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Wilson Castro Ferreira

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CALVINO:

EDIÇÃO DE “LUZ PARA O CAMINHO Campinas, São Paulo

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EDIÇÃO DE “LUZ PARA O CAMINHO” Campinas, São Paulo

JoãoCalvino: Vida, Influência e Teologia Wilson Castro Ferreira

Direitos reservados por “Luz para o Caminho”C.P. 130 — 13100 — Campinas, SP

O texto bíblico utilizado neste livro é o da Edição Revista e Atualizada no Brasil, da Sociedade Bíblica do Brasil, exceto quando outra versão é indicada.

l.a Edição -1985

“Luz para o Caminho” é a organização de radiodifusão internacional da Igreja Presbiteriana do Brasil e da Igreja Cristã Reformada dos Estados Unidos e Canadá.

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À minha esposa, Maria;

a meus filhos, Wilson Júnior e Ricardo;

à minha nora, Márcia;

e a minhas netinhas, Inês, Leila é Marília.

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ÍNDICE

Prefácio .................................................... 11Uma Palavra de Introdução .......................... 15Uma Oração de Calv ino............................... 22

I Parte - JOÂO CALVINO VIDA

Capftulo 1 — Um Homem Chamado João . . . . 25Capftulo 2 — Gérard Cauvin .......... . 31Capftulo 3 — A Educação de João Calvino .. . 36Capftulo 4 — Um Novo Rumo..................... 50Capftulo 5 — Peregrinações de Calvino . . . . . . 62Capftulo 6 — Calvino em Genebra................ 67Capftulo 7 — Estrasburgo .. ...................... 88Capftulo 8 — Genebra Novamente................ 101Capftulo 9 — Servetus............................... 114Capftulo 10 — Sebastião Castélio — Mas Um

Opositor....... ........................123Capftulo 11 — O Fim da Luta ....................... 127Capftulo 12 — Companheiros de Calvino.........131Capftulo 13 — A Obra Literária de Calvino . . . . 140Capftulo 14 — Cartas de Calvino................... 151Capftulo 15 — Os Sermões de Calvino . . . . . . . . 162Capftulo 16 — A Piedade de Calvino.............. 168Notas........................................... .......... 174

II Parte - JOÃO CALVINO INFLUÊNCIA

Capftulo 1 — Influência de Calvino naEducação-* A Sua Academia.......181

Capftulo 2 — Pensamento Polftico de Calvino.. 203 Capftulo 3 — Influência de Calvino no Processo

Social e Econômico ................217Notas........................................................234

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III Parte - JOÃO CALVINO TEOLOGIA

Nota Explicativa à Terceira Parte...................239Introdução........................................ 240Capftulo 1 — O conhecimento de Deus ......... 244Capftulo 2 — Escrituras Sagradas................. 252Capftulo 3 — Criação — O Homem — Estado

em que Foi C riado................. 261Capftulo 4 — Conhecimento de Deus como

Redentor em C ris to ................265Capftulo 5 — Ofícios de Cristo — Profeta,

Sacerdote, Reis...................... 274Capftulo 6 — Cristo — O Mediador ..............278Capftulo 7 — Como Cristo Realizou o Oficio

de Redentor..........................284Capftulo 8 — Providência...........................289Capftulo 9 — Regeneração Pela Fé — Arrepen­

dimento........................... 295Capftulo 10 — Justificação Pela Fé — Nome e

Realidade............................. 301Capftulo 11 — Como Obter a Graça de Cristo , . 306Capftulo 12 — Fé — Definição e Propriedades

Peculiares........................... . 311Capftulo 13 — A Trindade ..........................319Capftulo 1'4 — A Santa Igreja Católica — A Igreja

Verdadeira............................325Capftulo 15 — Indulgência e Purgatório.......... 339Capftulo 16 — A Eterna Eleição ...................344Capftulo 17 — Mestres e Ministros da Igreja . . . . 353Capftulo 18 — Sacramento .......... ............... 359Capftulo 19 — Santa Ceia ........................... 367Capftulo 20 — Reconciliação Entre as Promes­

sas da Lei e do Evangelho.........373Capftulo 21 — A Ressurreição Final ..............378

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Capftulo 22 — 0 Governo na Igreja Primitiva . . 384Capftulo 23 — Governo C iv il....................... 387Capftulo 24 — Oração, Perpétuo Exercício da

Fé ........................................ 393Capftulo 25 — Meditando na Vida Futura........ 403Capftulo 26 — A Vida do Cristão — Argumento

das Escrituras........................ 408Notas........................................................415BIBLIOGRAFIA ........................................416

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PREFACIO

Guteriberg de Campos, luminar do púlpito em, nossa grei, sem ser ufanista, muito menos chauvinis­ta, de justo empolgamento se inflamava ao referir-se à gloriosa herança protestante na vida nacional, mor­mente à peregrina contribuição de tantas figuras de escol que honram o passado da fé evangélica nos rin­cões pátrios. É de lamentar-se que tantos heróis da Causa, “findado o labor desta vida”, sejam esquecidos nas penumbras do pretérito, desconhecidos das novas gerações, ignorados nos anais da história.

A Igreja Presbiteriana do Brasil, sem favor ne­nhum, conta, em sua não longa trajetória, com um acervo assaz elevado de vultos de primeira grandeza, que merecem lembrados com admiração e respeito. Pena que os esforços de Júlio Andrade Ferreira em le­gar-nos galeria mais profusa de nomes memoráveis tenha sofrido solução de continuidade! Destarte, ao olvido se votam legiões de grandes servos do Senhor que tão bem serviram ao Evangelho e tanto fizeram pela Igreja e pela Pátria. Mesmo enquanto aqui mili- tam, quão poucos recebem o reconhecimento a que

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fazem jus! Neste rol dever-se-ia incluir o autor deste livro, cuja carreira acompanho desde os tempos esco­lares, nada menos de cinco décadas!

De fato, é Wilson Castro Ferreira um dos mais nobres e dignos ministros de Cristo que a igreja Pres­biteriana do Brasil conta em seus quadros. Caráter impoluto, inteligência vivida, coração generoso, fé não fingida, espírito despretensioso, modesto, singelo, não ávido de humanas honrarias, nem sequioso por posi­ções de destaque. É bem verdade que, a despeito disso, foi por seus pares, sem politiquice nem malabarismos, guindado à posição de Secretário Executivo da Igreja, tecnicamente a mais importante da direção máxima, não chegando à Presidência, a honra suprema, tão co­biçada de muitos, porque se não prestava às manobras pouco lisonjeiras que o acesso a esse cargo passou a exigir. .

Em sua vida longa e abençoada, Wilson Castro Ferreira, hoje jubilado, tem sido o dedicado pastor, que serviu a muitas igrejas, o pregador vibrante, de mensagens incisivas, que ainda reboam nos progra­mas radiofônicos que implantou no país e se esten­dem até pelo exterior, o educador eminente, que mar­cou época no Instituto José Manuel da Conceição, a que dirigiu com especial proficiência, o professor di­ligente, que no Seminário Presbiteriano de Campinas, com incomparável consagração, por largos anos lecio­nou a gerações de seminaristas, o poeta espontâneo, a cantar as coisas da fé e as coisas da vida, o escritor operoso, autor de livros e mensagens que edificam e inspiram, levando a tantas almas o testemunho de Cristo e a palavra de confiança, mais do que tudo, po­rém, o estudioso incansável, que. por vezes várias, buscou em instituições do exterior os conhecimentos que melhor o assistissem na tarefa bendita de bem expor a Palavra de Deus. Enfim, um ministro fiel em toda linha, de quem a Igreja se deve orgulhar.

Paralelos vários se podem, plutarquicamente, assi­nalar em nossa própria carreira. Juntos estivemos nos dias longínquos dos estudos pré-acadêmicos no então chamado Curso Universitário José Manuel da Concei­

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ção; fomos colegas, a seguir, no Seminário Presbite­riano de Campinas, depois, no Seminário de Princeton, nos Estados Unidos, e, mais tarde, exercemos, lado a lado, no Seminário em Campinas, a docência teológica. Contudo, paralelo não menos de destacar-se é o acen- drado interesse que ambos nutrimos pela pessoa, obra e teologia de João Calvino, e isto de longa data, mercê do qual compendia ele a presente obra e eu mourejo na laboriosa tarefa de faser o Reformador falar em português as INSTITUTAS por inteiro.

Isto posto, ver-se-á que o livro que estamos, com grande honra nossa, a prefaciar, representa, por um lado, o fruto dessa sublimada admiração do autor a enfocar o homem de Genebra com aquela empatia que, só, habilita a compreensão genuína, por outro lado, a resultante de demorados e exaustivos estudos de au­tores de todos os matizes, como o atestam a longa bibliografia e as multíplices referências e citações. É, pois, uma contribuição, de modo nenhum sobeja, a somar-se às obras de Vicente Temudo Lessa e Théa Van Halsema, para constituir-se uma tríade de livros referentes a Calvino em português, o que, na parsimô- nia de nossa literatura teológica, é cifra relevante. Fui aluno de Temudo Lessa e ouvi-o ler, nos cultos a seu cargo, no Instituto José Manuel da Conceição, os ca­pítulos todos do seu livro. Do escrito de Van Halsema fui revisor da tradução para nossa língua e, ao depois, em 1973, vim a conhecer a autora, cujo esposo fora meu contemporâneo em Princeton. Destarte, os três livros estão-me intimamente associados. São bem di­ferentes. Pode-se dizer que em Temudo Lessa, o his­toriador profissional, falam os FATOS, em Van Hal­sema, a dama romântica, estampa-se a VIDA, ou, me­lhor, Calvino no cenário da sua vivência, em Castro Ferreira, o espírito prático, focaliza-se o HOMEM, a figura de Calvino como pessoa no viver, na influência exercida, nas idéias e princípios esposados e procla­mados.

Obra de leitura fácil, cursória, natural, sem pruri­dos técnicos nem linguagem arrevesada, flui como que em ligeiras pinceladas ou uma série de flashes vividos

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mas rápidos, que descortinam, o cenário todo num pa­norama de seqüência não espessas, nem pejadas. Lo­go, um livro que se lê com agrado e proveito, sem fatigar.

O autor divide a obra em três partes distintas. A primeira é propriamente biográfica. É Calvino visto no prisma de sua vida e carreira, em breves mas sugesti­vos capítulos. A segunda expõe-Uie a influência, desta­cados três níveis ou planos: educacional, ressaltada a incalculável contribuição de Calvino 'nessa área, desde a perspectiva pedagógica até o próprio cultural, a cul­minar na renomada ACADEMIA de Genebra; política, demonstrada a real visão de governo advogada pelo Mestre Picarão, embasada na justiça, nos direitos hu­manos e na ordem pública, em consonância com os ditames bíblicos, na realidade, a verdadeira formula­ção democrática hoje postulada, bem que se não sirva ele desse termo; e econômico-social, discutida a real direção de sua filosofia nesse setor, por sinal que tão mal interpretada por estudiosos prejudicados, que lhe inculcam os males atribuídos a um capitalismo desu­mano, quando Calvino, firmado na Bíblia, de um la­do, apregoa as virtudes do trabalho, da economia, da diligência, mas, de outro, o imperativo da responsabi­lidade social, da benevolência, do altruísmo, logo, da filantropia; a terceira é um breve apanhado, em linhas gerais, do conteúdo das INSTITUTAS, a obra máxima do grande pensador, uma como que súmula de sua teologia, em termos de seus tópicos principais, pena que demasiado sumária e não tão sistematizada como conviria ao leitor não familiarizado com a matéria.■ Ao nobre colega, Rev. Wilson Castro Ferreira, só há que agradecer-lhe a contribuição feita e rogar que Deus lhe permita enriquecer-nos com outros escritos relevantes.

Campinas, 2 de janeiro de 1985

Waldyr Carvalho Luz

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UMA PALA VRA DE INTRODUÇÃO

Por que mais um livro sobre João Calvino, quando há dezenas de obras sobre esse assunto, encarando os mais variados aspectos?

A pergunta tem a sua razão de ser. Todo livro tem uma explicação, deve ter. Pode ser que seja o pro­duto de determinada decisão, tendo em vista atender a uma predileção pessoal, sem maiores justificativas.

Escrevem-se livros como se fazem poemas ou se produz música. O artista tem que fazer arte.

Nascem os livros quase sempre de uma necessi­dade imperativa, por vezes meramente circunstancial, indiferente, em certos casos, do papel que esse livro vai exercer no futuro ou da extensão da sua influência.

Um certo Teófilo, de quem nada sabemos, em tor­no do qual há somente conjecturas, sendo algumas até grotescas, quis informar-se um pouco mais a respeito de Jesus, de quem havia ouvido histórias interessantes, mas para ele duvidosas. Lucas, ou porque era amigo íntimo de Teófilo, ou porque fora informado das suas dúvidas e ansiedade, julgou-se no dever de dissipá-las e oferecer-lhe uma exposição demorada, solidamente

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fundamentada, a respeito da vida de Jesus. E o fez com extrema dedicação, com grande habilidade, sob a ins­piração do Espírito Santo de Deus.

Disso resultaram dois preciosos livros do Novo Testamento: — o terceiro Evangelho e o livro históri­co dos Atos dos Apóstolos, os quais constituem um ri­quíssimo repositório de fatos, cujo conhecimento hou­ve por bem o Espírito revelar-nos para nosso provei­to e edificação nas coisas concernentes ao Eeino de Deus. E como seria bem mais pobre o registro das coisas referentes a Jesus e à Igreja primitiva sem es­ses dois volumes! •

Pouco saberíamos da infância de Jesus e nada sa­beríamos da obra missionária do apóstolo Paulo, de tal maneira que as suas epístolas se tornariam quase in­compreensíveis .

Com respeito a Calvino, diríamos que, embora haja abundante material em outras línguas, não o há em português. Há mesmo falta, que precisa ser preenchida.

Presbiteriano de origem, alimentei desde cedo, o desejo de conhecer melhor a vida e os feitos de João Calvino, pois achei que me deveria informar das ori­gens da denominação evangélica no meio da qual, pela providência divina, vim a nascer.

Fala-se muito em Lutero nos meios evangélicos, e não é sem razão, pois a ele cabe a glória de iniciar, por assim dizer, a grande reforma do século dezesseis. Não se fala muito em João Calvino, nem mesmo entre os presbiterianos. Parece haver um certo desinteresse com respeito à pessoa do Reformador, até mesmo en­tre aqueles que são seus descendentes espirituais dire­tos — os presbiterianos e reformados.

Como explicar isso? Mal informados a respeito, muitos preferem manter reserva sobre o assunto. Tal­vez fosse isso um estímulo a mais para que eu procu­rasse estudar a vida de João Calvino. Sempre gostei de investigar e saber a razão da minha herança espiri­tual.

Haveria alguma coisa em Calvino de que nos enver­gonhássemos?

Nos meus dias de estudante no seminário, julguei

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que deveria desvendar o motivo da atitude reticente des­se retraimento generalizado, até mesmo entre os alunos de teologia, com respeito à pessoa de João Calvino.

Li alguma coisa naquela época, mas havia tanto que ler obrigatoriamente em razão dos meus estudos, que não me sobrava muito tempo para ocupar-me em leitu­ras que podiam ser adiadas. Lembro-me do entusias­mo do meu professor de Latim e Português, de saudo­sa memória, Reverendo Vicente Temudo Lessa: costu­mava ler para nós, no Instituto J.M.C., capítulos ma­nuscritos de sua obra sobre Calvino, que ele escrevia na época. Essa obra deveria ser lida por todos os presbiterianos do Brasil.

Cheguei à conclusão, naqueles tempos, de que a difícil e, por isso mesmo, mal entendida e mal aceita doutrina da predestinação, era em grande parte res­ponsável pela indiferença com que se tratava Calvino. A impressão foi confirmando-se cada vez mais no meu espírito através dos anos. Além disso, o tão explora­do caso de Servetus (tão explorado pelos inimigos), tão mal conhecido nos seus pormenores, lançava uma sombra de desconfiança, quem sabe até desprezo, sobre a grande e insuperável figura de João Calvino, o Re­formador.

Infelizmente, por uma razão qualquer, talvez por quererem parecer muito liberais, alguns presbiteria­nos expõem argumentos de adversários de Calvino, ar­gumentos esses que sofrem, evidentemente, a força de preconceitos, para avaliar a sua pessoa. Por isso, al­guém afirmou que os evangélicos às vezes rivalizam com os católicos nas críticas a Calvino.

Em 1971, recebi da Federação dos Homens Pres­biterianos do Brasil, um convite para falar-lhes sobre Calvino e sua obra no seu Congresso Nacional em Re­cife. Aceite-o, alegrando-me por verificar que surgia no ambiente da Igreja Presbiteriana do Brasil, embora tardia e timidamente, um certo interesse em conhecer a vida do Reformador de Genebra. Estava eu, nesse tempo, envolvido com muitos afazeres, sobrecarrega­do com o número excessivo de aulas no Seminário, e

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outros compromissos. No entanto, julguei que não de­veria perder o ensejo que se me deparava para dedi­car algumas horas em pesquisas sobre Joáo Calvino e, ao mesmo tempo, tomá-lo mais conhecido entre seus descendentes espirituais das terras brasileiras.

Como é de meu feitio, procurei desincumbir-me dessa tarefa da melhor maneira possível, dentro das mi­nhas limitações. Atirei-me com afinco aos livros sobre o assunlo, roubei algumas horas de sono, li tudo o que poderia ler no pouco tempo de que dispunha, e fui des­cobrindo precioso material que, embora não tão abun­dante, enriquece a nossa biblioteca do Seminário do Sul, sobre esse importante assunto. Convém dizer que ali se encontram algumas obras de valor, ignoradas, quem sabe, por muitos que a freqüentam.

A tarefa se me apresentou cada vez maior, à me­dida que ia lendo monografias sobre Calvino, obras de sua autoria e parte das muitas mil cartas que escre­veu no seu diversificado ministério.

Fui a Recife, com sacrifício, numa viagem de ôni­bus, interminável, que deixou lembranças, convicto de que ia cumprir uma parte importante no programa daquele conclave. Tive a impressão decepcionante, de que o Congresso de Homens ali reunido estava muito mais preocupado em questões políticas eclesiásticas e outros assuntos do momento, do que em conhecer al­guma coisa sobre Calvino, sua obra, sua doutrina, e o legado espiritual que dele recebemos.

Senti-me, todavia, compensado pelo esforço feito, que não somente me tornara maior admirador de Cil- vino, como fizera renascer em mim, o desejo de, em havendo oportunidade, dedicar mais tempo ao estudo da obra fascinante do imortal Reformador de Genebra. Concorriam, para isso, as palavras de estímulo com que o Presidente do Supremo Concilio a mim se diri­giu no final das minhas palestras em Recife, com as quais me afirmava ter sido o meu trabalho uma das coisas mais sérias produzidas naquela reunião.

Posteriormente, recebi da Igreja Presbiteriana do

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Brasil a incumbência de ampliar o meu sucinto tra­balho, dando-lhe a forma de livro. Era mais um es­tímulo ao meu propósito. Os estudos feitos no Con­gresso foram depois publicados, sem revisão, contra a minha vontade, eivados de erros e supressões que se­riamente comprometiam o sentido do texto em alguns períodos, o que me causou natural aborrecimento. Via-me constantemente na obrigação de explicar as circunstâncias em que os mesmos haviam sido publi­cados, praticamente â minha revelia.

Os planos de Deus, no entanto, nem sempre dis- cerníveis ao nosso entendimento, aguardam a plenitu­de dos tempos conforme o seu desígnio superior. O meu interesse por João Calvino continuava vivo, mas, as esperanças de fazer algo mais significativo para torná-lo mais conhecido, iam se emurchecendo. Não ti­nha tempo, nem lugar para uma pesquisa mais ampla sobre o assunto.

Posteriormente, em 1975, ia aos Estados Unidos para ministrar um curso sobre a obra missionária no Brasil, no Calvin Seminary da Igreja Reformada, uma oportunidade que surgiu inesperadamente em momento muito propício.

O Calvin Seminary tem uma ótima coleção de obras de Calvino, incluindo livros raros e documentos de grande valor histórico. Nada me pareceu mais opor­tuno do que aproveitar o tempo que me restava das atividades no seminário para ler sobre o assunto. Atirei-me com fúria â leitura, fui tomando notas, pen­sando em usá-las de alguma forma, se outra oportuni­dade me aparecesse.

Meu tempo nos Estados Unidos venceu e tive que voltar ao Brasil, agora com encargos maiores e, por isso, com menos tempo ainda, pois trazia comigo a in­cumbência de estabelecer o escritório da organização que se encarregava da transmissão de mensagens evan­gélicas através do rádio — Luz para o Caminho. Devia escrever mensagens, manter vasta correspondênca, atender a consultas de ouvintes, e tc ...

Uma nova oportunidade veio agora, quando por ocasião da minha aposentadoria, a organização “The

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Back to God Hour” ofereceu-me, a título de prêmio, uma verba auxiliar para que pudesse dar prossegui­mento às minhas pesquisas sobre João Calvino. Deo Gratias !

Creio, porém, que há um motivo mais urgente e imperioso para publicação desta obra do que a minha predileção pessoal por João Calvino. Penso mesmo que, acima de todas as circunstâncias que cercam este empreendimento, está um plano de Deus para que isto aconteça. Calvino é uma personalidade que de tem­pos em tempos ressurge para atender a reclamos de de­terminadas crises, às quais a sua obra se torna perti­nente . É uma mina que não se esgota. Há uma necessi­dade por muitos sentida no mundo atual de uma re- descoberta de João Calvino.

Reyburn diz que João Calvino é “um dos homens mais odiados da história, no entanto, a animosidade é um tributo à sua força".1

Os problemas que afligem o mundo moderno, em particular a Igreja de Cristo, exigem essa redescober- ta, porque Calvino na opinião dos editores de suas car­tas, em edição recente, 1972, “é o profundo Scholar e o teólogo exato, o estadista esclarecido, o eminente Re­formador que exerceu uma influência na época em que viveu, a qual, ao invés de diminuir no lapso de três séculos, há de continuar crescendo, enquanto as grandes verdades que envolvem o presente e o futuro da humanidade, às quais ele tão lúcida e energicamen­te deu ênfase, forem incorporadas ao progresso da hu­manidade”.2

Numa excelente palestra pronunciada por John T. Mc Neill, em 1960 — grande estudioso da vida de João Calvino — afirma ele que, na primeira metade desse século, a imagem de Calvino tem alcançado no mundo intelectual uma estatura jamais atingida.3

Walker observa que, após a primeira guerra mun­dial, um novo interesse por Calvino fez surgir muitas obras a seu respeito. E diz perceber-se, então, estar em processo um reavivamento do calvinismo.4

Que essa voragem benfazeja, embora tardiamente, chegue a nós e que o Senhor seja servido utilizar este

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modesto trabalho como uma contribuição a esse des- pertamento entre nós. E que seja tudo como Calvino mesmo desejava — Soli Dei Gloriae.

Cabe aqui uma palavra de agradecimento:Primeiramente, à minha esposa, que, além do

constante apoio de sempre, suportou comigo uma lon­ga separação dos filhos e horas de solidão em nossa casa nos Estados Unidos, enquanto me entregava, dia após dia, ao trabalho de pesquisa. Agradecimento es­pecial à “THE BACK TO GOD HOUR”, o departamento de rádio e televisão da Igreja Cristã Reformada dos EE.UU. e Canadá, que me proporcionou um período de quase seis meses nos Estados Unidos, exclusivamen­te para o preparo deste livro. Agradecimento à “Luz Para o Caminho” e seu diretor executivo, Rev. Celsino C. Gama, pela responsabilidade que assumiu na publi­cação da obra. Agradecimento ao meu velho colega e companheiro de tantas refregas Dr. Waldyr Carvalho Luz, que, com sua peculiar capacidade e zelo, aceitou a tarefa de rever e prefaciar esta obra.

Wilson Castro Ferreira

Junho de 1984

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UMA ORAÇÃO DE CAL VINO'

Joel 2.32

“Sabemos, por esta passagem, que embora Deus possa afligir muito a sua igreja, ela será perpetuada neste mundo; pois não há de ser destruída, como não pode a verdade de Deus, que é eterna e imutável”.

“Permite, Deus Todo Poderoso, que assim como Tu, que não somente nos convidas constantemente a bus­car-Te, pela voz do Teu Evangelho, mas, também, nos oferece Teu Pilho como nosso Mediador, pelo qual um acesso a Ti está aberto, permite que possamos encon­trar-Te como Pai a nós propício. Oh!, permite que, con­fiados no Teu convite, nos exercitemos em vicüa na oração, de vez que muitos males nos perturbam de todos os lados e muitas necessidades nos acabrunham e nos deprimem; que sejamos mais prontos a buscar­-Te com empenho e nunca desfalecer no exercício da oração, até que, tendo sido ouvidos por Ti durante toda a existência, possamos, afinal, ser recebidos no Teu Reino Eterno, onde gozaremos da Salvação que nos tem prometido e da qual Tu nos testificas diariamen­te pelo Teu Evangelho. E para sempre unidos ao Teu Pilho Unigénito, do qual somos agora membros, pos­samos ser participantes de todas as bênçãos que Ele nos alcançou por sua morte. Amém.”

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Capítulo 1

UM HOMEM CHAMADO JOÃO

Plutarco, na sua obra imortal De Viribus Illus- tribus, ao tratar da vida de Péricles, nos informa que o grande general e estadista grego, era portador de uma deformação física que o enfeiava, fruto de um problema enfrentado por sua mãe durante o período de gestação. Tivera ela um sonho terrível com um leão, e a cabeça do filho nascituro tomou, em conse­qüência, a forma da cabeça desse animal feroz. Pé­ricles a tinha alongada demais.

Os poetas de Atenas, na época, não perdoavam es­sa deformidade e, daqui para ali, a estavam mencio­nando ou fazendo referências alusivas à anormalida­de. Os inimigos de Péricles, de modo especial, se va­liam dessa característica para ridicularizá-lo, empres­tando-lhe alcunhas, chamando-o cabeça de cebola ou coisa semelhante. Os amigos e admiradores procura­vam encobrir ou dissimular-lhe o defeito.

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Artistas, e entre eles o grande Pidias, que era ami­go particular de Péricles, cunhavam o seu busto com o capacete militar, disfarçando, desse modo, o alon­gamento irregular do crânio.

Há de ser sempre assim, não apenas com os gran­des, mas também com os pequenos como nós. Aque­les que não nutrem por nós simpatia ou amizade, por esta ou aquela razão, fazem a nossa caricatura. Dão expressão exagerada às características pouco apreciá­veis que nos distinguem. Se temos um nariz mais ou menos saliente, o caricaturista o fará parecido com o de um Pinóquio ou que tal. Os nossos amigos pre­ferirão um retrato retocado que elimine a crueza fria e inexorável da câmara fotográfica, impiedosa mas fiel.

Nem tanto à terra nem tanto ao mar. João Cal­vino oferece exemplo significativo desse fenômeno. O vastíssimo material que se tem produzido no mundo ocidental a respeito dele, revela a importância desse homem excepcional que Deus, na sua providência, pre­parou para uma obra gigantesca no seu Reino.

Os inimigos de Calvino, ou sejam, os adversários dà causa que ele representa e pela qual se ofereceu em holocausto vivo, exageram as suas fraquezas, transformam o seu zelo em tirania, a sua firmeza em ditadura e obsessão; negam-lhe alguns aquilo que ini­migos mais ferrenhos têm sido obrigados a confes­sar — o seu saber, a sua inteligência privilegiada, o seu absoluto desprendimento das coisas materiais, a sua firmeza de convicções.

Não lhe pouparam mal-versões, as mais descabi­das. Dão interpretação maldosa às suas melhores in­tenções. Se Calvino busca resolver o problema dos refugiados e perseguidos que cada dia batem às por­tas de Genebra é porque pensa ganhar adeptos em maior número para a sua luta contra os libertinos. Se Calvino guarda silêncio sobre o paradeiro e a ver­dadeira identidade de Servetus, quando este se en­contra foragido, e condenado pelo santo ofício, não é por tolerância, nem por paciência, nem por espírito cristão, mas é por sadismo e por sede de vingança,

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esperando cevá-lo para a oportunidade de o destruir espetacularmente.

Os amigos nos oferecem dele o retrato de um es­tadista invulgar de uma cultura vasta e profunda, de uma inteligência brilhante e rara, um protótipo de apóstolo e santo.

Homens como E. Doumergue, por exemplo, o classificam como um dos servos mais prodigiosamen­te ativos que a humanidade já possuiu, uma das von­tades mais tenazes, um dos trabalhadores mais labo­riosos, de inteligência e de vida, que o mundo jamais conheceu.

Outros, como Servetus, feridos no seu amor-pró­prio, nos seus interesses pessoais, não vacilariam em chamá-lo “Simão Mago, criminoso matador, desgra­çado, viu, e até ignorante, um cão a ladrar”.6

Faz coro com Servetus, Bolzec, expulso de Gene­bra, a apontar Calvino como vingativo, ignorante e até sodomita.

Admiradores e fiéis discípulos do Reformador, co­mo Teodoro Beza, não encontram palavras suficien­tes para exaltar-lhe a grandeza moral e espiritual e a insigne cultura e inteligência do mestre e do profeta de Deus.

Os homens do Conselho de Genebra que com ele privaram na intimidade, e que muitas vezes dele dis­cordaram, acabaram reconhecendo a legitimidade de sua luta e o seu esforço desprendido. São homens que o assistiram no fragor das mais violentas batalhas; que testemunharam os seus últimos momentos e que comentavam a sua morte com aquilo que bem pode­ria ser epitáfio de Calvino: “Deus lhe concedeu um caráter de grande majestade”. Essa majestade gran­diosa do Reformador de Genebra se torna mais evi­dente nas palavras do próprio Calvino, que não ali­menta nenhuma ilusão nem dúvida com respeito às suas limitações e fraquezas, reconhecendo que, se al­go possui, é fruto imerecido da Graça do Senhor; Gra­ça que ele, com tanto brilho, proclama e exalta na sua teologia e que reconhece no seu testemunho final: "Agradeço a Deus que não só tem mostrado rniseri-

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córdia para comigo, sua pobre criatura, e me tem to­lerado em todas as minhas fraquezas e pecados, mas, muito mais do que isso, me fez participante da Sua obra para serví-Lo no Seu trabalho; e não somente isso, mas com a mesma misericórdia e benignidade bondosa, graciosamente suportou-me com as minhas faltas pelas quais eu merecia ser exterminado por Ele; estendeu-me Ele a Sua clemência e benignidade e hou­ve por bem usar da minha instrumentalida.de para di­vulgação da verdade do Seu Evangelho. . . Não tenho outra defesa ou refúgio para salvação, a não ser na Sua adoção gratuita da qual somente a minha salvar ção depende. . . Abraço a graça que me é oferecida em Jesus Cristo e aceito os méritos do Seu sofrimen­to e morte, através dos quais todos os meus pecados são sepultados”.6

Este livro não é o panegírico de um santo, já que não temos santos beatificados e canonizados nos es­quadrões evangélicos; se nós os temos, hão de ser na acepção bíblica —- homens imperfeitos, pecadores, sal­vos por Jesus Cristo e que hão de ser libertados de todas as limitações, isentos de todas as falhas pró­prias de contingência humana. Homens que no outro lado do rio da morte irão se encontrar com Jesus, o Cordeiro de Deus, cujo sangue nos purifica de todo o pecado.

É fácil apontar imperfeições grandes, tanto em Calvino, como em Lutero, como no cordato Melanch- thon, ou no sábio e cordial Martin Bucer, que também teve os seus momentos de fraqueza e de abatimento. Nenhum deles se arrogava perfeição ou santidade; es­ta vam prontos a reconhecer as suas faltas e, muitas vezes, o fizeram. Todos eles sabiam o que o apóstolo São Paulo tão bem descobrira e proclamara, quando pensava nas suas realizações: — Não eu, mas a gra­ça de Deus em mim.

De modo que é só pela graça e misericórdia de Deus que nos podemos atribuir as excelências que em nós houver. É essa preciosa graça que burila e digni* fica, dando utilidade justa aos dons naturais que ve­nhamos a ter. Sem essa graça, sabemo-nos perdidos

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e miseráveis, faltos de qualquer valor, sem qualquer esperança.

Difícil é, às vezes, entender que os homens im­buídos de uma grande visão e identificados com uma grande causa, encarnando uma vocação divina que se torna a única razão de suas atividades e lutas, sejam não raro impacientes, intempestivos, quando sentem ameaçados os projetos de suas vidas, aos quais, para a glória de Deus, votaram servir de todo o coração.

Nem sempre se aceita que o mesmo homem que escrevera em termos tão severos aos cristãos de Co- rinto e da Galácia, seja o mesmo terno pastor que, de alma aberta, se dirige em palavras ternas de agra­decimento e afeição à Igreja de Filipos.

João Calvino era, indubitavelmente, um homem de excepcionais dons de inteligência e caráter, que nem mesmo alguns dos seus mais tenazes inimigos ousam negar. No entanto, a sua constituição física, já de si mesma frágil, foi dominada por enfermidades tantas e tão inquietantes, capazes de tirar a calma, o equilí­brio e a vontade de viver e trabalhar mesmo ao mais paciente dos mortais. Por outro lado, possuía a hu­mildade necessária para lamentar diante de Deus e perante os amigos mais íntimos seus resvalos e fra­quezas. A respeito dele poderíamos dizer, parodiando o apóstolo São Paulo: “Onde abundou a fraqueza, su- perabundou a graça”. Daí o nome que lhe foi dado por outras razões, mas que tão providencialmente se lhe assenta: João, que quer dizer, a graça de Deus. Um homem sim, chamado João, exemplificação autên­tica da superabundante graça que supre as faltas da nossa fraqueza humana.

Daí, não é de admirar que os homens do Concilio de. Genebra o tivessem chamado: “A boca de Deus”.

Há, por vezes, uma sensibilidade vesga, que pro­cura interpretar com disfarces a atitude de Jesus, quan­do expulsa os vendilhões do templo ou quando ver­gasta com palavras duras os fariseus, sacerdotes e es- cribas do Seu tempo. Há aqueles que só entendem Je­sus afagando as criancinhas, perdoando a pecadora e dizendo: “Vinde a mim todos vós, que estais cansados

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e oprimidos e eu vos aliviarei...”. Gostariam, quem sabe, que o Evangelho de João não registrasse o dis­curso em que Jesus se dirige aos judeus que se obs­tinavam em persegui-lo e em negar a Sua autoridade divina, contra todas as evidências: “Vós sois do dia­bo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os dese­jos". (Jo 8.44).

Dir-se-ía que Jesus tinha autoridade divina para falar desse modo. Vale a pena ler Posdick, no seu ve­lho mas sempre precioso livrinho “A Varonilidade do Mestre”, para compreender como o mesmo Jesus, com­passivo, amoroso, cheio de humildade na Sua varoni­lidade completa e acabada, era capaz de, pelas mes­mas razões que O fizeram abrir o coração com ter­nura aos infelizes carentes de misericórdia, indignar- se contra os que, satanicamente, se opunham à reali­zação da Sua obra.

Quem já tem vivido uma boa parte da existência, no convívio dos homens em qualquer sociedade, se quis fazer algo construtivo, se se empenhou apaixonada­mente por um ideal, há de ter experimentado o pre­ço que isso exige e que nada mais é do que ver, em muitos casos, atacada a sua moral, acusado de perfí­dia, de insinceridade, quando, nas melhores intenções, procurava acima de tudo servir a Deus e ao próximo.

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Capítulo 2

GÉRARD CAUVIN

Gérard Cauvin é um nome que passaria no ano­nimato, sem qualquer menção histórica, não fosse o filho ilustre que teve. Não se pode ignorar, contudo, que esse filho só pode ser o que foi pelo esforço do pai, que tudo fez para dar-lhe uma educação capaz de fazê-lo o melhor entre os melhores na sua carreira.

Encontramos Gerard Cauvin no princípio do sé­culo XVI, na cidade francesa de Noyon, na Picardia, bem casado, bem posto na vida, residindo numa das principais praças da cidade, participando ativamente da vida social, relacionado com as famílias graúdas do lugar e da região.

Procurador do capítulo da catedral, secretário do bispo, advogado, embora sem diploma, contudo influen­te e conceituado, G. Cauvin era dono de vasta cliente­la na região.

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Casara-se com Jeanne de Lafranc, jovem de gran­de formosura e reconhecida piedade, filha de abasta­do hoteleiro aposentado de Cambrai, agora influente membro da sociedade de Noyon.

Gérard, por sua vez, provinha de troncos humil­des: era de família rude. Seu pai fora barqueiro e acres­centara a essa profissão a de artífice em madeira; ori­ginário de Pont l’Évêque, cidadezinha a meia hora de viagem de Noyon, onde nascera Gérard Cauvin.

Pensa-se que o ambicioso jovem sentiu que sua terra natal era pequena demais para seus sonhos e ambições e, logo que pode, tratou de se situar em Noyon, pondo em jogo toda sua habilidade, de modo a cedo conquistar posição vantajosa. Gérard Cauvin era, sem dúvida, católico praticante, embora sem a pie­dade que distinguia a nobre esposa. Sonhava com um futuro brilhante para os filhos, especialmente para Jean, no qual adivinhava, desde cedo, uma inteligência privilegiada. Ao filho mais velho, Carlos, encaminha­ra para a escola dos capetos, assim chamada devido ao capuz que, à guisa de uniforme, os alunos usavam. Pois não era nessa escola que estudavam os meninós da família Montmor, sobrinhos do bispo? Não queria o notário menos para seus filhos. Os proventos que recebia e que não deviam ser tão pequenos, talvez fos­sem insuficientes para arcar com as despesas de edu­cação dos filhos como sonhava. Mas o seu status so­cial, que não queria perder, assim o requeria.

Gozava, no entanto, de prestígio para solicitar um benefício eclesiástico, primeiramente para o filho mais velho, Carlos, e, posteriormente, para Jean.

Em 1519, Carlos assumia os direitos da Capelania de La Gesine na Catedral de Noyon, que, no ano se­guinte, trocaria por outro, na mesma catedral e, dois anos depois, transferia para o irmão menor, Jean, este, então, com doze anos incompletos.

Que é que isso significa para o menino Jean, em termos de dinheiro e serviço à Igreja? Significava que o adolescente, cuja única ligação com o sacerdócio era a tonsura que recebera, ao assumir o benefício, se via provido das rendas que aquela capelania propiciava.

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Impossibilitado de exercer o sacerdócio pox mui­tas razões, inclusive pela pouca idade (uma vez que somente aos vinte e cinco anos poderia ser ordenado), conforme um costume muito em voga, um clérigo pa­ra isso combinado, realizava os atos eclesiásticos ati- nentes à capelania, recebendo uma parte da renda e entregando o restante ao titular do benefício.

Procuram alguns ver nisso uma semelhança às bol­sas escolares fornecidas a estudantes que se destinam ao ministério evangélico, ou, diríamos, às verbas pres- biteriais destinadas aos candidatos ao ministério evan­gélico (na Igreja Presbiteriana)> pois que tais benefí­cios subentendiam que o beneficiado se destinava à carreira do sacerdócio.

Gerard Cauvin, segundo se sabe, pensava em fa­zer do filho um clérigo.

Uma parte considerável das rendas desse benefí­cio se constituía em grãos, pagos pelos territórios ad­jacentes de Voienne e Espeville.

Quando mais tarde os estudos em Paris requereram maiores verbas, Jean Cauvin tornou-se também receptor das rendas do pastorado de Saint Martin de Marthe- ville (vinte e sete de setembro de 1527), que depois permutou pelo de Pont FÉvêque, terra de seus an­cestrais paternos. Pensam alguns que razões afetivas o levaram a isso. Teodoro Bezá afirma que, embora não ordenado sacerdote, Calvino pregou vários ser­mões na terra natal de seu pai.

Muitos biógrafos de Calvino procuram elucidar a questão dos benefícios eclesiásticos, mostrando como era comum a prática naqueles tempos, embora estra­nha para nós, hoje.

Generalizado era, então, o costume, pois o pró­prio bispo de Noyon teria sido receptor de um bene­fício, quando ainda adolescente, de modo que tão ar­raigada prática, não causava espécie, nem provocava escândalo, pois gozrva da aceitação tácita comò algo perfeitamente normal e natural.

Carlos, irmão mais velho de Calvino, cedo entra­ra para a carreira eclesiástica, que também terminou cedo. Notabilizou-se por sua vida dissoluta e desregra­

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da, na prática de erros comuns naquele tempo, mas em frontal desrespeito às leis da Igreja. Rebelado, tor­nou-se passível de penalidades eclesiásticas, morreu excomungado e impenitente, recusando-se a receber an­tes da morte o sacramento da Igreja.

Pela passagem de uma carta de Calvino a um ami­go, descobre-se que o irmão mais velho criara-lhe di­ficuldades financeiras, a ponto de ter que pedir di­nheiro emprestado a um amigo.

A questão de alguns, de que as dificuldades entre o irmão Carlos e a Igreja fossem o resultado de sua adesão à Reforma, não parece aceitável. Entende-se que o desejo de Gérard Cauvin de encaminhar Calvi­no para a carreira eclesiástica não era fruto de uma preocupação religiosa especialmente, mas o desejo de vê-lo subir nessa carreira com as vantagens sociais, políticas e financeiras que então propiciava. Mais tar­de, veria ele, não na Igreja, mas na advocacia, um fu­turo vantajoso para o filho e lhe daria ordens para mudar de estudos, seguindo nessa outra direção.

Convém notar que, a essa altura, as suas relações com o alto clero de Noyon já entrara em crise. Pode ser que os rumores da Reforma, que por lá já haviam chegado, criassem dúvidas no seu espírito quanto à conveniência de ter o filho no clero católico romano.

A filial obediência de Calvino às determinações de seu pai, o fariam deixar Paris e ir para Orleans, pos­teriormente para Bourges, em busca de um ensino mais apurado e mais atualizado do Direito.

Uma certa sombra de mistério paira sobre o fi­nal da vida de Gérard Cauvin, pois mesmo o filho Jéan, que lhe dera assistência nos últimos dias, interrom­pendo para isso os estudos, não nos oferece informa­ções a respeito, o que não é estranho, dada a natural reserva de Calvino em assuntos de tal intimidade.

O fato é que o administrador de bens da Catedral não terminou bem o desempenho dessa função. Falhou mais de uma vez na pestação de contas em alguns ca­sos e o conflito se exacerbou, ao ponto de ser ele ex­comungado. Teriam os desmandos financeiros de Car­

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los algo a ver com a situação desfavorável do pai? Não se sabe.

Não fosse a interferência de João Calvino» o pai teria sido sepultado fora dos terrenos sagrados.

Como haveria isso de aumentar os conflitos na alma de Calvino já nessa altura submersa em grandes lutas íntimas!

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Capítulo 3

A EDUCAÇÃO DE JOÃO CALVINO

A providência prepara os seus instrumentos, em­bora para isso utilize meios puramente circunstanciais e aparentemente contrários aos seus desígnios. O após­tolo São Paulo não tem dúvida disso, pois afirma que Deus o escolheu desde o ventre de sua mãe para ser o apóstolo dos gentios. E utiliza as coisas que são pa­ra confundir a,s que não são.

Em Noyon, à sombra da Catedral, famosa por suas relíquias, na casa do notário da corte eclesiástica e se­cretário do bispo, havia de nascer um menino que te­ria papel de grande importância na consolidação da Reforma do século XVI, contra a qual o poder ecle­siástico, ali tão bem representado, haveria de mover guerra feroz. Noyon estava fadada a ficar na história. Ali fora coroado Carlos Magno como rei dos francos, em 768. Ali Hugo Capetino, o primeiro soberano da linha dos Capetos, fora proclamado rei em 487. Isso

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quanto ao aspecto político. Quanto ao religioso, lá es- tavam guardadas as relíquias de Santo Eloy.

O número de igrejas era grande para o tamanho da cidade e o movimento religioso mais ou menos in­tenso, com peregrinos que vinham visitar as relíquias. A fertilidade do solo ao redor dava importância agrí­cola e comercial à pequena comunidade de umas doze mil pessoas. Era a sede de um bispado, e o bispo re­sidente, um dos doze “pares” da França, o que emprestava à sua autoridade espiritual um caráter tam­bém político. Os picárdios (e Noyon ficava na Picar­dia), se tornaram conhecidos por seu amor à polêmi­ca nas lutas nacionais.

Nos tempos de Calvino, alguns filhos da terra eram figuras intelectuais de destaque em Paris, como Lefrè- ve, Olivetan e Vatable, todos de Noyon. Ao aspecto educacional, Noyon podia se orgulhar de seu Colégio dos Capetos, assim denominado por causa do capuz usado pelos alunos. Tratava-se de uma escola corres­pondente ao nível primário e secundário, onde estu­davam alguns filhos de famílias graúdas e nobres, co­mo eram os Montmors, colegas de Calvino.

Nessa escola, o futuro Reformador iniciaria os seus estudos, tomaria as primeiras lições de latim e preparar-se-ia para estudos mais elevados na Univer­sidade, em Paris.

Em Noyon, enquanto a Europa começava a agi­tar-se com as questões religiosas levantadas por Lute- ro, ao pregar as suas 95 teses na porta da capela de Wittemberg, um menino franzino, moreno, de olhos castanhos e vivos, começava a preparar-se para ser, quem diria, o grande consolidador da Reforma, o au­tor da teologia dogmática, sólida, bíblica, postulador de uma ética e filosofia cristãs genuínas e de uma for­ma de governo democrático e viril.

Quem havia de pensar que Jeanne de La Franc, a meiga, silenciosa e quase mística filha do antigo ho­teleiro de Cambrai, havia de dar à luz em Noyon, ao menino que mais tarde abalaria os alicerces daquela igreja a que tão devota e piamente procurava obede­cer! E é Calvino que nos dá a entender que, levado pe­

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las mãos de sua mãe à igreja, se viu cercado, desde a infância, por um ambiente religioso que teria reflexos decisivos na sua carreira futura.

A sua crítica às relíquias, severa e até sarcástica, tinha uma origem longínqua; vinha do espírito de re­volta que muito cedo começara a sentir contra tudo aquilo que lhe parecia estranho, superficial e até gro­tesco.

Aos vinte e sete minutos da tarde, ou às doze horas e vinte è sete minutos do dia 10 de julho de 1509, nascia João Calvino, filho de Gerard Cauvin e Jeanne de La Franc. Conforme alguns, seria o segun­do filho, ou o terceiro, ou até o quarto na opinião de outros, se é que outros filhos morreram na infância.

Dentro de uma boa tradição católica, Calvino foi logo batizado, antes mesmo de completar um mês. Te­ve como padrinho um dos cônegos da catedral, Jean Vatine, de quem recebeu o primeiro nome. Mui cedo começaria Gerard Cauvin a descobrir no pequeno Jean as qualidades que o tomariam grande; desse modo, passou a alimentar o sonho de ter um filho famoso, alcançando o que ele não pudera alcançar em virtude das limitações que o cercaram no berço.

Gerard Cauvin valer-se-ía da amizade e confiança de que desfrutava da parte do bispo, não para supli­car favores desmedidos, mas a concessão de benefícios eclesiásticos que lhe permitisse educar os filhos na mesma escola em que estudavam os sobrinhos do clé­rigo. E os benefícios eclesiásticos foram concedidos, inicialmente, ao filho mais velho, Carlos, e, posterior­mente, a João Calvino, quando ainda contava menos de doze anos.

Aos estudos na escola local juntou-se a influência que Calvino recebia dos bons amigos e colegas que nela adquirira. Passou a freqüentar a casa desses ami­gos e se tomou quase um membro da família de Adria­no Hangest, parente do bispo, uma das famílias mais nobres da região. No convívio desse lar de gente da nobreza, Calvino aprenderia a etiqueta e as boas ma­neiras que regiam a alta sociedade, dando-lhe assim um toque de polimento e habilitando-o mais tarde, sem

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constrangimento, a movimentar-se com desenvoltura nas altas rodas, tanto em Paris, como em outros lu­gares.

O tempo passaria muito depressa e logo a escola de Capeto não poderia oferecer nada mais ao filho de Gérard Cauvin e aos seus colegas da família de Han- gest. É possível que Gérard Cauvin consultasse os ami­gos sobre o futuro do filho e, evidentemente, Paris se­ria o lugar indicado para o prosseguimento dos seus estudos. A conveniência de sair, atendendo a essa fi­nalidade, juntava-se a necessidade de fugir ao perigo da peste que começava a visitar de novo a cidade de Noyon, peste que, de tempos em tempos, assolava a província, ceifando implacavelmente muitas vidas.

Ainda aqui, as boas relações com o bispo influí­ram para que Calvino seguisse com destino à capital, em companhia de seus sobrinhos, sob a orientação de um mesmo tutor. Assim é que, nos seus verdes cator­ze anos, partia João Calvino para Paris. Inicialmente, residiria em casa de um tio, Jacó Calvino, um ferrei­ro, fabricante de chaves, de quem pouco ou nada se sabe.

Em Paris, a Providência lhe prepararia a oportu­nidade do encontro com um homem que teria impor­tante papel na sua formação intelectual, logo de iní­cio: Marthurin Cordier, ou Marturinus Corderius, que, indubitavelmente, influenciaria na sua evolução reli­giosa. Cordier era um homem de grande valor, e da mais alta reputação da França, como professor da ju­ventude. Mestre consumado do latim e do francês, ele­gante estilista e pedagogo. Embora professor de clas­ses mais adiantadas, para o que não lhe faltava com­petência nem habilitação, preferia ter como alunos ini­ciantes jovens, de modo a oferecer-lhes base sólida no aprendizado da língua, antes que se viciassem em er­ros tão comuns do tempo. Queria vê-los falando e es­crevendo um francê primoroso, isento de barbarismos e outros defeitos.

Adotara métodos modernos para o ensino da lín­gua, pois usava o que hoje chamaríamos o método di­reto, em que os alunos aprendiam a língua falando,

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conversando sobre coisas práticas, sobre assuntos da vida diária, versando sobre temas familiares. A ele se atribui a perfeição e elegância do francês que Calvino exibia. Na opinião de Abel Le Franc, professor do co­légio de Paris, Cordier fez dele um clássico comparado a Rebelais. Dele diz Le Franc: “Maitre unique l’un des Grammaires les plus distingues de le epoque”.7

É ainda Marturin Cardier que fez de Calvino o latinista perfeito, igual aos clássicos dos tempos de Sêneca. Pois era conforme Le Fránc: “Par excellence un latinista consume”.8

Dele não se esqueceria o aluno aplicado, pois o levaria mais tarde para Genebra, onde depois de en­sinar em Neuchatel, terminaria seus dias, na idade avançada de 85 anos, como professor da Academia que Calvino fundara.9

Foi pena que, por tão pouco tempo, estivesse Cal­vino sob a orientação pedagógica de Cordier, pois ti­vera que se transferir para outra escola. Do colégio de La Marche, Calvino foi para Montaigu, atendendo ao propósito de seu pai, que o destinara à carreira eclesiástica, pois ali se prepararia melhor para isso.

Pensam alguns que esta mudança de escola fora determinada pelo tutor de Calvino, levado por um ca­pricho injustificável. No entanto parece que a situa­ção de detentor de benefícios eclesiásticos, que custea­vam as suas despesas o subtendiam sua destinação ao clero, tenha influído nessa mudança, pois convinha justificar a concessão desses benefícios feita a Calvi­no. É Calvinó mesmo que nos diz ser intenção do pai destiná-lo à carreira eclesiástica.

De La Marche para Montaigu havia uma diferen­ça muito grande e a mudança foi chocante. Penning afirma que era um pulo no precipício. Cordier repre­sentava o progresso, a primavera, a delicadeza; Mon­taigu era o inverno, o velho método, o estreito conser­vadorismo, o chicote.10

Montaigu trazia o nome do bispo de Laose, Pier- re de Montaigu, que o reconstruíra 70 anos após a sua fundação. Ali estudou Erasmo, o grande humanista, antes de Calvino, e guardava sombrias lembranças do

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ambiente insuportável, da disciplina cruel, da falta de higiene, da comida mal preparada, dos vermes dos quais Erasmo dizia ter recebido maior porção do que da teologia que impregnava as paredes. Os .quartos eram próximos das privadas fétidas e infecciosas; muitos estudantes ali adquiriram enfermidades graves e incuráveis, alguns morreram e havia casos de ce­gueira, e até de lepra.

Além disso, os castigos corporais eram praticados com severidade e as horas de estudos esticadas, com tempo limitado para as refeições. Calvino, no entanto, não se queixava dos rigores da escola, aliás, não o en­contramos queixoso em nenhum lugar. Era estudan­te por vocação; era um filho obediente e aceitava com firmeza e paciência estóica as dificuldades que os es­tudos lhe impunham.

Dirigia a escola, no tempo de Calvino, o severc Noel Beda, intransigente na sua disciplina e rigoroso defensor da ortodoxia católica. Era um decidido ini­migo da Reforma e de qualquer novidade teológica que fosse de encontro à sua concepção doutrinária me­dieval. Perseguira Jacques Lefrève. um grande intelec tual, um homem pacífico e moderado, somente por­que via nele simpatias para com as idéias de Lutero. Lefrève, num estudo de um texto bíblico, dera-lhe in­terpretação diferente daquela então em voga, mos* trando que Maria de Betânia, Maria Madalena e a ou­tra Maria que ungira os pés de Jesus, na casa do dou­tor da lei, eram personagens diferentes. Foi o bastan­te para que se visse na necessidade de sair de Pa­ris a fim de evitar perseguição maior. A severidade que Beda imprimia à escola não poupara nem a irmã do rei, Margarida de Valois, que ali fora castigada com rigor. Não se pode negar, contudo, que Calvino ali adquirira uma bagagem de conhecimentos bem grande, que o fez versado na teologia de Tomás de Aquino, de Agostinho, de Jerônimo e outros grandes nomes do passado.

Ali também, possivelmente, adquirira a disposi­ção para algumas das enfermidades que bem cedo se

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lhe tomaram em verdadeiros flagelos, que, por fim, acabaram por vitimá-lo. O colégio de Montaigu gozava de grande reputação pelos seus métodos rigorosos, pe­la energia da sua disciplina, pela sua oposição ao hu­manismo; evidentemente, um lugar para se preparar clérigos na bitola em que Noel Beda os desejava ter. E não era para a carreira eclesiástica que o pai de Calvino o destinava? Então era ali o lugar onde devia passar uma boa parte dos seus tempos de estudante.

Talhado para o sofrimento, dotado de uma capa­cidade inata, quase incrível de suportar os incômodos de uma vida sem saúde, aplicado aos estudos, ávido de aprender, não perdia tempo em arengas e queixas e, com uma pertinacia heróica, foi adquirindo grande cabedal de conhecimentos, com rapidez e facilidade, que dentro em pouco o tornaram o melhor aluno da sua turma.11

Quando mais tarde, nas grandes polêmicas que en­frentou, Calvino revelou um conhecimento enorme dos pais da Igreja, era capaz de citar com facilidade e ab­soluta propriedade e precisão estes vultos do passado, bem como filósofos, surpreendendo amigos e adversá­rios. É porque soube esquecer as pulgas e ratos de Montaigu para dedicar-se aos tesouros do conhecimen to que ali se lhe oferecia. O seu aproveitamento des­pertou a atenção dos professores e se fez logo notó­ria entre os alunos a sua aplicação e capacidade de aprender.

Cadier, biógrafo de Calvino, nos conta que Luche- sius Smits descobriu 1700 citações de Santo Agosti­nho e mais 2400 referências a ele nos escritos de Cal­vino.12

Ali aprendeu Calvino a raciocinar e coordenar com maestria os argumentos e silogismos; ali consoli­dou a fama e o prestígio de bom estudante que vinha trazendo desde Noyon, e a admiração de antigos con­terrâneos e colegas bem como outros que granjeara em Paris. A sua vantagem em relação aos outros co­legas de classe, dado seu rápido desenvolvimento, va­leu-lhe a promoção em pouco tempo para estudos mais

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elevados das disciplinas de filosofia e dialética. Assim é que, em 1528, terminava o seu curso de artes que o qualificava a entrar para os estudos de Direito em Or- leans e Bourges.

Entende-se porque o mocinho tímido de aparên­cias pouco atraentes, de modos discretos fosse capaz de impor-se à simpatia e admiração dos que o rodea­vam, mestres e estudantes, onde quer que fosse, a pon­to de formar em todo lugar um círculo notável de amizades entre intelectuais e gente do povo. Calvino possuía por instinto a arte dificílima de viver em meio a um ambiente até certo ponto hostil aos princípios éticos que adotara, sem ser odiado ou evitado.

Alguns afirmam que, em Montaigu, recebera ele o apelido de “Caso acusativo”, dada a severidade e a in­transigência com que reprovava os erros dos colegas. Esta afirmação, contudo, parece sem fundamento e é contestada por Guizot, por Walker e por muitos ou­tros.

Aos 19 anos de idade, Calvino deixa o colégio de Montaigu e deixa Paris, isso em 1528. Já não era mais nem o menino ingênuo, o adolescente tímido que saí­ra de Noyon cinco anos antes, nem era, tão pouco, em matéria de religião, o mesmo incondicional fre­qüentador da Igreja e das cerimônias religiosas. Lon­ge estava ainda de ser o cristão evangélico, defensor intransigente das verdades bíblicas em oposição às inovações da Igreja., como se tornaria mais tarde. Con­tudo, e certo que levava consigo a semente dos ensi­nos da Reforma que recebera do seu parente Roberto Olivetan, com quem privara durante a permanência na capital. E não somente Roberto Olivetan, mas ou­tros teriam também procurado abrir os seus olhos pa­ra a luz do Evangelho que já então começara a bri­lhar com fulgor nas terras da França.

Roberto Olivetan traduziu o Velho Testamento pa­ra o francês e era zeloso e assíduo estudante das Es­crituras, descrente da Igreja Católica e aderente dos princípios defendidos por Lutero e outros Reformado­res. Nessa altura, o pai de Calvino já havia mudado

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de idáia com respeito à carreira futura do filho e de­sejava que ele seguisse estudos de direito, a seu ver, o caminho mais seguro para a conquista de posição, de riquezas, de honra, pelo que nos informa o pró­prio João Calvino. Discute-se a exata razão dessa mu­dança de posição por parte de Gerard Calvin.

Convém lembrar qúe não eram amistosas, nessa altura, as suas relações como o capítulo da catedral de Noyon. As razões todas não se sabe. Sabe-se que perdera a confiança dos homens da catedral e que, ao que tudo indica, deixara de ser o bom e correto admi­nistrador que antes tinha sido. Pode ser que a vida desregrada do filho mais velho lhe tivesse trazido di­ficuldades financeiras e lhe criasse complicações com os antigos patrões. Tudo isso poderia ter influído na decisão de indicar ao filho João as portas da escola de direito e não do seminário.

É Emanuel Stickelberger, notável escritor alemão que no seu estilo poético e pitoresco, assinala uma cir­cunstância curiosa da vida de Calvino, nesta fase: “No princípio de 1528, quando o picárdio João Calvino, cuja cabeça de 19 anos de idade seria logo decorada com o barrete de doutor, e sairia do colégio de Montaigu de Paris; um flácido basco para ali entrava vestido de andrajos, como se fosse um mendigo, por escolha vo­luntária. Os seus olhos brilhavam com fanático êxta­se, pois ele também desejava equipar-se com as ferra­mentas da ciência para o desempenho de tarefa que escolhera. Era ele Inigo Loyola. “Loyola entrava pu­xando um burrinho que trazia os seus livros, e ia a pé. “Inescrutável!” diz Stickelberger.13

A comparação entre Calvino e Loyola tem sido feita por escritores católicos, como Andre Favre Dor- saz.14 O paralelo é traçado colocando Calvino em po­sição desfavorável, tratando-o como se fosse um mór­bido, perturbado emocionalmente, inteligente, mas fra­co teólogo; ao mesmo tempo que exalta a grande ele­vação do fundador da Companhia de Jesus, evidente­mente, uma posição preconcebida e vesga.

Em obediência uma vez mais aos desejos do pai,

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Calvino se dirige para Orleans. A escola de direito de Paris não gozava da fama nem da notoriedade da de Orleans, agora enriquecida cota a presença de Pierre de LTEstoile — “O rei da jurisprudência”, como o cha­ma Penning.

Pierre de LTSstoile era um homem de reconhecida capacidade intelectual e um grande mestre de direito. Católico, ortodoxo, tendo enviuvado, ordenou-se sacer­dote, mas continuava lecionando. Orleans iria ofere­cer a João Calvino uma nova situação, inteiramente diferente daquela que deixara em Montaigu.

Para trás ficara a disciplina rígida de um ambien­te de ferro. Agora era a liberdade, o descontraimento de um clima- intelectualmente arejado; uma mocidade brejeira, até frívola, embora preocupada com o saber, pois Orleans era nesse tempo, mais do que Paris, a capital intelectual da França.

A fama de L’Estoile atraía muitos alunos de vá­rios lugares. Embora adversário da Reforma, era um homem de excepcional inteligência e de um espírito cordial e amigo. Quando Calvino foi para Orleans, a universidade contava com 3.000 a 4.000 estudantes agrupados em dez “nações” ou clubes, conforme a sua origem de países ou províncias. Calvino foi escolhido logo procurador da nação dos Picárdios, a sua provín­cia, naturalmente como resultado da confiança e da amizade que lhe devotaram os colegas conterrâneos, pois que nessa época tinha Calvino apenas vinte anos de idade.

O ambiente liberal não impedia que Calvino se im­pusesse uma rigorosa disciplina, a qual o obrigava a alimentar-se frugalmente, estudar até altas horas da noite, de manhã acordar cedo, e permanecer no leito recordando o que aprendera no dia anterior.

Em Orleans encontra Melchior Wolmar que, de­pois, iria também para Bourges e que seria ali seu professor de grego, além de amigo; dele Calvino rece­beria influências no que dizia respeito à Reforma, pois Wolmar era adepto de Lutero, um verdadeiro lu­terano. Há aqueles que atribuem uma profunda in­

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fluência de Wolmar sobre Calvino, neste sentido, fa­zendo-o quase totalmente responsável pela decisão re­ligiosa definitiva do aluno de grego. Pensa-se até que tenha ele influído para que Calvino deixasse Orleans e fosse para Bourges.

A correspondência de Calvino com Wolmar, pos­teriormente, não oferece base para essa conclusão.

Nem mesmo o oferecimento que lhe faz Calvino de um de seus comentários. No oferecimento, embora manifeste apreciação pelo ensino do grande mestre, não se refere a qualquer influência religiosa, como era de se esperar, se fosse o caso.15

Mais uma vez Calvino se destaca pela inteligência, pelo aproveitamento rápido e admirável. Dentro em pouco é distinguido pelo mestre L’Estoile com o con­vite para substituí-lo nas aulas, quando' precisa se au­sentar; e o fato se repete e Calvino o faz com tal pro­veito que muitos começam a ver nele um futuro subs­tituto do grande professor.

