26
(DES)ARTICULAÇÃO TEORIA-PRÁTICA
EM RELATÓRIOS DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO
Adair Vieira Gonçalves (Universidade Federal da Grande Dourados /CNPq)
Mariolinda Rosa Romera Ferraz (Universidade Federal da Grande Dourados /CNPq)
Este artigo é resultado de algumas indagações sobre a (des)articulação entre teoria e
prática nas licenciaturas. A pesquisa está contextualizada na Licenciatura Dupla em
Letras (Habilitações Português/Inglês e Português/Literatura), da Faculdade de
Comunicação, Artes e Letras (FACALE), da Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Nosso objeto de investigação são relatórios escritos produzidos por
professores em formação inicial, ao final da disciplina Estágio Supervisionado em
Língua Portuguesa I, e a própria diretriz curricular da licenciatura mencionada.
Confrotamos a proposta de trabalho no estágio supervisionado obrigatório com a
proposta das disciplinas Laboratório de Textos Científicos I e II, cuja ementa consiste,
basicamente, no estudo dos gêneros textuais e sua didatização por meio de sequências
didáticas. Em nosso cenário, antes de efetivar a regência de aulas, os alunos-estagiários
investigam a realidade/rotina escolar a partir da realização de entrevistas com o
professor regente e de períodos de observação de aula. Nesse sentido, o egresso da
Licenciatura em Letras, além de ser um professor-reflexivo, deve se preparar para a
possibilidade de construir-se como professor-pesquisador. É, pois, da investigação da
conexão entre teoria e prática na formação inicial de professores, a partir do gênero
relatório de estágio, que este texto se ocupa. Para tanto, está construído em três etapas
interligadas. Na seção introdutória, delineamos as configurações curriculares,
especialmente das disciplinas Laboratório de Textos Científicos I e II. Na segunda
seção, mapeamos o gênero relatório de estágio. Na terceira, numa abordagem textual-
discursiva, efetuamos uma análise dos relatórios na busca de evidências da transposição
didática. Ao concluir o artigo, retomamos as notas teórico-metodológicas e apontamos
sugestões de como superar alguns entraves gerados durante a produção de objetos de
ensino para aulas de Língua Portuguesa, na escola de educação básica.
Palavras-chave: estágio supervisionado, licenciatura, interacionismo sociodiscursivo,
relatório de estágio.
Introdução
De acordo com o regulamento do Programa de Reestruturação e Expansão das
Universidades Federais (REUNI), ao qual a Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD) aderiu, as disciplinas devem ser organizadas em ciclos, sendo um Ciclo Geral e
um Ciclo Específico. Por isso, constam do currículo do Curso de Letras, da Faculdade
de Comunicação, Artes e Letras (FACALE), da referida universidade, disciplinas
responsáveis pela formação cidadã (humana, ética, política, cultural) dos acadêmicos a
disciplinas que tratam das teorias linguísticas (do Estruturalismo à Pragmática), que
investigam a língua e a linguagem em suas diversas manifestações e registros.
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002141
27
Potencialmente, as ementas das diversas disciplinas da licenciatura contemplam
os saberes teóricos e práticos peculiares ao profissional das Letras: dos estudos de
Saussure à Linguística da Enunciação, da abordagem do sistema fonológico aos estudos
do texto/discurso. O objetivo é delinear uma visão global de todas as teorias linguísticas
e, sobretudo, que, ao final do curso, os alunos-estagiários circunscrevam-se, diante das
demandas atuais, nas abordagens interacionistas dos estudos da linguagem,
principalmente os aplicados.
No que tange à disciplina Laboratório de textos Científicos I e II, seu ementário
consiste da leitura, escrita e reescrita (análise linguística) de gêneros da esfera
acadêmica e do estudo das Normas da ABNT. A metodologia dessas disciplinas está
fundamentada na Linguística Aplicada, particularmente na concepção teórica genebrina
e vertente didática denominada interacionismo sociodiscursivo (ISD). Para atingir os
objetivos da disciplina, é muito frequente a utilização de sequências didáticas (SD), tais
como defendem Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004). Para esta abordagem teórico-
metodológica, o agir comunicativo (BRONCKART 2006; 2007) é uma ação social,
sempre situada em contextos de produção específicos, e baseado no conhecimento que
temos dos usos da linguagem nesses contextos. Por isso, sugere o ensino por meio de
gêneros textuais, visto que são convenções linguísticas relativamente estáveis
(BAKHTIN, 2003) aplicadas e aplicáveis em contextos comunicativos distintos.
