Download - Coleção Primeiros Passos - O que é conto
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4a edio, 1992
1 reimpresso, 2004
Reviso: Beatris C. Siqueira Abro
Capa e ilustraes: Waldemar Zaidler
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Maria, Luzia de
0 que conto / Luzia de Maria. - - So Paulo :
Brasiliense, 2004. - - (Coleo primeiros passos ; 135)
1 reimpr. da 4.
ed. de 1992. ISBN 85-
11-01135-8
1. Contos 2.
Identidade Social 3 1.
Ttulo. II. Srie.
Tradio Oral
04.7654 CDD-808.3
ndices para catlogo sistemtico:
1. Contos : Literatura 808.3
editora brasiliense s.a.
Rua Airi, 22 - Tatuap - CEP 03310-010 - So Paulo - SP
Fone/Fax: (0xx11) 6198-1488
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livraria brasiliense s.a.
Rua Emlia Marengo, 216 - Tatuap - CEP 03336-000 - So Paulo SPFone/Fax (0xx11) 6675-0188
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NDICE
"Quem conta um conto aumenta um ponto". ..................................... 7
Ter o que contar. Ter o que contar? .................................................. 34
Nas asas do conto, breve passeio pela paisagem literria brasileira 51
A crise da representatividade na arte do sculo XX e o conto ........... 76
Indicaes para leitura ....................................................................... 97
Em memria de Lgia Morrone Averbuck.
E para
Faraday
Catarina SantAnna
Maria do Carmo Seplveda
Waldecy Tenrio
gente de quem eu gosto.
http://groups-beta.google.com/group/digitalsource
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"QUEM CONTA UM CONTO AUMENTA UM PONTO"
Das noites de Sherazade fuga de Florena,
o "contar" como resistncia morte
Sob a magia do "contar", desfiando a imaginao ao sabor das aventuras, a vida sai
vencedora em seu duelo com a morte. Sherazade, a das Mil e Uma Noites, conquista o
corao do rei valendo-se da arte de contar estrias. Voltemos no tempo. O rei Shariar,
desiludido com a traio de sua esposa, resolve, dali por diante, no dar a nenhuma
mulher possibilidade de tra-lo. Desposa a cada noite uma virgem que, na manh seguinte,
morta.
Mas, ao ser escolhida Sherazade, esta decide no se render sem lutar pela vida. E
a forma de
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luta escolhida fascinar o rei com narrativas que desembocam umas nas outras, tal
como cascas de cebola, sobrepostas, de modo que o rei, desejoso de ouvir a continuao
da estria na noite seguinte, adia a execuo da esposa. A estratgia se repete por mil e
uma noites at que o rei descobre-se apaixonado por Sherazade e abandona para sempre
o infausto propsito.
Assim estruturada, chega at ns uma coletnea de contos folclricos do Antigo
Oriente que data, provavelmente, de primrdios do sculo X.
O conto foi, em sua primitiva forma, uma narrativa oral, freqentando as noites de
lua em que antigos povos se reuniam e, para matar o tempo, narravam ingnuas estrias
de bichos, lendas populares ou mitos arcaicos. Reminiscncias deste tempo so asfiguras, ainda prximas de ns, de Tio Remus, recriada em filme por Walt Disney, Pai
Joo, dos seres coloniais, ou Dona Benta, registrada por Monteiro Lobato.
Caracterizando os trs personagens, um elemento comum: o contar. Numa tentativa
de verossimilhana, de fidelidade a um aspecto real, naturalmente, os primeiros registros,
em lngua escrita, dos contos populares, apresentam semelhante estrutura. Seja um rei
como ouvinte, seja um grupo de pessoas, h, quase sempre, a presena de espectadores
e daquele que conta a estria. Assim ocorre, tambm, na obra Decameron, do escritoritaliano Giovanni Boccaccio, publicada
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em 1353.
Negras nuvens sufocavam a beleza de Florena, assolada pela peste de 1348
este o ambiente em que se desenrola a narrativa boccacciana. O cortejo fnebre o
acontecimento social mais freqente, tornado to comum a ponto de vulgarizar-se e,
queles a quem no abandonou um ltimo anseio de vida, s resta mesmo a fuga.
Abandonar Florena e buscar refgio em outras paragens parece ser, segundo o relato de
Boccaccio, o modo nico de abraar-se a um teimoso aceno da existncia direito, afinal,
legitimamente humano.
Convencido disso, um grupo formado de sete jovens mulheres e trs homens
igualmente jovens, acompanhados de respectivos criados, deixa a cidade e se refugia
numa belssima propriedade no muito distante.
Buscando vida e, como vida, distrao, jeito e ginga de quem quer levar o tempo
"numa boa", os dez personagens do Decameron resolvem passar as tardes, confortvel
mente reunidos no verde prado, tecendo narrativas oralmente. Assim, dez personagens ao
longo de dez dias, cada um assumindo um relato, compem as cem narrativas do
Decameron, s quais no faltam o lado popular dos antigos contos folclricos e o tempero
constitudo pela maliciosa ironia do estilo boccacciano.
E, aqui, um dado que merece registro: Lado a lado, as duas faces do conto, tal
como podemos
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v-lo hoje. O conto como forma simples, expresso do maravilhoso, linguagem quefala de prodgios fantsticos, oralmente transmitido de geraes a geraes e o conto
adquirindo uma formulao artstica, literria, escorregando do domnio coletivo da
linguagem para o universo do estilo individual de um certo escritor.
O conto em duas verses:
a popular e a artstica
Quando me pergunto "O que conto?", duas imagens de narrativa podem,
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imediatamente, disputar o espao destinado resposta: nas reminiscncias de infncia, o
recorte de Chapeuzinho Vermelho e, por outro lado. Missa do Galo, de Machado de Assis,
transformado em Caso Especial pela TV Globo h algum tempo, para ficar em dois ttulos
assim bem divulgados.
Citando estes dois exemplos, um dado pode ser observado: enquanto, para melhor
precisar o segundo, eu lhe segui o nome de seu autor, o mesmo no se observa em
relao narrativa de Chapeuzinho Vermelho. Este fato nos aponta para o X da questo.
Em lngua portuguesa o termo "conto" serve para designar a forma popular, folclrica,
criao coletiva da linguagem e da a no-propriedade de um nico criador, e, ao mesmo
11
tempo, a forma artstica, atributo exclusivo de um estilo peculiar, individual.
O mesmo no ocorre em algumas outras lnguas. O ingls utiliza a denominao
"tale" para o conto folclrico, popular e "short-story" para narrativas com caractersticas
eminentemente literrias. Em alemo emprega-se "novelle" e "erzhlung" para as mesmas
narrativas a que o ingls chama "short-story" e "mrchen" para contos populares. Assim,
em italiano encontramos tambm duas formas: "novelle" e "racconto".
Repensando o conto como modalidade narrativa, tenho presentes seus dois modos
de formulao. Se o conto como forma literria, tal como o conhecemos hoje, um
prolongamento ou ramificao das antigas narrativas da tradio oral, o certo que se
revestiu de tantas e tais roupagens artsticas, que apresenta, hoje, feio prpria bastante
caracterstica.
certo que as primeiras coletneas de estrias curtas apresentavam,
indiferentemente, as duas espcies, no se preocupando em distinguir aquilo que
pertencia ao domnio coletivo e aquilo que era criao do autor, como o caso, j visto, doDecameron: no se pode negar a preocupao estilstica das narrativas de Boccaccio,
mas, por outro lado, reconhecido que muitas das estrias ali apresentadas ele j teria
"ouvido contar" e freqentavam, anteriormente, originais indianos, rabes ou latinos.
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O mesmo se pode dizer de vrias outras colees de estrias que, aparecidasposteriormente, tentaram se equilibrar nas pegadas de Boccaccio.
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servindo de obstculos a uma idntica realizao. Obstculos que vo desde uma natural
transformao do modo de vida das sociedades civilizadas, industrializadas, em que ao
lazer reservado tempo nenhum e o cansao impede ou, pelo menos, dificulta a simples
vontade de falar, quando ao final do dia se recolhe ao convvio da famlia, at o aptico
comodismo de deixar-se levar pelo apelo de quem, no s "conta" como "mostra", de quem
alia ao auditivo o visual, em meio a jogos e requebros de luzes e cores: a televiso.
Neste sentido, o conto popular parece restringir-se apenas aos meios rurais, aos
confins da civilizao, l onde no chegaram ainda o fascnio da eletricidade, o encanto da
comunicao visual, espao em que o aquecimento nas noites frias ainda se faz ao redor
de uma fogueira e o embarque no sabor da imaginao ainda uma aventura coletiva
irradiando, paralela ao calor do fogo,
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uma onda de calor humano acendendo fantasias. Ali o conto popular est vivo,
reformulando-se a cada nova exposio.
Mas compete ao homem resguardar o passado em pginas de livro, simulacro de
situaes que j no voltam mais. Faz parte da cultura de um povo recompor a memria
das pocas que se foram e, deste modo, podemos "saber" do conto popular
testemunhando sua presena em antologias a que foi recolhido e, ainda, estudado,
analisado; visto, assim, no sob o prisma do prazer, mas sob bisturis dissecadores que
servem a anlises minuciosas de cada uma de suas partes, em busca de compreenso
maior.
Desde o final do sculo XVIII o conto popular mereceu a ateno daqueles que se
propunham a estudar as manifestaes folclricas, manifestaes espontneas do povo,
isentas do verniz da erudio. Contudo, o estudo que causou estrpito maior noschamados crculos universitrios o trabalho de um russo, Wladimir Propp
complementado, posteriormente, por alguns outros especialistas no assunto e que traz,
na verdade, o selo de sculo XX.
Propp constatou que os personagens dos contos, variando em idade, sexo,
caractersticas gerais, etc., realizam, em estrias distintas, aes idnticas ou
equivalentes. Lembrando as velhas estrias ouvidas em minha infncia ou que tive
oportunidade de ler, encontro, nas luzes da memria.
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argumento comprovatrio. Quantas no foram as estrias em que havia a presena
de um heri e uma interdio, uma proibio, uma certa lei que ele no poderia infringir?
Chapeuzinho no devia passar pelo bosque ao ir casa da vov. Os cabritinhos no
podiam abrir a porta, tambm por causa do lobo que rondava as redondezas. E quantas
outras e quantas diversas interdies: no olhar para trs, no falar com ningum, no
provar do fruto de tal ou qual rvore, etc, etc, etc, vestimentas diferentes para uma
mesma "funo", conforme a terminologia proppiana.