Como em Paris, Calvino se vê em Orleans cerca­do de bons amigos, alguns colegas e mesmo professo­res. Entre os colegas se destaca Francisco Daniel, que mais tarde, seria advogado influente em Orleans e com o qual manteria correspondência cordial e amiga. Da­niel era de Orleans, tinha outros irmãos e irmãs, e Calvino se tornou freqüentador assíduo e estimado do lar dessa família. Outro amigo é Duchemin, durante algum tempo companheiro de quarto de Calvino, a quem Calvino tem a liberdade de solicitar um emprés­timo quando os desequilíbrios financeiros de seu ir­mão Carlos o deixavam em dificuldades e aperturas.

A amizade com Francisco Daniel se estende por muito tempo embora não se torne ele um cristão re­formado, como Calvino desejaria. Mais tarde, em Ge­nebra, um filho de Daniel se torna objeto dos cuida­dos de Calvino.

Calvino devia deixar Orleans antes de completar o seu curso, mas a Academia, por voto unânime, resol­veu conferir-lhe o grau de doutor, livre de quaisquer despesas, considerando os serviços que ali prestara.

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Divergem os autores sobre se Calvino teria aceitado ou não esse grau. Beza parece acreditar que sim.

A ida de Calvino para Bourges prendia-se ao in­teresse que vinha despertando nos estudantes de di­reito o novo professor italiano, Andre Alciati, tido co­mo o maior advogado da época, insigne mestre de di­reito. Jovens de outras partes da Europa estavam indo para Bourges atraídos pela sua fama. Dizia-se que o rei da França o mandara vir da Itália, oferecendo-lhe o dobro do salário que alí recebia. Francisco Daniel também se transferira para Bourges, seguindo o exem­plo de Calvino. Sabe-se que o pai estava em sérias di­ficuldades com as autoridades eclesiásticas em Noyon, tendo sido até excomungado e que, nessa situação mor­reu. Contudo, não se tratava de um problema religio­so, tanto quanto se pode saber, mas de uma questão financeira; ou a falta de prestação de contas devida na administração dos bens da catedral.

A morte de Gerard Cauvin trouxe mudanças nos planos de João Calvino. Não continuaria os estudos t lei que encetara em obediência aos desejos do pai e que, com grande sucesso, conduzira tanto em Orleans como em Bourges.

Dirige-se agora a Paris. Vai dedicar-se aos estudos dos clássicos, ampliar os seus conhecimentos de gre­go sob a direção do grande professor dessa matéria, Danes; iniciar o aprendizado do hebraico com Vata- ble, ambos do colégio real fundado por Francisco I, indo residir no Colégio Fortet.

Ali se veria também cercado de um grupo de ami­gos, como Nicolas Cop e outros jovens juristas, inte­lectuais.

Saíra de Noyon. mas lá ficara o irmão Carlos, mo­tivo de preocupações para Calvino, e que tão mal de­sempenhara o papel de seu representante no recebi­mento do dinheiro devido aos estudantes e no enca­minhamento dos negócios da família. Foi, por isso, obrigado a tomar dinheiro emprestado do seu amigo e colega Duchemin. O irmão Carlos continuaria ser mo­tivo de preocupação para ele. Começa então a prepa-

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rar o livro da sua estréia como escritor, o seu comen­tário de Sêneca, ou Tratado de Clementia .

Não tinha Calvino 23 anos completos quando o livro foi publicado, em Abril de 1532. Calvino nunca deixou de estudar, de ler, investigar, mas parece que agora em Paris os seus estudos são menos acadêrr” cos. Começava a aflorar-se nele o grande intelectual, o escritor profundo, o crítico penetrante, o analista perspicaz, o filósofo meditativo e o teólogo exato, que havia de ser, insuperável na sua época.

A universidade era nova mas adquiria fama, pois com a proteção de Margarida de Angouleme vinha ar­rebatando professores de nome como Alciati. E Wol­mar também deixara Orleans para integrar o corpo da nova universidade. Era um grande intelectual, pro­fessor de grego que se deleitava em ler os clássicos com os seus alunos.

A impressão que se tem, contudo, é que Calvino ficou um pouco desapontado com Alciati. O professo» italiano era um fluente palrador, dono de magnífica retórica, mas quem sabe sem a lógica serena do gran­de L’Estoile, muito ao sabor de Calvino — metódico e organizado. Wendel, na sua biografia de Calvino, chega a dizer que ele ficou descontente com os pom­posos discursos de Alciati, os quais não lhe deixaram de ser úteis, pois que o encontro com esse mestre do direito por certo lhe instilou o gosto pela oratória bem cuidada, brilhante e cheia de enfeites. Uma polêmica parece ter surgido posteriormente entre os adeptos de L’Estoile e os admiradores de Alciati.

Duchemin, colega e amigo de Calvino. publica uma defesa de L’Estoile e pede a Calvino que a prefacie, o que ele faz. Julga-se seria esse o primeiro trabalho público da pena de Calvino de que se tem notícia (1529).16

Em Bourges, Calvino segue a mesma rotina de es­tudos dedicando-se afincamente aos livros. Passou a estudar grego com Wolmar, algo muito importante pa­ra a sua carreira futura. Tem que ir, no entanto, a Noyon, atendendo às notícias da enfermidade grave

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de seu pai, a quem assiste até ao final. Há um verda­deiro silêncio sobre a atitude religiosa de Gérard Cal­vin na fase finaí de sua vida.

Parece difícil pensar que o filho, já nessa altura profundamente influenciado pelas idéias da Reforma, não o tivesse levado ao conhecimento das verdades bí­blicas nos últimos dias da sua vida. Calvino, sempre reservado com respeito as coisas mais íntimas da sua vida particular, não nos dá nenhuma informação so­bre o assunto.

Percorrendo os fatos da vida de João Calvino com a perspectiva que hoje temos de mais de quatro sécu­los, é fácil acompanhar os sábios caminhos da provi­dência que, segundo os seus desígnios, vai traçando a rota do homem que, em tempo oportuno, havia de ser instrumento eficaz na realização de uma obra gigan­tesca, de conseqüências transcendentais.

Os planos, fossem eles de Gérard Cauvin, o pai, para atender suas ambições com respeito ao filho; fos­sem do próprio João Calvino, em obediência às suas inclinações naturais, eram, acima de tudo, planos de Deus na preparação do instrumento útil, designado pela sábia e soberana vontade do Senhor, para a exe­cução da Sua obra.

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Capítulo 4

UM NOVO RUMO

Discute-se a época e a maneira em que se deu a conversão de João Calvino ao Protestantismo.

Teodoro Beza atribui à influência de Pedro Ro­berto Olivetan, segundo alguns, primo de Calvino, na­tural de Noyon e tradutor do Velho Testamento do hebraico para o francês, o interesse inicial de Calvino pelas Escrituras Sagradas, as quais passou a ler e, em conseqüência, a sua aversão às superstições da Igreja e o seu afastamento das reuniões dos templos católi­cos.'7 Nesse caso, essa influência se iniciara muito cedo, pelo menos logo após a ida de Calvino para Pa­ris, onde estaria em contacto direto com Olivetan.

A dificuldade que se encontra em obter maiores informações sobre esse assunto é oriunda da reserva e retraimento de Calvino, que se abstém de tratar de suas experiências intimas.

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É ainda Teodoro Beza quem aponta Melchior Wol­mar, alemão adepto das idéias de Lutero e entusiasta pela Reform^, professor de grego de Calvino em Bour­ges, como um outro elo na corrente de influências que o levaram a uma decisão de caráter espiritual. E Be­za tem melhores condições de saber a esse respeito, pois não somente foi aluno de Wolmar, em cuja casa conheceu Calvino, como também foi o sucessor de Cal­vino em Genebra e com ele militou muitos anos. Aliás, Calvino mesmo reconhece essa influência e dedica mai,; tarde a Wolmar o seu comentário à Primeira Epístola aos Corintios, em sinal de gratidão.

Abel Le Franc, parente de Calvino pelo lado ma­terno, professor do colégio de Paris e um estudioso da vida do Reformador, pensa que a sua conversão tenha sido, embora repentina, fruto de um processo demorado, que vinha desde os dias da sua infância no lar em Noyon.

Uma demanda que segundo Penning,18 durou duas gerações entre a catedral de Noyon e a Abadia de' Santo Eloy sobre os direitos das relíquias desse santo, na qual Gérard Cauvin deve ter atuado como pro­curador da catedral; demanda que transcorreu marca­da de violentas agressões de parte a parte e que trou­xe desmoralização ao clero, deve ter calado na alma do ingênuo adolescente, filho de Gérard Cauvin, que no entanto era bastante vivo para compreender que havia algo errado em isso tudo.

O seu tratamento do assunto num trabalho so­bre relíquias, mostra com ironia e sarcasmo o ridícu­lo delas, como quem conhece de perto o assunto por experiência pessoal. O fato é que desilusões iam-se acumulando através de uma série de ocorrências e, começando a inquietar seu espírito ainda jovem, por isso buscou inicialmente no humanismo a satisfação que desejava, mas estava longe de encontrar.

Sabe-se que Calvino muito cedo começou a estu­dar as Escrituras e apreciá-las, fazendo delas estudos bíblicos, sem se definir com respeito à posição que devia tomar em relação à Igreja Católica. É bem pos­

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sível que a sua aceitação intelectual dos princípios da Reforma antecipasse por algum tempo a crise que resultaria na sua posição definitiva. Como intelectual, poderia, à semelhança de Erasmo, a quem admirava, assumir para com as Escrituras Sagradas a atitude de um diletante; para com a Igreja e a religião de sua infância, uma posição de análise crítica, sem, contudo, sair da sua grei.

A obra do Espírito de Deus, conforme o ensino das Escrituras e a interpretação da teologia calvinista, é qüe realiza a conversão verdadeira do homem, em­bora pará isso utilize instrumentos humanos. Essa obra tem aspectos misteriosos por vezes não inteligí­veis a nossa compreensão. Guizot afirma que a des­peito da estima que Calvino manifesta por seus mes­tres e da influência que sobre ele exerceram, nem o direito, nem o saber, nem qualquer das ciências ensi­nadas pelos professores poderiam satisfazer Calvino. Ele precisava de um alicerce mais sólido, mais con­sistente sobre o qual assentasse a sua vida.

Numa passagem da Carta de Calvino ao cardeal Sadoleto, o Reformador parece entrar em minúcias com respeito à sua vida espiritual e refere-se à forte influência que sofreu das idéias reformadas, as quais apontavam os erros da Igreja; revela a resistência tenaz que manteve, temendo pela unidade da Igreja; sentin­do-se, no entanto, cada vez mais perturbado, mais in­satisfeito, mais inseguro. Sadoleto, na carta que diri­gia à Igreja e ao Senado de Genebra, imaginou um ca­tólico e um protestante diante de Deus, apresentando cada um a sua posição religiosa. Calvino aproveita a deixa do Cardeal e, com muita astúcia, imagina um ministro protestante e um crente comum defendendo os princípios da Reforma, o que supõe que seja uma revelação da sua própria experiência. O ministro res­ponde que fora acusado de dois crimes horríveis, a heresia e o cisma, e defende-se, dizendo que a heresia nesse caso se constituía nos protestos contra dogmas opostos à luz da Palavra de Deus; alega terem mui­tas coisas sido introduzidas na Igreja em substitui­

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ção à Palavra de Deus, frutos do cérebro humano. Via entre aqueles que se diziam líderes, falta de conheci­mento das Escrituras e pouco interesse por elas, uma vez que tinham inventado muitas coisas inúteis como meios de buscar o favor divino. O discernimento para entender o erro dessa maneira de proceder, vinha da própria luz que o Espírito de Deus fizera brilhar na sua alma através da Palavra.

Com respeito à acusação de cisma, afirmava que a unidade da Igreja que desejava era aquela que co­meçava em Deus e terminava em Deus, pois como Deus mesmo nos recomenda paz e concórdia, Ele mes­mo nos mostra o único meio de preservá-la. Desejar, porém, a paz com aqueles que se gabam de ser os chefes da Igreja, colunas da fé, seria comprá-la com a negação da verdade de Deus; pois o Ungido de Deus havia declarado: “Passará o céu e a terra, porém, as minhas palavras não passarão” (Mt 24.35).

Uma outra declaração de Calvino que mais inti­mamente parece relacionar-se com a sua luta espiri­tual está no prefácio do Comentário de Salmos, pu­blicado em 1557, portanto, muito depois da sua con­versão .

Calvino se considera muito humilde para se com­parar a Davi, mas, vê um paralelo entre a experiência da elevação do pastor de Belém à dignidade real e a ação providencial de Deus na sua vida; que o tirou de origens tão humildes para a honrosa posição de mi­nistro e pregador do evangelho. Refere-se aos planos de seu pai para que se dedicasse ao sacerdócio e, pos­teriormente, estudo de leis, o que fez em obediência exclusiva à vontade dele e contra, ao que parece, à sua própria vontade, no que Deus, afinal, veio em seu socorro, orientando-o em outra direção, de acordo com a sua providência secreta.

Alude Calvino à sua obstinação em apegar-se “a superstições do papado” das quais lhe fora tão difí­cil sair, tal a profundeza do abismo em que se encon trava. Deus, porém, subjugou o seu coração, tornan­do-o dócil e dando-lhe gosto pelo conhecimento da

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verdadeira piedade, de modo que lhe ardia um gran­de desejo de alcançar benefícios dela. Calvino estava disposto a abandonar a todos os seus estudos nesta situação, uma vez que não sentia mais interesse por eles. Narra, ainda, a surpresa que teve quando algu­mas pessoas, desejosas da pura doutrina, o procura­vam para aprender dela quando era nisso apenas ini­ciante. Conta da sua predileção pelos estudos em lu­gar tranqüilo e quieto, e, no entanto, Deus o conduzia a várias experiências difíceis para que não tivesse re­pouso em lugar nenhum, conduzindo-o à luz e colo­cando-o em evidência.

Voltando agora à carta que escreveu ao cardeal Sadoleto, encontramos as palavras que Calvino põe na boca do cristão que passou pela experiência de con­versão do catolicismo à fé reformada; experiência que parece ser a de Calvino mesmo: “Quando pareceu que eu tinha feito todas essas coisas, embora em alguns intervalos gozasse de quietude, eu estava longe da ver­dadeira paz de consciência...”. Continua descreven­do a sua resistência aos ensinos que lhe eram apre­sentados pelos dissidentes da Igreja até que: “a mi­nha mente agora preparada para dar atenção, afinal percebi como se a luz tivesse caído sobre mim, mos­trando-me em que tipo de erros eu tinha andado e quanta poluição e impureza eu tinha assim contraído. Excessivamente alarmado pela miséria em que caira, e muito mais por aquela que me ameaçava na visão da morte eterna, eu, no cumprimento do dever resolvi como primeiro empenho conduzir-me ao teu caminho, condenando a minha vida passada, não sem lágrimas ou sem gemidos, mas ao invés da defesa, suplica fer­vorosa de julgar-me segundo a deserção e abandono da Tua Palavra. . . ”19 Tudo parece indicar que Calvi­no está falando de si mesmo, e assim pensam muitos de seus biógrafos.

Sabe-se que Calvino é sempre muito reservado com respeito as suas experiências religiosas, longe de pro­clamar em linguagem patética o que ocorre no seu ín­timo, retrai-se, refugia-se na sua teologia e através de­

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la expressa seus mais altos sentimentos. Faz-se por ve­zes a pergunta: como conciliar a reconhecida hones­tidade de Calvino e a posição inequívoca que ele foi sempre capaz de assumir em face da verdade, com a longa espera para uma decisão definitiva em relação ao seu desligamento da Igreja Católica e dos benefí­cios que lhe eram atribuídos e dos quais usufruía pro­ventos?

Aliás, costuma-se lembrar que Calvino foi pe­remptório na condenação daqueles que ele mesmo chamou de “Nicodemitas” — homens como Duchemin e Roussel, os quais embora no íntimo aceitassem a causa da Reforma, permaneciam ligados à Igreja Ca­tólica. A Roussel especialmente, Calvino incrimina com severas palavras, dizendo: “Um velho amigo ago­ra empreitado para aceitar o bispado em Oloron”.

Um exame detido dos fatos dará compreensão mais clara da atitude de Calvino, atitude que se obser­va em outros exemplos de conversão, nos quais, em virtude de certos fatores psicológicos, ela se processa através de uma longa demora até à decisão final. Por vezes, fruto da intervenção de acontecimentos excep­cionais que o Espírito de Deus sabiamente utiliza; se­ria o caso do apóstolo São Paulo, que por tanto tempo resistiu ao aguilhão da consciência até ser tombado por terra pela luz divina no caminho de Damasco.

Como foi difícil ao rabino Saulo de Tarso admi­tir a verdade do cristianismo, mesmo quando vencido pela argumentação decisiva de Estêvão; mesmo de­pois de ter testemunhado com os próprios olhos a co­movente cena da morte do primeiro mártir do cristia­nismo, com a serenidade de um santo, o rosto ilumi­nado pela paz interior, preferindo palavras de perdão e de intercessão em favor <âos próprios algozes?! E Paulo afirma que, perseguindo os cristãos, arrastando homens e mulheres aos tribunais, o fazia na ignorân­cia com sinceridade, julgando prestar um serviço a Deus.

Percebe-se que Calvino embora convencido dos erros em que laborava a Igreja — isso começou mui­

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to cedo — mantinha contudo uma extraordinária re­sistência ao que seria o rompimento com a sua reli­gião da infância, do lar, da cidade de Noyon, de sua mãe de tão gratas memórias. Parece que a palavra cismático lhe produzia sentimentos de terror e jamais poderia se sentir em paz com a consciência se parti­cipasse de um movimento para dividir a suá Igreja. E isto está muito claro na sua carta a Sadoleto quan­do se refere ao profundo respeito, que sempre man­tivera para com a unidade da Igreja: “Uma coisa em particular me fazia avesso aos novos mestres, a reve­rência para com a Igreja, mas, quando uma vez eu abri meus ouvidos e me permiti ser por eles ensinado, percebi que esse medo de depreciar a majestade da Igreja era sem base; pois eles me lembraram a gran­de diferença entre o cisma da Igreja e o estudo cor­reto das faltas pelas quais a Igreja mesma estava con­taminada”20 Aliás, foi essa sempre a agonia dos re­formadores; todos eles mantinham um profundo res­peito para com a Igreja e nem de leve lhes parecia possível uma separação dela. Foi exatamente isso que sentiu Lutero, pois o seu pensamento não era dividir a Igreja, mas reformá-la. E quanto esforço não fez nesse sentido! Escreveu Lutero ao Papa, lamentando as condições em que Roma se encontrava e apelando para que tentasse modificá-la.

Calvino sofre influência de muitos elementos, os quais, de uma maneira ou de outra, no todo ou era parte, aceitavam as idéias da Reforma, mas não esta- vam decididos a romper com a Igreja.

Homens como Luis de Tillet, que até chegou a se declarar do lado da Reforma por algum tempo, mas depois retrocedeu, com tristezas para Calvino, que ali­mentava por ele grande amizade. E Erasmo? Capaz de escrever o “Elogio da Loucura”, tão impiedoso na crí­tica ao clero; auxiliar indreito da Reforma com a publi­cação do Novo Testamento grego, entretanto comodista- incapaz de tomar posição clara e definida ao lado dos reformadores. Erasmo admirava Calvino e até chegou a prever nele o homem çfue ainda haveria de dar muito trabalho a Igreja. E Margarida de Valois, que fez da

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sua corte um refúgio para os perseguidos cristãos evan­gélicos, que oferecera proteção a Lefèvre, tirando-os das garras da Sorbonne, para que não fosse levado à fo­gueira quente, porque defendia a salvação pela fé, a semelhança de Lutero. Margarida não queria jamais uma separação da Igreja.

Lefèvre, contudo, não pensa em se desligar da Igreja Católica, sente entusiasmo por Calvino, admi­ra-lhe a inteligência e vê nele um futuro profeta da era evangélica. No peito, o velho Lefèvre alimentara a esperança de que um jovem como Calvino pudesse produzir o movimento de renovação espiritual a que ele mesmo não se abalançaria a realizar. Calvino para Lefèvre seria o profeta de uma nova ordem; e ser pro­feta é aquele que propõe pela sua palavra uma visão nova e espiritual, reformadora, e o jovem picárdio de Noyon havia de sê-lo. Lefèvre continuaria na sua man- suetude evangélica, irrepreensível, com o seu saber profundo e sua piedade não fingida, a orar e ajudar a muitos que haviam de ligar a sua vida à causa da Reforma com ardor indomável e coragem, como Farei e Vatable.

Margarida de Valois não mede esforços para sal­var a vida dos fiéis adeptos da Reforma. Pessoalmer te dedica-se ao cultivo espiritual, escreve seus piedosos poemas místicos, e com isso provoca as suspeitas da Sorbonne e até mesmo as iras de Beda, que estaria pronto a encaminhá-la às fogueiras da Inquisição; e que só não o faz porque não pode romper com a opo­sição do irmão de Margarida, o rei Francisco I. Che­ga a condenar os seus versos como literatura herética porque advoga a salvação pela fé. Margarida, no en­tanto, não deseja separar-se da Igreja e' mostra-se re­servada com respeito a Calvino, quando pensa que o jovem picárdio se encaminha para uma posição cis- mática.

Por pendor pessoal, inato, Calvino nunca seria um reformador no sentido em que o termo se enten­dia. Nada lhe agradaria mais do que afundar-se nos livros, estudar os problemas, buscar soluções e pro-

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clamá-las através da sua pena ágil, dextra e escorrei- ta. O seu papel era iluminar a caminho para que ou­tros mais vigorosos, com maiór disposição para a lu­ta, com vocação para a refrega, empreendessem a ca­minhada. Não sente pendor e nem disposição física para jogar-se numa disputa encarniçada de vida ou morte. E não o faz até que, arrastado pelas circuns­tâncias, contrariando a sua vontade pessoal, e esco­lha, descobre que é debalde lutar contra a vontade de Deus.

Aqueles que têm vivido o romance da vocação ministerial, sabem entender bem isso, porque tam­bém lutaram premidos pela visão de sua própria ca­pacidade apoucada e tentaram resistir a todas as for­ças que os conduziam rumo ao divino chamado, até que descobrissem não haver outra maneira de viver em paz consigo mesmo, e com Deus, se não aceitan­do o que tantas vezes tinham rejeitado, que, porém, en­tão se revelava de maneira clara e inconfundível co­mo determinação divina.

Mesmo depois da sua experiência de conversão, Calvino sonha estudar teologia, formular cuidadosa­mente à luz da Bíblia o credo dos novos cristãos, mas nunca assumir o papel de líder inconteste da Refor­ma na França ou na Suiça como lhe estava providen- cialmente reservado.

Ele era teólogo nato, o pensador, o intelectual por vocação; nada lhe dava mais prazer do que pes­quisar cuidadosamente a revelação dos mistérios de Deus nas Escrituras e, no emprego da mais rigorosa exegese, à luz dos textos originais e em comparação com o pensamento de homens como Agostinho for­mular uma dogmática evangélica precisa e exata.

Calvino havia de fazer isso, mas não como pen­sava; a sua teologia não haveria de ser acadêmica, de gabinete, e que talvez a fizesse árida, sem valor permanente, sem aplicação prática. O gênio de teó­logo iria se exercitar no fragor de uma luta de san­gue, de lágrimas, de sofrimentos físicos, de pressões inimigas constantes, para que, assim, a teoria fosse

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sustentada pela prática e a sua obra, por isso mes­mo, resistisse a todas as vicissitudes do tempo.

Não é por sua escolha que vai para Genebra, se não pela violenta admoestação de Farei, de que esta­ria fugindo a uma ordem divina e que não O pode­ria fazer temerariamente. Sim, Farei, o homem que fora conduzido a sua conversão por Lefèvre, o tímido Lefèvre! Recorda-se que a ele, Farei, Lefèvre disse­ra um dia: “meu filho, somente pela graça”, — o bas­tante para acender no coração ardente do jovem im­petuoso a luz verdadeira do evangelho. ,

Ninguém mais conteria Farei, movimenta-se em Paris, forma um núcleo de evangélicos; vai para Ba­siléia, percorre outros lugares e chega a Genebra, on­de produz uma verdadeira revolução que Calvino ja­mais poderia realizar, mas que ele, Farei, não pode consolidar, e, para tanto, precisa do teólogo das Insti- tutas.

Quanto mais preferiria recolher-se ao silêncio de uma biblioteca e garimpar nas minas das Escrituras o profundo sentido do evangelho! Quando expulso de Genebra, embora humilhado e ferido, sente, no entan­to, o alívio, pois agora pode fazer o que tanto deseja­va quando alí chegou.

A vista de tudo isto, torna-se mais fácil entender o processo demorado do rompimento definitivo de Calvino com a sua igreja de origem.

Retraído por temperamento, honesto para com Deus e para consigo mesmo, nutrindo um grande amor para com a Igreja do Senhor, não quer romper com ela, e só o faz na absoluta consciência de que segue indeclinável a orientação divina para a sua vida.

Há lampejos admiráveis nesta longa trajetória de Calvino que valem a pena lembrar.

De uma feita, em Poitiers, celebra a Santa Ceia em lugar escondido, uma caverna, segundo consta, com um grupo de evangélicos, com a mesma simpli­cidade bíblica de que a cerimônia se revestia na igre­ja primitiva: Lê uma passagem dos evangelhos alusi­va ao sacramento e preside à cerimônia sem as for­

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malidades da missa, o pão é consagrado e exposta a doutrina da Ceia do Senhor. Haveria nesse ato qual­quer incongruência inexplicável com a posição de Cal­vino até então? E Doumergue lança luz sobre o assun­to, quando nos conta que Calvino num debate a res­peito da Santa Ceia com Carlos Lesage, apontava pa­ra a Bíblia dizendo: “Aí está a minha missa e, desco­brindo-se, erguia os olhos ao céu como numa angus- tiosa oração, clamando: Senhor, se no dia do julga­mento Tu me reprovares por que eu não tenho esta­do presente à missa e eu a tenho abandonado, com justiça dizei: Senhor, Tu a não ordenaste; aqui está o Teu livro, aqui estão as Escrituras, que são as regras que Tu me tens dado, na qual não pude achar outro sacrifíció, senão aquele que foi ofertado na cruz”.21

É o gemido de um coração ansioso pela absoluta claridade, a qual vislumbra ainda em meio a nuvens de dúvida e confusão. É um homem absolutamente sincero, mas que não possui ainda a luz completa do dia perfeito.

Como bem aponta Walker, embora haja dificul­dades de entender o processo de desenvolvimento re­ligioso e conversão de Calvino, não há nenhuma dú­vida quanto ao resultado final: “Nenhum líder reli­gioso da era da Reforma se apresenta mais claramen­te definido do que ele, Calvino, em todos os aspectos de caráter espiritual, nos seus anos de maior matu­ridade. O processo, porém, pelo qual Calvino passou do status de um estudante sustentado por fundos de organizações eclesiásticas romanas e aceito como membro do clero romano, mesmo sem ordens cleri­cais, àquela posição de líder do protestantismo, é di­fícil de seguir em minúcias, em parte por razões da reticência do próprio Calvino com respeito a tudo que concerne às suas experiências íntimas; parcial­mente porque os seus primeiros biógrafos, não inten­cionalmente, distorceram os fatos da sua primeira vi­da religiosa, e, parcialmente também, em conseqüên­cia das várias interpretações que modernos historia­

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dores têm dado às indicações escassas existentes do seu desenvolvimento espiritual.

Muito bem, os últimos momentos de Calvino ates­tam como também a espinhosa carreira em Genebra, com rastos de sangue, a sua mais completa entrega a Cristo Jesus, fruto duma conversão legítima, tenha- se ela dado mais cedo ou mais tarde em sua vida, não importa.

Dentrq dele, nos recônditos da sua alma aflita, r voz irresistível do Espírito ressoou com clareza in­confundível o chamado de Deus, e ele obedeceu com humildade esse chamado para entregar-se inteiramen­te ao seu Senhor, como ele mesmo expressou em uma de suas obras: “Cor meum tibi ddbo".

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Capítulo 5

PEREGRINAÇÕES DE CAL VINO

Passemos, em retrocesso» uma vista nesse perío­do tão incerto da vida de Calvino. De Bourges, inter­rompendo os seus estudos, Calvino tem que ir a Noyon, aonde a enfermidade de seu pai o chama e onde per­manece até a morte de Gerard Cauvin. O desapareci­mento do progenitor marca como que um novo capí­tulo na vida do filho.

Há, possivelmente, negócios que o detêm alí por um pouco de tempo mais. Gérard Cauvin não estava apenas enfermo, gravemente; estava em sérios con­flitos com o capitulo da catedral, conflitos que resul­taram na sua excomunhão. Se essa situação de cará­ter econômico e moral tinha qualquer coisa que ver com a sua enfermidade, não sabemos. Ainda aqui Cal-

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vino é mais uma vez, como do seu feitio, absoluta­mente discreto.

É nesse período que escreve ao grande amigo Du- chemin e lhe dá conta, sem maiores minúcias, do agrar vamento da saúde do pai.

Não voltaria mais Calvino aos estudos de direito, pois estava livre do compromisso de satisfazer a von­tade paterna, e podia agora dedicar-se à carreira de sua preferência. O seu pendor natural era para letras clássicas, seguindo a linha humanista da época. Vai para Paris, reinicia os estudos de grego, começa a es­tudar hebraico, prepara-se para estreiar no mundo das letras com o seu comentário de Seneca, “De Clemen- tia”. O interesse no hebraico que já vinha de algum tempo, tinha relação, por certo, com a preocupação de melhor entender a Bíblia no que diz respeito ao Velho Testamento “De Clementia”, como veremos mais tarde, era uma obra de teor humanístico, que no aspecto ético bem se enquadra ao sabor de Calvino, que encontra na filosofia do estóico latino algo que se afina com a sua inclinação natural para uma vida de sobriedade e cultivo de virtudes.

Até então, Calvino era um expositor bíblico sem maiores responsabilidades, a não ser o dever de cons­ciência que o impelia a buscar, para si e para os ou­tros, na palavra de Deus os ensinos de uma vida cris­tã verdadeira.

Começara com grandes sucessos essa missão em Orleans, continuara quando em Bourges numa peque­na vila próxima, Laviere, e prossegue em Paris. Podía­mos dizer que nessa altura era apenas um católico, que a semelhança de Lefèvre, tomara uma posição di­ferente, livre das peias da dogmática e cerimonialis- mo católicos.

Em Paris vai residir em casa de Etienne de La- forge, rico negociante, ardoroso adepto da Reforma, onde os perseguidos reformados costumavam se reu­nir, um tanto sigilosamente. Calvino passa, então, a ser o preletor dessas reuniões.

Étienne há de ser mais tarde vim dos mártires da cuasa do evangelho, pois morre queimado, vítima das

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repressões violentas que de quando em quando se di­rigiam contra os cristãos reformados.

Um novo incidente vem imprimir rumo diferente na vida de Calvino. O reitor da Universidade de Paris era então Nicolas Copp, filho de Guilherme Copp, um médico de grande talento, natural de Basiléia, que che­gara mesmo ser o médico do rei da França. Calvino se tornara, desde os primeiros anos em Paris, amigo e freqüentador dessa família, especialmente de Nicolas. Essa amizade não haveria de se extinguir enquanto vivesse. Nicolas, mais velho do que Calvino quatro anos, brilhante intelectual, professor de filosofia na Universidade de Paris, encontrou em Calvino afinida­des que os ligaram permanentemente.

A 1.° de novembro de 1533, dia de Todos os San­tos, o reitor, cumprindo um costume de praxe, devia fazer um discurso. Pareceu-lhe ocasião própria para expor idéias que alimentava em dissonância com a rí­gida ortodoxia da Sorbonne. O discurso revela sim­patias com o pensamento de Lutero. A Sorbonne o re­pele e toma providências imediatas, contra o “trai­dor”. O parlamento o convoca para que sé defenda. Avisado do perigo, Copp foge para Basiléia.

Calvino, tido como autor, ou co-autor do discur­so, escapa, por pouco, à busca das autoridades que acabaram vasculhando o seu quarto e apreendendo seus livros. Oculto na casa de um vinhateiro, de lá sai disfarçado, com roupa de agricultor, uma enxada às costas. Dirige-se inicialmente para Angoulême. Luis Tillet, o cônego da catedral, concede-lhe refúgio e põe à sua disposição uma grande bbilioteca. Supõe-se que foi ali que Calvino começou a escrever a sua primei­ra edição das Institutas.

Dali vai para Nerac na Gascônia, refúgio de mui­tos protestantes que a rainha de Navarra acolhia, en­tre eles Lefèvre, vítima também das perseguições da Sorbonne, por causa de sua simpatia pelas idéias re­formadas.

Durante esse período, visita Calvino a sua terra natal, Noyon, e, segundo alguns, é preso como resulta­

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do de um tumulto na Igreja da Trindade. Não se co­nhece a razão exata pela qual Calvino foi preso. Pen­sa-se, todavia, que as notícias de seu envolvimento com o movimento da Reforma fossem conhecidas já em Noyon e isso provocasse o motim e, consequente­mente, a sua prisão.

A sua soltura deve-se talvez às amizades de que desfrutava ali e, especialmente, com alguns do clero. De Noyon voltou a Paris, ocasião em que marcou uma discussão com Servetus, à qual este não compareceu. Volta Calvino a Orleans, onde visita amigos. Vai pos­teriormente a Poitiers, onde por algum tempo se reú­ne com um grupo evangélico e faz exposições das Es­crituras, e celebra com esse grupo a Santa Ceia à ma­neira dos cristãos primitivos, em uma caverna. As reuniões eram mais ou menos sigilosas para evitar perseguições.

A severa investida contra os “hereges” como re­sultado do aparecimento em Paris dos CARTAZES (18 de outubro de 1534), que atacaram de maneira sar­cástica e insultuosa a missa, mostrou que a França estava se tornando cada vez mais difícil para os evan­gélicos.

Calvino foi para Estrasburgo, e daí para Basiléia (1535), onde estaria fora do alcance da Sorbonne. é aí que Calvino publica a sua primeira edição das Ins- titutas (1535-1536). Logo depois segue para Ferrara, onde os protestantes se abrigavam sob a proteção da Duquesa Renée de Ferrara, amiga dos reformados. Nes­se tempo alí se encontravam muitos outros refugia­dos.

Sabe-se que Calvino esteve em Aosta, uma peque­na cidade da Itália, de onde saiu perseguido. Um pe­ríodo de trégua na perseguição dos “hereges” na Fran­ça permitiu-lhe uma rápida visita a Paris, onde tinha negócios a tratar e, daí, a Noyon, com a mesma fina­lidade, isso em junho de 1536.

Levando em sua companhia o irmão Antônio e a irmã Maria, Calvino saiu para fixar residência, possi­velmente em Basiléia. A passagem forçada por Gene­

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bra mudou os seus planos» conforme veremos poste­riormente, pois assim determinava a divina Provi­dência.

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Capítulo 6

CAL VINO EM GENEBRA

Torna-se difícil elucidar certos passos de Calvino quando os autores mais fidedignos não têm informa­ções precisas, mesmo porque Calvino, sempre reticen­te e parcimonioso quando se trata de sua pessoa, — traço natural de sua personalidade, — nos deixa de fornecer a informação exata.

Procura-se conhecer um pouco mais de sua via­gem a Ferrara, que parecia ser de seu desejo prolon­gar por algum tempo, mas, que acabou sendo curta, pois ele mesmo diz que entrou na Itália para sair lo­go depois. Guizot nos informa que era intenção de Calvino pregar a Reforma na Itália, a cidadela da Igreja aiitiga, sob a proteção de Renée, filha do rei da França.

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A duquesa de Ferrara era filha de Luiz' XII, pro­tetora dos reformadores, esposa do duque de Ferra­ra, Hercules D’Este, o qual, pelo menos aparentemen­te, tolerava por algum tempo essa situação. Renée era uma mulher culta, intelectual, afeita ao estudo de lín­guas, geometria, astronomia e filosofia. Menos místi­ca do que Margarida, sua prima, acabou aceitando o protestantismo» depois de demorado exame. Ali Cal­vino encontrou outros refugiados protestantes.

A sua situação era muito delicada, por isto ado­tou um outro nome; costume embora estranho para nós hoje, mas perfeitamente comum e compreendido no tempo. Vários outros homens de importância usa­ram desse expediente para não cair nas garras da In­quisição. Mais tarde, a duquesa tendo ficado viúva, no seu castelo em Montangues, ocultou muitos calvinis- tas; alguns homens de alta posição.

Guizot nos afirma que o neto da duquesa, o du­que de Guise, cercou o seu castelo e a intimou a en­tregar os refugiados (1562), ao que ela lhe mandou dizer: “Veja o que está fazendo. Saiba que a não sero rei, ninguém tem direito de me ditar ordens; se quiser pôr em ação sua ameaça, eu serei a primeira a entrar na brecha Quero ver se tem ousadia sufi­ciente para matar a filha do rei, cuja morte os céus hão de vingar em você e seus descendentes, até as» crianças no seu berço” .22

Calvino nunca se mostrou indiferente à participa­ção da duquesa na proteção dos reformadores e tor­nou-se seu conselheiro e pastor, por correspondêncir em momentos muito difíceis ria sua vida. É ainda Gui­zot que nos afirma que Calvino pregou em alguns lu­gares no interior da Itália, mas teve que sair sob a perseguição que quase o apanhou. Refere-se a Pied Monte na vizinhança de Aosta, onde Calvino pregava na casa de uma família de alta posição, de onde teve que escapar rapidamente, atravessando uma passagem perigosa nos Alpes, perseguido pelo Conde De Chalan que com uma espada na mão o buscava por toda a parte.

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Cinco anos mais tarde (1541), uma cruz foi ergui­da na principal rua de Aosta, marcando o lugar de onde Calvino saiu perseguido, com a inscrição latina: “Hinc Calvini Fuga”. Outros lugares são marcados co­mo pontos históricos da sua visita

Há um outro incidente da vida de Calvino que é também cercado de dúvidas e sobre o qual muitos au­tores preferem silenciar por falta de informações se­guras. Afirma-se que Calvino foi preso em Noyon em 1534. Qual a razão? Querem alguns que ele tenha ten­tado pregar a Reforma na Catedral, o que provocou uma violenta reação contrária por parte do povo. Dou- mergue, sempre bem informado nesses assuntos, não aceita essa versão. Investigações nos arquivos de Noyon, não descobrem nenhuma acusação formal con­tra ele que o levasse a prisão. Deve-se lembrar que o irmão mais velho de Calvino fora acusado de heresia e excomungado pela Igreja. É difícil que nessa altu­ra, já em Noyon, as inclinações de Calvino para a Re­forma não fossem conhecidas. As notícias de heresia vinham de longe e acompanhavam ou precediam os envolvidos na Reforma onde quer que iam.

Parece que a sua permanência em Noyon se pren­deu à enfermidade do pai e às necessidades depois da sua morte de cuidar de algumas questões materiais. A verdade é que Calvino foi para Paris e, certo de que a sua pátria não lhe oferecia segurança depois de se ter tornado conhecido como franco adepto das idéias reformadas, resolveu deixar Paris, viajando com seu irmão Antônio e sua irmã Maria.

Partiu Calvino sem muita certeza aonde iria fixar residência — como Abraão partiu sem saber para onde ia.

Obedecendo a uma inclinação natural, pensava buscar um cantinho sossegado onde pudesse, no si­lêncio tranqüilo das bibliotecas, longe das ameaças que recebia, estudar mais e continuar servindo à causa da Reforma; não como um franco atirador, ou um líder, mas com a sua pena, na formulação apurada da dou­

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trina, o que já iniciara com a primeira edição das Ins- titutas.

A terra natal, Noyon, ficava para trás. Seu irmão mais velho já morrera e fora sepultado, rebelado con­tra a Igreja e por ela abandonado, apesar de sacerdo­te, depois de uma vida que em nada honrava o no­me da família. Seu pai lá ficara também sepultado, depois de conflitos sérios com a Igreja e excomunga­do. É bem possível que movido por um respeito filial que sempre demonstrava, embora não assumisse a de­fesa do progenitor, numa causa ingrata e pouco de­fensável, nas questões com a corte eclesiástica e a catedral, talvez se sentisse humilhado, envergonhado com o fim lúgubre a que chegara Gerard Cauvin, seu pai. Deviam ter sido dias de muita agonia e constran­gimento para Calvino ali junto ao leito do pai, mo­ribundo.

É fácil entender a posição incômoda, nesta situa­ção, face aos amigos da infância, os Hangests. Cum­prido o dever de sepultar o pai, ele e os irmãos sen­tiram que era preciso buscar outro lugar e esquecer Noyon. Estrasburgo ou Basiléia pareciam estar na mente do futuro reformador como possíveis lugares de morada fixa. Ambas ofereciam condições ideais pa­ra o seu plano de atividades intelectuais. Ambas as ci­dades eram então redutos de reformados foragidos; muitos deles intelectuais idealistas e ardorosos; estu­dantes e expositores das Escrituras.

Pensava aperfeiçoar as suas Institutas, ampliá-las como acabou fazendo posteriormente, dando aos cris­tãos refugiados um corpo de doutrina coerente, fun­damentado nos ensinos bíblicos. Seria a sua contri­buição à causa da Reforma.

Deus tinha outros planos para sua vida. Deus iria exigir dele muito mais do que Calvino estava pensan­do oferecer. O caminho mais curto para Estrasburgo estava naquela ocasião impedido.

Feriam-se batalhas entre os dois poderes em luta na época — o Imperador Carlos V e o Rei FranciscoI da França. Foi-lhe necessário passar por Genebra.

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Uma necessidade aparentemente acidental, segundo pensava Calvino; mas urgente e irreversível nos desíg­nios de Deus. Alguns afirmam que Calvino hospedou- se em casa de Viret, então um dos ministros da ci­dade; mas a sua presença ali foi descoberta por Tillet. Outros crêem que ele estivesse hospedado em uma pen­são onde Tillet o descobriu. Beza nos diz que Calvino foi visitar Tillet e Farei, como os homens fazem uns aos outros. Até então, de tudo que se sabe, Genebra não oferecia nenhuma atração especial a Calvino, pe­lo contrário, era o lugar menos indicado para uma vida de recolhimento e estudo. Acabava Genebra de se libertar do jugo discricionário do duque de Sabóia e da tutela de ferro do bispo, seu aliado. Uma luta de morte em que alguns patriotas deram o seu sangue, como Bertelhier. Não fora a ajuda de Berna e a ba­talha teria sido perdida. Berna, no entanto, auxiliara os genebrenses, não somente porque temesse o poder do bispo e do duque, mas também o fizera com se­gundas intenções, no desejo de assumir jurisdição po­lítica sobre a cidade. Genebra, todavia, outra coisa não almejava, senão a inteira autonomia.

Guilherme Farei, mais de uma vez arriscara a vi­da na pregação do evangelho ali, o que afinal acabou dando grande resultado. De uma feita, a armadilha en­gendrada pelo vigário geral (1532), tinha por fim ti­rar-lhe a vida; se amigos não o avisassem e o con­cilio não interferisse, a sua morte teria sido certa. De outra feita, quiseram lançá-lo no rio Ródano, uma das maneiras comuns de liquidar com os indesejáveis.

Estava ali Farei enfrentando o grande problema de estabelecer definitivamente a Igreja, mas sentindo- se insuficiente para tanto. Longe estava ele de ser o líder capaz de consolidar em termos positivos e per­manentes o grande triunfo alcançado. Ele que enfren­tara o ódio do clero, mas que acabara sendo levado pelo povo para pregar na Igreja de São Pedro, onde por tanto tempo os católicos pontificaram, fazendo do púlpito daquela igreja o seu trono, tinha agora, sobre os ombros a tremenda carga de estabelecer ali uma

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Igreja, nos moldes evangélicos e bíblicos como con­cebia.

Uma extraordinária virtude possuia Farei para aquela situação,,, virtude que demonstrou mais uma vez — humildade para reconhecer suas próprias limi­tações e alegrar-se com o surgimento de alguém que pudesse fazer o trabalho, que por si só não poderia desempenhar. Calvino chegara na hora providencial, exata.

Farei vinha sentindo a necessidade de alguém que o pudesse ajudar naquela emergência. Viret não se dis­punha a ficar, embora tivesse sido companheiro efi­ciente na sua grande luta inicial. Ao saber de Calvino, Farei foi imediatamente à sua procura.

É curioso notar que Tillet parece ter sido o por­tador da notícia de que Calvino estava na cidade; o mesmo Tillet que voltaria da sua posição de adepto da Reforma para a Igreja Católica.

Para Farei, a presença de Calvino ali era uma res­posta às suas orações. Aquele homem que Stefan

Zweig descreve como “feio, barba vermelha, cabelo in­domável” ,23 dirigiu-se imediatamente, a procura de Calvino com a resolução firme de não deixar escapar de suas mãos o elemento que, cria firmemente, ha­veria de realizar a obra para a qual se sentia pequeno demais Por isso afirma Wendel, não se pode subesti­mar, como se tem feito, o importante papel de Farei na reconstrução de Genebra. Menos dotado do que Calvino, menos metódico do que ele, mas ousado, va­lente, de grande decisão, teve o mérito de não só pre­parar o terreno com ingente sacrifício, mas também de agarrar o homem certo para consolidar a vitória que tinha alcançado, mas que não tinha condição de conservar.

É por demais conhecido o incidente do encontro daqueles dois homens — Guilherme Farei e Calvino. Insistia Calvino em dedicar-se aos estudos e em não aceitar de maneira alguma o convite do seu colega V para ficar em Genebra e com ele trabalhar na im­plantação definitiva da Reforma naquela cidade sui-

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ça. Impaciente com as desculpas de Calvino, Farei íoi ao ponto de ameaçá-lo, dizendo que Deus o cas­tigaria por essa fuga comodista à convocação divina. Tão incisivas foram as palavras de Farei que Calvino sentiu, como ele mesmo diz, parecer que Deus o agar­rava com a mão para aquele trabalho.

Genebra nesta época contava com uns doze mil a quinze mil habitantes. Segundo Guizot, “dentro dos seus estreitos limites se encontravam todas as crises, todos os problemas grandes e pequenos que podem agitar uma sociedade” .24 Duas coisas chegavam ali ao mesmo tempo — o bafejo da reforma religiosa e a liberdade política; aliás, intimamente ligadas uma a outra. O poder que antes dominava Genebra era po­lítico e clerical, tirano, sem prestígio moral e sem idealismo. A tarefa de banir um foi tarefa de banir os dois.

Longe estava Calvino de entender as condições reais que o esperavam. Nem mesmo Genebra tinha, àquela altura, capacidade de conhecer o grande mo­mento histórico que vivia, quando Calvino ali pôs os seus pés. Era ele inteiramente desconhecido. Não fo­ra a insistência e a teimosia de Farei, e o conselho da cidade não teria abonado o seu convite ao desco­nhecido francês. Sim, tão desconhecido, que nem mes­mo o nome de Calvino tinha qualquer sentido. O se­cretário das atas do concilio ao registrar a sua con­tratação não lhe lembrou o nome e apenas escreveu: “IUe gallus” — o francês.

Mackinnon afirma que até então nem mesmo Cal­vino tinha descoberto as qualidades de líder de ho­mens que ele próprio possuía.25 Modesto e despre- tencioso, rejeitara a posição de pregador que lhe qui­seram atribuir, aceitando apenas a de “Professor de Literatura Sagrada”. Como dizia mais tarde, sentia- se então como um aprendiz.

Não demorou muito, logo já participava ativa mente da pregação e da organização eclesiástica da Igreja de Genebra. As necessidades eram muitas. Ha­via urgência de um ministro qualificado para a evan-

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gelização e cristianização da cidade, problemas que continuavam a preocupar Farei, mesmo depois da chegada de Calvino.

Em uma carta dirigida a Fable datada de 1536, Farei afirma que vinha recebendo encomendas de um ministro de todos os lados sem poder encontrá-lo. E lamenta que “os super delicados” não querem vir pa­ra essa terra; preferem ser enterrados no Egito a se­guir a coluna no deserto.

Calvino conseguiu trazer para Genebra Courault, que antes trabalhara em Paris e então se encontrava em Basiléia. Courault era cego e já idoso; mas era eloqüente, persuasivo e bom evangelista.

O primeiro trabalho de Calvino, muito a seu fei­tio, foi redigir um manual de doutrina cristã para a Igreja de Genebra. Desse trabalho aproveitou, em parte, o que já tinha sido feito por Farei, em língua francesa. Uma idéia estava muito clara na mente de Calvino, desde que intentou escrever as Institutas — estabelecer os limites exatos que separavam os evan­gélicos da Igreja Católica, no que diz respeito à dou­trina e à prática.

O Concilio de Trento, convocado especialmente para lançar uma investida oficial e dogmática contra a Reforma, iria mais tarde firmar sua posição, isto é, a posição do papado, de modo a responder aos de­safios da Reforma, estabelecendo os seus próprios dogmas. Calvino se antecipara nisto, pois no seu en­tender era necessário não somente poupar os verda­deiros reformados das acusações indevidas que lhes eram assacadas e que se aplicavam a certos grupos dissidentes exaltados, fanáticos; como, ao mesmo tem­po, fornecer aos verdadeiros evangélicos a razão da sua fé solidamente calcada na Escritura Sagrada. A Igreja devia saber o que cria e que a sua regra de fé infalível era a Palavra de Deus. A doutrina não era sua, mas da Bíblia; dela cuidadosamente extraída com os recursos da boa e legítima exegese; com o conhe­cimento das línguas originais; dentro dos princípios da boa hermenêutica e da lógica.

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Logo depois de chegar a Genebra, Calvino par­ticipava de um encontro em Lausanne que o Concilio de Berna promovera para instrução dos ministros nos princípios da Reforma. O convite foi estendido a todos os padres naquele distrito e alguns dos mais hostis à Reforma tentaram uma emboscada no cami­nho para assassinar os protestantes; o que não ocor­reu porque o plano foi descoberto antes. Esse encon­tro ofereceu a Calvino oportunidade de fazer uma ex­posição bíblica, convincente sobre a Santa Ceia, em que a transubstanciação foi combatida de modo cla­ro e irretorquível.

A capacidade de Calvino para expor as Escritu­ras ia se tornando conhecida. O encontro de Calvino com Genebra haveria de produzir reações favoráveis e desfavoráveis dada a complexidade dos problemas em que se envolvia a cidade, fruto em grande parte da situação anterior Quando, em 1536, Calvino pu­blica a sua pequena confissão de fé, a introduz com as seguintes explicações: “Neste estado confuso e di­vidido em que se encontra a cristandade, julguei útil houvesse o testemunho público pelo qual as igrejas, embora separadas pelo espaço, concordes na doutri­na de Cristo, possam mutuamente reconhecer umas as outras”.

Quais foram as circunstâncias que tornaram a primeira tentativa de Calvino e Farei em Genebra num fracasso, senão total e permanente, pelo menos tem­porário e parcial? As razões eram muitas. Calvino pensava na igreja ideal, uma cidade de Deus, algo su­perior à “Utopia” de Thomas Moore ou à “Repúbli­ca” de Platão. No entanto, qual era a situação real de Genebra quando ali chegou?

Através de uma longa e acirrada luta de três dé­cadas contra a tirania do Duque de Sabóia — que apesar de ser autoridade secular se sujeitava quase a uma condição de vassalo do prepotente bispo que de fato governava — Genebra conseguira dele se li­bertar, de modo que a luta se desencadeara com fei­

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ções, não apenas política, mas religiosa, dado o en­volvimento do bispo.

Em 1526, expulsas as forças do duque e do bis­po, embora permanecessem na cidade esses dois ti­ranos, estavam com seus poderes tão limitados, que foi reorganizado o governo com o concilio de duzen­tos, à semelhança de Berna, mas agora coadjuvado por um concilio menor, e uma assembléia do povo. Nenhuma autoridade lhes restava.

Parei, que até então se encontrava em Berna após um ministério evangélico arrojado e bem sucedido em outros lugares, resolve visitar Genebra em companhia de outro pregador, Saumier, onde, Olivetan já vinha pregando com algum sucesso. Era muito difícil Parei permanecer quieto, sabendo de uma população como a de Genebra, onde ele bem sabia a pressão clerical e a desmoralização do clero preparavam o caminho do evangelho, onde gente da sua língua poderia ouvir dos seus lábios novas da salvação que ele encontra­ra para si mesmo. O seu método era agressivo. Não somente expunha a verdade do evangelho, mas, de acordo com as suas características pessoais, atacava com severidade o erro; castigava os vícios do clero; combatia o culto das imagens, de modo que o seu es­forço inicial encontrou seria hostilidade por parte dü povo instigado pelo clero. Ameaçavam áfogá-lo no rio Ródano, e acabou expulso da cidade com Saumier e Olivetan.

Uma outra tentativa sua surtiu um melhor efeito, até que, com o surgimento de interessados na causa dà Reforma, sob a intervenção direta das autoridades de Berna, teve licença de continuar pregando em Ge­nebra. O bispo e o duque não desistiam de lutar pela reabilitação de sua autoridade. Isso levou o concilio, sob a proteção de Berna, a convocar uma discussão pública, na qual explodiu a violência por parte da massa popular, que invadiu a catedral de São Pedro e praticou atos de iconoclastia e vandalismo. Afinal, os dois concílios, reunidos, resolveram adotar em 1536

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a doutrina reformada. Triunfava desse modo, legal­mente, a Reforma.

Farei era conhecido como o “azorrague dos pa­dres” pela franqueza da sua pregação, pela sua cora­gem desmedida, capaz de arriscar a vida como de fato arriscou, em prol da Reforma.

Era um triunfo, sem dúvida, mas longe estava Ge­nebra de ser uma cidade evangélica. O culto reforma­do, e um sistema educacional compulsório, agora sob a direção de Saumier, e um conjunto de regras ado­tadas, favoreciam o esforço da causa evangélica.

A assistência aos cultos se tornava obrigatória e medidas se tomavam para a moralização dos costu­mes da cidade. Deve se lembrar que, a despeito da insatisfação geral do povo com o cruel regime que por longos anos dominava a cidade, havia, no entan­to, aqueles que, por uma razão ou outra, .continua­vam fiéis ao duque e ao bispo. Lá dentro ficava parte do clero descontente com a perda de privilégios. Além disso, uma reforma de cunho político não produz efei­tos morais e espirituais necessários, que somente a transformação individual de cada cidadão pela ação do Espírito de Deus pode trazer. Como afirma Walker: “Genebra estava longe ainda de ser protestante por condição doutrinária” .26

A grande imoralidade praticada pelo clero, que tão mau exemplo perpetrara na sociedade, tornava impossível uma transformação rápida, apenas por de­cisões de caráter governamental. O felicíssimo moto que a cidade escolhera em meio às efusivas manifes­tações de regozijo pela sua libertação, era menos uma realidade presente do que uma afirmação profética: “Post Tenebras Lux” — depois das trevas a luz. A luz conseguia apenas entrar por algumas frestas, es­guia. As condições em que a cidade se rendera à re­forma exigiam medidas certas, bem calculadas para a sua consolidação. Calvino sabia que uma decisão to­mada em assembléia, no calor- de uma explosão festi­va, por uma população que começava a sentir o alí­

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vio da libertação de um jugo pesado e desumano, não era bastante.

Beza nos conta que Calvino procurou logo obter uma reunião de todo o povo, na qual houvesse da parte da cidade inteira uma abjuração aberta do pa­pado e um juramento público da aceitação da reli­gião cristã, de sua disciplina, formulada sob alguns temas principais. Houve a reunião, mas não com a influência que Calvino desejava. Um grande núme­ro se recusou a isso, como era de se esperar de uma cidade que acabava de ser libertada da pressão do duque e do “Anti-Cristo”, onde tantas divisões havia.

Em 20 de julho de 1537, o Senado e o povo d< Genebra solenemente declararam sua aceitação das principais doutrinas e disciplinas da religião cristã.27 Restava agora que o catecismo e a confisssão de fé, que o povo em geral e o concilio tinham aprovado, fossem confirmados por uma subscrição individual. Alguns oficiais do governo foram destacados para vi­sitação das casas, a fim de obterem a assinatura inr dividual dos documentos. O resultado foi de todo in­satisfatório. Muitos se recusavam sob várias alega­ções. Promoveu-se uma reunião dos habitantes da ci­dade, por bairros, como escalonamento em dias dife­rentes. Essa medida também fracassou, pois o com- parecimento foi pequeno. Começou o concilio a pei- ceber o desacerto dessas medidas e resolveu afrouxaras exigências.

Posteriormente, o concilio chamou a si a jurisdi­ção da comuna em assuntos morais e religiosos; con­trariando dessa forma a posição de Calvino, que sem­pre julgou o poder civil incapaz de resolver assuntos morais e religiosos, os quais deviam caber à Igreja, por suas autoridades ou consistório, como mais tarde se veio a fazer.

Compreende-se que, segundo os padrões estabe­lecidos por Calvino e seus companheiros de ministé­rio, havia em Genebra, como herança de tempos pas­sados, costumes inconvenientes e práticas detestáveis, incompatíveis com a ética cristã. Havia bebedeira, dis­

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cussões, adultérios, etc. . . A prostituição era oficia­lizada, sancionada pelas autoridades. Os prostíbulos eram supervisionados por uma mulher eleita pelo concilio, que recebeu do povo o nome de “rainha do bordel”. Além das bebedeiras.e dissoluções, jogos, a quebra do domingo, os casamentos e outras festivi­dades celebradas com pouca discrição e muita pom­pa, fugiam ao recato e modéstia que os reformado­res, segundo o seu entender, julgaram necessário es­tabelecer numa sociedade verdadeiramente evangé­lica.

Em Berna se fizera assim, a decisão pública foi conduzida pelo concilio e levada à aceitação geral em 1528. A doutrina reformada, contida em dez artigos, introduzia o culto evangélico à maneira reformada sob a orientação sábia de Haller.

Em Basiléia, já há muito que a reforma se fir­mara, debaixo para cima, pois fora o povo que exigi­ra do concilio a adoção do culto reformado e outras medidas.

Em Genebra os pregadores se serviam do púlpito não somente para condenar os males alí existentes, mas também para censurar as autoridades que negli­genciavam a repressão desses males de modo eficaz. O descontentamento foi crescendo contra Calvino e Farei da parte do povo, bem como do concilio que deles ia se afastando cada vez mais, tomando inicia­tivas de reprimi-los.

Nas eleições que se deram em 1538, a oposição a Calvino e a Farei obteve fácil vitória, aumentava no concilio o número dos elementos favoráveis a uma atitude mais liberal com respeito aos costumes. Al­guns problemas vieram agravar a situação de Calvino e seus colegas de ministério. Uma delas foi a questão da Santa Ceia, que na opinião dele não devia ser mi­nistrada a quem estivesse em estado de pecado no­tório. Incluía-se na lista destes pecados, o jogo de car­tas, o excesso na maneira de vestir e nos pentea­dos. O concilio no entanto, decidiu que só não parti­cipariam da Santa Ceia aqueles que, por sua decisão

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própria, se afastasse, todavia não admoestava o povo contra a crítica que se vinha fazendo aos pregadores.

Calvino dizia que preferia morrer, a estender os elementos da Sagrada Comunhão a quem estivesse em pecado grave.

Uma outra questão veio agravar a posição, já pouco segura, de Calvino e seus companheiros. Ca- rolli, um homem que, tendo aderido à causa da Refor­ma, por mais de uma vez voltara a Igreja Católica, estabelecera-se por algum tempo em Genebra; agora, na qualidade de cristão reformado, onde a sua falsi­dade se tornou evidente, que lhe valeu a censura de Farei. Não somente o seu procedimento moral era reprovável, mas chegou a ser apanhado em apropria­ção indébita de fundos destinados aos pobres. Apesar disso, conseguiu, indo para Neuchatel, ser feito minis­tro da igreja, onde se casou. A sua duplicidade foi-se aos poucos revelando, mas com a ousadia e desenvol­tura que lhe eram peculiares, conseguiu superar as suspeitas que contra ele começaram a surgir, e pre­parar um plano de vingança contra Farei e Víret, que o tinham reprovado pelo seu procedimento incorreto e desonesto. Nova acusação surgiu contra ele na as­sembléia, dessa vez, que vinha pregando oração pelos mortos, Viret trouxe-a por parte do consistório de Berna, Carolli viu-se obrigado a retratar. Embora Vi­ret e Calvino, que estavam presentes, tivessem trata­do com amor o seu caso, por ele intercedendo para que não sofresse castigos maiores, logo depois Carolli apresenta uma acusação contra Calvino perante a as­sembléia, de que não aceitava ele a doutrina da trin­dade.

Embora Calvino fosse surpreendido de impro­viso, explicou-se de maneira clara. Carolli voltou à car­ga mais tarde e não foi sem muitos aborrecimentos para Calvino que Carolli banido pelo concilio de Ber­na, depois de obrigado a confessar a inocência do seu acusado, voltou a reconciliar-se novamente com a Igreja Católica. Com a sua argumentação ardilosa, no

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entanto, Carolli conseguiu abalar a confiança dos ho­mens de Berna, na posição ortodoxa cte Calvino em relação a trindade, até que pudesse de modo irretor- quível mostrar a sua firmeza e solidez nesta doutri­na. Desta batalha Calvino saiu profundamente abati­do e desgastado.

