Universidade Federal do Paraná
Coliseu: a arqueologia na reconstrução do passado a partir das
pinturas de Jean-Léon Gérôme.
Curitiba
2010
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Fabrícia Minetto
Coliseu: a arqueologia na reconstrução do passado a partir das
pinturas de Jean-Léon Gérôme.
Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Renata Senna Garraffoni.
Curitiba
2010
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Agradecimentos
Em especial à minha orientadora, doutora Renata Senna Garraffoni, pelas
inúmeras contribuições, leituras, troca de ideias, paciência e apoio para realizar a
pesquisa. Ela é, para mim, a generosidade em pessoa.
Ao meu querido esposo, eterno amor, Rodrigo Gomes de Araujo, pelas inúmeras
contribuições e revisões do texto. Mostrando-se prestativo e um excelente companheiro
em todos os momentos.
Aos familiares: meus pais, Doraci Tavares Minetto e Jovino Minetto, pela
colaboração financeira e incentivo aos estudos no período de graduação. Ao meu irmão,
Rodrigo Minetto, por me enviar os materiais fundamentais utilizados como fontes da
pesquisa. Às minhas irmãs, Angelita, Rosane e Veridiane, pelo carinho e amizade.
Aos professores do Departamento de História da UFPR, em especial a José
Roberto Braga Portella (Peninha) e Ana Paula Vosne Martins, que foram bastante
significativos em minha formação. E à professora Roseli Boschilia, pelas inesquecíveis
viagens.
Ao secretário do Departamento de História da UFPR, Serginho, pela gentileza no
atendimento e informações.
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Resumo Esta pesquisa discute de que forma o artista francês Jean-Léon Gérôme realiza a construção simbólica do Coliseu, durante o século XIX, através de suas pinturas. E tem como objetivo analisar a importância da arqueologia para novas percepções da relação presente-passado, durante o século XIX, uma vez que Gérôme se apropriou dos discursos arqueológicos para a realização de suas pinturas. As três obras selecionadas para a pesquisa fazem parte de uma série produzida durante as escavações do Coliseu. As duas pinturas realizadas antes da divulgação dos resultados das escavações, não apresentam preocupações com as estruturas arquitetônicas internas do Coliseu. Já a pintura produzida após a divulgação, apresenta aspectos arquitetônicos em maior detalhe. O próprio pintor declarou se importar em pesquisar as descobertas arqueológicas, a fim de tornar sua pintura mais verossimilhante. O artista reconstruiu a Antiguidade de formas diferentes, conforme os conhecimentos a que tinha acesso. Suas pinturas permitem perceber que a arte não está desvinculada de outras formas de saber, sua obra traz consigo também conhecimentos históricos e arqueológicos. Palavras-chave: História da arte, arqueologia, reconstrução do passado.
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Abstract This research discusses how the French artist Jean-Léon Gérôme symbolized the Roman Colosseum, during the 19th century, throughout his paintings. The aim of this work is to analyze the importance of archaeology for new perceptions of the relation between present and past, during the 19th century, once Gérôme was deeply influenced by archaeological discourses. The three paintings selected for the survey are part of a series produced during the excavations of the Colosseum. The first and second paintings were made out before the Colosseum excavations and they do no present any concern with the Colosseum’s internal structures. The last painting, produced in the early 20th century and after the end of the excavations, presents architectural aspects in greater detail. The artist himself has emphasized in his letters to friends the importance of archeological fieldwork in order to give his art more sense of verisimilitude. The artist has reconstructed the antiquity in different ways, considering the knowledge that he could had access. His paintings enable us to realize that art can be linked to different types of knowledgments during the 19th century, and his works also allows us to understand historical and archaeological knowledge in different approaches. Keywords: art history, archaeology, reconstruction of the past.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................07
CAPÍTULO 1
ARQUEOLOGIA, ARTE E ESTADO NACIONAL.................................................10
1.1 - Arqueologia e Estado Nacional – os usos do passado........................................10
1.2 - A Arte no século XIX............................................................................................12
CAPÍTULO 2
O ARTISTA E SUA RELAÇÃO COM O COLISEU................................................19
2. 1 - Uma breve biografia de Jean-Léon Gérôme (1824-1904).................................19
2.2 - O Coliseu na obra de Jean-Léon Gérôme...........................................................20
CAPÍTULO 3
REPRESENTAÇÕES DO COLISEU.........................................................................28
3.1 - O catálogo..............................................................................................................28
3.2 - Gladiadores e Caçadas.........................................................................................33
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................37
REFERÊNCIAS.............................................................................................................40
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INTRODUÇÃO
Esta pesquisa foi desenvolvida devido ao meu interesse em artes plásticas, tendo
uma formação na área e atuando como docente na mesma. Desta forma, durante a
graduação de história busquei dar continuidade à pesquisa em arte e, neste contexto,
encontrei a professora doutora Renata Senna Garraffoni que tornou possível este
diálogo tão desafiador entre história e arte. A pesquisa interdisciplinar traz uma série de
problemas a serem explorados, se por um lado, há questões contextuais que devem ser
problematizadas pela pesquisa historiográfica, por outro há aspectos artísticos que não
podem ser desconsiderados, uma vez que o objeto da pesquisa são pinturas. Apesar de
minha formação em artes plásticas, desconhecia a obra de Jean-Léon Gérôme, tomei
conhecimento de sua arte através de uma disciplina cursada com a professora. O
desconhecimento da obra tornou o trabalho ainda mais interessante e levou-me a uma
pesquisa voluntária de Iniciação Científica apresentada em 2008, sob a orientação da
professora. Busquei explorar, num primeiro momento, o diálogo do artista com a
arqueologia e o quanto as escavações do Coliseu modificaram o seu olhar, algo que se
tornou o cerne de minha pesquisa. Por incentivo da professora, a pesquisa foi também
apresentada num evento de Letras, o que possibilitou observar questões as quais pude
melhorar no decorrer de seu desenvolvimento.
O resultado desse trabalho é a presente monografia de final de curso. A pesquisa
realizada ao longo de dois anos encontra-se aqui divida em três capítulos.
Primeiramente discuto questões referentes ao século XIX, em especial a importância do
desenvolvimento da arqueologia como disciplina acadêmica, para a formação de novas
abordagens do passado durante esse século. Na sequência, ocorre o desenvolvimento de
aspectos biográficos do artista, que são de fundamental importância para compreender
sua trajetória e visão de mundo. E por fim, analiso três pinturas cujo tema central é o
Coliseu, buscando discutir suas relações e compreender que tipo de representações
sobre a Antiguidade foram realizadas durante o século XIX. A ideia é, portanto, pensar
o quanto as relações entre sociedade, as representações artísticas e as ideias do Coliseu
foram modificadas neste contexto.
Do ponto de vista teórico-metodológico busquei referências em estudiosos que
permitiram uma interpretação renovada do século XIX, considerando aspectos pouco
valorizados até então. Assim, parto de discussões sobre a importância dos usos da
Antiguidade na construção da identidade nacional francesa e na imbricação dos
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discursos acadêmicos e artísticos. Nesta perspectiva, dialogo com o trabalho de Michel
Foucault, em especial a obra a Ordem do discurso. Neste livro, o filósofo aprofunda as
discussões sobre os discursos, permitindo analisar como são formados e tornam-se
possíveis historicamente. Para o autor, as sociedades produzem uma série de discursos,
que são devidamente selecionados, controlados, disseminados e constituem poderes. Os
discursos apresentam interdições, limitam as ações revelando a ligação com o poder,
pois há um controle do que se quer dizer, saberes são omitidos em detrimento de outros.
As diferentes instituições que afirmam e divulgam os discursos usam dos saberes e
poderes que eles trazem consigo (FOUCAULT: 1996, 8-19).
Para Foucault, as instituições de ensino possuem o poder da palavra, de regras e
domínios do saber, tornando-se um dos lugares nos quais se apropriam e distribuem os
discursos. É nas instituições que se produzem verdades ideais e uma ética do
conhecimento que atende ao próprio desejo de verdade e ao exercício do pensamento.
Os discursos devem ser percebidos como práticas descontínuas, que convergem,
divergem e até se excluem (FOUCAULT: 1996, 44-53).
Foucault nos permite perceber as limitações do historiador e do quanto a
academia, que pretensamente busca a objetividade dos fatos, é envolvida por discursos
circundantes. Para o filósofo, não existe uma verdade absoluta e nem uma transparência
da linguagem, o que existe são problemas a serem discutidos e explorados pelo
historiador.
Margareth Rago, ao fazer uma pequena retrospectiva da trajetória de Foucault,
afirma que ele insistia na ideia do filósofo do século XIX, Friedrich Nietzsche, de que
“tudo é histórico”, tudo que é humano deve ser observado pelo historiador. Foucault,
apoiado nas ideias de Nietzsche, traz uma série de questionamentos ao campo da
história, ampliando-o, trazendo novas possibilidades de objetos de estudo. O filósofo
francês busca nas minorias sua fonte de pesquisa, nos loucos, prisões, sexualidade,
corpo e instituição disciplinares. Explora outros campos do saber pouco valorizados
pelo olhar do historiador. A pesquisadora ainda salienta que a importância das obras de
Foucault não reside somente na novidade temática, mas, sobretudo, pela maneira com a
qual ele problematiza as questões, pois é a partir das categorias de análise que ele
explora as bases epistemológicas do historiador, dos discursos que se constroem a partir
delas. Ou seja, o filósofo nos permite perceber a história como um discurso (RAGO:
1995, 70-72).