Depreende-se que os enunciados, ou gêneros textuais em si, constituem-se em
modelos a serem seguidos em dadas circunstâncias comunicativas. Por isso, em sua
vertente didática, tal abordagem teórico-metodológica entende que os gêneros textuais
devem transformar-se em objetos de ensino e, para controlar a transposição de um
gênero para a escola, se faz necessário o estudo do conjunto dos elementos que descreve
o gênero em seus aspectos contextuais, sócio-históricos e estruturais – compreendidos
pela infraestrutura textual (contexto de produção, plano geral do texto, tipos de discurso
e organização sequencial), pelos mecanismos de textualização (conexão, coesão
nominal e verbal) e pelos mecanismos enunciativos (modalização, variação linguística e
seleção lexical).
O estudo dos elementos estáveis de um gênero textual aponta em duas direções:
tanto é possível compreender como os gêneros textuais se materializam quanto que
capacidades de linguagem necessitam ser desenvolvidas para o domínio da produção de
um gênero.
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002142
28
São três as capacidades de linguagem a serem desenvolvidas: capacidade de
ação, capacidade discursiva e capacidade linguístico-discursiva. Não de forma estanque,
mas em intersecção entre si, elas apontam para os elementos constituintes do gênero
textual. Além disso:1) norteiam a identificação dos saberes prévios do aluno nas
produções iniciais; 2) indicam os elementos estáveis do gênero a serem apreendidos e;
3) orientam a elaboração de uma SD para o ensino de um gênero textual (BAKHTIN,
2003). Por tudo isso, o processo ensino-aprendizagem de língua portuguesa precisa ser
marcado por atividades que favoreçam o aperfeiçoamento das capacidades de
linguagem, visto que, quando os sujeitos se apropriam devidamente das convenções
linguísticas e aplicam-nas de acordo com os contextos, ocorre o desenvolvimento
humano (BRONCKART, 2006).
Na seção a seguir, analisamos flagrantes de teoria/prática no gênero relatório de
estágio supervisionado.
Análise da transposição didática
As dificuldades substanciais de leitura e escrita que ainda persistem no contexto
da educação básica e do ensino superior dão o norte para a renovação da prática
pedagógica, ou seja, fazem reconhecer que é preciso enfatizar o trabalho com a leitura e
com a escrita, pois o ensino normativo muito comum nas escolas não tem promovido a
formação de alunos com proficiência linguística. Entendemos que a consciência da
necessidade de mudança já foi absorvida pelos profissionais da educação e até por
alguns professores em formação inicial. O relatório 1, nesse sentido, destaca:
Para se trabalhar com textos e ainda fazer o uso da gramática é necessário
que o educador esteja atento às transformações, às informações atuais, e
consequentemente estando em contato com o mundo em que alunos estão
incluídos, e com isso havendo uma ponte, entre educador e educando, que
será a interação. Essa ponte é essencial para o educador transmitir a sua
prática e sua didática visando às condições reais que seus alunos vivem.
Quando o educador trabalha de acordo, ele tem o poder de transformar outra
pessoa para que ele possa ter uma visão crítica do mundo em que ele
convive. (relatório 1)
Apesar de alguns truncamentos na escrita desse trecho do relatório, é possível
depreender que os estagiários são conscientes da teoria que compreende a linguagem
como fator de desenvolvimento humano, que é preciso investigar os contextos de
produção em que os alunos estão inseridos e, a partir daí, fomentar o trabalho com os
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002143
29
gêneros textuais para a formação de um aluno crítico e transformador de sua realidade.
Por outro lado, a prática pedagógica continua tradicional. Encontramos a seguinte
situação no relatório de estágio.
Hoje explicamos para eles o que são “tipos e Gêneros textuais”, e trouxemos
de exemplos um texto informativo. Foi explicado o que é um Acróstico e
pedimos para eles produzir um com a Copa do Mundo como Exemplo.