Como este, vrios outros elementos nos contos populares permanecem idnticos
em narrativas diversas, ou seja, permanecem invariantes. Tal fato comprova uma estrutura
comum a todos os contos folclricos.
Esta fidelidade do conto popular a uma certa forma que lhe caracterstica e que
medeia, de certo modo, o universo da realidade coletiva, aliada ao fato de que nele a
linguagem fluida e transparente o que importa a mensagem a ser transmitida e nada
chama a ateno para a linguagem como manifestao artstica em si mesma so
elementos que facilitam sua compreenso e anlise.
Por outro lado, o conto como experincia literria, que comea a adquirir autonomia
a partir do Romantismo, e do qual me ocuparei daqui por diante, um gnero bastante
controvertido. Exatamente
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porque criao de um nico indivduo, inscrevendo-se entre realizaes artsticas,
o conto, tal como o romance e a poesia modernos, uma forma igualmente aberta a
experimentalismos e inovaes, ganhando sempre como arte e esgueirando-se, cada vezmais, de concepes fechadas, normativas e estanques.
No Brasil, por exemplo, com a abertura representada pela proposta literria do
Modernismo, tantas so as discusses acerca do que ou no conto, que o escritor
paulista Mrio de Andrade (1893-1945) que tanto bebeu no universo mitolgico popular
para a criao do seu Macunama comea o primeiro conto do livro Contos Novos
"lavando as mos", como se poderia dizer: "Tanto andam agora preocupados em definir o
conto que no sei bem si o que vou contar conto ou no, sei que verdade".Recurso ilusionista parte (afirmao do realismo do texto "sei que verdade"),
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a irreverncia de Mrio traz cena o que ser nosso assunto no prximo item.
Conto tudo o que o autor diz que conto (?)
Ainda Mrio de Andrade ocupando o cenrio e, desta vez, no para ingnua-
ironicamente dizer que
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no sabe se o texto ou no conto, mas, pelo contrrio, para instituir de soberania o
criador. Ora, afinal, quem melhor para dizer o que conto se no quem o escreveu? Logo,
afirmou ele em 1938 o que, provavelmente, seja a frase mais citada quando, entre ns, se
questiona o assunto: "Em verdade, ser sempre conto aquilo que seu autor batizou com o
nome de conto".
Sendo Mrio de Andrade militante ativo do movimento Modernista no Brasil,
caracterizando-se tal movimento por valorizar, no nvel dos cdigos artsticos e, no caso de
Mrio, no nvel dos cdigos literrios, inovaes que atingem os vrios estratos da
linguagem, suspeito, nesta sua afirmao, a plena conscincia de que uma forma artstica
deve estar acessvel s aventuras experimentais das vanguardas.
No estaria ele reivindicando para o conto liberdade equivalente que o poeta
Manuel Bandeira, pactuando dos mesmos ideais artsticos, propusera, em termos de
poesia, naquele famoso poema denominado Potica? Ali, Bandeira, fazendo-se porta-voz
da proposta literria dos modernistas, insurge-se contra a tradio vigente, contra as idias
pr-estabelecidas, principalmente contra a hierarquizao das palavras (palavras nobres e
vulgares), contra o cabresto da gramtica normativa e a obedincia s leis tradicionais de
versificao. Veja, por exemplo, estes versos: "Abaixo os puristas / Todas as palavrassobretudo os barbarismos
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universais / Todas as construes sobretudo as sintaxes de exceo / Todos os
ritmos sobretudo os inumerveis"
Mrio aliava, prtica de contos, uma rica e admirvel formao cultural que lhepermitiria discutir teoricamente a questo do conto como forma narrativa. Se arremata em
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uma frase o assunto, isto indicia um certo enfado contra posturas normativas
predeterminadas que, seguidas ao p da letra, transformam-se em verdadeiras camisas de
fora, impedindo qualquer flego inovador. E que "posturas" so estas, contra as quais
Mrio afina as pontas de lana de sua rebeldia?
Tentar compreend-las empreender uma viagem retrospectiva, uma volta ao
passado e, como quase sempre quando se trata de literatura, tratar de remexer nos slidos
edifcios da fortaleza chamada Antiga Grcia, l onde moram os germes de nossa cultura.
No que venham de l tais "posturas" normativas, a coisa um pouquinho mais
complicada. Mas, com um quase nada de esforo e uma pitadinha de pacincia, leitor,
voc perceber onde tudo comea.
Deixemos de falar de conto um pouco e voltemos nossos olhos para a "tragdia",
espcie de poema dramtico cuja representao levava os antigos gregos a lotarem seus
magnficos teatros. O filsofo Aristteles, verificando cientificamente as regras artsticas
dos grandes trgicos, a partir da prtica esttica dos gregos, descreve as partes
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constituintes da tragdia numa obra que tem influenciado, ao longo dos sculos,
pensadores, tericos e crticos. Trata-se da sua Arte Potica.
Em 1498 apareceu em Veneza a primeira traduo desta obra e em 1503 a primeira
edio do texto original. A partir deste momento sucedem-se as edies e os comentrios,
influenciando profundamente os pensadores do sculo XVII, os pensadores do
classicismo, principalmente do classicismo francs. S que com uma ressalva: crticos,
tericos e estetas, os que se propunham a refletir sobre a arte e a esttica, nesta poca,
no compreenderam muito bem "o esprito da coisa".
Enquanto a Potica de Aristteles, longe de constituir-se em "receiturio" para osartistas, apenas tem como misso descrever os processos usados pelos criadores, a
crtica de arte (e, por extenso, a crtica literria) deste perodo tornou-se, no descritiva,
mas normativa, prescritiva. Os intelectuais, pensadores, tericos e autores crticos do
sculo XVII tomaram sobre os prprios ombros o encargo de ditar normas, publicar leis,
acreditando ser possvel "dar receitas", crendo que, a partir da observao, possvel a
realizao e que escrever, por exemplo, uma tragdia, algo que se pode aprender.
Ao argumento da "autoridade" pressupostos baseados na imitao dos antigos ecom os quais os escritores no pareciam dispostos a romper
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os intelectuais do sculo XVII aliaram dois outros fortes princpios: a diretriz da
"razo" e a do "gosto".
Assim, acentuaram a importncia do julgamento consciente, racional e objetivo na
composio artstica, colocando-o a par com a necessidade da imaginao criadora.
Quanto ao "gosto" indcio da reao do leitor, no caso da literatura parece ter
sido, nos sculos XVII e XVIII e, por que no?, at mesmo s portas do sculo XX e quem
sabe at hoje, um meio eficaz de reproduzir as diferenas sociais que desde sempre
caracterizaram as sociedades humanas. (Basta lembrar que os poetas lricos elegacos, os
que cantavam liricamente a angstia e a tristeza na Antiga Grcia, j dividiam os homens
em duas categorias: os aristocratas, belos, justos e virtuosos e a plebe, vil e feia.) Se no,
vejamos: o gosto para o qual qualquer artista deveria atentar seria o gosto educado, o
gosto dos que possuem experincias e conhecimento, o gosto do homem familiarizado
com a leitura dos clssicos. O leitor ideal, tido como padro, o homem informado, culto,
correspondendo idia de que o gosto tambm intelectual, produto de cuidadoso
preparo. Isto exclui, como se v, grande parte da populao.
Bem, para alguma coisa nos serviu este passeio aparentemente estranho ao
territrio de nosso assunto particular: parece claro que no de hoje,
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como se diz, que grupos se arvoram em detentores do "saber", da "razo", do
"conhecimento" e, como tais, se pem a emitir julgamentos, a emitir normas e prescrever
comportamentos que, segundo suas opinies, deveriam corresponder ao desejado. Estes juzos acabam se cristalizando em cada poca, constituindo aquilo que normalmente se
chama a "tradio artstica vigente" e exatamente contra esta "verdade instituda" que as
chamadas vanguardas se voltam, com o firme propsito de minar seus alicerces.
exatamente contra esta "postura estabelecida" que Mrio de Andrade desfecha a ironia de
seu ataque.
Claro que, tratando-se do conto como manifestao artstica, o conto como gnero
literrio, como tudo o mais em arte, tambm passou por idntico processo. E passando emrevista alguns conceitos e definies de conto que vicejam nos manuais de Teoria Literria
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e em publicaes especializadas, desconfio que grande parte dos bons contos produzidos
hoje fogem s ditas normas. A vida, em sua constante mutabilidade, carrega em seu
movimento valores e convenes que se perdem na poeira do tempo. Eis porque grande
parte das formulaes tericas acerca do conto, com base apenas na constatao do "j
feito", logo, logo revelam-se conhecimento datado, ou seja, vlido apenas para o momento
em que foi emitido, mostrando-se hoje, completamente superado.
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caracterstico mesmo da arte rejeitar laos que procuram encerr-la em
compartimentos estanques e, portanto, qualquer conhecimento que queira se estabelecer
tendo-a como objeto de estudo deve estar a todo o tempo reformulando-se na busca
contnua de apreender cada novo lance. Se o valor do artstico reside naquilo que traz de
novo, de inaugural, tal como o fsforo que, riscado, perde a serventia, qualquer juzo
acerca da arte, mesmo se descritivo, para se manter atualizvel, tem que caracterizar-se
por uma certa "abertura", ou seja, todo cuidado pouco no sentido de evitar transformar-se
em frmula reducionista.
Em princpio, o conto se caracteriza por ser uma narrativa curta, um texto em prosa
que d o seu recado em reduzido nmero de pginas ou linhas. Mas no seria um
simplicionismo defini-lo apenas pelo tamanho? No bem isto. Ocorre, porm, que a
forma conto apresenta como sua maior qualidade o fator conciso. Conciso e brevidade.
Assim o dado quantitativo mera decorrncia do aspecto qualitativo do texto. Curto porque
denso.
inegvel, por exemplo, que um escritor, ao escrever um conto, parte da noo de
limite, sabendo que, se no tem o fator tempo jogando no seu time, dever brigar pela
densidade. Se no conta com o livre esparramar-se no sentido horizontal, se buscaconstruir com a linguagem quase que o efeito de um flash, conduz a narrativa de modo a
que o princpio da economia opere a
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mxima profundidade, alcanando a dimenso vertical.
Um conto parece ser, a partir de um fragmento da realidade, a partir de um episdiofugaz, a partir de um dado extraordinrio mas muitas vezes despercebido do real, a partir
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de um fato qualquer e, por que no?, a partir de fato nenhum, a construo de um sentido
que produza no leitor algo como uma exploso, levando as comportas mentais a
expandirem-se, projetando a sensibilidade e a inteligncia a dimenses que ultrapassem
infinitamente o espao e o tempo da leitura. E este efeito tanto pode resultar da natureza
inslita do que foi contado, tanto pode resultar da feio surpreendente do episdio, como
pode resultar do modo como se contou, do aspecto absolutamente indito que a
genialidade do autor pode ter denunciado no "j visto".