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Nesta perspectiva, vale destacar as proposições de Keith Jenkins, quando este
afirma que a história é o estudo dos discursos acerca do passado, ou seja, de diferentes
interpretações no tempo e espaço. Fazer uma pesquisa historiográfica é, portanto, saber
relacionar passado e presente, pois o que se tem da história são fragmentos do passado
que são influenciados pela leitura e linguagem do presente, através de métodos e
conceitos que formam modelos interpretativos (JENKINS: 2004, 23-27).
A historiografia passou por várias mudanças teórico-metodológicas no decorrer
dos tempos. Denunciou não só suas fragilidades, mas, sobretudo, demonstrou sua
capacidade e possibilidade de se relacionar com outras disciplinas. Alguns estudiosos
consideram este o seu fim, outros consideram o seu início. Contudo, o mais importante
está em perceber estas mudanças e a necessidade de dialogar com outras áreas do
conhecimento. A história se tornou mais rica em análises e plural em discussões,
portanto, a disciplina não pode mais ser interpretada apenas por um único viés. Ou seja,
o objeto de estudo da história, o passado, deve ser explorado de vários ângulos. Por esse
motivo a historiografia não se esgota em si mesma. A cada período surgem novas
interpretações, indagações, problemáticas que seguem o curso de seu tempo. Isso
também nos abre a possibilidade de refletir sobre o quanto à história é datada e política.
Partindo destes pensamentos teóricos, busco explorar as obras do artista Jean-Léon
Gérôme. Desse modo, inicio com uma discussão teórica referente aos desenvolvimentos
da arqueologia durante o século XIX, e sua relação com as representações artísticas
para, em seguida, estudar as relações entre arte, arqueologia e história em uma
perspectiva crítica do lugar do passado romano no século XIX francês.
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CAPÍTULO 1 – ARQUEOLOGIA, ARTE E ESTADO NACIONAL
Por meio das pinturas de Jean-Léon Gérôme, utilizadas como fonte para esta
pesquisa, é possível se questionar sobre as possibilidades que levaram um artista francês
a reconstruir cenas do Coliseu. Qual o sentido de reconstruir as imagens romanas
através do diálogo com as descobertas arqueológicas, quais as possíveis leituras que o
século XIX fazia da arte e da arqueologia e, finalmente, quais sentidos esses campos do
saber podiam desempenhar naquele contexto. Assim, neste capítulo, discute-se de que
forma a arqueologia e arte se relacionam com a conjuntura política do fim do século
XIX.
1.1 - Arqueologia e Estado Nacional – os usos do passado
Na França, durante o século XIX, houve uma série de transformações nos campos
político, social, econômico e cultural, impulsionadas pela Revolução Francesa. A
arqueologia, que se constituía como disciplina acadêmica, se insere nesta nova
concepção de sociedade. Para Laurent Olivier, a origem da arqueologia na França
remonta à descoberta da América, período em que as noções de identidade são
reformuladas, mas é a partir do século XVIII que a disciplina se constituirá enquanto
tentativa de compreensão científica destes povos (OLIVIER: 2003, 37).
Segundo Olivier, dois grandes acontecimentos mudaram a concepção das
identidades européias. Em primeiro lugar, a descoberta das “Antiguidades pré-romanas”
trouxe novos vestígios e abordagens para a análise do passado, uma vez que a origem da
sociedade passou a ser pensada de forma diferente. Num segundo momento, a
descoberta do Novo Mundo trouxe a possibilidade de estudos sobre etnografia e
antropologia, os quais buscaram dar sentido à diversidade das culturas humanas
(OLIVIER: 2003, 38).
No século XVIII, segundo o autor, houve a ideia de formular uma História
Universal, surgiu, então, a necessidade das culturas se afirmarem e se diferenciarem. A
arqueologia ocupou-se de construir a história do passado europeu, uma vez que este
devia ser entendido como algo distinto das civilizações “selvagens da América”. Pode-
se afirmar que houve uma divisão disciplinar: enquanto a arqueologia estudava os povos
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do passado, deslocados no tempo; a etnologia surgiu para analisar os povos do presente,
deslocados no espaço, ou seja, os povos ameríndios (OLIVIER: 2003, 59).
A arqueologia francesa, para o autor, teve funções político-ideológicas, pois
remontou as origens da nação e, por isso, está tão vinculada à ideia de Estado. Ou seja,
“desempenha um papel ideológico e político, na medida em que, globalmente ela
restituiu a evolução da humanidade, e, localmente, ajunta testemunhos das origens e da
continuidade da Nação” (OLIVIER: 2003, 60). O autor ainda destaca que a arqueologia
francesa não pode ser vista como “a-teórica”, pois se insere em um contexto universal,
que não ficou restrito somente à França, pelo contrário, foi um projeto de sociedade
formulado no século XVIII, em reação a desigualdades sociais vindas desde o Antigo
Regime. Nesse sentido, as modificações no contexto político e social trouxeram
mudanças teórico-metodológicas para a arqueologia, visto que não se trata de uma
disciplina neutra.
Neste contexto, é possível afirmar que o desenvolvimento da arqueologia
possibilita a discussão das relações entre passado e presente e as relações que o mundo
moderno estabelece com os estudos de Antiguidade Clássica. Nesta perspectiva, Martin
Bernal é um dos primeiros pesquisadores a questionar o fato de historiadores afirmarem
que história antiga não apresenta relações com a política moderna. O autor afirma que,
durante os séculos XIX e XX, os estudos sobre a Antiguidade desempenharam um papel
legitimador de políticas e da cultura européia. Assim, através da relação entre estudos
do mundo Antigo buscavam-se os argumentos em favor do discurso da superioridade
cultural européia, surgindo como justificativa ao neocolonialismo (BERNAL: 2005, 13-
14). Essa questão é debatida desde o início dos anos de 1980 e traz uma série de novas
interpretações sobre a relação entre passado antigo e presente moderno. Glaydson José
da Silva reafirma a visão de Bernal, reforçando que “o estudo da antiguidade, como os
discursos sobre o passado de uma forma geral, não deve ser dissociado de seus
contextos de produção, assim como, também, de suas apropriações posteriores”
(SILVA: 2005, 30). Neste sentido, podemos estabelecer uma aproximação entre Olivier,
Bernal e Silva na medida em que defendem o princípio de que o tempo presente se
relaciona estreitamente com o passado.
Dentro da discussão sobre os usos do passado na história e na arqueologia é
importante destacar a relação entre mito, memória e história que é abordada por Silva. O
autor recorre às ideias de Wolfgang Kaschuba para ressaltar que os mitos são elementos
fundamentais para se forjar a identidade social das nações, deste modo “Roma foi
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imaginada e construída, de diferentes maneiras, nos mais distintos lugares e épocas,
legitimando ou desautorizando grupos, práticas e políticas” (SILVA: 2005, 41). O uso
do passado serviu a vários propósitos do presente, principalmente, referente às questões
políticas, as quais reforçaram ideias nacionalistas e imperialistas que foram justificadas
por este. O autor afirma que a França, durante o século XIX, foi muito marcada por
práticas do Estado e com a ideia de Nações justificadas por memórias. Tais memórias
controlam o passado e reconfiguram o presente, contribuindo para a formação de
identidades nacionais, sejam elas sociais, culturais ou políticas. Por vezes a memória
não constitui unicamente uma realidade, possuindo também caráter mítico.
Nesta perspectiva, destaca-se que os autores citados, Olivier, Bernal e Silva,
concordam e defendem que o retorno ao passado, a leitura que se fez deste, no contexto
do século XIX, se encontra num projeto político bastante amplo, orientado e justificado
pelo presente e isso ocorreu, sobretudo, voltado para a tentativa de criar o Estado
Nacional. Mas, segundo os autores, para que isso acontecesse foi necessário que se
forjasse uma identidade que devia trazer consigo valores unitários de coesão cultural. E
para forjar uma cultura nacional foi necessária a legitimidade histórica e as descobertas
arqueológicas, pois ambas são mecanismos de poder que trazem aspectos legitimadores
de um discurso, criando uma memória e expressando ideologias. Essa relação das
diferentes disciplinas com o passado é uma relação, sobretudo de poder, na qual se
autorizam determinadas memórias, mas também silenciam outras. Portanto, em
diferentes épocas o passado é revisitado e reinterpretado, a história não é universal, mas
é, sobretudo, política. Neste cenário de discussão político-ideológica da arqueologia,
não se pode deixar de lado a arte, pois também é um grande recurso simbólico de poder
e forte aliada das divulgações arqueológicas.
1.2 - A Arte no século XIX
Para interpretar as obras de Gérôme consideram-se, como referencial teórico-
metodológico, as discussões do historiador da arte Ernst Gombrich. Este autor analisa
com detalhes os significados simbólicos de uma obra de arte, destaca a necessidade de
contextualizar uma imagem para que se possam perceber as intenções subjacentes a esta
e, para chegar a esta abordagem, é necessário que se conheçam as narrativas da obra e o
estilo do pintor. Para tanto, Gombrich vai buscar na Psicologia, no inconsciente, o
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instrumento para desenvolver tal análise. Também optamos por dialogar com as ideias
do historiador Jean Starobinski, presentes em seu livro 1789: os Emblemas da Razão.
Esta obra instrumentaliza as pinturas, apresentando métodos que dialogam com a
história das mentalidades na interpretação de imagens, historicizando-as. O livro de
Starobinski também discute questões importantes no campo histórico e cultural que nos
reporta a um período anterior à época em que Gérôme produz suas pinturas do Coliseu.