Wendel acha que o episódio deixou marcas pro­fundas no espírito de João Calvino e talvez tenha in­fluído na sua atitude intransigente contra Servetus.28

Uma outra questão de menor importância, masde repetidos aborrecimentos, veio acrescentar afli­ção aos aflitos. Berna — e creio que isso pesou na posição do caso de Carolli —- mantinha desde o prin­cípio certas práticas divergentes da igreja de Gene­bra. A Santa Ceia era celebrada com pão sem fermen­to. A Igreja usava em Berna a pia batismal. Celebra­vam-se ali algumas festas religiosas, como Natal, Ano Novo, Anunciação e Ascenção, além de outras peque­nas diferenças. Calvino não dava muita importância a estas questões, julgando-as secundárias e do arbítrio de cada igreja; mas, ao que parece, por solidariedade a Parei, que era irredutível sobre esses assuntos, não as aceitavam na Igreja de Genebra. Os homens do con­cilio de Genebra, solícitos em obter as boas graças de Berna — uma aliada sempre indispensável à segu­rança de sua independência — resolveram adotar, a revelia de Calvino e dos outros pastores, as práticas litúrgicas da Igreja de Berna. Era, segundo pensavam, uma intromissão muito grave e muito séria do conci­lio em matérias de exclusiva competência da igreja — tratando-se de assuntos de doutrina e de liturgia. A situação se agravou ainda mais quando o velho Cour- rault, o pregador cego e idoso, nem por isso mais prudente, pediu para ser levado ao púlpito e pregou um sermão violento e insultuoso às autoridades de Genebra. O concilio o proibiu de pregar desta data em diante, mas ele desobedeceu e foi preso. No dia seguinte, Calvino e Parei compareceram ao concilio exigindo a soltura de Courrault. O concilio não so­mente rejeitou a exigência, como lhes deu ordens ex­

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plícitas para que se conformassem aos ritos de Ber na. Calvino e Farei não apenas recusaram a aceitar a imposição, como também declararam, perante o con­cilio, que não administrariam a comunhão do domin­go da Páscoa, que estava próxima, alegando que não poderiam dar a Santa Ceia a uma cidade onde havia desordens e dissolução. De novo, o concilio se reuniu no dia seguinte e lhes ordenou não somente a celebra­ção do sacramento, mas a fazê-lo com uso do pão sem fermento, de acordo com o costume de Berna. Ante a recusa em obedecer tal ordem, o concilio os proibiu de pregar. Apesar disso, tanto Farei como Cal­vino pregaram duas vezes naquele domingo. Os âni­mos estavam muito agitados. Houve alvoroço na igre­ja; alguns chegaram a arrancar a espada contra Cal­vino, o que levou à intervenção de alguns para evitar derramamento de sangue. No dia seguinte, o concí lio se reuniu e determinou a expulsão de Calvino e Farei da cidade, dando-lhes o prazo de três dias para ) se retirarem. Courrault foi solto com a intimação de acompanhá-los no banimento. Ao receber a notícia respondeu Calvino: “Se eu fosse servo dos homens, teria então recebido uma triste recompensa, mas, bem que estou servindo aquele que nunca deixa de fazer aos seus o que lhe tenha prometido” .29

Os pastores de Genebra sairam em obediência à ordem do Concilio aprovada pela assembléia, dentro do prazo estipulado.

Para onde ir?Inicialmente para Berna, onde foram bem rece­

bidos, a princípio, mas depois do Concilio de Zurique, onde Farei e Calvino tiveram oportunidade de expor o que acontecera, Berna mostrou-lhes certa frieza. Sa­be-se que há diferença dos ritos do batismo e Santa Ceia e a questão dos dias de festas à moda de Berna fora usada contra os pregadores para ganhar as boas graças de Berna.

Apesar de tudo, Berna resolveu interceder pelos exilados e enviou embaixadores a Genebra, tentando convencer o concilio de uma reconsideração. No en­

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tanto, Calvino e Farei foram impedidos de voltar à cidade em companhia dos embaixadores, tiveram que permanecer fora dos limites do território de Gene­bra, o que evitou que fossem massacrados por uma emboscada que os esperava antes da entrada da ci­dade, as portas da qual se achavam guardadas por homens assassinos em número de 2 0 (vinte).

Todo o esforço dos embaixadores de Berna se provou inútil, pois os ânimos estavam exaltados e o concilio e a assembléia confirmaram unanimente o decreto de banição, enquanto alguns ameaçavam os pregadores a fio de espada.

Depois de curta permanência em Berna, Calvino e Farei se dirigiram para Basiléia. Estava, pois, ter­minada a dura peleja.

É fácil entender que apesar de tudo Calvino se sentia aliviado. Escolhera ele, por acaso, Genebra, pa* ra suas atividades? Não fora pela persuasão quase in- timidadora de Farei que cedera em ficar alí? Não fo ra o seu sentimento de que obedecia a uma ordem divina, que o levara a ceder às insistências de Farei?

Cumprira o seu papel, não dera certo, iria agora realizar o sonho, estudar tranqüilamente, longe de to­da a confusão, para a qual o seu temperamento o tor­nava indisposto.

Caberiam aqui algumas considerações sobre o fra­casso de Calvino e Farei nesta fase. Por que é que a situação se tomou tão crítica, a ponto de Calvino e Farei serem expulsos de maneira tão humilhante e tão drástica? Tentaremos explicar.

Primeiro. Não era possível esperar-se que uma transformação tão radical se operasse na sociedade genebrense de um momento para outro, somente po? um ato público formal de aceitação das doutrinas e princípios morais e religiosos reformados. Dir-se-ia que um longo período de preparação tinha antecipa­do esse momento: que a pregação do Evangelho ali por Farei e seus companheiros, o ardor sacrificial com que eles fizeram esse trabalho com sérios riscos de vida ganharam aos poucos a simpatia do povo pa­

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ra o lado da Reforma. Sim, mesmo levando em conta tudo isso, faltava na maioria dos habitantes da cida­de aquele elemento indispensável a uma completa mu­dança, a verdadeira conversão, que é obra do Espí­rito de Deus. Era mais fácil àquela gente aderir aos atos de iconoclastia e sair em grupos, quebrando ído­los e derribando altares, do que abandonar certos há­bitos pecaminosos e vícios arraigados. Era mais fácil gritar contra a imoralidade do clero e expulsar dos conventos freiras, que, sob a aparência de muita pie­dade, tinham, no entanto, passagens subterrâneas do seu convento de Saint Claire para o dos monges fran- ciscanos, conforme nos informa Dyer,30 do que vi­ver uma vida cristã moralizada.

Bem sabiam disso Calvino e Farei, mas somos sempre apressados e não aguardamos o tempo de Deus com a suficiente paciência. Não demorou muito ) e o número dos descontentes começou a crescer e a se arregimentar, reunindo todos num só partido, “Irmãos em Cristo” .31 Os taberneiros prejudicados nos seus lucros, os jogadores privados de seus hábitos, os be- berrões proibidos do seu vício e todos que eram su­perficiais no seu interesse religioso, desejosos de prosseguir nas práticas consideradas inconvenientes e incompatíveis com a Profissão de Fé Cristã, segundo os novos padrões, todos estavam agora contra Calvl- no e Farei.

Convém lembrar que certas exigências severas com respeito a costumes não eram originalmente de Farei ou Calvino. Elas já existiam antes e poderiam até parecer comuns numa sociedade de hábitos rígi­dos, mas nunca foram impostas com a dureza de ago­ra, e, em muitos casos, eram apenas formas exterio­res, sem a seriedade prática com que os reformado­res as queriam aplicar.

Segundo. Faltava a Calvino e ft Farei o amadure­cimento necessário para a tarefa enorme a que se propuseram.

Ambos fiéis, ambos dotados de ardor a ponto de se sacrificarem pela causa, mas faltava-lhes a expe­

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riência, a perspectiva para compreender a situação de modo racional, prático. Como diz Dyer, "que tais ví­cios (referindo-se à situação de Genebra) e desordens exigiam uma reforma em grande medida, não se po­de disputar. Não estava, contudo, na natureza huma­na, que hábitos confirmados por tão longe tempo, fos­sem extirpados de uma vez” .32

Terceiro. Para uma empresa tal, Farei e Calvino não pareciam uma boa combinação. Farei era um ho­mem zeloso a ponto de se tornar fanático e, por isso mesmo, até irracional nas suas exigências. Mais de uma vez tinha exposto a sua vida pelo que conside­rava vital no reino de Deus. A sua voz era como o trovão, e a sua figura pouco simpática, de pequena estatura, barba rala e vermelha, mas a sua coragem era indomável. Os chefes inimigos se aproveitaram disso para amedrontar o povo ignorante e supersti­cioso. Diziam que Farei e Viret alimentavam o demô­nio, na forma de um enorme gato preto em sua me­sa. Havia até quem afirmasse ter visto isso pela fres­ta da porta. Em cada fio de barba, diziam, Farei tra­zia um demônio.33

Calvino, muito mais tímido, mais reservado, mais moço vinte anos, era um gênio. No entanto, os dois se tornaram amigos pelo resto da vida. Se, por vezes, em razão da idade, Calvino dava a palma a Farei, es­te, por seu turno, levava em alta conta a sabedoria do colega mais moço, de modo que faziam um bom dueto, isto é, afinavam-se muito bem. O que não pa­rece é que essa unidade de visitas tenha feito bem à Causa em Genebra. Parece que não. E segundo a opi­nião de alguns, Bucer, que era amigo de ambos, jul­gou melhor que se separassem, pois não estendeu a Farei o convite feito a Calvino, para ir para Estras­burgo. Pouco depois Farei recebe o chamado de Neu- chatel e para lá se dirige, onde permanece até o final de sua carreira.

Por outro lado, a volta de Calvino para Genebra, mais tarde, na qual Farei pôs todo o seu empenho, se fez sem que Farei fosse convidado. Parecia até na­

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tural que ambos fossem, num ato de reparação com­pleta, o que se sabe, era desejo de Calvino, mas Ge­nebra permaneceu em silêncio, daí se pensar que o concilio de Genebra estava convencido de que os dois juntos não dariam certo. E pesa em favor de Fare! o desprendimento com que se fez intercessor no ca­so, com insistência semelhante à da primeira vez, até que Calvino cedesse, aceitando o convite do concilio.

Quarto. Um outro fator teria também pesado na balança contra Calvino e Farei. A posição de Berna. Responsável até certo ponto pela libertação de Gene­bra do jugo escorchante do bispo e do duque de Sa- bóia, Berna desejou manter sua soberania sobre Ge­nebra, fazendo-a parte de seus domínios. Calvino e Fa­rei a queriam independente em consonância com o desejo geral dos genebrenses. Quando a situação se tornou tensa entre os ministros e o Concilio, este quis propiciar as boas graças de Berna e levantou a ques­tão dos ritos, já mencionada, em que Calvino e Farei discordavam de Berna. Calvino, ao que parece, mais para ser solidário com Farei, pois que pessoalmenteo, assunto lhe parecia sem maior relevância. . .

É fácil de entender que a boa paz com Berna, da qual dependia ainda a segurança de Genebra contra as ameaças sempre presentes do Bispo e do Duque, era preferível. Daí porque o Concilio acabou aprovar* do o rito de Berna, em frontal discordância com os pastores e que foi a gota que transbordou.

Quinto. Nem se deve subestimar a importância dos saudosistas, adeptos do Bispo e do Duque, que lá dentro estavam prontos a criar 9 fermento da insur­reição e do descontentamento.

Lá estavam padres inconformados com a perda de sua situação vantajosa. Os antigos senhores de Ge­nebra estavam prontos a usar a primeira oportuni­dade, enviavam através de seus aliados promessas de melhoramentos, como a Universidade, etc. Basta lem­brar a carta do Cardeal Sadoleto, dirigida ao Senado e ao povo de Genebra logo após a expulsão dos pas­tores, concitando-os carinhosamente a aceitar de no­

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vo, num ato de penitência, a tutela papal. O Concilio podia pensar em tudo, menos em voltar ao passado. Daí a indispensável aliança com Berna.

Em resumo, diríamos que faltou muito, e a his­tória mesmo o vem demonstrar, de amadurecimento, tanto dos líderes, como do povo, para que triunfasse, pelo menos relativa e parcialmente, a tentativa de Cal­vino de fazer de Genebra uma cidade cristã. E não terio sido, perguntamos nós, esse fracasso inicial uma experiência amarga, mas necessária, de parte a par­te, para se alcançar pelo menos o que mais tarde se alcançou? Na plenitude dos tempos..

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Capítulo 7

ESTRASBURGO

Tempestades de todos os lados. Em Genebra a chuva de impropérios, de ameaças, de indignação. Fo­ra chovia torrencialmente, e os dois pastores, Calvino e Farei iam a cavalo, em demanda de Basiléia. Assim era a jornada dos exilados em busca de um lugar de repouso, onde por pouco não chegavam.

A viagem não deixou de ser arriscada; os rios transbordavam e na travessia de uma corrente qua­se foram levados pelas águas abundantes. Tudo pare­cia conspirar contra a vida desses homens. Talvez ti­vessem feito em algum momento de maior abatimen­to a indagação do salmista: “Senhor, por que te con­servas longe de mim... por que te afastas do meu bramido?”

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Afinal chegaram a Basiléia. Descansavam à som­bra amiga de tetos hospitaleiros e fraternais. As in­júrias sofridas; as peripécias do caminho; as dificul­dades do tempo iam sendo esquecidas até que pu­dessem com mais calma decidir sobre o rumo a 1»- tomar.

Ambos já tinham estado em Basiléia. Farei aU ficara refugiado em 1523, depois de ter sido expulso da França por causa das atividades evangelísticas. Calvino também ali passara algum tempo quando da publicação das suas Institutas. Ali Farei enfrentara a oposição de Erasmo, que não tolerava o seu fervor, nem a sua ousadia, às vezes levados a extremos ico­noclastas, mas não lhe faltavam amigos em Basiléia. Calvino, ao que parece, não tinha dúvidas de que alí era o seu lugar. Não fosse a insistência de Farei em prendê-lo em Genebra, teria fixado residência em Es­trasburgo, pois era para lá que se dirigia. Abatido pela amarga decepção sofrida, pensava dedicar-se a estudos, executar o plano que anteriormente alimen­tara.

Não demorou e Neuchatel enviara a Farei um convite para que pastoreasse alí a igreja, onde já es- tivera antes e trabalhara com tanto ardor. Acabou ce­dendo ao convite, embora preferisse estar ao lado de Calvino. Para lá se dirigiu e lá ficou até o final de sua carreira.

Ao mesmo tempo, Calvino era convidado por Bu- cer para assumir o pastorado dos refugiados france­ses em Estrasburgo, o que inicialmente recusou. Es­tava bem em Basiléia onde, na tranqüilidade do am­biente amigo, de companheiros intelectuais, poderia continuar nos seus estudos como sempre desejava. Bucer insistia e Calvino, como sempre, aguardava in­dícios de que essa fosse a vontade de Deus, antes de responder positivamente, temendo, cauteloso, a repe­tição das decepções amargas que vinha de sofrer. Não queria passar por elas novamente, não se sentia pre­parado para conflitos dessa natureza. O sentimento de fracasso o afligia, mas Bucer foi quase tão veemen­

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te como Farei, quando este o prendeu em Genebra. Além de tudo, pesava contra a aceitação dos convi­tes e, inicialmente, o fato de Farei não estar sendo incluído. Estiveram juntos, sofreram juntos as mes­mas infâmias, de modo que não ia bem com a cons- ciênda de Calvino deixar sem mais nem menos o companheiro de exílio antes que o visse amparado. No entanto, a Bucer parecia que os dois homens, ape­sar do valor pessoal de cada um, não faziam uma boa dupla.

Tem-se a impressão de que era seu empenho se­pará-los, pensando, quem sabe, não fosse o caráter explosivo de Farei, as coisas não tivessem chegado ao ponto em que chegaram em Genebra. O convite de Neuchatel resolveu essa dificuldade.

Aguardavam-lhe em Neuchatel amargas experiên­cias; por pouco sairia de lá expulso também, mas ven­ceria a tempestade e lá terminaria seus dias, após um abençoado e longo ministério.

Pesava em favor da aceitação do convite por par­te de Calvino o ambiente que iria encontrar em Es­trasburgo, onde uma plêiade de intelectuais reforma­dores se reunia, sob a liderança de Martin Bucer, com o qual firmaria amizade sólida, com o conhecimento mútuo e apreciação recíproca, do que muito lucraria e, certamente, a causa do Evangelho.

Bucer era um grande intelectual, personalidade de alto porte, um teólogo, um espírito equilibrado, de disposição pacífica e moderada, dotado de uma capa­cidade diplomática muito útil naqueles tempos e pos­suído de uma franqueza cordial, que ajudava sem ofender; franqueza apreciada por Calvino. Mais tarde haviam de ter momentos de divergência em que com certa rudeza iriam discordar um do outro, sem que isso pudesse abalar a amizade profunda que entre eles existia, mesmo porque tudo era fruto de uma lealda­de cristã sólida de parte a parte.

Alí em Estrasburgo Calvino teria oportunidade de conviver com outros' grandes reformadores de notá­vel brilho intelectual, tais como Hédio, Niger, Capito

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e Sturm. Estrasburgo acabaria sendo uma perfeita es­cola onde Calvino aprenderia a lidar com gente de todas as classes, desde algum humildes refugiados franceses até grandes mestres e teólogos.

Jean Sturm iniciara ali, por aquele tempo, um co- legiado e Calvino era convidado a ensinar teologia nessa escola. Sturm era de uma inteligência viva, de grande pendor político e ardoroso adepto da Refor­ma, o qual em cooperação com o seu homônimo, o outro Sturm, desenvolveria um plano educacional ad­mirável, que por certo havia de ter influência nas idéias futuras de Calvino quando da organização da Academia.

Como era de seu feitio, Calvino estava dentro em pouco envolvido em muitas atividades. Lecionava, pregava em dois ou três pontos diferentes, organiza­va a igreja dos refugiados franceses para a qual for­mulou a ordem do culto, , abrangendo todas as cerimô­nias, tanto do culto público como da celebração da Santa Ceia, batizados, casamentos, etc. Cuidou com zêlo do cântico na igreja, para o que metrificou alguns salmos bem como o cântico de Simeão, o decálogo, adaptando aos seus cânticos muitas músicas do sal- tério usado por Bucer e utilizando outras compostas pelo organista de Estrasburgo, Matias Creiter.

Emprestava Calvino grande solenidade à celebra­ção da Santa Ceia, excluindo da comunhão aqueles que dela não podiam participar. O seu código de dis­ciplina foi alí posto em prática, bem como o ensino do catecismo obrigatório às crianças da igreja, como quisera fazer em Genebra. Nesse caso, pode-se ver que havendo boa vontade da parte do povo, não é di­fícil manter uma igreja disciplinada e bem instruída nas Escrituras.

Ainda, em Estrasburgo, acabou sendo o conse­lheiro de muitos, inclusive estudantes, que, vindo de outros lugares, se tornaram seus alunos. A casa de Calvino ali era uma colmeia, segundo o testemunho de Jean Cadier, aonde muitos vinham desejosos de

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obter a sua orientação, tanto para problemas mate­riais como espirituais.

Um pastor de imigrantes estrangeiros tem que se multiplicar no desempenho de atividades diversas pa­ra atender às necessidades de suas ovelhas.

É fácil de ver como essas experiências haviam de ajudar Calvino mais tarde, quando se encontrasse em Genebra em situação semelhante, ainda em ponto mui­to maior.

Em Estrasburgo amadureceram suas idéias sobre a Santa Ceia do Senhor, pelo que publicou um tratar do sobre o assunto, alicerçando a sua doutrina do sa­cramento de maneira sólida nas Escrituras, em posi­ção diferente à de Lutero, de um lado, e de Zwinglio, de outro.

Foi durante esse período que Calvino se tomou mais conhecido e adquiriu fama internacional, pois que participou de várias conferências e dietas, onde o seu espírito e a sua inteligência haviam de se pôr em evidência.

Carlos V estava interessado nessas conferências, pois convinha a seus fins políticos encontrar um acor­do entre católicos e protestantes. A firmeza doutriná­ria de Calvino foi posta à prova quando estavam em jogo os interesses do evangelho, os quais defendia com absoluta fidelidade e com sólida argumentação, ex­traída da Palavra de Deus e da opinião dos teólogos antigos que ele, com tanta habilidade e uso de uma memória privilegiada, era capaz de citar Assim é que esteve presente a encontros dessa natureza em Hage» nau, em Worms, Regensburgo, Frankfurt, Ratisbona.

Numa dessas conferências ficou conhecendo Me- lanchthon, o qual se tomou admirador de Calvino, surpreendido com a sua cultura e erudição, com a sua profundidade teológica, pelo que passou a chamá-lo “O teólogo”. Tomaram-se bons amigos e continuaram assim, com grande proveito para a causa da Refor­ma.

Foi ainda em Estrasburgo que Calvino deu um passo muito importante em sua vida, passo que vinha

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protelando por muito tempo, possivelmente em virtu­de da sua vida tão agitada e tão incerta. Tímido, te­mia que suas m uitas enfermidades se constituíssem em obstáculo a um casamento íeliz. Isso concorreu também para que demorasse a dar esse passo. Para ele, o casamento não era apenas uma necessidade pre­mente» mas uma questão de coerência. Ele combatia tenazmente o celibato católico, não poderia ser um celibatário. Via os grandes males que a instituição do celibato causava à vida da igreja e insistia na sua fal­ta absoluta de base bíblica. Sabia que os inimigos ha­viam de aproveitar-se da sua condição de solteiro pa­ra acusá-lo de contraditório. Entendia, no entanto, que a companheira de sua vida teria de se revestir de muita paciência para tolerá-lo com todos os males que o acompanhavam, e dele cuidar sem esmoreci- mento. Não era fácil achar uma candidata com esses requisitos. Daí, ter rejeitado algumas pretendentes.

Em 14 de agosto de 1540, Farei se abalava de Neuchatel para vir abençoar a união de Calvino com Idalete de Buren. Ninguém mais indicado para esta cerimônia, se não o sempre devotado amigo Farei, companheiro de tantas refregas. Idalete era viúva de um dos anabatistas que foram convertidos pela ins- trumentalidade de Calvino.

Martin Bucer, o sempre amigo, empenhou-se nes­sa união, como bom diplomata e casamenteiro que se provou também no caso de Capito.

É curioso lembrar que Calvino não pode retr, buir a cortesia do amigo Farei, quando esse mais tar­de o convida para ir impetrar a bênção sobre o seu casamento. Farei era então já velho e resolveu casar- se com uma jovem adolescente e que praticamente fo­ra criada em sua casa, pois era filha de uma refugia­da que acolhera e que se tornava sua empregada. Cal­vino lhe escreve uma carta severa, mostrando-se des­contente com o caso. O incidente, porém, não abalou a verdadeira amizade entre os dois, mesmo porque Calvino embora recusasse fazer o casamento e mos­trasse a sua desaprovação, o aconselha a tomar pre­

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cauções para não ser vítima dos maledicentes. Aa mesmo tempo, escreve uma carta à igreja de Neucha­tel, que também desaprova inteiramente o passo que o seu pastor iria dar. Nessa carta pede à igreja que perdoe a seu pastor a leviandade em consideração aos muitos serviços já prestados.

Quando voltava para Genebra, Calvino atrasa sua viagem para passar por Neuchatel e ajudar o amigo numa situação difícil, em que a igreja estava ao pon­to de dispensá-lo. A diplomacia de Calvino valeu a Fa­rei, ali continuou para sobreviver o amigo por alguns anos. Convinha lembrar ainda que, quando Calvino estava no seu leito de morte, Farei viaja para fazer- lhe a última visita, mesmo sob os protestos de Calvi­no, que não queria o sacrifício do amigo já idoso nu­ma viagem tão longa. A despedida dos dois é algo co­movente, que enobrece a ambos.

A vida matrimonial de Calvino teve duração cur­ta. O único filho do casal morreria logo depois de nas­cer, com amargura para os pais. Foi, no entanto, uma vida matrimonial feliz, cheia de ternura, a despeito dos sofrimentos de ambos os lados. Longe de ser o homem sem afeições e sem sentimentos que alguns o pintam, mostrou-se afetuoso esposo, inconsolável viúvo, quando da perda da sua Idalete, nove anos de­pois.

Stauffer, na sua “humanidade de Calvino”, prova com citações repetidas de trechos das cartas do re­formador, a dedicação de esposo e a sua estima imor- redoura pela companheira de tão pouco tempo.

Idalete, por sua vez, se provou a esposa ideal que Calvino tanto sonhava: dedicada, afetuosa, fiel. Cal­vino a chama: “Fiel companheira de minha vida, fiel ajudadora de meu ministério” .34

Em março de 1549, Idalete, vencida pela tuber­culose que mais tarde haveria de levar também Cal­vino, terminava os seus dias em Genebra. A saúde, que perdera logo após o casamento, não recobrou nunca. Assumiu as responsabilidades pesadas de dirigir a ca­sa movimentada de Calvino, de onde saíam e aonde

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chegavam hóspedes constantemente; e onde estudan­tes franceses tomavam pensão. Mesmo enferma, Ida­lete prosseguiu no seu trabalho, vindo a sucumbir, fi­nalmente, quando a tuberculose a apanhou.

Em Estrasburgo o trabalho ia muito bem. A sua estima crescera na cidade, onde gozava de alto con­ceito entre os colegas e de grande admiração por par­te do povo em geral.

Na Europa o seu nome se projetava como um autêntico líder intelectual da Reforma. A pequena igreja de refugiados franceses crescera, arrolara uns quatrocentos a quinhentos membros e se tornara uma igreja disciplinada e bem organizada. Muitos vinham de outros lugares, fugindo às perseguições, ao mesmo tempo atraídos pela fama do pregador e pastor. O trabalho era cada vez maior. Cartas e mais cartas; re­visão de livros para publicação; entrevistas com pes­soas que vinham à sua procura; a pregação, várias ve­zes por semana; as aulas de teologia; a participação em conferências fora de Estrasburgo. Estava, no en­tanto, feliz; pois era assim que Calvino sabia viver, e iria viver, a sua curta existência, apesar de sempre doente — “Um homem inválido que fazia o trabalho de quatro a cinco diferentes profissões”, como que­ria Zweig.35

Começaram a chegar agora as cartas de Gene­bra, convidando-o a voltar. E começam amigos, co­mo Parei, a insistir na sua volta. Parece-nos co­meterem injustiça grave contra Calvino aqueles que o supõem com os olhos sempre postos em Gene­bra, aguardando a primeira oportunidade de voltar. Tal suposição é inteiramente errônea, se acreditarmos na sinceridade de Calvino, que nos conta da sua vaci- lação em aceder ao convite. Se Calvino é às vezes tem­pestivo e violento, como nos parece até mesmo irrazoá- vel com os que o ferem, observa-se nele, todavia, uma extraordinária capacidade de reconsiderar suas atitu­des menos felizes e lamentá-las, principalmente quan­do se acha em jogo o interesse da Causa. Notável tam­bém é o espírito de Parei, que esquece todas as injú­

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rias sofridas para se tomar intercessor no caso em fa­vor de Genebra, mesmo quando não é convidado, co­mo Calvino, a voltar. Calvino saira de Genebra em con- diççes muito humilhantes.

De lá fora expulso, lá fora ridicularizado, saira sob ameaças de morte. O concilio e a assembléia rejeita­ram a reconsideração proposta por Berna por uma volta. Não muito depois, surge a carta do cardeal Sa­doleto, dirigida ao senado e ao povo de Genebra, pro­curando com sutilezas, adulações capciosas e expres­sões afáveis de afeto pastoral, trazer de novo ao redil de Roma o sofrido rebanho. A carta, sem mencionar nomes, faz referências claras e desairosas a Farei e Calvino, taxando-os de inescrupulosos, perturbadores, sediciosos, fraudulentos e malignos. Calvino assume a defesa da Igreja — pois à mercê de inimigo tão pe­rigoso e sagaz. '

Sente que é seu dever, sem levar em conta qual­quer agravo sofrido, pois se o não fizesse trairia a sua vocação.

. Aqueles que não experimentaram jamais essa consciência do dever sempre inarredável, não podem entender o que significa o chamado de Deus para um homem da sensibilidade de Calvino. A resposta a Sa­doleto, embora um dos primeiros trabalhos literários de Calvino em Estrasburgo, quando ressentimentos de parte a parte estavam tão vivos, e as feridas ainda tão mal curadas, tiveram um extraordinário efeito na mu­dança de atitude de Genebra para com o homem que tão desumanamente expulsara dos seus limites.

Longe de se mostrar feroz, vingativo, impla­cável, como muitos o retratam, mostra-se nobre, co­locando os interesses do Reino de Deus acima de quais­quer mágoas pessoais, ou caprichos e desejos de reta­liação. Aliás, antes disso já tinha escrito à igreja, logo após sua expulsão, exortando-a a cultivar a paz com os pastores que agora os substituíam (a ele e a Farei) para que perseverassem na oração, suportanto os maus e preparando-se, desse modo, para a luz que oportunamente haveria de vir. 36 Aliás, tanto ele, co­

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mo Farei, tinham feito apelos aos que eram do seu lado para que. aceitassem e prestigiassem os pastores que os substituiriam.

Três anos de trabalho intensivo e grande produti­vidade, anos felizes, no ambiente de camaradagem e bom entendimento, com os pastores de Estrasburgo; anos em que Calvino muito amadurecera no seu pen­samento, no seu caráter; anos em que adquirira pres­tígio e respeito entre os mais ilustres companheiros com os quais passara a conviver; período que na pro­vidência divina se fizera necessário, para adestrá-lo à grande obra imortal da sua vida.

Parece que foi Woodrow Wilson, estadista de pro­jeção internacional, presbítero de uma igreja presbite­riana e filho de pastor presbiteriano, quem afirmou: O importante não é saber onde estamos, mas se esta­mos com Deus.

Genebra não era para Calvino, de maneira nenhu­ma, o lugar ideal, se consultasse às suas preferências pessoais. Tinha até pavor em pensar na possibilidade de voltar ao lugar de onde saira em condições tão ar- rasadoras. Segundo suas palavras, sabia que viver no­vamente em Genebra seria ter que morrer mil vezes ao dia — força de expressão — para dizer enfaticamen­te, que a cidade se lhe apresentava como um lugar de martírio constante. E quando resolve aceitar novamen­te, sob as insistências de Farei e de outros, o seu re­torno se faz, como um sacrifício oferecido a Deus.

Jean Cadier afirma que, quando Calvino se pro­nuncia, dizendo: "Ofereço o meu coração a Deus, em sacrifício”, é Calvino inteiro que se encontra nessa fra­se; o homem a quem os inimigos, amda hoje, pintam como orgulhoso e cheio de ambição e sedento de po­der.

A doutrina da vocação tem um papel muito impor­tante no pensamento teológico de Calvino. E ele vive essa doutrina. Só tomara a decisão de voltar a Gene­bra por sentir que é um imperativo de Deus.

Calvino é um homem que se vê empurrado pela mão divina contra a sua vontade, contra a sua predile­

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ção, contra o seu. pendor natural e até mesmo contra suas possibilidades físicas — a sua saúde combalida. Por isso, vai fazer exatamente aquilo para o que se sente mal preparado, pouco dotado, pouco disposto, mas impelido por Deus.

A vida em Estrasburgo, embora cheia de vanta­gens, não tinha sido sem problemas inicialmente. Vi­veu em extrema pobreza, a princípio. Sabe-se pela cor­respondência com Parei, que estava em débito para com o amigo, sem esperança de solver os compromis­sos tão cedo. Fora logrado por um certo indivíduo e estava sentindo necessidades de vender livros para so­breviver. A situação melhorou após se casar. Em Gene­bra tudo evoluirá para uma posição insustentável, de modo que o concilio acabara concluindo que a única solução era a volta de Calvino.

Faltava a presença de homens capazes, com auto­ridade moral, com gabarito intelectual e com poderes espirituais para conduzir a Igreja.

Os inimigos de Calvino e Farei, jubilosos com a vitória alcançada, se tornaram arrogantes, ousados, de modo que a prática dos vícios e costumes condenados se tornou mais aberta, mais freqüentes, mais generali­zada. Os pastores se viam sem qualquer meio de repri- mí-los e o concilio incapaz de tomar qualquer medida no caso. Genebra, pelo menos o senado e outras auto­ridades, aprendiam a dura lição, lição difícil de se en­sinar — é mais fácü aplacar a agitação de uma multi­dão enfurecida e revoltada com a expulsão de alguns homens que, no cumprimento da ingrata missão de moralizar uma sociedade, mesmo com as melhores in­tenções, acabavam cometendo erros do que encontrar outros que os substituam e façam melhor do que eles.

Os problemas, longe de serem sanados, cresceram, de modo que tudo ia de mal a pior. Era a hora então de reconsiderar, voltar atrás e ir buscar o homem que expulsaram.

Conflitos entre as facções — os calvinistas e os adversários deles — resultaram em violência e mortes. Alguns dos síndicos que mais se opuseram a Calvino

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e a Farei acabaram se envolvendo em escândalos con­denáveis, obrigado um deles a fugir da cidade, enquan­to outro era condenado pelo concilio.

A influência de Berna na vida de Genebra estava inquietando os chefes, que temiam uma subordinação completa a ela. Por outro lado, os antigos partidários do bispo, que se uniram aos detratores de Calvino em um partido só, não deixaram de constituir numa amea­ça à volta do antigo regime, no que esses chefes nem gostariam de pensar.

Por parte dos reformados das cidades vizinhas ha­via receios de que a vitória alcançada com tantos sa­crifícios, em Genebra, viesse a ser perdida pela incom­petência de seus líderes.

Calvino sentia muita dificuldade em ceder a todas as pressões: “Não há lugar debaixo do céu que eu mais tema do que Genebra; não que eu dela desgoste, mas porque eu vejo tanta dificuldade no meu caminho que me sinto desqualificado para enfrentá-la. Quando me recordo do que alí passei, não sinto outra coisa senão um calafrio de pensar que serei obrigado a renovar as velhas disputas” .37

Por outro lado, Estrasburgo não estava disposta a abrir mão de Calvino facilmente e Calvino não de­sejava deixar a cidade assim sem mais ou menos, te­mendo criar problema para os bons e fiéis amigos que em tão boa hora o tinham acolhido; entre eles, evidentemente, o grande amigo Bucer, seu protetor inicial. Nessa altura, já tinha adquirido o título de cidadão de Estrasburgo. Por ironia, Farei era o ho­mem que, expulso de Genebra com Calvino, e embo­ra não fosse convidado a voltar, servia de interme­diário e poderoso instrumento para convencê-lo da sua volta.

Quando o concilio de Genebra recebeu a carta do cardeal Sadoleto, embora não tivesse nenhuma inten­ção de aceitar a sua proposta, deu-lhe uma resposta delicada e curta. Essa atitude de complacência para com o cardeal gerou suspeitas no ânimo de alguns de que a posição do concilio começava a fraquejar,

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faltando-lhes convicções firmes para resistir uma vol­ta ao catolicismo. Isso enfraqueceu a posição do con­cilio, de modo que nem mesmo um grande esforço para mostrar sua fidelidade evangélica produziu mui­to resultado. Começavam aqueles homens a verificar que a causa de todas as dificuldades não residia na presença de Calvino e Farei alí. Não eram eles os úni­cos culpados da fermentação havida ou dos extremos na situação a que tinham chegado.

O concilio, pela sua inconsistência, tinha perdido a autoridade: e quando a uma autoridade no poder superior falta a confiança dos governados, o caminho para a sedição e desordem está aberto.

Resolveu-se num esforço maior, enviar um em­baixador especial a Estrasburgo para trazer de volta Calvino.

Numa carta do concilio, enviada a Zurique, Ba­siléia e Berna, pedindo a interferência dessas cidades para o retorno de Calvino, há uma confissão muito humilde do erro cometido por parte do concilio de Genebra: “Desde a hora ém que foram banidos (refe­rindo-se a Farei e Calvino) não temos tido senão di­ficuldades, inimizades, lutas, contendas, desordens, fac­ções ehomicídios” .38

A intervenção de Zurique se fez sentir, numa car­ta dirigida a Calvino, por ele respondida em 31 de março, da cidade de Ratisbona, onde estava partici­pando de uma conferência. Nessa resposta indica que teria de consultar Bucer e outros ministros de Estras­burgo, certo de que não se oporão, se isso for útil à restauração de Genebra.39

Afinal em setembro de 1541, voltava Calvino. Não prometia ficar senão alguns meses. Lá ficoü até o seu último dia, para alí ser sepultado. Havia festa, espíri­to de boa vontade, mas no íntimo Calvino se sentia um prisioneiro de Deus.

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Capítulo 8

GENEBRA NOVAMENTE

Nada como um dia depois do outro — velho pro­vérbio que meu pai gostava de citar. O homem que três anos antes saira de Genebra expulso; contra o qual se postaram vinte matadores,, à porta da cidade, para debatê-lo sem vida, caso tentasse voltar; o ho­mem que fora banido como um criminoso de grande periculosidade retoma agora triunfante, com honras de estado, recebido com festas e flores. Como bem pondera Walker, Calvino indubitavelmente alimentava o sentimento de que tinha sido restaurado a Genebra pela mão de Deus.

Ele tratava seu banimento como uma mera inter­rupção, daí porque não disse uma palavra sequer no seu primeiro domingo em relação ao passado recente.

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Encontrava-se naquele espírito preconizado pelas pa­lavras do apóstolo São Paulo: “As coisas velhas são passadas”.

Entrava Calvino cautelosamente, embora firme; mesmo porque não quis prometer de início uma lon­ga permanência alí. Pensava apenas pôr as coisas em ordem; organizar a igreja como fizera em Estrasbur­go com os refugiados franceses; estabelecer a ordem e disciplina; instituir a liturgia, os estatutos e, quem sabe, ceder o lugar a outro que pudesse continuar a obra. Sentia-se bem mais à vontade pensando desse modo.

O concilio dirigia-lhe um apelo a que permaneces­se com eles para sempre; dava-lhe de presente como sinal de honra e deferência especial um novo casaco. Esperava-o uma casa confortável, com jardim, na rua dos Cônegos, em ponto favorável às suas atividades, nas proximidades da igreja de São Pedro. O púlpito fora preparado para recebê-lo; um salário convenien­te lhe fora votado pelo concilio e uma carruagem com três cavalos fora enviada a Estrasburgo para trazer­-lhe a esposa e mudança. Uma euforia e uma disposi­ção de tomar tudo a contento do pastor dominava a ação do Concilio, e de muitos.• De Estrasburgo saía deixando com pesar amigos,

admiradores e as ovelhas do seu rebanho, que com tanto carinho apascentara durante aqueles anos. Era agora cidadão da cidade e benfeitor. Pediu-lhe o go­verno de Estrasburgo que mantivesse a sua cidadania, conferindo-lhe as rendas de uma prebenda, renda es­sa que, segundo nos informa Beza, não quis receber.

Parece que agora, pela primeira vez em toda a sua vida, tem Calvino uma situação financeira regu­lar, uma casa confortável para residir e condições de trabalho consentâneas com os encargos de que é in­cumbido.40 Tinha pressa em começar o seu trabalho, mas julgou que devia passar por Neuchatel antes de chegar a Genebra, pois o velho amigo Farei atravessa­va dias de dificuldades, a ponto de ser ameaçado de banimento por sua igreja. E foi muito bom, pois, a

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intervenção de Calvino abortou a situação e tudo vol­tou à calma.

A 13 de setembro de 1541 chegava Calvino nova­mente a Genebra. No mesmo dia apresenta-se ao con­selho, justifica a sua demora, manifesta o desejo de que a ordem e a paz sejam restauradas à Igreja. Pe­de a formação de uma comissão de pastores e mem­bros do Conselho para traçar as bases de uma cons­tituição para a Igreja. Sua solicitação é atendida, meou-se uma comissão de quatro membros, para cà ele e os outros pastores elaborar a constituição a submetida aos Concílios e a Assembléia GeraK^

O esbôço da constituição após sofrer al­terações (e que não contentou a Çalytóòo^y tudo), foi aprovado, três meses após a sra^tóhégada, pelos concílios e Assembléia. Essa corí|mmç|<3^^evia qua­tro ofícios na igreja: pastor, mésraeJ\S&u doutor, pres­bítero e diácono. O V /

Ao pastor cabia a 'pffeàácãty da Palavra, ministra- ção dos sacramentos, a staíjervisão da comunidade com a ajuda dos presbítérôs, «: m assumiria o múnuspastoral, sem<^uçvÍ9 sse devidamente chamado, se submetesse a- ihrÇ ôXame, fosse consagrado e ordenado pelos mi^swô^yApós o exame o candidato apresen- tar-se-ia^\«queno concilio, que, uma vez satisfeito com as quáim Wçòes exigidas pelo candidato, lhe dava per-

issáo) jsara pregar perante a congregação a fim de essa recebido. A imposição das mãos na orde-

i foi abolida, para evitar superstição, embora Calvino preferisse conservá-la. O pastor ordenado ju­

raria liueiiuctut; a iJt;us uu Hisiauu e nu seu uiiuiu. u m avez por mês os ministros se reuniriam, tanto os da ci­dade como os dos bairros, para estudo das Escritu­ras. Os pontos divergentes que não pudessem ser re­solvidos, com o auxílio dos presbíteros, seriam leva­dos ao concilio para decisão final. Os ministros se reuniriam de 3 em 3 meses, no que se convencionou chamar “A Venerável Companhia”, para 'exortação uns aos outros e assuntos especiais.

Os doutores ou mestres tinham como função en­

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sinar a santa doutrina. Deviam ser homens prepara­dos em línguas e ciências, daí a necessidade de um sistema educacional competente na Igreja. Deviam es­ses doutores ser examinados pelos ministros e por eles aprovados embora não fossem ordenados.

O ofício de presbítero consistia na supervisão da vida individual dos membros da Igreja, admoestan­do-os de maneira amiga em faltas; não havendo cor­reção, relatando ao conselho para as medidas cabí­veis. .

Em consulta com os ministros, o Concilio elegia 1 2 homens de piedade comprovada dentre seus mem­bros para participar do Conselho dos 200, os quais exerceriam o seu mandato por um ano, findo o qual poderiam ser reconduzidos ao cargo e continuar.

Os diáconos, escolhidos do mesmo modo que os presbíteros, deveriam cuidar do atendimento aos po­bres e enfermos e da administração do hospital da cidade, no qual haveria lugar para os inválidos, viuvas e órfãos. Era proibido pedir esmolas à porta das ca­sas.

O consistório se compunha dos ministros e pres­bíteros, os quais se reuniam uma vez por semana pa­ra tratar de assuntos de desordens na igreja e o re­médio para isso, ficando porém o concilio com a auto­ridade judicial de decisão. Calvino conseguiu, à custa de muito esforço que ao consistório fosse dado o di­reito de excomunhão. Gostaria que houvesse uma se­paração bém definida entre a autoridade do Estado e a eclesiástica, ficando a cargo da igreja, isto é, do consistório, a matéria de doutrina e disciplina.

Mesmo num estado como o de Genebra onde a re­lação estado-igreja é tão íntima e a cooperação tão es­treita, a Igreja áeve gozar de autonomia no que con­cerne a matéria exclusivamente espiritual.

O que Calvino obteve não era ideal, mas uma aco­modação à circunstância do lugar e do tempo. Em car­ta a Miconius (15 de março de 1541),41 relata que, em­bora o que conseguira não fosse perfeitoí contudo, não £oi sem dificuldade que mesmo isso pudera alcançar.

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O concilio não queria abrir mão do direito de ex­comunhão, dando ao consistório apenas a função de admoestar, e foi após uma luta seguida de mais de quinze anos que, em 1555, com a definitiva derrota dos libertinos, o consistório obteve o poder de excomu­nhão.

Queria, ainda, Calvino tornar o clero independen­te do Estado no que dizia respeito a seus honorários, bem como à criação de síriodos, aos quais subissem em última instância os assuntos em matéria de fé.

Queria, ainda, que a escolha dos presbíteros fôsse feita não apenas de entre os membros dos concílios, mas extensiva a todos ós membros da congregação. Calvino entendia que o sistema que convinha a Ge­nebra podia não ser o ideal para um estado e igreja em diferentes circunstâncias, daí pensarem alguns que advogara um sistema semi-episcopal para a Polônia, (carta em 9 de dezembro de 1554) e que aprovara o governo episcopal vigente na Inglaterra quando de sua carta a Somerset.

Caberia, ainda, a Calvino, com o auxílio de dois outros juristas, a elaboração do código civil de Ge­nebra, no que a sua condição de advogado, ex-aluno de dois grandes mestres do direito — Estoile de Stable e Alciati, o fazia perfeitamente qualificado, e nisso se provou um perfeito aluno dos mestres que teve, de­sempenhando com zêlo e acuidade a sua tarefa.

Um outro aspecto da obra inicial de Calvino, após chegar a Genebra, foi a elaboração da liturgia. É jús- to pensar que Calvino recebera, durante a sua perma­nência em Estrasburgo, influência de Bucer no que diz respeito à ordem do culto. Diz-se mèsmo que, em grande parte, era a liturgia adotada pelo pastor de Estrasburgo que trazia para Genebra, no entanto, de­ve-se lembrar que na sua própria igreja — a igreja de refugidos franceses ali, Calvino elaborara a sua litur­gia, com cânticos de salmos que ele mesmos metrifica­ra, sendo a música de alguns composta pelo organis­ta da mesma igreja.

Calvino não era um homem refratário a sugestões,

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muito pelo contrário, admira se nele a frequência com que se deixa influênciar por outros, em assuntos em que ele não tem sua opinião ainda formada. Seja como fôr, o que desejava Calvino é que o culto público fos­se inteligível e edificante, livre das orações mecânicas e sem sentido, como o eram as orações em latim.

O mesmo acontece com os sacramentos, os quais embora revestidos de toda a solenidade, não devem ter caráter enigmático ou simulações de magia esoté­ricas, mas claros e inteligíveis, com a participação condigna e consciente do povo, em que o louvor tem o seu lugar próprio e sejam relacionados com o todo do culto. Os salmos devem ser cantados, sem acompa­nhamentos musicais (entende Calvino), pois isso lhe cheira a invenção papal sem exemplo na Igreja Pri­mitiva. Inicia-se o culto com exortação e oração, se­guida de confissão, cântico de salmo, oração para ilu­minação do Espírito na pregação da Palavra, a qual fica à discrição do ministro, segue-se a absolvição pro- nuncida pelo ministro, cântico dos mandamentos. Ora­ção relacionada com os mesmos. Depois do sermão, longa oração intercessória, terminando com a bênção apostólica. Ocasiões especiais requerem orações espe­ciais, tais como batizados, casamentos e celebração da Ceia do Senhor.

Caracteriza-se o culto pela simplicidade, pela re­verência, espírito de adoração, edificação e participa­ção. A liturgia de Calvino deixa ao ministro muita li­berdade, de modo a introduzir o que no seu entender contribui para o bom andamento e eficácia do culto.

Como antes fizera em Genebra e posteriormente em Estrasburgo, Calvino insiste na instrução dos fi­lhos da Igreja. Agora, pelas ordenanças, os pais se tor­navam obrigados a mandar os filhos, aos domingos, à igreja para receberem instrução religiosa, aprender certos pontos básicos da fé cristã; o catecismo, para recitá-lo em ocasião solene perante a igreja como uma profissão de fé, pela qual eram admitidos à comu­nhão.

Beza atesta que o catecismo de Calvino foi tradu­zido em muitas línguas, tais como alemão, italiano, es­

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panhol, inglês, flamengo, grego e até no hebraico, por um judeu convertido.

Calvino entregou-se de corpo e alma à tarefa de que fora incumbido; fazer de Genebra uma cidade e uma igreja, tanto quanto possível, de acordo com o seu ideal, como diz Wendel,42 ou a “Civitas Dei” do seu sonho.

Se considerarmos a multiplicidade de problemas que Calvino tinha que enfrentar diariamente com re­fugiados que a todo dia chegavam e precisavam ser atendidos, instalados, arranjar empregos, a sua cons­tante preocupação com a Causa da Reforma em ou­tros países, como: Inglaterra, França, Polônia, Escó­cia, etc., o seu zêlo pastoral para com os oprimidos, muitos deles em prisões, como na França, e as pre­gações e estudos diariamente, a sua participação, em­bora informal, na administração da cidade, parece um milagre que um homem doente e fraco pudesse pro­duzir tanto. As cartas que escreveu e que chegaram a mais de 2 mil, os livros e comentários, tratados e sermões de Calvino reunidos formam uma coleção de11 volumes avantajados.

Beza nos informa do programa que Calvino de­sempenhava semanalmente: pregava em dias alterna­dos e lecionava cada terceiro dia; na quinta-feira reu­nia-se com os presbíteros; na sexta-feira participava da reunião chamada “A Congregação” em que, com outros ministros, trocava idéias sobre textos das Es­crituras. A casa de Calvino era constantemente visi­tada por gente que vinha de longe para ouvir sua pa­lavra de conselho, para pedir orientação sobre algum problema, além disso, estava constantemente revisan­do o seu livro “As Institutas”, aperfeiçoando-o para as edições sucessivas que havia de ter.43

Debilitado em sua saúde, vítima constante de cri­ses reumáticas, sofrendo de uma dor de cabeça que o acompanhava por vinte anos, cada dia, alimentan­do-se parcimoniosamente, às vezes com uma refeição diária apenas, por causa de seus males, trabalhavá sem parar e até parecia encontrar algum alívio para

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suas dores no entretenimento do trabalho.Como afirma Mackinnon, “um homem que por

natureza era tímido e vítima de freqüentes enfermi­dades, não conhecia, nem medo, nem hesitação, quan­do o que estava em jogo era, segundo o seu entender, a Causa de Deus” .44

Os inimigos de Calvino, que nunca deixaram de existir ali em Genebra, mesmo nos dias em que esta­vam em minoria, trabalhavam sem cessar, para levá- lo ao descrédito e ao fracasso, embora secretamente. Formaram um partido, que se denominava os liberti­nos, que não tinham nenhuma relação com um par­tido religioso do mesmo nome, em outros lugares; não aceitavam o rigor da disciplina imposta na cida­de pelo novo regime, com respeito a moral e costu­mes. Aliás, convém lembrar que esse regime não era invenção de Calvino, e que mesmo quando Calvino, expulso da cidade, se achava ausente, o concilio man­teve as mesmas exigências sobre o assunto, contudo, sem conseguir executá-las a rigor. Recorde-se que em Estrasburgo, num regime francamente democrata, medidas semelhantes foram tomadas.

Uma das armas freqüentemente usavam era a do ridículo. Calvino era objeto de grotescas pilhérias. Fa­ziam-se trocadilhos com o seu nome e chamavam-no “Qaim”. Alguns davam aos cães o nome do reforma­dor, cantavam-se canções alusivas a sua pessoa com galhofas e sarcasmo, era um não acabar de insultos cada dia.

O fato de Calvino ser um estrangeiro e, igualmen­te, muitos dos seus auxiliares que para Genebra vie­ram, fugindo da perseguição, aumentava a indisposi­ção contra ele, ou pelo menos servia de desculpas pa­ra a antipatia que muitos lhe votavam. Por algum tempo após a sua volta houve calmaria, pois, as amar­gas experiências sofridas com a sua ausência e que propiciaram o seu regresso ainda estavam bem vivas na mente de todos.

Um dos pontos nevrálgicos da administração era o choque de autoridade entre o Consistório e o Con-

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cflio. Para Calvino, não restava dúvida de que a coi­sa certa era a separação de igreja do estado, de mo­do que, em matéria doutrinária religiosa, o Consistó­rio, composto dos presbíteros e ministros, era o tri­bunal competente para julgar e decidir, excluir da comunhão ou restaurar.

O concilio, talvez por julgar necessário supervi­sionar a vida da comunidade, que, no caso, se con­fundia com a própria igreja, nunca quis abrir mão de tais direitos.

Calvino conseguira, com muita dificuldade, a aprovação das ordenanças, pelas quais a autoridade para decretar a excomunhão ficasse com o Consis- tório.

Em maio de 1543, o pequeno concilio propunha chamar a si esse direito. Calvino se opôs terminan- temente a isso, e chegou ao ponto de declarar que estava disposto a morrer ou sofrer novamente o exí­lio antes de aceitar tal usurpação. A situação foi se agravando.

Dois anos depois, um membro do concilio, Pier­re Ameaux, numa das reuniões, dirige-se de maneira insultuosa a Calvino, chamando-o de perverso picár­dio (naturalmente, referindo-se a sua origem estran­geira), pregador de falsas doutrinas, ambicioso e in­trigante. Pierre foi preso, julgado pelo concilio, que resolveu referir o seu caso ao concilio dos 200. A pe­na imposta pelo concilio maior foi branda, apenas exi­giu que pedisse perdão a Deus e a Calvino e aos ma­gistrados. Calvino levou o caso ao consistório, que exigiu a punição do culpado, recusando-se Calvino a pregar até que o culpado fosse punido com mereci­do castigo. O pequeno concilio modificou a pena exi­gindo dele uma apresentação pública de joelhos, le­vando uma tocha acesa, pedindo perdão a Deus, aos magistrados e pagando as despesas do processo.

A prisão de alguns elementos, que numa festa de casamento se entregaram a danças, então proibidas pelo concilio, entre eles um dos síndicos, Amin Per- rin e sua mulher, aumentou a tensão e, mais uma vez

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é a Calvino que se dirigem as injúrias e insultos, pois, o consistório resolveu punir os infratores.

Francisca Favre, esposa de Perrin, também foi pu­nida, se constituiu em permanente inimiga de Calvi­no, contra ele atiçando outros membros de sua famí­lia. O conflito entre concilio e consistório prosseguia e se agravava toda vez que algum caso de disciplina ocorria e o concilio se inclinava a passar por cima do Consistório e aplicar pena mais leve, ou ignorar a pe­na imposta pelo consistório. Tal situação favorecia a desordem e açulava os revoltados a proceder de ma­neira acintosa para com o consistório. Tal foi o caso da esposa de Perrin, que continuou a participar de danças e a falar leviana e injuriosamente contra o con­sistório e os ministros. O concilio ordenou a sua pri­são na ausência do esposo, que se encontrava de via­gem a Paris. Francisca Favre fugiu da prisão para casa de seu pai, que então já não residia na cidade.

O número dos descontentes ia crescendo e nas eleições de fevereiro de 1547, e posteriormente em 1553, aumentaram seus elementos dentro do concilio, de modo mesmo a contar agora com larga maioria. Pensavam agora os dissidentes que o momento che­gava de dar um golpe decisivo na autoridade dos mi­nistros e, especialmente, de Calvino e do consistório.

Berthelier, um dos mais fanáticos inimigos de Calvino, embora não se recomendasse pela vida licen- ciosa que levava, de conhecimento geral, era, no en­tanto, filho de um dos heróis da libertação de Gene­bra, que dera a sua vida como mártir da libertação. Entendeu Berthelier de solicitar ao concilio permis­são para participar da Santa Ceia de que estava ex­cluído, num acinte claro a Calvino, que não somente insistia na autoridade exclusiva do consistório para tratar de assunto dessa natureza, como se negara a servir o sacramento da Santa Ceia a indivíduos de re­putação duvidosa.

Calvino foi consultado pelo concilio e, terminan- temente, se opôs ao pedido, alegando que ao concilio faltava autoridade para tratar do assunto. No sua au­

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sência, todavia, a permissão foi concedida, embora deixasse o concilio a Berthelier julgar da conveniên­cia de participar ou não. Sabe-se que, particularmen­te, Berthelier foi aconselhado a não comparecer à cerimônia, até mesmo proibido por alguns.

Calvino ficou revoltado e condenou, perante os outros ministros, aquilo que lhe pareceu, não apenas uma usurpação de direitos, mas um desacato acinto­so ao consistório e, particularmente, a ele, da parte do concilio. Por outro lado, lamentou que tal licen­ça fosse dada a pessoa tão indigna de participar da Santa Ceia. O Concilio não se abalou.

No domingo, dia da celebração do sacramento, Calvino declarou do púlpito: “Hoje celebramos a Ceia do Senhor, se qualquer um a quem o acesso tenha si­do proibido pelo consistório, julgar forçar o seu ca­minho à mesa do Senhor, eu aqui testifico que cum­prirei o meu dever mesmo com risco de minha vi­da” .45

Sem dúvida, a coragem de Calvino, mais do que o conselho dos homens do concilio, intimidou Berthe­lier e ele não se atreveu a ir. Ganhava Calvino uma vitória difícil e arriscada. Não poucas vezes tivera oportunidade de mostrar, “que não tinha a sua vida por preciosa, conquanto que cumprisse o ministério que recebera do Senhor”. Pouco tempo antes, quan­do numa reunião do concilio, agitadíssimo, os mem­bros dos dois partidos, Calvinistas e Perrinistas — estavam a ponto de praticarem uma verdadeira cha­cina e as espadas já reluziam nas mãos dos mais ar­rogantes e violentos, Calvino entrou no recinto à fren­te dos ministros, em meio a gritos e. insultos, com pa- laviras enérgicas, mas calmas, conseguiu amainar a tempestade e produzir uma conciliação embora pro­visória, mas salvadora para o momento.

Calvino ia, no entanto, ficando cada dia mais des­gastado, com a saúde sempre precária. Não se abai­xava aos desmandos do concilio e ós reprovava, co­mo também os outros pastores, do púlpito. O conci­lio, desarmado na sua autoridade, se limitava a fa­

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zer-lhes exortações para que moderassem a lingua gem e pregassem a Palavra de Deus.

Na rua, Calvino era vítima de constantes insul­tos. Contra ele atiçavam os cães, batiam à sua porta para inquietá-lo. A perda da esposa, após longa e so­frida enfermidade em 1549, em meio a tantas lutas, veio aumentar aflição ao aflito. Cartas de Calvino a amigos, como Parei, dão conta das tristezas e sauda­des que angustiaram o seu coração de esposo com a perda da companheira tão útil e tão fiel.

Um ano depois, um escândalo, debaixo de seu próprio teto, vinha lançar um estigma sobre o seu lar e aumentaria as amarguras de sua cruz tão pesa- d.a Viu-se obrigado a denunciar perante o consistó­rio a própria cunhada, esposa de seu irmão Antônio, que adulterara com um de seus criados. Calvino já estava pronto a deixar o seu posto e aguardava uma expulsão, como de outra vez, a qualquer momento.

Escrevera a Viret em 1548, dizendo-lhe que não sabia o que fazer, mas estava a ponto de não supor­tar mais, mas “desejaria que o Senhor me liberassè de meu posto. . .”. Pregou, tomando as palavras do apóstolo Paulo aos presbíteros de Éfeso, no livro de Atos, capítulo, 20 lamentando que as autoridades tentassem fazer aquilo que não lhe parecia certo, nem conforme a Palavra de Deus, que ele tinha pregado. Exortou os fiéis, que fossem obedientes à Palavra de Deus e terminou, “encomendo-vos, pois, irmãos, à Pa­lavra da sua Graça” .46

Beza e outros autores acham que esse sermão de Calvino modificou a situação e uma nova aragem co­meçou a assoprar. O concilio resolveu examinar a questão de novo, e o concilio dos 2 0 0 , posteriormen­te, tomou posição contrária à resolução anterior do pequeno concilio. Consulta foi feita às igrejas de Zuri­que, Schaffhause, Basiléia e Berna, que muito em­bora as opiniões fossem divididas, se colocaram em maioria ao lado de Genebra. Nesta altura, Berthelier tinha caído em desagrado.

Em 1554 uma reconciliação dos dois grupos se fez, com um compromisso por ambas as partes de

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obedecer a Deus e Sua Palavra.Houve uma reunião cordial e uma refeição em

conjunto. Em 1555 conseguia Calvino que os dois con­cílios e a assembléia reconhecessem o direito do con­sistório de aplicar a excomunhão, conforme determi­navam as ordenanças.

Referindo-se ao fato, Beza diz: “O ano seguinte (1555), pela maravilhosa bondade de Deus, pôs fim às lutas domésticas e deu à República e à Igreja de Genebra o repouso desejado” .47

Os facciosos se arruinaram por suas próprias ar­mas. Uma terrível conspiração foi descoberta pela pe­tulância de alguns conspiradores, quando em estado de embriaguez. Alguns tiveram pena capital e outros foram exilados.48 Perrin e alguns de seus partidá­rios fugiram.

Outros fatores concorreram para essa vitória: a perseverança invencível de Calvino, a sua firmeza, a sua coerência (apesar das suas faltas) produziram um novo espírito. Por outro lado, nova geração vinha as­sumindo posição de liderança em Genebra, moços que foram criados sob a disciplina e orientação de Calvi­no. Além disso, muitos refugiados que cada dia vi­nham reforçar as fileiras dos seguidores de Calvino, era gente sofrida por causa do evangelho, fugida das perseguições e por isso, apreciava o zêlo do reforma­dor. Essa gente, em muitos casos, era gente culta que ajudava a formar uma poderosa classe intelectual res­peitável.

As eleições dos concílios foram, naturalmente, se­lecionando os seus membros e expurgando aqueles que se opunham à nova ordem. Assim como afirma­va Stickelberg, “embora o mundo convulsionado con­tinuasse em luta, Lutero já estivesse morto e os países católicos empenhados em desfazer a obra da Reforma, em Genebra o poder de Deus ia-se consolidando”, por isso o mesmo Stickelberg chama os nove últimos anos da vida de Calvino, “anos de triunfo”.

Genebra se torna identificada com o grande lu­tador de sua causa e passa a ser conhecido por mui­tos como cidade calvinista.

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Capítulo 9

SER VETUS

É impossível separar o caso Servetus da grande luta que Calvino enfrentou com os libertinos. Mesmo porque, ao que tudo indica, aquilo que fora arranja­do para dar um golpe final definitivo no grande re­formador, acabou por estranho que pareça, consti­tuindo-se na sua grande vitória.

Jovem de vinte anos de idade, mais ou menos, Servetus aparece em Estrasburgo, grande centro de líderes da reforma, afetando ares de polemista e teó­logo. Pouco se sabe de sua infância. Sabe-se que era filho de um advogado de Videla, para onde se trans­ferira de Villa Nueva de Aragão, onde nascera.

Estudou Servetus em Saragoça, com vistas à ad­

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vocacia e, posteriormente, em Tolosa. Em Estrasbur­go começou a levantar questões sobre o Homem Je­sus e o Verbo Divino, em que a divindade de Jesus era posta em dúvida. Publicou a seguir trabalhos so­bre a trindade — De Trinitatis Erroribus — e tam­bém, Diálogo sobre a Trindade.

Dado o caráter heterodoxo da sua tese, recebe a imediata repulsa das autoridades de Estrasburgo e o seu livro tem a venda proibida. Percebendo que a si­tuação não lhe era muito cômoda, tratou de sair de Estrasburgo, mesmo porque Martin Bucer, que com ele manteve discussões sobre a sua tese, procurando convencê-lo do seu erro, achou que seria prudente que se retirasse da cidade, de vez que se tomava mui­to séria contra ele a oposição.

Encontramo-lo mais tarde estudando medicina em Paris, quando Calvino de passagem por lá o pro­curou e marcou com ele um encontro a fim de que discutissem o assunto da trindade. Servetus não com­pareceu ao encontro marcado.

Dependendo da posição que cada um toma no caso, divergem os biógrafos de Calvino, ou de Serve­tus, sobre a razão desse não comparecimento ao en­contro aprazado.

