrático e sim com o Estado Liberal.
Todavia, esta abstração em sede de direitos reais tomou uma frente ainda maior, visto
que para encaixar os direitos reais na estrutura fixa da relação jurídica, criou-se o que se
chama ainda hoje de sujeito passivo universal de maneira que os direitos reais são ainda
vislumbrados como uma relação entre o titular do direito real e a coletividade em função de
um poder que se tem sobre a coisa.
23 “Entre o Code Civil e a pandectística não há, no fundo, uma diferença de projectos: servem aos interesses da
mesma e única classe.” (CARVALHO, 1981, p. 43).
58
Por todos os motivos já apresentados, entendemos, neste trabalho, que os direitos reais
não são estruturados como relacionais e sim como uma situação jurídica uniposicional, o que
será em momento oportuno concluído mais detalhadamente.
Noutro passo, os direitos reais, no direito brasileiro, além de serem tratados por boa
parte da doutrina como uma relação jurídica real, definitivamente são tratados dentro de um
sistema numerus clausus:
[...] é forçoso reconhecer que a orientação vigente em nosso sistema jurídico manifesta-se ampla e pacificamente no sentido do princípio do numerus clausus dos direitos reais. Assim é que não pode haver, em nosso ordenamento, um direito real, reconhecido como situação jurídica concreta, se não existir anteriormente norma legal que o preveja. (GONDINHO, 2001, p. 35-36).
Com este fato, esta constatação, nós concordamos, mas pretendemos mudar a forma de
se visualizar a tipicidade dos direitos reais, na prática.
O motivo da adoção do Princípio do numerus clausus, no antigo Código Civil, foram
liberais e individualistas: por interesses capitalistas, objetivava-se manter a segurança jurídica
no tratamento dos direitos reais, especificamente do direito de propriedade.
Atualmente, no Código Civil de 2002, a mantença deste princípio possui outros
propósitos e justificativas, tudo parte da tônica do texto constitucional de 1988: “prestigiar o
coletivo, defender o interesse público, ainda que, para tal defesa, o proprietário tenha que ser
privado do seu direito de propriedade.” (SOUZA, 2007, p. 221).
[...] veja que se no Código Civil de 1916, o que se tutelava era mais o privado que o social, os limites criados pelo Estado aos Direitos Reais tinham cunho econômico, o Estado se utilizava do princípio do numerus clausus como instrumento hábil a evitar qualquer risco de desvalorização da propriedade privada e, consequentemente, riscos à estrutura capitalista do Estado daquela época, hoje, o princípio do numerus clausus foi mantido em nosso ordenamento civil sob uma nova perspectiva. [...] Ele se vale do numerus clausus como instrumento eficiente a restringir e, sobretudo, impor limites aos Direitos Reais de modo a que estes possam, a qualquer momento, sofrer a intervenção do Estado, sempre que assim clamar o interesse ou a necessidade pública (SOUZA, 2007, p. 221-222).
Neste contexto atual, não cabe mais visualizar que são direitos reais aqueles direitos
descritos e taxativamente enumerados no art. 1225 do Código Civil visto que há o que
justifique a enumeração; há o que identifique os direitos ali enumerados.
Desta maneira, concordamos sim com a intervenção do Estado na identificação dos
direitos reais, mas esta identificação não deve partir da norma simplesmente, como no sistema
positivista, mas deve partir de uma identificação dos fatos.
59
De todo fato social pode-se retirar elementos concretos que permitam a qualificação
dele pela norma jurídica, que pode ou não transformá-lo em fato jurídico. No caso dos direitos
reais, do fato social, poderíamos retirar os caracteres e, após, analisar se estes caracteres
coincidem com os caracteres comuns aos direitos reais e desta maneira é que poderíamos, sem
perder de vista o princípio do numerus clausus, identificar os direitos que fossem reais.
Dessa maneira, vimos acima que os direitos reais possuem por caracteres comuns o
absolutismo, a sequela, o registro e a tradição e a tipicidade. Então, toda vez que nos
depararmos com uma situação jurídica em que o sujeito exerce seu direito em relação uma
coisa, caso estes caracteres estejam presentes, poderíamos tipificar esta situação fática como
uma situação jurídica real.
Em exemplos rápidos, já que não é objeto deste trabalho a análise da natureza jurídica
de outros direitos, vejamos a posse e a retenção.
Imaginemos a situação de uma pessoa “A” que exerce posse sobre um bem imóvel
“X”. Questionaríamos: “A” exerce posse sobre “X” em função de uma relação jurídica
pessoal? Caso “A” perca a posse sobre “X” em função de uma retirada forçosa da coisa por
“B”, “A” poderá opor seu direito de posse a “B”? E se outra pessoa, de boa-fé, viesse a
adquirir a posse de “X”, ainda assim “A” manteria seu direito sobre “X”? “A” pode buscar
“X”, para o exercício de sua posse, nas mãos de qualquer pessoa, durante seu tempo de posse?
Como “X” é bem imóvel, existe a possiblidade de se registrar o seu direito no Cartório de
Registro de Imóveis? Há previsão legal do instituto posse?
A posse, pelo atual Código Civil, art. 1196, é o exercício de alguma das faculdades
inerentes à propriedade. A posse surge de uma situação jurídica real ou obrigacional, que faz
surgir, em favor do titular da posse, um poder de fato sobre a coisa. Neste ponto, a posse se
identifica com os direitos reais, pois que também é uma situação jurídica uniposicional em
que o titular, independente de outro sujeito, exerce seu direito de posse diretamente sobre um
objeto.
Noutro giro, no que se refere à oponibilidade da posse, ela não alcança a mesma
oponibilidade dos direitos reais, tendo em vista que o exercício da posse só pode ser oposto
àquele que porventura participou da situação jurídica que fez surgir a posse. Dessa forma, se a
posse surge de um Contrato de Locação, o locatário somente pode opor os seus direitos
possessórios ao locador.
Quando, por meio das ações possessórias, o possuidor pode defender sua posse contra
quaisquer pessoas da sociedade que cometam agressões à posse, não se trata de oponibilidade,
60
mas apenas de inviolabilidade que, como visto, não é caractere inerente apenas aos direitos
reais, mas é consequência do dever de não violar direito alheio.