Este fato ajuda analisar e compreender as rupturas e permanências dentro do campo da
história e da arte. Segundo Starobinski, é necessário perceber e analisar as contradições
que as obras trazem, fazer comparações para que se possa desenvolver uma análise
interpretativa acerca de uma data, pois a obra traz consigo uma série de símbolos,
sentimentos e aspirações culturais da época as quais não podem passar despercebidas ao
olhar do historiador. Segundo estes conceitos de ambos os historiadores – Starobinski e
Gombrich – procura-se entender o artista Gérôme inserido no contexto do século XIX.
Uma vez que, o pintor recorre a várias pesquisas para desenvolver sua arte. Visa-se
entender Gérôme como um representante dos ideais correntes em seu contexto.
De acordo com o historiador Ernst Gombrich, o advento da Revolução Francesa,
em 1789, trouxe mudanças significativas à arte no que refere ao “estilo”. Havia uma
necessidade urgente de eliminar os estilos do passado em prol de uma identificação com
a nova ordem política que se esmerava em Atenas como modelo. Em certa medida a
arqueologia foi responsável na divulgação deste ideal, pois havia uma preocupação com
a recuperação histórica e cultural deste passado, uma identificação que deve ser precisa,
coberta de rigor detalhístico e que questiona as teorias consideradas verídicas até então
(GOMBRICH: 2008, 476-480).
Gombrich afirma que a partir da Revolução Francesa a temática pictórica ganhou
outras características, de religiosidade e mitologia passou a representar temas históricos.
O primeiro registro desta mudança ocorreu na Europa pelo imigrante americano John
Singleton Copley, em 1789 – ano da tomada da Bastilha – com a pintura Carlos I
exigindo a entrega dos cinco membros da Câmara dos Comuns atingidos por
impeachment, 1641-1785, para esta pintura o artista fez pesquisas históricas, de
arquitetura, indumentária e retratos da época. Tal prática, segundo Gombrich, é uma
tarefa de pesquisa arqueológica (GOMBRICH: 2008, 482).
Diferente de Gombrich, Jean Starobinski menciona que em 1789 não houve um
surgimento de estilo grandioso para a história da arte. Segundo ele, o que ocorreu foi
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um retorno à Antiguidade, algo que já aconteceu antes da Revolução Francesa, durante
Renascimento Italiano. A arte neste contexto, “está sem dúvida mais apta a exprimir os
estados de civilização que os momentos de ruptura violenta” (STAROBINSKI: 1988,
17-18). Para o autor, não foi criada uma nova arte que exprimia a ideologia da nascente
ordem, a necessidade do novo convive com o antigo. Assim, se para Gombrich há uma
ruptura na concepção de arte, para Starobinski há somente um retorno à ideia de arte da
Antiguidade, constituindo-se para o autor como uma permanência.
Já para Peter Burke, o interesse pela pintura histórica surgiu no período entre a
Revolução Francesa e a Primeira Guerra Mundial, no qual o passado ligou-se de forma
estreita com os ideais políticos do presente, este interesse foi simultâneo à divulgação
do romance histórico, momento em qual o autor imprimia um olhar ao passado
buscando uma descrição mais minuciosa do cotidiano e costumes da época (BURKE:
2004, 198-199). Essa característica da verossimilhança com o passado passa a exigir
uma pesquisa mais acentuada para a produção artística. Algo que impulsionou viagens,
visitas a museus, estudo de monumentos arqueológicos e de certa forma aproximou o
literato e o artista plástico do trabalho do historiador, permitindo várias contribuições ao
estudo do passado através de interpretações de outras áreas do conhecimento, além das
divulgadas pela historiografia. Burke ainda menciona que a mudança gradativa da
pintura histórica para a pintura social a tornou um gênero cada vez mais popular, se
estendendo a outras camadas sociais.
Assim como Burke insere os artistas em um contexto político-social, Starobinski
destaca que os acontecimentos da Revolução Francesa são tão relevantes, que os artistas
– favoráveis ou contrários a ela – são tocados pelo contexto conturbado, fazendo com
que estabeleçam juízo de valor sobre a conjuntura vivenciada (STAROBINSKI: 1988,
19). Ou seja, afirma que por mais que o artista queira ignorar ou contradizer os
acontecimentos, ainda assim ele dialoga com sua época. O artista traz, conscientemente
ou não, símbolos sobre o universo mental da conjuntura. Por exemplo, Jacques Louis
David, em sua obra O juramento dos Horácios (1784), expressa sua postura e também o
contexto, no que concerne à relação dos cidadãos com a Nação ou o Estado. Nesta
pintura, o ponto central está localizado no punho das espadas que o pai oferece aos três
filhos. Os personagens envolvidos no ato do juramento direcionam seu olhar ao punho
das espadas. Vista de um modo geral, isto parece um mero detalhe na obra, entretanto,
segundo Starobinski, isto reflete uma mudança de postura dos cidadãos com o Estado.
Se no Antigo Regime o cidadão devia obediência ao Estado, devido à sacralidade do rei,
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após a Revolução Francesa, o cidadão passa a ter um compromisso com a Nação e não
com o Estado, ou seja, visam ao bem comum. “O Pai, que não olha seus filhos, mas as
armas que lhes confia, faz mais questão da vitória que da vida deles. Os filhos, por seu
lado, pertencem doravante mais ao seu juramento que a si mesmos” (STAROBINSKI:
1988, 73).
Pode-se perceber que, segundo Starobinski, na obra de David o compromisso ou
juramento que os cidadãos têm com a Nação substitui a sacralidade do Estado do
Antigo Regime. Assim, através dos detalhes representados na obra, Starobinski
demonstra que a pintura de David dialoga com o contexto em que foi produzida e
expressa, de forma subjacente, as ideologias correntes na conjuntura. Neste sentido,
destaca-se que apesar de Starobinski negar um novo estilo artístico para o período, ele
nos aponta algo ainda mais interessante que é a questão político-ideológica presente em
obras artísticas, trazendo a possibilidade de pensar a obra não só do ponto de vista
artístico, mas, sobretudo, do viés histórico. Essa é uma abordagem relevante, o diálogo
do artista com sua época, suas aspirações e sensibilidades diante da sociedade. A arte
nesta perspectiva deve ser compreendida como uma visão do artista referente ao
contexto, pois se acredita na arte não como um reflexo da realidade, mas, sobretudo, um
discurso que constrói ideologias.
Segundo Gombrich, a Revolução Francesa disseminou o interesse por temas
históricos e heróicos. Tanto que, no século XIX, é frequente os artistas se voltarem para
o passado greco-romano, em um tipo de arte que ficou conhecida como Neoclássica.
Um artista a ser destacado deste período é David, citado anteriormente, com suas
pinturas sobre Napoleão. David o representou coberto de gestos e características da
Antiguidade, mesclados aos interesses políticos de sua conjuntura, de modo que a obra
assumiu o papel de propaganda política. Segundo Raquel Stoiani e Renata Senna
Garraffoni, Napoleão soube de forma exímia aproveitar o poder eficaz da imagem
artística.
“Escavando” o passado político da Antiguidade, Napoleão reativou várias de suas figuras e passou, com a ajuda de uma máquina de propaganda governamental, a compará-la a fim de consolidar sua imagem de homem público (STOIANI e GARRAFFONI: 2006, 74).
Em seu livro Da espada à águia, Raquel Stoiani discute a construção simbólica do
poder político de Napoleão, comenta que David era o pintor oficial da corte, elevado a
essa categoria pelo próprio imperador, de modo que Napoleão fiscalizava atentamente a
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construção de sua imagem artística. Observa-se que a capacidade de criação do artista
era deixada em segundo plano em prol da construção simbólica do poder político. Mas
isso, segundo a historiadora, era uma via de mão dupla, pois havia uma troca de favores,
se por um lado explorava-se o artista na construção ideal da figura pública de Napoleão,
por outro, o próprio artista ganhava status e se firmava no gosto oficial da pintura da
época (STOIANI: 2005, 150-154).
É importante destacar o quanto a Antiguidade e, principalmente, a arqueologia
associadas à arte se tornaram importantes recursos ao poder político. Isso reforça a ideia
de poder simbólico da imagem e o quanto ela se reveste de diversas características
podendo vir a assumir uma finalidade, um posicionamento político e ideológico.
No Neoclassicismo,1 a arte desenvolveu características vinculadas diretamente ao
poder do Estado como forma de propaganda política, pois se antes a arte era restrita a
uma aristocracia, como um símbolo de status e domínio de códigos sociais nas
sociedades de corte, com o Neoclassicismo ganhou um apelo maior, se estendendo a
outras camadas, com uma necessidade de se tornar conhecida amplamente. Fazendo-se
presente como símbolo de poder, assumindo quase as características de um jornal que
devia ser divulgado e lido conforme os acontecimentos vigentes. Durante o século XIX,
o passado foi investigado atentamente, buscando aspectos culturais que justificassem o
presente através dos valores antigos, explorou-se a arte, história, arqueologia, campos
do saber que serviram como meio para este propósito. Importante destacar ainda que as
obras ao serem expostas no salão de arte2 eram objeto de discussão e estudo por parte de
outros artistas e de seu público consumidor. Estes locais se constituíam como um
espaço significativo de sociabilidades.
Gérôme, inserido no contexto do século XIX, também se voltou ao passado para
sua produção artística, mas com outra perspectiva. Sua arte buscava a verossimilhança
e, para tal, realizava pesquisas históricas. Neste sentido, acredita-se que sua arte seja
pintura arqueológica, não estando diretamente ligada ao poder político como forma de
propaganda. Entretanto, pode-se afirmar que sua pintura estava ligada indiretamente à
política, pois segundo Norberto Bobbio há certa forma de política ideológica durante a 1 O Neoclassicismo produziu uma mudança no estilo das artes visuais na Europa e América durante o século XIX. As curvas do desenho deram lugar às linhas retas e a pintura ganhou contornos. Imitando as características greco-romanas, se tornando padrões de estudo nas Academias de Arte. Uma arte de técnicas e valores universais (REYNOLDS: 1985, 4-5). 2 De acordo com Nigel Blake e Francis Frascina: “O Salão de Arte era a principal exposição anual até 1880. Este era organizado pela Academia, mas em nome do Estado (um importante comprador), em instalação do Estado e as custas do Estado. O Salão era a principal arena pública em que um artista podia construir sua reputação” (BLAKE e FRASCINA: 1998, 60).