Kandinsky, pintor russo naturalizado francs, atuante nas primeiras dcadas deste
sculo, de certa feita formulou um juzo acerca de arte que me ocorre no momento, quando
quero lembrar que o conto, mesmo em sua feio literria, no apresentou sempre uma
mesma face, facilmente reconhecvel. Disse Kandinsky: "Toda a obra de arte filha do seu
tempo, ainda que muitas vezes seja a matriz de todas as nossas emoes. Cada poca
duma civilizao cria uma arte que lhe prpria e que nunca mais veremos
renascer".
Tempos houve em que um bom conto era a narrao de um episdio com princpio,
meio e
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fim, passado naturalmente num mesmo espao fsico, dentro de um limite razovel
de tempo e constitudo de uma nica ao, ou, em linguagem um pouco mais formalizada,
uma narrativa que apresentasse unidade de espao, unidade de tempo e unidade de ao.
Mas no posso olhar o que se faz hoje, em matria de contos, com culos embaados por
teias de aranha do passado. Correria o risco de comear a cortar: "isto no conto", "isto
no conto", "tambm isto no conto", etc..., etc..., E claro que estaria incorrendo
naquele mesmo "autoritarismo" l do sculo XVII.H casos em que o conto apresenta tal brevidade, levando ao limite mximo a
economia verbal, que esfumam-se por completo os limites que poderiam demarcar as
fronteiras do conto e as da simples anedota, direta, esquemtica, completamente carente
de descries de local, situao, personagem, etc. Uma rpida leitura do brevssimo conto
do dramaturgo e poeta alemo Bertolt Brecht, "0 Menino Inerme", escrito nas primeiras
dcadas do sculo XX, demonstra tal fato:
"O senhor K., falando do pssimo hbito de deixar passar em silncio as
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injustias, contou esta pequena histria. Um transeunte quis saber de um rapazinho
em lgrimas a razo de suas penas.
Eu tinha nas mos dois marcos para pagar uma entrada de cinema
disse o menino , quando chegou um garoto mais forte do que eu e me arrancou
um deles
26
das mos.
E apontou um jovem, que ainda podia ser visto a uma certa distncia.
E voc no pediu socorro? perguntou o passante.
Claro respondeu o menino, soluando ainda mais forte.
E ningum o ouviu? indagou ainda o estranho, acariciando-o
amavelmente.
No... soluou o garoto.
Quer dizer que voc no tem capacidade vocal, que o habilite a gritar
com mais fora? interrogou o homem. Nesse caso, passe j pra c esse
outro marco!
Tomando-o, meteu-o no bolso e continuou tranqilamente o seu caminho."
Na conciso da narrativa, o propsito to caracterstico da dramaturgia, e da obra
em geral, de Brecht: sacudir a conscincia do leitor. Neste caso, despert-lo para o grito
diante das injustias, porque a indolncia e o silncio sero sempre caminhos abertos para
que novas arbitrariedades tomem forma.
Veja que, mesmo curta, a narrativa deu conta de construir um sentido, levando a
percepo do leitor para alm do espao do dito, ou seja, para aquilo que "fala" mesmo nosilncio das entrelinhas.
E agora, leitor contemporneo, cuidado tambm voc para no olhar com olhos
enviesados o conto que apresentaremos a seguir. Creio no haver
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melhor exemplo de conto breve do que as curtssimas estrias do francs Flix Fnon,algumas apresentadas recentemente numa antologia do conto francs. Quase todas, como
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a que segue, reduzem-se a um nico pargrafo:
"Em Clichy, um mendigo de setenta anos, Verniot, morreu de fome. Dois mil
francos estavam escondidos em seu colcho. Contudo, no devemos generalizar."
Dois fatos e uma advertncia. Trs frases. Mas a que paragens no conduzem
nossa imaginao, no verdade? Ora, est claro que, mesmo com um mnimo de
palavras, pode um conto dar conta do recado.
Quanto forma, h tambm curiosssimos exemplares que eu poderia aqui alinhar,
no fosse a exigncia da srie em me manter em determinado nmero de pginas. E h
ainda muito o que dizer! No resisto, porm, tentao de imaginar o efeito que lhe
causar este singular conto de um jovem contemporneo nosso. Observe que, no
ineditismo da forma, a "estria" mesma esconde-se por detrs do que foi dito, ou seja, a
estria da personagem constri-se em nossa imaginao a partir dos fragmentos que
podemos recolher na leitura, como num quebra-cabeas, montando, no s uma imagem,
mas um sentido. V ao texto e "divirta-se" (ou reflita afinal, ironia no vale, no ?)
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com o impacto produzido pelo texto do carioca Artur Oscar Lopes:
Notcias
Correio do Povo 27/09/73
Informaes
Maria Joana Knijnick, solteira, procura pessoa do sexo oposto para fim de
casamento. O interessado deve ser pessoa sensvel, que goste de ouvir msica, seja
alegre, que goste de passear domingo de manh, que goste de pescar, que goste de
passear na relva mida da manh, que seja carinhoso, que sussurre aos meus ouvidos
que me ama, que tenha bom humor, mas que tambm saiba chorar. Que saiba escutar o
canto dos pssaros, que no se importe de dormir ao relento numa noite de lua, que saiba
caminhar nas estrelas, que goste de tomar banho de chuva, que sonhe acordado e quegoste muito do azul do cu. Prefere-se pessoa que saiba escutar os segredos de um
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riacho e que no ligue aos marulhos do mar; que goste de bife com arroz e feijo, mas que
prefira peru com ma, d-se preferncia a pessoas de ps quentes, que gostem de andar
de barco, que gostem de amar e que no puxem as cobertas de noite. No se exige que
seja rico, de boa aparncia, que entenda Kafka ou saiba consertar eletrodomsticos mas
exige-se principalmente que goste de oferecer flores de vez em quando.
End.: Rua da Esperana, 43
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Correio do Povo 02/10/73
Informaes
Maria Joana Knijnick, solteira, procura pessoa do sexo oposto para fim de
casamento. O interessado dever ser pessoa sensvel e que tenha o hbito de oferecer
flores.
End.: - Rua da Esperana, 43
Correio do Povo 10/10/73
Informaes
Maria Joana Knijnick procura pessoa que a ame e goste de oferecer flores de vez
em quando.
End.: Rua da Esperana, 43
Correio do Povo 20/10/73
Informaes
Maria Joana Knijnick pede que qualquer pessoa goste dela e suplica que lhe mande
flores.
Correio do Povo 14/11/73
Informaes
A famlia da sempre lembrada Maria Joana Knijnick comunica o trgico
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desaparecimento daquele ente querido e convida os amigos para o ato de sepultamento.
Pede-se no enviar flores.
* * *
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Surpreendente e trgico, no? Pois . Arejemos um pouco este nosso "papo",
deixando de lado estas narrativas que devolvem em cheio em nossos rostos a radical
aspereza deste sculo em que vivemos e estejamos receptivos a um sorriso maroto, lendo
um outro conto, tambm contemporneo e que tambm se filia a um aspecto igualmente
caracterstico da arte moderna: o debruar-se sobre si mesma. Trata-se do primeiro conto
do livro Contos Plausveis, de Carlos Drummond de Andrade.
Estes Contos
H muita coisa a emendar em meus contos. s vezes eles saem totalmente
ao contrrio daquilo que pretendiam contar. Costumam at ficar melhor, mas nem
sempre.
Certos contos, os mais simples, parecem inverossmeis, e os inverossmeis,
pois tambm escrevi alguns desta natureza, despertam o comentrio: "Da, quem
sabe? Tudo pode acontecer".
Tenho a impresso de que tudo pode mesmo acontecer em matria de
contos, ou melhor, no interior deles. Houve um que se recusou a terminar, como se
dissesse: "Fica to bom assim ... S voc no percebe isto".
Duas historietas exigiram que as conclusse confessando minhaincapacidade de contista. Como eu me
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(Obs: imagem)
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recusasse a atend-las, retrucaram: "No faz mal. No preciso confessar; todos
sabem".
S um de meus contos me acompanha por toda parte, ao jeito de gato fiel,
sem que o faa para pedir alimento. um continho bobo, ano, contente da vida.
Vai no meu bolso. No o leio para ningum. Seu calor me agasalha. J no me
lembra o que diz, pois nunca o releio, mas sei que rarssimo o texto que seja
amigo do autor, e quanto a este, no duvido. Meu melhor amigo um continho em
branco, de enredo singelo, passado todo ele na antena esquerda de um gafanhoto.
* * *
No que Drummond parece me dar a dica quanto sua reao ao chegar ao final
deste captulo? Parece-me estar ouvindo voc, leitor, meio aturdido ainda, dizendo com
seus botes: "Tenho a impresso de que tudo pode mesmo acontecer em matria de
contos, ou melhor, no interior deles". Primeiro, um conto que mais parece uma piada; em
seguida, um conto de trs frases; depois, um conto que "no conta a estria", apenas a
sugere numa sucesso datada de notcias de jornal e, agora, o velho querido Drummond
veja, nosso poeta maior, tem, com seus 81 anos, uma obra riqussima e se esconde
simpaticamente aqui no Rio de Janeiro a nos dizer que seu melhor amigo "um
continho em branco", num texto que faz zombeteiras reflexes sobre o conto.
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E voc, naturalmente, est a indagar, como bom portugus, oh! desculpe, como
bom brasileiro, se o conto, que etimologicamente se aparenta com "contar", tem mesmo
que "contar uma estria". Ser? Para se escrever um conto preciso apenas"esferogrfica e papel" ou "mquina e papel", como argumentou galhofeiramente o contista
Wander Piroli ou preciso, tambm, "ter o que contar"? Viremos a folha. Passemos ao
prximo item.
TER O QUE CONTAR.
TER O QUE CONTAR?
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"H anos, um cientista alemo, baseando-se na origem ilegtima de alguns
dos maiores gnios da humanidade, como Da Vinci, Beethoven e Wagner, lanou
uma nova teoria: as grandes inteligncias so sempre geradas num momento de
paixo."
Segundo os organizadores da antologia As Obras Primas do Conto Universal, da
Martins Editora, tal teoria tambm se aplica aos contos de Guy de Maupassant, narrativas
to densas de vida que parecem todas elas geradas em clima de paixo. Tendo pertencido
gerao que enriqueceu, quantitativa e qualitativamente, a prosa francesa do sculo XIX,
enquanto Balzac e depois, ao seu lado, Flaubert e Zola tm seus nomes muito mais
fortemente ligados ao romance, como o mestre do
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conto que Maupassant se notabilizou.