Sendo assim, se a posse não gera oponibilidade erga omnes, também não tem a posse
o caractere da sequela, visto que este é desiderato do absolutismo dos direitos reais.
Por fim, a posse sobre bens imóveis não têm caractere do registro. A posse pode até
ser registrada e alcançar, desta maneira, a oponibilidade erga omnes em função do registro
feito, mas a posse sobre bem imóvel não surge pelo registro, como são os direitos reais sobre
bens imóveis.
Pelo que suscintamente analisamos sobre a posse, esta não é um direito real.
Noutro giro, no que se refere ao direito de retenção, imaginemos a situação em que
João tenha alugado seu imóvel para pessoa jurídica “X”, através de um contrato de Locação,
que fora averbado no CRI – Cartório de Registro de Imóveis. Consideremos que a Pessoa
Jurídica tenha realizado benfeitorias necessárias e úteis, de boa-fé, no valor de R$_5.000,00
(cinco mil reais), sendo que o valor do aluguel era de R$_500,00 (quinhentos reais). Bom,
caso João pedisse o imóvel de volta para uso próprio, no curso da locação, em sede de uma
Ação de Cobrança, o Juiz poderia determinar, em favor da Pessoa Jurídica X, o exercício do
direito de retenção, pelo prazo de 10 meses.
Neste caso, questionaríamos: “X” pode reter coisa em função de uma relação pessoal
ou em função de um direito que possa exercer sobre a coisa? Caso, dentro do p´razo de 10
meses, “X” perca a posse sobre a coisa em função de uma retirada forçada por João, “X”
poserá opor seu direito de retenção em face de João? E se outra pessoa, de boa-fé, viesse a
adquirir o imóvel, ainda assim o direito de retenção de “X” deveria ser repeitado? “X” pode
buscar a coisa, para o exercício de seu direito de retenção, nas mãos de qualquer pessoa,
durante seu tempo de retenção – 10 meses? Como a coisa é bem imóvel, existe a possiblidade
de se registrar o seu direito no Cartório de Registro de Imóveis? Há previsão legal do instituto
retenção?
O direito de retenção é tratado pela atual legislação como sendo um direito pessoal,
dito efeito de situações possessórias, porém, o que se pode extrair desse exemplo é que, uma
vez conferido por decisão judicial o direito de retenção, o titular do direito exerce seu direito
sobre a coisa e contra todos e, tendo em vista ter sido o direito determinado por sentença, não
há óbice que seja feito o seu registro no CRI.
Por fim, entendemos, nesta rápida análise, que o direito de retenção é um direito real,
visto que em que pese o fato de não estar elencado no rol do art. 1225, estão presentes os
61
caracteres dos direitos reais, o que, pelo raciocínio até então trazido no texto, permite a
classificação como direito real a partir das caracterísiticas.
Todavia, importante esclarecer que o objetivo destes exemplos não foi concluir sobre
qual é a natureza jurídica da posse ou da retenção, até porque tal temática demandaria um
trabalho com estes objetos de pesquisa apenas, mas foi demonstrar que análise da tipicidade
não pode se dar pelo simples questionamento de estar ou não o direito previsto no art. 1225 do
Código Civil.
Em se tratando de um Estado Democrático de Direito, não cabe mais a análise do
direito de maneira exclusivamente positivista24, de forma a identificar os direitos reais a partir
da norma, simplesmente. Entendemos que o rol descrito no art. 1225 do Código Civil não
pode ser estendido pela autonomia privada, mas a partir do momento que há previsão de um
direito no ordenamento jurídico e, partindo da análise do fato social, ocorre a qualificação do
fato como situação jurídica real, pela identificação das características de direito real, nada
impede que este rol seja extrapolado.
Este extrapolamento não fere o Princípio do Numerus Clausus, sequer a técnica da
tipicidade, mas é uma forma interpretativa dos direitos reais que entendemos ser mais
coerente com o atual Estado Democrático de Direito.
Todavia, é importante ressaltar que neste trabalho não visamos analisar as hipóteses de
extrapolamento do art. 1225 do Código Civil, mas apenas demonstrar como essa hipótese não
pode ser descartada mantendo o numerus clausus e a tipicidade.
24 O positivismo é uma importante teoria interpretativa do direito, mas que diante do Estado Democrático de
Direito, deve ser visto e estudado como um ponto evolutivo importante e não como único parâmetro interpretativo.
62
6 DIREITOS REAIS: SITUAÇÃO JURÍDICA E TIPICIDADE
6.1 Direitos reais como uma situação jurídica
A teoria relacional defendida pelos pandectistas, especificamente por Savigny e
Ihering e mais tarde por vários juristas não somente alemães, mas de muitos outros países,
tratava o direito civil a partir de uma idéia abstrata de relação jurídica.
O ordenamento jurídico trazia relações jurídicas tipificadas como a propriedade, o
casamento, o contrato, entre outras e os fatos da vida, para merecerem tratamento jurídico,
deveriam se adequar ao modelo de relação típica previsto em sede de legislação.
Dentre as relações jurídicas tipificadas, encontravam-se as relações jurídicas de direito
real como a propriedade, o usufruto, entre outras. Os pandectistas, que viam o direito civil a
partir do esquema relacional, não pensaram, todavia, na estrutura da dita relação jurídica real.
Eles simplesmente pretendiam “empreender um sistema de direito civil só
formalmente apoiado na vida mesma das relações”, é como se os pandectistas tivessem criado
uma estrutura geral onde toda situação de fato que lhe fosse semelhante pudesse encaixar.
[...] a óptica pandectística sentiu-se dispensada desde aí de qualquer esforço de correspondência às estruturas vitais, visto que as superestruturas dos conceitos se ofereciam desde aí como a transcrição científica de semelhantes estruturas, como o espelho fiel de tais instituições. (CARVALHO, 1981, p. 46).
Dessa maneira, a partir da teoria relacional construída pelos pandectistas, vários
juristas construíram a estrutura das mais diversas relações jurídicas pessoais e reais e diversos
ordenamentos também trouxeram como corpo de uma parte geral do direito civil a relação
jurídica.
No Brasil, a teoria relacional foi adotada expressamente pelo Código Civil antigo – de
1916 -, quando em seu texto, no art. 1º prescrevia que “Este Código regula os direitos e
obrigações de ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações”.