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Modernidade que se vale da influência que as ideias possuem. Para o autor, pessoas
imbuídas de autoridade difundiam ideais capazes de atingir a sociedade, deste modo, os
detentores do conhecimento – a academia de um modo geral – eram responsáveis por
divulgar, diretamente ou não, essas ideologias (BOBBIO: 2004, 955). Assim, apesar de
Gérôme não representar a figura de um líder político como propaganda – como David o
fez com Napoleão –, o pintor era considerado uma autoridade na academia de arte,
lembrando que enquanto viveu foi responsável por definir o estilo de arte Orientalista,
difundindo a arte acadêmica e rejeitando o estilo Impressionista, pois para ele, não se
constituía como arte.
Neste tipo de abordagem de pintura arqueológica e histórica podemos inserir a
obra de Jean-Léon Gérôme. O artista produziu pinturas sobre o Coliseu entre 1859 e
1902. Em suas primeiras pinturas, Gérôme realizava um tipo de arte idealizada, baseada
quase exclusivamente na literatura da época, mas após entrar em contato com as
escavações arqueológicas do Coliseu, passou a ter uma preocupação rigorosa com a
verossimilhança arquitetônica. Buscava também, por meio de suas pesquisas históricas,
representar questões do cotidiano, da vestimenta até pequenos gestos, que aparecem em
suas obras. O interesse de Gérôme evidencia que as questões históricas discutidas pela
arqueologia perpassam o mundo acadêmico e refletem, também, em outras áreas do
conhecimento, no caso, a arte, nos permitindo perceber as representações de uma época.
A partir dessas reflexões percebe-se que tanto a arqueologia, discutida
anteriormente, quanto a arte buscaram durante o século XIX formar uma identidade
nacional, cada uma a seu modo. Ambas se configuram como mecanismo de poder,
produzindo ideologias. Tomando essas ideias como pressupostos, a obra de Gérôme é
analisada como uma forma de pintura arqueológica, entre suas obras, o artista apresenta
uma série de pinturas sobre o Coliseu.
Coliseu é o nome pelo qual o Amphiteatrum Flavium se tornou popularmente
conhecido, trata-se de um local que marcou de maneira indelével a história e também o
imaginário popular, que mesmo após séculos ainda se apropria do local com a
finalidade de produzir valores simbólicos. Imagens do Coliseu foram reconstruídas em
diferentes épocas formando uma série de significados, tornando-se também um lugar de
discurso, sendo alguns destes relacionados às ideias de poder, riqueza, glória e
sociabilidades.
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Partindo dessa hipótese, analiso três pinturas do artista Jean-Léon Gérôme sobre o
Coliseu, produzidas durante a segunda metade do século XIX e o início do XX,
buscando discutir aspectos históricos que estão subjacentes às imagens e que nos
permitam perceber valores culturais de uma época, seus símbolos, preocupações, estilo,
sentimentos, visão de mundo daquele contexto. Deste modo, a ideia é discutir o quanto
a arte dialoga com a conjuntura política e social.
Importante destacar que a pintura de Gérôme não é entendida aqui como reflexo
da realidade, mas sim como uma representação que dialoga com esta, é uma forma de
compreender aspectos do contexto histórico na qual foi produzida. Ou seja, é o
testemunho de um determinado tipo de passado, selecionado e reconstruído pelo artista.
A pintura é uma fonte complexa e rica em argumentos discursivos e representativos,
entretanto, é pouco valorizada pelo olhar do historiador, talvez pelo fato de conter a
criação subjetiva, elemento que aparentemente a torna vulnerável. Como durante muito
tempo os historiadores buscaram uma interpretação objetiva da realidade, a pintura
acabou pouco analisada por seu caráter artístico implícito. Mas é justamente esse caráter
de não oficialidade e de “descompromisso” que a torna rica em informações, e nos
permite perceber formas de discursos subjacentes à imagem, que muitas vezes são
cobertos de contradições que se fazem presentes num dado contexto.
Para melhor compreender qualquer tipo de produção artística é necessário que se
realize uma pesquisa sobre o autor, suas filiações institucionais e teóricas, a fim de
poder relacionar sua obra à conjuntura em que foi produzida buscando, assim, quais
diálogos o artista realizava ao fazer suas criações. Desse modo, no capítulo seguinte
desta monografia, é realizado um levantamento da formação acadêmica de Jean-Léon
Gérôme, buscando explicitar quais foram seus mestres e como contribuíram para sua
pintura. Busca-se ainda problematizar a importância do Coliseu para o pintor, tendo em
vista que Gérôme produziu uma série de pinturas referente ao local.
19
CAPÍTULO 2 – O ARTISTA E SUA RELAÇÃO COM O COLISEU
2.1 - Uma breve biografia de Jean-Léon Gérôme (1824-1904).
Nesta monografia, problematizo uma série de três pinturas produzidas por Jean-
Léon Gérôme entre 1859 e 1902. Trata-se de um artista pouco estudado e, por essa
razão, boa parte desse trabalho se fundamenta na biografia La vie et l’oeuvre de Jean-
Léon Gérôme, escrita por Gerald M. Ackerman. O livro contribui para a compreensão
do desenvolvimento de suas pinturas, sugerindo a relação do artista com o contexto de
sua época.
Segundo Ackerman, o artista nasceu em 1824, em Vesoul, na França e iniciou
seus estudos artísticos ainda muito jovem com Claude Basile Cariage. Formado em uma
tradição acadêmica rígida, Gérôme aprendeu as proporções do corpo humano, passou a
olhar o desenho como uma ciência, a qual devia ser explorada em seus pormenores. Em
1840, aos dezesseis anos, foi indicado para estudar em Paris no atelier de Paul
Delaroche – artista que apresentava um estilo do academicismo Neoclássico, com
influência da escola romântica, visto que suas obras trazem características psicológicas
às feições de suas cenas de gênero. Mas, de acordo com Ackerman, foi em sua viagem
para Roma com Delaroche, que Gérôme mudou sua percepção diante da arte, ao
descobrir no museu de Nápoles suas fontes de trabalho: foi neste museu que entrou em
contato com a conhecida armadura do gladiador de Pompéia, a partir daí alguns de seus
futuros trabalhos apresentam o tema da gladiatura. Segundo os comentários do próprio
pintor:
Este lugar me abre um horizonte imenso (...). Todos os pintores, todos os escultores deveriam vir aqui, veja isto, refazer um gladiador não é um sonho (...). Eu pesquiso tudo referente a um gladiador; os mosaicos, as pinturas, pequenas esculturas, a tumba de Scorus, etc. Coleção bastante numerosa porque os gladiadores têm um papel considerável no mundo romano: Pão e circo (GÉRÔME In: ACKERMAN: 1986, 24, tradução livre. Grifo nosso).
Ao retornar a Paris, em 1844, Gérôme passou a estudar no atelier de Charles
Gleyre. Este, durante sua juventude, realizou uma série de viagens à Turquia, Egito e
Terra Santa, nas quais desenvolveu estudos que serviram de base a Gérôme. Foi no
atelier de Gleyre que Gérôme se posicionou contra os novos movimentos artísticos, em
20
especial o Impressionismo, uma vez que o artista estava vinculado a um movimento
acadêmico conhecido como Neo-Grego. Este movimento, com base na idealização da
Antiguidade, relegava para segundo plano as questões históricas e mitológicas,
constituía-se como um movimento que enfatizava as cenas de gênero da Antiguidade.
No entanto, algum tempo depois, Gérôme desvinculou-se do grupo, aproximando-se das
pesquisas históricas e arqueológicas, aspecto fundamental para pensar suas obras sobre
o Coliseu. Neste período, Gérôme avançou muito em seus estudos, melhorou
significativamente seus desenhos, simplificando-os, sem idealizá-los tanto. As cores de
suas pinturas se tornaram mais claras, com tons luminosos, diferentemente dos tons
escuros usados na época de Delaroche. O interesse por artefatos antigos também surgiu
nesse período, Gleyre adquiria objetos antigos a fim de melhor representá-los em suas
pinturas, tal prática foi, posteriormente, adotada por Gérôme. Provém também desta
época o interesse que o artista possuía pelo Oriente Próximo, algo que foi determinante
a sua obra, uma vez que as pinturas de Gérôme são mais reconhecidas pela temática
orientalista (ACKERMAN: 1986, 18-35).
É importante elencar que Gérôme fez viagens a diversas localidades para
pesquisar vários aspectos culturais e etnográficos, histórias locais, artefatos e obras
artísticas para a construção representativa de seus temas pictóricos. Nesta perspectiva,
Gérôme expressou em sua pintura várias preocupações com as possíveis reconstituições
históricas acerca do período retratado. Foi sob a égide da arqueologia e da Antiguidade
que construiu suas pinturas. Pelo contato com os resquícios arqueológicos, o pintor
descobriu sua composição, sua cor e a perspectiva que integraram os elementos da
arquitetura em seus quadros.