Algumas dcadas antes Edgard Allan Pe havia lanado, nos Estados Unidos, o
que seria a semente dos modernos contos policiais. Estrias que caminham nas sendas
prodigiosas do fantstico e do misterioso, utilizando argumentos capazes de gerar a lgica
naquilo que, aparentemente, do mais completo absurdo. Pe cria os seus textos tendo
como base do suspense um imaginrio que joga com categorias de irrealidade e
sobrenatural, denunciando, de certo modo, uma espcie de parentesco com os antigos
contos medievais de tipo satnico ou de magia negra.
Mas no plano da realidade mais imediata, sem transpor as fronteiras da
verossimilhana e da probabilidade, que Guy de Maupassant consegue se mover,
armando a cuidadosa arquitetura de seus textos. Tendo escrito, ao lado de alguns poucos
romances, cerca de trezentos contos, seu grande trunfo parece ficar por conta do seu"poderoso gnio inventivo".
Embora apresente um estilo tenso, de extrema economia e conciso, depurando o
texto de tudo aquilo que o comprometa estilisticamente, cabe a ele, talvez mais que a
qualquer outro de sua poca, o ttulo de grande inventor de estrias. Diante de uma pgina
de Guy de Maupassant, o leitor irresistivelmente enlaado a partir das linhas iniciais e
acompanha, magnetizado, o desenrolar dos acontecimentos, todos interligados pelo
princpio da
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causalidade. Constri enredos projetando sempre para a frente o recurso de uma surpresa
bem armada, que causar o espanto ou maravilhamento do leitor no desfecho da estria.
Assim, temos em Maupassant o legtimo representante da feio clssica do conto,
o conto de quem "tem o que contar", ou seja, o conto cuja cadeia de acontecimentos
constitui sua espinha dorsal, centro irradiador de todo poder de atrao. Somerset
Maugham, escritor ingls, referindo-se ao "estilo" de conto maupassantiano, compara-o ao
de Tchekhov, assegurando que " mais fcil escrever histrias como as de Tchekhov do
que histrias como as de Maupassant. Inventar uma histria que seja interessante por si
mesma, independente do modo de contar, uma coisa difcil; o poder de faz-lo um dom
que poucos possuem. Tchekhov tinha muitos dons, mas no esse. Se tentarmos contar
uma de suas histrias, verificaremos que no temos nada para contar".
Sculo XIX ainda. Em 1850 nascera Maupassant e, em vertiginoso ritmo de
prazeres e loucuras, intensamente viveu seus breves 43 anos de vida. Produziu sua obra
quando, na Frana, faziam-se fortes os ventos do Realismo-Naturalismo. Teve como
mestre o grande Flaubert, autor de Madame Bovary. Na Rssia, a genialidade de Tolstoi e
Dostoivski dominava a paisagem, acrescentando o ingrediente inovador da profundidade
psicolgica ao romance social que Balzac, na Frana de
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princpios do sculo, to bem soubera manejar. Sobre este painel, um nome novo
desponta no horizonte: Anton Tchekhov.
Mais novo que Maupassant dez anos (nascera em 17 de janeiro de 1860), tendo
tido, tambm como ele, uma vida curta, apenas 44 anos, busca igualmente atingir orealismo da vida atravs da objetividade literria, mas o faz por caminhos diferentes.
Enquanto o contista francs elege em seus textos o ser humano detentor do fato curioso,
interessante, quando no, extraordinrio, Tchekhov se interessa pelo mais comum dos
mortais, aquele cuja apatia montona da vida sua nica e mesma estria.
Como, ento, do mais comum dos homens, sofredor e solitrio, daquele que no
vive nenhum drama inslito, nem qualquer experincia fulgurante, "ter o que contar"? Pois
deste material aparentemente esttil e insosso que Tchekhov consegue extrair o quepode ser considerado o "modelo" do conto moderno.
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Para ele "pensar que a literatura tem como finalidade descobrir as prolas e mostr-
las livres de qualquer impureza equivale a rejeitar a literatura". Em sua opinio "esta s
pode ser classificada de arte quando pinta a vida como ela ". Foi, como grandes outros
escritores russos, um homem que teve sua atividade criadora comprometida com a gente
pobre de sua terra, com a gente que arrasta a, inevitabilidade de um destino hostil
esperana
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que usualmente habita um corao humano.
Mas para compreender a marca inovadora que Tchekhov imprimiu ao conto (e s
peas teatrais) preciso pensar o artista Tchekhov em relao ao seu meio e sua poca,
digamos, em relao moda que dominava o panorama artstico do final do sculo.
Quando falo de "panorama artstico" estou me referindo a determinadas constantes que se
manifestam, simultaneamente, em expresses artsticas das mais variadas naturezas
espao em que literatura, msica, pintura, escultura, etc. irmanam-se sob o signo arte.
Um sentimento de inconformismo com a arte realista produzida durante os ltimos
cinqenta anos funcionou como um estopim deflagrador da srie de "ismos"
(Impressionismo, Expressionismo, Decadentismo, Futurismo, Dadasmo, etc etc.. . ) com
que o sculo XX seria premiado. Tudo parece ter tido incio com o quadro "Impresso,
nascer do sol" (1874) do pintor francs Claude Monet, considerado a primeira
manifestao do Impressionismo. E que relao pode ter isso com o contista russo que ora
nos interessa?
O Impressionismo no chegou a ser uma ruptura com os ideais da arte realista.
Tambm como os pintores realistas, pretenderam eles retratar a natureza tal como a viam.
Mas se a distino entre eles no se opera ao nvel do objeto proposto, do fim a seralcanado, diferenciam-se muito quanto aos meios empregados para atingi-lo.
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Com o Impressionismo a conquista da natureza se tornou completa, podendo tudo o
que se apresentava aos olhos do pintor converter-se em motivo de um quadro, cada objeto
ascendendo em importncia pelo simples fato de se constituir em registro casual de uminstante fugaz, nico, irrepetvel. Assim, na pintura, tiveram destaques a luminosidade, o
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apagar de contornos, a insinuao do vago e do impreciso, traduzindo uma viso do
mundo cambiante, varivel, sugesto de um fugidio vislumbre.
A veia lrica dos poetas, da por diante, passa a ser freqentemente assaltada por
estmulos poticos indefinveis, sensaes evanescentes e impalpveis. E a estria que se
conta deixa de ter como arcabouo a concretude das aes exteriores, reduzindo-se
superposio de situaes psicolgicas dos personagens, vagas descries de tendncias
e estados de esprito.
Tchekhov, tambm ele tocado pela tendncia impressionista dominante em toda a
Europa de fins do sculo XIX, rende-se a uma filosofia de passividade que promove o
abrao irresistvel ao momento agora inevitvel certeza de que tudo na vida
fragmentrio, casual e passageiro. Nasce da o clima quase sempre sombrio dos seus
textos. Se o ritmo da vida se altera de instante a instante, revelando ausncia de objetivo e
significado, , ento, absolutamente inquestionvel o profundo isolamento dos homens,
impotentes diante do
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abismo que os separa e divide.
Esta filosofia gera conseqncias na organizao formal de seus textos: se nada na
vida conduzido para um fim e um objetivo, os acontecimentos exteriores so irrelevantes
e episdicos, logo, numa narrativa, a fidelidade vida, para Tchekhov, no pode ser
encontrada numa estrutura que d aos acontecimentos lugar de destaque. Eis porque,
buscando retratar realisticamente a vida, ele preferiu se exprimir numa forma excntrica de
composio, abandonando os efeitos, at ali, to caractersticos do modo de se "contar
uma estria".
Reduz a ao a um mnimo indispensvel; registra os fatos da vida numa sucessode quadros; coloca, em lugar dos tradicionais dilogos, monlogos paralelos que vo
descortinando o mundo interior de cada personagem e joga por terra, de uma vez por
todas, o esquema da construo dramtica tradicional: desenvolvimento, clmax e
desenlace.
Com Tchekhov, de maneira bastante ostensiva, o conto deixa de contar uma estria
que se passa "do lado de fora" dos personagens, atraente concatenar de fatos ocorridos
"com" eles e introduz indiscreta cmera fotogrfica nos seus mundos interiores, retratandoo marasmo de conscincias entorpecidas pela podrido do tdio. Referindo-se literatura
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produzida por Tchekhov, outro escritor russo seu contemporneo, Mximo Grki, diria:
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"Ningum compreendeu to lcida e finamente como Anton Tchekhov a tragdia das
trivialidades da vida; ningum antes dele mostrou aos homens, com to impiedosa
verdade, o retrato terrvel e vergonhoso de suas vidas, no turvo caos da existncia
cotidiana da burguesia".
Passemos os olhos, de relance, em dois contos que caracterizam estes dois modos
de expresso: o de Maupassant, sustentado at o final pela surpresa reveladora que
ilumina o progressivo suspense alimentado desde o incio; o de Tchekhov, deixando em
ns, leitores, o sem-sabor que nos obriga a que voltemos os olhos na direo em que o
texto nos aponta, descortinando, por detrs das palavras, no espao do no-dito, a crtica
subliminar, o "sentido" revelado naquilo que as palavras ocultam.
De Guy de Maupassant, breve resumo do seu famoso "As Jias": nos cinco
primeiros pargrafos, o encontro do Sr. Lantin com a maravilhosa criatura que ele, por
sorte, consegue desposar e a descrio altamente favorvel da personagem feminina:
"beleza modesta", "pudor anglico" e sua extrema habilidade em manejar as economias
domsticas. Tudo isso e mais as atenes e delicadezas com que cobria o marido, faziam
dele, seis anos depois de casados, um marido convictamente apaixonado.
Dois nicos aspectos negativos desgostavam um pouco o Sr. Lantin: sua paixo
pelo teatro, ao qual
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ele se via tantas vezes arrastado sem nenhuma vontade e o gosto pelas jias falsas.Quanto ao teatro, apesar da relutncia da mulher, ele consegue se safar: aconselha-a a
fazer-se acompanhar por uma amiga, mas, em relao s jias falsas, nada lhe distrai do
prazer de possu-las e de contempl-las.
Neste clima de completa felicidade que a morte vem surpreend-los, deixando
inconsolvel o Sr. Lantin pela ausncia da companheira amada. E, sua dor, um novo
motivo de sofrimento vem se aliar: seus vencimentos de funcionrio do Ministrio, que
antes, em mos da esposa, supriam exemplarmente as necessidades da casa, servida porfinas iguarias e regada por vinhos da melhor qualidade arte administrativa diante da
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qual, agora, o Sr. Lantin permanecia boquiaberto eram insuficientes para a despesa de
sua nica pessoa.