O Código Civil de 1916 pecou, segundo inclusive a crítica da época, pelo excesso de
abstração, seguindo, portanto, as influências tanto da revolução francesa, quanto,
principalmente, do pandectismo alemão.
Giordano Bruno Soares Roberto, narrando as críticas travadas à promulgação do
Código Civil de 1916, menciona que “não se pode negar que teve seus preceitos redigidos
63
com excesso de abstração, que foi conservador em suas escolhas, que não se ocupou de
questões sociais” (ROBERTO, 2008, p. 62).
A partir, então, da adoção da teoria relacional pelo código civil antigo, os
doutrinadores brasileiros passaram a vislumbrar o direito civil por meio de relações jurídicas
e, apesar de Código Civil de 2002 não ter repetido a redação do antigo código, ainda se adota
a teoria relacional para explicar as relações privadas.
A relação jurídica apresenta-se, então, como categoria capaz de explicar toda atividade jurídica do indivíduo. [...] o conceito de relação jurídica é fundamental no direito, podendo dizer-se que é uma categoria básica do direito privado. Representa um nexo jurídico entre pessoas, contendo poderes e deveres. (AMARAL, 2008, p. 31).
A Parte Geral do Código Civil contém preceitos aplicáveis aos institutos disciplinados na Parte Especial e divide-se em três livros. [...] E o livro III, da teoria dos fatos e atos jurídicos, isto é, da relação jurídica. (RODRIGUES, 2003, p. 12).
[...] na tradicional visão da doutrina (majoritária) brasileira o conceito de fato jurídico sempre esteve centrado, fundamentalmente, na induvidosa produtividade de seus efeitos, fazendo com que as relações jurídicas viessem a nascer ou a ser extintas, modificadas ou substituídas. (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 413).
Partindo, desta maneira, da interpretação de que o legislador do Código Civil atual
tenha adotado a teoria relacional, os doutrinadores brasileiros passaram a discutir a aplicação
da teoria relacional nas relações jurídicas reais.
Com já visto, uma primeira corrente teórica, a realista, defende a idéia de que, na
relação jurídica de direito real, trava-se uma estreita relação entre a pessoa e a coisa. No
Direito Brasileiro, o doutrinador que defende essa idéia é Silvio de Salvo Venoza que, com
precisão, assevera:
O direito das coisas estuda precipuamente essa relação de senhoridade, de poder, de titularidade, esse direito subjetivo que liga a pessoa às coisas. [....] Desse modo, percebemos que o ordenamento protege certos direitos perante terceiros, como formas de harmonizar a convivência social. Este é o grande sentido dos direitos reais. O vínculo entre a pessoa e a coisa é útil para o Estado, o qual procura manter equilibrada a sociedade (VENOZA, 2005, p. 21- 31).
Partindo da idéia de que o titular do direito real não precisa efetivamente do sujeito
passivo universal25 – coletividade -, para exercer o seu direito, esta corrente nos parece até
25 “não havendo interesse algum de terceiros sobre determinado direito de propriedade, eles são, na verdade,
totalmente estranhos a essa relação, não podendo ser colocados em pólo de relação jurídica, que lhes é absolutamente estranha”. (VENOZA, 2005, p. 31).
64
avançada, ou satisfatória. Ela demonstra uma visão prática: o titular do direito real exerce seu
direito em relação à coisa e, portanto, nada impede que entre eles haja uma relação jurídica.
Porém, apesar desta rasa visão, a teoria realista parte do pressuposto da teoria
relacional, ou de que o direito civil somente pode ser visto por meio de relações jurídicas, o
que não é verdade.
A relação jurídica, como demonstrado acima, no modelo pandectista pressupõe, para
sua formação, dois pólos: o pólo ativo e o passivo, que são integrados por sujeitos de direito.
Relação jurídica é o vínculo que o direito estabelece entre pessoas ou grupos, atribuindo-lhes poderes e deveres. Representa uma situação em que duas ou mais pessoas se encontram, a respeito de bens ou interesses jurídicos. (AMARAL, 2003, p. 159).
A questão é que os fatos sociais, os fatos da vida só podem ser juridicamente
relevantes se moldados à estrutura de que as relações privadas sempre se dão entre sujeitos,
opostos ou não, que se ligam a um objeto e são regrados pela norma jurídica, que tipifica as
hipóteses de relações jurídicas possíveis.
Ora, os direitos reais não poderiam estar fora desta estrutura, se as relações privadas
são vistas a partir da estrutura de relações jurídicas e pessoas titulares de direitos reais são
reguladas pelas regras de direito, os direitos reais também são relações jurídicas.
Foi partindo dessa premissa que a teoria relacional personalista formulou a relação
jurídica real como sendo entre o titular do direito real, que exerce seu direito sobre um coisa,
que é o objeto da relação, contra a coletividade, que seria o sujeito passivo da relação – o
sujeito passivo universal.
Essa teoria personalista que é, atualmente, a mais aceita entre os doutrinadores pátrios,
também não é capaz de explicar a natureza dos direitos reais.
Os defensores da teoria personalista sustentam que o direito real se consubstancia na
relação entre uma pessoa e todas as demais, inexistindo, assim, a relação entre uma pessoa e
uma coisa como defendem os adeptos da teoria clássica ou realista. Dessa forma, a relação
jurídica de direito real possuiria dois sujeitos (ativo e passivo) e um objeto que seria o bem,
ou em sentido amplo a coisa ou “res”.
A constatação dos personalistas, em relação ao sujeito ativo da relação jurídica de
direito real, é pacífica ao determiná-lo. Contudo, um dos entraves à aceitação dessa teoria
consiste na determinação do sujeito passivo, que se tem definido, por falta de algo mais
preciso, como sendo uma generalidade de sujeitos ou como denominam seus defensores;
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sujeito passivo universal, que, de acordo com Caio Mário da Silva Pereira, traduz-se numa
“generalidade anônimas de indivíduos” (PEREIRA, 1999, p. 02-03), devendo, para tanto,
poderem, em potencial, ser sujeitos ao menos determináveis, quando não determinados.
Se a teoria relacional, fruto da pandectística, que atualmente é adotada como base do
direito civil já é por demais abstrata, a abstração é ainda maior quando se vislumbra a figura
de um sujeito passivo universal.