2.2 - O Coliseu na obra de Jean-Léon Gérôme
A pintura de Gérôme buscou narrar aspectos da história e um de seus temas é o
Coliseu. Mas cabe aqui a questão principal da pesquisa: o que permite que um artista
francês se interesse pelo Coliseu, sendo que a maioria de suas obras representa temas,
sobretudo, orientalistas? O artista tentou recuperar os gestos, as fisionomias, trazer
aspectos da atmosfera da época, sua violência e seus valores culturais. A obra de
Gérôme possibilita a discussão de ciência arqueológica como mediadora do
conhecimento, do indivíduo que pretende ensinar aos seus contemporâneos uma nova
21
forma de perceber a arte, afirmando que esta também carrega em seu bojo o
conhecimento histórico para além de suas características artísticas.
As obras de Gérôme são produzidas dentro do contexto histórico específico no
qual se desenvolve a arqueologia no século XIX. As pinturas podem ser interpretadas
como uma forma de recuperar a memória de Roma, num momento em que se faz
necessário estabelecer uma política nacional francesa, de preservação e recuperação do
patrimônio cultural, de reformulação e reafirmação da identidade nacional. Por este
motivo há um retorno à temática da Antiguidade Greco-romana. Gérôme dialoga com o
contexto, busca em sua pintura salientar o que considera relevante deste passado. O
artista destaca o poder máximo da arquitetura Romana, no caso o Coliseu. Neste
sentido, explora a ideia de um passado glorioso, de construções grandiosas e busca
construir um ideal de civilização, de continuidade de tradições, a de descender de um
grande império. O artista se encontra inserido neste processo ao forjar uma história
imagética de Roma, construindo valores e mostrando às pessoas sua visão do Coliseu.
Por suas declarações, citadas acima, se pode perceber que o pintor atribuía ao
Coliseu um importante papel político, que para ele se constituía como “pão e circo”, ou
seja, os espetáculos eram responsáveis por desviar o olhar público dos problemas de
ordem social e política, tal visão era corrente durante o século XIX. Entretanto é
importante destacar que o conceito de “pão e circo” atualmente é reinterpretado, o
Coliseu possuía outras funções além de desviar o olhar público, configurava-se também
como um importante espaço de sociabilidades. Segundo Renata Senna Garraffoni, as
relações entre o povo e os espetáculos não se limitavam à ideia de “pão e circo”, pois os
anfiteatros eram produtores de sentido, espaços de relações sociais e de inúmeras
experiências de vida. De acordo com a historiadora, o Coliseu correspondia a um espaço
de tensões sociais que estavam presentes no cotidiano romano, tanto que as motivações
para se frequentar os espetáculos eram distintas, para ver e ser visto, participar de
comemorações, ritos religiosos ou, simplesmente, com o intuito de se divertir
(GARRAFFONI: 2005, 105).
Garraffoni levanta uma série de interpretações sobre os jogos de gladiatura.
Dentro destas discussões se encontra a concepção de “pão e circo”. Segundo ela, desde
o século XIX, história e arqueologia são responsáveis por engendrar conceitos sobre o
fenômeno de gladiatura, principalmente, de como a sociedade se relacionava com os
espetáculos. Para a autora, as interpretações, geradas pelos classicistas do século XIX,
tendiam a relegar as camadas populares ao segundo plano. Os classicistas divulgaram os
22
conceitos de “Romanização”, “plebe ociosa” e “política de pão e circo”, tais conceitos
condenavam as camadas populares a configurarem como coadjuvantes
(GARRAFFONI: 2005, 25-28). Foi neste contexto de ideias que Gérôme percebeu e
elaborou suas imagens.
De acordo com Garraffoni, os principais autores que difundiram o conceito de
“pão e circo” foram Theodor Mommsen e L. Friedländer, no século XIX. No contexto
em que viveram, predominavam interpretações que ressaltavam a grandiosidade do
Império Romano, pois era um período de difusão de ideias neocolonialistas, portanto, a
violência não era o foco de atenção dos pesquisadores neste contexto, mas sim a
importância política destes combates. Além disso, ambos são pesquisadores fortemente
ligados aos ideais burgueses de sua época, portanto, a ideia de plebe ociosa e
desinteressada pelo trabalho era uma grande crítica em suas análises (GARRAFFONI:
2005, 66-72).
Interessante evidenciar que Gérôme buscava uma relação identitária com suas
obras de arte, na temática de gladiatura recuperou aspectos da antiguidade e os
ressignificou no contexto em que vivia. Trouxe à tona a representação de um dos
maiores símbolos de Roma, o Coliseu, dialogando fortemente com a conjuntura de
elaboração de uma leitura do passado greco-romano, com o intuito de construir uma
memória francesa. Isso pode ser reforçado ao observarmos que se constituiu como um
renomado orientalista no contexto do século XIX, período no qual a França buscava se
expandir, invadindo colônias e necessitava definir sua identidade nacional em relação ao
outro. Tanto na temática do Orientalismo quanto nas pinturas referentes ao Coliseu, o
artista buscava uma ligação identitária. Suas obras orientais representavam as
sensualidades masculina e feminina e dados culturais de terras distantes, observa-se que
realizava suas pinturas com um olhar voltado quase sempre para o exótico. Suas obras
representam templos, casas de banhos, mesquitas ricamente detalhadas e adornadas com
objetos de diferentes regiões, como pode ser observado em sua pintura La danse du
sabre dans un café (1875), na qual visualiza-se a sensualidade e o exotismo de uma
mulher que seduz ao dominar espadas numa dança envolvente (ver Figura 1).
23
Não podemos deixar de observar que muitas de suas pinturas, mesmo orientais,
são carregadas de um olhar ocidental, algumas figuras femininas parecem esculturas
gregas, como em L’ Allumeuse de narghilé (1898), obra na qual se observa que as
mulheres nuas transcendem à beleza humana, assemelhadas a esculturas de mármore,
inclusive suas cores, extremamente pálidas, também suas posições corporais tem pouco
movimento, são rígidas (ver
Figura 2). Portanto existe
idealização em algumas
pinturas que se referem ao
Oriente.
Gérôme ao representar o
Oriente em suas obras se
encontra intimamente ligado ao
contexto do século XIX,
definindo o Oriente em relação
ao Ocidente, e o faz dentro de
uma ótica ocidental. O crítico
Edward Said, em seu livro O
Orientalismo, destaca que o estudo do Oriente se tornou uma disciplina acadêmica no
século XIX, constituindo-se como um discurso hegemônico e tornando-se um conceito
nesta época. Conceito este, que é construído pelo viés cultural, e se constitui através de
relações de saber e poder. Trata-se de um conhecimento que ultrapassa o domínio
territorial é, sobretudo, um poder intelectual. O orientalismo, segundo Said, é uma
forma de domínio do outro através do conhecimento, quanto mais se sabe sobre algo,
Figura 1: La danse du sabre dans un café (1875)
Figura 2: L’ Allumeuse de narghilé (1898)
24
mais fácil se torna dominá-lo. De acordo com o crítico, o conceito foi apropriado de
diferentes maneiras ao longo da história, servindo a várias políticas, dentre estas se
encontra o imperialismo e o positivismo (SAID: 2001, 51-107). Essas questões podem
ser observadas na obra de Gérôme.
Na própria temática do Coliseu, o artista busca recuperar dados e valores
históricos que permitam uma proximidade ou distanciamento com esta cultura do
passado, buscando valores nacionalistas. Se na série referente ao Coliseu, Gérôme busca
criar uma memória que resgate a identidade nacional francesa, em suas pinturas
orientalistas, o artista constrói visões do outro, o exótico, aquele que é diferente, como
em sua obra Marchand de peaux (1869), em que um homem aparece envolvido em pele
de tigre, a pintura traz o exótico pela forma com que o homem se relaciona com a fera,
mostrando a pele do animal quase como uma continuidade do corpo humano (ver Figura
3), criando uma imagem em oposição à sua própria.
Apesar de Gérôme ser um
renomado orientalista, nas obras
referentes ao Coliseu encontra-se
um ótimo objeto de pesquisa
historiográfica. Nestas pinturas, é
possível observar sua pesquisa
em dados arqueológicos e
históricos. O artista coletava
materiais, visitava museus,
buscava se informar a respeito do
passado romano, a fim de
representá-lo de maneira mais
verossimilhante. Sua série de
pinturas sobre o Coliseu foi
produzida durante a segunda
metade do século XIX e início do
XX, período em que as
escavações arqueológicas revela-
ram diversas descobertas que alteraram as concepções sobre o local.
Nesta perspectiva, destaca-se o quanto Gérôme dialoga com o contexto vigente ao
produzir um discurso simbólico sobre Roma e, mesmo que de forma inconsciente, se
Figura 3: Marchand de peaux (1869)
25
encontra interligado com o pensamento da época, pois forja um recorte da história
romana, utilizando-se de arte e arqueologia como instrumentos de legitimação de um
conhecimento sobre o passado. Suas obras, ao serem expostas em salões de arte, ajudam
a difundir uma noção imagética de Roma, ou seja, Gérôme constrói uma interpretação
sobre o passado que cria uma relação identitária, um sentimento de continuidade entre
Roma Antiga e França Moderna. O artista busca destacar o poder da arquitetura romana,
no caso o Coliseu, explora a ideia de um passado glamoroso com construções
monumentais. Por trás destas questões encontra-se a construção de um ideal de
civilização, de descendência de tradições de um nobre povo. Ou seja, o artista se
encontra inserido neste processo de construção de identidade nacional, característico do
século XIX, pois constrói uma história de Roma com uma visão de mundo bem
demarcada. Apresenta o poder de construção de um discurso. Constrói valores e educa
as pessoas para uma noção de Roma. Em suas obras sobre o Coliseu, o artista exalta a
monumentalidade romana, enquanto nas pinturas de temática oriental volta-se para a
questão do exótico, o outro é representado. Se nas pinturas do Coliseu, Gérôme busca
construir a ideia de descender da civilização romana, nas obras orientalistas já aparece
uma ruptura, pois as pinturas retratam um caráter de oposição à identidade européia.