Diante da irremedivel necessidade de conseguir algum dinheiro extra para atender
s mais imediatas despesas e fazer frente a dvidas que se avolumavam, o Sr. Lantin,
depois de grande dvida, decide-se a vender as quinquilharias que a esposa trazia para
casa quase a cada noite, to obstinada era sua paixo pelo brilho das pedras.
Este o clmax da narrativa: na joalheria, o cuidadoso exame feito pelo comprador, a
vergonha do Sr. Lantin ostentando sua misria acreditando estar vendendo objeto to sem
valor e, aterradora surpresa a enorme quantia que lhe oferecida
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pela jia. Dvidas quanto percia do comprador: seria to perfeita a imitao que ele no
reconhecera? Qual nada! De surpresa em surpresa, o Sr. Lantin vai constatando serem
autnticas todas as jias, tendo o joalheiro inclusive o registro de que tal ou tal teria sido ali
comprada e mandada residncia da Senhora Lantin em tal ou tal data. Presentes, ento?
Horrvel dvida depressa se metamorfoseia em certeza.
Logo, logo, porm, o modesto funcionrio comea a perceber "Como se feliz
quando se tem dinheiro!" e constata que esta valiosa herana de trezentos mil francos, que
estranha e curiosamente lhe chegara s mos, tem o dom de mudar a sua vida,
permitindo-lhe demitir-se do emprego, "mandar ao diabo as aflies" e tecer projetos de
novos dias. Argumentos, evidentemente, capazes de sufocar em seu ntimo quaisquer
lembranas perturbadoras ou dvidas malss.
Eplogo: nos dois ltimos pargrafos, o desfecho da estria e o que restou do Sr.
Lantin:
"Pela primeira vez na vida no se entediou no teatro, e passou a noite em
companhia de mulheres.
Seis meses depois, tornou a casar-se. A segunda mulher era muito honesta,
mas de um gnio difcil. F-lo sofrer muito."
Passemos os olhos, agora, no conto de Tchekhov, "No Mar da Crimia". Diante da
impossibilidade
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da transcrio completa, adianto ao leitor que, quanto aos dois contos, mas mais ainda
quanto ao de Tchekhov, minha tentativa de "dar uma viso" dos mesmos algo muito
aqum de uma leitura completa das referidas narrativas e o ideal seria que o leitor
procurasse l-las ainda que numa antologia. Em relao ao conto de Maupassant,
confirmando o que disse Somerset Maugham, simples "recontarmos" a estria. Diante da
narrativa de Tchekhov, vemos a total ineficincia de um possvel resumo. Esta dificuldade
mesma, fao questo de ressalt-la porque a confirmao do que disse at aqui a
respeito desta modalidade de conto.
Mas vamos a ele, entremeando resumo, comentrio e transcries de trechos, numa
v tentativa de exemplificar esta exposio.
O espao uma espcie de enfermaria, localizada num poro de navio. Ali dois
soldados e um marinheiro doentes retornam da guerra e experimentam o tdio de dias e
dias que se alongam, preenchidos apenas pelo montono barulho das mquinas, pelo
quebrar das ondas e pelas prprias reflexes, lembranas e delrios. Nada acontece,
nenhum relato curioso ou atraente, apenas o cansativo jogo de cartas e o calor sufocante.
Nada os aproxima, seno a localizao espacial trs macas uma ao lado da outra num
cubculo sombrio, em pssimas condies higinicas. Nenhum dilogo digno desse nome.
Trs seres voltados para dentro de si
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mesmos.
O conto comea como se fora uma interrupo inesperada naquele ambiente j
constitudo, surpreendendo um comentrio de Gusief dirigido a Pavel Ivanytch. Asinformaes acerca do local, da situao de cada um, etc., vo sendo aos poucos
fornecidas, medida que o texto se constri. Diz Gusief: " Escuta, Pavel Ivanytch: um
soldado me contou que o barco dele chocou-se, no Mar da China, com um peixe que era
do tamanho de uma montanha. Ser verdade?" Diante do silncio do companheiro,
espacialmente marcado na organizao do texto por trs pargrafos em que o narrador
descreve o ambiente, Gusief volta ao ataque: " O vento partiu as suas correntes e est a
correr mar."Reao de Pavel: " Meu Deus! Que idiota que voc ! Quando no se pe a dizer
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que um barco se despedaou de encontro a um peixe, diz que o vento partiu as correntes,
como se fosse uma pessoa de carne e osso".
Semelhante dilogo, num conto tradicional, deveria ser "jogado fora", porque
aparentemente nada acrescenta ao desenrolar dos acontecimentos. Aqui, porm, um
sinal de modernidade. Na figura de Pavel e na sua fala pode-se ver o intelectual que faz a
crtica dos "estilos fantasiosos" das estrias e a recusa do autor quanto utilizao de
figuras de linguagem ou antigas lendas ("vento partir as correntes") que falseiam a
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realidade. Lembre-se que Tchekhov perseguia a recriao do real pela literatura.
Isto se confirma em outro momento do texto, quando Pavel conjecturando sobre sua
chegada Rssia, planeja procurar l um seu amigo escritor e lhe dizer: "Vamos, amigo,
deixa por um minuto os teus escabrosos temas relacionados com mulheres e com amor:
deixa de cantar as belezas da natureza e procura divulgar as sujeiras dos seres de duas
patas. Trago-te esplndidos temas..."
Posies antagnicas que se defrontam. De um lado, o sonhador Gusief,
acreditando que chegar terra natal, ao reencontro com os seus; de outro, Pavel e sua
consciente revolta contra a situao dos soldados que so postos em navios, sabendo-se
que no resistiro travessia estratgia usada, segundo ele, para se verem livres dos
mesmos, j que no mais so teis frente de guerra. O terceiro doente quase passa
despercebido. Nenhuma fala sua. tambm o primeiro a ser "cortado".
Sim, porque as mortes so relatadas com fria indiferena, assim como nomes que
se riscam numa longa lista e que em nada alteram o ritmo dos acontecimentos. Se no,
veja:
"De repente, algo de anormal acontece a um dos soldados que jogam. Ele
confunde o naipe de copas com o de ouros, erra na conta e deixa cair as cartas.
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Depois, olha em torno de si com um sorriso hediondamente alvar.
Voltarei logo, camaradas Esperem ... eu .. . eu ... e estende-se nopavimento.
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Os companheiros interrogam-no, estupefatos; ele no responde.
Stepan! Sente-se mal? pergunta-lhe o soldado do brao ferido.
Hein? Quer que chame o padre, sim?
Stepan, beba gua, beba, camarada, beba! diz-lhe o marinheiro.
Mas por que voc lhe empurra a caneca boca?
exclama Gusief, irritado. No vs, ento, seu idiota?...
Como?...
"Como? ..." repete Gusief arremedando
ele j no respira est morto. E ainda perguntas: "Como?" Que idiota,
meu Deus!"
Nenhuma palavra mais. A parte trs do texto comea em seguida, depois de um
corte temporal, anunciando j bem adiantada a viagem. Pavel Ivanytch aparenta estar
melhor e Gusief passa os dias mergulhado em sonhos, mesclando passado e futuro em
permanente dei Trio. Num destes instantes, o silncio quebrado:
" Que a terra lhe seja leve! murmura o soldado do brao ferido. Era
um homem que deixava a gente nervoso.
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Quem? - pergunta Gusief esfregando os olhos.
De quem que ests falando ?
Ora, de quem? De Pavel Ivanytch! Morreu. Levaram-no para cima."
Depois de assistir ao lanamento do corpo de Pavel no mar, Gusief desce para aenfermaria e mergulha de novo em sono e sonho. E sem nenhum suspense, na rotina
daquilo que j esperado, assim nos fala o texto de sua morte:
"Dorme, assim, dois dias seguidos. Ao cair da tarde do terceiro, os marinheiros vm
busc-lo e levam-no para o convs.
Costuram-no num saco, no qual introduzem, tambm, para torn-lo mais pesado,
dois enormes pedaos de ferro. Metido no saco Gusief parece uma cenoura: volumoso na
cabea e afinado nas pernas.Ao pr do sol colocam o cadver sobre uma prancha que tem uma das
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extremidades apoiada na balaustrada e a outra num caixo de madeira. Ao redor
enfileiram-se os soldados e os marinheiros todos de gorro na mo."
E o texto ainda descreve a descida do corpo na profundidade do mar, fala do susto
de um cardume de peixinhos e do espetculo a que assistem quando um tubaro, sem
pressa alguma, vai abrindo de alto a baixo a mortalha de Gusief.
Vistos os dois contos, podemos voltar pergunta inicial e refletir, munidos, agora,
de elementos:
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"Ter o que contar", uma estria que valha por si mesma, narrao do invulgar ou "ter
o que contar" numa operao de extrair sentido na vida mesma, sem fantasias e falsos
adornos? Um fato extraordinrio, digno de ser relatado ou conscincias ordinrias, comuns
e impotentes, igualmente dignas de serem conhecidas, reconhecidas motivos que, se
no nos arrancam folgados sorrisos, fazem ecoar em ns um grito de indignao pela
misria de uma vida em que no se dono do prprio destino?
Passageiros de uma travessia, como aqueles trs doentes do navio de Tchekhov,
somos todos ns este um dos sentidos submersos do conto e na estrutura do texto,
na ausncia mesma do fato extraordinrio, revela-se a insignificncia da vida cotidiana. A
tragdia do homem flagrantemente se estampa na indiferena dos cus, depois de
ostensivamente mostrada na indiferena de um homem por outro homem.
Tal como a vida individual se apaga e os refletores do mundo em nada se alteram,
no h desfecho, no h surpresa, a narrativa se encerra em amarga ironia, mas
desprezando qualquer efeito especial. registro de uma fatia do real, apenas.
A vida no navio continua inaltervel, o corpo de Gusief solitariamente retalhado
pelo tubaro e "enquanto isso, l no alto, no cu, onde o sol pouco a pouco se oculta, asnuvens vo-se acumulando. Uma delas parece um arco-de-triunfo, outra
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um leo; outra ainda uma tesoura. Atravs de uma das nuvens projeta-se at o centro da
abbada do cu um amplo raio verde. Ao lado dele surge, pouco a pouco, um colorido de
lils bem plido. Sob este esplndido cu, o oceano torna-se a princpio obscuro; logo,porm, passa, por sua vez, a tingir-se de cores, de cores to suaves, alegres e belas que a
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lngua humana incapaz de descrev-las."