(relatório 1)
Entendemos que o conhecimento da distinção entre tipos e gêneros textuais nem
sempre seja um conteúdo necessário ao aluno da educação básica. A nosso ver, enfatizar
essa diferença é, na verdade, a manutenção de um ensino tradicional em que conceitos
são mais importantes que o uso da língua em si.
Além disso, destacamos na situação apresentada que os alunos-estagiários
fizeram uso de um texto para trabalhar a referida distinção, porém não há descrição
suficiente da aula para sabermos que gênero foi utilizado, persistindo assim a tradicional
classificação dos textos em narrativo, descritivo, dissertativo, informativo etc.,
tampouco para verificarmos a “validade” da atividade. Sobretudo, logo após a
diferenciação e o uso do “texto informativo”, os professores em formação inicial
introduzem na aula um acróstico, que, no nosso entendimento, é um gênero da esfera
artística (poético), e que, a não ser por um objetivo de mostrar a diferença entre gêneros
bastante distintos em relação ao plano textual global, não teria efeito no aprimoramento
das capacidades de linguagem de gêneros de aspectos mais informativos.
De acordo com o aporte teórico que utilizamos, a comunicação humana acontece
em contextos próprios, a que chamamos de esferas da comunicação (BAKHTIN, 2003;
BRONCKART, 2007). São várias as esferas: artística, cotidiana, publicitária,
escolar/acadêmica, jornalística, científica, política, entre outras, e cada qual gera um
número quase irrestrito de gêneros textuais. Ainda não encontramos na literatura da
área, autores que tratam exclusivamente de esfera da informação. Todavia, gêneros
como panfletos, fôlderes, banneres, campanhas institucionais e, particularmente, a
notícia jornalística são, eminentemente, informativos.
Outra situação que destacamos no relatório 1 o trabalho realizado com o gênero
Charge. Em primeiro lugar destacamos o seguinte relato:
Hoje trabalhamos com o gênero Charge, explicamos o que é, e o que
aborda, e para fazer interpretação de uma. Depois para descontrair,
trouxemos uma Cruzadinha sobre a Copa do Mundo.
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002144
30
Do relato depreende-se que as atividades realizadas com o gênero Charge
enfatizam o contexto de produção (“o que é, o que aborda”). Elas desenvolvem a
capacidade de ação dos alunos; estes passam a ter domínio de situações comunicativas
em que a charge se torna um gênero producente: contexto de crítica, de sátira, relativas
asituações sócio-políticas, por exemplo, as quais, para produzirem efeito, precisam estar
no conhecimento prévio do leitor. Logo, pensamos, uma atividade adequada após a
leitura de uma charge seria a produção de um texto do gênero argumentativo (artigo de
opinião, carta argumentativa, por exemplo), em que o aluno pudesse expor sua opinião
sobre o tema da charge. Todavia, os alunos-estagiários utilizaram, em seguida, uma
cruzadinha, gênero que, potencialmente, não contribui para a reflexão/argumentação
provocada pelo primeiro gênero. Portanto, revela-se, na transposição didática, uma
deficiência no entendimento dos objetivos do gênero bem como do trabalho nessa
perspectiva.
Além disso, quando, pelo anexo do relatório, temos contato direto com a
atividade, percebemos que, logo após a charge (Figura 1, adiante), há um conceito do
gênero: “ é um desenho ou uma pequena história em quadrinhos que possui um caráter
humorístico e crítico. Destacam-se pela criatividade e abordagem de temas da
atualidade. Os personagens geralmente são desenhados segundo o estilo de caricaturas.”
Destacamos que o conceito, a nosso ver, poderia ser formulado pelo próprio aluno se, ao
longo do processo de interpretação (atividade, preferencialmente, oral), fossem
observados aspectos relativos ao contexto de produção do gênero, ao discurso que
veicula, e a estrutura linguística aplicada (e quando aplicada). Enfim, novamente,
questões conceituais prevalecem em detrimento da análise de elementos
multissemióticos próprios do gênero em questão. Atividades com destaques para os
elementos multissemióticos estabeleceriam um diálogo com a disciplina Estudos
Semióticos. Não podemos afirmar que não tenha havido esse diálogo, porém, o
desenvolvimento da atividade não se revelou producente para análise do gênero.