Sua arte aponta por um lado para uma Antiguidade imaginada e reconstruída em relação
ao presente e, por outro lado, nas pinturas do oriente, tenta construir uma visão do outro,
o não europeu.
Laurent Olivier, já mencionado, analisa o quanto o caráter de oposição ao outro
pode ser justificado pela arqueologia, produzindo discursos que classificaram as
sociedades pelo instrumento de trabalho. Neste sentido, a sociedade foi dividida entre
mais e menos evoluídos. Isso pode ser facilmente percebido no período de transição do
colecionismo, prática bastante presente no século XVIII, para a instituída no século
XIX, quando se passa a organizar os objetos em museus por meio de tipologias e
classificações (OLIVIER: 2003, 42-43). Estabelece-se, assim, escala de valores, na qual
se desenvolve uma técnica de classificação de peças, e agregada a isso surge a ideia de
evolução de cultura. Desta forma, percebe-se que os museus não só se tornaram grandes
instituições de ressignificação do passado, mas, sobretudo ficaram carregados de sentido
político. Ou seja, estes se tornaram criadores e mantenedores de discursos sobre o
passado. E o fato destes discursos serem produzidos no interior de uma academia e de
instituições renomadas torna-os legítimos, visto que são revestidos de caráter científico.
Estes discursos simbólicos são organizados de forma a divulgar uma série de ideias que
26
são devidamente selecionadas. Mantém uma memória que se julga legítima, sobretudo,
por que é constituída enquanto ciência. Neste sentido, possibilitam uma identificação
com o passado que se conecta com valores identitários do presente.
Ou seja, os museus se tornaram instituições bastante significativas no contexto do
século XIX, criaram uma série de mitos fundadores e nacionalistas, relações de
identidade com o passado e tornaram-se instrumentos ao sistema político vigente. Obras
de arte foram criadas com base nas descobertas arqueológicas, em esculturas,
indumentárias e objetos do passado, se constituindo como valor inestimável à memória
histórica e que apresentam um valor de aura em obras de arte.
Vale ainda destacar as proposições de Walter Benjamin, que menciona o quanto a
obra de arte possibilita a criação de uma aura, se constituindo em algo ritualístico. Por
mais que os museus sejam direcionados para circulação das massas o fato de uma
pessoa encontrar-se diante de um objeto que é único e verdadeiro, possibilita a criação
de uma relação com o passado que é singular. Uma relação de experiência, que é única,
pois ela só é possível diante do objeto (BENJAMIN: 2000, 244-245). Destaca-se que
Gérôme mantém uma forte relação aurística com obras de arte, pois é uma prática
recorrente do artista fazer diversas visitas a museus. Ou seja, o pintor se mantém
relacionado com as referências de memórias organizadas pelos museus. Estuda estes
objetos criando em sua arte suas próprias relações com o passado. Assim, destaca-se
que o museu apresenta uma forte relação de saber e poder do domínio do conhecimento,
poder que se encontra na capacidade de convencer as pessoas de que o conhecimento
sobre o passado é verdadeiro.
Michel Foucault, em A ordem do discurso, nos chama a atenção para esta
discussão quando menciona que em todas as sociedades a produção de discursos é
regulada, selecionada, organizada e redistribuída conjugando poderes. A noção de
verdades históricas se encontra, sobretudo, dentro de um sistema de exclusão que
perpassa as diferentes instituições, o sistema educacional, um espaço por excelência
onde os indivíduos têm acesso a muitos discursos (FOUCAULT: 1996, 8-19). Norberto
Bobbio, citado anteriormente, reforça a ideia de Foucault quando destaca o quanto os
intelectuais, por serem imbuídos de autoridade difundem ideais capazes de atingir a
sociedade. Gérôme pode ser percebido como um formador e divulgador de opiniões,
pois era considerado uma autoridade na academia de arte. Deste modo, evidencia-se o
grande papel político ideológico que o artista divulgava através de sua arte.
27
É dentro dessas ideias que Gérôme produz suas obras e divulga sua necessidade
de buscar determinada verdade, a de descender de uma grande civilização, no caso a
romana. Suas pinturas sobre o Coliseu dialogam com o conhecimento acadêmico de sua
conjuntura.
Na segunda metade do século XIX, as descobertas realizadas através das
escavações arqueológicas mudaram as concepções do Coliseu. No capítulo que se segue
desta monografia, busco relacionar a produção artística de Gérôme com os novos
conhecimentos arqueológicos de seu contexto. E também discuto como a série de três
pinturas realizadas pelo artista sofre alterações relacionadas à arqueologia nascente,
visando uma maior verossimilhança histórica.
28
CAPÍTUO 3 – REPRESENTAÇÕES DO COLISEU
3.1 - O catálogo
As três pinturas selecionadas para esta pesquisa historiográfica são uma série
realizada por Gérôme durante as escavações do Coliseu. As escavações tiveram início
em 1811, mas por problemas hidráulicos o Coliseu voltou a ser enterrado em 1814. As
escavações voltaram a ocorrer em 1828, devido a novas tecnologias. Enfim, em 1895
foram divulgados os estudos sobre as descobertas arqueológicas referentes ao Coliseu
(GARRAFFONI: 2005, 124).
As três obras devem ser analisadas como conjunto, e não separadamente, visto que
foram produzidas para reafirmar ou rever ideias que apareciam em pinturas anteriores.
Além da citada preocupação do artista com as reconstituições históricas, houve também
um grande impacto das escavações arqueológicas sobre suas obras, que foram
devidamente elaboradas para cada período ao qual estão circunscritas. Ave Caesar,
Morituri te salutant (1859) e Pollice Verso (1872) foram produzidas antes da
divulgação dos resultados das escavações, as obras não apresentam preocupações com
as estruturas arquitetônicas internas. Já La rentrée des felines (1902) – produzida após a
divulgação das escavações – apresenta preocupações com aspectos arquitetônicos. O
próprio pintor declarou se importar em pesquisar as descobertas arqueológicas, a fim de
tornar sua pintura mais verossimilhante. Ambas permitem, também, um contraste entre
lutas de gladiadores e caçadas em diferentes contextos no período do início do Império
Romano, contraposição curiosa entre estes diferentes tipos de espetáculos. Por meio das
pinturas, analisa-se a apropriação do discurso científico pelo artista.
Percebe-se que Gérôme é profundamente influenciado por seus mestres –
Delaroche e Gleyre –, é a partir do contato com tais artistas que busca definir seu estilo.
Elabora uma pintura de pretensões histórica e arqueológica, ideias correntes em seu
contexto, apesar de não fazer parte de nenhuma das escolas. Como salientado acima, o
Neoclassicismo busca recuperar aspectos da Antiguidade Clássica, que eram
representados de forma técnica e acadêmica e, no caso do artista David, ainda deveria
assumir características de propaganda política do presente. Gérôme não apresenta estas
preocupações explícitas em sua arte, se aproxima do Neoclassicismo na medida em que
sua pintura visa um retorno ao passado em busca de uma temática histórica romana.
29
As obras que melhor expressam sua preocupação histórico-arqueológica são as
supracitadas. Dentre elas, Ave Caesar, Morituri te salutant representa o final de uma
luta de gladiadores, e início de outra, pois se apresentam alguns corpos caídos no chão e
um grupo concentrado de gladiadores chegando ao combate, empunhando suas armas
direcionadas em reverência ao imperador, este se encontra localizado em um camarote
imperial, de frente para os gladiadores.
O estilo arquitetônico do Coliseu apresenta-se em formato ovalado, imenso e com
profundidade. Pouco podemos analisar os aspectos arquitetônicos do Coliseu, pois estes
apresentam-se em segundo plano e pouco detalhados, acima da arquitetura mostra-se
um velum – toldo de proteção climática –, com motivos decorativos de animais,
cobrindo-a parcialmente. A luz na tela vem do lado direito em direção à arena, no qual
se localizam os corpos ao chão e outros se retirando da cena, visto que o velum cobre a
arena no lado esquerdo. Em primeiro plano se encontra uma composição diagonal, que
se estende de um corpo ao chão, passando pelos gladiadores, que se encontram em
posição vertical, chegando ao imperador. No segundo plano está o público, de certa
forma estático, pois não interage com os gladiadores. A tonalidade de cores é
homogênea com tons que variam do amarelo ao castanho claro. De modo geral a pintura
não apresenta grandes variações de cor, com tons pastéis, entre o amarelo, verde, azul e
Figura 4: Ave Caesar, Morituri te salutant (1859)
30
ocre. A única cor que possui algum destaque é a túnica do imperador, na cor vermelho
sangue.
Segundo Ackerman, a obra Ave Cesar, morituri te salutant foi pintada por Gérôme
para uma exposição do Salão de Arte de 1859. A obra trata da passagem de um
combate de gladiadores para outro, o grupo em destaque são os novos lutadores que se
apresentam ao imperador Vitellius. Segundo o autor, Gérôme recorre a vários estudos
historiográficos, além de fontes como poemas, medalhas, pinturas em vasos. Os
documentos de época e a historiografia são responsáveis pelos detalhes em seu quadro.
O grupo de gladiadores, por exemplo, foi baseado em um pequeno bronze encontrado
na Biblioteca Nacional da França. Para este quadro, Gérôme declarou, posteriormente,
se encontrar insatisfeito com a pintura, afirmando a presença de certos equívocos
arqueológicos na obra (ACKERMAN: 1986, 54).