NAS ASAS DO CONTO,
BREVE PASSEIO PELA PAISAGEM
LITERRIA BRASILEIRA
Alm de lembrar que ser breve este passeio, o ttulo escolhido para este captulo
sugere ainda o tipo de viso que o leitor ter: se ser levado pelas "asas" do conto, trata-
se de um vo e de um vo s se pode esperar uma imagem distanciada e de superfcie.
Claro que numa viso deste tipo os expoentes as grandes metrpoles os nomes que
a tradio firmou, sero mais facilmente identificveis. Mas, antes, um detalhe: em
qualquer passeio, quando numa excurso no podemos "ver tudo", as escolhas so
sempre arbitrrias e pessoais. Quantas vezes no deixamos de lado um grande
monumento, consagrado pelo gosto geral e fixamos nossa ateno naquela imagem que,
de cara, respondeu a anseios desde muito adormecidos
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inexplicavelmente em nosso ntimo?
Antes do descobrimento do Brasil, os ndios possuam, naturalmente, seu arsenal de
lendas e mitos, transmitidos de pais a filhos, do mesmo modo que o conto popular. Mas j
deixei pra trs este tipo de conto e estou pensando agora apenas nas manifestaes
literrias propriamente ditas e, entre elas, na narrativa curta. Tambm no vale me lembrar
dos contos que os portugueses possam ter trazido na algibeira se que naquelas
pocas j existia o prottipo do autor vaidoso, aquele sempre com um texto no bolso,
pronto a l-lo para quem dele se aproxima.Por aqui passaram os jesutas e entre eles Anchieta que, seja com a finalidade de
educar os ndios, seja como pura forma de expresso espontnea de sensibilidade,
imprimiu ao nascimento da Literatura Brasileira esta imagem potica: o uso de se escrever
poemas nas areias da praia. Ao lado dos textos informativos sobre as belezas da nova
terra bero do ufanismo que at hoje impregna a alma do brasileiro (Brasil "gigante
(...) deitado eternamente em bero esplndido", "Brasil pas do futuro", "Ningum segura
este pas", etc ) a poesia dominou o panorama das primeiras manifestaes literriasem solo brasileiro.
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difcil precisar o momento em que surgiu entre ns o primeiro conto com
caractersticas genuinamente literrias. Afinal, quando se trata
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do surgimento ou decadncia de uma manifestao artstica, no possvel registrar dia
exato como se faz em Histria quando se fala da morte do rei ou da queda do regime. Mas,
durante as primeiras dcadas do sculo XIX, mais precisamente a partir de 1830/40,
aparecem com certa freqncia na imprensa cotidiana produes muito prximas do
gnero. Isto significa dizer que o conto, em sua feio literria, teria surgido entre ns
quando aqui se firmavam os ecos do Romantismo, movimento artstico que j varrera de
ponta a ponta a velha Europa.
No de estranhar, portanto, que as caractersticas que definiram o to badalado
"mal do sculo" estejam presentes no livro de lvares de Azevedo, Noite na Taverna,
publicado em 1855 e que, pelos requisitos de sua composio, pode ser considerado a
primeira expresso verdadeiramente literria do conto brasileiro.
Voc, leitor atento, que ainda se lembra do que eu disse no incio deste texto a
respeito do Decameron, de Boccaccio, registre o fato curioso: tambm em sua infncia no
Brasil, com lvares de Azevedo, o conto apresentado naquela mesma estrutura. Um
grupo de pessoas reunidas numa taverna narra, cada uma, estranhas estrias que trazem
a marca de um romantismo exacerbado, em que o senso do mistrio, a atmosfera
macabra, a, imagstica satnica e uma profunda descrena
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na vida componentes do indefinvel e vago "mal do sculo" contrem o cenrio.Este fato comprova que o conto, no sculo XIX, pelo menos quanto aos primeiros
exemplares surgidos entre ns, ainda se filiava, de maneira bastante evidente, sua forma
oral. Mesmo em se tratando de narrativas escritas, registradas em linguagem com
preocupaes estilsticas, o conto guarda reminiscncias do "contar" transmisso oral
de um episdio.
J aqui posso fazer um parnteses neste discurso expositivo e convidar voc para
uma reflexo. Balance a letargia do comodismo, ponha a cuquinha para funcionar ecoloque para voc mesmo a seguinte questo: calcular a distncia que existe entre um
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conto que um personagem relata para companheiros numa taverna, falando de situaes
estranhas e fantsticas pelas quais ele teria passado e o conto do jovem carioca Artur
Oscar Lopes, "Notcias", ou o de Drummond, vistos no Captulo I item 3. Estes contos, os
dois ltimos, so contos de "contar" ou contos de "ler"? Experimente contar pra algum a
"estria" deles e veja se consegue. Mas alto l! sem descrever-lhes a forma. Valeu a
observao?
Voltando ao sculo XIX, um monumento desperta, atrai, exige, obriga minha
ateno e no h vo que sobre ele possa passar sem se deter, sem descer, sem fixar,
sem se apaixonar: Machado de Assis. Garanto que voc j ouviu falar nele! E
55
(Obs: imagem Machado de Assis)
quem sabe at franziu o nariz, porque tem destas coisas. Tanto falam, tanto falam... e s
vezes quem tanto fala a turma do "devera cumprir", a gerao que diz "no meu tempo..."
ou coisas parecidas, que a gente jovem acaba entrando no jogo da gerao passada. Do
mesmo modo que os "coroas" no curtem o papo da "moada", s vezes por pura
preveno, a "moada" acaba agindo igual: resolve riscar do programa tudo que tenha a
ver com a turma antiga. nestas guas que rolam muitos enganos e muito tempo
perdido.
Machado de Assis , na verdade, uma fatia do sculo XIX e elemento imprescindvel
na Histria da Cultura Brasileira. Alm de ter escrito vrios livros de contos registro de
invulgar reflexo entre eles Contos Fluminenses, o primeiro a ser publicado, em 1869,
Papis Avulsos, Histrias Sem Data, Relquias de Casa Velha, este ltimo publicado j no
incio deste sculo (1906), escreveu tambm densos romances e, ainda, poesia, teatro,crnica e crtica.
Mas Machado mais. Quando vemos hoje, nos textos contemporneos, a arte
voltando-se sobre si mesma e romances, contos e poemas tomarem como temas a sua
prpria realizao isto que chamamos metalinguagem, metapoema, poesia sobre
poesia, etc e constatamos que este um dos signos da modernidade, qual no
nossa surpresa ao verificarmos que Machado, sim, meu caro
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leitor, o velho Machado, um jovem autor moderno. Pois no que, se a arte moderna
parece chamar a ateno, dizendo "Isto apenas um texto ou um quadro, etc ", tudo isto
j est l, em embrio, nas pginas dos seus romances e contos?
O pintor belga Ren Magritte, surrealista, reproduz em um de seus quadros uma
ma com uma legenda sobre ela: "Ceci n'est pas une pomme". (Isto no uma ma.)
Com isto quer ele lembrar que se trata de uma pintura, por maior que possa ser a
semelhana com o real, trata-se de um jogo de tintas e qualquer "realismo" no passa de
iluso. De modo menos flagrante Machado de Assis est sempre lembrando ao leitor, que
ele traz para o texto e com quem dialoga, que tudo no passa de narrativa, com recursos e
efeitos que muitas vezes ele no s aponta como ironiza.
A primeira pgina do conto "Miss Dollar", por exemplo, mostra a "conscincia" do
autor a respeito do "fazer potico", da construo do prprio texto. Ao invs de ocultar o
"processo", ele o apresenta e discute, conjecturando, num modo bonacho e irnico, as
possveis suposies dos leitores quanto personagem, fazendo exatamente o contrrio
do que ele afirma no primeiro pargrafo. Veja:
"Era conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo sem saber
quem era Miss Dollar. Mas por outro lado, sem a apresentao de Miss Dollar, seria
o
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autor obrigado a longas digresses, que encheriam o papel sem adiantar a ao.
No h hesitao possvel: vou apresentar-lhes Miss Dollar.
Se o leitor rapaz e dado ao gnio melanclico, imagina que Miss Dollar uma inglesa plida e delgada, escassa de carnes e de sangue, abrindo flor do
rosto dos grandes olhos azuis e sacudindo ao vento umas longas trancas louras.
(...)
A figura potica, mas no a da herona do romance.
Suponhamos que o leitor no dado a estes devaneios e melancolias; nesse
caso imagina uma Miss Dollar totalmente diferente da outra. Desta vez ser uma
robusta americana, vertendo sangue pelas faces, formas arredondadas, olhos vivose ardentes, mulher feita, refeita e perfeita. (...)
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J no ser do mesmo sentir o leitor que tiver passado a segunda mocidade
e vir diante de si uma velhice sem recurso. Para esse, a Miss Dollar
verdadeiramente digna de ser contada em algumas pginas, seria uma boa inglesa
de cinqenta anos, dotada com algumas mil libras esterlinas, e que, aportando ao
Brasil em procura de assunto para escrever um romance, realizasse um romance
verdadeiro, casando com o leitor aludido. (...)
Mais esperto, que os outros, aode um leitor dizendo que a herona do
romance no nem foi inglesa, mas brasileira dos quatro costados, e que o nome
de Miss Dollar quer dizer simplesmente que a rapariga rica.
A descoberta seria excelente, se fosse exata; infelizmente
59
nem esta nem as outras so exatas. A Miss Dollar do romance no a menina
romntica, nem a mulher robusta, nem a velha literata, nem a brasileira rica. Falha
desta vez a proverbial perspiccia dos leitores; Miss Dollar "
Ah! mas esta ingratido com o grande mestre eu no fao. Ento Machado arma
toda esta estratgia arrastando o leitor para dentro do conto e eu, no meu texto e sem que
o meu leitor v ao Machado, vou l dizer quem Miss Dollar!!! No, negativo, isto eu no
fao. Nem que o editor exija. Quem quiser saber, que leia o conto (se ainda no leu). Sou,
por acaso, contadora de estrias alheias? J basta o pecado contra Maupassant e
Tchekhov.
Mas espero que tenha sido vlida como amostra do estilo tantas vezes brincalho
dos contos de Machado, a transcrio destes trechos do princpio de um deles. E se o
leitor se animar explorao de seu universo, no ficar decepcionado. So estriasdeliciosas que agradam ao gosto pelo suspense, agradam curiosidade, agradam ao
anseio de indagar o desconhecido, o fantstico, o surpreendente, mas, melhor que tudo
isso, so contadas num tom entre filosfico e humorstico que agrada impossvel no
reconhecer inteligncia.