Admitir a coletividade como sujeito de uma relação privada, com já foi apontado
acima é o mesmo que admitir uma incongruência insustentável: de que pode alguém exercer
um direito em relação a todos menos um e que pode todos menos um exigir uma determinada
conduta de um apenas da coletividade.
Tamanha abstração é fruto de um legalismo inerente ao Estado Liberal, é influência
principalmente do BGB alemão, construído com base no pandectismo. Pensar o Direito
abstratamente, através de olhares científicos, como se o direito pudesse ser uma ciência exata,
como se coubesse juridicamente a verificação social da incidência do direito por meio de
fórmulas previamente fabricadas foi muito importante para criação de uma teoria do Direito,
para a discussão jurídica em si e para o fortalecimento do capitalismo, mas tal importância se
deu nos códigos civis oitocentistas, numa realidade jurídica muito diferente da que se vive no
Brasil atualmente.
A coletividade, que figura como pólo passivo da relação jurídica de direito real, deve
abster-se de molestar o titular, sendo, portanto, imposto a todos os membros dessa
coletividade, o dever de respeitar o exercício do direito por parte do titular sobre a coisa. Ao
vislumbrar esse pólo passivo da relação, temos que esta é de natureza pessoal, no entanto de
conteúdo negativo.
Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias são adeptos da teoria personalista com
algumas nuances, como, por exemplo, discordam que existam relações jurídicas apenas entre
pessoas determinadas ou determináveis. Eles defendem que nas relações de direito absoluto, e
dentre elas as de direitos reais: “toda sociedade vincula-se ao dever negativo de não prejudicar
o titular do direito real, assim como nos direitos da personalidade impõe-se a necessidade
geral de jamais ferir os atributos essenciais do ser humano”. (FARIAS; ROSENVALD, 2007,
p. 16-17).
Embora esses doutrinadores refiram-se ao direito real como uma relação jurídica, eles
clamam a Oliveira Ascensão na acepção deste em relação ao caráter absoluto da posição de
vantagem do titular de direito real, que profere que esta posição pode ser colocada pelo titular
frente qualquer pessoa, mas, que esse direito, somente se afirma, concretamente, contra
66
aqueles que se encontrem em determinada situação jurídica ou de fato em relação ao objeto da
referida relação.
Os autores acabam, assim, por embasar sua teoria de relação jurídica de direito real na
existência de uma relação entre polos opostos – ativo e passivo universal - para com o objeto
da relação, demonstrando que as bases para tais posicionamentos ainda não estão fixadas em
parâmetros rígidos.
Miguel Reale, ao ensinar sobre relação jurídica, excepciona, sobre o sujeito passivo
universal:
Sujeito passivo, nas relações de direito real é a comunidade toda. [...] É, ao mesmo tempo, um ter e um excluir. É, portanto, a comunidade mesma o sujeito passivo dessa relação. Como dissemos aparentemente não existe sujeito passivo, mas há um sujeito passivo virtual que poderá a qualquer momento surgir como no caso de invasão do prédio por quem dele queira se apossar. (REALE, 2004, p. 221).
O fato é que a coletividade representa uma indeterminação de sujeitos e o sujeito de
uma relação precisa ser, no mínimo determinável. Como então, conceder uma carga de
determinabilidade ao sujeito passivo da suposta relação jurídica de direito real? Miguel Reale
soluciona isso de forma incongruente. Ele, ao determinar a possibilidade de individualização
do sujeito passivo “virtual”, defende que esta ocorre no momento em que um da coletividade
viola o seu dever de abstenção em relação ao bem. Veja-se: aquele que esbulhou ou turbou o
direito real alheio tornou-se, para Reale, o sujeito passivo, agora determinado, da suposta
relação jurídica. E a coletividade, como já não é sujeito passivo virtual, não deve mais abster-
se em relação à coisa? Ou o que Reale estava querendo defender a existência de um segundo
sujeito passivo? E na hipótese deste sujeito passivo determinado usucapir o bem? Miguel
Reale e toda teoria clássica não traz à baila soluções para essas perguntas.
De fato, o dever de abstenção em relação à coisa, que pode ser traduzido em um dever
de não violar direito alheio, não é algo peculiar aos direitos reais, mas trata-se de um dever
inerente a todo e qualquer ramo do Direito. Nesse sentido, importante é destacar um trecho da
obra de Sérgio Cavalieri Filho:
O principal objetivo da ordem jurídica, afirmou o grande San Tiago Dantas, é proteger o lícito e reprimir o ilícito. Vale dizer: ao mesmo tempo em que ela se empenha em tutelar a atividade do homem que se comporta de acordo com o Direito, reprime a conduta daquele que o contraria. Para atingir esse desiderato, a ordem jurídica estabelece deveres que, conforme a natureza do direito a que correspondem, podem ser positivos, de dar ou fazer, como negativos, de não fazer ou tolerar alguma coisa. Fala-se, até, em um dever geral de não prejudicar a ninguém, expresso pelo Direito Romano através da máxima neminem laedere. (CAVALIERI FILHO, 2004, p. 23).
67
Quando se parte da premissa de que existe uma relação jurídica entre pessoas, admite-
se a existência e o vínculo jurídico entre um sujeito ativo e um sujeito passivo determinados
ou determináveis. Lado outro, importante ressaltar que para efetivação do direito material que
se pretende alcançar por meio da relação jurídica é necessária a existência de ambos; do
sujeito ativo e do passivo. Por exemplo, numa relação de crédito, não há como se alcançar o
direito ao crédito sem a atitude ou, ao menos, a existência do sujeito passivo – devedor.
Todavia, numa suposta relação jurídica de direito real – por exemplo, o direito de
propriedade – tem-se que o proprietário não precisa do sujeito passivo universal para o
exercício do direito de propriedade. Isso não significa, entretanto, que a coletividade não deva
se abster em relação à coisa, mas trata-se como já evidenciado, de um dever genérico de não
violar direito alheio.
Não obstante o mérito da teoria personalista há de se constatar que a mesma é
insuficiente para explicar a natureza da relação jurídica de direito real, pois, apesar de
defender que a formação da relação jurídica ocorre somente ente sujeitos, o que é muito mais
plausível do que dizer que uma relação jurídica possa existir entre um sujeito e uma coisa, ela
torna-se obscura ao tentar transpor essa idéia de relação jurídica para os direitos reais, ao
“forçar” a insurgência de um direito passivo universal no bojo dessa relação.