Calvino não tinha então a projeção que mais tar­de adquiriu, daí alguns pensarem que Servetus sim­plesmente não deu importância ao caso, pois se sen­tia muito superior a Calvino e não estava para perder tempo com um obscuro contendor. Pensam outros que a prudência aconselhou-o a não se expor assim tão claramente às barbas dos doutos mestres da Sorbon­ne, que por aquele tempo, sob a orientação de Beda, estavam à cata de hereges para os exterminar, se pos­sível, da face da terra. Para Calvino, também um sé­rio risco, de vez que já se tinha afastado anterior­mente dali para não ser preso, quando do discurso de Nicolas Cop em que se vira envolvido.

Servetus era dono de uma inteligência privilegia­da, brilhante, muito jovem, já dispunha de conheci­mentos mais ou menos vastos em diversos campos do

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saber. Conhecia bem a História Eclesiástica, o grego, hebraico, o latim e o árabe. Discursava sobre teologia e gostava de apresentar as suas idéias contrárias ao ensino aos doutores da igreja e também dos refor­madores, pois em questão de Trindade não havia en­tre eles divergência maior.

Bucer e Oecolampádio com ele discutiram e mos­traram-lhe o êrro em que laborava, mas não o con­venceram. Lutero leu o trabalho de Servetus e o con­denou, julgando-o terrível heresia. A fama de sua he- terodoxia chegou até Roma e a inquisição espanhola, ao que parece, quis atraí-lo, levando-o de volta a sua terra para executá-lo. Convém lembrar que as suas idéias sobre a Trindade não eram de todo novidade. Nas polêmicas do terceiro século sobre o assunto, ti­veram como adeptos Monarquianos, Sabelianos e Pau­lo de Samossata.

Servetus entendia que a Reforma, embora tives­se feito progresso na reabilitação de algumas doutri­nas, deixara intactos erros graves tais como a dou­trina da trindade, que o Concilio de Nicéia havia for­mulado, sem apoio nas Escrituras.

Encontramo-lo posteriormente em Lyon, fazendo revisões para a imprensa e editando uma Geografia de Ptolomeu, assunto sobre o qual em Paris fizera uma série de conferências e entrara em polêmica com os doutores, aos quais chamou de ignorantes, receben­do dêles em troca o mesmo epíteto.

Forma-se em medicina, em Paris. Em 1540, sob o nome de Villanueva, que já vinha adotando desde algum tempo, está em Viena, perto de Paris, e pratica medicina sob a proteção do bispo que o tem como seu médico, e que faz vistas largas aos comentários de Servetus sobre a Bíblia, condenados pelas autori­dades eclesiásticas de Lyon, Roma e Madrid. Publica, então, um tratado sobre a circulação do sangue nos pulmões, uma descoberta de grande valor científico. Inicia uma correspondência com Calvino, na qual, além das suas idéias anteriores sobre a Trindade, ata­

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ca também outras doutrinas, e o faz com superiori­dade pretensiosa e sarcasmo.

Sabendo, pois» do seu paradeiro, Calvino nunca fez qualquer coisa para o denunciar. Enviou-lhe uma cópia das suas Institutas, mostrando-lhe assim como encarava a doutrina da Trindade. Servetus a devolveu com muitas correções e tratando Calvino em tom in­sultuoso.

Guilherme de Trie, cidadão de Lyon que se refu­giara em Genebra por causa de sua fé evangélica, re­cebeu cartas de um seu parente que o censurava pe­las suas idéias religiosas consideradas hèréticas. Em resposta, alegou ele ao parente, faltava-lhe autorida­de para falar de heresias, de vez que em Lyon residia sem ser molestado um herege como Servetus.49 O parente tomou a si o caso e levou-o ao conhecimento das autoridades eclesiásticas. Investigações levadas a efeito revelaram que o indivíduo em questão era na­da menos do que o doutor Villanueva. Servetus ne­gou a sua identidade. Uma busca nos seus livros e na editora que os publicara, chegou tarde demais, não achou nada. O parente de Trie volta à carga e agora deseja ter provas da acusação de Villanueva, pois am­bos — ele e Trie estão na posição de falsos acusado­res, sujeitos até mesmo a um processo legal. Trie re­corre a Calvino para que lhe forneça as provas. Cal­vino reluta em fornecê-las, segundo o testemunho de Trie, dizendo que não era sua função combater here­ges com espada, mas refutá-los. Por outro lado, como afirmou, era-lhe repugnante oferecer informações à Inquisição, que vinha perseguindo seus próprios ir­mãos na França. Não tinha nenhuma comunhão com estes satélites do Papa, com os quais havia tão pouco em comum como Cristo com Belial. Trie apela a Cal­vino para que não deixe agora em falsa posição.50

Afinal de contas, as cartas de Servetus a Calvino não eram de caráter reservado, pois foram incluídas no livro que ele mesmo mandaria a Calvino. Aqueles que se colocam incondicionalmente contra o reforma­dor, duvidam da informação de Trie e o fazem an­

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sioso por incriminar Servetus. Stefan Zweig, por exem­plo, se situa neste grupo, julga Calvino um fanático que, quando tratava de defender sua causa, punha de lado á honestidade e a verdade dos fatos. Se Calvino quisesse denunciar Servetus, poderia ter feito muito tempo antes, pois, durante alguns anos era um dos poucos que sabiam do seu paradeiro e da sua verda­deira identidade, que, então, estavam ocultos sob um falso nome.51

Perante as autoridades do Santo Ofício, Servetus negou a autoria dos livros seus. Quanto às iniciais que, ao invés da assinatura, esses livros traziam, e que coincidiam com as do seu próprio nome, negou-as que fossem suas. Quando, porém, a cópia da corres­pondência mantida com Calvino, com a assinatura de Servetus, foi apresentada, afirmou que se tratava ape­nas de um epíteto que assumira por sí na discussão com Calvino.

Preso, fugiu da prisão, ao que se supõe com o auxílio de algum amigo, quem sabe a mando de seu protetor, o bispo. Foi, no entanto, queimado em efí­gie, juntamente com seus livros.

Tempos depois, aparece em Genebra e é reconhe­cido, denunciado por Calvino e preso.

Stickelberg põe em dúvida a afirmação feita por muitos de que Servetus foi preso logo que chegou a Genebra, e inclina-se com outros a crer que estivesse lá algum tempo, oculto na casa de amigos. E ponde­ra: ao ser preso, Servetus afirmou que estava alí de passagem para a Itália. Ora, Genebra não era o cami­nho mais perto para a Itália; por que essa volta can­sativa.52

Em Genebra morava um dos impressores dos li­vros de Servetus, que era libertino, e que, por certo, o trazia a par da situação alí, que na ocasião era in­teiramente desfavorável a Calvino, com a maioria dò concilio contra ele. No correr do processo, Servetus exigiu que Calvino fosse preso e ambos fossem julga­dos e que, provada a culpa do falso acusador, se lhe aplicasse “poena Talionis”, e que, provada a sua ino­

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cência, fossem as propriedades de Calvino transferi­das a ele — Servetus — como indenização.

Daí concluir-se que o homem que, em Viena, ne­gara perante as autoridades eclesiásticas a sua iden­tidade e a autoria dos seus livros e que, em Genebra, afirmava sem temor uma e outra, alimentava espe­ranças de derrotar Calvino e tomar o seu lugar na liderança da cidade.

O tribunal eclesiástico de Viena pediu a extradi­ção de Servetus, uma vez que lá fora condenado à fo­gueira. Servetus pediu de joelhos que não lhe dessem. Uma consulta foi feita às cidades de Berna, Basiléia, Schaffhausen e Zurique sobre a condenação de Ser­vetus e a resposta unânime foi pela condenação.

No longo processo, Calvino, chamado a testemu­nhar, manteve longas e calorosas discussões com Ser­vetus, sendo muitas vezes por ele insultado. Os inimi­gos de Calvino no concilio tratavam de por todos os meios livrar Servetus, o que seria uma maneira de condenar Calvino, incrimínando-o como falso acusai- dor. Amin Perrin, numa última cartada, propôs que a matéria subisse ao Concilio maior dos 200, sem re­sultado.

Contra a expectativa de Servetus e de seus ami­gos, e de Calvino, o conselho decretou-lhe a pena de morte, para ser queimado vivo. Era a pena de here­ges. Calvino tentou com os outros pastores conseguir que a pena fosse comutada para uma morte menos terrível, o que não conseguiram. Calvino visitou Ser­vetus antes da execução, tentando levá-lo ao arrepen­dimento, sem o conseguir. .

Tem-se procurado encarnecer a participação de Calvino nessa dolorosa e terrível tragédia, participa­ção que só se tem que lamentar. Alguns fatos devem ser lembrados:

1. A sentença foi dada por um tribunal do qual Calvino não fazia parte e onde os seus inimigos estavam em maioria. Corria Calvino naquela épo­ca o risco de uma outra expulsão ou mesmo de

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ser morto, pois» planos para tirar-lhe a vida não faltaram, só que não vingaram;2. O tribunal que condenou Servetus era um tri­bunal secular de uma nação (pois Genebra era cidade livre, com governo próprio), onde a pena de morte era aplicada aos hereges com morte em fogueira.Os que desejam dar maior dimensão à participa­

ção de Calvino nesse episódio procuram negar-lhe as boas intenções em salvar Servetus da pena máxima, duvidam de que ele não tivesse procurado denunciar Servetus perante a Inquisição — contra todas as evi­dências — agarram-se a uma expressão de Calvino em uma de suas cartas em que dizia que se aquele here- ge aparecesse em Genebra não o deixaria sair vivo. Essa expressão foi escrita muito tempo antes e não parece senão uma força de expressão como indica.

Esquecem-se de que tal era o espírito da época. Melanchthon, tido como pacífico e magnânimo, não só aprovou a condenação de Servetus, mas felicitou Calvino e Genebra por isso .54

Naqueles dias, muitos estavam sendo mortos em fogueiras como hereges. Não tivesse Servetus fugido da prisão, teria sido queimado em Viena, como fora a sua efigie e os seus livros. Não tivesse Calvino dei­xado a França e teria possivelmente sido devorado pelas chamas acesas pelos doutores de Sorbonne como foram muitos, entre eles o seu grande amigo, Etienne de La Forge.

Calvino não assistiu à execução de Servetus e Sti ckelberg afirma que ele ficara orando, ele que se es­forçara para evitar essa condenação tão extrema. Cal­vino tem sido censurado duramente, tanto por amigos como por inimigos, pela sua participação na morte de Servetus. Infelizmente, o que se tem feito é o que Wendel condena, quando diz a respeito do caso de Servetus e a participação de Calvino nela: “É contrá­rio a uma concepção sólida da História tentar aplicar a nossa maneira de julgar e os nossos critérios imo­rais ao passado” .55

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Creio que nenhum calvinista honesto e sereno no seu julgamento dos fatos tentaria inocentar Calvino pela sua infeliz participação nesse episódio negro e deprimente da história de Genebra. E creio que é o legado que dele recebemos que nos permite ver com isenção esse doloroso capítulo da nossa História. Por que ninguém que aceita a doutrina calvinista poderá alimentar ilusões com respeito à natureza humana e suas fraquezas. É com Calvino que aprendemos além da doutrina o exemplo de humildade que do seu leito de morte através dos séculos nos envia, quando de­clara aos homens do concilio de Genebra: “Penso, se­nhores, que vós tendes suportado com paciência a minha veemência, e meus defeitos, que eu detesto: Deus me tem sustentado". E aos pastores companhei­ros de trabalho: “Vós tendes suportado muitas das minhas enfermidades: tudo que eu fiz nada vale. O ímpio agarrará essas palavras, mas eu as repito; tu­do que eu tenho feito nada vale. Eu sou miserável criatura. Posso dizer, contudo, que tive boas inten­ções e que meus defeitos sempre me atormentaram. O temor de Deus está no meu coração: vós podeis di­zer que meus desejos têm sido bons. Peço perdão pe­los meus pecados e, se houver algum bem, espero que vos conformeis a ele e o sigais”.

Com Calvino, aprendemos que nenhum bem há em nós e que “a graça não me pertence, não a pos­suo de mim mesmo: se eu a tenho, devo louvar a Deus por ma ter dado” .56

Lamentamos profundamente o envolvimento de Calvino na morte de Servetus, mas não nos envergo­nhamos da herança espiritual que nos legou. Em Ge­nebra, fui ver a Igreja de S. Pedro onde Calvino tan­tas vezes pregou, fui ver o auditório onde pronunciou as suas lições bíblicas memoráveis, mas fui também conhecer o monumento de reconciliação ou penitên­cia que os descendentes espirituais de Calvino fizeram erguer, sob a inspiração de um dos mais devotados e ilustres calvinistas deste século — Émile Doumergue •— autor da inscrição que lá está e expressa o senti­

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mento real de todos nós: “Como reverentes e agrade­cidos filhos espirituais de Calvino, o grande reforma­dor, repudiamos o seu erro, que era o erro da sua época, e, de acordo com os verdadeiros princípios da Reforma e do Evangelho, apegamo-nos com firmeza à liberdade de consciência e erigimos esse monumen­to de reconciliação”. “Em XXVII de Outubro de MCMIII".

Todo verdadeiro calvinista sabe reconhecer as li­mitações da humana natureza, que só tem valor me­diante a Graça de Deus. O Monumento de Reconcilia­ção se afina perfeitamente com o ensino de Calvino sobre a nossa miséria, e com o espírito de contrição e humildade que se espelha no seu testamento, por isso mesmo, é único na história e aponta para aquela bem-aventurança dos humildes de espírito que a Teo­logia de Calvino propõe e é capaz de produzir.

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Capftulo 10

SEBASTIÃO CASTÊUO MAIS UM OPOSITOR

Um outro grande opositor de Calvino é seu pa­trício, Sebastião Castélio, francês de Dauphins, perto da divisa com a Suiça. Castélio estudou em Lyon e tomou-se muito competente em Grego, Hebraico, La­tim e posteriormente Alemão.

Falava com fluência francês, sua língua mãe, tão bem como o italiano. Durante os estudos em Lyon, teve oportunidade de assistir à queima de “hereges” e ficou profundamente abalado nas suas convicções religiosas, acabando por aderir ao protestantismo, in­do, então, para Estrasburgo, neste tempo uma das ci­dadelas dos reformados.

Por sugestão de Farei, foi ele convidado para le­cionar na Escola em Genebra, onde se tornou também

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diretor. Revelou-se não somente bom professor, como excelente pedagogo, tomando-se conhecido e divulga­do o seu livrinho preparado para os alunos de fran­cês e latim “Colloques”. Logo depois, Castélio, que já vinha pregando num dos bairros de Genebra, candi­datou-se ao ministério. O concilio estava pronto a re­comendar a sua ordenação, mas Calvino que conhe­cia as idéias teológicas de Castélio, errbora o admi­rasse como professor, opôs-se à ordenação dele, pois, sabia que não aceitava o caráter canônico do livro de Cânticos e tinha interpretação, para ele, errada de cer­tas passagens do credo apostólico, além da sua re­jeição da doutrina da predestinação.

Castélio havia insistido para que Calvino aprovas­se a publicação de uma tradução sua do Novo Testa­mento, mas Calvino julgava haver certas falhas na tradu­ção de alguns textos.

Em tudo, porém, Calvino mostrava simpatia para com Castélio, inclusive propusera o aumento de seu salário, achado insuficiente. Castélio se irritou por não ter sido aceito no ministério e resolveu deixar Gene­bra. Pediu, então, um documento que atestasse o seu bom caráter e desempenho no trabalho; documento que lhe foi dado, redigido por Calvino e por ele assi­nado com os outros pastores.

Castélio foi para Basiléia, onde lutou com as maio­res dificuldades para se manter, até que conseguiu um lugar na Universidade, tornando-se, então, um profes­sor de nome. De Basiléia começou a escrever, com­batendo indiretamente a Calvino e alguma de suas idéias.

Após a morte de Servetus, tendo Calvino escrito o tratado sobre Heresia, Castélio saiu a campo e di­retamente atacou Calvino com extrema severidade. Calvino, pessoalmente, não tratou do caso, mas o con­cilio da cidade de Genebra, que também foi indireta­mente atingido, dirigiu-se ao concilio de Basiléia e à Universidade, pedindo reparação do caso. Nesta al­tura, Castélio gozava de grande prestígio alí, mas a cidade de Basiléia resolveu impedir a publicação do

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livro em que os ataques dirigidos a Calvino se con­tinham.

Logo depois surgiu um panfleto de autoria duvi­dosa, mas atribuída a Castélio, em que novas inves­tidas eram feitas contra Calvino. Calvino saiu a cam­po e o atacou com extrema severidade e muita du­reza.

A cidade de Basiléia tomou as dores do seu ilus­tre hóspede e grande professor e cancelou a proibi­ção anterior. Foi, então, que Castélio lhe dirigiu o mais violento e desaforado ataque, recheado de insultos e proclamando a sua própria integridade e inocência, invocando o testemunho divino em seu favor e ex- conjurando Calvino. Não demorou, contudo, e vieram à tona revelações das relações sigilosas que Castélio vinha mantendo com dois indivíduos declaradamente hereges e inimigos da causa evangélica. Um deles, Oc- chino, ex-geral da ordem dos franciscanos, que, por um tempo, se fizera convertido ao protestantismo, mas que escrevia obras contrárias à doutrina evangélica. Descobriu-se, então, que Castélio traduzira uma obra herética de Occhino para o italiano. Caía por terra, portanto, toda a lisura, toda a integridade e toda a pureza de intenções que Castélio se arrogara, com tanta verbosidade, na polêmica e no seu ataque desa- brido a Calvino.

A morte repentina de Castélio evitou que provi­dências fossem tomadas pela universidade e pela ci­dade contra ele. O Sínodo Geral das Igrejas Reforma­das, em 1563, o condenou por heresia e falsidade.

É pena que um escritor do quilate de Stefan Zweig escreve um livro que intitula “The Right to Heresy”, no qual cuida mais de condenar Calvino do que de defender Castélio, e o faz com extrema parcialidade, como se Calvino se recusasse a autorizar a publica­ção do Novo Testamento traduzido por Castélio, jul­gando a tradução imperfeita, por despeito e por me­do de competição. Quando Calvino mostra benevolên­cia para com Castélio e lhe dá uma carta de reco­mendação honrosa, é nada mais do que uma jogada manhosa para parecer magnânimo. Se Calvino se re­cusa a tomar qualquer ação contra Castélio e o con-

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cílio de Genebra é que exige de Basiléia e da Univer­sidade uma solução, é Calvino quem habilmente pu­xa os cordões. De modo que Zweig, obrigado a reco­nhecer a capacidade intelectual de Calvino, a sua in­teligência, o seu dinamismo, a sua devoção ao traba­lho e à causa a que se dedicou, passa por cima de to­das as evidências de sinceridade, de zelo incondicio­nal pela fé evangélica, de sua heróica resistência a toda ameaça de deturpação da doutrina e do seu em­penho paciente por uma reconciliação de todos os grupos reformados, para considerar a luta de Calvi­no o pulo de irntó cega e fanática ambição ditadorial. Afirma: “nada estava mais longe de Calvino do que reconciliação. . . ele nunca entendeu o significado da via média”.57

E vai mais longe ainda, quando diz contra todas as evidências: “ele nunca retrocedeu um passo: nun­ca fez um movimento no sentido de condescender com o adversário. Aqueles que têm que lidar com um ho­mem assim ou hão de quebrá-lo ou ser quebrados por ele".58

—■ Para Zweig, Calvino era um zelote fanático, desonesto, que “não tinha escrúpulos de alterar nem mesmo o texto sagrado quando essa alteração era ne- cèssária para levar a melhor contra o. adversário”.59

Que pena? Preconceitos não têm lógica, mas exis­tem e são capazes de turbar a mente e o julgamento do mais lúcido, mais brilhante mestre da lógica. Que pena. . .

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Capftulo 11

0 FIM DA LUTA

Stickelberg intitula o período na vida de Calvino de 1550-1556 “Anos de Triunfo”. A posição que, por anos seguidos, tinha trazido Calvino nas agonias de uma possível expulsão com ameaças de morte, dimi­nuía agora apds a execução de Servetus.

Parece mesmo que um esforço supremo tinha si­do feito para liquidar com Calvino e que a presença de Servetus em Genebra era parte deste plano. Amin Perrin, que se tornara em cabeça do movimento anti- calvinista, fora um poderoso instrumento nas decisões do concilio, com vista a diminuir a força de Calvino. Numa investida desesperada, com outros elementos, planejara uma insurreição que, descoberta a tempo, fracassou, resultando na condenação de alguns che­

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fes e na fuga de outros, inclusive o próprio Perrin. Vandele e Berthelier foram decapitados. Calvino não estava presente e não tomou parte nisso, conforme carta a Bullinger. Depois de um longo período de pres­sões que por pouco não o destruíam de vez, Calvino começa agora a colher os frutos de seu esforço.

Não possuía nenhuma autoridade formal, nem mesmo o título de cidadão de Genebra, mas agora era indiscutível a sua força moral e espiritual. Genebra, e toda Europa protestante, ouvia a sua palavra com respeito. A fama da cidade como uma comunidade próspera, progressista e moralizada *ia longe e mui­tos vinham visitá-la para conhecer de perto o que alí se passava. O Duque de Sabóia, que nunca perdera as esperanças de voltar ao domínio de Genebra, sabia agora que seria debalde tentar. J. Knox em 1556, di­zia que Genebra era a mais perfeita escola de Cristo, desde os dias dos apóstolos.

Tinha agora Calvino oportunidade de realizar o seu grande sonho — estabelecer alí a sua Academia— um centro educacional para a Igreja e pela Igreja, de modo a preparar ministros e cidadãos capazes, sob a orientação de uma Teologia Cristã verdadeira.

Desde que para alí chegara, na primeira vez, ten­taria organizar a cidade em bases sólidas e para isso planejara uma obra educacional.60 Iniciara as aulas de retórica e preparava-se para o ensino de francês, latim, grego e hebraico. A sua expulsão interrompera o plano.

Logo após a sua volta, começou a insistir no de­ver da igreja de educar os seus filhos. Isso está cla­ro nas suas “ordenanças”. As lutas que se sucederam e os problemas agudos que se acumularam tiveram prioridade, pois, era uma batalha de vida ou morte que se travava. Até que a paz veio a reinar.

A 5 de março de 1559 abria Calvino a sua Acade­mia. Os prédios ainda por terminar sem vidraças; tá buas toscas servindo de bancos e carteiras, mas o nú­mero de alunos já na abertura atestava o entusiasmo do povo, previa o futuro da escola. No primeiro ano

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já contava com 900 alunos. A abertura foi na igreja de S. Pedro, com a palavra de oração por Calvino. O pregador foi o reitor escolhido, Teodoro Beza, que pronunciou a sua oração em latim, discorrendo sobre educação através dos tempos. Alunos e professores as­sinaram o Catecismo e a Confissão de Pé. Calvino se incumbiu de escolher os professores e trouxe de Pa­ris e de Lausanne os melhores entre os melhores que pode encontrar.

Stickelberg nos diz que Calvino não se contenta­va com professores que fossem apenas bons, queria os melhores. Ele mesmo se incumbiu de redigir os estatutos da Academia.

Houve muita dificuldade financeira, mas uma campanha de ofertas voluntárias levou gente de to­das as classes a contribuir, alguns com mais do que as suas posses pareciam permitir. Resolveu-se que as multas resultantes de processos nos tribunais fossem revertidas em benefício da Escola. Jean Boche pagou 100 coroas, porque fora multado por não respeitar os direitos autorais das “Institutas”, que pertenciam a Antônio Calvino, irmão do reformador.

Sugeriu Calvino aos advogados que, ao redigir testamentos, aconselhassem os seus clientes a legar parte dos bens à Academia, o que deu bom resultado, pois, em pouco tempo uma quantia considerável pro- vinda de 12 testamentos se destinava à Escola.

Estudantes afluíram de todas as partes da Euro­pa e a Academia se tornou famosa. Da Itália, da Fran­ça, Holanda, Escócia, Inglaterra vinham moços que, mais tarde, haviam de levar para suas terras a fama da Escola de Genebra. Calvino adotou um programa de ensino unificado — primário, secundário e univer­sitário .

Quando morreu, a Academia contava com 1200 alunos no curso superior, além de 300 nos cursos in­feriores. Calvino tinha como ideal preparar líderes pa­ra a igreja, para a sociedade e para o governo civil.

Era uma Escola da Igreja, pela Igreja e para a Igreja. Mais tarde, a educação do tipo de Genebra se implantava na França, Holanda, Escócia e, até mes­mo, na Alemanha. Parece que o jesuíta Aquaviva, ao

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formular o sistema educacional da ordem, utilizou idéias de Calvino no seu Ratio Studiorum.

Um presente de Natal. Em 25 de dezembro de 1559, Calvino foi convidado a comparecer ao conci­lio para tomar conhecimento de que lhe era conferi­do, então, o título de cidadão da cidade. Agradeceu, comovido, e afirmou que não procurava antes esse tí­tulo para si, pois temia ser mal entendido. Genebra afinal tomava-se identificada com o grande lutadoi de sua causa e passava a ser conhecida por muitos como a cidade de Calvino.61

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Capftulo 12

COMPANHEIROS DE CAL VINO

Alguns nomes estão indissoluvelmente ligados à vida e obra de Calvino, de modo que, até para melhor se entenderem certos aspectos da sua carreira, é pre­ciso que se fale deles — situando-os no grande con­texto histórico da Reforma em Genebra. Falamos de Farei, Viret e Beza. Cada um desses homens ocupa um' papel diferente no enredo dessa notável epopéia, pois, cada um deles possui qualidades próprias, pe­culiares; em alguns casos até opostas às dos outros.

Falemos pela ordem que nos parece cronológica, por isso mesmo mais lógica, primeiramente de Wil- liam Farei.

A) FARELQuase todos os historiadores que tratam da vida

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desse curioso personagem da história da Reforma Sui- ça, julgam necessário oferecer alguns traços físicos, além dos morais, intelectuais e espirituais deste ho- menzinho impertinente, por vezes importuno, para al­guns.

Era de pequena estatura, barba avermelhada e em desalinho; magro, porte macilento, de aspecto doen­tio e tez pálida. Atrás, porém, desta figura pouco ins- piradora, pouco convincente, um dínamo de energia, de vontade; homem de perseverança e intrepidez irre­dutíveis: sempre ativo, sempre em movimento, sem­pre ardoroso.

Fora católico inflamado de grande zelo e fanáti­co; uma vez convertido à causa da Reforma, mais ar­doroso se tornou ainda, possuidor de um zelo quase obsessivo pela renovação espiritual do povo, pela for­mação de uma igreja evangélica, já que não cria na possibilidade de reabilitação da Igreja de Roma. O Papa era o anti-Cristo e o papado caminhava para um destino irreversível de completa destruição. Pos­suía, em grande medida, muito mais da ousadia de Lutero e era capaz de assumir atitudes muito mais drásticas do que o reformador alemão.

Longe de ter a cultura e erudição de Calvino, so­brepujava-o na audácia com que combatia o erro e na capacidade de convencer pela oratória patética e inflamada os seus ouvintes. Cria com grande entu­siasmo na justificação pela fé e fazia dessa doutrina um tema constante de suas mensagens. Muitas vezes se tornava negativo na sua faina de denunciar a ido­latria, o celibato clerical e as inovações doutrinárias. Não via obstáculo à sua atividade evangelística e pre­gava por toda a parte onde ia. Segundo Schaff, era o Elias da Reforma Francesa, e, segundo outros, o azor- rague dos sacerdotes. A sua violência era nas palavras. Nunca levantou a mão contra alguém e nunca se uti­lizou de armas, nem para se defender quando ataca­do, o que muitas vezes ocorreu.

Schaff acha que Farei era um destruidor mais do que um construtor; um conquistador mais do que um

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organizador; homem de ação, não de letras. Parece- nos um tanto exagerada a apreciação de Schaff, mes­mo porque não se pode negar a extraordinária obra construtiva que Farei desempenhou como evangelisr ta, sob as ordens de Berna, conquistando para a cau­sa da Reforma, não somente Neuchatel, mas outras cidades pequenas naquela região. E nem se pode ne­gar o seu mérito extraordinário na introdução da Re­forma em Genebra. Nem há de se pensar que Farei seja um homem destituído de cultura geral ou teoló­gica. Ainda jovem, foi para Paris e teve como mestre o grande Jacques Lefèvre d’Étaples, que lançou no seu coração a semente do evangelho reformado. Alí es­tudou com afinco hebraico, filosofia e teologia. A sua formação religiosa reformada se completou no con­tato com os valdenses de Pie de Mont, dos quais pos­sivelmente herdou o fervor religioso e a fé inquebran- tável. Não pode ficar em Paris por causa da perse­guição religiosa e, por isso, seguiu seu mestre, Lefè­vre, o qual acusado de heresia pela Sorbonne buscava abrigo nos domínios de Margarida Valois, a proteto­ra dos reformados.

William Briconnet, o bispo favorável à Reforma, mas sem qualquer desejo de abandonar a Igreja Ro­mana, deu permissão a Farei de pregar na sua dio­cese em Meaux, mas logo teve que despedí-lo, dado o seu ímpeto inquietante. Depois de algumas viagens, dirigiu-se para Basiléia, onde Oecolampádio o rece­beu. Alí resolveu discutir treze teses nas quais asse­gurava a verdade das Escrituras Sagradas, salvação pela fé, combatia o celibato clerical, idolatria, etc. . . Oecolampádio se surpreende com a temeridade e ou­sadia de Farei e chega a dizer que ele é um bom par para a Sorbonne. Erasmo, que alí residia, sentiu-se incomodado com a intolerância iconoclástica de Farei e o censurou severamente. Farei o chamou de covar­de e Balaão. Erasmo não perdoou a ofensa e valeu-se do prestígio que possuia perante o concilio da cidade para obter a expulsão de Farei. Então, vai para a re­gião de Berna e recebe a incumbência de evangelizar

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os territórios subordinados àquela cidade.Em 1532, em companhia de Saumier, vinha a Ge­

nebra, onde Olivetan já vinha realizando algum traba­lho. Acabou saindo dali sobre a proteção dos síndicos da cidade para evitar que fosse liquidado pelos pa­dres e monges, os quais armados o feriram, cuspi­ram e ameaçavam lançá-lo no Ródano. Volta mais tar­de a Genebra sob a proteção de Berna. Discute com um monge dominicano, doutor da Sorbonne, que vie­ra especialmente para combater o protestantismo. Fa­rei alcança uma sensível vitória sobre o monge Furby e alí continua pregando, agora em companhia de Fro- ment e Viret. Disso resulta a adesão oficial da cidade à causa do protestantismo. É nessa altura que Calvi­no aparece em Genebra com intenções de apenas per­noitar ali e seguir viagem para Estrasburgo.

Mas, quem seria capaz de resistir aos apelos de Farei e a sua argumentação, quando esse homem que­ria alguma coisa de que estava convencido ser a von­tade do Senhor? Farei foi ao ponto de ameaçar Cal­vino com o castigo de Deus, caso insistisse em dedi- càr-se aos estudos, rejeitando o convite para ficar em Genebra. Foi então que começou a grande amizade en­tre Farei e Calvino que havia de sustentar ambos na luta. Mais tarde é Farei quem vai insistir novamente com Calvino a voltar à cidade de onde foi expulso.

Em Neuchatel fica até o final da sua carreira. Embora de longe, a correspondência entre os dois re­formadores era constante e um recurso de mútuo apoio durante longos anos até à morte de Calvino.

Abala-se Farei, indo a Estrasburgo para realizar o casamento de Calvino com Idalete de Buren. Calvi­no não pode corresponder à gentileza, pois que, quan­do Farei acha tempo para pensar em casamento, já está com 69 anos e escolhe uma adolescente, que, por sinal, fora criada em sua casa, filha de uma refugia­da a quem acolhera, que se tornara sua empregada. Calvino não somente se recusa a celebrar a união, mas envia-lhe uma carta de exortações um tanto se­veras, reprovando-o, ao mesmo tempo, dirige-se ao conselho de Neuchatel, que ao que parece estava dis­

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posto a despedir o pastor, intercedendo para que agis­se com benignidade, tolerando a leviandade do velho pastor que tão grandes e altos serviços tinha presta­do à Causa naquela cidade e naquela região. O apelo de Calvino foi atendido.

Várias vezes Farei vai a Genebra, em ocasiões es­peciais, emprestar apoio ao amigo, amizade que nun­ca se arrefeceu, teve um epílogo sublime, digno da grandeza de caráter desses dois homens.

Pressentindo a morte que se avizinhava, Calvino escreve a Farei que não o venha visitar, sabendo-o doente e velho; e faz uma despedida comovente por meio dessa carta. Farei, no entanto, com grande sa­crifício, vai a Genebra dar pessoalmente o seu último adeus a Calvino.

As palavras da carta que Calvino escrevera a Fa­rei merecem ser repetidas: “Adeus, meu melhor e mais verdadeiro irmão. Desde que é a vontade de Deus que permaneça depois de mim neste mundo, vivo lem­brando a nossa amizade, que foi útil à Igreja de Deus, de modo que os seus frutos nos aguardam nos céus. Peço-lhe que não se fatigue por minha causa. Tenho dificuldade em respirar e a qualquer momento darei o meu último suspiro. É bastante que eu viva e mor­ra em Cristo, que é a compensação dos seus segui­dores, tanto na vida, como na morte. De novo, adeus, com os nossos irmãos”.

Farei morria não muito depois de Calvino na mes­ma igreja de Neuchatel a qual tanto serviço prestara. Uma estátua marca alí na cidade o seu grande minis­tério.

B) PIERRE VIRETPierre Viret é o único suiço entre os reformado­

res de Genebra, Calvino, Farei e Viret.O campo da sua atuação depois que deixou Ge­

nebra foi em grande parte Lausanne. Nascera em Or- be em 1511, fora educado para o sacerdócio em Pa­ris. Era dotado de grande cultura clássica e teológi­ca, embora não seja tão conhecido nesse aspecto. Pas­sou pela mesma grande crise espiritual por que pas­sou Lutero, quando começou a perceber os erros em

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que a Igreja militava, em face do conhecimento da Bíblia.

Particiou dos trabalhos de Farei e Froment em Genebra logo no princípio. Alí foi envenenado pela co­mida, e embora não viesse a morrer com isso, teve arruinada a sua saúde. Por vinte e dois anos foi pas­tor e professor em Lausanne. Casou-se duas vezes. Era também um grande amgio de Calvino, com o qual manteve grande correspondência portadora de mútuo conforto e de confidências íntimas em momentos di­fíceis na vida de ambos.

Quando Idalete, após o nascimento prematuro do filho, se vê grandemente enferma, é para a casa de Vi­ret que deve ir a fim de cuidar da saúde e recuperá- la. E quando Viret passa pelo doloroso golpe de per­der a esposa, Calvino imediatamente o convida a vir a Genebra, descansar em sua casa e refazer-se da gran­de provação.

Foi Viret quem conduziu Beza a Lausanne, a fim de que ele se tornasse professor na Academia, onde o talento de Beza se tornou evidente e apreciado. Mais tarde, Viret foi deposto pelo concilio e vai, então, pa­ra Genebra, onde é nomeado pregador da Cidade em 1559.

Trabalhou ali com grande êxito e admirável su­cesso na qualidade de evangelista, resultando seu tra­balho nas igrejas de Nimes Montellier e Lyons. Pre­sidiu o quàrto sínodo dos Huguenotes em 1566.

A convite de Jeanne d’Albert, foi para a Academia de Bear que ela fundara em Orthez e Bear. Lá mor­reu em 1571, o último dos três fundadores da Igreja reformada na suiça francesa.

Era de baixa estatura, doente, magro, mas de um espírito ardoroso e incansável. Grande autor, fami. liarizado com as letras clássicas e teológicas. Deixou comentários do Credo Apostólico, dos dez mandamen­tos e da oração dominical. As suas obras são muito raras hoje. Sem o brilho de Calvino ou Beza, sem a audácia de Farei, era, no entanto, um extraordinário

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pregador, capaz de prender o seu auditório. Foi um grande e fiel servo do Senhor.

C) THEODORO BEZASe Farei foi o antecessor de Calvino em Genebra,

que, de certo modo, preparou o caminho para a obra do reformador. Theodoro Beza é o sucessor e con- tinuador da obra, que com brilho e dedicação levou à frente a tarefa iniciada. Já vinha ele trabalhando com Calvino, tinha sido escolhido diretor da Acade­mia e, quando Calvino morreu, não havia dúvida nc espírito dos homens responsáveis pela causa da Re­forma em Genebra de que o seu sucessor natural se­ria Theodoro Beza.

Era Beza natural de Vezelay, uma pequena cida­de no ducado de Burgúndia. Era de família nobre, seu pai Pierre Beza possuia alí um castelo, onde possivel­mente Beza nasceu. Sua mãe, Maria Bourdalou, da nobreza parisiense, era mulher inteligente e caridosa.Faleceu quando Beza tinha menos de três anos. Nes­sa altura Beza já morava com o tio, Nicola Beza, gran­de jurista em Paris e membro do parlamento. O tio alimentava especial afeição pelo sobrinho e cuidou de criá-lo e educá-lo na melhor maneira possível.

Aos nove anos colocou-o sob os cuidados de Mel- chior Volmar, que, então, era professor de grego na Universidade de Orleans, famoso pelo seu saber e adepto das idéias de Lutero. De Orleans Beza foi para Bourges, acompanhando seu tutor, que para lá se transferia. Foi na casa de Volmar que Beza, ainda ado­lescente, encontrou Calvino pela primeira vez.

Em 11 de agosto de 1539, licenciava-se em leis, com honra. Vai, então, para Paris e, contra a vonta­de do pai, mas com o consentimento do tio, dedica- se ao. estudo de letras. Vive no ambiente da alta so­ciedade parisiense, participa das altas rodas, não lhe falta dinheiro, nem nome, nem mesmo um físico in­vejável. Recebia rendas de um polpudo benefício ecle­siástico, o que subentendia o seu ingresso na carreira eclesiástica, que não iria nunca acontecer. Além dis­so, a morte de um irmão trouxe-lhe um legado valio­

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so aumentando assim as suas possibilidades financei­ras.

Casa-se secretamente por contrato com Caludine Benosse, pois a sua condição de detentor de benefício eclesiástico normalmente não lhe permitiria isso. Du­rante a sua temporada em Paris, em 1548, escreveu um livro de poemas, intitulado Juvenilia, que se tor­nou muito apreciado nas rodas literárias, pondo em evidência o nome do autor.

Acometido de uma enfermidade grave, teve a opor­tunidade de pensar na posição falsa que estava assu­mindo, sendo beneficiado por renda eclesiástica, quan­do nessa altura já não concordava com as doutrinas da Igreja. Por outro lado, pareceu-lhe impossível man­ter oculta a sua nova fé e propôs declarar-se aberta­mente do lado da Reforma.

Não lhe seria possível permanecer na França, a não ser com riscos muito sérios. Resolveu fugir para Genebra, levando consigo Caludine para tentar alí a vida. Deixou para trás tudo o que possuía, mesmo porque seus bens foram confiscados pelo Estado.

Em Genebra, a primeira coisa que fez foi casar- se legalmente na Igreja, cumprindo a promessa que fizera a Caludine, quatro anos antes. Pensava em as­sociar-se a um dos amigos que fora testemunha do seu casamento numa empresa tipográfica em Gene­bra. Viret, no entanto, arranja-lhe um convite para ir ensinar grego em Lausanne, na nova academia, e para lá se dirige onde permanece nove anos.

Ficou conhecido em pouco tempo e famoso co­mo professor e pregador, atraindo para a academia muitos alunos de outros lugares. Dificuldades surgi­das na academia de Lausanne, que obrigaram Viret e Beza a renunciar suas cadeiras, tornaram possível a ida de Beza para Genebra, onde, além de trabalho pas­toral, lecionava na Academia, da qual se tornou tam­bém diretor.

Beza foi muitas vezes convocado à França quan­do a causa dos huguenotes estava em jogo e exigia a voz competente e autorizada de um çrador e de um

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teólogo.Enfrentou homens, como o cardèal de Lorraine.

em disputa pública, levando a melhor. Serviu de con­selheiro, de capelão ao príncipe Conde e ao almirante Coligny durante a luta que se travara entre hugueno- tes e católicos.

Estava Beza em Genebra quando se deu a terrí­vel chacina da noite de São Bartolomeu. e muitos hu- guenotes que conseguiram escapar à matança chega­ram a Genebra feridos, cansados, com fome. O seu apelo à cidade para acolher estes refugiados e susten­tá-los teve um efeito extraordinário.

Após a morte de Calvino, Beza tornou-se a gran­de figura em Genebra, um pouco menos teólogo do que Calvino e bem maior orador do que ele. Homem de fé, compassivo, perseverante, dedicado a seu tra­balho, Beza consolidou a obra de Calvino mesmo em meio à crise por que passavam a Igreja e a Academia. De Genebra partiam seus ex-alunos, levando a influên­cia calvinista por toda a Europa.

Deixou algumas obras teológicas, embora não te­nham a mesma divulgação, nem o mesmo prestígio das obras de Calvino. São, no entanto, de reconhecido valor e, com justa razão, figuram em meio à preciosa literatura daquele período significativo da Reforma.

Coube a Beza, por sua própria iniciativa, escrever a primeira biografia de Calvino, que tem servido co­mo fonte de informações indispensável aos que estu­dam a vida do reformador e a sua obra em Gene­bra.

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A OBRA LITERÁRIA DE CALVINO

Calvino nascera para escrever, escreveu desde mo­cinho, escreveu doente, escreveu em meio às mais acir­radas lutas, escreveu no leito, ditando aos seus secre­tários, escreveu até altas horas da noite, mesmo en­fermo e, segundo testemunho do seu primeiro biógra­fo, Theodoro Beza, escreveu até oito horas antes da sua morte.

Como diz Warfield: “O que vemos em Calvino fundamentalmente é o homem de letras, como san­to: Ele nunca visava para si nada, ele nunca desejava para si em toda a sua vida, ele nunca aderiu inteira­mente a qualquer outra vocação. Ele era por nature­za, por dons, por educação — por inata predileção, por qualidades adquiridas igualmente — um homem

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de letras. E ele fervorosamente — podemos dizer — aproximadamente, como tal, desejou dedicar-se a Deus”.62

A enorme tarefa de reformador, que tão brilhan­temente e de modo tão acabado desempenhou em vá­rios aspectos, não poderia ter sido realizada na sua grandeza e variedade sem medida, não fora a dextre- za da sua pena fecunda servida de invulgar inteligên­cia, raciocínio lógico, um domínio absoluto e elegan­te das duas línguas que utilizou na arte de escrever, o francês e o latim, nas quais pode se considerar clás­sico. Sabe-se que nos dias da sua incipiente atividade evangélica, quando não tinha tomado decisão defini­tiva com respeito à religião, nos tempos de estudan­te ainda, ministrava cursos bíblicos e os escrevia. Mui­tos desses estudos foram lidos por gente que às ocul­tas se reunia para o culto divino. Já então, revelava aquela sua capacidade tão peculiar de atingir os sá­bios e a gente simples do povo.

Começaria, no entanto, a carreira de escritor aos 22 anos de idade com a publicação do seu comentário de Sêneca, o “De Clementia”. O livro, que se enqua­dra perfeitamente na linha de obras humanísticas tão em voga no tempo, vai buscar entre os escritores la­tinos da antiguidade clássica o seu motivo e seu as­sunto. É abundante em citações de Cícero, um dos autores da sua preferência.

Segundo Walker, o comentário de Sêneca mostra que até então a Bíblia é ainda um livro fechado para Calvino. Calvino não alimentava nessa época interes­se por questões religiosas, a sua publicação de um livro visava o interesse literário mais do que apolo- gético, ético mais do que religioso.83 Revela essa obra erudição fora do comum, com abundância de citações dos clássicos latinos e gregos, que indica bem os ru­mos a que até então o autor se dirigia.

Na situação religiosa da época, o humanismo ti­nha se tomado o refúgio para os intelectuais que, dis­cordando da ortodoxia escolástica da Igreja, manti­nham-se numa posição de distância, às vezes a meio

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caminho da Reforma. Alguns, como Erasmo, prefe­riam nunca sair dessa posição cômoda, sem os com­promissos e os riscos a que estavam sujeitos os re­formados.

Cadier acredita que o livro “De Clementia” se constitui um desapontamento para o autor e até em sacrifícios financeiros não compensados, um eviden­te fracasso, portanto,64 É ainda Cadier que julga o insucesso do “De Clementia” haver se tornado num desses caminhos que a Providência utiliza para ani­quilar o humanista que começava a repontar em Cal­vino e dele fazer o teólogo consumado que havia de ser, nas “Institutas”. Diríamos, no entanto, que foi na escola do humanismo que a pena adestrada do escritor futuro começaria a burilar o seu estilo, apa­rar as arestas e tornar-se mais fluente e mais escor- reita.

Seria “De Clementia” um livro isolado completa­mente das obras posteriores de Calvino? Jean Cadier pensa que, se Calvino não se tivesse tornado o refor­mador que foi, o comentário de Sêneca seria um li­vro completamente esquecido. Guizot e outros escri­tores que se ocupam das obras de Calvino não en­tendem assim, acham um esforço mais tímido, mais incipiente da mesma direção em que viria depois a sua obra imortal — As Institutas. E seria defesa mais tímida, menos arrojada, mais sutil e disfarçada dos filhos da Reforma tremendamente perseguidos na França daqueles dias. E o advogado está estreitando e utilizando os conhecimentos de direito que adqui­riu na defesa de clientes que não conhece, que não o contrataram para tanto e dos quais não vai receber pagamento nenhum. Aliás, é notável verificar que es­te é um feitio de Calvino, colocar-se em defesa do que lhe parece certo, sem preocupação de recompensa ma­terial e sem que seja solicitado para tanto. E Erwin não tem qualquer dúvida em afirmar que os apelos de Sêneca. dirigidos a Nero, para que exercesse cle­mência e assim pudesse ganhar o amor de seu povo, como se encontra na obra de Calvino, são dirigidos a Francisco I, em relação aos reformadores.

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É possível: a inexperiência do escritor debutante e a sua incerteza, a essa altura, com respeito a sua fé, talvez o hajam feito mais cauteloso. Para Alberto Hy- ma,65 Calvino nesta fase de sua vida ainda está lon­ge de ser um convertido e o seu livro é puramente humanista.

O livro “De Clementia” é dedicado a Claude de Hangest da nobre família Monmors de Noyon, seu an­tigo colega desde os tempos de criança, agora abade de Saint Élois. A dedicatória do livro revela a gran­de intimidade de que Calvino desfrutava na casa dos colegas nobres e que lhe conferira quase o grau de membro da família: “Aceita este primeiro dos meus frutos: ele pertence de direito a ti, pois eu devo a ambos (referindo-se também ao irmão), o que eu te­nho, pois fui criado como em tua casa em criança ainda”.

O abade pertencia à ala liberal da Igreja, .possi­velmente pela influência que recebera em Paris, no contacto com homens como Cordier, daí pensar-se que Calvino, ao oferecer-lhe o fruto das suas primícias, não somente manifestar-lhe a gratidão pelos benefícios re­cebidos da família do amigo prelado, mas também propiciava a aquisição de um defensor da sua causa., membro relativamente influente do clero, na luta con­tra a ferrenha ortodoxia de Roma, que nesse tempo tinha como seu grande baluarte a Sorbonne, a inimi­ga do humanismo e caçadora de hereges ou supostos hereges.

Se a própria irmã do rei, Margarida de Valois, sofrerá a condenação de seu livro de poemas espiri­tuais, porque Beda (Noel) farejara nele heresias lu­teranas, era preciso cautela para não incorrer logo de início nas iras da Faculdade de Teologia de Paris. Um exemplar do livro foi enviado por Calvino a Erasmo, humanista liberal, a quem Calvino tinha em alta con­ta, embora dele discordasse em alguns pontos no seu Comentário. Erasmo, ao que parece, se manteve em silêncio com respeito à obra de Calvino. Seria o livro

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uma tentativa de imitá-lo? Seria um empenho em su­perá-lo? Estaria Calvino, ao enviar-lhe o livro, propi­ciando a sua crítica? Não se sabe. Sabe-se que pouco tempo dépois Erasmo apontava Calvino como um azorrague a castigar a Igreja.66

Como já dissemos, Calvino assumira a responsa­bilidade financeira do seu livro, que não deixou de lhe trazer algumas aperturas. Era o seu filho primo­gênito, o seu “debut” no mundo das letras e Calvino estaria ansioso por ouvir a crítica de quem tivesse co­nhecimento e capacidade para tal.

Em 1534 aparece um pequeno tratado da pena de Calvino. Desta vez uma obra de caráter apologéti- co em que rebate os erros dos anabatistas, os quais afirmavam que a alma dos mortos ficava dormindo até o julgamento final. O livro se intitula Psychopa- nychia.

Os anabatistas deram sempre muito trabalho a Calvino, posteriormente. Eta Estrasburgo alguns fo­ram convertidos por sua instrumentalídade. Curiosa­mente, é com a viúva de um deles, Idalete De Buren, que Calvino vai se casar. Literalmente, Calvino vai ca­minhando do humanismo para a teologia por pas­sos, lentamente.

Há uma certa ligação entre essa segunda obra de Calvino e as Institutas que viriam na sua forma inicial logo depois, em 1536. Na carta introdutória às Insti­tutas que Calvino dirigiu ao rei Francisco I há um empenho em separar os verdadeiros evangélicos dos perturbadores da ordem, fanáticos e agitadores, quais ofereciam razões para a violenta repressão que en­tão se ordenava contra os dissidentes de Roma. Esses fanáticos, segundo a sua afirmação, são invenções de Satanás para confundir, produzir controvérsias e dis- senções, a fim de obscurecer a verdade e finalmente destruí-la. É como o inimigo que semeia, no meio do trigo, joio, para sufocar a boa semente. As Institutas são, na opinião da grande maioria dos críticos, não somente a obra mais importante de Calvino, mas uma das grandes obras universais, notadamente no cam­po da teologia.

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Na forma em que fr>i inicialmente publicada, ena1536, é um resumo apenas, mas contém na essência tudo que se encontra nas edições seguintes, até à úl­tima em 1559. O valor das Institutas na sua edição francesa é exaltado pelos mestres da língua como uma obra literária de valor excepcional quanto ao es­tilo e perfeição da linguagem. Stefan Zweig, impiedo­so crítico de Calvino, diz nc entanto, que as Institu­tas são um dos dez ou vinte livros no mundo dos quais se pode dizer sem exagero, determinaram o cur­so da história e mudaram a fase da Europa. É o mais importante feito da Reforma, depois da tradução da Bíblia de Lutebo.57

Decorridos quatro anos e meio após a publicação de “De Clementia”, Calvino, que não colhera os re­sultados com que talvez sonhasse com o seu esforço ilterário, não se desanimara, contudo, mesmo porque agora seus olhos estão voltados para assuntos de mais alta importância e o seu pensamento se dirige às ques­tões teológicas.

Já nos referimos ao discurso de Nicolas Cop na Sorbonne que o obrigara a fugir de Paris e também a Calvino, que se vira envolvido, com ou sem razão, nos acontecimentos. É ponto polêmico se Calvino teria sido o autor total ou parcial do tumultuoso discurso de Nicolas Cop. Somos inclinados a crer que sim, co­mo muitos outros. De qualquer modo, o seu nome es­tava agora na lista negra dos homens da Sorbonne, era preciso ter cuidado para não se tornar uma das vítimas das fogueiras que queimavam hereges em Pa­ris a cada dia.

Conseguiu voltar à capital cautelosamente, mas assentaria por algum tempo em Angoulême, a convi­te de Luiz De Tillet, cônego da catedral, onde, para seu deleite, Calvino ia encontrar uma vasta bibliote ca, que lhe dava oportunidade de estudar um pouco mais, como era de sua predileção.

É em Basiléia, no entanto, que dá forma final as suas Institutas, já esboçadas em Angoulême. Algo, po­rém, veio apressar a publicação do livro, o que talvez em parte explicasse a forma tão resumida em que saiu.

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a sua primeira edição. Afirma Warfield que não era mais do que um manual catequético ampliado.

Em 17 de outubro de 1534, alguns escritos violen­tos atacando a missa, o papa, o clero, etc., foram espalhados à noite em Paris. Eram em forma de car­tazes que se pregavam em muros e portas e um deles foi encontrado à porta do quarto do rei Francisco I em Amboise.

O autor, segundp se conta, era Antoine Marcout, natural de Lyon e pastor em Neuchatel. O título di­zia: “verdadeiros artigos sobre os horríveis, grandes, intoleráveis abusos da missa papal, inventada direta­mente contra a Santa Ceia do Nosso Senhor, o único Mediador, o único Salvador, Jesus Cristo”.68

A provocação desses cartazes exacerbou a ira do rei, que preferia manter-se tanto quanto possível to­lerante para com os reformados, mas que, ao mes­mo tempo, não queria perder a amizade e a coopera­ção de tão útil aliado como o Vaticano. Francisco I estava longe de ser um fervoroso católico, além dis­so, desejava não se colocar contra a irmã, Margari­da de Navarra, a protetora dos perseguidos por cau­sa da Reforma. Margarida tinha tendências acentua- damente luteranas e grande pendor religioso. Marga­rida, no entanto, já estava na mira da Sorbonne, sus­peita de heresia. O seu livro de poemas espirituais — Le Miroir de 1’âme pécheresse — O Espelho de uma Alma Pecadora, tinha sido condenado pela Sorbonne, a qual, no entanto, teve que voltar atrás sob furiosa pressão do rei Francisco I.

Os cartazes eram fruto de uma grande impru­dência e acabaram provocando uma atitude drástica por parte das autoridades e mais derramamento de sangue. O rei se sentiu pessoalmente ofendido, insul­tado na sua autoridade. Julgou que não podia, sem prejuízo do seu prestígio perante Roma, deixar de cas­tigar com severidade a ousadia dos hereges, quis dar uma demonstração pública da sua revolta num ato de desagravo que não deixasse dúvidas sobre a sua desaprpvação dos cartazes. Apresentou-se com os fi­lhos numa procissão de penitência, cabeça descoberta,

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levando na sua mão um facho de luz, seguido por príncipes e nobres, acompanhado do bispo, cardeais e monges. A procissão foi seguida de um banquete no palácio episcopal do bispo, Jean Bellay, após o qual o rei fez um discurso veemente contra os hereges, de­clarando que não teria misericórdia para com nenhum deles, nem mesmo para com o seus próprios filhos, se um deles fosse descoberto como tal.

Naquela mesma tarde, seis reformadores foram queimados na presença do rei com extrema cruelda­de: primeiro eram estrangulados e depois atirados ao fogo. O estrangulamento, no entanto, foi omitido pa­ra os últimos, para que as vítimas agonizassem nas chamas. Além disso, eram colocados em redes as quais eram abaixadas lentamente às chamas e levantadas de novo, várias vezes, até que a corda se partisse e fosse a vítima deixada cair com vida nas labaredas.

Dessa maneira tornava-se muito arriscada a pre­sença em Paris de qualquer pessoa suspeita de idéias reformadas ou mesmo de simpatias para com a Re­forma. Entre as vítimas estava Étienne de La Forge, rico negociante, fervoroso adepto da Reforma, ami­go íntimo de Calvino e seu hospedeiro durante algum tempo em Paris.

Por um dever de consciência e solidariedade, Cal­vino se sentiu na obrigação de publicar logo as suas Institutas e estabelecer perante as autoridades a dis­tinção entre os verdadeiros evangélicos e alguns agi­tadores extremistas, ao mesmo tempo que pudesse apresentar com clareza a doutrina bíblica aceita pe­los evangélicos verdadeiros, atraindo assim a simpa­tia de outros povos que viessem em apoio dos inde­fesos perseguidos. Explica-se também a razão da car-. ta dirigida ao rei, prefaciando o livro, a qual nunca foi lida, segundo Beza, pelo destinatário. Era preciso que a suprema autoridade do país, homem esclare­cido e liberal, fosse inteirado dos fundamentos bíbli­cos da Reforma e não confundisse os seus verdadeiros seguidores com grupos dissidentes da Igreja, mal orientados e fanáticos. É ponto controvertido se Cal-

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vino teria publicado as Institutas primeiramente em Latim ou Francês.

Erwin se escuda no testemunho de Jules Bonnet e Doumergue para afirmar com Walker que não resta dúvida ter sido em Latim. Guizot, como muitos ou­tros autores franceses, afirma peremptóriamente que a primeira edição saiu em Francês, aduzindo aos seus argumentos o de que foi escrito inicialmente para os franceses, e lembra que a carta de apelo ao rei Fran­cisco I só poderia ser em Francês.69

A grande importância das Institutas está menos na língua inicialmente utilizada do que na universali­dade inconteste que adquiriu e que a mantém supre­ma entre os livros da sua espécie até hoje. Calvino ti­nha consciência de que fazia algo muito sério, de va­lor permanente, por isso, deu-se ao trabalho de aper­feiçoar no espaço de vinte cinco anos seguidos, até tomá-la na forma em que a publicou em 1559.

Naturalmente, para os franceses, do ponto de vis­ta literário, o livro de Calvino adquiriu importância especial pela linguagem, estilo e forma. Nesse aspecto vale a pena ouvir a palavra de Abel Le Franc, profes­sor do colégio de Paris, diretor adjunto da Escola Prá­tica de Elstudos Superiores da França, parente dis­tante de Calvino pelo lado materno, crítico literário de renome: “Depois de decorridos quatro séculos, a voz unânime da posteridade tem consagrado o texto francês da Instituição Cristã, como um dos mais no­bres, uma das mais perfeitas peças da nossa literatu­ra. O livro de Calvino permanece, como aqueles de Rabelais, um monumento incomparável da língua na­cional até a primeira parte do século XVI”.70

E continua La Franc para afirmar que não há produção que se lhe possa comparar, pois só na me­tade do século XVII com Pascal e Bousset é que se vai encontrar uma prosa literária tão ampla, tão gra­ve, de uma armadura fortemente ordenada e lógica. La Franc aqui não exalta apenas a perfeição literá­ria das Institutas, mas também a sua forma lógica

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bem estruturada. Adianta, mais ainda, que a filosofia cional até a primeira parte do século XVI”.70 capítulos da edição das Institutas em 1541.

Como Guizot, La Franc encontra nas Institutas em germe tudo mais que Calvino produziu e até mes­mo traços marcantes de sua personalidade “Et sa personalité même, son caractère, la font de sa pèn- seé ne se revèlent point avec plus d’évidence que dans ce livre capitale”. La Franc chama Calvino “Homo unius libri””.

Warfield, no seu livro “Calvino e Agostinho”, afir­ma que as Institutas podem se chamar “o trabalho de sua vida”.71

Os comentários da Bíblia feitos por Calvino vêm em segundo lugar. É uma obra monumental, cobre quase todos os livros do Velho e do Novo Testamen­to. Esses comentários são produto de anos e anos se­guidos, estão em grande parte ligados à tarefa de Cal­vino como mestre das Escrituras, resultaram das aulas bíblicas que ele ministrava. Calvino é um exegeta nato, um extraordinário argumentador, ou é o príncipe dos exegetas como quer Cardier.72 A sua obra inteira, que em algumas edições atinge 59 volumes, é surpreenden­te, considerada a seriedade de todo o trabalho reali­zado, a qualidade indiscutível desse trabalho, a varie­dade dos assuntos, a forma literária que vai do “dis­curso veemente até a sátira mordaz, sempre com aquele toque de iluminação que costumamos chamar de gênio”.73

É como escritor que Calvino se projeta e perpe­tua numa dimensão cada vez maior; resposta silen­ciosa mas decisiva aos que procuram diminuí-lo, lan­çando a sua memória injúrias e difamações, taxando-o de fanático e ignorante.

A árvore produz o fruto segundo a sua espécie! As Instituições que Calvino inicialmente implantou em Genebra sofreram os reveses do tempo e empali­deceram no seu brilho sob a influência de fatores adversos que em muitos casos as contaminaram e perverteram. Pode ser. No entanto, o seu vigor se reabilita toda vez que é reestudada a doutrina e a

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filosofia em que foi estruturada encontra artífice que se incumba de dar-lhe o mesmo espírito e o mesmo sentido com que foi inicialmente concebida no insano labor de dias penosos de enfermidade e aflição de espírito.

A obra literária de Calvino, mormente as suas Institutas, deram ao mundo uma nova teoria de vi­da, arrancada do ensino das Escrituras, cuidadosa­mente estudadas e interpretadas, com a habilidade de um profissional acabado, com a devoção de um após­tolo que aos pés do Senhor colocou definitivamente todos os seus dons, Soli Deo Glória.

Com que brilho de inteligência, com que destreza de escritor nato, com que firmeza de lógica incompa­rável, não escreve a sua carta a Sadoleto; carta que não tem resposta, porque só tem uma, que Sadoleto não quis e não podia dar, a não ser que aceitasse o desafio de Calvino mesmo: “Que o Senhor permita, Sadoleto, que tu e todos os do teu partido possam afinal perceber que o único e verdadeiro elo de uma unidade eclesiástica existiria, se Cristo Senhor, que nos tem reconciliado com Deus o Pai, nos reunisse todos da presente dispersão na comunhão do seu corpo, que, assim, através da sua palavra e do seu espírito, nos pudéssemos unir juntos com um só coração e uma só alma”.74

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Capítulo 14

CARTAS DE CAL VINO

As cartas são o espelho da alma de quem as es­creve, quando nascem de uma necessidade existencial e se inserem em nossa vida sem intenção literária estereotipada, mas em atendimento a um dever de co­municação de algo a alguém. Cartas do apóstolo São Paulo, por exemplo, uma feliz, inspirada extensão do seu grande trabalho missionário na qualidade de após­tolo dos gentios, cartas que transmitiam a doutrina e a prática da vida cristã. Cartas diferentes das céle­bres epístolas de Plínio, o Moço, belas e amenas, mas artificiais, porque lhes faltam “o toque pessoal vivi­do”, porque foram escritas como disse alguém “com os olhos na publicação””. Diferem das cartas de Cí­cero a quem Plínio quis imitar, porque são as do

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grande tribuno romano, documento humano, espontâ­neo, frutos do imperativo da ocasião.

João Calvino, que era tão versado no Latim e admirador de Cícero, e dele conhecedor profundo, co­mo revela na sua “De Clementia", não teria imitado nem um nem outro. Não tinha as condições de Plínio, rico e tranqüilo, mas era mais como Cícero, dinâmi­co e ocupado. Foi movido pela ingente necessidade de atender problemas agudos, que escreveu as suas car­tas e acabou, pela beleza de seu estilo natural, fluên­cia, linguagem, clareza, do pensamento, fazendo ao mesmo tempo história e literatura, daí a preciosi­dade das cartas que escreveu e em tão grande quan­tidade.