Machado de Assis ceticamente escrevera em Outras Relquias, "No h descanso
eterno, nem ainda o das sepulturas. Um dia l vem a mo do
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arquelogo a pesquisar os ossos e as idias". Bem que tem razo o autor de Dom
Casmurro. Ainda hoje suas idias so vasculhadas, comprovando que o escritor est
vivssimo entre ns, embora o homem-Machado tenha morrido em 29 de setembro de
1908. Neste mesmo ano est sendo preparada em Portugal a edio em livro do primeiro
romance de Lima Barreto, Recordaes do Escrivo /saias Caminha, posta a venda no ano
seguinte.
Do mesmo modo que Machado enriquecera com seus textos os folhetins dos
tempos do Imprio, Lima Barreto se torna presena freqente na imprensa dos princpios
do sculo, retratando com desconcertante honestidade intelectual a vida suburbana
carioca. De tal modo os seus textos revelam a pattica condio de vida da gente mida
dos bairros pobres do Rio, de tal modo os seus textos fazem a crtica de nossa apatia, a
denncia de nossa omisso e macaqueao dos modelos estrangeiros, que so at hoje
de uma atualidade admirvel. E por isso que a marca de sua passagem est impressa
to fortemente nos caminhos da Literatura Brasileira, encontrando identidades em
contistas atuais, como um Joo Antnio, por exemplo, autor de Malagueta, Perus e
Bacanaoe Leo de Chcara, entre outros.
Os contos de Lima Barreto, reunidos no livro Histrias e Sonhos, em 1920, formam,
ao lado de
61
seus romances, uma literatura de combate, revelando sempre a revolta do autor contra os
grandes e sua expressiva simpatia pelos humildes. O seu estilo direto e sem rodeios,
destes que se chamam subversivos, porque vo fundo nas mesquinharias e "do nome
aos bois", at hoje constitui uma espcie de desafio para qualquer escritor que seproponha fazer a stira da situao social e poltica do Brasil. Lima Barreto j a fez. Neste
sentido, diante dos seus textos, uma pergunta inevitavelmente nos ocorre, como diz Joo
Antnio: "Mas que diabo, que bruzundanga, ser possvel que este Pas, em essncia, no
mudou um milmetro nos ltimos cinqenta e quatro anos?"
Exatamente por colocar em questo a realidade scio-cultural (Lima satiriza at
mesmo os costumes literrios da poca), a sua prosa pode ser considerada pr-
modernista, porque, de certa forma, anuncia os temas que estaro vivos e fortes na obrados modernistas de 22. Lima Barreto era j a fermentao da rebeldia que explode na
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Semana de Arte Moderna, realizada entre 11 e 18 de fevereiro do celebrado ano de 1922,
em So Paulo.
Mas, se Lima Barreto significa uma abertura para o Modernismo, pelo vigor de sua
crtica e pelo ngulo escolhido por ele para retratar a gente de sua terra, com Mrio de
Andrade estas conquistas de prosa sero acrescidas de inovaes ao nvel da linguagem,
ao nvel dos cdigos literrios.
62
Compreender Mrio rastrear, ainda que muito rapidamente, os caminhos calcados
e abertos pelo "ponto de encontro" que significou a Semana e a posterior consolidao
dos cnones modernistas.
Quem era que, nos meios artsticos e literrios na "terra da Bruzundanga"? (
expresso de Lima Barreto numa stira alegrica do Brasil do comeo do sculo). De um
lado o passado, o peso da tradio, a retrica de Rui Barbosa, o estilo pomposo de Coelho
Neto, os versos parnasianos firmemente travados lio da mtrica do poeta Olavo
Bilac e, de outro, espritos jovens que servem de receptculo sensao geral produzida
pelo cheiro do mofo, do bolor, do velho, do ultrapassado que impregnava o ar.
Para se constatar a decadncia literria a que se havia chegado com o culto
exagerado da palavra e o esmero da forma (em detrimento do contedo), apregoado pelos
escritores parnasianos, vlido o depoimento de Raimundo Correia, no final do sculo: "A
poca atual , com efeito, dura e penosa para a vida do esprito. Que vemos ns em
torno? O patriotismo, a abnegao herica e as mais nobres virtudes deixam de ser uma
realidade, evaporando-se em frases ocas... 0 aspecto sob o qual todas as coisas so
encaradas presentemente por uma literatura doentia e "fin du sicle", traduz com triste
exatido esse mal-estar que nos oprime e asfixia".E, como sempre acontece, nas veias jovens
63
que corre com mais intensidade o sangue que impulsiona a renovao. E as veias jovens
se chamam, a, Mrio de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Manuel
Bandeira, que, entre outros, se agregavam em torno de uma nova expresso artstica, istose pensamos apenas em literatura. Porque, na verdade, a amplitude da Semana se
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estendia a todas as artes.
importante registrar, tambm, que esta gente jovem, que prope uma revoluo
nas formas do universo artstico, aqui neste pas tropical, no est atuando isolada do
resto do mundo. O mesmo inconformismo que pairava nos horizontes das artes brasileiras
"j fora" ou, pelo menos tambm "estava sendo" sentido em toda a Europa. Lembra-se de
quando, em captulo anterior, fiz referncia ao Impressionismo?
No caso brasileiro, ao lado da proposta de uma maior conscincia do pas, da
necessidade de uma expresso artstica nacional e neste sentido ele teria seus
antecessores em um Lima Barreto ou Euclides da Cunha, por exemplo ao lado da
valorizao do folclore e da literatura popular, o Movimento Modernista prope a
renovao das formas estticas, a ruptura com a linguagem tradicional, a renovao dos
meios de expresso.
Quanto prosa do Modernismo, a prosa que, a partir dos anos 20, vai dominar nas
letras nacionais, marcantes inovaes podem ser enumeradas. Enquanto a prosa realista
visava a uma reproduo
64
fiel do real pela arte, ou seja, a arte figurativa espelho do real com os modernos se
instaura a autonomia da arte diante do real. Como objeto autnomo, ela se permite uma
postura de verdadeiro jogo. Jogo proposto pelo autor e que, para uma completa percepo
do objeto artstico, dever ser aceito e assumido pelo receptor. Esta autonomia da arte em
relao ao real abre caminhos insuspeitados no sentido de uma maior explorao do
imaginrio. E, de certo modo, tem como decorrncia o aspecto de hermetismo, de
"linguagem de iniciados" que permeia todas as manifestaes artsticas peculiares ao
sculo XX.Quem de ns no ficou, em dado momento, perplexo diante de um quadro ou de um
texto moderno? E, quando eu falo "perplexo", estou-me referindo quela perplexidade
nascida mesmo da no-compreenso, daquele inquietante momento em que pedimos
socorro a reflexes mais profundas e detidas, ansiando por um "Fiat Lux" (Faa-se a luz)
no deserto de nossa obscuridade. Esta tendncia incompreenso, a significaes
cifradas, atua como uma das regras do jogo, porque, ao mesmo tempo que a arte se torna
guardi de um ou vrios significados, prope ao receptor esta espcie de desafio, "pedrano meio do caminho" a obrigar leitura atenta e no apenas "fluviante, flutuai", de superfcie,
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levada pela mar.
Duas grandes cincias influenciaram profundamente
63
o pensamento do homem moderno e, evidentemente, todas as suas manifestaes
artsticas e culturais: a Psicanlise e a Antropologia. A existncia de Freud, que desde os
primeiros anos do sculo vinha publicando seus textos de Psicanlise, tem fundamental
importncia em algumas vertentes da arte moderna. A descoberta do inconsciente atua de
forma considervel nas narrativas que buscam trazer tona, pelos meandros da fico, o
"ser", o mundo interior do homem, sua realidade mais ntima e profunda.
As conquistas da Antropologia, por outro lado, contribuem para uma viso menos
radical do "outro", para uma avaliao no-pejorativa das culturas que so de natureza
diversa daquela que vivemos. Justificam o interesse dos modernos, de Mrio de Andrade,
por exemplo, pela literatura popular, pelos mitos e crendices do nosso folclore, pela
linguagem coloquial, pelo conhecimento das regies esquecidas deste imenso Brasil.
Os contos de Mrio se caracterizam, primeiramente, por uma linguagem jovem,
bastante pessoal, em que a tendncia ao experimentalismo da forma o leva a empregar,
na lngua escrita, elementos gramaticais caractersticos da linguagem oral, dando ao texto
a aparncia de uma invencionice s vezes puramente exterior, que no atinge a substncia
da mensagem. So recursos gramaticais novos, alguns at discutveis, germinando em
meio a um coloquialismo da melhor qualidade.
66
Se, com o adensar da explorao psicolgica, com o aprofundamento daquelaanlise de estados interiores j anunciada nos textos machadianos, vemos o conto de
Mrio problematizar a relao autor/leitor no se pode esperar de seus textos um
desenvolvimento rgido e objetivo da ao, dos episdios em contrapartida, a linguagem
se depura de qualquer efeito retrico e assume aquela simplicidade e espontaneidade do
dia a dia dos personagens.
Lembremos que, na dcada de 20, estava muito presente no esprito modernista a
questo de se criar uma linguagem literria com feio prpria nitidamente brasileira.Conseguir isso seria possvel atravs da valorizao do Portugus tal como falado pelo
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povo, aqui, e no como pregavam as gramticas, presas, todas elas, a uma sintaxe
lusada, arraigada aos falares de Portugal e no nossos. Neste sentido, facilita minha
observao a leitura de um pequeno trecho do poema "Evocao do Recife", em que
Manuel Bandeira se recorda da infncia em contato direto com a gente da terra e, opondo-
a cultura livresca, valoriza-a:
"A vida no me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na lngua errada do povo
Lngua certa do povo
Porque ele que fala gostoso o portugus do Brasil
Ao passo que ns
67
O que fazemos
macaquear
A sintaxe lusada."
Mrio fez sua estria, no conto, com o livro Primeiro Andar(1926), ttulo que, por si
s, j anuncia a obra que o autor previa e se propunha a edificar. E depois de ter
experimentado outros gneros, depois, inclusive, da extraordinria empresa do Macunama
espcie de rapsdia em que, a partir do folclore, busca recriar uma bem humorada
imagem da realidade nacional sua maturidade como contista se revela com a
publicao de Belazarte(1934) e Contos Novos(1947).
Abrindo caminhos ao lado de Mrio e sendo de certa forma influenciado por ele, um
outro contista da dcada de 20 merece registro: Antnio Alcntara Machado. Filho deconceituada famlia paulista, no sofrer na carne o estigma da discriminao, como Lima
Barreto, e nem trazia como ele a marca da mestiagem (Lima era mulato), mas, tal como
ele, foi um simpatizante da gente humilde, dos personagens de subrbios. E se Lima
Barreto d vida, na fico, arraia-mida carioca, Alcntara Machado faz o mesmo em
relao ao proletariado nascente nas imediaes da Paulicia.