Ora, sujeito passivo universal não figura como pólo de nenhuma relação jurídica,
porque se assim o fosse, a relação jurídica de direitos obrigacionais possuiriam três sujeitos: o
ativo (credor), o passivo (devedor), e o passivo universal (que seriam aqueles que deveriam
respeitar o contrato entre as partes, ou seja, os demais sujeitos).
Por derradeiro, é certo que todas as idéias que foram explanadas neste trabalho acerca
dos direitos reais vistos como uma relação jurídica, ainda que avançadas em relação ao cerne,
ao surgimento da teoria relacional, são visões abstratas, não remetem à realidade jurídica da
estrutura dos direitos reais. Os direitos reais são exercidos por um só titular sobre uma coisa.
Não cabe mais dizer que este titular se relaciona com alguém para efetivar seus direitos.
Dessa forma, estudamos também a teoria situacional, que vislumbra o Direito a partir
de uma situação jurídica.
Antes de defender que os direitos reais são uma situação jurídica, necessária a análise
da adequação da teoria situacional com o atual momento constitucional brasileiro: o Estado
Democrático de Direito.
Na teoria situacional, a norma jurídica não tem uma função tipificadora dos fatos
sociais, não se pretende através das normas jurídicas enrijecer o sistema jurídico e determinar
que só é jurídico aquilo que está previsto em “fórmulas de direito”.
68
Dos fatos sociais é que se inicia toda análise do Direito e não das normas. Os fatos são
concretos, são reais e aí temos a primeira relevância da adoção da teoria situacional neste
trabalho: visamos a concretude do Direito e não a abstração dele.
A partir dos fatos sociais, o jurista poderá retirar elementos, caracteres e, após, a
norma jurídica terá uma função qualificadora e não generalizadora ou formalizadora de
modelos jurídicos, como da teoria relacional.
A teoria situacional considera a posição da pessoa, no fato social em análise, em
relação ao objeto, quais são os poderes que a pessoa possui em relação à coisa e também os
deveres; o que a pessoa precisa realizar para o exercício desses poderes.
Esses elementos são qualificados pela norma jurídica, a partir da posição que a pessoa
ocupa em relação à coisa e não a partir de um modelo de posição abstratamente previsto na
norma de direito; a norma proporciona eficácia à situação de direito, permitindo poderes de
agir e exigindo deveres a serem cumpridos pelo titular do direito em relação à coisa.
A idéia de defender a existência de uma situação jurídica de direito real não é um
pioneirismo deste trabalho, todavia pretende-se aqui delineá-la de maneira mais detalhada
para que dúvidas não pairem sobre a incongruência da relação jurídica de direito real.
Iniciando o raciocínio pelo pensamento de Emílio Betti, ele parte do pressuposto de
que numa relação jurídica o fato26 contemplado na norma jurídica pode produzir situações
jurídicas no polo ativo e passivo. Partindo dessa premissa, ele defende que, no polo ativo,
uma das situações jurídicas produzidas para o sujeito ativo é a aquisição27.
A aquisição por parte de uma pessoa, consiste em tornar-se esta titular de um determinado direito subjetivo. [...] O exercício de um direito subjetivo consiste em realizar, com referência a outros, um estado de fato ou uma situação jurídica conforme aquele interesse para cuja proteção ele foi criado. [...] Na situação jurídica conforme ao interesse protegido, realiza-se o poder que a ordem jurídica sobrepõe ao interesse, quando, precisamente, o protege. Por conseguinte, na medida em que a proteção jurídica é posta à disposição de sujeito interessado, este tem a possibilidade de lhe promover a efetivação, e de defender o direito, tanto pela via extrajudicial, como através do processo. (BETTI, 2003, p. 37).
Como se pôde perceber nos enunciados de Betti, a teoria defendida por ele parte de
que o ordenamento jurídico, no fenômeno da aquisição, concede um poder a um titular do
direito de aquisição e este efetiva o seu poder conforme o interesse juridicamente protegido.
Transferindo esse raciocínio para o direito de propriedade – uma das formas de aquisição -,
26 Pela teoria de Miguel Reale (Citar Miguel), toda norma jurídica precede de fato e valor. Na verdade, a partir
do fato – juízo de realidade -, faz-se um juízo de valor com o fito de observar os valores e as necessidades da sociedade – como deve ser – e é exatamente este valor que justifica a produção da norma.
27 Apesar de Emílio Betti referir-se à aquisição, far-se-á, durante o trabalho, uma conversão e/ou uma analogia entre aquisição e direitos reais.
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tem-se que o proprietário – sujeito ativo do direito de propriedade – é detentor de poderes (as
faculdades do direito de propriedade – uso, gozo, disposição e reivindicação) que decorrem da
proteção jurídica ao direito de propriedade ( art. 5º, incs. XXII e XXIII, CF/88).
A teoria de Betti representa, como já explicitado, um ponto de partida para o que se
pretende no presente trabalho. Betti não desqualifica a aquisição como relação jurídica e neste
ponto sua teoria é falha. Como construir um raciocínio em cima da idéia de que a aquisição
parte de uma relação jurídica, mas que no pólo ativo ela se estrutura por meio de uma situação
jurídica? O sujeito passivo, nessa estrutura, seria apenas um “órgão” representativo”?
Apesar da falha acima exposta, é importante considerar que o titular do direito
subjetivo representado pela aquisição possui poderes, conferidos pelo ordenamento jurídico,
poderes esses que serão exercidos sobre bens. Este é o ponto de partida trazido pela teoria de
Betti.
A situação é o estado da pessoa na realidade fático-social, que se transforma em
situação jurídica pela qualificação normativa: a norma, a partir dos elementos retirados do
fato social em si, posiciona a pessoa no ordenamento jurídico, conferindo eficácia jurídica à
situação de fato. No que se refere à situação jurídica real, a pessoa, titular do direito real, não
se relaciona com ninguém para poder ser titular do direito sobre a coisa, trata-se de uma
situação jurídica uniposicional em que o possui um poder sobre uma coisa.