Lutero escreveu cartas admiráveis com as quais fez história, nas quais deixou também pedaços da sua alma, do seu coração afetuoso. Escreveu cartas a administradores e a príncipes, intercedendo pelos cris­tãos perseguidos e afligidos de muitas maneiras. Es­creveu cartas pastorais também, confortando cora­ções feridos. Escreveu cartas a amigos, e a muitos de­les com fraternal afeição, e escreveu também cartas a seu pai, na mais delicada expressão de amor filial.

As de Calvino superam em beleza, em variedade, em número, às magníficas cartas de Lutero. As car­tas de Calvino, que atingem a mais de duas mil, ou quatro mil segundo alguns, são expressão viva do seu amplo e diversificado ministério, que não se conti­nha nos limites da sua turbulenta Genebra, mas que se estendia a oucros lugares, onde quer que os inte­resses do reino de Deus estivessem em jogo, levando a palavra do amigo, do conselheiro, do estadista, do teólogo.

Fez muito bem Ricardo Stauffer, pastor suiço, professor de teologia e mestre da Sorbonne quando escreveu um livro de menos de cem páginas, mas re­cheado de verdades em cada linha, com o propósito, que ele mesmo expressou, de refutar as acusações tantas vezes repetidas por inimigos, mas ultimamen­te no seu tempo, abonadas por um seu colega e pa­trício, que não era senão o pastor da Igreja de São

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Pedro (Jean Schorer), a igreja de Calvino. Um fato que Stauffer julga de si mesmo lamentável.

Jean Schorer se propôs defender Stefan Zweig, que, tendo escrito uma obra injuriosa e infeliz no tra­tamento de Calvino, o caracterizou como ditador. Cal­vino, ditador? É uma lenda que Stauffer julga neces­sário desmascarar. “Calvino não é um satânico vilão do seu século” como querem muitos de seus inimi­gos; longe de ser o indivíduo sem qualquer simpatia, desumano e anti-humano, é o amigo afetuoso e solíci­to dos muitos amigos que teve e que o estimavam. Calvino é pastor zeloso e incansável no seu esforço em favor de suas muitas ovelhas, sofridas e angustia­das por males de toda a sorte.

Calvino é o esposo encantado com as virtudes da esposa e inconsolável com a sua morte prematura. Calvino é o pai de um filho que morreu ao nascer, mas que deixa conforme as suas próprias palavras unia ferida profunda e dolorosa no coração do pai.75 É a fonte onde Stauffer vai se suprir para nos ofere­cer este retrato humano de Calvino, que ele rebuscou com paciência para provar a sua tese76 — são as cartas, as muitas cartas que escreveu Calvino duran­te quase 30 anos.

Beza nos conta que Calvino, num dos últimos dias de sua vida, entregou a seus cuidados o arquivo das cartas que escrevera manifestando o desejo de que essa correspondência fosse preservada como um le­gado às igrejas reformadas. As circunstâncias adver­sas que vieram logo após a morte de Calvino, inclu­sive a peste que assolou uma vez mais a cidade, fa­zendo muitas vítimas, impediu o cumprimento do de­sejo expresso pelo Reformador, que, no entanto, não foi esquecido. Coube, afinal, ao Dr. Jules Bonnet a pesada tarefa da busca e reunião das muitas cartas encontradas em vários lugares da Europa, tarefa essa que lhe custou 5 anos de incansável labor e que aca­baram integrando quatro grossos volumes das epísto­las de João Calvino.

Essas cartas por sí só exigiriam um estudo de grandes proporções e muita profundidade que não

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comportam os limites do nosso trabalho. Não nos pa­rece» todavia, justo deixar de oferecer ao leitor ao menos uma pista geral desta importante faceta da obra de Calvino.

Como muito bem afirma Jules Bonnet, essa cor­respondência, além do seu grande valor histórico, dada a influência de Calvino nas igrejas reformadas nas­centes, tem ainda uma importância literária, pois Cal­vino, sem o querer, fazia literatura, usando o seu es­tilo primoroso, tanto no francês como no latim, am­bas as línguas em que era mestre acabado. O seu estilo deu características novas e serviu de modelo a escritores que vieram depois dele no século XVII.

Jules Bonnet afirma que o seu propósito, e dos muitos amigos que com ele cooperaram era publicar as cartas de Calvino, foi fazer um trabalho que expri­misse a verdade que essas cartas continham sobre sua pessoa e sua vida. “Guiados somente pelo amor à ver­dade, não nos abstendo de qualquer revelação que fos­se garantida por documentos autênticos, não rejeita­mos qualquer fonte de informação, nem omitimos qual­quer evidência. Nossa ambição ioi fazer Calvino viver de novo em suas cartas, mostrando como ele era — um servo austero e de convicções inflexíveis, que, no entanto, estava longe de ser intolerante com amigos, na liberdade do círculo doméstico com aquele alto sacrifício rigoroso de sua vida aos deveres, o que por si explica a sua força e justifica os seus erros; com as falhas, que eram herança de seu tempo, e aquelas que lhe eram peculiares.

É história argüida dos documentos originais, não é panegírico; não atira um véu sobre as imperfeições de seus heróis, mas lembra que eles são homens, e ti­ra lições tanto das suas fraquezas como das suas gran­dezas.77

CARTAS AOS AMIGOSMuito longe de ser o homem que “nunca amou e

a quem ninguém jamais amou também”, como quis J. M. Audim,78 Calvino era um amigo dos seus mui­tos amigos e fez das amizades um grandes apoio de

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sua vida, por isso, as cultivou com solicitude e gran­de afeição.

Apenas para dar uma amostra deste aspecto hu­mano da vida do reformador, valemo-nos das cartas que João Calvino a eles escreveu.

As amizades, ele as teve desde a infância, e as con­servou com carinho. Os colegas da escola dos Cape- tos em Noyon continuaram seus amigos em Paris, e a um deles Calvino dedicou a sua primeira obra lite­rária. Dois amigos, no entanto, ocupam um lugar de destaque na correspondência do grande reformador, correspondência essa que começa por volta de 1537 e vai até aos dias últimos da sua vida em 1564. Esses dois homens são Viret e Parei.

As cartas enviadas a esses dois homens superam em número aquelas dirigidas a qualquer outra pes­soa. A Viret escreveu ele mais de 60 cartas e a Parei 90 e tantas. Trataremos primeiramente de Parei. Com­panheiro de Calvino nos dias aflitivos de Genebra, que com ele sofreu a mais dura oposição e acabou sendo expulso da cidade. Ambos alí estiveram muitas vezes em sério risco de vida.

Embora a diferença de idade, pois Calvino era mais moço do que Parei (25 anos) e apesar da dife­rença de talentos, de inteligência, de cultura, em que Calvino era muito superior, a amizade que uniu esses dois homens atravessou todas as calamidades e per­maneceu firme, mais aprofundada ainda até ao final da vida de Calvino, o primeiro deles a morrer.

A Parei escreve Calvino, tratando dos mais varia­dos assuntos e dos mais íntimos, como se faz a um confidente amigo e leal. Dúvidas, alegrias, tristezas, desesperanças, ansiedades, desapontamentos, amargu­ras e também vitórias e esperanças, encontram-se nes­sas cartas, além dos problemas que interessem a am­bos com respeito ao reino de Deus. Estiveram juntos em Genebra na primeira fase, e não fossem as circuns­tâncias, teriam permanecido juntos, como era desejo de ambos. E é Parei que empenha todo o esforço, mais tarde, para a volta de Calvino a Genebra. É a Parei que Calvino confia suas aperturas financeiras do co­

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meço difícil em Estrasburgo e o incumbe de vender os seus livros para desafogar a sua penosa situação. É a Farei que Calvino se sente com a liberdade de tratar em carta com severidade, sem pedir desculpa “Pois eu sei que está acostumado às minhas rude- zas".79

Viret se distingue como um dos grandes amigos de Calvino. Como já dissemos, mais de 60 cartas fo­ram a ele dirigidas pelo reformador, muitas delas por­tadoras de mensagens íntimas, que só mesmo a um amigo se confiam. É a Viret que Calvino procura atrair para Genebra quando lhe pareceu que Farei estava a ponto de se deixar vencer pela tarefa. “Eu o conside­ro indispensável, a menos que queiramos perder Fa­rei, que se encontra exausto e com grande ansiedade, como eu nunca pensei de um homem da constituição e disposição de ferro que ele é”.80

E a ele, Viret, Calvino confia a sua repugnância à idéia de voltar para Genebra quando os apelos in­sistentes lhe vinham para que o fizesse, aliados à pres­são de Farei mesmo para que aceitasse o convite. É a Viret que Calvino escreve, angustiado, para dar no­tícia de que a sua esposa Idalete deu à luz prematu­ramente a um filho e está em risco de vida: “Minha mulher deu à luz prematuramente, não sem extremo perigo. Que o Senhor tenha cuidado de nós”.81

Calvino vai realizar o casamento de Viret com Eli- sabeth Laharpe, impetrar a bênção sobre os noivos. Aliás, sobre o assunto Calvino vinha aconselhando Vi­ret desde há algum tempo.82

O amigo das núpcias é também o amigo do dia de luto e Calvino convida Viret, mais tarde, a vir pas­sar uns dias em Genebra, consolando-se da morte da esposa.83

E quanto aos outros amigos? Alguns também mui­to íntimos, que, como Beza, o considerava “o mais ex­celente irmão e pai”. Calvino mantém laços de ami­zade com pequenos e grandes. Com cristãos humildes, perseguidos, despojados de seus bens, a quem ele pro­cura consolar e em favor dos quais escreve a outros solicitando apoio.

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É notável a sua amizade com o senhor De Fallais, amizade que infelizmente Bolsec conseguiu destruir completamente. Calvino mantém uma correspondência grande com o senhor De Fallais, interessado em aju­dá-lo na solução de problemas, depois que, por cau­sa da sua fé reformada, abandonou vantagens gran­des na corte da França, onde era um nobre, para lo­calizar-se junto de Genebra. É notável o interesse por ele manifesto da parte de Calvino e o apoio moral e espiritual que empresta a Sra. De Fallais, quando o esposo se vê acometido de enfermidade grave. A ruptura dessa amizade foi muito dolorosa e se deu com muita amargura para Calvino, conforme se vê de sua última cárta escrita ao Sr. De Fallais a qual ter­mina: “Se eu tenho sido tão ríspido e tão amargo, perdoe-me. Vossa Senhoria me obrigou a isso. E para que saiba que não alimento nem raiva, nem má dis­posição para com V. S., escrevo a presente carta co­mo um que está se preparando para se apresentar diante de Deus, que agora me aflige com um mal que é como um espelho da morte diante de meus olhos”.84

Calvino sentia-se aproximar da morte, que, no en­tanto, levaria dois anos ainda a chegar. Calvino, como estadista e diplomata, se envolveu em assuntos de grande importância para a causa da Reforma, deles tratando por carta com soberanos e senhores nobres. Em alguns casos, mesmo nessa função, as suas car­tas não deixam de ser pastorais, porque em muitos casos são portadoras de conselhos e admoestações que visam o bem espiritual de seus destinatários.

Vamos considerar as cartas dirigidas a alguns so­beranos e nobres com respeito à Reforma. Nesse sen­tido, Lutero também desempenhou papel importante, embora mais limitado, conforme se vê da sua corres­pondência. Cartas de diplomata nós diríamos.

Afirma Jules Bonnet: “o mesmo homem desgas­tado por vigílias e enfermidades, mas erguendo-se, pe­la energia de sua alma, acima da fraqueza do corpo, derriba o partido dos libertinos, lança as bases da grandeza de Genebra, estabelece igrejas no estrangei­

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ro, fortalece os mártires, dita aos príncipes protestan­tes os conselhos mais sábios e mais perspicazes: ne­gocia, argúi, ensina, ora, e, com o seu último alento, pronuncia palavra de poder que a posteridade rece­beu como testamento religioso e político de um ho­mem”.85

Calvino foi providencialmente preparado para ser o embaixador da Reforma aos grandes da terra. A ele se aplicariam as palavras de Jesus, dirigidas a Ana- nias com respeito ao apóstolo São Paulo: Este é para mim um instrumento escolhido, para levar o meu no­me perante os gentios e reis... Atos 9:17.

As Institutas, na sua primeira edição, traziam co­mo parte introdutória a carta importante de Calvino dirigida ao Rei Francisco I da França. A carta era um documento diplomático, defendendo os reformadores das acusações improcedentes que contra eles eram vei­culadas, ao mesmo tempo uma apresentação do docu­mento de fé por eles professado. Embora essa carta nunca tenha sido lida pelo destinatário, como afirma Teodoro Beza, é um destes esforços de diplomacia que Calvino havia de empreender com a sua pena de exí­mio escritor de epístolas muitas vezes no seu minis­tério.

Anos depois, o rei da França, Carlos IX, se quei­xava em carta ao concilio de Genebra de pastores que, indo de lá para a França, estavam provocando agita­ção e criando desordens. O concilio tem de respon­der à carta do rei e é Calvino quem a vai redigir, ne­gando as acusações e mostrando que, pelo contrário, os pastores referidos eram apaziguadores e se ofere­ciam para provar a sua inocência onde quer que se lhes exigissem.

Ao rei da Inglaterra, Henrique VIII, escreve Cal­vino uma carta severa, condenando a ação sanguiná­ria daquele rei na sua sanha de substituir na Ingla­terra o poder de Roma. Diz Calvino: “É grande coisa ser rei, principalmente deste país, mas é melhor ser cristão; é um privilégio inestimável que Deus lhe tem dado, senhor, ser um rei cristão e serví-lo como o seu

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lugar tenente para manter o reino de Jesus Cristo na Inglaterra".

Escreve Calvino, ainda, a Eduardo VI da Ingla­terra, jovem inteligente, de coração nobre e de gran­de esperança, e que aderira às idéias da Reforma. Cal­vino lhe dedica dois de seus comentários, o de Isaías e o das Epístolas Canônicas: “Enquanto servindo a Jesus Cristo, meu Mestre, posso oferecer também re­verência e singular afeição a Vossa Majestade”.86 In­felizmente, o jovem rei morreu aos 16 anos.

Escreve ainda Calvino ao Duque de Somerset, con- citando-o a dar avanço à Reforma, de modo a tomá- la permanente e corrigir abusos.87

Escreve, também, Calvino ao rei da Polônia, que, nessa altura, mostrava certo interesse pela Reforma e, no entanto, permanecia vacilante, inclinado a ouvir sempre o papa, embora a Reforma já tivesse feito en­trada no seu país e alcançado alguns nobres; Calvino o exorta a realizar a Reforma, desde que a religião verdadeira na Polônia já tinha começado a espancar as trevas do papado: “eu, a quem o Rei dos reis tem nomeado pregador do evangelho e ministro da sua igreja, invoco a vossa majestade em seu nome para dar a esse trabalho vosso cuidado especial acima de todos os outros”.88

Muitas outras cartas escreveu Calvino a sobera­nos e nobres, visando à extensão do reino de Deusnos seus domínios. Em alguns casos eram cartas pas­torais, não abrindo Calvino mão da sua condição de embaixador do reino dos céus.

As preocupações de Calvino eram com o reinode Deus. Embora reconhecesse os instrumentos de Deus na consolidação do seu reino nestas pessoas gradas, nos altos postos administrativos, não nos é possível a tentação de continuar o cotejo da correspondência de Calvino, na qual tanto se encontra revelada a sua vida, a sua pessoa, a sua personalidade de homem, de estadista, de teólogo, de pastor e de cristão.

Seria uma tarefa por si mesmo de não pequenas proporções um estudo aprofundado da pessoa e da

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obra de Calvino, como se revelam nas suas cartas. Dei­xamos a tarefa a outro, o que nos cumpria fazer era dar uma visão geral da grandeza desse homem infa­tigável, arrastando a cada dia o fardo incômodo e pe­sado de suas muitas enfermidades, mas sem tempo para gemer, porque está absorvido no seu grande afã de cumprir a vocação divina que recebeu.

Chega ele mesmo a dizer que não pode parar, pois sente que o seu tempo é curto e há muito que fazer. O veneno da maldade da heresia exige ação persisten­te e enérgica. O mal se apresenta em muitas formas, em muitas partes; é preciso acudir à'guerra em todas as frentes de batalha. Por isso, Calvino não descansa a sua pena, a grande arma da sua luta ingente.

Jean Daniel Bénoit, no seu ensaio: “Calvino escri­tor de Cartas”,89 procura salientar algumas facetas de Calvino que se revelam através de uma correspon­dência que ele chama “um mundo em si mesmo”. Real­ça que embora não aponte Calvino como teólogo nes­se seu ensaio, pois esse assunto deve ser tratado em relação aos trabalhos doutrinários do reformador, re­conhece, todavia, que a teologia permeia toda a sua obra, inspira tudo que ele faz, está presente no seu pensamento mais simples e o dirige nas tarefas mais humildes. Está, portanto, nas suas cartas.

Salienta Bénoit que um homem carregado de en­fermidades, às vezes intratável, às vezes compassivo, sempre sincero, às vezes franco demais, Calvino é o pas­tor, é o confortador, é o conselheiro, é o orientador, é o diretor espiritual que leva os seus correspondentes a confiar na divina misericórdia, aceitando com resig­nação e com paciência qualquer que seja a sua von­tade soberana. Pois Deus está no centro de tudo e as cartas de Calvino revelam essa verdade surpreendente.

“Lendo as suas Institutas, aquele grande tratado de doutrina, vê-se o pensamento profundo e vigoroso do teólogo e o cuidado pastoral pelas consciências atri­buladas. Se lemos os seus sermões, podemos visuali­zar o seu pregador... é nas suas cartas que ele se dá livremente na claridade da sua mente, mas também com todo o calor de seu coração, especialmente quan­

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do escreve àqueles prisioneiros chamados para ser mártires da fé . . . os seus outros livros foram escri­tos com pena e com tinta; neles vemos a sua mente clara, lógica e às vezes ríspida, mas nunca saindo do domínio do intelecto. As suas cartas, contudo, são es­critas com o coração, às vezes com lágrimas de sim­patia, humilhação e desolação, lágrimas de sangue. . . e é aqui que todas as caricaturas que se têm feito, tão danosas à sua memória, se empalidecem e desva­necem, e Calvino surge na sua estatura completa — um homem, um homem real, um grande homem”.

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OS SERMÕES DE CAL VINO

Os sermões se constituem numa das facetas do ministério de Calvino talvez menos explorada pelos estudiosos e críticos, nem por isso menos rica em sig­nificado; não apenas pela pureza da doutrina; pela propriedade dos assuntos tratados, mas também pela exegese cuidadosa, tanto quanto possível fiel ao sen­tido do texto.

Calvino é, reconhecidamente, um grande exegeta, tido por alguns como o pai de uma exegese moderna da Bíblia. Além disso, Calvino, pregou muito; pregava várias vezes por semana; produziu um volume enor­me de sermões. Verifica-se nos sermões de Calvino uma combinação admirável do teólogo, exegeta e pas­tor; pois que as suas mensagem, calcadas na boa dou­trina, têm sempre uma aplicação prática às necessi­dades de seus ouvintes.

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Da importância dada ao sermão se entende o lu­gar que ele ocupa na liturgia calvinista — o lugar cen­tral. Isso não significa que Calvino tenha dado uma importância exagerada ao pregador; significa apenas que, para ele, o sermão tem que ser nada mais, nada menos do que a fiel interpretação da verdade reve­lada nas Escrituras, dirigida aos problemas do mo­mento.

Leroy Nixon90 salienta que Calvino não tinha qual­quer preocupação em acompanhar o ano eclesiástico na escolha dos assuntos da sua pregação. Entende-se isso, pois que o ano eclesiástico estava intimamente ligado às festividades da Igreja Católica, em que atos de idolatria se praticavam contra os quais Calvino e outros reformadores se insurgiram com justa razão.

P. Vollimer91 salienta que Calvino quebrou o cos­tume da época de seguir o periscópio do ano eclesiás­tico. Lembremo-nos de que, pela influência de Calvino e de Farei, Genebra rejeitou inicialmente, a adoção do costume de Berna, que mantinha ainda algumas festas religiosas no seu calendário — Natal, Páscoa, Ascen- ção e Pentecostes.

Parece que a intenção de Calvino era afastar a idéia de dias santificados além do domingo; pois que mais tarde adotou em Genebra o costume de se ce­lebrar o Natal no domingo próximo seguinte à data, para que não houvesse um outro dia de festividades religiosas além do dia do Senhor.

Calvino é reconhecidamente um estilista entre os críticos literários franceses, segundo alguns muito in­fluenciado por Cícero, embora livre dos exageros cice- ronianos92 muito comuns entre os outros escritores renascentistas.

Os seus sermões, segundo a voz de críticos abali­zados, não são uma abundante prova da beleza e cor­reção de estilo, por duas razões: Primeiro — Calvino era um pregador extemporâneo; e nem podia deixar de ser, tendo que pregar quase diariamente. A prega­ção extemporânea é uma herança calvinista, deixada aos seus filhos espirituais. Segundo — Calvino tinha

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um profundo respeito para com a Palavra de Deus, a ponto de pensar que o estilo rebuscado e floreado pu­desse prejudicar a clareza da mensagem. Pensa-se que a pregação extemporânea de Calvino era também uma reação ao costume do tempo, quando os sermões eram lidos e se tornavam frios, sem naturalidade e sem poder.

Graham, em seu livro The Constructive Revolutio- nary, lembra que, não raro, o púlpito de São Pedro nos tempos de Calvino, brandia a espada dá justiça contra os exploradores do povo, que retinham o grão, quando havia escassez dele, para alcançar melhores preços. Os vícios da cidade eram castigados com seve­ridade nas pregações de domingo. Isso mostra aquilo que já dissemos, o caráter prático e pastoral dos ser­mões de Calvino. Não seria possível descobrir nos ser­mões de Calvino o arranjo homilético, segundo as nor­mas mais modernas, adotadas pelo púlpito, com aper­feiçoamento da arte de pregar. Isso não significa que não houvesse uma ordem e um arranjo lógico e um desenvolvimento natural e progressivo nas suas men­sagens.

Em muitos casos, Calvino é um perfeito pregador expositivo, pois toma o texto e vai analisando e apli­cando consecutivamente. Alguns dos seus sermões se­riam um modelo de pregação expositiva.

Beza cria que se fosse possível juntar o ardor de Farei, a beleza comovente de Viret, e as qualidades de Calvino, teríamos o perfeito pregador. “Farei excedia- se em certa sublimidade de mente; de modo que não se poderia ouvir a seus trovões sem tremer. . . Viret possuía uma eloqüência tão atraente que os seus ou­vintes se prendiam nos seus lábios; Calvino nunca fa­lava sem encher as mentes dos ouvintes com o mais profundo sentido. Tenho mutias vezes pensado que o pregador composto dos três seria absolutamente per­feito”.93

Havia sem dúvida uma grande diferença entre Cal­vino e Lutero como pregadores — diferença natural dada a diferença de temperamento, cultura e situa­

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ções. A eloqüência arrebatadora de Lutero, muito ao sabor das massas populares, não era virtude calvinis­ta. Em Calvino se verifica “Evidente em seus sermões, a riqueza do pensamento, a propriedade dos juízos e a oportunidade das idéias”.94

James Orr,95 apoiando afirmações de Reuss, diz que Calvino é “O maior exegeta do século XVI”; e exalta os dons de Calvino de mente e de coração pre­sentes nas exposições das Escrituras.

Evidentemente que a grande força da pregação de Calvino estava na sua base sólida e firmemente as­sentada nas Escrituras Sagradas. Para ele, a Palavra de Deus nunca deve ser afastada do culto, mesmo na cerimônia da Santa Ceia é tão importante, que é essa Palavra que põe sêlo de validade na celebração do sa­cramento.

Stickelberger afirma que “Calvino era o incansá­vel pregador da Palavra... mais de dois mil de seus sermões foram preservados. . . versículo por versícu­lo, conforme o seu costume, ele ia através de um pro­feta, de um salmo, de um evangelho, ou de uma epís­tola. Não havia uma palavra de discordância com as Escrituras; nem uma inferência depreciativa; nem uma evasão de dificuldades; ele renunciava tudo que pu­desse trazer-lhe glória pessoal e colocava o seu gênio, sua cultura, sua retórica, inteiramente a serviço do Evangelho — essa inflexibilidade consigo mesmo era a grande expressão da sua proclamação”.98 Aqueles que se empregam na arte difícil da pregação da Pala­vra e a empreendem com a consciência do dever e a responsabilidade de um profeta de Deus, podem ava­liar melhor a grandeza de Calvino como pregador; al­guém sugeriu que Calvino não deve ser lido em silên­cio, mas em alta voz, para que não se perca algo do seu vigor e da sua essência. Pregar várias vezes por semana, duas vezes aos domingos, como ele fazia; manter o ritmo acelerado do seu trabalho intelectual— escrevendo comentários e atendendo a sua vasta correspondência — isso tudo em meio a problemas pastorais de cada dia, numa cidade tão cheia de pro­

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blemas como Genebra; lutando com uma saúde sem­pre precária, é tarefa excepcional. E excepcional foi Calvino em vários aspectos na sua geração.

James Mackinnon97 junta-se a muitos outros na admiração da excelência homilética de Calvino, no tra­tamento da Palavra de Deus e na aplicação aos ou­vintes — tratamento esse que é a doutrina trazida à exigência da vida cotidiana para uma aplicação exis­tencial. Calvino acreditava no valor da Palavra de Deus e na pregação como instrumento eficaz escolhido pela providência divina para acomodar a sua mensagem ao entendimento limitado do homem. Por isso, Deus não concedeu aos anjos esse ministério, mas entregou aos homens para que fossem mensageiros da verdade de Deus.

C. Kromminga afirma que Calvino viveu e traba­lhou como se estivesse na presença de Deus. Por isso, diz o Dr. Kromminga que o empenho de Calvino era trazer os homens à presença de Deus: Isto é ainda mais pervasivamente manifesto nos sermões de Cal­vino. Os sermões de Calvino são sempre sermões cru­ciais, pesados e decisivos”.98 Nota o Dr. Kromminga que nem sempre Calvino usa ilustrações, e quando as usa raramente são de fora da Bíblia. No entanto, apon­ta exemplos da maneira prática como Calvino estabe­lece comparação com um quadro da vida diária pa­ra tornar bem accessível ao seu ouvinte a mensagem da Palavra de Deus. Aponta o Dr. Kromminga, com muita propriedade, as metáforas, as exclamações, re­cursos da oratória de Calvino que contribuíram para tornar efetiva a sua mensagem. O centro, porém, da sua atenção, diz o Dr. Kromminga, era a vontade de Deus, era a revelação da face de Deus e o empenho em trazer o ouvinte à presença do Senhor. Fosse na pregação da mais profunda doutrina, ou em assunto da vida prática, Calvino convocava os seus ouvintes à face de Deus. Não será disso que nós estamos preci­sando? Porventura, não é de uma revitalização da men­

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sagem ao estilo de Calvino, de modo a trazer o audi­tório face a face com Deus de que estamos precisan­do hoje?

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A PIEDADE DE CAL VINO

A piedade de Calvino tornou-se em tempos mais recentes um tema repetido e necessário. O estudo des­sa piedade era um dever que se impunha como medi­da de justiça à memória do reformador suiço, tantas vezes deformada, reduzida por alguns ao espectro de um fantasma, terrível; um sádico maníaco; um estra­nho masoquista; um homem sem coração e sem alma. Creio que essa necessidade sentiu o Dr. J. Kromminga, Reitor do Calvin Seminary e autor do livro: Thine is my heart — Leituras devocionais dos escritos de Cal­vino (Zondervan P. House, Grand Rapids, 1958). Tra­ta-se de uma cuidadosa pesquisa feita nos sermões, comentários, textos das Institutas, correspondência; pesquisa que resultou na seleção de significativo ma-

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terial comprobatório da verdadeira imagem de Calvi­no — imagem que muito bem se ajusta ao homem que se entregou ao Senhor em holocausto, de uma vida in­teiramente dedicada a Deus; como muito bem expri­me o seu moto: “Meu coração ofereço a ti, Senhor”. Daí a expressão de fé e confiança em Deus, como a que se encontra na passagem do seu comentário de Zacarias 12.4.

A experiência de Calvino com o sofrimento, fruto das enfermidades que carregava constantemente; a pressão dos inimigos que ferozmente investiam con­tra ele, o levaram à certeza da imutabilidade infalível da graça de Deus, que, embora pareça lutar do outro lado, está conosco invisível, mas poderosa, e nunca nos abandona à sanha do inimigo.

Assim diz ele: “Aprendamos a exercer a nossa fé, quando Deus nos parece jogar aos dentes do lobo: pois, quando nenhum auxílio visível se nos oferece, todavia, por amor oculto, com que não atinamos, Ele sabe nos livrar; pois o seu propósito é provar a nossa fé e a nossa paciência”.99

Do abatimento e paciente aflição, Calvino se trans­porta às vezes à grande exuberância do reconhecimen­to de que a magnífica expressão providencial do amor de Deus, a cada dia, nos cerca e sustenta. Fala Calvi­no com exuberante fé e regozijo: “Estamos rodeados, por onde quer que voltemos os nossos olhos, de tais e tantos milagres da sua mão que nunca nos faltarão motivos para louvar e agradecer a Deus”.100

Por outro lado, a luta incessante de Calvino com o pastoreio da igreja e o reconhecimento da própria natureza que ele tão repetidamente revela e que o le­va a considerações, como a que faz sobre o livro de Jó (Jó 32.20): “Odiamos o mal onde quer que ele seja encontrado, mesmo que seja na nossa própria pes­soa”. 101

Um outro livro de textos escolhidos das orações, dos Salmos metrificados por Calvino para fins litúr- gicos, etc., classificados conforme os assuntos, traz exa­tamente esse título: A Piedade de João Calvino. Se­

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gundo afirma o próprio autor, Ford Lewis Battles,102 o livro é uma antologia ilustrativa da espiritualidade do reformador e traz de início a definição de piedade do próprio Calvino. Que é piedade verdadeira no con­ceito de Calvino? E o autor transcreve a definição que consta do catecismo publicado em língua francesa em1537, e dois anos depois em Latim, da autoria de Cal­vino.

A piedade é palavra latina que no português ad­quiriu dois sentidos distintos, um, o sentido religioso, que designa a atitude do homem para com Deus — reverência, temor, cultivo da vida cristã e devocional. O outro sentido é o de compaixão e misericórdia.

É no primeiro sentido que Calvino a tomou. É porque muita coisa havia entre os cristãos não refor­mados, que podia ser contada erroneamente como pie­dade. O reformador começa a abrir os olhos do povo para uma religião de acesso a Deus, com temor, mas não com medo: com reverência real e não com ritos exteriores apenas; uma religião do espírito, mais do que de cerimônias. Calvino sente, de início, a necessi­dade de dizer o que não é piedade, para depois defi­nir o que é a legítima piedade cristã, daí a sua defini­ção: A verdadeira piedade não consiste no medo, que voluntariamente foge ao julgamento de Deus; de vez que, não podendo escapar, se vê terrorizado. A ver­dadeira piedade consiste mais no sentimento legítimo que ama a Deus como Pai, tanto quanto teme e o re­verencia como o Senhor. Abraça a sua justiça; abor­rece ofendê-lo mais do que à morte; e quem quer que possua essa piedade não ousa formar uma idéia de Deus por si mesmo, antes, busca com Ele o co­nhecimento do verdadeiro Deus, e o concebe justamen­te como Ele se mostra e declara ser.

É ainda Battles quem logo nos oferece uma de­finição abreviada e sucinta da piedade conforme Cal­vino: Piedade é reverência aliada ao amor, a que o conhecimento dos seus benefícios nos induz.103

O que muita gente não chega a entender muito bem é a figura do teólogo aliada à do crente, que se

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mostra tão completa como nele se vê. A sua piedade não descamba para o emocionalismo desassisado de um pietismo extravagante, que pode conduzir ao ri­dículo e à insensatez, nem é fruto de uma crendice mal informada e supersticiosa, que não faz sentido com uma fé sólida É assim a busca natural de Deus, por parte de quem aprendeu, no conhecimento dEle, como Ele se revela na sua Palavra; a grandeza da sua misericórdia; a longanimidade do seu perdão; a rique­za infinita da sua graça multiforme, é accessível a nós em Cristo Jesus. É atitude religiosa que nasce do co­nhecimento, sem quaisquer ilusões, da nossa fraqueza e demérito; mas que, aborrecendo o pecado, que tão servilmente nos quer subjugar e arrastar-nos às misé­rias da vida, aprendeu a amar a Deus, e amá-lo com alma agradecida e devota. É a piedade embalada na certeza consoladora do amor de Deus, que não se can­sa, mas perdoa na busca amorável do pecador, levan­do à penitência e confissão. É o reconhecimento do amor de Deus que excede à nossa compreensão limi­tada e humana; amor cuja largura, altura e profun­didade esgotam os recursos da nossa capacidade de comparar ou medir. É a fé inteligente que produz a piedade com reverência, sem os espasmos e convul­sões de irrazoáveis temores e mal concebida idéia da justiça divina. Piedade salutar, alegre, embora contri­ta; piedade em paz, ainda que vigilante contra o mal; segura, mas não de si mesma, na sua fraqueza, mas, na graça misericordiosa do Senhor. Essa é a piedade de João Calvino — o teólogo profundo, o crente hu­milde.

E as orações de João Calvino?Charles E. Edwards104 nota que alguns comentá­

rios de Calvino — Jeremias, Daniel, Ezequiel, os quais originalmente foram apresentados em forma de pales­tras, são acompanhados de uma oração apropriada ao assunto. As orações de Calvino revelam como ele era um homem de oração.

Edwards afirma: “João Calvino era um homem de Deus, ele tem sido, com justiça, admirado como teó­

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logo da Reforma; como príncipe dos comentadores das Sagradas Escrituras; o Pai da Exegese científica; fundador virtual das escolas mixtas. Ele era também grande em oração. O sistema de doutrina cristã que traz o seu nome tem sido sempre a mãe da devoção. Esse sistema pode ser conhecido pelos seus frutos; tem ele preparado um nobre exército de mártires, re­formadores, missionários e evangelistas. Tem produ­zido notáveis reavivamentos religiosos; e vive através de hinários populares em toda a cristandade. Oração é o seu hábito de vida, é o ar renovador do calvinis- mo”.105

Voltando ao livro de Battles, observamos que os Salmos que mais se enquadram na definição de pie­dade como experiência da vida cristã devocional, são exatamente alguns que Calvino escolheu para metri- ficação e uso na liturgia da igreja. É, por exemplo, o Salmo 25; “A ti Senhor elevo a minha alma, Deus meu em ti confio, não seja eu envergonhado. . . ”. E o Sal­mo 36, onde se encontra a jóia preciosa do versículo 9: “Em ti está o manancial da vida, na tua luz vere­mos a luz”. Ou então o Salmo 46: “Deus é o nosso refúgio, fortaleza, socorro bem presente na angústia". Ou ainda o Salmo 113, que agora é um cântico de louvor e aleluias, muito em sintonia com o seu sen­timento de louvor e gratidão, que Calvino sempre ma­nifesta para com Deus: “Aleluia! Louvai, servos do Senhor, louvai o nome do Senhor. . . ”.

E a piedade de Calvino se reflete nos hinos que escreveu como louvor a Deus: “Tu és a dextra de mi­nha alma, ó Deus. . . ”.

O hino da criação, em que canta louvores ao gran­de Artífice: “Grande é o Artífice que mostra em mila­gres o seu poder, sua bondade e sabedoria nas coisas que criou, grandes e pequenas”.

É o hino do fé? “Não em nós a nossa fé, pois na­da somos. Não, no coração de Deus realmente esta­mos, nele só nós confiamos a vida além”.

É o hino de comunhão: “Autor de toda a justi­ça . .. médico de todos os males, cura a nossa doença.

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Nesta Ceia a tua morte declarada está, vem fazer de todos nós irmãos vivendo em paz”.

Um aspecto da pieda de de Calvino, que Émile Doumergue aponta, encontra-se na sua meditação com respeito à vida futura, certo desprezo para com a vi­da presente: “A terra deve ser desprezada para que não nos escravizemos por amor intemperado para com ela".

Nessa mesma ordem de pensamento, Calvino tem o cuidado de prevenir contra a atitude imprópria de um pessimismo negativista; pois que, odiando a vida presente, nos mostraremos ingratos para com Deus que a povoa de tantas bênçãos.106

Talvez nada melhor para terminar esta série de considerações sobre a piedade de Calvino do que aquele trecho tão conhecido e tão citado das Institu­tas, quando trata da vida cristã. Com singeleza, hu­mildade e beleza assim se expressa: “Nós não somos de nós mesmos; portanto, não façamos nosso alvo a busca daquelas coisas que nos sejam agradáveis; nós não somos de nós mesmos: portanto, até onde nos é possível, esqueçamo-nos, e as coisas que são nossas. Por outro lado, somos de Deus: portanto, que a sua sabedoria e vontade presidam sobre tudo que é nosso. Nós somos de Deus: a Ele, como único legítimo alvo, sejam dirigidas nossas vidas em todos os seus as­pecto".107 ,

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NOTAS DA I PARTE

1. John Calvin, H is Life, Letters and Works, p.3332 . Letters of John Calvin, Vol. I — B urt Franklin Reprinted,

New York, 1973 — Prelim inary Observation, p.33. John T. McNeill, p.34. W. Walker, John Calvin Schocken Book, New York, 1969.5. Devotions and Prayers of John Calvin, compiled by Charles

Edw ards; Baker Book House, escand Rapids, 1954, p,13e 14.6. Apud, Stickelberger, pp.120-1217. Abel Lefranc, LTSloquence Française, p.138. M arturin Cardier, L’Eloquence Française, p. 14.8. M arturin Cordier, LTSloquence Française, p.149. Penning, Genius de Geneva, E erdm ans Publ. Co., 1954, p.24

10. Idem, pp.21-2512. Cadier, The Man That God M aster, Eerdm ans Publ. Co.,

1961, G rand Rapids, p.2213. Calvin, Uma Vida, p.1514. Calvin et Loyola deux R eform ateurs, Paris, 195215. Cadier, The Man That God M aster, Eerdm ans Publ. Co., 196116. Walker, John Calvin J. Putnam ’s Sons, New York, N.Y.

1909, p5217. Tracts and Treatises, Introduction, p. LX18. Penning, Life and Times of Calvin19. Tracts, Vol. I p.6420. Tracts, Vol. I p.62-6321. Naissance p. 906, Dourtiergue, Vol. I 460, apud Walker, p.12222. Guizot, p.20423. Zweig, p .1824. Guizot, p.21025. Mackinnon, p.5426. Walker, p.17227. Beza, Vol. I, T racts and Treatises, p.48-4928. Wendel, p.2829. Beza, Vol. I Tracts, LXXI30. Dyer, Life of Calvin, 1850, p.5831. Dyer, p.7832. Dyer, p.7733. Firchhofen, Vida de Farei, 1.68, Dyer, p.7834. Carta a Viret, opus 13, 330.35. Zweig, p.42

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36. Beza, Tract, Vol. I, LXXIII37. C arta a Viret, opus 2538. Dyer, Life of Calvin, London, 3. Murray, 1850, p.14439. Dyer, idem, p. 120, 12140. Dyer, p.12541. Miconius, Cartas, 5442. Wendel, p.8143. Beza, Tracts, LXXVII44. Mackinnon, p.9345. Rayburn, John Calvin, Lisboa, 1914, p.16446. Beza, Tracts, Cl47. Beza, Vol. I Tracts, CVI48. Beza, Tracts, p. Cl49. Wendel, p.9550. Wendel, p.13951. Opera V III, 879, Defensio Orthodoxae fidei, De Sacra

Trinitate, 155452. Stickelberg, p.11953. Stickelberg, p.12554. Opus 15, 26855. Wendel, p.9756. Serm ão sobre Jo. 7:857. Stefan Zweig, p.3358. Idem , p.2359. Idem , p.8060. Reyburn, Calvin, His Life and Work, p.28161. Stickelberg, p.12562. Warfield, Calvin and Augustine, Baker Book House

D istributer Grand Rapids, 1956, p.563. Walker, p. 86, 9464. Cadier, p .31-3265. Alberto Hyma, Life of J. Calvin, Wro. Eerdm ans P. Co.,

Grand Rapids, 194366. Guizot, p.16367. Stefan Zweig, The Right of Heresy New York, The Viking

Press, 1936, p.2268. Texto publicado na história dos m ártires em 1885 em

Toulouse, Vol. I p.298, segundo Cadier, p.5869. Guizot, p.17770. Guizot, Prefácio p.l71. Warfield, Calvino e Agostinho, p.8

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72. Cadier, p.16973. Warfield, p.774. Tracts and Treatises, p.68 Vol. I Eerdm ans P. Co., Grand

Rapids, 195875. L’Hum anité de Calvin, 196476. Edição Americana, 1971, Abingdon Press, Nashville.77. Jules Bonnet, prefácio, p.12178. J.M. Audin, H istoire de la vie, des ouvrages et des doctrines

de Calvin, Vol. II, Paris, 1841, p.34079. Carta 38, p.137, Vol. I80. Cartas, Vol. I p.53, carta 1481. Carta 87, p.33582. Carta 170, Vol. II, p.6783. Carta 177, Vol. I I p. 3784. Carta 306, Vol. II, p.38385. Introdução, Jules de Bonnet, p.986. Carta 274, Vol. I p.22987. Carta 281, Vol. II, p.31688. Carta 325, Vol. III , p.24589. G.E. Duffield, João Calvino, Wm. B. Eerdm ans P. Co.,

Grand Rapids, 1968, p.67 a 98.90. Deity of Christ and other sermons, William Eerdm ans, P. C.

Grand Rapids, 1950, p.891. Life of John Calvin, Presbyterian Board of Publication

Philadelphia, 190992. Francês M. Highman, The Style of John Calvin, Oxford

University Press, 1967, p.293. Tracts and Treatises, Introduction, LXXVIII94. Volmer, p.12395. Calvin’s Attitude Toward and Exegesis of the Scriptures,

Calvin Memorial Addresses, Presbyterian Committee of Publication, Richmond, Virginia, 1909

96. Stickelberg, p.9597. Jam es Mackinnon, Calvin and Reformation, Longmans

Green ad Co., London, 1936, p.28598. C. Kromminga, Man before God’s face in Calvin’s preaching,

Calvin Theological Seminary, 1961, p.599. J. Kromminga, Thine is My H eart, Grand Rapids Zon-

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dervan Publ. House, 1958, p . 188100. Institu tas, Livro III , capítulos XX e X X III101. Idem , idem, p .155102. Battles, Ford Rewis, John Calvin’s Piety, p . 13103. Idem, Ibidem104. Devotional Prayers of John Calvin, Baker Book House,

Grand Rapids, 1954105. Idem , p.3106. Calvin and Reform ation; chapter Calvin Epigony or

Creator, Flemming H. Revell Co. New York, 1909107. Institu tas, Livro III , Cap. V II, p.7

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Capítulo 1

INFLUÊNCIA DE CAL VINO NA EDUCAÇÃO - A SUA ACADEMIA

É vim domingo de céu azul e sol brilhante a der­ramar filigranas de ouro sobre os campos umedecidos na serenidade bucólica de uma paisagem mineira de cerrados e espigões, terra vermelha-alaranjada. Numa pequena igreja de roça, que parece menor ainda pela quantidade de gente que acomoda, se apinham ho­mens, mulheres e crianças, que de quilômetros e lé­guas acorrem ao culto divino, atendendo à visita pe­riódica do pastor que vem de longe.

Essa visita só se torna possível nos períodos de estiagem, pois os córregos e rios que, na distância de nove léguas medidas a casco de cavalo devem ser transpostos a vau, no lombo de animais, não dão pas­sagem nos meses de chuvas e enchentes.

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Quando chega outubro, o pastor faz a sua última visita anual, recomenda aos fiéis constância na fé e no testemunho do evangelho e deles se despede até abril do ano seguinte. Há expressões de pesar, há lágrimas nos olhos de alguns, há lenços que se agitam num adeus cheio de emoção e, à em medida que o cavaj- lheiro se afasta, vai para os ares o cântico que sai es­pontâneo: “Deus vos guarde pelo seu poder”. . . “Até nos encontrarmos outra vez".

E vêm as chuvas copiosas e com elas muito tra­balho na lavoura, o plantio do milho, do arroz, as capinas.

E crianças nascem nesse intervalo. O tempo pas­sou depressa.

Nesse domingo ensolarado há batizados na Igre­ja. Os pais apresentam os filhos ao batismo.

— “Prometeis”, pergunta o pastor, “Que se Deus for servido conservar a vida desse vosso filho haveis de criá-lo na doutrina e admoestação do Senhor?”

— Prometemos.— “Prometeis que haveis de ensinar ou mandar

ensinar a ler esse vosso filho, para que possa por si mesmo examinar as Escrituras Sagradas, inteirar-se das verdades nela contidas?”

— Prometemos!— “A Igreja promete dar a estes pais o apoio e

simpatia para que possam cumprir os votos que aca­bam de fazer?”

A dextra erguida pelos fiéis responde tacitamente— “prometemos”.

Presbiterianos dos sertões da nossa pátria, her­deiros espirituais de Calvino, começavam a aprender o que esse grande homem de Deus do passado, com sólido fundamento nas Escrituras preconizava: os de- veres que as respostas acima, tanto do crente indivi­dualmente, como da igreja como comunidade, reco­nheciam.

Ao apresentar o seu catecismo formulado para a igreja de Genebra, afirmava Calvino que o ensino do catecismo era um meio de voltar ao costume primi­

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tivo, que, pela ação de Satanás, tinha sido abolido. Era preciso cuidar que as crianças fossem devidamen­te instruídas na religião cristã. Para que isso fosse fei­to mais convenientemente, era preciso ter não somen­te escolas abertas como no passado, e indivíduos em­penhados no ensino de sua família, mas era também preciso adotar como costume público e prática a in­terrogação das crianças na igreja, sobre temas mais comuns e bem conhecidos dos cristãos. Por isso, ex­plicava ele, escrevera o seu catecismo e as Institutas.

Evidente é por essa passagem, e por muitas ou­tras paralelas, a verdade afrmiada por aqueles que de perto estudam a obra de Calvino sob o ponto de vista educacional: Calvino acreditava na religião inteligen­te, fruto do intelecto, tão bem como das emoções. Di­zia ele que um dos mais tenazes inimigos da verda­deira religião é a ignorância.1

Calvino insiste que a ignorância é a mãe da he­resia2

Dillistone afirma que para Calvino a Igreja é a escola da doutrina, o lugar onde os homens aprendem o verdadeiro conhecimento e são instruídos no cami­nho do Senhor.3

“Calvino desenvolveu uma perspectiva de vida que reconhecia os valores da razão e da inteligência humana”.4

“No sentido profundo e total, o propósito da Ci- vitas Dei — o Reino de Deus — é Educação, e atende a todas as atividades do cidadão, mesmo que seja ve­lho, na sua maneira de pensar, de agir por meio de seus atos. O cidadão está sendo educado na mais fecunda glorificação de Deus; o seu professor é Deus pela Sua Palavra”.5

Creio que poderíamos multiplicar com abundân­cia as citações para demonstrar que não se pode ver a obra de Calvino atentamente sem se perceber que não somente Educação está no âmago de seu progra­ma e do seu grande sonho, a Igreja de Cristo, mas, que também era parte integrante, inerente e indispensável, segundo o seu entender, da economia do Reino de Deus

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entre os homens, com vistas ao mais alto propósito — A glorificação do seu Criador.

A Igreja é mais do que uma comunidade de fé e adoração a Deus, é uma escola onde se aprende e on­de o Espírito de Deus mesmo é o Mestre dos Mestres, no sentido real e prático. Nãcj há, para Calvino, uma separação entre o ensino, quer seja de ciência, lín­gua e história, é o ensino religioso, porque todo o en­sino visa o aperfeiçoamento do homem para a sua vo­cação, e essa vocação ou chamado divino tem por fim o cumprimento de um papel na sociedade na qual o indivíduo se realiza, pois, além das bênçãos que rece­be para si na vida cotidiana, atinge o mais alto pro­pósito da existência humana — a Glória de Deus.

O nosso homem da roça que vinha trazer o filho ao batismo e prometia mandá-lo à escola para apren­der a ler; e a Igreja que com ele prometia cooperar nesse sentido, estavam vivendo a teologia de Calvino, que tanta ênfase dá a educação dos filhos, fruto, aliás, de uma convicção inabalável, de que se tratava de uma ordem bíblica, à qual não se podia fugir: Deute- ronômio 6:6-9.

Voltemos à nossa história daquele dia de sol.A preocupação dos membros da pequena congre­

gação com respeito ao cumprimento dos votos fei­tos no ato do batismo de um infante não lhes deixava a consciência em paz; pois, não havia ali uma escola e não tinham recursos para mandar os filhos ao es­tudo em outro lugar.

Relegados ao esquecimento pelos poderes, tanto municipais, como estaduais, não foram agraciados até então, nem mesmo com uma modesta escolinha ru­ral de duas salas e um professor vindo de longe para ensinar todas as classes ao mesmo tempo. Nem isso.

O pastor se solidarizava com as ovelhas na preo­cupação de educar as crianças daquela comunidade, de modo que não demorou muito, para alegria de to­dos, chegava a professora, aliviando assim a/ consciên­cia dos pais e trazendo esperança ao coração dos fi­lhos.

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A igrejinha se tornou também em sala de aula, feliz combinação, igreja e escola, bem ao sabor dos ensinos de Calvino.

Muitos anos depois o pastor, que fora transferi­do posteriormente para um campo distante, esperava no aeroporto de uma das cidades maiores daquela re­gião a aeronave que o devia conduzir à capital da re­pública. Dele se aproximou uma jovem que falava com desenvoltura e correção, vestia-se com modéstia e bom gosto. Formara-se enfermeira e, no pleno exer­cício de sua profissão trabalhava naquela cidade. Era uma das meninas de pés descalços que não sabia ler até que a professora chegasse para fundar a escoli- nha presbiteriana daquela congregação da roça.

Era assim que Calvino queria, Igreja e Escola de mãos dadas no grande propósito de bem servir o ho­mem e glorificar a Deus.

Walker, um dos biógrafos de Calvino, diz que ele pertencia à segunda geração dos reformadores e se conta mais entre os herdeiros do que entre os inicia- dores da Reforma. Não poderia ter feito o seu traba­lho, se antes dele não tivessem vindo Lutero, Zwín- glio. No entanto, não fora apenas um construtor so­bre o alicerce de outros.6

Doumergue corrige a idéia de que Calvino seja apenas um epígono, pois ele é o organizador e conso- lidador do grande movimento da Reforma.

Entre Calvino e Lutero há de se observar que, tra­tando-se de homens que vieram de situações diferen­tes, viveram um momento histórico diverso e tinham temperamento e cultura diferentes, haverá semelhan­ças e contrastes. No que se refere especialmente à educação, podia-se apontar o seguinte: Não há dúvi­da qualquer tanto no espírito de Lutero como de Cal­vino sobre a importância da educação na vida religio­sa e o dever que o cristão tem de buscar para sí e pa­ra os seus filhos a melhor instrução e fazer também dela um direito para todos. Lutero se destaca na his­tória da educação por dois documentos principais so­bre o assunto: a carta aos prefeitos e maiorais de to­

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das as cidades da Germânia em favor das escolas cris­tãs. Porque as escolas eram fruto da situação criada pela idade média, um movimento iconoclasta levado a efeito por grupos exaltados destruiu mostei­ros e as escolas que neles se encontravam. Era pre­ciso acabar com o pensamento errado de que escolas não eram necessárias, como criam alguns exaltados membros desse movimento.

Carlstad, na ausência de Lutero, pregava que con­vinha fechar as escolas e mandar os que nelas traba­lhavam para ocupação na lavoura, etc. . .

Os anabatistas preconizavam uma revelação dire­ta de Deus além da Bíblia e não davam à educação maior importância. Lutero e Calvino advogavam uma religião em que o intelecto é membro importante.

Melanchthon, o ilustre companheiro de Lutero, professor da Universidade de Wittemberg, dava real importância a educação, tanto secundária como pri­mária. O bem estar, segurança e força de uma cidade se encontram em cidadãos capazes, instruídos, sábios e justos, dizia Lutero. Mais tarde pregou ele um ser­mão sobre a Educação das crianças, no qual dizia que as autoridades civis estão no dever de obrigar o povo a mandar seus filhos à escola.

Verifica-se, no entanto, que tendo Lutero, nesta altura, o apoio dos poderes do Estado, julgou ser do Estado a obrigação de manter escolas — um sistema escolar mantido pelo poder civil sob a orientação da igreja.

O conde de Mansfield, atendendo ao apelo de Lu­tero, pediu aos protestantes que fundassem uma esco­la na cidade natal do reformador alemão, obedecendo às teorias e métodos preconizados por ele. Essa es­cola foi fundada sob a orientação de Melanchthon, o qual recebeu essa incumbência do eleitor da Saxônia mesmo.

O plano de Melanchthon foi seguido sem maiores modificações e a sua atuação como educador gran- jeou-lhe fama entre os reformadores. Verifica-se nesse caso que o Estado é que se serviu da orientação do

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reformador na criação de um sistema educacional. Evidentemente, o Protestantismo, defendendo o livre exame das Escrituras, estabelecendo como fizeram os reformadores — tanto Lutero como Calvino — o en­sino do catecismo às crianças, adotando uma liturgia em que o povo tinha participação ativa; preconizando o dever do cidadão de desempenhar funções civis, com a maior eficácia possível, havia consequentemen­te de dar ênfase especialíssima à eduôação. E João Calvino o fez, prosseguindo com vantagem o caminho trilhado por Lutero.

O reformador suiço tinha pessoalmente uma ex­periência escolar que lhe fornecia cabedal excelente para isso. Em criança, estudara na melhor escola de sua terra natal; escola onde se matriculavam os fi­lhos da gente rica e nobre da região Posteriormente vai para o colégio de Lamarche e em seguida para o de Montaigu, em Paris. Seguia mais tarde para Or­leans e Bourges em busca de seu diploma de direito Nessa variedade de escolas sob a orientação de alguns dos melhores mestres de seu tempo, o espírito crítico de Calvino havia de se despertar para o exame das falhas e vantagens que em todos esses lugares tivera oportunidade de observar.

Quando seus olhos se abriram para as verdades que a Reforma proclamava, começou a perceber a ne­cessidade não apenas da restauração do Cristianismo à sua forma apostólica, mas a conveniência de dar à Igreja o instrumento também renovador que a liber­tasse das crendices e superstições que tanto concor­reram para a sua degradação moral e religiosa. Era preciso criar uma igreja capaz de discernir a verda­deira doutrina evangélica, expurgando-a de todas as inovações prejudiciais. Lutero é o iniciador, sem dú­vida, Calvino é o continuador.

Ambos preconizam a urgência e a necessidade de escola popular gratuita, não como privilégio de uns poucos, mas como um direito de todos.

Lutero vê no Estado um instrumento para alcan­çar o seu alvo. Era o Estado que devia criar e man­

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ter as escolas sob a orientação da Igreja e com o apoio dela.

Calvino vê no Estado um cooperador com a igre­ja, para que a educação colocada*sob os auspícios da igreja sirva aos propósitos do reino de Deus e para sua glória.

Na Alemanha de Lutero, nós o encontramos aler­tando o Estado para a necessidade urgente da educa­ção. Lutero afirma que é preciso haver escolas em to­dos os lugares, para meninos e meninas, pois, para se manter a ordem e o bem das famílias é necessário que haja homens e mulheres preparados.

Calvino, no entanto, vê a escola num plano mais elevado ainda. Não se trata apenas de um instrumen­to para aperfeiçoamento da sociedade, como um fim em si mesmo, mas de um meio para alcançar a mais alta finalidade da vocação humana, a glória de Deus Por isso, cuida com carinho da educação nos seus di­ferentes graus, de modo que pudesse aqui na terra preparar para uma vocação que transcende às finali­dades puramente terrenas.

Afirma Edwin Walthout7 que Calvino pensava ser o bom príncipe uma testemunha da divina providên­cia na manutenção da salvação.

CALVINO E LOYOLA: Dois grandes educadores.No estudo da História da Educaçãq, não se pode

ignorar estes dois grandes nomes: Calvino e Loyola. Há algumas coincidências curiosas na vida e na car­reira desses dois homens. Ambos são presa de um in­tenso ardor religioso, aos limites do sacrifício. Ambos donos de privilegiada inteligência e rara capacidade organizadora. Ambos destinados a um lugar de excep­cional importância na história.

Calvino é mais moço, uns dezoito anos, mas am­bos estudaram no famoso colégio de Montaigu, em Pa­ris, e há aqueles que afirmam que, embora por um pe­ríodo curto, lá estiveram juntos. Outros escritores pen­sam que cruzaram um pelo outro nas ruas de Paris — enquanto um entrava, outro saia.

Em 1534, quando Loyola fundava a sua Sociedade

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de Jesus, Calvino publicava o seu livro Psychopanny- chia. A data da volta de Calvino a Genebra, em 1541, coincide com o ano da aprovação pelo Papa, dessa so­ciedade fundada por Loyola. Ambos vão oferecer uma contribuição de valor inestimável à causa da educa­ção — cada um à sua maneira, com vista ao alvo que tem em mira.

Calvino quis fazer da educação um instrumento hábil para produzir indivíduos capazes de servir na vida pública ou qualquer outra função, com a cons­ciência do dever e sentido de vocação, tudo para a mais alta finalidade a glória de Deus.

Loyola, por seu turno, estabelece como meta su­prema de sua ordem, Omnia in majorem Dei Gloriam. Inicialmente, não pensava Inácio de Loyola em fundar escolas. Seu plano visava uma grande ofensiva missio­nária que pudesse conquistar o mundo não cristão, reaver para Roma os territórios perdidos com a Re­forma Protestante; ao mesmo tempo, assegurar para a Igreja Católica o domínio absoluto dos povos pagãos— nas colônias de Portugal e Espanha. Percebeu, no entanto, que essas finalidades só poderiam ser alcan­çadas com o eficiente e poderoso instrumento da edu­cação. Daí tornar-se a Companhia de Jesus uma das ordens religiosas mais bem educadas e mais eficien­tes na implantação de escolas. Não faltaram aos je­suítas homens de cultura, pertinácia quase obsessiva e irremissa paciência para buscar o melhor segundo os seus padrões. . .

Tanto Jesuítas como Calvinistas deram ao mun­do nomes de sólida cultura nos vários ramos do saber. Em 1599, tinha Cláudio Aquaviva, o geral da ordem, pronto o seu Ratio Studiorum — aquela parte de Ra- tio atque Institutio Studiorum Societatis Jesu, que tra­ta da educação. Era o fruto acumulado do acervo de experiências em algumas décadas, no que diz respei­to à educação em seus variados aspectos. A opinião insuspeita, até mesmo de alguns autores católicos co­mo Kampschulte, é de que Aquaviva acolheu influên­cia calvinista, na formulação final do seu Ratio Stu-

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diorum, uma tese, sem dúvida, para ser estudada com profundidade.

CALVINO E ROUSSEAUApenas de passagem, convém lembrar ainda a re­

lação que há entre Calvino e outro nome significativo da História da Educação: J . J . Rousseau. Calvino não é suiço, nem genebrino, mas francês, contudo, viveu em Genebra e foi aí que encontrou o grande palco de suas atividades.

J. J. Rousseau é suiço. É de Genebra, foi batiza­do na Igreja de S. Pedro onde Calvino, como pastorda comunidade que ali se reunia, pregou e batizou crianças tantas vezes e por tantos anos.

O pai de J. J. Rousseau era relojoeiro, a mãe fi­lha de um pastor. Cedo começou Rousseau a se im­pressionar com educação. Parte da sua obra literá­ria revela isso.

Émile é o modelo do menino que vive em liber­dade, sem sofrer as influências de artificialismo da so ciedade que acaba deseducando ao invés de educar.

Rousseau parte do princípio de que o homem é naturalmente bom; a sociedade é que o perverte; daí a necessidade de se criar o menino livre das regras e imposições às quais a sociedade e a família organiza­da o obrigam.

A posição de Calvino é bem outra, e resulta da sua teologia: o homem é mau e traz consigo ao nas­cer uma natureza depravada e a educação por si só não poderá regenerá-lo. É a graça de Deus que o re­genera e lhe dá, através de uma educação sadia, orien­tada em princípios cristãos, condições de se tornar um instrumento para a glória de Deus.

As teorias de Rousseau, evidentemente exageradas e fora da realidade, despertaram, todavia, os educa­dores para a necessidade de se oferecer ao educando liberdade de expressão e contato com a natureza, pa­ra um desenvolvimento mais livre da personalidade. De modo que a sua influência foi decisiva na manei­ra de pensar sobre educação, preconizando estágios

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diferentes na educação da criança; metas nessa edu­cação e preparação do educando para uma vida efi­ciente na sociedade.

Calvino é diferente de Rousseau, na postulação de outros métodos; na maneira de encarar o aluno; no estabelecimento das metas de educação, que não se restringem puramente ao terreno, mas visam algo transcendental, e é na Academia que o pensamento de Calvino sobre educação e as finalidades dela vão ter oportunidade de expressão; é através dela que a sua influência há de se fazer sentir poderosamente, expandindo-se pelo mundo inteiro.

O estudo da influência de Calvino na Educação sugere-nos a indagação: onde recebera ele o lastro de conhecimentos específicos neste ramo que o habilitas­sem à obra que desenvolveu neste sentido?

Além das escolas que freqüentou e dos mestres insignes que teve, o que permitiu ao seu espírito ati­lado e sua mente organizada absorver muito dos mé­todos e prática de ensino, adaptando-os posteriormen­te ao seu plano educacional. Calvino aprendeu muito, neste sentido, na vivência com homens especialistas na arte de ensinar, em seu tempo, entre eles o gran­de amigo, Martin Bucer.

Crê-se que os três anos vividos em Estrasburgo, após a sua expulsão de Genebra, lhe foram muito úteis a esse aspecto. A cidade livre alsaciana era en­tão um reduto de teólogos e mestres reformados. Mar­tin Bucer era um daqueles homens excepcionais do clero romano, que a Reforma atraira para si e que se tornaram em grandes luzeiros do movimento. Fora agostiniano, como Lutero, e foi por influência deste que se decidiu a abandonar a vida monástica, casar- se com uma freira, como fizera Lutero, e arrostar com as perseguições naturais dessa situação. Recebi­do em Estrasburgo com certa reserva (pois fora ex­pulso de Wisenburgo onde estivera pregando), tornou- se em pouco tempo uma das figuras mais destacadas da cidade e verdadeiro líder da comunidade. Com ele Calvino manteve uma amizade capaz de sobreviver a

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todas as vicissitudes. Possuía uma qualidade rara — a capacidade de reconhecer e apreciar a grandeza de outros.