Com os seus textos, um novo personagem nasce para a Literatura Brasileira: o talo-
brasileiro. Mas
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no se trata, no caso, do imigrante italiano que "se deu bem" com os novos ares
aqui dos trpicos, o imigrante endinheirado da Avenida Paulista e sim aquele que, no
encontrando luz do sol sob o resplendor dos altos edifcios das zonas ricas de So Paulo,
foi buscar um pedacinho de cho nos arrabaldes distantes, l onde se misturam, no drama
cotidiano, os filhos da pequena burguesia e os filhos dos operrios.
Quanto temtica e ao tratamento dos personagens, seus contos se aproximam da
linha social que trilhara Lima Barreto, mas, em relao ao aspecto estilstico, forma de
expresso, de Mrio de Andrade que Alcntara se aproxima. 0 fato explicvel at
mesmo em virtude da identidade de espao e de tempo que os ligava. Respiravam os
mesmos ares. E se um fora participante ativo da Semana de Arte Moderna, o outro,
jornalista, era participante dirio da vida scio-cultural da cidade. Assim, caracterizam a
sua narrativa recursos tipicamente modernistas.
Seu primeiro livro, Braz, Bexiga e Barra-Funda, de 1927, apresenta contos
nitidamente marcados pelo desejo de uma linguagem quase telegrfica, em que a
instantaneidade ou simultaneidade das cenas compe um estilo sinttico, que d bem uma
imagem da crescente rapidez do mundo industrializado exatinho como queriam os
adeptos do primeiro momento do Modernismo.
Com os livros seguintes. Laranja da China(1928)
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e Mana Maria e Vrios Contos, publicado um ano depois de sua morte (1936), vemos a
sua prosa encaminhando-se no sentido daquela "maturidade literria" que os jovens de 22
vo alcanar em suas obras posteriores. Mas Alcntara Machado, sem ter sido umapromessa malograda sua obra uma considervel contribuio Literatura Brasileira
foi uma promessa inconclusa: aos trinta e quatro anos uma peritonite lhe rouba a vida.
Na dcada de 40 dois grandes nomes marcam registro no espao da fico
brasileira, 1944 o ano de publicao do primeiro livro de Clarice Lispector, Perto do
Corao Selvagem, (romance) e em 1946 surge Sagarana, (contos) de Guimares Rosa.
Apesar de ter estreado com um romance, Clarice revelou-se, posteriormente, grande
contista. Estes foram tempos de grande fertilidade nas terras da fico brasileira.Como estamos tratando de conto lembre-se (e que eu no me esquea!) de que
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estamos em suas asas e como nosso espao vai-se reduzindo, grandes nomes do
romance, mas que tambm fizeram suas incursezinhas na rea do conto, no sero aqui
abordados. Afinal, preciso deixar algum para que voc, leitor, possa tambm se dar o
gosto da descoberta, como no?
E quando voc se apetrechar de curiosidades e
indagaes, abandonar mapas e bssolas e partir
"sem leno sem documento" numa aventura do
imaginrio pelo pas da fico, guarde esta dica:
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se te atrai imaginar um texto que revitalize todos os recursos da expresso, que faa
poesia escrevendo prosa, que reinvente a lngua e inaugure a potica a partir de um
extraordinrio domnio do idioma e de um profundo conhecimento da gente que habita
Brasil interioranos e esquecidos, no tenha dvida, de Guimares Rosa que voc
precisa.
Para que voc v se acostumando com a linguagem, delicie-se com este pequeno
trecho de um texto do Guima (que como lhe chamavam os amigos), em que um bbado,
"ziguezagueando", retorna a casa:
"E, vindo, no, pombinho assim, montado-na-ema, nem a calada nem a rua
olhosa lhe ofereciam latitude suficiente. Com o que, casual, por ele perpassou um
padre conhecido, que retirou do brevirio os culos, para a ele dizer: Bbado,
outra vez. .. em pito de pastor a ovelha. ? Eu tambm o Chico
respondeu, com bquicos, o melhor soluo e sorriso.
E, como a vida tambm alguma repetio, dali a pouco de novo oapostrofaram: Bbado, outra vez? E: No senhor o Chico retrucou
ainda a mesma.
E, mais trs passos, pernibambo, tapava o caminho a uma senhora, de
pauprrimas feies, que em ira o mirou, com trinta espetos. Feia! o Chico
disse; fora-se-lhe a galanteria. E voc, seu bbado!? megerizou a cuja. E, a, o
Chico: Ah, mas Eu? Eu, amanh estou bom..."
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Ah! eu sabia! Quer o ttulo dos livros dele, no ? Ia-me esquecendo. L vo. De
contos: Sagarana, Primeiras Estrias, Tutamia: Terceiras Estrias (a que pertence o
Prefcio "Ns, os Temulentos", de que extrai' o trecho citado) e Estas Estrias, edio
pstuma.
Mas se voc, leitor, no quer saber de textos que "contam uma estria" bonitinho,
como se voc a estivesse ouvindo, mas, se pelo contrrio, voc desses que se
apaixonam pela volpia da palavra e que esperam de um texto a recriao do real, a
recriao do mundo, na prpria aventura do discurso; se voc busca um texto que devasse
mistrios nos submundos da conscincia, que investigue o "ser" sob o espetculo concreto
da realidade aparente, disponha-se doce aprendizagem de amar Clarice.
E quando, de conto em conto, voc deparar com Clarice "bulindo no fundo mais
fundo", l onde ser e no-ser se confundem, l onde habita a palavra que busca, no
silncio, dizer o indizvel, pequenos trechos, como estes, ficaro retidos, quem sabe?, no
seu espao das paixes (literrias, claro!).
"Amor ser dar de presente um ao outro a prpria solido? Pois a coisa
mais ltima que se pode dar de si."
"Meu enleio vem de que um tapete feito de tantos fios que no posso me
resignar a seguir um fio s; meu
72
enredamento vem de que uma histria feita de muitas histrias."
"Tudo acaba mas o que te escrevo continua. 0 que bom, muito bom. O
melhor ainda no foi escrito. 0 melhor est nas entrelinhas."
"A minha nfima parte divina maior que a minha culpa humana.""Precisar sempre o momento supremo. Assim como a mais arriscada
alegria entre um homem e uma mulher vem quando a grandeza de precisar tanta
que se sente em agonia e espanto: sem ti eu no poderia viver. A revelao do
amor uma revelao de carncia bem aventurados os pobres de esprito
porque deles o dilacerante reino da vida."
De Clarice Lispector, contos: Felicidade Clandestina, Laos de Famlia, A Imitaoda Rosa, A Legio Estrangeira. (Agora, ao p do ouvido, que isto no estava no programa:
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os romances tambm so fascinantes!)
Nosso tempo de vo vai-se esgotando, meu olhar abraa a paisagem, contando o
nmero de pginas e me assusto. que me falta falar ainda nos contemporneos, nos
novos, nos novssimos. E pe gente nisso! H que se arquitetar uma estratgia redutora.
Afinal, exigente leitor, no queira encontrar aqui uma explorao completa do cultivo de
contos nas regies da fico brasileira. Lembre-se de que me propus a um passeio,
portanto no me cobre alm.
73
Nas ltimas dcadas a produo de contos, sem dvida alguma, est entre os
produtos brasileiros que tiveram maior taxa de crescimento. Parece mesmo que o aspecto
de imediatismo proporcionado pelo gnero o "tempo" de um conto, quanto escritura ou
quanto leitura, evidentemente menor que o de um romance aliado a uma maior
facilidade de divulgao, est diretamente ligado a uma imperiosa nsia de dizer, urgncia
de denunciar decorrncia da prpria situao poltico-social do Brasil.
A prtica literria, hoje mais do que nunca, revela-se excelente exerccio de reflexo
sobre a situao do Homem no mundo, sobre a situao do intelectual-escritor na
sociedade, sobre a situao do operrio frente ao sistema capitalista, sobre a situao do
Brasil no plano mundial, ou, como dizem os versos do tambm contista Carlos Drummond
de Andrade, reflexo sobre "o tempo presente, os homens presentes, a vida presente".
Comprova, por exemplo, esta preocupao com o social, com as relaes entre os
homens no mundo contemporneo, a extensa lista que poderia aqui alinhar, de escritores,
contistas, para os quais o desamparo do homem sem nome na sociedade moderna a
razo maior de cada pgina escrita.
O modo violento de narrar, escolhido por Rubem Fonseca; a elaborao crtica datragdia domstica, em Dalton Trevisan; a explorao dos
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submundos, presente em Joo Antnio; a configurao alegrica de um universo
despoetizado, nos textos de Victor Giudice e Moacyr Scliar; o inventrio crtico da
sociedade de consumo, em Roberto Drummond; a descrio do baixo mondo noturno feitapor Igncio de Loyola Brando; a marginalizao dos personagens de Edilberto Coutinho
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ou a documentao do mundo proletrio filtrada na atmosfera dos bares de subrbio pelos
contos de Jefferson Ribeiro de Andrade; o pattico drama da sobrevivncia nas zonas
rurais de periferia rompendo das pginas de Deonsio da Silva ou de Domingos Pellegrini
Jr. para s ficar em alguns representam, todos eles, expresses distintas e diversas
de uma mesma denncia social.
Alargando o nvel da inquietao para o plano do existir, nos deparamos com os
textos de Hlio Plvora, Srgio Sant'Anna, Adonias Filho, com a profundidade filosfica
captada sob a questo da incomunicabilidade pelos textos de Lus Vilela, com o realismo
fantstico de Jos J. Veiga e Murilo Rubio ou, ainda, Breno Accioly, com seu modo
peculiarssimo de devassar o mistrio nas fronteiras da razo e da insanidade.
Muita gente, no? Mas no falei ainda de uma outra vertente igualmente rica da
contstica brasileira. No falei daqueles que, como Osman Lins, arquitetam a narrativa
quase como decorrncia do prprio tecido criado com a experimentao da linguagem,
espcie de aventura ao
75
sabor das palavras, a escritura como desvenda-mento do mistrio num plano
existencial. mais ou menos por a que correm as experincias de um Autran Dourado ou
Nlida Pinon, juntando a esse aspecto a dimenso mtica de seus textos; ou as
experincias de Samuel Rawet, Josu Montello e Lygia Fagundes Telles agudizando,
todas elas, a explorao das sutilezas psicolgicas