Portanto, a situação jurídica de direito real é a condição de um sujeito, titular do
direito, sobre uma coisa, condição esta que fora previamente conferida pelo ordenamento
jurídico, mas que somente se tornou situação jurídica após a análise do fato social em si e sua
qualificação pelas normas jurídicas.
Não se trata de uma defesa ao individualismo jurídico, até porque se o ordenamento é
que confere o referido poder, o titular deverá exercê-lo conforme os ditames legais,
observando os limites internos e externos que delineiam o seu direito28.
Aroldo Plínio Gonçalves, quando fala sobre a situação jurídica em sede de direito
processual, nega a existência da relação jurídica. Não é objeto do presente trabalho analisar a
aplicabilidade da teoria relacional em todos os campos do Direito, apesar de concordarmos
com o fato de que ela é inadequada ao momento jurídico-social que se vive no Brasil.
28 É o que ocorre com o direito de propriedade, garantido pela Constituição Federal, art. 5º, inc. XXII: o
legislador constituinte de 1988 garantiu o direito de propriedade, mas não de forma absoluta, ele estabeleceu limites internos, inerentes ao próprio direito – função social da propriedade (art. 5º, inc. XXIII CF/88) -, e limites externos, que independem da atitude do titular do direito de propriedade – como as regras de direito de vizinhança, a desapropriação por interesse público, etc.
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A situação jurídica subjetiva ou individual, em sua concepção, é particular e temporária, sendo fixada a partir de um ato de declaração individual de vontade, como, por exemplo, a aquisição de um bem, de que pode derivar a situação de adquirente ou de legatário; a situação jurídica legal é geral e permanente, sendo fixada para todos, da mesma maneira, como por exemplo a situação do proprietário ou dos cônjuges. (GONÇALVES, 1992, p. 86).
Por derradeiro entendemos ser mais adequado ao Estado Deocrático de Direito
visualizarmos os direitos reais como sendo uma situação jurídica vez que, dessa forma,
podemos abarcar objetiva e concretamente toda e qualquer situação que envolva os direitos
reais, excetuando os momentos em que a situação jurídica do titular do direito real for violada
por terceiros.
Coaduna com esse entendimento o autor lusitano José de Oliveira Ascensão:
Aplicando ao nosso caso, é indispensável a prévia determinação dos sujeitos entre os quais a relação se processa. Não há relações entre sujeitos indeterminados. O desenho que os defensores da relação absoluta pretendiam impor não obedecia porém a estes requisitos básicos. Com um sujeito determinado entraria em relação uma pluralidade desconexa de sujeitos, que não poderá ser designada senão pela expressão incolor – todos os outros. Esta massa não oferece porém aquele grau de determinação que lhe permita ser o suporte idôneo de relações de qualquer natureza, e portanto, também de relações jurídicas. [...] No fundo, o que há de útil nas observações destes autores é muito simples, e exprime-se em poucas palavras. Eles querem dizer, não tanto que o titular activo está em relação com pessoas indeterminadas, mas sim que o titular está numa situação de que podem brotar relações com uma pluralidade indeterminada de pessoas. Mas poder-se estar em relação não é o mesmo que estar em relação. O vício de designar toda a situação susceptível de originar relações jurídicas por relação jurídica é evidente. (ASCENSÃO, 2000, p. 609-610) .
Tendo em vista o nosso posicionamento neste trabalho pela natureza situacional dos
direitos, cumpre-nos agora esclarecer os motivos pelos quais os direitos reais não devem ser
mais vistos na estrutura da teoria relacional. Pretendemos, com isso, evitar que a
desconsideração da teoria relacional e a sua substituição pela teoria situacional pareça não
uma evolução, mas apenas uma mudança de figuração, com vistas a um mesmo objetivo:
teorizar de forma abstrata o direito civil.
A teoria relacional trata todas as relações privadas, todas as formas de aquisição de
direito subjetivo através do modelo relação jurídica. Antes de se analisar, então, o usufruto, a
propriedade ou mesmo os direitos obrigacionais como o crédito, o pagamento, as situações
concretas devem se encaixar no modelo abstrato da relação jurídica e, após, na tipificação
normativa.
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A pretensão da teoria relacional, que era criar, abstratamente, todas as hipóteses de
relações jurídicas que pudessem existir no mundo social, pecou pelo excesso de abstração,
pelo seu generalismo.
Ademais, e como consequência desse excesso de abstração, a teoria relacional tratou
as pessoas como sujeitos de direito, abstraiu a pessoa e colocou-a como mero elemento da
relação jurídica, ao lado dos demais elementos que lhe caracterizam.
Com isso, pecou novamente pelo anti-humanismo. Não importa a pessoa em si, o que
perpassa na sua realidade, importa a pessoa enquanto sujeito de direito, enquanto encaixado
em uma das hipóteses de relação trazidas no ordenamento; enquanto proprietária, enquanto
contratante, etc.
Por esses motivos, a teoria relacional tornou-se inadequada ou descompassada com o
atual Estado Democrático de Direito, que tem como premissa a dignificação da pessoa
humana, a proteção e a promoção desta.
Nesse sentido, a teoria situacional torna-se uma forma mais concreta de vislumbrar o
direito civil, especificamente os direitos reais.
Há sim, por meio desta teoria, uma teorização do direito civil e, neste trabalho, dos
direitos reais, mas teorizar é inevitável, é permitir a melhor compreensão do direito. Todavia,
a teorização realizada não visa, como já mencionado, uma paralisação das idéias jurídicas,
estas mudam conforme o tempo em que são abarcadas.
Todavia, visualizar os direitos reais pela estrutura de uma situação jurídica permite,
primeiramente, que não continuemos com o descompasso com os ideais do Estado
Democrático de Direito. A situação jurídica não é uma abstração normativa, é um fato
analisado pelo direito em seus exatos contornos e considerando, sobretudo, as vicissitudes do
fato in concreto.
6.2 Caracterização dos direitos reais para além da tipicidade
Para analisarmos os direitos reais e sua característica da tipicidade, devemos
necessariamente partir deles sob a ótica da situação jurídica.
Dessa forma, partiremos do fato. Toda vez que, de um fato social, conseguirmos
retirar os elementos necessários para identificação do que chamamos de direitos reais, a
norma o qualificará como tal.
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Bom, para entendermos a tipicidade da forma proposta por este trabalho, vamos pensar
nela como está posta no atual Código Civil.