Bücer era professor e educador, mas o seu gran­de mérito se revelou no empenho de descobrir e atrair para Estrasburgo homens capazes que, com brilho, pu­seram em execução um excelente plano educacional. Dentre esses se destacam Jacques Sturm, um jovem de família nobre, educador de raras qualidades. Fora expulso de Solestadt causa das suas simpatias pela Reforma e logo depois recebido em Estrasburgo; pos­teriormente presidente da comissão permanente di3 educação.

Um outro grande nome é João Sturm, notável pe­dagogo, autor de um livro que se tornou em obra clás­sica de pedagogia; “De Literam Ludis Recte Aperien- dis” no qual propõe métodos e metas de educação. Advoga a divisão da educação em três departamen­tos: O Kindergarten para as crianças abaixo de seis anos; o Gymnasium, um curso de nove anos para as crianças de seis anos; a Hochschule, um curso de cin­co anos para os que terminassem o Gymnasium. Da­va grande ênfase à moral e à religião. A sua capacida­de nesse aspecto impressionou de tal modo as auto­ridades que acabou sendo o Diretor Geral de todo o ensino.

De modo que em Estrasburgo, Calvino recebera influência não de um homem apenas, mas de uma plêiade de grandes educadores.

Indiretamente, foram eles, até certo ponto, ins­trumentos usados por Deus na preparação do refor­mador para a sua tarefa educacional, especialmente a fundação da sua sonhada Academia.

Samuel Cornet,8 falando da Academia de Gene­bra, assim se expressa: Cette École fuit l’âme de l’hé- roique défense de Genève contre le duc Savoie, le prin- cipale foyer.9 Parece que uma das promessas com que o duque procurara trazer de volta a si o domínio de Genebra era a da fundação de uma universidade. Essa promessa havia de incentivar ainda mais os sonhos

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de Calvino de doar à cidade e ao mundo uma nova escola com nova filosofia de educação. “A academia foi o passo final para a realização do seu ideal, de uma comunidade cristã”.10 Minucioso nos seus pla­nos, guiado pela natural capacidade organizadora, Cal­vino levava a efeito o seu desejo, observando as me- nomes minúcias, por isso, foi exigente até na escolha do local —r uma vinha com vistas para o lago, lugar bem arejado.11

Renato Freschi, numa obra premiada pela Acade­mia de Milão em 1934, diz: “O Estado novo fundado por Calvino é a conseqüência lógica de sua teologia e a Academia faz parte da estrutura deste estado”.12

O ar livre que iriam respirar os alunos da nova escola era o símbolo do novo sentido de educação que iam receber, muito diferente da orientação escolásti- ca medieval da Sorbonne, muito diverso do que have­ria de ser a prometida Universidade do Duque de Sa- bóia.

Lutero afirmava “a necessidade de escolas livres, lembrando que os monges aprisionavam os jovens co­mo aves em gaiolas, por isso, era necessário que se lhes permitisse ouvir, ver e aprender de tudo, con­quanto que o fizessem dentro das linhas de um ho­mem” .

A criação e estabelecimento da Academia não foi tarefa de modo nenhum fácil. Aqueles que iam ser imediatamente beneficiados com a escola (nem todos, pelo menos), supõe-se, foram capazes de entender o valor da iniciativa. O concilio da cidade mesmo não tinha a visão real da importância da obra, por isso, deixou, às vezes, de atender com a devida e necessá­ria prontidão aos apelos de Calvino em favor da Aca­demia. Faltava dinheiro e Calvino chegou a sair de casa em casa solicitando auxílio para a escola.

A abertura se deu na época aprazada, 5 de março de 1559 (segundo alguns em 7 de junho). O prédio não estava concluído ainda; não havia carteiras nem bancos, mas fez-se a improvisação necessária, utilizan­do-se tábuas e pranchões de madeira. O entusiasmo era

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grande por parte de Calvino, dos pastores e muitos outros, de modo que aos poucos tudo foi caindo nos eixos. Uma cerimônia pública de grande repercussão assinalou o acontecimento. O comércio fechou suas portas, os sinos tocaram em sinal de regozijo e na ca­tedral de S. Pedro se deu a abertura com uma sole­nidade religiosa, como convinha à ocasião. Iniciou-se com oração por Calvino, o discurso foi do reitor Teo- doro Beza.

Como já se afirmou, a Academia de Genebra era uma instituição da Igreja, sob a supervisão da Igre­ja para servir a Igreja. Os ministros era virtualmen­te o corpo administrativo da escola.13 A Igreja e os magistrados estavam juntos para a fundação da Aca­demia que tinha como objetivo preparar ministros e cidadãos para o governo civil.14

Calvino só poderia compreender um Estado só­lido e bem dirigido, cumprindo a sua tarefa de zelar pelo bem estar dos cidadãos, em todos os sentidos, sob a direção de homens que, no exercício de suas funções, dotados do melhor preparo possível, fossem possuídos de um senso de missão a eles confiada por Deus.

A Igreja tinha que ensinar os seus filhos como viver neste mundo dentro da vocação que de Deus receberam; ensinar as Escrituras, a regra de fé, o ca­tecismo, mas também e, ao mesmo tempo, prepará- los para atuar na sociedade no pleno exercício de seu chamado divino. Entre as funções que Calvino pos­tulava para os que servem à Igreja de Cristo estava o mestre. “E quando falava do mestre, estava falando do mestre-escola, pois, para o reformador, educação nunca era ‘secular’ como o termo é geralmente enten­dido hoje. Todo ensino tem como seu arcabouço pri­mário a referência à glória de Deus e só tinha signi­ficado, em última análise, se contribuía para a sal­vação e o adiantamento da igreja. Calvino ponderava que da mesma sala de aula vinha o ministro, o servi­dor civil e o leigo”.15

Calvino não quis ser o diretor da escola; foi o

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seu fundador e professor de Teologia. Embora enfer­mo, cuidou das construções e procurou dotar a Aca­demia do melhor corpo docente que pode encontrar. Aproveitou alguns que tiveram de abandonar o seu posto em Lausanne, acolheu aqueles bons professores que eram perseguidos por causa da Reforma. Mar thurin Cordier, seu antigo professor de Latim e Fran­cês em Lamarche, integrou o corpo docente. Outros nomes notáveis foram convocados, como Casaubon, Hortman, Francisco Turrentino, Alphonsus Turrenti- no, Leclerc, Pictet, Saussure, Bonnet e outros. Ho mens sábios, tementes a Deus e dextros na arte de ensinar.

Assim convinha à filosofia de educação que Cal­vino postulava; pois não tinha sentido escola sem evan­gelho. Uma escola puramente secular, com professo­res embora capazes, sem temor de Deus, nunca ocu­paria o tempo e pensamento de Calvino. Por isso, “o catecismo estava no coração do programa educacio­nal da cidade”.16

Dividiu Calvino o programa da sua Academia em dois cursos. A Schola Privata, baseada essencialmen­te na gramática, lógica e retórica, além de história e de escritores latinos e gregos. A ênfase da Schola Privata era na leitura corrente, na fala com fluência, na escrita com elegância.17 Não havia preocupação com a matemática, nem com a geometria, ou estudo de música, como no antigo quadrivium. Os Salmos eram cantados como única parte da música. Depois vinha a Schola Publica, em que a ênfase era na ora­tória e retórica. Os discursos de Cícero, com o De Oratore, Filosofia Moral, Poesia. O Latim e o Fran­cês deviam ser sabidos corretamente pelos alunos.

Calvino prometeu no início que a sua Academia teria uma faculdade de Medicina e uma de Direito. A Medicina veio antes do seu falecimento, Direito só depois de sua morte.

O trabalho na Academia começava bem cedo: às 6 da manhã, no tempo do verão, e às 7 nos dias de inverno, com uma hora inteira dedicada aos exerci-

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cios devocionais. Depois da hora devocional nas se­gundas, terças e quartas feiras, o trabalho de classe continuava até às 10 horas, quando era interrompido para as refeições. Às quartas e sextas não havia clas­ses. Às quartas, os professores deviam estar presen­tes ao culto público. Às sextas deviam participar da “Venerável Companhia”.

Alguém afirmou que o amor é engenhoso e fértil na criação de meios para salvar e proteger o ser ama­do. Foi isso que fez Jacobede inventar a cesta de vime para colocar o filho Moisés às margens do Nilo, onde a filha de Faraó ia se banhar. A Academia continuava a ter dificuldades financeiras e Calvino, que vivia noi­te e dia os problemas de sua escola, sugeriu aos advo­gados que, ao elaborar o testamento de seus clientes, os aconselhassem a legar parte de seu espólio à Aca­demia. Esse plano deu resultado, de modo que den­tro de pouco tempo nada menos do que dois legados tinham sido feitos no valor de 1.074 florins. Conse­guiu, ainda, que multas por infrações da lei se desti­nassem à Academia, o que também resultou em pro­veitosa renda. Assim é que Jean Broche pagou uma multa de 100 coroas por ter usado indevidamente os direitos autorais das “Institutas”, que pertenciam a Antônio Calvino, irmão do reformador.

Outros expedientes foram utilizados, tais como ofertas voluntárias, que encontraram boa aceitação por parte de muita gente do povo. Um estudante deu cinco coroas e a esposa de um padeiro deu 5 sous. Alguns estrangeiros, e até soberanos de outros países, contribuíram para a Academia, que aos poucos ia ga­nhando interesse e a simpatia de todo o mundo evan­gélico.

Quando a Academia foi fundada, tinha 600 alunos; cinco anos depois, quando Calvino morreu em 1564, havia 1.200 alunos nos cursos superiores mais 300 nos inferiores. Gente da França, da Itália, da Holanda, da Alemanha, da Escócia, da Inglaterra vinha estudar ali.

Inicialmente, só 4 alunos eram de Genebra, isto é, nascidos em Genebra, a maioria era da França. Den­

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tro de pouco tempo, a fama da Academia se espalha­va pela Európa inteira. Dizia-se que um aluno de Ge­nebra era capaz de superar um doutor de Sorbonne na exposição de sua fé cristã. Daí entender-se que a influência educacional de Calvino se espalhasse, leva­da pelos próprios alunos que acabavam sendo, alguns deles, grandes luminares nos seus próprios países.

Aliás, a reforma que Calvino se propôs realizar em Genebra não era um plano restrito à pequena ci­dade de Leman, mas algo que devesse ser levado a todas as partes. A Academia se tornou um instrumen­to hábil e indispensável à infra estrutura deste mo­vimento colossal. Warfield, no seu “Calvino e Agosti­nho”, afirma: “Chamamo-lo o Reformador de Genebra, mas reformando Genebra pôs ele em exercício forças que estão ativas e operantes até o dia de hoje”.18 E, dentre estas forças, podemos destacar uma nova fi­losofia de educação aliada a uma nova filosofia d 3 vi­da, ambas centralizadas na doutrina da educação e vocação cristã e que foram transmitidas pela escola através das lideranças que essa escola espalhou pelo mundo inteiro.

Samuel Cornet escreve sobre a Academia de Cal­vino19 e se refere ao que ele intitula a obra triplice de Calvino — Uma teologia, uma Igreja, uma Repú­blica — tríplice na sua manifestação de um só e mes­mo pensamento. . . este vasto organismo tinha necessi­dade de um centro intelectual. . . de modo que. . . (conclui a respeito da Academia): “Esta escola deve ser considerada como coroamento da sua obra”.20 Esse coroamento tão necessário seria o ponto de par­tida para o avanço da obra de Calvino atingindo a muitos e muitos outros lugares. Convém observar a influência educacional de Calvino em outros países, ainda que ligeiramente.

Ao tratar deste tópico, ocorre-nos inicialmente a lembrança da Escócia, onde João Knox tornou-se a voz retumbante da Reforma, em todos os seus aspec­tos. Knox foi um dos alunos da Academia, um ardo­roso adepto da Reforma, um admirador de Calvino,

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um entusiasta do processo de renovação que se ve­rificou em Genebra como resultado do esforço de Calvino. Levou Knox para a Escócia a idéia de edu­cação para todos, ricos e pobres, e educação gratuita patrocinada pela igreja, herança de Calvino. Daí as escolas que se espalharam por toda a Escócia sob a influência de João Knox, que entendia dever cada pa­róquia ter um mestre escola para oferecer ensino gratuito aos alunos. O ministro nas igrejas rurais de­via ser também professor. Por sua influência surgi­ram escolas gratuitas sob o patrocínio das igrejas, li­vres da tutela do feudalismo e do domínio eclesiásti­co. Essas escolas ensinaram a ler e escrever e utili-, zavam o texto bíblico para o ensino da leitura, além do ensino da religião. Tornaram-se um poderoso ele­mento na elevação intelectual e moral da Escócia. Daí acontecer que, pela influência de João Knox, “a Escó­cia em matéria de educação elementar gratuita ante­cipou a Inglaterra em mais de dois séculos”.21

Na França verificou-se extraordinária influência da educação calvinista entre os Huguenotes. Os hugue- notes eram adeptos da teologia calvinista e, por algum tempo, tiveram liberdade de ação, embora com algu­mas limitações, e floresceram admiravelmente. As aca­demias apareceram por toda a parte na França onde os huguenotes tinham influência e, por isso, eles. se tornaram a gente mais bem educada da França.22

Se na França eram os huguenotes os portadores da influência de Calvino, na Inglaterra foram os pu­ritanos, defensores zelosos das idéias de Calvino e das reformas de Genebra e seguidores dos métodos de edu­cação de lá trazidos.

João Milton é universalmente conhecido pelo seu poema imortal, O Paraiso Perdido, obra clássica da literatura inglesa, contudo, foi também educador. Na sua mocidade dirigiu um internato e, como resultado de sua experiência, observação, estudos, escreveu um tratado sobre educação, no qual dá uma definição de educação em termos bem calvinistas. “Eu chamo edu­cação completa aquela que prepara o homem para rea­

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lizar, com retidão, com habilidade e magnanimidade todos os ofícios privados ou públicos na paz e na guerra”.

João Milton propõe a fundação de academias pa­ra oferecer educação secundária e superior, à seme­lhança da Academia de João Calvino. O modelo da es­cola que João Milton desejava para a Inglaterra veio, no entanto, a florescer nos Estados Unidos, para on­de os puritanos do May Plower a transportaram e se tornou, por algum tempo, o tipo representativo de es­cola secundária norte americana, segundo testemu­nho de Graves.23 A idéia partiu de Benjamin Franklin, que, em 1743, sugeria a instituição de academias que preparassem os jovens para a vida. Indiretamente, Calvino teria influenciado nesse movimento, pois Ben­jamin Franklin era filho de puritanos.

Convém lembrar que as universidades de Oxford e Cambridge foram universidades dominadas pelo pen­samento calvinista. A influência de Calvino na Alema­nha, no que diz respeito a escolas secundárias, foi in­direta, através dos pietistas, que absorveram dos puri­tanos muitas de suas idéias, inclusive em matéria de educação.

Francke, uma das figuras mais notáveis do pietis- mo no centro da Europa, tornou-se grande educador* e fundador de escolas para crianças, e principalmen­te para órfãos. A sua filosofia de educação era muito semelhante à de Calvino: “Somente o homem temen­te a Deus pode ser um bom membro da sociedade. Sem uma piedade sincera, todo o conhecimento, toda a força, toda a cultura com respeito às coisas do mun­do é mais prejudicial do que útil e nunca estará livre de ser somente má”.24 Que é isto senão um comen­tário lúcido da afirmação bíblica de que o temor do Senhor é o princípio da sabedoria, ou de que todo o conhecimento científico e literário, qualquer que se­ja, poderá levar o homem a sua própria desgraça, e a dos seus semelhantes, se não for sustentado por uma religião sadia de temor a Deus e a sua palavra? For isso é que Aiken Taylor chega à conclusão de que

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Calvino, quando fala do professor, está falando do mestre-escola, pois, para o reformador, a educação nunca é secular, como o termo é geralmente enten­dido.

Todo ensino tem como o seu escopo primário a referência à Glória de Deus, e será, em últimas con­seqüências, de grande significação, porque contribui para a salvação e provê o avanço da Igreja.25 Na Ho­landa, onde o pensamento calvinista lançou raízes bem profundas desde o princípio, a influência educacional de Genebra se fez sentir especialmente na Universi­dade de Leyden, que foi fundada por prcfessores cal- vinistas e sob o modelo de Calvino.26

Após ganhar a batalhá contra a Espanha, Guilher­me de Orange ofereceu ao povo de Leyden em recom­pensa pela resistência desesperada que a cidade tinha oferecido aos espanhóis, isenção de impostos por al­guns anos ou uma universidade, 27 O povo escolheu uma universidade e, assim, foi fundada a Universidade de Leyden, uma das mais famosas, embora numa ci­dade relativamente pequena, pacata e até provinciana. Ali floresceram talentos grandes, como Scalinger, he- lenista de fama, professor de hebraico e outras lín­guas orientais, que, por muito tempo, ocupou a ca­deira de belas letras; Grotius, que entrou para a uni­versidade aos 11 anos de idade e seis anos mais tar­de era apresentado por Henrique IV da França, em Versailles, a sua irmã, com as seguintes palavras: eis aí o milagre da Holanda; Espinoza e Descartes ali en­sinaram e exerceram sua influência; Arminius, que, em matéria de teologia, discordava de Calvino, em educação era calvinista e tornou notável o nome da escola.

A escola de medicina da Universidade de Leyden chegou a ser uma das mais famosas da Europa, com a presença ali do grande Boerhaave (Hermann), o extraordinário diagnoticista.

Os princípios sobre os quais se assentava a aca­demia de Calvino em Genebra, diz Twing, eram lógica e pedagogicamente sólidos e os seus métodos de admi­

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nistração eficiente.28 Daí a razão porque, onde quer que se implantou a educação calvinista, surgiu a qua­lidade excelente de ensino.

Na Alemanha de Lutero e Melanchthon havia de se dizer que a pedagogia de Calvino não teria lugar, no entanto, não lhe faltou uma oportunidade de ali se implantar com grande êxito, na Universidade de Heidelberg, a qual chegou a ser um forte reduto da influência calvinista, com notáveis representantes do seu pensamento, que trouxeram para a América o pla­no educacional de Calvino. Alguns deles viveram, an­tes de partir para o continente americano, perto da Universidade de Leyden.

George Bancroft, segundo testemunho de Twing, dizia que Calvino foi o pai da educação popular e o inventor do sistema de escola gratuita... os peregri­nos de Plymouth eram calvinistas; a melhor influência na Carolina do Sul veio de calvinistas da França; William Penn era discípulo de Huguenotes; o navio da Holanda, que trouxe os primeiros colonizadores a Manhattan, estava cheio de calvinistas.29

Quem lê a história de fundação da universidade de Harvard fica sabendo que foi fundada por elementos calvinistas convictos e com o mesmo propósito com que Calvino fundou a sua Academia.

John Harvard, de quem a Universidade tomou o nome, era ministro puritano, que legou a uma inci­piente escola, ainda sem organização, 780 libras e 400 dos seus livros, com o propósito de educar ministros para a Igreja, como também para o avanço da boa literatura, das artes e das ciências. Cuidava, ainda, a escola da educação dos jovens indígenas no conheci­mento e na piedade.

Depois viria Yale, e viria Princeton Embora es­sas universidades hoje, em certos aspectos, possam ser consideradas inteiramente opostas ao pensamen­to de Calvino, não se pode negar que devem a sua grandeza e o seu nome às bases sólidas com que fo­ram fundadas.

Dos Estados Unidos levaram os missionários a

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outras terras a educação calvinista e realizaram uma obra de incomensurável grandeza no campo da educa­ção, mormente porque introduziram novos métodos, difundiram a idéia da educação para todos, pobres, ri­cos, meninos e meninas, influíram poderosamente na substituição dos métodos medievais por uma nova pedagogia educacional, liberal.

Podemos particularizar exemplos do Brasil, onde se verificou o surgimento de escolas, como a escola americana em São Paulo, que se transformou na Uni­versidade Mackenzie, como o Instituto Gammon em Lavras, ambas fundadas por elementos calvinistas con­victos e orientadas pela filosofia de educação de Calvino.

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PENSAMENTO POLÍTICO DE CALVINO

Em tempos mais modernos, de maneira mais acentuada, tem se preocupado em pesquisar o pensa­mento de Calvino, ao seu aspecto social e político; uma vez que, agora mais do que nunca, estas duas idéias se encontram intimamente ligadas. Os sistemas políticos hoje se caracterizam por tendências sociais; é impossível separar os movimentos sociais dos pro­gramas políticos. Nota-se que na Polônia, recentemen­te, a luta dos sindicatos “Solidariedade”, em virtude da situação peculiar do país, tem procurado evitar que a sua luta em favor dos trabalhadores seja carac­terizada por uma tomada de posição política contrá­ria ao estado socialista aí em vigência. Percebe-se, no entanto, a dificuldade desta separação.

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Na Inglaterra, hoje assolada por uma crise finan­ceira, que embora mundial, tem ali suas feições pe­culiares, como peculiar, até certo ponto, é o seu sis­tema político, percebe-se como entram em debate te­mas diretamente políticos, quando se trata de encon­trar soluções para os problemas sociais.

O governo que não propiciar condições econômi­cas e sociais aceitáveis, ou pelo menos razoáveis, es­tará sempre em perigo. E qual deles não está hoje? Basta olhar para os países socialistas fechados.

Calvino se viu na curiosa posição de um homem que, empenhado numa reforma religiosa, dentro de um pequeno estado livre, como era a cidade de Gene­bra, onde mais do que em outros lugares, a organiza­ção eclesiástica e o governo civil se confundiam em certas áreas; embora não fosse ele um chefe de Es­tado, nem um mero eleitor, durante a maior parte do seu tempo ali, acabou, sem intenção de fazê-lo, formulando idéias políticas. O que Calvino realmente fazia era formular o seu sistema teológico, procuran­do torná-lo pertinente à sociedade cristã que ali que­ria implantar.

Quando se lembra que Genebra se tornou abrigo preferido para um número enorme de refugiados, que, por suas convicções religiosas, para alí se dirigiam e onde cada dia chegava, com necessidade de se insta­lar permanentemente e ganhar a vida, éntende-se me­lhor como Igreja e Estado, no intuito de. acolher com simpatia e caridade esses recém vindos, teriam que muitas vezes se confundir. Quem havia de cuidar des­sa população, o Estado ou a Igreja?

É bem possível que essa situação tornasse difícil a aplicação da teoria de Calvino, de um Estado intei­ramente separado da Igreja.

W. F. Graham30 mantém que essa separação da Igreja do Estado existiu para Calvino, mais em teo­ria do que na prática. É evidente que quando estivesse em jogo o interesse daqueles que precisavam dos seus cuidados pastorais, daqueles refugiados em bus­ca de uma condição de vida livre da tirania de onde

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vieram, Calvino não hesitaria em exercer a sua au­toridade moral e informal em favor deles. Nota-se que alguns de seus sermões castigavam com severidade e coragem a ganância daqueles que prendiam o trigo, procurando preços mais altos, quando os que ali che­gavam precisavam comer. Assim, em Genebra, a Igre­ja e o Estado necessariamente se confundiam em mui­tas áreas.

Os homens do concilio eram homens da Igreja, empenhados na implantação dela, e tão de perto com ela relacionados, que expulsaram da cidade os pasto­res, quando julgaram que a atuação deles ali seria prejudicial à paz da cidade. É esse mesmo concilio que vai buscar de volta, com humilhação até, com in­sistência, Calvino, quando achou que só assim pode­ria alcançar a estabilidade social, religiosa e política da cidade. Convém lembrar ainda que Genebra vive­ra, em tempos anteriores, esse dualismo político e re­ligioso, de Igreja e Estado; de poder eclesiástico e po­lítico, de um bispo e de um duque, e que dificilmente entenderia outro regime onde os dois poderes estives­sem totalmente separados. Nessa situação a vida da Igreja e sua influência dependiam da cooperação es­treita do Estado, a ponto de Calvino ter sido contra­tado, não pela Igreja mas pelo concilio. Aliás, a re­sistência em abrir mão do poder de exercer a exco­munhão de membros da Igreja, que Calvino julgava direito exclusivo do consistório, e a pertinácia de Cal­vino e dos pastores em manter livre do Estado essa prerrogativa, é uma amostra clara de como Estado e Igreja se tornavam ali inseparáveis.

Uma outra prova curiosa disso é que o concilio, por razões evidentemente políticas, resolveu adotar os ritos de Berna, sob os protestos inúteis dos pastores, especialmente de Calvino e Farei, o que se tornou a causa imediata da expulsão deles em 1538.

É claro que em assuntos dessa natureza, direta­mente ligados a Igreja, ao culto e à sua doutrina, fal­tava ao concilio competência para julgar; e a palavra autorizada que devia ser ouvida era dos pastores. De

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modo que não me parece a melhor maneira de ex­trair o pensamento político de Calvino, proceder à busca em relatos dos acontecimentos que se desen­volveram em Genebra durante a sua atuação ali. Era um período de experiência, de uma experiência iné­dita, em uma situação complexa em que fatores de toda sorte, por vezes, obrigaram a uma acomodação; de concessões que de modo nenhum representavam um sonho ideal.

W. F. Graham atribui a Calvino uma boa medida de pragmatismo na busca do bem comum da socie­dade, chegando mesmo a dizer que o que era capaz de promover a felicidade do homem na sociedade era bom para Calvino; e tudo que prejudicava a existên­cia do homem era para ele um mal.

Uma análise muito simplista e superficial e, por isso, pouco justa, da posição de Calvino nesse assunto. No entanto, está certo Graham em encontrar em Cal­vino um admirável senso prático revelado na sua teo­logia, em que pese a muitos dos seus críticos impie­dosos.

Que é que desejava Calvino fazer de Genebra? Não era uma cidade de Deus? Por que o empenho em exi­gir que todos os habitantes subscrevessem o catecis­mo e a confissão de fé? É que cidadão de Genebra devia ser cristão, não apenas de nome, mas de fato. Daí a grande dificuldade em extrair a doutrina polí­tica de Calvino da sua vida pastoral.

Afirmamos, sem medo de errar, que Calvino não se preocupava em estabelecer uma doutrina política à parte da sua teologia. Como ele era teólogo, e teó­logo consumado, e o seu sistema teológico é abran­gente, nele inevitavelmente se encontra a preocupa­ção em estabelecer a doutrina em relação a todas as atividades do homem, inclusive a política. É como teólogo que Calvino deve ser encarado antes de ser analisado sob qualquer outro aspecto. É fácil acon­tecer, porém, que aqueles que não são teólogos, ou não são somente teólogos, se percam na análise do seu pensamento.

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Convém insistir que Calvino nunca quis ser outra coisa depois de amadurecido o seu pensamento. Mes­tre das Escrituras Sagradas, fiel intérprete da ver­dade revelada na palavra de Deus; pesquisador incan­sável e metódico, e escrupuloso da doutrina bíblica, esse era o seu grande empenho.

É evidente que numa teologia do calibre da de Calvino, pela qual se tornou famoso, nenhuma ativi­dade humana fica excluida de tratamento, ainda que implicitamente. Daí, porque em face de novos movi­mentos, Calvino tem sido convocado a pronunciar-se, e em muitos casos, para surpresa daqueles que fo­ram em busca dele, com extraordinária atualidade e pertinência. . .

Émile Doumergue se aborrece, e não sem razão, com Ritschl. o qual. movido pelo que Doumergue in­titula “Chauvinismo teológico germânico” — uma es­pécie de nacionalismo luterano — reduz a figura de Calvino, numa comparação infeliz e parcial dos dois reformadores — Lutero e Calvino — ao nível de um mero “Cabo militar prussiano”.31

Ritschl é apenas um dos muitos exemplos da apreciação negativa de Calvino em vários aspectos. E é o próprio Doumergue que prossegue para citar um doutor Hall, o qual conclui que a teocracia de Cal­vino era algo semelhante a de Gregório, o Grande; ape­nas com um ministério divino em lugar do Papa.32 Xríamos longe, buscando entre os oponentes de Cal­vino conceitos dessa natureza, que deformam o pen­samento e a intenção do reformador.

Nessa linha se insere Stefan Zweig,33 o notável escritor que terminou sua carreira no Brasil, tirando a própria vida, angustiado e desesperançado, quando os rumos da segunda guerra mundial pareciam apon­tar para uma vitória irreversível do totalitarismo que tão cruelmente eliminara milhões da sua raça. á pena que Zweig emprestasse o brilho da sua pena invulgar a um livro de teses preconcebidas, de modo a não ver em Calvino senão um fanático cego, trabalhador in­cansável, embora enfermo; uma espécie de maníaco;

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com idéias de profeta carismático — um ditador sem alma e sem afeição, que, em se tratando de atingir o seu alvo, usava de todos os meios lícitos ou ilícitos, tornando-se nesse afã insincero e desleal.

Creio que é uma injustiça, mais de uma vez feita a Calvino, e que continua a se perpetrar, da parte de escritores que ignoram inteiramente a situação pe­culiar em que Calvino se encontrava no contexto his­tórico e cultural, a geração à qual pertencia.

Tomar uma declaração de Calvino sobre Estado e Igreja, quando escrevia suas Institutas, e depois comparar com uma atitude por ele tomada em situa­ção existencial, não ideal, em Genebra, para julgá-lo insincero e hipócrita, é violentar as leis da história e tripudiar sobre as evidências acumuladas através do tempo, com relação ao comportamento humano. To­mar Calvino em Genebra, a Genebra conturbada por conflitos em que ele mesmo se tornava alvo das mais severas críticas e acusações; lidando com um conci­lio de homens fracos, oportunistas, açulados pelo sa­bor de pequenas conveniências do momento, e exigir de Calvino a aplicação ao pé da letra em tais circuns­tâncias dos seus preceitos teológicos — é querer de­mais; é esperar o impossível, é ser irrazoável, injus­to. -

William Stanford Reid34 encontra nos sermões de Calvino a aplicação ao pé da letra, em tais circuns- preocupação” com questões de ordem política, e atri­bui isso a sua formação intelectual, que não foi adqui­rida no seminário, mas na Escola de Belas Letras de Paris e nas Faculdades de Direito de Orleans e Bour- ges.

O seu primeiro livro é, por isso mesmo, “De Cle­mentia”, e tem o sabor da ciência política renascen­tista. Reid não tem dúvida em afirmar que, a despei­to da variada gama de interpretações das idéias po­líticas de Calvino por escritores de correntes diver­sas — algumas severas, impiedosas, outras de fervo­rosos adeptos e admiradores — apesar da mudança que se tem operado neste difícil e controvertido cam­

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po de idéias, muitas das ideologias políticas moder­nas tiveram sua origem em Calvino.

Frank T. Glasgow em 1909, numa conferência pro­nunciada por ocasião do quarto centenário do nasci­mento de Calvino, discorre sobre a influência política do reformador e inicia sua fala dizendo: “Ele deixou atrás de si apenas 170 dólares em dinheiro; e uma fortuna incalculável de influências enormes nas suas conseqüências”.35 E prossegue Glasgow, para funda­mentar sua tese, dizendo que a influência política de Calvino é resultante da sua doutrina da soberania de Deus que abrange toda a criação, em todos os reinos do visível e do invisível; soberania na natureza; no Estado; na Igreja e no indivíduo. E cita James Stephen, professor da Universidade de Cambridge e jurista, que apontava quatro grandes princípios daquilo que ele chama a República Espiritual de Calvino e seus discípulos em Genebra. São eles:

Primeiro, que a vontade do povo era a fonte do le­gislativo; segundo, que o poder era, de maneira mais própria, delegado pelo povo aos seus governantes; ter- eeiro, que num governo eclesiástico, o clérigo e o leigo têm autoridade igual e coordenada; quarta, que entre a Igreja e o Estado nenhuma aliança ou depen­dência mútua, ou outra relação definida, necessaria­mente ou propriamente existe.

Desse modo dizia ele, o Calvinismo defende um sistema de governo popular, de acordo com as leis— governo cuja autoridade verdadeira repousa, huma­namente falando, no consentimento dos governados.

Como conseqüência da sua concepção do pecado, resultava: devemos receber a instituição do Estado com gratidão a Deus, como uma dádiva de suas mãos; e mantermo-nos em vigilância, para que a nossa fra­queza não se imponha ao poder do Estado.36

Os tempos passam; o mundo se contorna nos es­pasmos resultantes de duas grandes conflagrações mundiais, que deixaram feridas insanáveis, e cicatri­zes que nos desapontam e abalam a fé na bondade na­tural do homem; na sua vontade de viver em paz e

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ordeiramente. Um mundo de suor, lama e lágrimas, fruto de uma hecatombe sem precedentes; que põe por terra as estruturas sociais e, também, a sua ma­neira de ver as coisas; que destrói princípios e con­cepções; que desafia os padrões da ética e planta em nós o pessimismo e, até um certo ponto, o cinismo em relação aos valores do Estado e da Religião. Esse mundo exige soluções imediatas, radicais, definitivas,

Na guerra parece que tudo se perdeu, até mesmo a consciência da dignidade humana. Que fazer? de buscar a resposta? Onde achar a verdade?

A verdade não morre, é eterna, dos eso y das cinzas do vulcão, ainda quentes, começa a esperança. Pois o homem é um eterno enele a capacidade de aspirar algo r jlhtíÍYxKpcilmen- te se extingue inteiramente. E é à /^ !re ja \iu e ainda vem recorrer; pois, foi ela que, nók C í , soubefalar a palavra da concórdia, a^esà^òdas suas limita­ções e da sua incapacidade^arayabortar o mal. È para eia que se voltam ^í) <oíh^s daqueles que, embo­ra sofridos, não perderam^>íe. Dos rescaldos da mi­séria surgem sinais^te que é possível pensar ainda num mundo iMye,(hi)ma era nova.

“CalvinismoAem tempo de crise” é uma resenha de teses na terceira conferência calvinistaamericaija,\i^knida em Grand Rapids, Michigan, em ago^tj£Me^&J46 — no ano seguinte ao término da se-

gkerra mundial. São homens de convicção cal- ta que se reunem de três continentes — Euro-

Àmérica e África — para tentar extrair do pensa- snto de Calvino, da sua doutrina, da sua concepção

su ore a igreja e u a s ia a o , a viaau para urn rnuuuu que suspira pela oportunidade de sair de uma gran­de crise.

Desse modo se faz ouvir a palavra de G. Charles Aalders, da Universidade de Amsterdam, para di zer: "O Calvinismo é, fora de dúvida, o poderoso carn peão da liberdade espiritual. Julgo um dever do Cal vinismo proclamar a liberdade espiritual neste mun do de após-guerra, exatamente como nossos pais fi

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zeram em dias passados; pois o movimento do mun­do presente, mesmo depois que a ditadura foi derro­tada, exige a nossa vigilância absoluta".

Percebe-se como a liberdade espiritual está inti­mamente ligada, no pensamento de Aalders, aos siste­mas políticos. Daí, a necessidade de buscar no con­ceito calvinista dessa liberdade uma visão para os go­vernos do mundo.

Vem depois o professor S. ou Du Toit, da Áfri­ca do Sul, para afirmar: “O Calvinismo é a salvaguar­da constitucional", e advoga um esforço amplo dos calvinistas para em conjunto combater os males da sociedade de então.

Da Hungria ouve-se a voz de Bella Vassady, que vem expressar não somente o agradecimento em no­me da sua pátria pelo apoio que ele tem recebido da comissão de ação calvinista, mas dizer do seu desejo de que não demore muito tempo, quando uma reu­nião da natureza da que está se realizando então, possa ter lugar na sua terra.

Verifica-se que a influência do Calvinismo se cons­titui numa esperança para uma ordem política social, mesmo quando tudo parece destruído pela tirania de outros poderes. Onde iremos, pois, buscar essa in­fluência de Calvino?

Ele não escreveu tratado de sociologia política; nem podia escrever no seu tempo. A sua preocupação com os governos, que se verifica na sua obra teoló­gica, prende-se à grande preocupação com a implan­tação do reino de Deus na terra — O Reino do Rei dos Reis.

André Bieler37 procura resumir a pensamento social e político de Calvino. Aliás, Bieler, é uma voz autorizada e nova que vem oferecer uma perspectiva diferente sobre Calvino nesse aspecto. Afirma Bieler que Calvino, mais do que qualquer teólogo cristão, estabelece o dever e o direito da resistência ao Esta­do em qualquer regime político; evidentemente, quan­do esse se opõe à vontade de Deus. Este direito tipi?

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camente calvinista não contradiz o dever imperioso de se submeter à autoridade.38

Segue-se no ensino de Calvino, segundo Bieler, que o cristão não pode ser revolucionário radical, que procure drasticamente mudar a ordem social em que vive. Tão pouco pode ser um conservador integral.2® Essa posição equilibrada, sem dúvida justa, que Bie­ler assume, na interpretação do pensamento de Cal­vino ao aspecto político social, merece ser atentamen­te estudada à luz da teologia do reformador suiço.

Temos a impressão de que não haverá outra saí­da senão essa que Bieler foi capaz de discernir em Calvino.

William F. Graham, professor da Universidade de Michigan, que peregrinou por Genebra durante cinco meses para escrever uma obra sobre Calvino, procu­ra assumir uma posição menos comedida do que Bie­ler. Essa obra, “Constructive Revolutionary” — John Calvin Socio-Economic Impact”, pelo título, denuncia a tese; tem o sabor do pensamento corrente, que pode variar entre um Cristianismo Social moderado — uma espécie de reavivamento de Walter Rauschenbusch — até a teologia de libertação avançada.

Graham prefere ver Calvino colocado mais perto de Martin Luther King do que de Malcolm X .. Esco­lheu Graham colocar Calvino entre os revolucionários construtivos e explica porque: “Na prática Calvino não permitiu nenhuma rebelião; nunca aconselhou quem quer que fosse a levantar a espada contra o monarca— daí, porque eu chamo Calvino um revolucionário— mas um que não deseja desfazer a contextura da sociedade”.40

Por outro lado, observa Graham que: “Calvino claramente se opõe a todos os que queriam colocar a Igreja sob o controle do Estado”.41 Graham reconhe­ce como poucos que a relação da Igreja e do Estado em Genebra é de tal proximidade a ponto de impedir uma absoluta separação. Entende ele que Calvino es­tabelece uma série de deveres da Igreja em relação ao Estado; afirma no entanto, que “para Calvino havia

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uma separação inegável entre os dois poderes. Desde, porém, que ambos estavam sob o senhorio de Cristo, a tarefa da Igreja era sempre ativa com respeito ao Estado”.42

D’Aubigné, na sua História da Reforma, diz que Calvino fundou a maior república do mundo — refe­rindo-se, naturalmente, aos Estados Unidos — lem­brando que os pais peregrinos que alí se estabelece­ram na Nova Inglaterra eram descendentes espirituais de Calvino. Essa afirmação de D’Aubigné tem sido acei ta tática ou explicitamente por muitos, com certa ra­zão.

Já dissemos anteriormente que Calvino não escre­veu um tratado político; nem postulou diretamente qualquer teoria do Estado. O que fez foi teologia. E uma teologia que tem entre outros, dois polos bem distintos — um homem pecador e Cristo Redentor,

Com muita naturalidade, pois, julga Calvino in­cluir nas suas Institutas o tratamento do Estado civil, por que, afinal de contas, crê que é parte da sua teo­logia. Aí afirma que há duas espécies de governo a que o homem está sujeito: Um situado na alma, no homem interior — relacionado com as coisas eternas. Outro, com a justiça civil e as regras da conduta ex­terior .

Aqueles que em nome da libertação cristã dese­jam a eliminação dos tribunais, das leis, dos magistra­dos por julgar que estas coisas são nocivas à referida liberdade, não sabem distinguir entre o corpo e a al­ma, entre esta vida presente, transitória, e a futura, eterna. Não há dificuldade para Calvino de entender que o Reino Espiritual de Cristo e o Governo Civil são coisas diferentes e separadas uma da outra.43 Esta se­paração, contudo, não quer dizer que o cristão nada tenha a ver com o sistema civil de governo; pois, o go­verno civil é designado por Deus para acatar e apon­tar o culto exterior de Deus; preservar a pura doutri­na da religião; regular a nossa vida, conforme as re­gras da sociedade civil; promover a concórdia entre

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os homens, estabelecer a paz e a tranqüilidade geral necessária a todos nós.

É da vontade de Deus que, enquanto aguardarmos a nossa verdadeira pátria, sejamos peregrinos aqui na terra.

Depois de estabelecer os componentes do Estado Civil —• o magistrado; as leis; o povo, passa Calvino a examinar as funções do magistrado sobre as quais o Senhor testificou a sua graça e aceitação, aos quais recomenda a honra e o respeito.

Calvino insistentemente repete que a autoridade civil é instituída por Deus e, como tal, merece a nos­sa obediência, nosso respeito e acatamento. Baseia suas afirmações, contudo, na Palavra de Deus: Roma­nos 12.8; 1 Coríntios 12.21, etc. “É um insulto a Deus mesmo declarar esse sagrado ministério incompatível com a piedade e religião”. A essa autoridade estabe­lecida por Deus, que representa até mesmo uma dá­diva divina, as Escrituras nos mandam obedecer, aca­tar e respeitar.

Menciona Calvino três tipos de Governo: Monar­quia, Aristocracia e Democracia.

Manifesta preferência pela aristocracia, que, na sua definição, é nada mais do que o governo democra­ta representativo, com delegação de poderes do povo a um grupo menor de indivíduos. Para Calvino, em­bora não condene os outros dois tipos, que podem ser necessários em circunstâncias diferentes, a aristocra­cia» assim chamada, tem a vantagem de estabelecer o equilíbrio, evitando perigo dos extremos.

Na monarquia pode haver o abuso da autoridade de um homem só.

Na chamada democracia, corre-se o risco de des­cambar para a anarquia, daí, portanto, a possibilida­de menor de erro, quando um grupo de homens ca­pazes, formando um colegiado, assume o governo.

Discerne o poder da autoridade para punir, com pena capital, embora o mandamento de não matar; pois, o magistrado tem a força da lei do seu lado pa­ra punir devidamente o homicida.

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Por igual modo, declara o direito do Estado de mover guerra para defesa de seus súditos. Mostra er­rada a interpretação daqueles que entendem que o apóstolo Paulo proibiu as ações judiciais ou deman­das, mostrando que Paulo condenava a ação de irmão contra irmão, que produzia escândalo e descrédito a Igreja. No entanto, reconhecia o legítimo direito, de cada um defender sua propriedade, dentro da lei e com a lei. Reconhece o dever do cidadão cristão de pa­gar impostos e taxas e, para isso, cita Romanos 13.1,9; Tito 3.1; 1 Pedro 2.13,14; etc..

O magistrado deve ser obedecido, ainda que não seja fiel aos seus deveres e nem de bom caráter; não por causa dele, mas da autoridade de que está inves­tido. E cita Daniel, que, embora reconhecesse a so­berania de Deus, no entanto, dá honra e obediência ao Rei. Quando se lhe oferecia ocasião, apontava com dignidade e respeito os erros do seu soberano (Dn 2.21 e 4.7).

Uma grande e significativa ressalva faz Calvino no que diz respeito à obediência e deveres para com a autoridade civil.

O Senhor é o Rei dos reis, e quando Ele abre a sua boca, só a Ele se deve ouvir.

Se o magistrado nos ordenar alguma coisa contra Ele, o Senhor, não devemos dar nenhuma atenção à sua ordem, pois é com o poder de Deus que ele deve servir, Foi assim com Daniel, que desatendeu o rei, quando este, excedendo o limite do seu ofício, não so­mente fez mal aos homens, mas levantou-se contra Deus e sua autoridade. Daniel negou que, tendo pro­cedido assim, tivesse cometido uma falta com “o so­berano”; “Porque mais importa obedecer a Deus do que aos homens”.

Quanto ao cidadão, Calvino é peremptório na apli­cação da doutrina vocação. O cristão exerce sua fun­ção secular ou civil com o sentido de vocação divina. Por isso mesmo, deve proceder com lealdade, com jus­tiça, com verdade, pois é ao Senhor Deus que está servindo.

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É fácil compreender porque as nações que rece­beram a influência do pensamento de Calvino nos seus governos acabaram sendo vanguardeiras da liberdade, da justiça e do direito.

Quem sabe, o que está faltando aos nossos gover­nos hoje é a aplicação desses princípios na vida das nações!?

Quem sabe, o que está faltando aos nossos cida­dãos cristãos de hoje é um pouco mais de Calvino na concepção dos seus deveres morais e civis?!

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INFLUÊNCIA DE CAL VINO NO PROCESSO SOCIAL E ECONÔMICO

Algumas semanas após a morte de João Calvino, Theodoro Beza, seu amigo íntimo, seu colaborado^ por 16 anos e sucessor no pastorado de Genebra, pu­blicava uma biografia do reformador suiço. Era um trabalho nascido do coração, da alma de um admira­dor incondicional do biografado. Desde então uma ava­lanche de obras de vários matizes se tem escrito so­bre João Calvino. O próprio Beza dizia que era mais fácil caluniar Calvino do que o imitar.

No entanto, imitadores e inimigos se têm preocu­pado com os feitos e com a doutrina desse homem cuja influência resiste inabalável à ação do tempo e das mudanças e, em cada época, se. apresenta sob um

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aspecto novo, diferente, continuando a fascinar os ho­mens de saber e a incomodar aqueles que, sem poder explicar a sua força estranha, procuram diminuí-lo, como se isso fosse possível.

No princípio deste século, iniciou-se uma nova fa­se de despertamento para com o estudo de Calvino e do Calvinismo.

Foi em 1902 que Werner Sombart, sociólogo e econo­mista alemão, ex-aluno da Universidade de Pisa e, pos­teriormente, da de Berlim, onde se graduou, profes­sor de economia social em Breslau e, afinal, na sua própria alma mater, onde se aposentou em 1931, após uma brilhante carreira, com o título de professor emé­rito, escreveu: Der Modem Kapitalismus, no qual le­vantou a idéia de que o Calvinismo seria a fonte do espírito do capitalismo moderno.

Max Weber, colega e amigo de Sombart, profes­sor de economia primeiramente em Freiburgo (1894), depois em Heidelberg (1897), Viena e, finalmente, Ber­lim, era nesse tempo co-editor com Sombart da pres­tigiosa revista de Ciências Sociais, que ambos, com a Colaboração de Edgar Jaffe, tinham reorganizado. Es­sa revista se tornara a mais influente publicação do gênero no seu tempo — Archiv Fur Sozialwissenschaff und Sozialpolitik.

Alguns anos após a publicação de Sombart, nas páginas da revista que ambos editavam, Max Weber in­seriu um ensaio: Die Protestantische Ethik und Der Geist Der Kapitalismus,44 seguido um ano depois de outro ensaio: Die Protestantische Sekten und Der Geist Der Kapitalismus (As Seitas Protestantes e o .Espíri­to do Capitalismo).

Parece que Max Weber, despertado pela idéia que Sombart suscitara, dedicou-se ao estudo do assunto para escrever seus ensaios. Esses ensaios, publicados novamente, formam mais tarde, em 1920, parte de uma série de estudos interrompidos com a morte prema­tura de Max Weber logo depois. Em 1911, Sombart publicada o seu livro mais controvertido, mas sólido na sua argumentação e muito bem documentado: Os

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judeus e o capitalismo moderno (Der jude und das Wirtschaftsleben). Esse livro, que apareceu numa épo­ca muito crítica para os judeus, principalmente na Ale­manha de antes da I Guerra, foi muito mal recebido pelos antissemitas, que o julgaram um defensor dos ju­deus, e pelos judeus, que o consideraram prejudicial a eles, expondo-os a crítica e perseguição no momen­to em que estavam sendo terrivelmente oprimidos. O livro, por estranho que possa parecer, combatia a te­se de Max Weber que Sombart mesmo despertara anos antes.

Max Weber era filho de mãe calvinista, que se ca­sara com um político da direita, não calvinista, arbi­trário e brutal. O filho se colocava em defesa da mãe contra as atitudes do pai e, como resultado dos con­flitos em casa, adquiriu traumas que influíram negati­vamente na sua vida, a ponto de fazer o seu matrimô­nio um desastre, e talvez ter concorrido para o perío­do de quase invalidez que precedeu a sua morte pre­matura com 56 anos.

Defende Max Weber a tese de que o Protestantis­mo, e muito especialmente o Calvinismo e o Purita- nismo (que é a expressão do Calvinismo na Inglater­ra e na Escócia), desempenhou um papel muito im­portante na criação do Ethos ou o Espírito do capi­talismo moderno.

Note-se que Max Weber tem o cuidado de quali­ficar o capitalismo de que fala — chamando moderno e, como tal, o que ele aponta com muita ênfase, Capi­talismo organizado e racional. “Em tempos modernos” diz ele, “o ocidente desenvolveu uma forma diferente de capitalismo, que não aparece em parte nenhuma an­teriormente”, “A organização capitalista racional do trabalho livre”, da qual somente sugestões se encon­tram em outros lugares”.45 Parece que a palavra ra­cional, freqüentemente repetida por Weber, distingue o capitalismo a que se refere, no qual a contabilidade ocupa um lugar importante.

A idéia principal da teoria de Max Weber se situa na palavra “vocação ou chamado”, sem dúvida, um

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ponto muito significativo da teologia e da ética calvi­nista.46

Calvino sustenta que vocação é um sério e fiel co- metimento escolhido pelo indivíduo com o senso de responsabilidade religiosa.47 Aponta, ainda, Max We­ber, que as virtudes preconizadas na ética calvinista, tais como a diligência, a poupança, a sobriedade, são passaportes para a prosperidade comercial mais se­gura.48

“O trabalho não é meramente um meio econômi­co, é uma finalidade espiritual”.49 Põe também em ênfase Max Weber o tipo de trabalho na ética calvi­nista. Para Calvino, conforme alguns dos seus bió­grafos, o mandamento que requer o descanso de um dia é tão importante na parte que ordena esse descan­so, como na outra parte que ordena: “trabalharás seis dias”. É no Calvinismo, especialmente, que parece ve­rificar-se a combinação de um extraordinário senso de capitalismo com a mais intensa forma de piedade.50 Max Weber vem buscar em Benjamin Franklin, nas suas curiosas máximas, a amostra da ética puritana. Embora reconheça que Benjamin Franklin não é um ortodoxo puritano, mas um “deísta descolorido”, é, to­davia, descendente de puritanos e a sua filosofia de trabalho e de economia é fruto da influência que re­cebera de seu pai: “Depois da indústria e frugalidade, nada mais contribui tanto para erguer um jovem na vida do que a pontualidade e a retidão nos seus atos.51 “O som do seu martelo às cinco da manhã e às oito da noite, ouvido por um credor, fá-lo complacente por mais seis meses; mas se ele o vê na mesa de bilhar, ou ouve a sua voz na taberna, quando você devia estar trabalhando, mandará buscar o dinheiro no dia se­guinte”.52

Franklin citava a Bíblia, e principalmente os li­vros dos Provérbios, como base das suas afirmações. Provérbios 22 e 29 era a passagem da Bíblia que o seu pai, um ortodoxo calvinista, fazia retumbar nos seus ouvidos.53 Max Weber procura, por outro lado, mos­trar que os países onde o Calvinismo não teve influên­

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cia, onde as virtudes cultivadas pelos seguidores da ética calvinista não tiveram lugar, são exatamente o oposto do que se verifica onde eles se implantaram e dominaram: O reino da absoluta falta de escrúpulo na busca de interesse pessoal, por fazer dinheiro, tem si­do uma característica específica precisamente daque­les países onde o desenvolvimento do capitalismo bur­guês, avaliado pelos padrões ocidentais, tem permane­cido atrasado.

“A falta de consciência da dignidade do trabalho em países, tais, por exemplo, a Itália, comparada com a Alemanha, tem sido e ainda é, até certo ponto, um dos principais obstáculos ao seu desenvolvimento ca­pitalista”.54

Reconhece ainda Max Weber que o interesse por adquirir a ambição do dinheiro são velhos como a própria humanidade, sem afeição moderna do capita­lismo próspero e organizado. Não é apanágio dos po­vos que receberam a influência da ética calvinista a “auri sacra fames”; é tão antiga como a história do homem, mas o moderno impulso do capitalismo não provam aqueles que o buscaram com um impulso não controlado”.55

Uma outra idéia esposada por alguns escritores modernos, que Stauffer e outros têm combatido, é de que Calvino era um homem severo, frio, que não fa­zia amizades e não sentiu o calor das afeições, presa dos deveres e das obrigações da vida quotidiana in­tensa.

Stefan Zweig chega a dizer que Calvino nunca sou­be o que é gozar a juventude, ele já nasceu adulto. “Calvino”, diz Zweig, “era de uma total falta de sen­sualidade”.56

Esta infeliz caricatura da seriedade e moderação de Calvino. do seu apego ao trabalho, que, de um cer­to modo, se perpetuou nas gerações que o sucederam, tem que ser corrigida, e nisto se empenham alguns dos grandes estudiosos do assunto, entre eles Boumer gue (La maison de Calvin). Escolhe Max Weber o pu­

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ritano inglês Richard Baxter para ilustrar as suas afir­mações .

Para Weber, o livro de Baxter “Christian Directo- ry” é o mais completo compêndio de ética puritana.57 Preceitua ela o trabalho duro, tanto intelectual e cor­poral, como necessidade. Para Max Weber, o espírito de capitalismo se confunde com o espírito de ascetis­mo cristão. Embora não inteiramente averso aos es­portes e lazer, o puritano não os tolerava quando in­terferia com o trabalho, evidentemente com o exercí­cio fiel do seu chamado ou vocação; ou quando sig­nificasse excessivo dispêndio de dinheiro, do qual te­mos que dar conta a Deus.

“Riquezas, por amor às riquezas, eram repreen­síveis, mas como resultado do trabalho exercido den­tro da vocação se constituíam em bênçãos”. O espí­rito do capitalismo é o espírito do ascetismo cristão. O puritanismo era o ascetismo trazido da cela para a vida de cada dia. Daí, o exercício da vocação, desves- tido da sua ética religiosa, tornava-se uma paixão pu­ramente mundana.

Temos citado profusamente RÍax Weber porque, só assim, se pode extrair realmente a súmula de sua teoria, que se resumiria desse modo: O espírito do ca­pitalismo é fruto do espírito calvinista, com a sua idéia de vocação divina para o exercício de uma profissão secular, a qual deve ser realizada com o propósito de atingir o mais alto fim, a glória de Deus. Daí, as vir­tudes da moderação, da frugalidade, da poupança, da seriedade no trabalho, da mordomia fiel do tempo e do dinheiro, que transformaram o ascetismo das celas em um ascetismo da vida na sociedade. Disso resul­tou necessariamente a acumulação de bens e, conse­qüentemente, o capitalismo moderno com a sua racio­nalização do trabalho, sua organização industrial e a criação de uma economia sólida onde a ética calvinis­ta foi implantada.

Naturalmente, Max Weber, que procura de ante­mão abortar possibilidade de crítica a sua tese, reco­nhece que muito do capitalismo criado pelo Calvinis-

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mo perdeu a sua filosofia inicial e tendeu mais para uma paixão puramente material e humana como nos Estados Unidos.58

Por estranho que pareça, a tese de Max Weber te­ve como maior crítico e opositor Werner Sombart, seu amigo e colega, e seu colaborador na conceituada re­vista “Arquiv”.

Verificou-se que Weber, quando morreu, vinha fa­zendo extensivas notas dos trabalhos de Sombart e, em muitos casos, com críticas severas e duras.

Em 1911, Sombart publicara o seu livro “Der Ju- de und das Wirtschaftsleben” — O judeu e o capita­lismo moderno. Que é esse livro senão uma refuta­ção da tese de Max Weber? Aliás, confessa Sombart, que foram as pesquisas de Max Weber responsáveis por seu livro. E levanta a questão: “Se tudo que Max Weber diz com respeito ao Puritanismo não poderia, com muito mais justiça, atribuir-se ao judaísmo em maior medida!”59

As idéias dominantes do puritanismo que se mos­traram tão poderosas no desenvolvimento do capita­lismo foram desenvolvidas no judaísmo e eram inicial­mente de data muito anterior. Aliás, esta sua observa­ção última, da procedência do judaísmo, é a grande força do seu argumento, pois prossegue observando como os puritanos tiraram muito das suas idéias do Velho Testamento. Em ambos, afirma, se sente a pre­ponderância do elemento religioso, a idéia de castigo e recompensa divinas, o ascetismo dentro do mundo e a íntima relação entre religião e negócios e a con­cepção (aritmética?) do pecado, e acima de tudo, a ra­cionalização da vida. Assim prossegue nesse teor Som­bart, procurando mostrar ao longo da história como a presença dos judeus, onde quer que foram, trouxe o capitalismo tanto na Europa, nas grandes cidades, co mo nas Américas.

Associa a presença dos holandeses no Brasil e o progresso dos engenhos de açúcar, bem como, poste­riormente, o comércio de diamantes, com o capital e habilidade inventiva dos judeus, judeus que estavam

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presentes na companhia das Índias Ocidentais entre os holandeses, judeus que eram fortes negociantes em Recife, judeus que vinham em grandes levas fugindo de Portugal, um navio por ano carregado de cristãos novos. Atribui Sombart o sucesso do primeiro gover­nador do Brasil, Tomé de Souza, a sua origem judai­ca, assim como atribui a descoberta da América ao sangue judeu que corria nas veias de Colombo, filho de uma judia. Depois passa para os Estados Unidos a fim de mostrar que a guerra da Independência Ame­ricana alcançou sucesso com o auxílio de armas for­necidas pelos judeus e que o surgimento de grandes bancos e instituições financeiras de crédito, compa­nhias de ações, sistemas de letras de câmbio, etc., eram frutos da presença e da ação dos judeus que vieram para a América em grande número.

Curioso é verificar que, embora Weber e Sombart pareçam irreconciliáveis nas suas divergências, há uma proximidade admirável nas suas teses.

Philip Siegelman, na sua introdução do livro de Sombart “Luxury and Capitalism”,60 aponta essa apro­ximação" Sombart e Weber erram com a sua insistên­cia em descobrir o papel principal da religião na for­mação do capitalismo ocidental. Ambos estão interes­sados em rebater a interpretação marxista do deter­minismo materialístico da história. Para ambos, a ex­plicação alternativa levou a uma ênfase na descober­ta de fatores — a atitude, o Ethos, o espírito que in­fundiu o novo e elevado comercialismo da Europa Oci­dental (XIV — XV). Poderíamos dizer que, de um la­do, Max Weber aceitou, não que os judeus tivessem desempenhado um papel essencial, mas apenas secun­dário no espírito do Capitalismo. Weber no entanto, diz Siegelman, distingue o Capitalismo judeu do pu­ritano: “O Capitalismo judeu era um Capitalismo es­peculativo, pária, enquanto que o puritano era uma organização burguesa de trabalho”. Sielgelman diz que Sombart é levado à conclusão de que puritanismo é judaísmo. Iríamos longe, se prosseguíssemos no co­tejo infindável de opiniões contrárias e favoráveis à

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tese de Max Weber, o que, sem dúvida, como já disse­mos anteriormente, fugiria ao plano limitado desse trabalho.

Robert W. Green nos oferece uma síntese rápida, mas preciosa, daquilo que ele mesmo denominou ■— “The Weber Thesis and its Critics”, edição de D.C. Heath and Co., Boston, 1959. É evidente que, depois disso, muita coisa mais já foi dita e escrita, pois que a polêmica continua e não terá fim tão cedo.

Ernesto Troeltsch, teólogo, professor em Bonn e Heidelberg, amigo tanto de Sombart como de Weber, coloca-se ao lado deste no que diz respeito ao papel do Protestantismo no surgimento do Capitalismo.# Critica Sombart, julgando que a sua ênfase com

respeito à função do judaísmo é valorizada demasia­damente; ao mesmo tempo, julga errada a identifica­ção da ética puritana com o judaísmo. Diríamos, pois, que Troeltsch está muito mais do lado de Weber do que de Sombart.

Um outro nome apontado por Green é H. R. Ro- bertson, professor da Universidade de Cape Town. Ro- bertson conclui que Weber foi unilateral no seu estu­do, pois tanto Protestantismo ou Puritanismo, como o Catolicismo, dir-se-ía tanto Calvino, como Tomás de Aquino, concorreram com a sua ética para a produção do Capitalismo.

Amintori Fanfani, economista, professor da Uni­versidade Católica de Milão e de Roma, cadeira de Economia, político italiano, conhecido defensor da éti­ca católica, crê que o espírito do Capitalismo é tão católico como protestante, existiu muito antes da Re­forma. Respeita a idéia de vocação como geradora do Capitalismo. Kemper Fullerton, professor do Velho Testamento, da Escola Superior de Teologia de Ober- lin, concorda com a tese de Weber, todavia, acha que o Capitalismo adotou a doutrina da vocação, retiran­do-lhe o sentido transcendental, fazendo-a apenas uma teoria para obrigações terrenas.

R. H. Tawney, formado em Oxford, professor em Glasgow, economista, líder do partido trabalhista in­

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glês, escreveu, em 1926, um trabalho — “Religion And the Rise of Capitalism (Hancourt Brace Jovanovich, Incorporated; London) no qual adianta a idéia de que os ensinos de Calvino tenham sofrido uma perversão por parte daqueles mesmos que se dizem calvinistas. Daí, o que se verifica no desenvolvimento do Capita­lismo não é bem idéia de Calvino.

Curt Samuelsonn, professor da Universidade de Es­tocolmo, ém seu trabalho “Religious and Economic Ac- tion”, traduzido por Jeffer Prench, em 1952, afirma que as virtudes apontadas como calvinistas, segvmdo Weber, que resultaram no Capitalismo, não são pri­vativas nem do Catolicismo nem do Protestantismo.

Nils Hansen, professor de Economia da Universi­dade de Austin, Texas, no seu “On the Sources of Eco­nomic Rationality”, 1964, critica Samuelsonn e sua in­vestida contra Weber, e mostra que a Rússia Soviéti­ca é o único país que alcançou a industrialização num sistema não capitalista, e aponta uma semelhança me­ramente acidental entre a ética protestante e a sovié­tica.

H. Stuart Hughes, na sua obra “Weber’s Search for Rationality in Western Society” (from Conscious- ness and Society, New York, 1968, Editora A. Knapf Inc. and Mac Gibbon and Kee Ltd.), procura associar a teoria de Max Weber com sua vida tão complicada em lances afetivos que acabaram destruindo sua vida conjugal. Crê que Max Weber atingiu uma solução parcial na sua primeira fase quando trata da ética pro­testante como força do Capitalismo.