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002145
31
Figura 1: Charge
(Fonte da charge: <http://jowcartoons.wordpress.com/2008/12/04/o-
ouro-e-nosso/>. Acesso em 03 de março de 2012)
As questões de interpretação são apenas: “Que tema da atualidade a charge está
abordando?” e “O que você acha desta charge?”Entendemos que o tema da charge seja
bastante complexo para alunos do ensino fundamental. Na atividade anexada pelos
alunos-estagiários ao relatório, a resposta dada para a primeira questão foi: “o
desemprego, a pobreza e a fome”. Todavia, no nosso entender, a crítica da charge gira
em torno da alienação humana diante de certas situações. Em outras palavras, no país do
futebol, não importam o desemprego, a pobreza e fome, desde que seja campeão.
Tocante a segunda questão, a resposta pode direcionar para diversos aspectos.
Um simples “é boa; é bonita”, por exemplo, seriam suficientes (respostas que
revelariam veementemente a alienação). Compreendemos que o importante seria
discutir a crítica feita e conduzir o aluno à reflexão da realidade brasileira e,
consequentemente, à desalienação.
No relatório 3, agora em foco, o aluno-estagiário leva para a sala de aula uma
atividade de interpretação escrita “O lobo e o cordeiro”, de autoria de La Fontaine.
Segue a atividade:
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002146
32
Atividade de Interpretação 1
Corroborando a opinião de Marcushi (2008), quando o autor afirma que
misturadas às propostas de compreensão de textos aparecem questões “que nada tem a
ver com o assunto” (p.266), na Questão 1, misturam-se questões de oralização às de
escrita. Ao lermos o sintagma “acompanhando o ensaio dos grupos”, compreendemos
que a atividade não é de busca ao significado no dicionário, mas de expressão oral, para
efeito de leitura em voz alta.
A Questão 2 é subcomposta de outras questões, que vão de A a G. Para
flagrarmos o mesmo texto em outro relatório, reduzimos a análise deste aluno-estagiário
às letras A-B. Na Questão 2a, pede-se que o estudante “enumere, pelo menos, três
adjetivos definidores do caráter do lobo e do cordeiro”. Temos aqui uma atividade de
compreensão em desacordo com os pressupostos defendidos pelos documentos oficiais,
o de que a leitura ocorre na interação entre texto/autor/leitor. Na opinião de Marcushi
(2008, p.267), esse tipo de questão resume-se a atividade de “identificação de
informações objetivas e superficiais” e, até mesmo, de focalização da metalinguagem.
Na Questão 2b, o aluno-estagiário propõe a seguinte questão: “O encontro do
lobo e do cordeiro acontece ‘nas águas limpas de um regato’. É possível determinar a
localização exata do cenário onde se passa a ação: justifique sua reposta”. Temos uma
atividade subjetiva. Para Marcushi (2008, p.271), tais atividades “em geral, têm a ver
com o texto de maneira apenas superficial, sendo que a reposta fica por conta do aluno e
não há como testá-la em sua validade”.
No relatório 2, de outro aluno-estagiário, também há o texto “O lobo e o
cordeiro”. São propostas seis questões nesta sessão de estágio de regência. Na primeira,
temos: “Segundo a fábula, predominou o direito da força ou a força do direito? A fábula
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002147
33
mostra que predomina.....”. Temos aqui uma questão que se autorresponde. Marcushi
(2008) chama tais atividades de “A cor de cavalo branco de Napoleão”, em que há
perspicácia mínima, ou seja, cuja resposta está na própria formulação.
Em seguida, temos uma questão em que se pede para assinalar o que for correto.