Pollice Verso trata-se de uma pintura representando uma luta de gladiadores,
assistida pelo público, no Coliseu. Em primeiro plano se encontra um gladiador,
empunhando uma arma, pisoteando outro gladiador, sobre um corpo ao chão. A
composição é diagonal, direcionando-se do corpo, para o gladiador e chegando ao
público. De um modo geral, os tons de cores vão do amarelo, para o marrom, até um
Figura 5: Pollice Verso (1872)
31
castanho escuro, com poucos detalhes em azul acinzentado. A pintura não apresenta
grandes variações cromáticas, é mais homogênea, com poucos contrastes, a cor mais
vibrante do quadro se encontra disposta em frente ao camarote do imperador, se trata de
um tapete, em tom vermelho sangue, com uma águia (símbolo do poder imperial
romano), apresentando também uma representação do sol. O camarote apresenta
motivos decorativos. Ao redor do camarote, mostram-se quatro colunas que lembram a
ordem jônica. O público interage com o gladiador vitorioso, fazendo-lhe gestos com as
mãos em resposta à finalização do combate exterminando o oponente. Quanto à
vestimenta, as mulheres são cobertas por túnicas na cabeça e os homens usam manto
nos ombros. A tonalidade de suas roupas é predominantemente branca e vermelha.
Existem dois tapetes com motivos florais pendurados nas paredes da arena. A imagem
possui réstias de sol, concentradas no primeiro plano e o fundo é iluminado, sugerindo a
existência de um velum no lado direito do Coliseu. Percebe-se uma aproximação do
foco da imagem, como se o expectador estivesse dentro da própria arena. Pouco se
observa a perspectiva na tela, tornando-se difícil percebê-la como uma arquitetura
ovalada.
Pollice Verso, terminada em 1872, é um de seus trabalhos mais famosos, e
também, o mais complicado, segundo Ackerman. Para o biógrafo, é o melhor quadro de
Gérôme, a obra foi trabalhada durante anos. Mas os gladiadores não pareciam com os
soldados da época, pois os capacetes eram estranhos e enormes, suas armas eram muito
curtas. Gérôme declarou que:
neste momento, eu tive em mãos alguns documentos necessários para a continuação de minhas pesquisas, e depois um de meus amigos, o general de Reffye, tinha sido enviado à Itália por Napoleão III para executar as modelagens das colunas de Trajano. Ele estava próximo de Roma. Eu tinha feito vários buracos nos capacetes de proteção dos gladiadores, e não há nada disso nestes moldes, que estão tão próximos do original que eu tenho em minha posse, este modelo é idêntico ao original, uma vez que a vestimenta é de um verdadeiro gladiador (GÉRÔME in ACKERMAN: 1986, 92-94, tradução livre).
Para elaborar a obra, Gérôme primeiramente fez uma escultura (ver Figura 7),
durante um ano, como modelo, a partir desta é que construiu a pintura (ACKERMAN:
1986, 110). Observa-se a preocupação do artista com características naturalistas da
época.
Em La rentrée des felines, existem alguns homens armados de chicotes
encaminhando vários felinos – leões, tigres, panteras – para a cela localizada na parede
32
lateral da arena. O público é escasso, sugerindo o final do espetáculo. No primeiro
plano se encontram alguns corpos desmembrados ao chão, denunciando a violência do
espetáculo. Os homens estão vestidos com túnicas de cores vermelha, branca e azul. Há
cruzes ao redor da arena, e corpos ao chão. Entre os corpos, há uma mulher coberta de
sangue em seu abdômen. A arquitetura da arena é circular e apresenta diversas entradas
para o público. De um modo geral, a tela
apresenta pouca variação de cores, indo do
marrom ao castanho escuro. A composição é
triangular entre os homens que guiam as feras à
cela, concentrado a atenção no primeiro plano,
com foco na arena. O maior contraste de cores se
encontra na roupa dos homens que aprisionam as
feras, variando do branco, ao azul, até o vermelho
sangue. As túnicas vermelhas entram em
harmonia com o excessivo sangue ao chão e
também com uma faixa pintada nas paredes da
arena.
As três pinturas foram produzidas num
intervalo de quarenta e três anos. No período em
Figura 6: La rentrée des felines (1902)
Figura 7: Rétiaire e Mirmillon (1859)
33
que perpassa a produção das obras, Gérôme realizou uma série de pesquisas que tinham
por finalidade a verossimilhança histórica e, também, trabalhos de escultura que se
tornavam objeto para as pinturas, como pode ser observado em seus bronzes Rétiaire e
Mirmillon (Figura 7), esculturas que serviram de base para as pinturas Pollice Verso e
Ave Caesar, Morituri te salutant, respectivamente. Mas principalmente, as descobertas
arqueológicas configuraram-se como essenciais para o desenvolvimento das pesquisas
do pintor, estes aspectos são discutidos no próximo item da monografia.
3.2 - Gladiadores e Caçadas
No trecho que segue, discute-se como as pinturas de Jean-Léon Gérôme são
adaptadas conforme os conhecimentos a que tem acesso através da divulgação das
descobertas arqueológicas. Nas primeiras pinturas, produzidas antes de serem
divulgados os resultados das escavações, Gérôme representava apenas um tipo de
combate. Já na obra produzida após a publicação das descobertas referentes ao Coliseu,
observa-se outro tipo de espetáculo e, também, o enfoque da pintura se torna diverso.
As duas primeiras obras – Ave Caesar, Morituri te salutant e Pollice Verso –
apresentam lutas de gladiadores, homens contra homens, ou seja, apontam somente para
um tipo de espetáculo. Ambas as telas apresentam a figura do imperador, sendo que em
Ave Caesar, Morituri te salutant a atenção dos gladiadores está voltada à figura de
César, inclusive ele é ponto de maior destaque na imagem – em seu próprio título isto
está presente –, lembrando que é exatamente sua roupa que apresenta o maior contraste
na obra. Já em Pollice Verso, os gladiadores se relacionam com o público, apontando
para uma flexibilidade na dinâmica dos jogos de gladiatura, entre público e gladiador,
diferente da primeira obra na qual o público está imóvel. Na segunda pintura isso não é
tão evidente, há uma versatilidade nas relações sociais, desmistificando a ideia de
onipotência do imperador. Se em Ave Caesar, Morituri te salutant aparece a ideia de
hierarquia social, na qual o imperador é o topo das decisões, em Pollice Verso ele é
relegado ao segundo plano, sendo o primeiro plano ocupado pela platéia, que é
justamente quem irá decidir sobre o desfecho do combate – não só a imobilidade da
platéia, mas a própria aproximação da relação desta com os gladiadores nos remete à
ideia de que Gérôme percebia estes espetáculos dentro da concepção de “pão e circo”
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ideias bastante divulgadas no século XIX por Friedländer e Mommsen, como visto
acima. De acordo com Mommsen:
os jogos de gladiadores, que revelavam e nutriam a mais espantosa desmoralização do mundo antigo, eram negócios tão florescentes que, somente com a venda de seus programas, poderia realizar-se consideráveis fortunas e neles se introduziram, nesta época, uma horrível inovação que não era a lei do duelo em que o vencedor decidia pela vida ou morte do vencido, mas sim o capricho dos espectadores, que por meio de um sinal, o vencedor perdoava ou atravessava com a espada o derrotado estendido a seus pés (MOMMSEN apud GARRAFFONI: 2005, 66).
O autor possibilita assim, uma reflexão sobre a simbologia do polegar invertido,
representado em Pollice Verso. Mommsen foi bastante lido e divulgado no século XIX,
algo que nos permite dizer que Gérôme estava atento à historiografia de sua época e
traduziu isso para suas pinturas em questão.
Mas, o mais importante está em observar que em ambas as obras o foco está
voltado ao público, seja o imperador ou a platéia de um modo geral, deslocando-se da
arena, ou seja, os aspectos arquitetônicos internos não são destacados. O próprio tom de
cor das paredes se harmoniza com o chão da arena. Possivelmente Gérôme não possuía
uma ideia concreta de como se configurava por inteiro uma arena, talvez por isso a
tenha pintado de forma a destacar somente certos pontos que conhecia melhor por meio
dos textos. Tanto é que na primeira obra, o artista coloca a presença do velum, algo
utilizado no Coliseu, embora o represente ilustrado com animais deslocados do contexto
europeu – elefantes e leões –, isto pode apontar a duas hipóteses: a primeira é de que
haja uma relação da obra em questão com a fase orientalista de Gérôme, e a segunda é
que o artista, em suas pesquisas, tenha enfatizado as caçadas na arena do Coliseu,
divulgadas pela historiografia da época, entretanto, também não tivesse isto bastante
claro a ponto de representar em uma pintura.
Já em Pollice Verso, a influência oriental é mais evidente. O pintor nos apresenta
tapetes com motivos orientais, com características de arabescos – muito comuns em
suas pinturas da fase orientalista – sobre as paredes da arena, o que possivelmente não
fosse usado durante os espetáculos de gladiatura. Ou seja, o pintor mistura as
características orientais e ocidentais, isso aponta para a ideia do quanto se percebe o
passado com os olhos do presente, e o quanto sua pintura carrega estas idealizações de
um passado. Outra questão importante é que o gladiador, localizado ao centro da tela,
apresenta a estrutura de seu corpo desproporcional, com braços curtos, seu capacete é
muito grande, tornando inviável utilizá-lo em combate, também sua arma é bastante
curta para enfrentar a arma do oponente – um tridente de longo alcance –, lembrando
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que este foi vencido. O próprio Gérôme apontava que o gladiador nesta obra tinha
problemas de proporção, o capacete era muito grande e o sabre muito curto
(ACKERMAN: 1986, 92-94).