Albert Hyma, professor da Universidade de Michi- gan holandês de nascimento, grande estudioso do Cal­vinismo, que muito tem escrito sobre a atividade co­mercial dos holandeses no período colonial, no seu li­vro, “Renaissance and Reformation” (Eerdmans Pu- blishing Company, Grand Rapids, 1955), acha que nem Max Weber, nem Sombart, atinaram muito bem com os fatores religiosos envolvidos no surgimento do Ca­pitalismo. Discorda da ênfase dada à diferença entre católicos e protestantes nesse aspecto e encara os pro­

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blemas políticos e econômicos, observando que o que houve foi uma distorção do Calvinismo, de modo que muitos que se diziam calvinistas e puritanos se ren­deram ao culto de Mamóm. Albert Hyma deseja que verdadeiros calvinistas apareçam para escrever livros e tratados, de modo a colocar o Calvinismo no seu de­vido lugar, lugar que foi tomado por mamonistas.

Ephraim Fischoff, nascido e educado em Nova York, PhD da Nova Escola de Pesquisa Social, crê que Weber não tinha nenhuma intenção de estabelecer uma teoria do Capitalismo, ou uma teoria social da reli­gião, ou mesmo dar um tratamento completo à rela­ção entre a religião e o Capitalismo; reconhece erros na tese de Max Weber, mas elogia, no entanto, o seu esforço em encontrar uma solução sob o prisma da sociologia e da religião; acha que foi uma tentativa iluminante de um grande problema, e que o esforço de Weber merece melhor sorte do que tem tido real­mente .

André Bieler escreveu — O humanismo de Calvi­no —, tradução espanhola editada pela Editorial Es- caton de Buenos Ayres, 1977. O livro se empenha em apresentar a influência de Calvino evidentemente re­lacionada com o aspecto social da questão. Afirma Bieler que, para Calvino, tanto a riqueza como a po­breza são meios pelos quais Deus pode pôr à prova a nossa fé. Calvino não é um adepto da pobreza vo­luntária tão defendida na época medieval. O rico tem uma missão econômica, providencial, — o encargo de transmitir uma parte da sua riqueza ao que é mais pobre do que ele.

Não haveria limites, como já dissemos, se quisés­semos continuar neste cotejo, já um tanto enfadonho, desta polêmica levantada por Max Weber e Sombart, polêmica que tanto interesse tem despertado no mun­do intelectual do ocidente no que diz respeito ao pen­samento social e econômico de Calvino. A pergunta que muitos levantam é: teríamos nós entendido bem o pensamento de Max Weber? Pensamento que não chegou ao seu completo amadurecimento, pois Max

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Weber morreu cedo, aos 56 anos de idade, quando o seu gênio começava a aflorar com todo o vigor! Há aqueles que afirmam que nem mesmo Sombart, que tão de perto privava com Weber e com ele lidava ao mesmo tempo no escorregadio terreno das teorias eco­nômicas e sociais, não foi capaz de entendê-lo.

B. P. Hozelitz, numa introdução ao livro de Som­bart, publicação americana (Free Press, Gleucoe 1951), faz uma observação muito pertinente: “O fato de Som­bart não conhecer o hebraico, nem ter estudos de teo­logia, prejudicou o seu trabalho sobre os judeus, pois tinha de se apoiar em traduções, sem poder verificar a exatidão delas” (XVIII, introdução). Talvez se pu­desse dizer também de Max Weber que algumas das suas observações sobre Calvino padecem da falta de conhecimentos teológicos mais profundos. Seria im­possível analisar o pensamento de Calvino, que escre­ve teologia, sem o lastro teológico necessário e sem se colocar na situação histórica e teológica em que viveu. Calvino nunca sonhou com apresentação de uma teo­ria econômico-social, fosse com finalidade puramente terrena ou mesmo transcendental. Todavia, o homem que tomou a si a árdua tarefa de fazer da atribulada e confusa Genebra uma cidade cristã e, por isso mes­mo, justa e humana; uma Genebra que carregava na sua bagagem histórica um passado de . lutas contra a tirania déspota de um poder civil jugulado ao poder eclesiástico, sem autoridade moral, sem calor huma­no e sem decência; uma Genebra que se tornava refú­gio de perseguidos que para lá se dirigiam de várias partes da Europa em busca de liberdade de crença; havia de sever face a face, a cada hora, com problemas que desafiavam soluções, não apenas temporárias e lo­cais, mas algo que pudesse ser aplicado às comunida­des cristãs evangélicas que se implantavam em toda a parte da Europa.

A qualidade de vida que Calvino teve de viver o colocou diariamente em confronto com situações em­píricas, reais, ao mesmo tempo em que se empenhava no grande labor intelectual de dar ao mundo uma fi­

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losofia e uma teologia de vida cristã. Enquanto pa­cientemente buscava no texto bíblico a melhor exege: se para dele extrair a doutrina pura, Calvino tinha dian­te de si o desafio de uma cidade envolvida com pro­blemas urgentes que exigiam solução imediata. Como resolver esses problemas em consonância com os en­sinos do evangelho? Qual a fórmula bíblica que a pa­lavra de Deus ditava para o tratamento dos males que assolavam Genebra e que deviam ser combatidos com o mesmo remédio universal em toda a parte onde sur­gisse? Não era somente Genebra, mas toda a Europa continental, e as ilhas britânicas, que estavam na mi­ra de Calvino quando tratava de criar a sua teoria de uma sociedade cristã evangélica.

Não é sem significado o fato de que, durante 25 anos, Calvino foi burilando as suas Institutas e que das suas aulas bíblicas diárias resultaram comentá­rios de quase toda a Bíblia, em que a exegese do tex­to foi quase sempre acompanhada de uma aplicação às necessidades práticas existenciais. Observe-se, por exemplo, que a doutrina de vocação, que tem sido ob­jeto da observação, não só de Max Weber, mas de muitos outros, é parte importante do sistema teológi­co calvinista. No volume III, cap. 10, parágrafo 6, das Institutas, tratando do uso correto da vida presente diz: em último lugar deve-se observar que o Senhor ordena a cada um de nós em todos os atos da vida le­var em conta a sua v o c a ç ã o . Para que ninguém de- savisadamente transgrida os limites prescritos, Ele (o Senhor) tem estabelecido nas esferas da vida vocações ou chamados. . . para cada indivíduo e. como se fos­se um posto a ele designado pelo Senhor, para que não fique vagueando na incerteza todos os dias”. E con­tinua, para afirmar que “é suficiente que saibamos que o fundamento da conduta certa em cada caso é a vocação do Senhor, e que aquele que a desrespeita nunca conservará a rota direta nos deveres da sua ocu­pação. Pode ser que, às vezes, alcance algo aparente­mente louvável, mas o que seja assim aos olhos dos homens, será rejeitado no trono de Deus, além do que

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não haveria coerência entre as várias partes de sua vi­da”. A teologia calvinista vai buscar cuidadosa e pa­cientemente nas Escrituras os conceitos que convém à sua ética.

O homem é, à primeira vista, a mais desgraçada das criaturas, pois, como afirma em outro lugar, de­veríamos contemplar a nossa condição miserável des­de a queda de Adão, o sentido da qual tende a des­truir toda a nossa vanglória e confiança, para nos cobrir de vergonha e nos levar a real humildade®1

Não alimenta Calvino qualquer ilusão com res­peito ao homem caído, vítima da corrupção que por natureza herdou dos seus primeiros pais e que nesse estado de miséria só irá de mal a pior, destinado a completa destruição. No entanto, crê, como o após­tolo São Paulo, que “onde abundou o pecado, supe- rabundou a graça”. De modo que o homem perdido, a quem em Cristo veio salvar, é agora servo do Senhor para fazer a sua vontade é“nós não somos de nós mesmos, portanto, nem a nossa razão, nem a nossa vontade, devem predominar nas nossas deliberações e ações; nós não somos de nós mesmos, portanto, não nos proponhamos como nosso alvo buscar o que pos­sa ser útil a nós conforme a carne... nós somos de Deus, portanto a sua sabedoria e vontade presidem sobre as nossas ações todas”.®2

Nessas circunstâncias, entende que o cristão é, por divina designação, incumbindo de uma missão ter­rena da qual não é aos homens que tem de prestar conta em primeiro lugar, mas a sua própria consciên­cia e a Deus, a cujo trono, a mera aparência de uma vida correta que aos homens satisfaz não é aceita. No desempenho de suas funções seculares, está o cristão num posto que lhe foi designado pelo Senhor, por isso, não deve agir com displicência, nem má vonta­de, nem com ociosidade. Com respeito ao uso corre­to das dádivas de Deus diz Calvino: “Ele as criou pa­ra o nosso benefício, não para nossa injúria”. Exem­plifica, dizendo que se Deus “dotou as flores com be­leza, para que assim se apresentem aos nossos olhos,

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e com a doçura do seu perfume, para nos impressio­nar o sentido do olfato, será por acaso ilícito aos nos­sos olhos serem atraídos pela sua beleza ou os nos­sos nervos do olfato com o odor agradável? Pois que, não fez Ele tal distinção de cores de modo a tornar algumas mais agradáveis. . . não fez Ele muitas coi­sas dignas da nossa estima, independente da necessi­dade de seu uso?”®3

Evidentemente, Calvino postula não uma vida ascética de absoluta ausência de prazeres, mas, uma vida de obediência à vontade de Deus, na qual há muito lugar para apreciar aquilo que é lícito, e des­frutar das bênçãos que nos são concedidas, com a reverência de quem as recebe das mãos providenciais do Senhor e as usa com discrição e temperança. No tratamento do imoderado desejo de riquezas, lembra que somos mordomos de Deus, que todas as coisas nos são dadas pela bondade divina para nosso bene­fício, são confiadas aos nossos cuidados, e delas de» vemos dar conta um dia”.64

Dentro desta ética calvinista, cristã, o que se re­quer sempre acima de tudo é moderação, honesti­dade, vigilância contra as ambições desregradas e des­medidas, a paciência, a perseverança e, acima de tu­do, a consciência de que somos servos de Deus, e nes» sa qualidade estamos a Seu serviço onde quer que nos encontrarmos. Naturalmente, uma comunidade que se governe por uma filosofia de vida assim aca­bará sendo laboriosa, metódica e produzirá riqueza, progresso e indústria.

De modo que, aqui, a tese de Max Weber é, pelo menos parcialmente, certa, quando atribui o progres­so material à orientação dada pela ética e pela teolo­gia de Calvino. Estranha, no entanto, é a qualificação de ascetismo dada por ele à maneira de viver que Calvino preconizava. Não foi o Calvinismo, como quer Max Weber, que transportou o ascetismo da cela pa­ra a vida ou dos conventos para a sociedade. Não, foi um modelo de vida oposto ao negativismo dos mos­teiros da mortificação do corpo, da supressão dos pra-

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zeres lícitos como empecilhos à vida espiritual. Não, o Calvinismo criou, baseado na ética do evangelho, uma sociedade laboriosa, alegre, prudente, capaz de apreciar, agradecer e desfrutar das bênçãos materiais, que reconhece provindas de Deus.

Erasmo, o grande intelectual, humanista, que não teve coragem de aderir à Reforma que ele tanto aju­dou a surgir, com a sua crítica aos erros do clero e a sua edição do Novo Testamento, condenava se­veramente a quebra das imagens como se fosse um

OlVOi p a ia c * oua xiuv v u vauour ua uu^u iuau^

que ameaça destruir a nossa civilização. Nem foram as riquezas por eles criadas com a racionalização do trabalho organizado que produziram os males que hoje lamentamos, mas foi exatamente o abandono das virtudes e a falta da aplicação delas à condição pre­sente que nos trouxe o caós que estamos vivendo ho­je. Seria preciso uma volta aos princípios sadios que

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tanto progresso nos trouxeram, com o mesmo sentido de vocação e de serviço a Deus para a Sua honra e glória, afim de que pudéssemos retomar o caminho perdido. É curioso notar que um tremendo desequi­líbrio econômico e financeiro, em maior ou menor medida, afeta hoje todas as nações, tanto do mundo capitalista como socialista. Mesmo as nações mais ri­cas estão sentindo a crise financeira, o problema do desemprego, a inflação e os desequilíbrios orçamen­tários. Uma boa dose das virtudes calvinistas, que, por certo, não entram nos cálculos computadorizados dos tecnocratas, ajudar-nos-ia, quem sabe, a atinar com o caminho para fora desse beco sem saída em que nos encontramos.

Sombart, no seu livro "A Quintessência do Capi­talismo”, afirma: “O Protestantismo tem sido ao lon­go de toda a história um inimigo do Capitalismo e, muito especialmente, da expressão do Capitalismo eco­nômico. Como poderia ser de outra maneira? Capita­lismo é algo mundano, coisa para essa vida terrena... por essa mesma razão será odiado e condenado por todos os que consideram a nossa vida aqui uma pre­paração para a vida depois”.65 Essa citação contra­ria a tese de Max Weber que deixa de ser verdadei­ra.

É preciso fazer uma diferença entre Capitalismo em si e Capitalismo como nós o conhecemos na gran­de maioria dos casos hoje: O Capitalismo de virtudes éticas que o Calvinismo postulou, é de consciência de vocação divina no desempenho das funções seculares, produziria, pela transformação da sociedade, uma nova era que surgiria para o progresso das nações. Seria isso possível?

Como religião universal, o Cristianismo implan­tado em todos os lugares, criando e educando homens para o desempenho de todas as funções com o sen­tido de vocação divina e em obediência à ética do evangelho, mudou a face da terra.

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NOTAS DA II PARTE

1. A. Taylor, 522. Idem3. The S tructure of Divine Society, p.1264. Griswold, p.395. Whetellema, Calvinism and High Education, p. 226. Walker, p.l7. Research for H istory of M odem Education, Boston College,

1973, p.1038. L’Académie de Calvine, E xtrato da Grande Revista, 19 de

Fevereiro de 1902, Genebra.9. L’alma M ater de la réform e française, p.14

10. Cornet, J. Calvino, p.36711. H unt R. N. p.25112. Giovanni Calvino A. Costicelli, Milão, 193413. Edwin W althout, Research Papers fo r the H istory of Modem

Education, Chestnut Hill p.9114. Edwin, idem, 10315. Aiken Taylor, p.17116. A. Taylor, p.15317. Edwin, 1973, p.10418. Warfield, Calvino e Agostinho, E ditora S. Craig, 1956, p.1419. L’Académie de Calvin. Genève, H. Georg E t Co. Librairie de

La Université, 1 Fevrier, 190220. Idem, p.l21. Graves — H istory of Education, New York, Macmillan Co.,

1919, p . 19322. Idem , p .19323. Idem24. Graves, p.7125. Taylor, p.17126. Taylor, p.17127. Universities of the World. Charles S. Twing. Macmillan Co.

N. York, 1911.28. Twing, p.9129. Idem, p.9030. W.F. Graham, The Constructive Revolutionary, — John Cal­

vin, His Socio-Economic Im pact, John Knox Press Richmond, Virginia, 1971, p.159

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31. Émile Doumergue, John Calvin: Eplgony o r Creator, p.82,8332. Idem , p.?33. Stefan Zweig, The right to heresy, The Vicking Press, New

York, 193634. Calvin and the Political order, in the book John Calvin

Contem porary Prophet, E dited by Jacob Hoogstra, Baker Book House. G rand Rapids, 1959, p. 243

35. Calvin’s influence upon the Politic Development of the World, from the book Calvin M emory addresses; Presbyterian Committee of Publication, Richmond Virginia, 1909, p.175

38. Idem, p.17537. E l hum anism o social de Calvino, tradução publicada pela

E ditorial E scaton Buenos Ayres, Argentina, 197338. Idem , p.2139. Idem, p.2640. Graham, p.6141. Idem , p . 6142. Idem, p.61-6443. Livro das Institu tas IV cap. XX, p. 63344. A Ética do Protestantism o e o E spírito do Capitalismo,

vol. 20, 190445. Max Weber, p.2146. Ver distinção feita por Weber sobre vocação entre Lutero

e Calvino47. Max Weber, p.248. Idem , p.349. Idem50. Idem , p.4351. Idem, p.4952. Idero53. Idem, p.5754. Idem55. Idem56. Zweig, p.4657. Weber, p.15658. Idem, p.18259. Idem, 191 e 19260. Tradução de Wrdittixnar, University of Michigan Press, Ann

H arbour, 196761. Institu tas, Vol. III , cap. 8

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62. Idem63. Vol. rn eap. 19, parag. % Institutas64. Vol. XXI eap. 1, parag. §1, institutas te Sombart, eap. XDE

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III PARTE JOÃO CAL VINO

TEOLOGIA

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NOTA EXPLICATIVA À TERCEIRA PARTE

Pareceu-nos indispensável aos propósitos desta obra, a apresentação de uma síntese da doutrina de Calvino, conforme se encontra nas “Institutas”. E é disso que se ocupa esta III parte.

Procuramos, tanto quanto possível, resumir, sem prejudicar a clareza, embora, em muitos casos essa clareza exija repetições que elucidam o pensamento que noutro contexto poderia ter ficado menos eviden­te. Procuramos deixar de lado o aspecto polêmico de que se revestem algumas partes; pertinente, sem dú­vida nos dias de Calvino, hoje, no entanto, dispensá­vel.

Esperamos que o esforço empregado nessa tare­fa resulte em benefício daqueles que desejam conhe­cer melhor a doutrina de Calvino, mas, sem tempo suficiente para a leitura cuidadosa dos grossos volu­mes de seu monumento teológico; ou sem acesso a esses volumes.

Deixamos de fazer nesta parte a indicação de por­ções citadas, por se tratar de um resumo das Insti­tutas em que às vezes convém à brevidade a citação livre, e, em outros casos, as palavras mesmas de Cal­vino. No entanto, será sempre fácil ao leitor atento, distinguir quando estamos falando, de quando fala Calvino.

Outrossim, será fácil conferir, quando necessário, a exatidão da porção citada ou mencionada pelo me­ro cotejo das Institutas sobre o assuntos em ques­tão.

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Se nos parece injustificável qualquer estudo de Calvino nos dias presentes sem ao menos apresentar as opiniões com respeito a sua influência em assun­tos econômicos, levando em conta o interesse desper­tado pela tese de Max Weber, menos compreensível se­ria ignorar o pensamento teológico do reformador suiço.

Calvino é, antes de mais nada, um teólogo, ou como Melanchthon gostava de chamá-lo — “o teólo­go” —- pois ninguém, na sua época, foi capaz de exce­dê-lo nesse aspecto. E é como teólogo que tem des­pertado o interesse de gerações e gerações e feito sur­gir, em épocas diferentes, estudiosos da sua vida, da sua obra. Mesmo porque, tudo que se possa dizer de Calvino, seja no aspecto educacional, econômico, po­lítico e social, há de partir do seu pensamento teoló* gico, que orienta inteiramente a sua grande e inco- mensurável realização.

Max Weber, ao querer jungir o espírito do Capi­talismo à influência de Calvino, foi buscar para isso razão na sua teologia da vocação; aí é que encontrou, segundo pensa, o tipo de cidadão que o Calvinismo produziu com as virtudes que lhe eram inerentes, as quais, por sua vez, resultaram na criação de riquezas, base do Capitalismo. E essa doutrina da vocação, co­mo todas as doutrinas de Calvino, resulta de sua teo­logia, da qual uma das vigas centrais é a soberania de Deus. E não é só isso que acontece exatamente com respeito à sua pedagogia?

O sistema educacional que Calvino implantou com a sua Academia era parte integrante de seu pensa­mento com respeito à vocação do homem, cujo gran­de alvo é a glória de Deus. A escola que devia ser a melhor, com os melhores professores, com programa de trabalho rígido severo, honesto e eficiente, era apenas um instrumento ou uma peça indispensável no estabelecimento do Reino de Deus, que, afinal de con­tas, não se restringia aos alvos puramente terrenos,

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mas tinha um sentido transcendental, de acordo com a lógica da sua teoria. O cidadão da Civitas que deve ser o melhor, o mais consciencioso, o mais pontual no desempenho do seu dever; o mais fiel mordomo do seu tempo e do seu talento, é acima de tudo, um ci­dadão da Civitas Dei.

Calvino não tem nenhuma intenção de ocultar seu pensamento, e não tem nenhum temor de dedicar-se com sacrifício, em meio a perseguições e mal enten­didos, a essa grande tarefa. Não é nessa sua vocação que recebeu de Deus um chamado para realizar es­sa tarefa? Seria pois, uma traição às suas próprias convicções e, acima de tudo, à Palavra de Deus, que zelosamente procurava interpretar. É o seu monu­mento teológico tão sólido, tão lógico, tão coerente, que não se estuda a doutrina de Calvino apenas nas Institutas — o grande trabalho dogmático da sua pe­na —■ mas estuda-se também nos seus tratados, nos seus sermões, nas suas orações, na sua liturgia e nas suas muitas cartas, além dos comentários que escre­veu de quase toda a Bíblia.

É curioso observar que, ao se dirigir aos compa­nheiros de trabalho, na sua correspondência, ou mes­mo aos opositores e críticos em outros lugares, a ar­gumentação das cartas é impregnada de verdades dou­trinárias que ele naturalmente insere ao correr da pena, conforme lhe parece aplicar-se ao caso. Por is­so, iremos passar em revista, ainda com a brevidade que convém a esse trabalho, o pensamento doutriná­rio de Calvino. O estudo do pensamento e da obra do reformador suiço que tem sido desenvolvido em cer­tas áreas nem sempre se preocupa com o tratamen­to de sua teologia, especificamente. Não se pode, con­tudo, deixar de lado a sua doutrina, pois como já dis­semos, de qualquer lado que se encare a vida e os escritos desse homem, ter-se-á necessariamente de to­car na sua teologia. Por isso mesmo, em cada nova época, com o surgimento de novos problemas e ques tões que afligem a humanidade, Calvino tem sido cha­mado a opinar.

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Observa-se que, ao publicar sua primeira edição das Institutas, em 1536, Calvino “reproduziu o plano seguido por Lutero no seu catecismo e no seu peque­no livro de orações — A Lei, o espelho do nosso pe­cado; a Fé, adesão confiante do coração à Graça de Deus a imputar ao culpado a perfeita justiça de Je­sus Cristo preparando-o para o perdão e a salvação; a Oração, os Sacramentos e a Liberdade Cristã”.1 O mesmo escritor da citação acima, todavia, estabeleceu uma comparação entre Calvino e Lutero, mostrando as diferenças de formação intelectual, de tempera­mento, de condições de vida, que respondem pela di­ferença de tratamento que cada um deu à sua tarefa de reformador e, conseqüentemente, à sua doutrina, não em aspectos essenciais, evidentemente, mas se­cundários. “Lutero é o camponês cheio de uma ener­gia impulsiva, desordenada... desempenha o papel de insurgente do iniciador, revolucionário .. encontra-se mais tarde numa condição de ‘bon vivant’, exibindo humor que não redunda na trivialidade”.

". . . Ao lado de Calvino, o latino, espírito orde­nado e disciplinado, metódico no seu trabalho de sá­bio, como no seu esforço prático no comando da igre­ja — enfermiço, velho aos 30 anos, dominando as suas enfermidades pela tenacidade incrível da sua vonta­de. Lutero é o gênio explosivo. . . , Calvino é, depois dele, o sistematizador da Reforma, em que se encon­tra o espírito formado na escola de Belas Letras e de Direito”. “Austero, severo, Calvino impõe-se às vezes à admiração”. “As igrejas reformadas não têm guar­dado o mesmo respeito para com o seu iniciador que os protestantes votam a Lutero”. “Nem Calvino nem Lutero foram santos, no sentido evangélico do termo. A violência de Lutero contra os camponeses insurre- tos, o endurecimento de sua posição no final da sua carreira e, anteriormente, contra os suiços a propó­sito da Santa Ceia, denuncia nele um elemento de fa­natismo que se emparelha ao autoritarismo de Cal­vino na perseguição de hereges”.

Essas observações aqui citadas à guisa de intro­

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dução ao tratamento das idéias teológicas de Calvino têm como propósito abrir os olhos do leitor para al­guns aspectos que caracterizam o seu sistema teoló­gico — a sua exatidão, a sua lógica. Alguém chamou Calvino o teólogo exato. A sua irredutibilidade quan­do se tratade pontos de fé que lhe pareçam essenciais, como é o caso da Santa Ceia e da Trindade; da sepa­ração do Estado e Igreja, a inexpugnabilidade do mo­numento teológico que criou e que não perde a atua­lidade, antes surge a cada época com um novo des- pertamento e uma nova contribuição, fá-lo excepcio­nal no campo da teologia.

Karl Barth dizia que Paulo é um homem que, evi­dentemente, ouve e vê algo que está acima de qual­quer coisa além da sua capacidade de observação, da medida do seupensamento.2 Às vezes tem-se a im­pressão de que Calvino é assim para nós, como Pau­lo é para Barth. É que ele, Calvino, tão de perto aus- cultou Paulo, que é capaz de dizer coisas que outros não dizem ou, pelo menos, não disseram com a cla­reza com que ele diz.

Há várias maneiras pelas quais poderíamos pro­ceder a um estudo rápido do pensamento teológico de Calvino. Muitos o têm tentado de uma forma ou de outra.

Os chamados cinco pontos do Calvinismo, por exemplo, é a rota preferida por alguns. Parece-nos, contudo, natural o esquema traçado por Calvino mes­mo nas suas Institutas para esta ligeira incursão no vasto campo da sua teologia. Assim trataremos do que se encontra nos próprios volumes das Institutas.

Como se sabe, Calvino faz um tratamento um pou­co diferente nas últimas edições. Os Dez Mandamen­tos, o Credo e a Oração Dominical, o roteiro seguido por Lutero, é, no entanto, o que prevalece como base do seu trabalho. Cumpre notar que Calvino não foi buscar propriamente em Lutero, mas em Santo Agos­tinho no “Enchiridion”, as bases do seu estudo. No prefácio da sua edição de 1559 afirma que não esta­va satisfeito, até que arranjou o seu trabalho na for ma em que agora vai ser publicado”.3

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O CONHECIMENTO DE DEUS

Inicia Calvino o seu estudo, tratando do conhe­cimento de Deus. A sabedoria verdadeira e substan­cial, diz ele, consiste de duas partes principais: o co­nhecimento de Deus e o conhecimento de nós mes­mos. No entanto, nem se trata de dois conhecimentos inteiramente separados um do outro, mas intimamen­te ligados, pois nenhum homem pode ter uma visão geral de si mesmo sem imediatamente voltar-se à con­templação de Deus, em quem ele vive e se move.

“Desde que é evidente que os dons que possuí­mos não são de nós mesmos e que a nossa existência nada mais é do que uma sub-existência de Deus — todas as suas mercês, destilando em nós como gotas dos céus, formam como se fossem muitas correntes

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que nos conduzem à fonte principal, que é Deus mes­mo. A nossa pobreza nos dirige a uma manifestação mais clara da plenitude infinita de Deus”. Neste pon­to, Karl Barth se coloca naquele vai e vem da sua teologia com o sim e com o não, o não e o sim. É possível o homem conhecer a Deus? Sim e não.

Calvino está dizendo que sim, é possível, mas es­se sim está dependendo de alguma coisa mais, sem a qual se torna em não. Parece, então, que a nossa capacidade de conhecer por nós mesmos, ou a nossa incapacidade, a falta de dons para conhecer, é que dá lugar a manifestação de Deus mais clara e mais evidente. É preciso que o homem se desperte para a realidade de sua miséria e incapacidade, afim de que se torne sensível à revelação de Deus. Cada indi­víduo, portanto, deve se tornar consciente da sua in­felicidade para chegar a algum conhecimento de Deus, quanto mais for o reconhecimento da condição de nossa natureza espoliada do seu divino aparato, que produz em nós a nostalgia de Deus. Em outras pala­vras, é compreensão de nossa falta absoluta de me­recimentos de qualquer natureza, a nossa pobreza, en­fermidade, depravação, corrupção, que nos impele a perceber que em Deus, e somente nele, se encontra a verdadeira sabedoria, a sólida fortaleza, a perfeita bondade e a retidão sem mácula; e pela nossa imper­feição somos levados a consideração da perfeição de Deus. Nem podemos nós, realmente, ter aspirações de Deus, até que tenhamos começado a sentir des­contentamento de nós mesmos.

Parece que Calvino estabelece aqui esta tensão na­tural do homem decaído: pela sua depravação torna­-se orgulhoso, egoísta, e busca em primeiro lugar a si mesmo, o que não lhe dá nem conhecimento e nem o prazer que almeja. Se o conhecimento se alcança pelo processo de comparação — de modo que é so­mente sabendo o que é bom que podemos julgar da bondade de alguma coisa e buscá-la, então, enquan­to o homem não atingir ao menos um conhecimento

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parcial da bondade e perfeição de Deus, não há ne­le qualquer estímulo para buscar esse bem.

Há como que um ir e vir nesse conhecimento Pois que Calvino afirma que nenhum homem pode chegar ao verdadeiro conhecimento de si mesmo sem ter primeiro contemplado o caráter divino. Sim, por­que o nosso orgulho natural nos leva a julgar que somos retos, inocentes, sábios, santos, até que seja­mos convencidos do contrário. E é o conhecimento do verdadeiro padrão de perfeição que há em Deus que nos leva ao reconhecimento da nossa miséria e im­perfeição “Os olhos acostumados a ver somente pre­to julgam de grande brancura aquilo que é apenas esbranquecido”. Assim também acontece com os nos­sos dotes espirituais; enquanto a nossa vista está vol­tada para nós mesmos, ficamos contentes com a nos­sa retidão, sabedoria, força, e satisfeitos nos adula­mos a nós mesmos e julgamos que somos pouco me­nos do que semi-deuses. Se, no entanto, elevamos o nosso pensamento a Deus e consideramos a sua na­tureza e a consumada perfeição da sua justiça, sabe­doria, força, com as quais nos devemos confortar, o que antes nos encantava em nós mesmos, sob o fal­so pretexto da nossa justiça, será logo considerado grande iniqüidade. Aquilo que estranhamente nos en­ganava sob o título de sabedoria será desprezado co­mo extrema tolice: o que se vestia de aparência de força, provar-se-á a mais desgraçada fraqueza.

Chegamos, pois, à conclusão de que todas essas considerações e ilustrações de que, embora o conhe­cimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos estejam intimamente ligados, a ordem própria do co­nhecimento mesmo requer que nós inicialmente tra­temos do primeiro, isto é, do conhecimento de Deus e, depois, procedamos ao estudo do último, do conhe­cimento de nós mesmos. . .

Estabelecida por João Calvino a necessidade do conhecimento de Deus para que nos conheçamos, o que, no entanto, começa com a desilusão, ao menos, da nossa pobreza e imperfeição, pois que é isso que nos

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dirige para Deus, a fim de que o conheçamos, a me­dida que em formos olhando para Deus, que é tudo, vamos convencendo-nos de que somos nada.

Uma outra tese estabelece Calvino: é a importân­cia do que ele chama religião ou piedade para chegar ao conhecimento de Deus:

— “Não podemos, com propriedade, dizer que há qualquer conhecimento de Deus onde falta piedade ou religião”. Daí passa Calvino a tratar daquilo que ge­ralmente se conhece por revelação natural, isto é, o que se pode conhecer de Deus na criação, no mun­do, como afirma o apóstolo São Paulo em Romanos. Deus é manifesto primeiramente, tanto na estrutura do mundo (é a revelação natural) como no teor ge­ral das Escrituras.

Esta revelação é inicialmente a revelação do Cria­dor. Daí, a afirmação no princípio do Credo Apostó­lico: Creio em Deus Pai, Criador do Céu e da Terra. Depois se revela na pessoa de Cristo como Redentor.

Calvino se propõe tratar primeiro do conheci­mento de Deus, que derivamos das duas revelações primeiras. Para esclarecer a sua afirmação de que não há conhecimento de Deus sem religião ou piedade, passa a explicar o que é piedade e religião: “Por pie> dade eu quero dizer a reverência e amor a Deus que vem do conhecimento de seus benefícios”. Karl Barth, nesse ponto, segue a trilha de Calvino, mas, deixan­do de lado a revelação natural da qual ele, Barth, não trata, no entanto, aceita a possibilidade do homem co­nhecer a Deus, que é, sem dúvida, um conhecimento diferente do que Deus tem de si mesmo, que é ime­diato, ao passo que o conhecimento de Deus que o homem alcança é mediato, na base da sua revela­ção.

E com respeito ao conhecimento de si mesmo em relação ao conhecimento de Deus Barth afirma: “O homem não pode e não deve conhecer a si mesmo à parte de Deus, mas justamente com Deus como um seu oposto”.

É, naturalmente, aquilo que Barth chama “íntei-

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ramente o outro" — conhecimento de Deus não so­mente em relação ao homem mas distinto dele. E aqui afirma, mais uma vez, Barth: “Na sua palavra vem a nós, como o objeto, perante o homem, o sujeito” (na­turalmente objeto de conhecimento) . 4

Nessa mesma linha segue Louis Berkhof, para afir­mar que “o homem não pode descobrir Deus, nem as profundezas de Deus; pode, indubitavelmente, apren­der alguma coisa de Deus pelo estudo da natureza e na história, mas isso somente em virtude da revela­ção geral de Deus na natureza —- Deus manifesta o seu eterno poder e divindade no mundo e, portanto, o homem pode obter conhecimento dessas coisas pe­lo cuidadoso estudo das obras da criação” .5

Calvino considera frívola a especulação dos que se ocupam na indagação da essência de Deus, quan­do seria muito mais interessante a nós conhecer o seu caráter e saber o que é agradável à sua nature­za. Conhecimento puramente especulativo não tem ne­nhum valor, afirmava Calvino. O conhecimento de Deus que nos convém é o que nos ensinaria, primei­ro, temor e reverência. Segundo, a buscar todo o bem de suas mãos e render-Lhe louvor por tudo que re­cebemos.

Não entende Calvino que possamos alimentar o pensamento de Deus, sem logo refletir que, sendo criaturas de sua formação, devemos por direito de criação nos submeter a Sua autoridade. E aqui vem uma afirmação que se prende a outra doutrina calvt nista, a doutrina da vocação. A Ele devemos a vida e todas as nossas ações devem ser praticadas com re­lação a Ele.

O pensamento de Calvino gira sempre em torno da doutrina de Paulo, “Nele vivemos, nos movemos e existimos”. Percebe-se até aqui que Calvino tratou mais daquela piedade que, sendo uma aspiração por Deus, nos leva ao conhecimento dEle, Agora, porém, vem definir o que é uma verdadeira religião ou a na­tureza da genuina religião, ". . . consiste em fé unida a um sério temor de Deus, que compreende uma re­

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verência voluntária capaz de produzir um culto agra­dável...”. Calvino deixa bem claro que os homens geralmente oferecem a Deus um culto formal, sem a verdadeira reverência, com cerimônias pomposas, mas com pouca sinceridade de coração.

Barth afirma que “Deus é objeto do nosso co­nhecimento, mas também deve ser do nosso amor acima de todas as coisas, por isso mesmo, aquele a quem devemos temer mais do que qualquer outro” .6 Isso, por sua vez, nos leva à obediência. J. I. Parker7 faz uma distinção entre os dois conhecimentos de Deus mencionados por Calvino como sendo: O conhe­cimento que é religião e o que é conhecido de Deus ou a respeito de Deus, que é teologia. Ele (Calvino) aponta uma apreensão de Deus não apenas como um ser existente, mas como Aquele que é, para nós, gra­ça, e, da nossa parte para com Ele, adoração e servi*- ço.8

Calvino passa a demonstrar que o conhecimento de Deus no homem está obscurecido, pois que a men­te humana, por natural instinto ou intuição, possui algum senso da divindade. De modo que, para que nenhum homem possa alegar o pretexto de ignorân­cia, Deus deu a todos alguma apreensão da sua exis­tência.

Quanto a esse conhecimento universal e geral de Deus, cita ele Cícero, que afirma não haver raça de homens por mais bárbara e mais selvagem, que não tenha persuasão da existência de Deus. Corrige ainda Calvino a pretensão absurda daqueles que fazem da religião uma invenção de alguns homens sutis com propósitos políticos para dominar as massas, quan­do os próprios inventores estão longe de crer que Deus existe. Calvino não nega que muitas coisas fo­ram introduzidas na religião para produzir temor no povo e dominá-lo; todavia, nunca isso poderia ter si­do feito, se já não houvesse no homem a firme per­suasão da existência de Deus.

Infere-se, segundo Calvino, que é inata na natu­reza do homem, inseparável da sua constituição, a

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idéia de Deus, uma vez que não é aprendida nas es­colas» mas vem com o homem no seu nascimento, mantém-se-lhe radicada no seu coração. Dé modo que o culto a Deus é uma das coisas que separa o homem dos animais e aqui Calvino perfilha a afirmação do apóstolo São Paulo aos Romanos, na grande epísto­la que tanto o impressonou pela sua magntiude dou­trinária, como também impressionou a Lutero e, poste­riormente, a Barth. No entanto, há coisas que obs- curecem o conhecimento de Deus por parte dos ho­mens.

Embora a experiência testifique que a semente da religião foi por Deus lançada no coração do homem, dificilmente encontramos um entre cem que dê valor ao que recebeu, e em nenhum a semente atinge a sua maturidade ou produz fruto na estação própria. De fato, nenhuma piedade genuína resta no mundo. Al­guns se tornaram vãos nas suas superstições, além de se revoltarem contra Deus por maldade intencional; alguns se tomaram empedernidos pelo hábito da trans gressão. A semente que é impossível de todo erradi­car-se, ainda permanece, mas tão corrompida, porém, que só produz mau fruto.

Em momentos de tranqüilidade o homem zomba de Deus, nega sua existência e o seu poder; se vem a desolação, faz uma oração concisa, o que prova que não está de todo ignorando Deus, mas, o que devia aparecer antes, foi seguido pela obstinação. Percebe- se aqui, no tratamento de Calvino referente ao co­nhecimento de Deus, que faltam aos homens os requi­sitos da verdadeira religião, e, consequentemente, do conhecimento de Deus, pois que a sua natureza está pervertida e o temor de Deus não existe no seu corar ção. Daí, o senso da divindade fica aniquilado e só se manifesta quando o homem se vê premido por di­ficuldades .

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O ENSINO E DIREÇÃO DAS ESCRITURAS

A revelação de Deus na natureza, que se apresen­ta aos nossos olhos, tanto nos céus como na terra, seria mais do que suficiente para eliminar qualquer desculpa do homem com respeito ao conhecimento de Deus. No entanto, Ele acrescentou a essa revelação a luz da sua Palavra para fazer-se conhecido e mostrar a salvação; tendo honrado com este privilégio aque­les que desejou unir em uma relação mais íntima e fa­miliar com Ele mesmo.

“As Escrituras dissipam as trevas da nossa mente tornando claras as noções confusas da divindade e dan­do-nos uma visão clara de Deus. E é um favor singu­lar que Deus na instrução da Igreja usa não apenas mestres, mas abre também a sua boca sagrada... não somente ensina aos seus eleitos a elevar os olhos pa­ra a divindade, mas também se manifesta como obje­to desta contemplação; devemos, pois, aprender das Escrituras o que Deus revelou aos patriarcas... É fo­ra de dúvida que a esses patriarcas Deus se revelou numa persuasão, de modo que estavam convencidos de que a revelação que receberam veio de Deus. Pa­ra que os oráculos dos profetas servissem de instfru- ções a todas as eras, Deus ordenou que fossem guar­dados e, assim, também a lei promulgada fosse reu­nida e os profetas fossem os seu intérpretes”.

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ESC RI TURAS & 4 GRADAS

Warfield acha por bem definir logo dâ princípio que é que Calvino entende por Escrituras. Calvino es­tabelece com clareza a sua doutrina do Canon das Es­crituras Sagradas. O que ele chama de Escrituras são os livros do Velho Testamento a nós transmitidos pe­los judeus, com exclusão dos Apócrifos, e o Novo Tes­tamento, conforme o Cânon aceito pelas igrejas cris­tãs.

Embora julgue que os Apócrifos sejam bons e úteis para leitura, não são, contudo, “Ad fidem dogmatum faciendam” (não são para afirmar dogma). No seu tratado sobre atas do concilio de Trento, como antí­doto, claramente diz que os acréscimos que aquele con-

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cílio fez na regra de fé, não são parte das Escrituras Sagradas.

Na polêmica que manteve com Sebastião Casté­lio, em que este negava a canonicidade de Cânticos dos Cânticos, Calvino, mais uma vez, se firma na sua po­sição com respeito ao Cânon das Escrituras, como aci­ma dissçmos. O fato de Calvino não ter escrito co­mentários do livro de Apocalipse leva alguns a inferir qué ele não o considerava canônico ou alimentava al­guma dúvida quando à sua canonicidade. Esse pensa­mento deve ser abolido, pois nós o encontramos, não raro, citando Apocalipse no mesmo pé de igualdade dos livros canônicos das Escrituras. Dúvida semelhan­te tem surgido com respeito às duas epístolas meno­res de João, a segunda e a terceira, pois que também não as comenta Calvino. A dúvida é reforçada pela expressão que a respeito da Primeira Epístola de João, Calvino a utiliza quando a ela se refere dizendo: "João, na sua epístola canônica...”. Tal argumento, embo­ra pareça ter alguma força, cai por terra quando en- coní,rr*tnos Calvino, freqüentemente, afirmando acei­tação do Cânon sem exclusão desses livros.

O incidente com Castélio, a quem os ministros de Genebra negaram a ordenação para o ministério, pren­dia-se exatamente à sua não aceitação do Cânon total das Escrituras, e Calvino foi o relator do caso, e o relatório traz a sua assinatura.

No seu Tratado sobre o Concilio de Trento, con­dena a não aceitação do Cânon como nós o entende­mos. Inicia Calvino as suas considerações sobre Es­critura Sagrada afirmando a suficiência da revelação natural à luz da Sua palavra, a qual nos leva a conhe­cê-Lo para a salvação. Esse privilégio ele concede àque­les que ele quis unir a Si, numa relação mais íntima e familiar.

É fácil entender porque Calvino julga que ao ho mem pecador faz-se necessária a revelação especial das Escrituras, não apenas como Criador, mas Provedor da nossa salvação em Cristo Jesus.

“A revelação de Deus dada aos judeus» aos quais

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Ele escolheu para o seu rebanho peculiar, separando- os de outras nações, Ele também nô-la concede”.

As Escrituras reunem em nossa mente as noções da divindade, as quais, de outro modo, seriam corífu- sas, esclarecendo-as e dando-nos uma visão nítida do verdadeiro Deus. Assim, por um favor singular, Deus, na instrução da sua igreja, não somente usa os mes­tres mudos, mas também abre a sua boca. Não so­mente ensina que algum deus deve ser adorado, mas proclama-se como aquele ser a quem o culto é devido, distinguindo-se das divindades fictícias. Foi desse mo­do que ensinou a Adão, Noé, Abraão e os outros pa­triarcas, aos quais distinguiu com esse conhecimento.

“Além do conhecimento de Deus como Criador» outro conhecimento lhes foi dado anteriormente, o qual viveu amortecido na alma, e que os faz reconhe­cer a Deus não apenas como Criador e governador do mundo, como autor e árbitro de todos os aconteci­mentos, mas também como Redentor na pessoa do Me­diador” .

Com respeito ao modo de que Deus se serviu pa­ra transmití-lo aos patriarcas, não importa, para Cal­vino, se o foi por oráculos, visões, sugestões ou por meio do ministério de homens que deviam transmitir essa revelação às posteridades. O fato, porém, fora de qualquer dúvida, é que nas suas mentes se imprimia a firme certeza de que a doutrina ou informação que lhes estava sendo transmitida vinha de Deus mesmo. “Deus sempre assegurou para si e para a Sua Pa­lavra um crédito indubitável, superior à opinião hu­mana”. E Calvino continua, para mostrar como a Pa­lavra de Deus foi preservada até que chegasse a nós em forma escrita. Deus providenciou para que a ver­dade pudesse permanecer no mundo através do curso contínuo de instrução a todas as idades, O mesmo orá­culo que Ele tinha entregado aos patriarcas foi con­fiado ao registro público. Com esse propósito a lei foi promulgada, à qual os profetas ou as profecias foram posteriormente anexadas, com a sua interpretação.

A intenção de Moisés e de todos os profetas era

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ensinar ao povo o modo de reconciliação entre Deus e o homem; é o que o apóstolo Paulo chama Cristo e a Lei.

“As Escrituras distinguem o único e verdadeiro Deus por certo caracteres e títulos — Criador, Gover­nador do Universo, para que Ele não possa ser con­fundido com a multidão de deuses falsos". O endure­cimento daqueles que nascem nas trevas e aumentam em estupidez resulta de não atentarem para a Palavra de Deus com docilidade e se exaltar com vaidades vãs”.

Estabelece, então, Calvino o princípio: “Ninguémtem o mínimo conhecimento da verdadeira e sã dour trina, se não for discípulo das Sagradas Escrituras; o verdadeiro conhecimento provém da aceitação daqui­lo que Deus quis revelar a respeito de Si mesmo. A obediência é a verdadeira fonte, não só da fé perfeita e completa, mas de todo reto conhecimento de Deus; Deus tem buscado o interesse da humanidade neste sentido pela sua providência". A necessidade do re­gistro da revelação se entende, para que não fosse es­quecida e perdida, desaparecesse nos erros ou fosse corrompida pelo homem.

Se desejamos uma contemplação de Deus, certa, é preciso que usemos os meios que Ele nos forneceu, a saber, a Sua Palavra, que contém a exata descrição de Deus como Ele se revela nas suas obras, e essas obras não são julgadas segundo o nosso critério de­pravado, mas pelas regras da verdade eterna que Ele nos desvendou para que não nos desviemos do alvo a ser alcançado.

O erro não pode ser erradicado do coração huma­no até que o verdadeiro conhecimento de Deus seja nele implantado. Daí o Salnrista, tendo proclamado: Os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras de suas mãos, — prossegue para di­zer que: “A lei do Senhor é perfeita e converte a al­ma; o testemunho do Senhor é seguro e faz o sim­ples sábio; o mandamento do Senhor é puro e ali> mia os olhos..." . Embora ele compreenda o uso da lei como certo, sugere, no entanto, que, em geral, Deus

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convida todas as nações a Ele pela visão dos céus e / da terra, que não produz o efeito verdadeiro até que chegue a essa escola peculiar dos filhos de Deus, as Escrituras. Daí também procede a observação de Je­sus Cristo feita à mulher samaritana, que a sua na­ção, e todas as outras, cultivavam o que não sabiam, mas que os judeus eram os adoradores do verdadeiro Deus.

Desde que a mente humana, na sua ignorância, é incapaz de conhecer a Deus sem a assistência da Sua Palavra Sagrada, (exceto os judeus que possuiam essa palavra) deve necessariamente estar vagando no escuro.

INSPIRAÇÃO DAS ESCRITURASDiscute-se, por vezes, se Calvino aceitava a ins­

piração literal da Bíblia ou a plenária. Evidentemen­te, esses termos assim cunhados são de tempos pos­teriores .

Guizot gasta um capítulo de seu livro sobre Cal­vino para afirmar que o reformador cria na inspira­ção plenária da Bíblia. Mas, quando ele passa a des­crever a posição de Calvino a esse respeito é que se entende que é que Guizot toma por inspiração ple­nária.

Warfield prefere colocar a questão em outros ter­mos, mesmo porque é discutível o uso que a palavra empregada por Calvino com respeito às Escrituras possa ter. Nem sempre o significado moderno e tec­nicamente empregado pode lhe ser atribuído, quan­do se trata de teologia ou de inspiração.

A palavra “ditar” por ele usada quando se refere às Escrituras, dizendo que elas são o registro públi­co, e que o homem nesse caso é um notário, poderá dar a impressão de que Calvino aceita um tipo de inspiração em que o elemento humano é apenas um autômato. Warfield, no entanto, diz que essa lingua­gem é figurativa e que Calvino tinha em mente, não insistir que a inspiração fosse um “ditado”, mas que o resultado da inspiração era como se fosse um dita­

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do. A reprodução era a Palavra de Deus livre de mis­tura humana.9 A palavra “ditado” estava sendo usa­da naquela ocasião para expressar o efeito, mais do que o modo da inspiração, reafirma Warfield.

Haverá sempre dificuldades em encaixar os ho­mens da Reforma, em questões como essas nas teo­rias posteriormente cunhadas, em que as palavras se restringem a significados modernamente adquiridos. Se lermos atentamente toda a exposição de Calvino, veremos que ele aceita exatamente a doutrina da ins­piração plenária da Bíblia, em que Deus pelo seu Es­pírito utilizou o instrumento humano para revelar a sua verdade infalível, sem eliminar, contudo, as ca­racterísticas pessoais do escritor que Ele utilizou.

O TESTEMUNHO DO ESPÍRITOEntende Calvino que o testemunho do Espírito

Santo é necessário para confirmar as Escrituras, a fim de estabelecer a sua completa autoridade. Combate energicamente o erro, que julga pernicioso, e muito em voga, de que as Escrituras têm valor somente na medida em que esse valor lhes é atribuído pelo sufrá­gio da Igreja, como se a verdade inviolável de Deus dependesse da vontade arbitrária do homem, o que, para Calvino, é uma grande ofensa ao Espírito Santo.

Indaga-se: Quem pode assegurar-nos que Deus é o autor das Escrituras? Quem nos pode persuadir de que esse livro deve ser recebido com reverência, e ser colocado no número dos sagrados, a menos que seja regulado por decisão da Igreja? Nesse caso depende da Igreja a inclusão do livro no Canon.

Respondendo essa alegação e a citação de Agos­tinho fora do contexto, para aboná-la, Calvino com­bate aqueles que esperam evidências da verdade por meio de argumentos racionais, dizendo: “O testemu­nho do Espírito é superior a toda a razão; pois, só Deus é suficiente para atestar de Si mesmo e da Sua própria palavra. Por isso, toda a palavra não ganha­rá crédito no coração do homem até que seja confir­mada pelo testemunho interior do Espírito. É neces­

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sário, pois, que o mesmo Espírito que falou pela bo- / ca dos profetas penetre os nossos corações para con­vencer-nos de que eles, fielmente, entregaram os orá­culos diretamente confiados a eles. Essa revelação se expressa de maneira muito simples: “O meu Espírito está sobre ti e a palavra que eu pus na tua boca, na boca da tua semente e na boca da semente da tua semente para sempre”.

“Alguns bons homens ficam perturbados quando não estão preparados para responder aos ímpios, que se opõem a Palavra de Deus impunemente, como se o Espírito não fosse denominado 'Selo' ou 'penhor' pa­ra confirmação da fé dos piedosos; pois, até que Ele ilumine, as suas mentes estarão flutuando na multi­dão de dúvidas. Portanto, sendo iluminados por ele, pelo Eíspírito, cremos na origem divina das Escritu­ras não pelo nosso julgamento ou pelo julgamento de outros, mas pela certeza que recebemos da boca de Deus mesmo pelo ministério dos homens.

Isaías predisse que todos os filhos da Igreja se­riam ensinados por Deus. Discute-se aqui o privilégio especial dos seus eleitos, aos quais Ele os distingue do resto da humanidade, porque o começo do verda­deiro aprendizado terá como fruto a alacridade de ou­vir a voz de Deus, da Sua sabedoria. “Se Deus nos dotou desse tesouro reservado para os seus filhos, não é nenhum absurdo surpreendente que vejamos tanta ignorância e estupidez entre os homens comuns; e não nos devemos admirar do número pequeno da­queles que têm apreensão dos mistérios de Deus’ .

Warfield lembra a famosa doutrina de Calvino, segundo ele, da persuasão do Espírito,10 que na ver­dade não é de Calvino, senão do apóstolo São Paulo, que tão claramente a afirma em suas epístolas. Cal­vino passa a referir-se às provas racionais quanto às Escrituras Sagradas. Inicialmente, afirma que sem o testemunho do Espírito, superior em tudo a qualquer julgamento humano, em vão tentaríamos defender a autoridade das Escrituras, estabelecida pelo consenso da Igreja ou por outra forma qualquer, a menos que

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seja lançada a base permanente para a sua sustenta­ção. Porque não é a beleza da linguagem, mas a dig­nidade do assunto que se firma na nossa consciência.

Podemos ler Demóstenes, Cícero, Platão, Aristó­teles e nos encantarmos com os seus escritos, mas depois se voltarmos para a palavra de Deus, quer quei­ramos, quer não, ela nos influenciará de tal modo que a beleza dos retóricos desaparecerá. Há algo divi­no nas Escrituras Sagradas que excede ao mais alto ornamento que a capacidade humana pode criar”.

Examinemos os profetas e veremos que eles su­peram a toda a habilidade humana. Há algo de ex­traordinário nas Escrituras, apesar da sua simplici­dade. Além de tudo, há o milagre da efetividade das Escrituras e as predições cumpridas de profetas, co­mo Isaías.

Quanto ao Novo Testamento, o testemunho dos evangelhos e das epístolas, o efeito dessas Escrituras na vida dos que as aceitam é algo importante para o testemunho da sua validade. Calvino afirma que de­monstrar que as Escrituras são a Palavra de Deus a infiéis e incrédulos é uma tolice, pois elas só podem ser conhecidas com o auxílio da fé. E cita Agostinho: “Piedade e paz da mente devem preceder, afim de que o homem possa entender algo desse grande assunto”. Calvino combate, aqui, aqueles que desprezam as Es­crituras sob pretexto de revelação imediata. Esse as­sunto foi motivo de polêmica de Calvino com alguns grupos dissidentes os quais supunham receber dire­tamente revelações de Deus. Os antigos receberam es­sas revelações, não desprezaram as Escrituras, mas as trataram com grande reverência. Lembra a passagem do apóstolo São Paulo a Timóteo quando afirma que toda a escritura é proveitosa. “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino...” (2 Tm 3.16).

Pedro recomenda aos que são estudiosos que ob­servem a doutrina dos profetas. Paulo, aos Tessaloni- censes, exorta-nos a que não apaguemos o Espírito. Je­sus explica aos dois homens de Emaús as Escrituras.

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Os apóstolos e todos os verdadeiros cristãos deram valor às Escrituras. O Espírito Santo ministra a pa­lavra escrita à mente do crente. Satanás tem que ser repelido com a palavra escrita.

Quando o apóstolo Paulo afirma que a letra mata e o Etepírito vivifica, está mostrando que o espírito e a palavra estão indissoluvelmente ligados e não, co­mo alguns entendem, anulando a palavra escrita em favor duma revelação direta do Espírito.

Concluímos que nada deve ser aceito pela igreja de Cristo como palavra de Deus, a não ser o que se contém na lei, nos profetas, nos escritos dos apósto­los; e que não há outro meio de se ensinar e instruir a igreja, senão de acordo com o padrão dessa Pala­vra.

Nossos pastores foram investidos com a autori­dade para o uso dessa Palavra e tudo fazerem, para constranger toda a sabedoria, poderes, majestades do mundo, à obediência à Palavra. Sustentados por essa palavra, possam eles governar toda a humanidade, des­de os mais altos aos menores; alimentar as ovelhas, afastando-as dos lobos; instruindo e exortando os dó­ceis; reprovando os obstinados e rebeldes; soltar e li­gar; e, se necessário, despedir os seus relâmpagos e trovões, mas tudo conforme a Palavra de Deus.

Os apóstolos foram os recipientes da Palavra de Deus; os ministros, seus sucessores, não têm outro ofício, enão ensinar o que está revelado e registrado nas Sagradas Escrituras. Não lhes foi deixada a in­cumbência de formular novas doutrinas, cabendo-lhes simplesmente, sem exceção, a doutrina a que Deus a todos sujeitou.

Firma-se desse modo a inabalável segurança com que João Calvino se escuda na Palavra de Deus como a única verdade revelada, com exclusão da tradição, dos apócrifos, dos atos e decisões dos concílios ou de qualquer outra autoridade que não seja a da infalí­vel Palavra de Deus.

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CRIAÇÃO - 0 HOMEM - ESTADO EM QUE FOI CRIADO

Mui cuidadosamente Calvino procura sempre es­tabelecer um elo de ligação entre o assunto de que vai tratar, tanto com o imediato anterior, como com os outros seguintes. É assim que justifica o tema do capítulo presente — O homem no estado em que foi criado, etc., alegando ser ele a mais admirável expres­são da justiça, sabedoria e bondade de Deus e, ainda, porque, como disse no início, não podemos conhecer Deus devidamente, com clareza, a menos que a esse conhecimento se acrescente o conhecimento de nós mesmos.

Calvino divide esse conhecimento em duas par­tes distintas, a saber: A condição em que fomos cria­

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dos e a nossa condição tal como é, a partir da que­da de Adão. Pouco nos valeria saber como fomos cria­dos, ignorando a corrupção e degradação resultante da queda e assim atribuir ao Criador os males da na­tureza humana decaída.

Calvino é dicotomista, estabelece logo de início que o homem consiste de corpo e alma. A alma é uma essência imortal, embora criada — a mais no bre parte do homem, às vezes chamada espírito; quão- do, porém, se usam as duas palavras, alma e espMÈo» num só contexto, podem diferir em significado.

Naturalmente, Calvino fala em termos não de psi­cologia, ciência que veio posteriormente ao seu tempo, mas fala em termos empregados pela filosofia, con­forme o uso corrente em sua época, com que ele está sempre em dia. Em resumo, estabelece que o homem possui um corpo material e uma alma espiritual, imor­tal, que habita esse corpo.

O homem foi criado à imagem de Deus. Em que sentido? Que quer dizer imagem de Deus?

Calvino aceita que a aparência exterior do homem possa de um certo modo refletir a glória divina, con­tudo, a imagem de Deus que se manifesta na aparên­cia exterior é espiritual. Crê que a imagem de Deus se estende a toda a natureza humana naquilo em que essa natureza supera os outros animais.

O assento primário da imagem de Deus estava na mente e no coração, ou na alma e seus poderes; con­tudo, não há parte do corpo em que algo da glória de Deus não brilhe. Para tomar mais completa a de­finição de imagem de Deus, Calvino lembra que, quan­do Adão caiu, alienou-se de Deus e embora não per­desse de todo aquela imagem, no entanto, ela se cor­rompeu de tal modo que ficou terrivelmente defor­mada. Daí, a nossa libertação se inicia com uma re­novação que obtemos em Cristo, o segundo Adão, as­sim chamado, porque restaura em nós a verdadeira e substancial integridade; conforme Paulo nos mos­tra na sua comparação em 1 Corintios 15.45. “O pri­meiro Adão foi feito alma vivente; o último Adão,

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porém, é espírito vivificante”.O propósito da regeneração é formar em nós, de

novo, a imagem de Deus, Colossenses 3.1-11; Efésios4.24. Paulo se refere ao homem criado à semelhança de Deus e menciona a nossa renovação, primeiro em conhecimento, depois em justiça e santidade. Daí in­ferir-se que, no princípio, a imagem de Deus foi ma­nifesta pela luz intelectual, retidão de coração e soli­dez perfeita de cada parte.

Vemos que Cristo é a mais perfeita imagem de Deus, no qual somos renovados para que possamos exibir essa verdadeira imagem em conhecimento, pu reza, justiça e verdadeira santidade.

Embora a substância da alma seja incorpórea, conforme as Escrituras, no entanto, habita um cor­po, animando-o em todas as suas partes, regulando as forças dos órgãos, mas, acima de tudo, a conduta do homem no que diz respeito à sua vida terrena e tam­bém a seu serviço a Deus.

Prossegue Calvino para afirmar que Deus dotou o homem de intelecto, pelo qual pode discernir o bem do mal, o justo do injusto, sabendo o que aceitar e rejeitar pela luz da razão. No estado de justiça em que o homem foi criado, possuía a liberdade de von­tade pela qual, se tivesse escolhido, teria a vida eter­na. Adão poderia ter permanecido se assim escolhes­se, desde que foi somente por sua vontade que veio a cair, mas, porque a sua vontade estava propensa a outra direção, não recebeu a constância para perse- verar. Tinha livre escolha entre o bem e o mal, e to­das as suas partes e órgãos devidamente estruturadas para a obediência até que corrompeu suas boas qua­lidades e se destruiu.

Quanto à pergunta: Por que é que Deus não sus­tentou o homem pela virtude da perseverança? É al­go oculto no seu conselho secreto e a nós compete manter-nos no limite da nossa discrição. Nenhuma ne- o^sidade se impunha a Deus para que desse ao ho* mem mais do que aquela vontade intermediária e transitória, para que da queda do homem Deus pu­

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desse obter razão a sua própria glória.Convém observar o que diz John Leith sobre a

doutrina da vontade nas Institutas.11 Leith trata da doutrina da vontade nas Institutas da Religião Cristã e a sua tese é de que Calvino, em sua doutrina sobre a vontade, faz uma análise profunda da experiência cris­tã de hoje. Pondera, no entanto, Leith que, para se en­tender o tratamento que Calvino faz da vontade, tem que se considerar o seu contexto cultural e religioso e não se pode interpretá-lo sem estar consciente da lingua­gem contemporânea e da experiência religiosa.12 “A discussão de Calvino sobre a vontade é complicada e às vezes difusa, no contexto de vários interesses teo­lógicos”. De modo que a maneira de se obter um entendimento mais claro de Calvino com respeito à vontade é pelo isolamento das várias doutrinas que ele formulou em função da vontade.13

Sugere ainda Leith, que é preciso, para entender Calvino com respeito à vontade, ter em vista três qua­lidades peculiares de sua teologia que contribuem pa­ra inteligibilidade da fé, na sua situação peculiar, tan­to religiosa como cultural: Primeiro, o caráter doxo- lógico da sua teologia, a glória de Deus; Segundo, o seu grande temor de uma falsa e perigosa confiança nas obras; Terceiro, a modéstia e deslumbramento do homem na presença da majestade indevassável de Deus.14

Sempre se há de ter em mente que Calvino é muito firme nas suas idéias e muito organizado no seu esquema, de modo a ir atando as peças do seu ar­cabouço teológico a ponto de reuni-las numa grande unidade.

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CONHECIMENTO DE DEUS COMO REDENTOR EM CRISTO

Mais uma vez, aqui, Calvino liga o conhecimento de Deus ao conhecimento de nós mesmos, como vem fazendo desde o princípio. E esse conhecimento de nós mesmos, a ser tratado agora, é, de modo especial, relacionado à queda e suas conseqüências em toda a raça humana. Pois, somente conhecendo-nos na irre­mediável situação a que o pecado original nos con­denou, e conhecendo a nossa própria natureza depra­vada, é que estaremos em condições de entender e apre­ciar o conhecimento de Deus na qualidade de Reden­tor em Cristo Jesus.