Novamente uma questão de identificação objetiva de fatos e dados. As Questões 3,4,5 e
6 são todas do tipo “subjetivas”, na medida em que o professor deverá aceitar quaisquer
respostas de seus alunos. Para Marcushi (2008), são comuns perguntas do tipo “‘Qual a
sua opinião sobre...’; ‘O que você acha do....’; ‘Do seu ponto de vista, a atitude do
menino diante da velha senhora foi correta?’” (p.271). Estes exemplos evidenciam, a
nosso ver, a dificuldade em transpor didaticamente os saberes acadêmicos,
especialmente os adquiridos em disciplinas como Leitura e Ensino, Laboratórios de
textos científicos I e II, entre outras. Eis a atividade:
Atividade de Interpretação 2
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002148
34
Da mesma forma, o relatório 5 apresenta duas atividades de interpretação
escrita. A primeira toma como texto base a canção “Saudosa Maloca”, de João Gilberto
e Adoniram Barbosa. A letra apresenta uma variedade linguística popular, carregada de
fenômenos fônicos marcadores de uma realidade regional. Além disso, a letra revela a
subjugação e a “incapacidade” do ser humano diantede certas situações. Com
sentimentos “engasgados”, os personagens da história cantada se conformam com o
sofrimento.
A nossa ver, a semântica do texto, inegavelmente revelada também pela norma
linguística empregada, é o foco de sua interpretação. Entretanto, destacamos algumas
questões da análise e observamos os seguintes aspectos: a primeira questão (O que mais
lhe chama atenção no texto Saudosa Maloca?), a nosso ver, admite várias respostas
(trata-se de uma questão vale-tudo, na acepção de Marcushi (2008). Interessante notar
que, no texto escrito, destacam-se os “erros” linguísticos em detrimento do sentimento
das personagens e é exatamente esse o foco na análise da questão, considerando a
resposta dada pelo aluno: “O jeito de falar”. A segunda questão (A linguagem utilizada
dificulta a compreensão do texto? Justifique.) já na sua formulação chama a atenção
para a variedade e parece ratificar o preconceito linguístico.
A terceira questão (Com relação ao tipo de texto, como você classifica Saudosa
Maloca? Trata-se de um texto informativo, opinativo ou do relato de um fato?) mostra a
tendência do ensino conceitual, ou seja, um ensino voltado para nomenclaturas e
definições, quando o destaque deveria ser o uso das sequências narrativas e descritivas
na produção de uma história cantada.
A quinta questão (Na sua opinião, a história contada no texto poderia ter
acontecido na vida real? Justifique utilizando exemplos.), a nosso ver, timidamente se
destaca entre questões possíveis de serem empregadas para análise do texto, visto que
extrapola os limites do texto e, minimamente, conduz o aluno a enxergar a realidade.
Nesse sentido, nos apropriamos das reflexões de Arroyo (2011), quando argumenta:
[...] Quando os currículos são pobres em experiências sociais seus
conhecimentos se tornam pobres em significados sociais, políticos,
econômicos e culturais para a sociedade. [...] Difícil encontrar significados
atraentes em noções, leis e conceitos formulados sem referência a
experiências sociais e culturais significativas. (p. 119)
Ou seja, apoiando-nos nas reflexões de Arroyo (2011), vemos que a pobreza da
atividade revela a não utilização de aspectos sociais da música, tais como o retratar da
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002149
35
cidade de São Paulo, mais especificamente o bairro do Bexiga. Em síntese,
desconsidera-se que São Paulo não conservou parte de arquitetura original e, em seu
lugar, construíram-se casarões e prédios modernos. Entendemos que o foco de análise
da música solapam aspectos mais relevantes para o entendimento das variações
linguísticas e de questões sociais dignas de discussão para a formação cidadã dos
alunos.
Pressupomos que algumas dificuldades relativas à articulação entre teoria e
prática, além das responsabilidades oriundas do próprio processo de ensino-
aprendizagem da/na academia, resultam da história da educação. O cenário formal da
educação brasileira, historicamente, revela uma educação marcada pela predileção a
conteúdos formais e a conhecimentos científicos acumulados em detrimento dos saberes
culturais e/ou contextualizados. Além disso, houve, e talvez ainda haja, uma ditadura
escolar em que os sujeitos da escola apenas cumprem ordens e não refletem sobre suas
(deles próprios e até da escola) condições de agentes sociais transformadores da
sociedade. Assim, prime-se a necessidade de mudanças na educação. Inovar é preciso,
muito é dito. Entretanto,
[...] a inovação não vale por si só, depende do conteúdo da inovação.