Já na terceira obra, La rentrée des felines, o tipo de espetáculo apresentado é
diferente, não se trata mais de lutas entre homens e sim de felinos contra pessoas
despreparadas para o combate. É na verdade uma pena de morte aos que não tinham
cidadania romana, incluindo a presença de mulheres que por sinal se encontram
estraçalhadas e com os corpos e carnes à mostra, sem nenhuma referência a armas, nem
a presença de sobreviventes. Observa-se que a obra aponta para execução daqueles que
não eram cidadãos de Roma, que em determinado momento inclui os cristãos. Segundo
Wiedemann, aos que não tinham cidadania as penas eram de crucificação, envio a arena
ou cremação dos corpos (WIEDMANN, apud GARRAFFONI: 2005, 44).
Além disso, o foco se encontra na arena – diferentemente das pinturas anteriores
que destacavam as arquibancadas em sua relação com o gladiador –, nesta obra o
público já se encontra ausente, são poucos os que ainda presenciam ao final do
espetáculo. A própria cor da arena, o chão especificamente, é pintando em um tom de
amarelo quase vibrante, sendo que a arquibancada aparece com tons mais escuros, em
segundo plano, é o ponto de menor relevância para o pintor. O enfoque se encontra nos
felinos se dirigindo à cela nas paredes da arena. A existência da cela é uma inovação,
tanto para Gérôme, quanto para a mentalidade da época. Lembrando que depois da
divulgação das escavações arqueológicas do Coliseu, em 1895,3 soube-se que a arena
não se apresentava somente como um espaço centrado na superfície. Além do espaço
visível ao público, encontrou-se, por meio das escavações, um espaço subterrâneo, no
qual feras e pessoas eram aprisionadas, um local em que os gladiadores se preparavam
para os combates e, também, onde ficavam as pessoas que organizavam o espetáculo.
Tanto é que o destaque da obra são os felinos entrando na cela, este é o próprio nome da
obra, La rentrée des felines. Esta pintura aponta também para a existência de bastidores,
com a presença dos homens que aprisionam os felinos, mostrando com isso a
complexidade existente no desenvolvimento destes espetáculos e, também, o quanto
outras pessoas estavam envolvidas em sua organização, conferindo ao espetáculo uma
dinâmica maior para sua realização. Diferente das obras anteriores, os corpos humanos
apresentam uma proporção mais harmônica.
3 Vale lembrar que a pintura em questão foi finalizada em 1902.
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Pode-se dizer que Gérôme faz uma pintura histórica e arqueológica. Não se fixa
diretamente nos grandes estilos artísticos presentes no contexto do século XIX –
Neoclassicismo, Realismo e Impressionismo. Apesar de o artista estabelecer diálogos
com o Neoclassicismo, não podemos enquadrá-lo em tal escola, pois seu estilo artístico
não tem pretensões de propaganda política diretamente vinculada ao presente. O intuito
primário de Gérôme é o de representar o passado em suas especificidades, com a maior
verossimilhança possível, foi para isto que o artista realizou suas constantes pesquisas.
A partir das proposições levantadas acima é possível que se analise até que ponto
Gérôme apresenta vínculos políticos e em que medida o autor desenvolve uma pintura
arqueológica e histórica atenta a reconstruir o passado em suas especificidades. Estudar
suas pinturas permite um olhar mais enriquecedor para se pensar o século XIX e sua
relação com as ciências que surgiram no período. Sua obra possibilita, também, a
visualização das ideias que eram correntes neste contexto, de como a Antiguidade se
configurava, enriquecendo desta forma as interpretações históricas.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi discutido nesta pesquisa o quanto a produção pictórica de Jean-Léon Gérôme
dialoga com os discursos do século XIX, de ideias nacionalistas e orientalistas,
buscando se constituir enquanto identidade nacional. Por meio dos conceitos propostos
por Michel Foucault – em especial, a concepção de saber associado ao poder –, foi
possível perceber que a obra de Gérôme se constitui enquanto um tipo de discurso que
busca formar uma identidade francesa em oposição ao outro. No século XIX, o
surgimento da arqueologia enquanto disciplina acadêmica modificou as concepções do
passado, construindo novas visões de mundo e tornando-se um grande instrumento a
questões político-ideológicas que serviam aos propósitos do presente.
Também se verificou o surgimento de diferentes estilos artísticos durante o século
XIX, como as pinturas históricas, arqueológicas, o Neoclassicismo e o Orientalismo.
Gérôme trazia em suas características pictóricas elementos dos quatro estilos. É possível
perceber em suas obras, preocupações históricas e arqueológicas, que o artista
pesquisava a fim de tornar suas pinturas mais verossimilhantes, além disso, suas
temáticas se aproximam do Neoclassicismo, representando cenas da Antiguidade, e
também as cores utilizadas têm características neoclássicas. Lembrando ainda que o
pintor tornou-se renomado por suas obras de temática oriental.
Pelo levantamento biográfico a respeito do pintor, foi possível perceber suas
filiações artísticas, e como estas apresentavam relações com sua obra e, também, com a
conjuntura. Foi através de sua formação que Gérôme apresentou interesse em pinturas
de caráter histórico-arqueológico e desenvolveu seu método de pesquisa para a
realização de suas obras.
Com a análise das pinturas selecionadas para esta pesquisa historiográfica,
observou-se que houve inovações na temática do artista e também no foco de suas
obras. Gérôme reconstrói a Antiguidade de formas diferentes, conforme os
conhecimentos a que tem acesso. Deste modo, antes de se familiarizar com as pesquisas
das escavações do Coliseu, o artista destacava as arquibancadas, deixando a arena em
segundo plano, a arena ainda era retratada como um espaço vazio, por assim dizer, pois
não comportava nenhum tipo de ambiente além daquele visível pelo público. O tipo de
espetáculo representado por Gérôme era somente um, a disputa de gladiadores, homem
contra homem. Após entrar em contato com os resultados das pesquisas arqueológicas,
sua arte apresenta algumas mudanças. O foco passa privilegiar a arena, e não mais as
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arquibancadas, ou seja, a arena aparece em primeiro plano e não mais transmite a ideia
de espaço estanque, pois as celas dos felinos estavam localizadas em sua lateral e abaixo
dela. A arena comportava uma infraestrutura interna, não acessível ao olhar do público.
Desde o título da obra – La rentrée des felines – pode-se perceber que a ideia bastidores
é destacada, uma vez que as feras são recolhidas às suas celas, pois o espetáculo está
terminado. Além de mudar o tipo de espetáculo, agora não são mais destacados os
combates de gladiadores, mas sim o massacre de pessoas por feras.
A obra de Gérôme nos revela uma mudança de percepção de mundo, expressa pela
arte. Este novo ponto de vista deve ser analisado tomando por base o contexto histórico
do século XIX, no qual a arqueologia se desenvolveu enquanto disciplina acadêmica.
Numa conjuntura de formação de identidade nacional, a obra de Gérôme pode ser
interpretada como um meio de recuperar a memória de Roma, enquanto patrimônio
cultural de um passado glorioso que devia ser resgatado. Desta maneira, as pinturas do
artista buscam destacar o que considera relevante desse passado, havendo um retorno à
temática da Antiguidade. O pintor, ao explorar a ideia de um passado glorioso, constrói
o ideal de civilização, de grandes tradições das quais descende. Gérôme cria uma
história imagética de Roma, apresentando um discurso sobre o passado, construindo
valores e educando as pessoas para além de uma noção de Roma, mas para própria
identidade de seu contexto.
A arte de Gérôme, ao se valer da arqueologia (esta que também possuía ideais de
formação identitária), contribui para a construção de uma identificação nacional, uma
vez que visa reconstruir o passado de forma mais verossimilhante. Suas obras, ao serem
expostas nos salões de arte, divulgavam uma nova concepção do passado,
ressignificando-o. É importante ainda destacar o lugar que os salões de arte ocupam no
cotidiano das pessoas. Era um local significativo de sociabilidades, onde diferentes
pessoas com variadas concepções de mundo dialogavam. Desta forma, a ciência como
mediadora de um conhecimento se afirma com o estilo da obra do artista, na ideia de
indivíduo que pretende ensinar aos seus contemporâneos e, também à posteridade, uma
nova forma de perceber a arte. As pinturas de Gérôme permitem interpretar que a arte
não está desvinculada de outras formas de saber, sua obra traz consigo também
conhecimentos históricos e arqueológicos que podem ser explorados por pesquisadores
a posteriori.
O desenvolvimento da arqueologia, suas descobertas e novas teorias científicas,
faz com que se altere a percepção do passado, criando novas memórias. Neste sentido,
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relações identitárias são construídas para ressiginificar às relações sociais. Criam-se
memórias que servem ao sistema político do presente, reformulam-se também
instrumentos para assegurar e definir a identidade. Arte, história e arqueologia são fortes
instrumentos para expressar estas relações da memória com o passado. Os três campos
do saber se relacionam, direta ou indiretamente, com a conjuntura e expressam
ideologias.
Através das particularidades da pintura de Gérôme pode-se compreender como o
estudo do passado entrelaçado com a arqueologia, história e arte no final do século XIX,
produziu uma arte de pretensões científicas, na qual o olhar captava de forma minuciosa
as descobertas arqueológicas. Ou seja, o diálogo do artista com o contexto criou uma
pintura de caráter histórico, redimensionando o conhecimento do passado e nos
permitindo analisar elementos políticos e ideológicos em obras de arte.
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REFERÊNCIAS
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