O artigo 1225 do Código Civil de 2002 prescreve que:
São direitos reais: I – a propriedade; II – a superfície; III – as servidões; IV – o usufruto; V – o uso; VI – a habitação; VII – o direito do promitente comprador do imóvel; VIII – o penhor; IX – a hipoteca; X – a anticrese; XI – a concessão de uso especial para fins de moradia; XII – a concessão de direito real de uso. (BRASIL, 2002).
Ao elencar, dentro de um rol, as hipóteses de direitos reais, o legislador utilizou-se da
técnica da tipicidade que, como já dito, permite que se discrimine, em lei, as hipóteses de uma
mesma situação jurídica, através de um rol.
Ocorre que esta técnica foi utilizada, em sede de direitos reais, com fulcro no Princípio
do Numerus Clausus, que tem por conteúdo a impossibilidade de criação de novas espécies de
direitos reais através da autonomia privada.
A criação dos direitos reais, portanto, sob a ótica do Princípio do Numerus Clausus,
fica relegada ao Estado, que passa a ter controle da criação e transferência destes direitos.
O intuito de atribuir ao Estado esta criação, impedindo, assim, a manifestação da
autonomia privada, é permitir a segurança jurídica no trânsito destes direitos e, por
consequência proteger a pessoa ou as pessoas envolvidas nestas situações jurídicas.
Ora, mas o que pretendemos aqui, neste trabalho, é fazer com que a análise dos
direitos reais e das hipóteses de direitos reais seja analisada para além da técnica da tipicidade
sem, contudo, ferir o Princípio do Numerus Clausus.
Na realidade social, existem muitos fatos que implicam em poderes de pessoas sobre
coisas, mas não podem generalizar essas situações e trata-las como situações jurídicas reais
pelo simples fato de que o titular do direito subjetivo exercê-lo sobre um determinada coisa.
Devemos analisar o fato detalhadamente.
Portanto, partindo do fato social, retiraremos dele elementos que entendemos como
essenciais para caracterizá-lo como um fato jurídico – como uma situação jurídica real.
Assim, são os caracteres inerentes a todos os direitos reais que os diferenciam dos demais
direitos, de cunho pessoal – obrigacional, familiar ou sucessório. Os caracteres que foram
acima analisados – absolutismo, sequela, preferência, registro e tradição – é que identificam
uma situação de fato como sendo real.
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Sendo assim, toda vez que uma situação fática em que uma pessoa exerce um poder
sobre uma coisa tiver esses caracteres, podemos, a princípio, remeter o fato à qualificação da
norma, para que se conclua sobre a natureza real ou não daquela situação jurídica.
Assim, tendo a situação jurídica os caracteres dos direitos reais, com o intuito de
coadunar a situação jurídica com o Princípio do Numerus Clausus, deve haver previsão
normativa de um direito específico que contenha essas características, mas esta previsão não
precisa estar, necessariamente, no art. 1225, do Código Civil.
A análise se daria, caso quiséssemos fazer um resumo esquemático do raciocínio, da
seguinte forma:
Fato → análise de todos os elementos do fato → qualificação normativa (vislumbrar
se há norma que preveja aquele fato com seus elementos específicos) → caracterização como
situação jurídica real.
A autonomia privada pode atribuir diversas características e efeitos a uma determinada
situação de fato, mas não pode atribuir a uma criação sua, efeitos reais e sim meramente
obrigacionais.
Entendemos, por fim, que a análise das hipóteses de direitos reais através de um rol,
seria voltar ao pensamento liberal-positivista dos Pandectas, pois que partiríamos mais uma
vez da norma para analisarmos o fato. Desconsideraríamos os elementos e caracteres do fato
sob a justificativa de uma abstração normativa, o que, a nosso ver, estaria na contramão dos
princípios do estado Democrático de Direito.
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7 CONCLUSÃO
A toda vez que estruturas prontas são quebradas, refeitas, dificuldades aparecem e
ficam evidentes, transparentes e, por via de consequência, geram discussões, o que pôde ser
comprovado neste trabalho.
A estrutura do direito privado, vista sob a ótica das relações jurídicas remonta de
teorias elaboradas no século XVIII e utilizadas nas codificações dos séculos subsequentes.
A análise da estrutura do direito privado e, no contexto deste trabalho, dos direitos
reais, como uma relação jurídica implica numa visão fechada e abstrata do direito civil.
A Escola dos Pandectistas, na Alemanha, visualizaram o direito civil através da
fórmula da relação jurídica. Os teóricos da época pensaram para a codificação alemã, uma
parte geral do direito civil em que a base teórica seria uma relação jurídica formada por
sujeitos interligados, objeto determinado e norma tipificadora. Toda relação social somente
seria vislumbrada pelo Direito se pudessem ser identificados os elementos: sujeito ativo
(titular de um direito), sujeito passivo (responsável pelo cumprimento de um dever), objeto
(coisa ou prestação) e norma (previsão normativa da situação de fato).
Caso não houvesse o perfeito encaixe do fato à esta estrutura, não haveria de se falar
em relação jurídica e, portanto, não haveria análise jurídica do fato.
Partindo desta estrutura, vimos que os direitos reais foram caracterizados também
como uma relação jurídica, como elementos peculiares: a relação jurídica dos direitos reais
seria formada entre o titular do direito real (sujeito ativo), um sujeito passivo universal
(coletividade) – que estaria obrigado à obrigação de não violar o direito real do titular -, um
objeto, que seria a coisa em si e a norma, que seria o artigo do Código Civil que identificaria
quais são as hipóteses de direitos reais.
No direito brasileiro, vimos que o Código Civil de 1916, com influências claras da
codificação alemã, trouxe uma parte geral do direito civil e, em seu artigo primeiro, adotou
claramente a idéia de que o direito civil dá-se por meio de relações jurídicas.
O contexto nacional quando da promulgação do Código Civil de 1916 era de um
Estado Liberal e, neste sentido, fazia algum sentido a adoção da estrutura relacional para
aquela codificação.
Todavia, vimos que o mundo e o Brasil passaram pelo estado liberal, social até se
chegar – no Brasil com a CF de 1988 -, ao Estado Democrático de Direito, com princípios
muito distintos dos princípios liberais.