Existem inovações ruins, existem inovações boas; existem práticas
chamadas, rotuladas de tradicionais, que às vezes são melhores do que
práticas rotuladas de construtivistas. [...] O discurso é pedagogicamente
correto, mas, na cabeça, persistem as ideias enraizadas na vivência e no
cotidiano do professor na sala de aula. Que formação poderia mudar tal
situação para que certas ideias não fossem apenas o discurso da moda, mas
entrassem realmente dentro das cabeças? E quais são as ideias mais
importantes para o professor? (CHARLOT, 2002, p. 93)
Para entender e promover mudanças, além da compreensão dos contextos
históricos da educação, pensamos ser necessário compreender os saberes docentes na
perspectiva apontada por Tardif (2010), entre os quais destacamos três: saberes
disciplinares, produzidos pela academia por meio das diversas disciplinas que compõem
o currículo dos cursos; saberes curriculares, correspondentes aos “(objetivos, conteúdos,
métodos) que os professores devem aprender e aplicar” (TARDIF, 2010, p. 38); saberes
experienciais, saberes práticos adquiridos ao longo de um tempo no exercício da
docência ou reflexo/refração das experiências enquanto aluno, enfim, é um saber
resultante das interações. Em síntese, de acordo com o autor,
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002150
36
Os saberes profissionais dos professores parecem ser, portanto, plurais,
compósitos, heterogêneos, pois trazem à tona, no próprio exercício do
trabalho, conhecimentos e manifestações do saber-fazer e do saber-ser
bastante diversificados e provenientes de fontes variadas, as quais podemos
supor também que sejam de natureza diferente. (TARDIF, 2010, p. 61, grifo
do autor)
Defendemos que a associação entre história da educação, saberes docentes e, em
primeiro lugar, a análise da realidade do aluno (as manifestações linguísticas em que
está inserido) promovem a formação de professores reflexivos; por conseguinte, o
fortalecimento de um processo ensino-aprendizagem producente tocante à leitura e à
escrita, que eleve os baixos índices indicativos da qualidade da educação. A esse
respeito, assim como Machado (2007), entendemos que são indispensáveis pesquisas
que investiguem a escola interna e externamente e que contribuam para a revisão e o
estabelecimento de novas políticas públicas para a educação.
Considerações finais
Neste trabalho, inicialmente, delineamos o contexto de pesquisa. Posteriormente,
trouxemos um panorama das disciplinas Laboratórios de Textos Científicos I e II,
ambas ministradas no primeiro ano do Curso. Em seguida, procuramos, apoiados nos
estudos aplicados da linguagem, tratar o gênero relatório de estágio como elemento
catalisador que pode favorecer mudanças tanto para a prática do professor orientador de
estágio, quanto para a transposição didática do estudante-estagiário. A terceira seção do
artigo foi destinada às análises de atividades envolvendo a transposição didática.
Pela análise dos relatórios de estágio, concluímos que há a absorção da teoria de
gêneros textuais e dos documentos oficiais nos relatórios de estágio, ou seja, dos saberes
disciplinares na denominação de Tardif (2010). Entretanto é frágil a transposição
didática. A formação inicial não dá conta dela. É preciso que a Universidade expanda
sua atuação para além de seus muros e invista em Projetos de Extensão e, em parceria
com as Instituições gestoras da Educação Básica, fomente (realize) a formação
continuada dos professores, para cujos encaminhamentos teórico-metodológicos,
defendemos as proposições do ISD.
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002151
37
Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
BRONCKART, J-P. Atividades de linguagem, textos e discursos: por um
interacionismo sócio-discursivo. Trad. Anna Rachel Machado e Péricles Cunha. São
Paulo: Educ, 2007.
_____. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Campinas:
Mercado de Letras, 2006.
CHARLOT, B. Formação de Professores: a pesquisa e a política educacional. In:
PIMENTA, S. G.; GHEDIN, E. (orgs.) Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica
de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002.
DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCNHEUWLY, B. Sequências didáticas para o oral e a
escrita: apresentação de um procedimento. In: SCNHEUWLY. B; DOLZ, J. Gêneros
orais e escritos na escola. Trad. de Roxane Rojo e Glaís SalesCordeiro. Campinas:
Mercado de Letras, 2004.
MARCUSHI, L.A. Produção textual, análise de textos e compreensão. São Paulo:
Parábola, 2008.
TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. 10 ed. Petrópolis: Vozes,
2010.
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002152