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Em que pese estes fatos, o Código Civil de 2002, que passou a vigir já na realidade de
um estado democratizado, repetiu a idéia de se trazer uma parte geral para o Código Civil,
apesar de não ter adotado, claramente, a teoria relacional.
Bom, mesmo no contexto da CF de 1988, os teóricos civilistas continuaram
vislumbrando os direitos reais através da estrutura da relação jurídica e, durante o estudo
realizado vimos que esta teoria possui caracteres incompatíveis com o momento jurídico-
social que hoje se vivencia, quais sejam:
a) Busca-se uma abstração jurídica. Os juristas precursores da teoria relacional
pretendiam criar uma regra geral, uma estrutura geral para que as relações sociais
pudessem se encaixar e somente a partir desta formulação geral é que haveria
análise pelo direito do fato.
b) Normatividade. A teoria relacional parte da norma para análise dos fatos sociais.
Os fatos somente são analisados pelo direito enquanto seguirem as formulações
abstratas previstas na norma.
c) Falta de humanismo. Quando a teoria relacional descreve os elementos da relação
jurídica, ela insere o sujeito de direito ao lado dos demais elementos, objeto e,
além disso, ela somente considera a proteção da pessoa humana enquanto inserido
na fórmula relacional como sujeito de direito.
Foi visto, todavia, que no contexto democratizado trazido a partir da CF de 1988
busca-se a concreção das normas de direito, com vistas à proteção e promoção da pessoa
humana. Não cabe, neste sentido, nenhum tipo de abstração jurídica.
Desta maneira, durante o trabalho, estudou-se a teoria relacional e teoria situacional, o
estudo desta foi proposto como forma de superação da idéia de se vislumbrar os direitos reais
através de uma relação jurídica.
A teoria situacional visualiza o direito a partir do fato social. Do fato social, retira-se
elementos e caracteres que, quando analisados frente às regras de direito específicas, são
qualificados por estas e tomam contornos jurídicos efetivos. A norma jurídica, para esta
teoria, não tem a função de generalizar hipóteses de fatos jurídicos, mas sim de conferir
eficácia jurídica a fatos sociais.
Vimos que a teoria situacional caracteriza os direitos reais como uma situação jurídica
uniposicional, em que o titular do direito real exerce um direito sobre uma coisa,
independente de uma relação com outra pessoa.
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Desta maneira, concluímos que os direitos reais não podem mais ser vistos como uma
relação jurídica entre um – o titular do direito – e todos menos um – a coletividade, trata-se de
uma abstração incongruente e incoerente com a realidade que vivemos hoje.
Propusemos que, como forma de superação da visão dos direitos reais por meio de
uma relação jurídica, eles sejam vistos como uma situação jurídica uniposicional, pois assim,
vislumbramos o fato real.
Os direitos reais visto sob a ótica da situação jurídica faz desaparecer a figura
angustiante do sujeito passivo universal: o titular do direito o exerce, sozinho, sobre a coisa, o
que não significa que ele o exerce como quiser e bem entender. Existem regras limitadoras da
autonomia privada que faz com que o titular do direito real tenha que respeitar o interesse
coletivo, as regras ambientais, o Princípio da Função Social, entre outras regras.
Concluímos que se interpretarmos os direitos reais através da teoria situacional
podemos contribuir na reconstrução teórica do direito civil com vistas a coadunar a teoria do
direito privado com o atual Estado Democrático de Direito. Partindo do fato, e não da norma
como na teoria relacional, vislumbra-se pessoas humanas e não sujeitos de direito; vislumbra-
se problemas sociais que precisam ser resolvidos pelo Direito e não problemas jurídicos que
precisam ser encaixados na sociedade. A teoria situacional busca a análise dos fatos com
vistas à solução jurídica levando, para o direito privado, a idéia de concreção e não mais de
abstração.
Partindo do pressuposto de que os direitos reais são uma situação jurídica
uniposicional, estudamos as características que identificam um direito subjetivo como sendo
real. Vimos que em todos os direitos reais trazidos no artigo 1225 do Código Civil de 2002 é
possível identificar os caracteres absolutismo, sequela, registro ou tradição e tipicidade.
Quando à característica da tipicidade, vimos que esta é regida pelo Princípio do
Numerus Clausus, que restringe ao Estado o poder de criação de direitos reais, ou seja,
impede a criação de direitos reais por meio da autonomia privada.
Ocorre que a característica da tipicidade é interpretada, por boa parte da doutrina,
significando a restrição as hipóteses de direitos reais ao rol taxativo do artigo 1225 do Código
Civil de 2002.
Entendemos, no entanto, que analisar as hipóteses de direitos reais partindo de uma
enumeração é uma visão simplista e legalista do fenômeno jurídico e, por este motivo,
também em descompasso com o atual estado democratizado.
Neste trabalho, então, partindo-se do direito real como situação jurídica uniposicional,
concluímos que, visando uma releitura dos direitos reais a partir da CF de 1988, não devemos
77
manter a visão que são direitos reais aqueles elencados no Código Civil, pois que trata-se de
uma opção legislativa.
A análise das hipóteses de direitos reais deve se dar a partir do fato. Nos fatos sociais
em que pessoas exercem poderes diretos sobre coisas, independente de relação com outra ou
outras pessoas, deve-se analisar a presença dos caracteres que identificam um direito subjetivo
como sendo real – absolutismo, sequela, registro ou tradição e tipicidade – e, estando
presentes estas características, coadunando com o Princípio do Numerus Clausus, devemos
analisar se este direito está previsto em algum lugar na norma jurídica.
A visão dos direitos reais, desta maneira, deixa de ser abstrata, e, por partir da análise
do fato, passa a ser concreta. Ademais, a interpretação das hipóteses dos direitos reais vai
além da tipicidade: os direitos reais passam a ser identificados no caso concreto, de acordo
com as características que possuem e a conformidade destas com as características que são
comuns a todos os direitos reais e não simplesmente pela leitura de um artigo do código civil.
Por fim, cumpre salientar que este trabalho não teve a pretensão de por fim as
discussões acerca do assunto tratado, mas sim fomentá-las, pois somente assim poderemos
atualizar o direito, dar um passo adiante na pesquisa jurídica, enriquecer o pensamento e a
teoria jurídica.
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