Com razão, o provérbio antigo recomenda ao ho­mem o conhecimento de si mesmo, pois, examinan­

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do-nos é que somes levados à busca da verdade divina, e nessa busca descobrimos as nossas falhas e necessi­dades. A Adão Deus prometeu a vida eterna, se per­manecesse em obediência. A prova dada a Adão tinha como finalidade exercitar a sua fé. Adão, no entanto, provocou a ira de Deus com a queda. Agostinho afir­ma que o início da queda foi o orgulho; o orgulho o elevou acima do que devia. No entanto, está claro que o pecado original foi desobediência. É a infideli­dade a razão da revolta contra Deus, da qual nasceu a ambição, a ambição gerou a rebelião pela qual o homem lançou fora o temor de Deus e deu largas a sua concupiscência. Com isso, Adão, que perverteu to­da a ordem natural no céu e na terra, deteriorou a sua raça (Rm 8.20,21).

Agostinho mostra que somos corrompidos, não uma corrupção adquirida, mas inata, que trazemos desde o ventre — transmitida de pai a filho.

Em Adão todos pecaram (1 Co 15.22,25). Somos por natureza filhos da ira, diz Paulo em Efésios 2:3. O pecado original pode ser definido como uma corrup­ção e depravação hereditária da nossa natureza, es­tendendo-se a todas as partes da alma, e que inicial­mente nos faz sujeitos à ira de Deus, depois produz em nós o que a Bíblia chama de obras da carne; São Paulo repetidamente dá a isso o nome de pecado (G1 5.19).

A causa da nossa ruína reside na nossa camali- dade e não em Deus, e a sua causa única é a nossa degenerescência da condição original. Cumpre agora indagar se os descendentes de Adão, em virtude do pe­cado original, são privados da sua inteira liberdade.

Estabelece Calvino que a livre vontade do homem não o habilita a praticar boas obras, a menos que seja assistido pela graça. Na verdade, a graça especial, que somente os eleitos recebem pela regeneração. O ho­mem tem vontade livre, não porque tenha a livre es­colha entre o bem e o mal, mas porque age volunta­riamente, não por compulsão. Daí, aqueles que se sen­tem mais abatidos e alarmados pela consciência da

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sua desgraça, nudez, pobreza, miséria, é que se fa­zem mais propícios ao conhecimento de si mesmos. Calvino afirma que o primeiro, o segundo e o terceiro preceito da religião cristã é humildade. É preciso hu­mildade para reconhecer a nossa falta de mereci­mento. *

A natureza não possui nenhum dos dons que os eleitos recebem do Pai Celestial através do espírito de regeneração. De modo que ninguém pode entrar no reino dos céus, a não ser que a sua mente tenha si­do renovada pela iluminação do Santo Espírito. Ê isso que São Paulo afirma em 1 Coríntios 2.14 ■— “Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente”, confirman­do o que antes disse no versículo 9 do mesmo capí­tulo: “As coisas que o olho não viu e nem o ouvido não ouviu, nem jamais penetraram no coração do ho­mem, são as que Deus tem preparado para aqueles que o amam".

Diz ainda São Paulo que Deus é que nos dá o es­pírito de sabedoria (Ef 1.17). De modo que nenhum homem deve deixar de reconhecer que só se torna capaz de entender os mistérios de Deus iluminado pela Sua graça.

Convém que nos guardemos contra os erros de Platão, que atribui todo o pecado à ignorância; como também daqueles que mantêm que o pecado provém de uma preconcebida depravação e malícia. Devemos rejeitar também a doutrina ensinada por filósofos, e geralmente aceita, de que o homem quase sempre de­seja o que é bom, posto que ainda que o deseje, no entanto, não o segue.

São Paulo afirma: “Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse faço” (Rm 7.20). Essa é a luta do regenerado pelo espírito de Deus que, no entanto, traz consigo resto da carne.

Dizia Santo Agostinho “Tudo de bom que temos vem de Deus e todo o mal de nós mesmos”. No car pítulo III, Calvino vem provar que tudo que procede

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da natureza corrompida do homem é mau. As Escri­turas ensinam, com muita força, esta verdade. Em João 3.6, Jesus mesmo diz: “O que é nascido da carne é carne e o que é nascido do espírito é espírito”. Em Romanos 8 .8 , São Paulo afirma que os que estão na carne não podem agradar a Deus. E ainda, em Efé- sios 4.23, exorta São Paulo aos cristãos a que sejam renovados no espírito.

Jeremias afirma que o coração do homem é en­ganoso acima de todas as coisas e desesperadamente mau. Alguns alegam que em todas as gerações tem havido homens de vida virtuosa e correta. Tais fatos vêm atestar que a nossa natureza não está de todo vi­ciada e que há ainda lugagr para que a graça divina nos impeça de fazer todo o mal. A verdade é que o homem pecador é escravo do pecado e não pode fazer movimento em direção ao bem, muito menos buscá-lo com perseverança. Esta afirmação conta com o apoio de Agostinho, que diz que a graça precede a toda a boa obra.

Por outro lado, deve-se considerar a dádiva da perseverança que Deus nos concede gratuitamente, sem merecimento da nossa parte, e não como alguns que­rem que seja concedida a cada um segundo os seus merecimentos, pois isso atribuiria a nós o direito de receber ou rejeitar a graça oferecida por Deus. O1 que se pode aceitar é que quanto melhor usò fizermos das bênçãos de Deus, maior porção poderemos esperar no futuro, cabendo a Deus nos dar ou não.

Calvino cita Agostinho, que diz: Sabemos que a divina graça é dada a todos os homens, e que àqueles aos quais é dada não o é de acordo com o merecimen­to de suas obras, ou por causa de suas virtudes, mas pela livre graça; com respeito àqueles aos quais não é dada, sabemos que, não lhes dando, Deus age com justiça, segundo o seu julgamento.

Prossegue ainda Calvino, mostrando que o homem escravizado pelo pecado não pode por sua própria na­tureza desejar o bem e nem efetivamente buscá-lo. Vol­ta Calvino a afirmar que, quando Satanás age através

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dos homens maus, Deus utiliza isso para o "bem. É o caso de Jó, referido anteriormente, em que os caldeus saquearam sua propriedade e seus rebanhos. Jó reco­nhece nisso a mão de Deus — "O Senhor o tirou”. O propósito de Satanás foi levar Jó ao desespero. O pro­pósito dos caldeus foi fazer uso ilícito do saque. C propósito de Deus foi exercitar o seu servo através da adversidade.

Calvino apresenta a alegação em favor da vontade livre do homem e refuta os argumentos com passa­gens das Escrituras, terminando por dizer que a Par lavra de Deus nos mostra que, sem a graça divina, a vida e a felicidade do homem estão inteiramente per­didas. O homem tem uma mente capaz de entender, no entanto, não é capaz de por si mesmo atingir a sa­bedoria celeste espiritual; ele tem algum discernimen­to do que é justo; ele tem algum senso de divindade; não obstante, não pode atingir o verdadeiro conheci­mento de Deus.

De que é que isso vale, então?Agostinho e a opinião universal dos doutores é

de que após a queda, a dádiva gratuita da qual a sal­vação depende foi retirada e os dons naturais cor­rompidos e contaminados. . . o coração está inteira­mente envenenado pelo pecado, de modo que não po­de nada desejar, senão a corrupção e a podridão. Se çtl- gum homem ocasionalmente manifesta alguma bonda­de em sua mente, essa está permeada com hipocrisia e engano e inteiramente presa da iniqüidade.

Herman Bavinck, num ensaio15, diz: “Como Agos­tinho, Calvino é naturalmente temeroso do orgulho pe­lo qual o homem se exalta acima de Deus. A sua cons­tante insistência com respeito à incapacidade do ho­mem e à escravidão da vontade não tem como pro­pósito lançar o homem no desespero, mas levantá-lo da letargia, acordá-lo para dizer-lhe o que lhe falta; fazê-lo renunciar toda a glória própria e toda a- auto­-confiança, para pôr sua confiança somente em Deus. Calvino despoja o homem de todas as coisas, para res­

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taurar-lhe todas as coisas em Deus”. É isso que Cal­vino vai fazer em seguida.

Em virtude da queda, todo o conhecimento de Deus de que já se tem falado será sem valor, a não ser que seja acompanhado pela fé em Deus como Pai em Cris­to Jesus. Toda a fábrica do mundo deve ser uma es­cola para que o homem aprenda a piedade e dela pas­se para a vida eterna e perfeita felicidade.

Deus nunca se mostrou propício na antiguidade aos homens, sem que lhes concedesse esperança e gra­ça sem medida. Os sacrifícios da lei ensinavam clara­mente que a salvação seria pela expiação completa do sacrifício de Cristo. Embora Deus inclua Abraão e a sua posteridade no pacto, Paulo nos mostra que Cris­to é a verdadeira semente de Abraão, por meio da qual todas as famílias da terra seriam abençoadas ■— “Ora, as promessas foram feitas a Abraão e ao seu descendente. Não diz: E aos descendentes, como fa­lando de muitos, porém de um só: E ao teu descen­dente, que é Cristo” (G1 3.16).

Deus quis que uma imagem de Cristo fosse vista em Davi e sua posteridade. Quando o seu reino foi dividido pela revolta das dez tribos, o pacto feito por Deus com Davi e seus sucessores permaneceu de pé, como declara o profeta: “Porém não tomarei da sua mão o reino todo; pelo contrário, fá-lo-ei príncipe por todos os dias da sua vida, por amor de Davi, meu servo, a quem elegi, porque guardou os meus man­damentos e meus estatutos” (1 Rs 11.34). A súmula é que Davi, excluindo todos os outros, foi escolhido pa­ra ser a pessoa em quem o bom prazer do Senhor ha­bitaria. Claro está que Deus não podendo ser propício à raça humana sem o Mediador, Cristo, este era sem­pre apresentado aos santos pais quando estavam de­baixo da lei, como objeto de fé. Assim, nos dias de aflição o conforto prometido, especialmente, quando se tratava do livramènto da igreja, era Cristo. Haba- cuque 3.13 afirma: “Tu saíste para a salvação do teu povo, para salvar o teu ungido”. Todos os profetas pro­curavam mostrar que Deus era complacente; apresen­

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tavam o rei Davi como aquele de quem a salvação é redenção eterna dependia; familiarizando, assim, os ju­deus com as profecias, tendo em vista ensinar-lhes que, na busca do livramento, os seus olhos deviam estar voltados para Cristo. Quando o apóstolo São Paulo, em Colossenses 1.15, chama a Jesus a imagem do Deus in­visível, é para nos lembrar que se queremos ter co­nhecimento da nossa salvação, devemos olhar para Deus em Cristo.

Todo o sistema da religião dada por Moisés apon­tava para Cristo, em muitos aspectos, os repetidos sar crifícios e abluções, as cerimônias exemplificavam isso. A lei nos declara inescusáveis, a fim de nos impelir à busca do perdão; transcendendo à nossa capacidade de cumprí-la, leva-nos a olhar para as promessas dis­tantes.

Se, de um lado, produz em nós confusão e desâ­nimo, ao mesmo tempo, aponta para as bênçãos reser­vadas aos que a obedecem. De um lado, exibindo a jus­tiça de Deus, de cutro lado, condenando e impelindo o homem a confessar a sua fraqueza e impiedade. A lei, nesse caso, era como espelho, onde se descobria a mancha do nosso rosto —■ a nossa incapacidade, iniqüidade e, finalmente, condenação.

Agostinho, em muitos pontos, nos mostra a utili­dade da lei para nos levar à busca da assistência di­vina. São Paulo diz que a lei foi um pedagogo para nos conduzir a Cristo (G1 3.24). Assim a lei tinha co­mo principal utilidade, no que diz respeito ao crente, avançar-nos no conhecimento de Deus e informar-nos nesse conhecimento.

Quando o apóstolo São Paulo fala da obrigação da lei, issto aplica-se não à lei em si mesma, mas, ao seu poder para constranger a consciência; porque a lei não somente ensina, mas exige obediência. Çristo, para nos redimir da maldição da lei, fez-se maldição por nós, como está escrito: "Porque o que foi pen­durado no madeiro é maldito de Deus” (Dt 21.23). Es­sa passagem deve ser comparada com Gálatas 3.13 e Gálatas 4.4,5, em que o apóstolo São Paulo declara que

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Cristo se colocou debaixo da lei para redimir os que antes do advento de Cristo, que, ainda que abolisse o seu uso, selou a sua força e efeito com a própria morte.

Os país antigos viram debaixo da lei o dia de Cris­to, obscuramente, pois a perfeita luz só veio com o evangelho, conforme o testemunho de Cristo e dos apóstolos. O termo evangelho significa não somente a visão, pois a fé é apenas a visão que nós como pere­grinos temos; por isso, concluímos que a fé é uma prova da misericórdia de Deus concedida aos pais, aos patriarcas, mas propriamente significa promulgação da graça, manifesta em Jesus Cristo, o Deus-Homem. Ne­le possuímos todas as perfeições da vida celestial em bora os ritos legais cessem de ser obervados, eles ser­vem para mostrar claramente a sua grande utilidade pois, Cristo, pela sua vinda, pôs fim a esse uso. Em- foi abolido, não no efeito, mas no seu uso somente, estão debaixo da lei.

Com respeito ao aspecto cerimonial da lei, este previsão —■ "Temos, portanto, sempre bom ânimo, sa­bendo que, enquanto estamos no corpo, estamos au­sentes do Senhor; vistoq ue andamos por fé e não por visão”, (2 Co 6.7).

A epístola aos Hebreus, capítulo 11, versículo 1, nos diz que a fé é a prova das coisas que não vemos. Os evangelhos apontam com o dedo a lei, quando esta ensinava em sombra, por tipos. Quando Jesus disse que a lei e os profetas duram até João, não está condenan­do os patriarcas como escravos da lei, da qual não podiam escapar; mas está dizendo que eles estavam apenas imbuídos dos rudimentos da lei, num nível in­ferior à doutrina do evangelho.

João Batista permanece entre a lei e o evangelho, exercendo um ofício intermediário entre ambos; pois, embora nos dê um sincero evangelho quando anuncia Cristo, dizendo: “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”, todavia, como ele não pode des­vendar o poder incomparável e a glória da ressurrei­

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ção, Jesus disse que ele não era igual aos apóstolos. “Entre os nascidos de mulher não há nenhum maior do que João Batista, mas o menor do reino dos céus é maior do que ele (Lc 7.28).

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OFÍCIOS DE CRISTO - PROFETA, SACERDOTE, RE!

Os ofícios do Redentor que Cristo recebeu do Pai consistem de três partes: Profeta, Sacerdote e Rei. Observe-se que o nome Cristo se refere a esses ofí­cios.

Sabemos que, segundo a lei, os profetas, reis e sa­cerdotes eram ungidos com óleo santo. Daí o nome Messias, dado ao Redentor. Isaías menciona claramen­te a unção de Cristo: “O espírito do Senhor está so­bre mim, porque o Senhor me ungiu, para pregar boas novas aos quebrantados..." (Is 61.1). Ele foi ungido pelo Espírito, para ser testemunha e mensageiro da graça do seu Pai; não de maneira comum, mas dis­tinta dos outros mestres que tiveram o mesmo ofício.

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A unção que recebeu foi para o seu corpo todo, não para si mesmo, para que a correspondente eficácia do Espírito acompanhasse a pregação do evangelho. Pela perfeição da doutrina que Ele trouxe pôs fim a toda profecia.

O propósito da dignidade profética de Cristo é en- todas as suas partes.- A afirmação de Paulo em 1 Co- ríntios 1.30 é que Ele se tomou da parte de Deus sa­bedoria, justiça, santificação e redenção. E, ainda mais, que nEle estão escondidos todos os tesouros da sa­bedoria e do conhecimento, dando a entender, que fora dEle, não há nada digno de se saber e que aqueles que pela fé apreenderam o seu verdadeiro caráter pos­suem ilimitada medida das bênçãos celestiais; por isso mesmo também diz: “Resolvi não saber nenhuma coi­sa mais a não ser Jesus, e este crucificado”, (1 Co 2.2 ).

Rei. Com respeito ao ofício de Rei, é de natureza espiritual, sua eficácia e os benefícios que confere, e o seu poder interno, é de eternidade em eternidade, os quais o anjo, em Daniel, atribui a Cristo — Daniel 2.44 “Mas o Deus dos céus suscitará um reino que não será jamais destruído”. Em Lucas 1.33 o anjo afirma a Maria “que Ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó e o seu reino não terá fim”. Isso garante a per- petuidade da Igreja, porque se assenta nos céus e re­pele os assaltos que contra ela venham — Salmo 2.2-4 e Salmo 110.1. Daí, Satanás, com todo o seu poder, não poderá destruir a Igreja, que se funda sobre o trono de Cristo.

Para sustentar a nossa esperança, Ele declara que o seu reino não é deste mundo, e, assim, alimenta-nos a esperança de uma vida melhor. Desse modo, a fe­licidade que nos é prometida no reino celestial não é de coisas materiais, mas celestes. E, para orientar aqueles que são inclinados às coisas da terra, Ele mes­mo diz: “O reino de Deus é. justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14.17). Assim, Ele nos confere uma esperança na vida eterna, para que vivamos pia­

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mente na presente vida em meio aos trabalhos; firmes» sem desesperar, sabendo que as dificuldades se cons­tituem na certeza de que nosso rei não nos abando­nará, mas suprirá tudo o de que precisamos, até que termine a nossa luta e sejamos convocados ao triun­fo.

A unção de Cristo não é com óleo e perfume, mas, como Ele é chamado o ungido de Deus, o Espírito do Senhor está sobre Ele, que é espírito de sabedoria e entendimento. Daí dizer-se que o reino de Deus con­siste em espírito.

Um símbolo visível da graça se fez presente no ba­tismo de Jesus quando o Espírito sobre Ele repousou em forma de uma pomba. Deus concedeu-lhe a unção do Espírito.

Somos chamados cristãos, porque permanecemos invencíveis na força de nosso rei e nas suas riquezas espirituais, que sobre nós abundam e pelas quais o Es­pírito nos dá vigor e força. Com razão, Jesus é cha­mado Senhor, Juiz e Legislador em Isaías 33.22, “Por­que o Senhor é nosso juiz; o Senhor é nosso legisla­dor; o Senhor é nosso rei; Ele nos salvará”. Devemos, pois, com alegria a Ele obedecer.

Sacerdote. Com respeito ao sacerdote, dizemos: Desde que o Mediador deve ser livre de toda mancha, para buscar por nós o favor de Deus por sua própria santidade, os sacerdotes antigos precisavam apresen­tar sacrifícios por si mesmos. Segundo a lei, o sacer­dote era proibido de entrar no santuário, sem expia- ção de pecados. A epístola aos Hebreus, a partir do capítulo 7 até o capítulo 10, trata longamente do as­sunto.

O sacerdote, purificado da sua impureza, santifi- ca-nos e obtém-nos o favor que a impureza das nossas vidas e corações não nos permite ter. O começo dessa intercessão foi com sua morte. Ele é o nosso perfeito intercessor, pelo qual temos confiança de apresentar a nossa oração a Deus, pois que Ele, somente Ele, nos reconcilia com Deus e torna o Pai propício a nós, admi­tindo-nos na mais honrosa aliança. Daí o erro do sa­

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crifício diário da missa que representa a morte diá*> ria de Cristo.

No seu tratado dirigido à Faculdade de Teologia de Paris, Calvino trata do sacramento da Ceia do Se­nhor e diz que no sistema papal Cristo é roubado da honra do seu sacerdócio, quando o direito de oferecer é transferido a outro. Ninguém deve assumir essa hon­ra com que Jesus foi chamado por Deus o Ungido par ra testificar. Não lemos de ninguém que tenha sido chamado por Cristo para isso.16

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CRISTO - O MEDIADOR

O Mediador devia ser verdadeiro Deus e verdadei­ro homem; não por uma necessidade simples ou abso­luta, mas de acordo com o decreto divino, do qual a salvação do homem depende. O que era melhor para nós Nosso Pai misericordioso determinou. As nossas iniqüidades se colocavam como uma nuvem entre nós e Ele, alienando-nos do reino dos céus; de modo que o Mediador, para restaurar a nossa paz com Ele (Deus), devia ser uma pessoa capaz de se aproximar dEle. Nenhum filho de Adão poderia fazer isso, uma vez que todos estavam encobertos da vista de Deus. Nem mesmo os anjos, pois era necessário que fosse um cabeça, aos homens ligado inteira e inseparavel- mente. A condição do homem era, portanto, desespe-

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radora, não tivesse Deus descido até nós, já que nós nunca poderíamos subir a Ele.

O Filho de Deus se dispôs a tornar-se Emanuel — Deus conosco — e, desse modo, unir a sua divindade à nossa natureza para ser nosso representantes. Mes­mo que o homem tivesse permanecido livre de qual» quer mancha, na sua condição era por demais humil­de para apresentar-se a Deus, sem um Mediador. Não é sem razão que o apóstolo declara distintamente: “Só há um Mediador entre Deus e o Homem, Jesus Cris­to — o Homem” (1 Tm 2.5).

Paulo não deixa de chamá-lo de Deus e nem de chamá-lo de Homem. Em Hebreus 4.14, 15, o Espírito ainda indica que ele é um sumo sacerdote, que não só passou pelos sofrimentos da nossa enfermidade, mas que em tudo foi tentado como nós, sem peca­do. Isso se torna mais claro ainda, se pensarmos que o Mediador não apenas divia restaurar a nós o favor divino, mas mudar a nossa condição de filhos do ho­mem para filhos de Deus. Daí aquela santa fraternida­de que Ele mesmo nos atribui, quando afirma: “Eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (Jo 20.17). Temos aí a certeza da nossa heran­ça no reino dos céus, pois um único herdeiro, o único Filho de Deus, nos adotou como irmãos; se somos irmãos, somos participantes com Ele na herança. Ro­manos 8.17: “Ora se somos filhos, somos também her­deiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo”. Daí percebemos a necessidade de que o Mediador fos­se verdadeiramente Deus e homem.

Quem poderia tragar a morte senão a vida? Quem poderia vencer o pecado, senão a própria justiça?

Um outro aspecto da nossa reconciliação com Deus é que o homem, que se perdeu pela desobediên­cia, repara a sua falta pela obediência, satisfazendo a justiça, pagando a pena. Como Deus somente, Jesus não poderia sofrer. Como homem somente, não po­deria vencer a morte; unido a natureza humana à di­vina, Ele se sujeitou à fraqueza de uma para a morte

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e expiação do pecado; pelo poder da outra, susten­tou a luta com a morte para ganhar a vitória.

O Redentor devia ser filho de Abraão e de Davi, conforme Deus prometera na sua lei e nos profetas. De modo que esta condição foi satisfeita perfeitamen­te por Cristo, como se pode verificar, traçando a sua origem até Davi e Abraão.

Desde a antigüidade, mesmo antes da lei ser pro­mulgada, o Mediador prometido devia intervir com sangue; pois que Deus, no seu eterno conselho, deter­minou que a impureza do homem fosse purificada com o derramamento de sangue, símbolo da expiação. As­sim também os profetas anunciaram o Mediador en­tre Deus e os homens, como Isaías 53.4,5: “Certamen­te Ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si; nós o reputávamos por aflito e ferido de Deus. Mas Ele foi traspassado pe­las nossas transgressões, e moído pelas nossas iniqui- dades; o castigo que nos traz a paz estava sobre Ele e pelas suas pisaduras fomos sarados”.

João, antes de ensinar que o verbo se fez carne, fala da queda do homem (Jo 1.9). Ouçamos Nosso Se­nhor mesmo, quando fala do seu ofício: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho Uni- gênito para que todo que nele crê, não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16). E ainda mais: “o Pi­lho do homem veio buscar e salvar o que se havia perdido” (Mt 18.11) E o apóstolo nos conduz a essa fonte, Hebreus 5.1 e 2 Coríntios 5.19 — “Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o m undo...”. E, ainda, em Romanos 8.3: “Portanto, o que foi impos­sível à lei, no que estava enferma pela carne, isso fez Deus, enviando o seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa e no tocante ao pecado; com efeito, condenou Deus na carne, o pecado”. Na epístola a Ti- to (2.11) diz: "A graça de Deus se manifestou, trazen­do salvação a todos os homens". Em Efésios 1.4-7 falao apóstolo do mesmo assunto, dizendo: “No qual te­mos a redenção pelo seu sangue, a remissão dos pe­cados, segundo a riqueza da sua graça” Em Gálatas

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4.4,5 afirma: “Vindo a plenitude dos tempos, Deus en­viou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, afim de que recebêssemos a adoção de filhos”.

Refuta Calvino os maniqueístas e marcionitas, tra­zendo prova da perfeita humanidade de Cristo. Os ma- niqueistas afirmavam que Jesus fora revestido de uma carne celestial. Os marcionitas diziam que a aparên­cia material de Jesus era um fantasma e não uma rea­lidade. Cita Calvino, com abundância, as passagens qüe tratam do assunto e que estabelecem a perfeita humanidade de Cristo, combatendo tanto uma como a outra idéia.

Agostinho disse, nesse particular, que a bênção prometida a Abraão não foi de uma semente celes­tial com a máscara de homem, mas semente de Abraão e de Jacó. Nem foi prometido um homem do espaço, um ser especial, mas um filho de Davi, saído dos seus lombos.

São Paulo afirma, em Romanos 9.5 e em Gálatas 4.4, que Cristo é descendente dos patriarcas, segun­do a carne, e que ele é nascido de mulher, sob a lei. Em Hebreus 2.14-17, claramente se fala da natureza humana de Jesus, dizendo que convinha que Ele fos­se semelhante aos irmãos para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus.

As duas naturezas constituem a pessoa do Media­dor. Quando se diz que o Verbo se fez carne, não se deve entender que Ele se tivesse mudado para carne, ou confusamente se misturasse com a carne, mas que Ele escolhe o ventre da Virgem Maria como templo que Ele pudesse habitar. Aquele que era o Filho de Deus se fez Filho do Homem, não por confusão de substância, mas por unidade de pessoa.

A divindade e a humanidade e as propriedades de cada natureza se mantiveram intactas, contudo, as duas naturezas constituíram um só Cristo. Oferece Calvino a analogia da alma e corpo, os quais, possuin­do natureza própria, se unem para formar uma só pes­soa, embora as propriedades de ambas sejam limita­

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das uma pela outra, no entanto, formam um só ho­mem.

As Escrituras, às vezes, se referem à qualidade que se atribuem à humanidade de Cristo especial­mente; ou a sua divindade em outras ocasiões; em outros casos as qualidades que envolvem ambas as naturezas. Esta combinação de duas naturezas em Cristo é expressa tão cuidadosamente que, às vezes, se comunicam uma a outra, o que os antigos denomi* navam, comunicação de propriedades. São as passa­gens das Escrituras, em grande número, sobre esse assunto que dão validade à explicação acima inseri­da. Jesus mesmo disse: “Antes de Abraão eu sou” (Jo 13.50). Pualo a Ele se refere como primogênito de toda a criação (Cl 1.15,17). Há uma comunicação de propriedades a que o apóstolo São Paulo se refere, quando declara: “A Igreja que Deus comprou com o seu próprio sangue” (At 20.28). E, ainda: “Jesus cru­cificado, Senhor da Glória” ( 1 Co 2 .8 ) e João, na sua primeira epístola (3.16), diz: “Deus deu a sua pró­pria vida”. Et ainda, no Evangelho de São João (3.13), Jesus mesmo diz que ninguém subiu ao céu senão o Filho do Homem.

Acima de tudo, a verdadeira substância de Cristo se encontra mais claramente expressa em passagens que compreendem ambas as naturezas no Evangelho de João. Jesus declara que recebeu poder do Pai pa­ra perdoar pecados. Nesse mesmo sentido entende-se1 Coríntios 15.24, quando se diz que Cristo entregará o Reino a Deus e Pai, quando tiver destruído toda a potestade e poder. Em Filipenses 2.8, o apóstolo São Paulo fala que Ele, Jesus, pôs todas as insígnias da sua majestade de lado, tornando-se obediente ao Pai e depois foi exaltado e coroado de glória pelo mes­mo Pai.

Combate Calvino a heresia de Nestorius, que procura dissecar, por assim dizer, as duas naturezas de Cristo, criando, como disse Calvino, um duplo Cris> to. Por outro lado» combate Servetus, porquanto, se­gundo a sua teoria, o Filho de Deus foi substituído por algo composto da essência de Deus, Espírito» car­

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ne, e três elementos não criados. Nega que Cristo se­ja o Filho de Deus, pela simples razão de ter sido gerado pelo Espírito Santo no ventre da virgem Ma­ria.

Sustenta Calvino a doutrina da Igreja, pela qual o Mediador, nascido de uma virgem, é realmente o Fi­lho de Deus por uma união hipostática (termo usado pelos escritores antigos para expressar a união pela qual as duas naturezas constituem uma só pessoa).

Com respeito à filiação, Cristo é chamado Filho na sua natureza humana, não como os crentes, os quais o são por mera e gratuita adoção. Ele, porém, o é, por natureza, veraadeiro e único Filho. O nome do Primogênito pertence a Cristo somente, mas ele é fi­lho em meio à multidão de irmãos, Ele o é por natu­reza o que adquirimos por dádiva.

Conclui Calvino, dizendo que o Verdadeiro Re­dentor que temos é aquele que, sendo gerado da se­mente de Abraão e Davi, segundo a carne, se tornou verdadeiro homem.

Vale a pena ver como Calvino prega a doutrina que formulou nas suas Institutas. É assim que, no seu sermão sobre a Paixão de Cristo, referindo-se à cena em que Jesus está diante de Pilatos, !diz: “Desde que Ele ali se pôs de pé, saibamos que suportou a nossa condenação e foi julgado para jus­tificar não a si mesmo, sabendo bem que devia ser condenado, na verdade, em nossa pessoa. Pois, embo­ra sem mácula, nem culpa, Ele levou sobre si todo o nosso pecado. Não nos admiremos de que Ele aí se pusesse de pé como se tivesse sido condenado, pois, doutro modo, não poderia ter cumprido o ofício de Mediador; aceitando a sentença, confessou que por nossa pessoa Ele merecia ser condenado. . . É isso que o silêncio de Nosso Senhor subentende — para que hoje possamos clamar a Deus com todas as forças da nossa voz» pedindo que todos os nossos vícios e ofen­sas sejam perdoados” .17

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COMO CRISTO REALIZOU 0 OFÍCIO DE REDENTOR

Uma vez que estamos condenados à morte e per- didoà, temos que procurar em Cristo a nossa justiça. Pedro diz em Atos 4.12: “E não há salvação em ne­nhum outro; porque abaixo dos céus não existe ne­nhum outro nome dado entre os homens pelo qual sejamos salvos”. O nome Jesus lhe foi dado não por acaso, ou fortuitamente, ou por vontade de homens, mas foi-lhe trazido dos céus, pelo anjo, o mensageiro do decreto supremo; a razão também sendo apresen­tada: “E lhe porás o nome de Jesus, porque Ele sal­vará o seu povo dos pecados deles” (Mt 1.21).

A Ele foi dado o ofício de Redentor, para que pudesse ser o nosso Salvador. Deus era nosso inimi­go, até que foi reconciliado conosco por Cristo. A Bí­

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blia utiliza modo de expressar, condicionando a nos­sa capacidade, para que possamos entender melhor os mistérios de Cristo. Em Romanos 5.10, encontra­mos: “Porque se nós, quando inimigos, fomos recon­ciliados com Deus, mediante a morte de seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida”. Deus era nosso inimigo até que Cris­to com Ele nos reconciliasse. Em Gálatas 3.10-13 en­contramos: “Todos quantos, pois, são das obras da lei, estão debaixo de maldição; porque está escrito: Mal­dito todo aquele que não permanece em todas as coi­sas escritas no livro da lei, para praticá-las”, e tam­bém; “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazen­do-se maldição em nosso lugar, porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro”.

Como é que Cristo aboliu o pecado e desfez a ini­mizade entre Deus e nós, e cumpriu por nós a justú- ça, de modo a fazê-lo favorável a nós? Pelo inteiro cur­so da sua obediência. Paulo isso mesmo declara em Romanos 5.19 e Gálatas 4.4,5. Ele mesmo deu a sua vida em resgate de muitos, Mateus 20.28. Cristo não poderia devidamente propiciar a Deus sem abrir mão de seus próprios sentimentos e sujeitar-se à vontade do Pai, Hebreus 10.5 e Gálatas 6.7. O resgate tinha que ser feito com um certo tipo de morte, apresenta­do diante de um tribunal que ouvia testemunhas e o condenava como um que cometeu transgressões, Isaías 53.10. De modo que Ele suportou, não como inocente, mas como culpado, Mateus 27.24-26, Pilatos o condenou como criminoso, no entanto, declarou que Ele era inocente. A culpa que nos fez passíveis de con­denação caiu sobre Ele — sobre a cabeça do Filho. A morte foi a morte de cruz, pois a cruz era maldi­ta, não somente na opinião dos homens, mas por de­claração da lei divina. Ele pôs a sua alma por expia­ção, diz a Bíblia:' “Aquele que não conheceu pecado fez-se pecado por nós, para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2 co 5.21). O Filho de Deus, não obstante, puro e sem mancha, tomou sobre si as

nossas iniqüidades e nos revestiu de pureza — “Con­

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denando o pecado na carne” (Em 8.3).Paulo exalta o triunfo da cruz, como se aquilo

que era tido como maldição se transformasse em glória.

“Foi morto e sepultado” diz o Credo — para que pela morte pudesse destruir aquele que tinha o poder da morte, a saber, o diabo; e livrar aqueles que, com medo da morte, estavam por toda a vida sujeitos à escravidão, Hebreus 2.14,15. A expressão “desceu ao inferno” encontrada no Credo Apostólico tem várias interpretações. Calvino rejeita a interpretação de que “desceu ao inferno” seja o mesmo que “foi sepultado”, o que seria uma tautologia inútil. Outros pensam que Ele foi anunciar a sua obra aos patriarcas que morre­ram sob o domínio da lei e tirá-los da prisão — “Um­bus”, uma invenção inadmissível. Admite Calvino que Cristo possa ter ido mostrar a eles a graça para a qual não tiveram percepção, pois não tinha sido ain­da manifesta. Aí talvez se aplique a passagem de Pe­dro, quando diz que “foi e pregou aos espíritos em prisão”, 1 Pedro 3.11. A finalidade do contexto é afir­mar que aqueles que morreram antes desse tempo eram, contudo, pela fé participantes da mesma graça de que nós somos.

Nada impede, pensa Calvino, que Jesus pudesse ter descido ao inferno e experimentasse bem de perto os podres do inferno e os horrores da morte eterna, já que Ele passou por tão grandes castigos em nosso lugar: “O castigo que nos traz a paz estava sobre Ele”.

Tratando da ressurreição de Cristo, Pedro afirma que Deus ressuscitou a Jesus Cristo, tendo soltas as peias da morte, porque não era possível que fosse re­tido por ela, Atos 2.24. Embora na sua morte tenha ele efetuado uma completa salvação, porque por ela fomos reconciliados com Deus — Satisfação dada à sua justiça, e maldição removida, a pena paga, con­tudo, não é pela morte, mas pela ressurreição, pois que se diz que fomos gerados de novo para a vida eterna —• 1 Pedro 1.3. Ressuscitando, tornou-se ven­

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cedor da morte, assim, a vitória da nossa fé consiste na ressurreição.

Paulo afirma: “Jesus, nosso Senhor, o qual foi entregue por causa das nossas transgressões e ressus­citou por causa da nossa jutificação” (Em 4.25). A nossa salvação é assim dividida entre a morte e a ressurreição — Pela primeira, o pecado foi abolido e a morte conquistada; pela última, a justiça foi res­taurada, a vida revivida e o poder e a eficácia da pri­meira concedida a nós pela segunda, 2 Coríntios 13.4.

A ressurreição de Jesus é seguida pela ascenção, o que nos concita a uma novidade de vida, Colossen- ses 3.1. Pela sua ascenção começa o seu reino, Efé- sios 4.10. Ele retirou o seu corpo da nossa vista, não para cessar de estar conosco, que somos peregrinos na terra, mas para que possa governar mais direta­mente os céus e a terra pelo seu poder. O Credo diz: “Assentou-se à mão direita de Deus”. É uma figura tirada dos príncipes, os quais têm assessores e con- fereni-lhes o ofício de governar, dando as suas or­dens. Os apóstolos se referem a isto, dizendo que Ele está à mão direita de Deus. Dessa doutrina a fé de­riva muitas bênçãos: primeiro, percebe que o Filho abriu a porta que Adão tinha fechado nos céus; pois. Ele mesmo ali entrou na nossa carne; segundo, tendo entrado no templo não feito por mãos, Ele é o nosso advogado, intercessor perante o Pai; terceiro, discer­ne o seu poder do qual depende a nossa força, os nos­sos recursos e o nosso triunfo sobre o inferno. “De onde há de vir julgar os vivos e os mortos”.

É objeto da mais alta consolação saber que o julgamento está na mão daquele que já nos destinou a nossa parte com Ele na hora desse julgamento, Ma­teus 9.28. Cristo, o intercessor, não nos condenará, Romanos 8.33. Aquele que no evangelho nos prome­teu eterna bemaventurança como juiz a ratificará. Em Cristo é que estão todas as bênçãos: A salvação, os dons do espírito, a força, a pureza e a indulgência. Encontramos força no seu governo; pureza na sua concepção; indulgência na sua natividade; redenção

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na sua paixão; livramento na sua condenação; remis­são na maldição da cruz; satisfação no seu sacrifício; purificação no seu sangue; imortalidade na sua res­surreição.

Cristo não é apenas ministro, mas o autor e prín­cipe da nossa salvação, João 3.16. Cristo, pela sua obediência, comprou e mereceu graça para nós com o Pai, conforme as Escrituras. Temos purificação pelo seu sangue na sua morte expiatória. O seu sangue nos purifica de todo o pecado, João 1.7. Os apósto­los claramente afirmam que Ele pagou o preço do nosso resgate por nós, pela morte na cruz, Romanos 3.24,25 e Pedro 1.18,19. Paulo nos diz que fomos com­prados por preço, Timóteo 2.5,6, temos redenção atra­vés do seu sangue. Ele completou perfeitamente o que o profeta Isaías disse, em figura, da parte de Deus: “Defenderei essa cidade para salvá-la por amor de meu próprio nome”, Isaías 37.35. E o apóstolo tes­temunha: “Por amor do seu nome os nossos pecados foram perdoados” (1 João 2.12), como também diz Paulo em Filipenses 1.29: “Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo, não somente crer nele".

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PROVIDÊNCIA

Rejeita Calvino a idéia daqueles que, embora acei­tando Deus como criador do Universo, entendem que ele é quanto muito uma agência geral que responde pela sustentação do mundo, infundindo nesse univer­so uma energia inicial apenas. Diríamos que Calvino rejeita a tese deísta, de um criador que, tendo feito o mundo, o deixasse só no desempenho do seu papel. O crente, diz Calvino, vai mais além, sabendo que Deus é o Criador e também o Governador e Preser- vador de tudo; Ele mesmo fez, sustenta, superintende todas as coisas e por elas se interessa — até mesmo as coisas mínimas como um pardal. Cita Davi, no Salmo 33.6, quando diz: "Os céus por sua palavra se fizeram e pelo sopro da sua boca o exército deles”.

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A providência divina, conforme as Escrituras nos ensinam, se opõe “à sorte”, ou a causas fortuitas, uma idéia que se tem perpetrado em todos os tempos de que tudo acontece por acaso. Essa idéia obscurece a verdadeira doutrina da providência. Aponta exemplos de acontecimentos que afetam a vida do homem, os quais têm sido atribuídos à sorte ou acaso. Se al­guém se vê entre ladrões ou feras, ou se um vento inesperado e violento causa naufrágio de um barco no mar, »3 U alguém é vítima de uma casa ou uma ár­vore que cai, ou, andando- perdido pelo deserto, en­contra livramento, ou, depois de batido pelas ondas, chega ao porto, escapando da morte como por um fio' de cabelo —- tudo isso se atribui à sorte ou à for­tuna.--Aquele, porém, que aprendeu da boca de Cristo que todos os cabelos da sua cabeça estão contados (Mt 10.30), buscará outra causa e sustentará que to­dos os acontecimentos são governados pelo secreto conselho de Deus.

Com respeito aos objetos inanimados, são meros instrumentos de Deus aos quais Deus infunde ener­gia para atender aos propósitos da sua vontade. Lem­bra as estações do ano e outros fenômenos da natu­reza nesse contexto. Assim, Deus não é um Deus iner­te, como querem os epicuristas.

Outros pensam que Deus governa as regiões su­periores, deixando as inferiores ao acaso, o que tam­bém é errado. Hebreus 1.3 afirma que todas as coi­sas são sustentadas pela palavra do seu poder e Pau­la em Atos 17.28 afirma a respeito de Deus: “Pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos”. De mo­do que Calvino não crê apefaas numa providência ge­ral, contínua, na ordem da natureza, extensiva a to­das as criaturas, mas crê também que Deus pelo seu conselho maravilhoso, adapta as coisas aos seus pro­pósitos especiais.

Calvino rejeita a sorte ou o fado, e, como São Pau­lo declara em 1 Timóteo 6.20, prefere evitar falatórios inúteis e profanos e as contradições do falso saber e aceitar a verdade de Deus. Devemos submeter-nos a

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sua autoridade, considerando a vontade de Deus a única regra de justiça e a mais perfeita causa de to­das as coisas. Não aquela vontade absoluta que se­para a justiça do seu poder, mas a providência no go­verno geral e universal, da qual nada provém que não seja certo, embora as suas razões possam ser ocul­tas a nós. ao invés de aceitar o fatalismo dos pagãos, que acham que Deus quis e deve ser feito, o crente procura saber a vontade de Deus, inquirindo das Es­crituras, e pela direção do Espírito buscará alcançá- la. Observa-se o lugar da oração nesse contexto, opon­do-se à idéia dos que negam o seu valor, alegando que tudo já está determinado. Salomão reconhecia a providência divina, juntamente com a deliberação hu­mana, quando disse em Provérbios 16.9 — “O cora­ção do homem traça o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os passos”. Deus dotou o homem com a capacidade de deliberação, de precaução, para que as possa empregar em obediência a sua providência e na preservação da vida. Pergunta-se: São os ladrões, assassinos, malfeitores, instrumentos da providência divina? Responde-se: Deus pode executar os seus jul­gamentos, utilizando-os para inflingir castigo noutros, mas isso de modo nenhum os excusa pelos seus maus atos.

A providência especial vigia pela salvação dos crentes e os alenta com inumeráveis promessas: “Lan­ça a tua carga sobre o Senhor e Ele te susterá”, e ainda: “Lançando sobre Ele toda a vossa solicitude, pois Ele tem cuidado de vós", ainda mais: “Pode uma mulher esquecer-se do filho que amamenta a ponto de não se compadecer dele, do filho do seu ventre? Ainda que ela se esquecesse, eu não esquecerei de ti”. “Aquele que te tocar toca na menina dos meus olhos". Daí, o propósito principal dos livros históri­cos da Bíblia é mostrar que os caminhos dos seus santos são guardados pelo Senhor. Deus não somente deu favor ao seu povo aos olhos dos egípcios (Ex 2.21), mas também derrota a malícia dos inimigos.

Para o bem e segurança dos seus filhos, Ele go­

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verna todas as criaturas, até mesmo o diabo, que não ousou nada contra Jó, além daquilo que Deus lhe per­mitiu. Daí, tudo aquilo que nos faz prosperar deve­mos atribuir a Deus inteiramente. Se algo adverso nos acontece, devemos levantar nossas mãos para Deus para que Ele nos dê paciência e serena mode­ração .

Com respeito ao arrependimento atribuído a Deus, conforme a linguagem bíblica, Calvino explica que é uma maneira figurativa empregada para se acomodar ao nosso entendimento limitado. Deus é imutável e a sua constância é atestada até pelos inimigos. A pro­fecia de Jonas sobre Nínive, e o arrependimento da cidade, explica-se em que a profecia foi feita exata­mente com o propósito de levar a cidade ao arrepen­dimento .

INSTRUMENTALIDADE DOS ÍMPIOSUTILIZADA POR DEUSO fato de Deus utilizar o ímpio para exercer sua

justiça, como vimos atrás, não macula a sua santida­de, desde que Deus subordina os reprovados, e até mesmo Satanás, segundo os seus objetivos.

Lembra Calvino a distinção feita entre jazer e permitir com respeito à ação do homem mau no mun­do e Satanás. Jó compreendeu que a ação de Deus estava presente quando foi afligido por Satanás atra­vés de homens maus que lançaram mão de suas pro­priedades: “O Senhor o deu, o Senhor o tirou, bendito seja o nome do Senhor”.

Deus foi o autor da aflição na qual aqueles ho­mens maus foram instrumento. De modo que, qual­quer coisa que Satanás ou os homens ímpios propõem fazer, Deus levanta o seu cetro e faz com que o re sultado contribua para o seu julgamento Pilatos e os soldados romanos foram subservientes à fúria dos ju­deus para destruir Jesus, todavia, os discípulos con­fessaram em oração solene que os ímpios nada mais fizeram do que aquilo que a mão e o conselho de Deus tinha decretado, Atos 4.28 — “Para fazerem tudo que

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a tua mão e o teu propósito determinaram”; ainda em Atos 3.18 — "Mas Deus assim cumpriu o que dan­tes anunciara por boca dos profetas que o seu Cristo havia de padecer”.

Resume Calvino, dizendo: “Desde que a vontade de Deus é a causa de todas as coisas, todos os con­selhos e ações dos homens devem ser governados pe­la sua providência, de modo que Ele não só exerce seu poder sobre os eleitos, os quais são guiados pelo Espírito Santo, mas também faz com que os repro­vados cumpram o seu serviço”.

Pergunta-se: Se os ímpios fazem a vontade de Deus, não são eles condenados injustamente? Aqui Calvino faz uma outra distinção entre vontade e pre­ceito, que muitos confundem. Quando Absalão profa­nou o leito do seu pai, praticando incesto, embora Deus quisesse castigar o adultério de Davi, não orde­nou a seu filho mau que praticasse incesto. Deus rea­lizou a sua vontade, castigando Davi, mas não deu preceito a Absalão para que praticasse o ato de in­cesto .

Veja-se o caso de Simei, que amaldiçoou Davi; es­te mesmo confessa que Simei agiu segundo a vontade de Deus, contudo, Deus não ordenou a Simei o fazer.

Enquanto por meio dos ímpios Deus realiza o que secretamente decretou, não são eles escusados, como se estivessem obedecendo ao seu preceito, pois que na verdade estavam quebrando a sua lei.

Procura Calvino mostrar como um mesmo ato que trai o homem culpado evidencia a justiça divi­na. Cita Agostinho, quando se refere ao caso da trai­ção de Judas, e assim se expressa: Desde que o Pai entregou o filho, e Cristo o seu próprio corpo, e Judas o seu Mestre, como em tal caso Deus é justo e o ho­mem é culpado num ato único, pois as razões pelas quais agiram eram diferentes.

Calvino tem sempre uma nota de humildade quan­do trata de um assunto tão difícil como esse: “Se não fosse útil, não teria Deus ordenado aos apóstolos e

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profetas que a ensinassem (essa matéria). A nossa Verdadeira sabedoria consiste em abraçar, com huí- müdade e sem reserva, o que as Escrituras nos têm revelado”.

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REGENERAÇÃO PELA FÉ ARREPENDIMENTO

A súmula do evangelho consiste no arrependimen­to e perdão dos pecados. Onde estes dois títulos fo­rem omitidos qualquer discussão com respeito a fé será fraca, defeituosa, na verdade, quase inútil. Pri­meiro, Cristo e João Batista exortaram o povo ao ar­rependimento e, depois, acrescentaram — “Porque o reino dos céus está próximo”, Mateus 3.2 e 4.17. Não queriam eles dizer com isso que o arrependimento é conseqüência da graça e promessa da salvação?

Alguns homens do passado aceitavam que o arre­pendimento consistia de duas partes — Mortificação e Vivificação. Por mortificação queriam dizer a an­gústia da alma, e o terror produzido pela convicção

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do pecado, e o julgamento divirto — O homem passava a odiar o seu pecado, confessava a sua condição de peciador e desejava ser diferente. Essa primeira parte chamava-se — Contrição.

Por Vivificação queriam dizer do conforto que a fé produz; depois de perturbado pela consciência do pecado, arrasado pelo temor do castigo, o homem con­templa a bondade e misericórdia, graça e salvação, pa­ra ele obtida por Cristo, e começa uma nova vida. Discorda Calvino apenas do uso do termo vivificação como é empregado aqui, pois deve significar, antes, o desejo de uma vida piedosa e santa, resultado do no­vo nascimento — o homem morre para si e passa a viver para Deus.

Outros propõem a idéia de duas formas de arre­pendimento: arrependimento legal e evangélico. O le­gal é aquele pelo qual o pecador, tocado pelo senso do pecado, dominado pelo temor da ira divina, perma­nece no estado de perturbação, incapaz de se livrar dele. São exemplos disso Caim, Saul e Judas. O evan­gélico é aquele pelo qual o pecador abatido em si mes­mo, olha para Cristo e vê nele a cura de sua ferida, o esconderijo da sua miséria. Exemplos do arrependi­mento evangélico são: Ezequías, quando recebeu a mensagem sobre a sua morte; Ninive, aterrorizada pe­lo temor da destruição. Acrescenta-se a esses o caso de Davi, que confessou o seu pecado de numerar o povo, mas pediu: “Agora suplico, Senhor, perdoa a iniqüidade do teu servo”. Ou, quando reprovado pèlo profeta Natan, reconhece o seu adultério, e humilha- se diante do Senhor, e busca perdão. Ou o caso da multidão tocada pela pregação de Pedro, todavia, con­fiando na bondade de Deus, para perguntar: “Varões ,i,rmãos, que faremos?”. Semelhantemente é o caso de Pedro mesmo — Que chorou amargamente, mar não deixou de esperar.

Embora tudo isso que foi ditó seja verdadeiro, o termo arrependimento, tanto quanto se vê pelas Es­crituras, deve ser tomado de modo diferente. Não se pode separar fé de arrependimento, pois Paulo diz em

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Atos: “Testifico tanto a judeus como a gregos, arre­pendimento para com Deus e fé em nosso Senhor Je­sus Cristo”, Atos 20.21. Paulo menciona, aqui, fé e arrependimento como duas coisas diferentes? Pode verdadeiro arrependimento existir sem fé? De modo nenhum, embora não possam ser separados devem ser distinguidos. Como não há fé sem esperança, embo­ra fé e esperança sejam diferentes, assim arrependi­mento e fé, não obstante ligados constantemente, o são somente para estar unidos e não confundidos.

Uma definição de arrependimento aceitável seria: Uma conversão real da nossa vida a Deus; proceden­do de um sincero e sério temor de Deus; consistindo da mortificação da hossa carne e do velho homem, e vivificação do espírito. Esse arrependimento se apli­ca a todos aqueles a quem os profetas e apóstolos exortavam — o povo do seu tempo.

Há três coisas no arrependimento: Conversão de vida a Deus; uma renovação não apenas exterior, mas interior; e um sincero temor de Deus, Ezequiel 18.3. Paulo afirma em 2 Coríntios 7.10 “Que a tristeza se­gundo Deus produz arrependimento para salvação, a qual a ninguém traz pesar”. É que a razão dessa tris­teza é o temor de Deus, que produz o verdadeiro ar­rependimento. A terceira parte da definição afirma que o arrependimento consiste de mortificação da car­ne e vivificação do espírito.

Os profetas, numa acomodação ao entendimento do povo carnal, diziam: “Aparta-te do mal e faze o bem” (SI 34.14), e tc ... O primeiro passo para a obe­diência da lei de Deus está na renúncia da nossa pró­pria natureza. A renovação vem depois como fruto dela — o abandono do homem velho e renovação do nosso entendimento. Ambos obtemos por Cristo. Ro­manos 6.5,6 “Se fomos unidos com Ele na semelhan­ça da sua morte, certamente o seremos também na semelhança da sua ressurreição; sabendo isto, que foi crucificado com Ele o nosso velho homem, para que seja destruído o corpo do pecado, a fim de não servir­mos mais ao pecado”. Essa renovação não se realiza

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num dia, nem num ato, mas é ininterrupta, até o fi­nal, pelo arrependimento com o qual continuaremos ã nossa carreira até o final da vida.

Deus purifica a sua Igreja, para torná-la sem má­cula, Efésios 5.26,27 •— “...Cristo amou a Igreja, e a si mesmo se entregou por ela, para que a santifi- casse, tendo-a purificado por meio da lavagem da água, pela palavra”. Deus a libertou do domínio do pecado pela agência do seu Espírito.

^Quanto mais o homem procura firmar a sua vida na palavra divina, mais visíveis sinais de arrependi­mento nele se observam. Aponta Calvino o perigo que pode resultar do excesso em nos engolfarmos no sen­timento de culpa, em virtude de pecados passados, o que nos conduzirá ao desespero, poderá nos levar ao abismo da tristeza, do qual jamais nos escapemos. O temor que acaba na humildade, sem abandonar a esperança do perdão, não deve ser excessivo. São Ber­nardo aconselha: “Tristeza pelo pecado é necessária, mas não deve ser perpétua. Enquanto pensardes hu­mildemente de vós mesmos, pensai também na bon­dade de Deus”. Há aqueles que frequentemente men­cionam “O saco e cinza, jejuns e lágrimas”, especial­mente referidos em Joel 2.12: “Convertei-vos a mim de todo o vosso coração; e isso com jejuns, com cho­ro e com pranto”. Saco e cinza estavam de acordo com o costume daquele tempo, no entanto, o pranto e jejum são mais apropriados ao nosso tempo, quan­do o Senhor nos ameaça com derrotas e calamidades.

Parece-nos que o mais apropriado, em nossos dias,é aquilo que o profeta ordenava: “Rasgai os vossos corações, e não os vossos vestidos, e convertei-vos ao Senhor vosso Deus” (J1 2.13). Jejum, especialmente, destinado a ocasiões de calamidades. . . Em Mateus 9.15, o Senhor liberou os apóstolos da necessidade dele, até que, privados da sua presença, fossem toma­dos de tristeza. Referimo-nos ao jejum formal, por­que a vida do cristão deve ser temperada de frugali­dade e sobriedade, de modo que o seu curso inteiro seja como uma espécie de jejum.

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Distingue-se o arrependimento em duas formas: o arrependimento comum, que devemos cultivar em todo o curso da nossa vida; segundo, o arrependimen­to especial, quando apanhados nos laços do diabo nos afastamos do temor de Deus.

Passa Calvino a considerar “O pecado que não será perdoado”.

Agostinho define-o como obstinada perversidade que descrê do perdão e continua até à morte — o que dificilmente se ajusta à palavra de Cristo: “Não será perdoado neste mundo. . . ”. Pois» ou essas pa­lavras de Jesus seriam vãs ou se trata de algo a car­go desse mundo. Se a definição de Agostinho é cor­reta, ò pecado não é cometido, a menos que persista até à morte.

Dizem outros que o pecado contra o Espírito San­to consiste em invejar a graça conferida a um irmão. Calvino disse que não sabe em que isso se funda­menta .

A definição verdadeira, segundo Calvino é: Peca­do contra o Espírito Santo é daquele que, não poden­do alegar ignorância, deliberadamente resiste (o Es­pírito), apenas pelo prazer de resistir.

Jesus diz em Mateus 12.31, “Todo pecado e blas­fêmia serão perdoados aos homens, mas a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada”. Como pode al­guém insultar o Filho e, 3 0 mesmo tempo, não ofen­der o Espírito? Aquele que na ignorância atacar a verdade de Deus desconhecida e ainda assim estiver disposto, de tal modo que não deseje distinguir a ver­dade de Deus quando Ele a manifesta, ou pronuncie uma palavra contra aquele que sabe ser o Ungido do Senhor, peca contra o Pai e o Filho, peca contra o Espírito Santo, por tentar contra a iluminação, que é obra desse Espírito. Exemplos disso são alguns dos iudeus em Atos 6.10; os fariseus em Mateus 9 3,4 e12.24.

Espírito de blasfêmia é do homem que audacio­samente e por determinação insulta o nome divino.

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São Paulo dizia: Obtive misericórdia, porque eu o fiz na ignorância.

Não há perdão quando a incredulidade, está alia­da ao conhecimento. Não é estranho que o Senhor se­ja implacável com aqueles a quem João declara, em sua epistola, que sairam do nosso meio porque não eram nossos, porque, se tivessem Sido nossos, teriam permanecido conosco. Pode parecer às vezes em de­sacordo com a misericórdia divina que Deus negue perdão a quem leve perante Ele os seus pecados. Lem­bre-se, no entanto, que em nenhum lugar se diz que Deus negue perdão ao arrependido que se volte para Ele, arrependido verdadeiramente. O apóstolo decla­ra que Deus não se contenta com o arrependimento fingido. Às vezes, o hipócrita é poupado por algum tempo, não por causa dele mesmo, mas para exem­plo público. Deus às vezes estendeu a sua mão aos Israelitas, livrando-os de calamidade, embora o seu clamor fosse fingido, pois voltavam logo depois ao seu caminho anterior. Deus o fez para levá-los ao arre­pendimento ou deixá-los sem desculpa. Pode aconte­cer que Deus trate com extrema severidade o hipó­crita e dobre o seu castigo, para mostrar como odeia a hipocrisia, mas mostra-se inclinado a perdoar, par ra que os piedosos sejam estimulados a emendar suas vidas.

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JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ NOME E REALIDADE

Cristo, pela bondade de Deus, nos é dado eapreendido pela fé, através da qual obtemos dois be­nefícios especiais, primeiro a justificação — Deus se torna Pai, complacente ao invés de juiz; reconciliados que somos pela justiça de Cristo. Segundo, regene­ração e pureza de vida já anteriormente discutida.

Justificação. O homem se diz justificado à vistade Deus quando, no julgamento divino, é tido ou acei­to como justo por causa dessa justificação — desde que a iniqüidade é abominável a Deus, não pode o peca­dor achar graça diante dele enquanto for considerado pecador. Justificado, ele não é mais considerado pe­cador, mas justo, livre, portanto, diante do tribunal

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de Deus, onde todo pecador é condenado. Ele é assim, digamos, retirado do catálogo dos pecadores.

Justificação pelas obras. A justificação pelas obras significa que pela perfeição da sua vida o homem sa­tisfaz plenamente a justiça divina.

Justificação pela fé. Nesse caso, justificação pe­las obras é excluída e o pecador se agarra pela fé à justiça de Cristo. Daí a justificação é aceitação do fa­vor divino como se nós fôssemos justos — é o perdão dos pecados pelos méritos de Cristo. Gálatas 3.8; Ro­manos 3.26; Romanos 8.33,34. Todas essas passagens se referem à justificação pela fé.

Que é que a justificação oferece? Aceitação, Efé- sios 1.5,6; Imputação — Romanos 4.6-8, pela obediên­cia de Cristo, Romanos 5:19 “Pela desobediência de mu só homem muitos se tornaram pecadores, assim por meio da obediência de um só muitos se tornaram justos”.

Combate Calvino o erro dos que dizem que o homem é justificado pela fé, tanto quanto pelas obras. Combate também aqueles que, como Lombardo, con­sideram que o Espírito Santo nos dirige às boas obras; a morte de Cristo nos concita ao amor e, por meio de­le, o pecado é extinguido; o diabo é preso e não pode buscar a nossa condenação. Pensa ele que o principal ofício da graça divina é dirigir-nos pelo Espírito San­to às boas obras. Combate também Agostinho, que confunde regeneração com santificação. As passagens de Romanos 5.6,9 e Gálatas 3.11, Hebreus 2.8 ates­tam que a justificação é pela fé somente.

Erram, pois, aqueles que afirmam que somos jus­tificados, mas não só pela fé. O axioma que serve de ponto de partida é: a ira de Deus repousa sobre todo homem que continua no pecado e a remissão do pe­cador é que o liberta — Romanos 5.8-10; 2 Coríntios 5.19-21. É, pois, pela intervenção de Cristo, pela sua justiça, que obtemos a justificação diante de Deus. A obediência de Cristo nos é imputada como se fosse nossa.

Contemplando o julgamento de Deus para se con­

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vencer da doutrina da justificação gratuita. Em ati­tude de temor e humildade é que os padrões da justi­ça divina são contemplados por nós e não os pobres padrões humanos. É em humildade que buscamos asilo na graça de Deus.

Agostinho disse que todo homem, gemendo sob a carga da sua carne corruptível, enfermidades dessa vida, busca JesuS, o único mediador, o justo. Diz ainda Agostinho: “Esquecendo os nossos méritos, busca­mos a graça das dádivas de Cristo, porque, se procu­rássemos méritos em nós, não obteríamos a graça de Cristo”.

Duas coisas devem ser observadas na justifica­ção gratuita: Não é obtida pela dádiva da regeneração que é sempre imperfeita no estado presente. Segun­do, devemos recorrer ao remédio — a única esperança do crente, com respeito a herança dos céus — sendo enxertados no corpo de Cristo e, assim, gratuitamen­te justificados.

Em que sentido a justificação é progressiva? Di­vidimos os homens em quatro classes, conforme a justiça durante o curso da vida. Primeiro: Os idóla­tras, que não conhecem a Deus, vazios de justiça, cheioh de injustiça, portanto à vista de Deus inteiramente des­graçados. Segunda e terceira classes de homens com­preendendo os hipócritas e os cristãos somente de no­me, os quais pelas suas ações merecem ser condenados. Os hipócritas ocultam a impureza dos seus corações com fingimento. A outra classe, os nominais, confes­sam a Deus com seus lábios, mas vivem vidas impu­ras.

Os crentes não têm confiança nas obras para atribuir-lhes qualquer mérito, desde que eles as con­sideram como dádivas divinas nas quais reconhecem e discernem os sinais da sua vocação e eleição. Tal con­fiança não deprecia a livre justiça de Cristo, desde que sem ela não pode subsistir.

Agostinho diz: “Eu não digo ao Senhor — não desprezes as obras das minhas mãos; eu tenho procu­rado o Senhor com minhas mãos e não tenho sido de­

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cepcionado, mas eu não atribuo valor às obras das minhas mãos, porque eu temo que, quando tu as exa­minares, achrrás mais falta do que mérito. Isso so­mente eu digo, isso eu peço, isso eu desejo, não des­prezes as obras das minhas mãos. Vê em mim tuas obras e não as minhas. Se vês as minhas, tu me con­denas, se vês as tuas, tu me coroas, qualquer boa obra que eu tenha vem de ti”. Agostinho du duas razões para não se aventurar em gloriar-se das suas próprias obras diante de Deus: Primeiro — porque ele não tem boas obras e, ainda mais, ele não vê nelas nada de seu. Segundo — porque essas obras são superadas por uma multidão de pecados. De modo que, a consciência deriva delas mais medo e alarme do que segurança. Só há uma maneira pela qual ele deseja que Deus pa­ra elas olhe, é para que possa ver a graça da sua vo­cação e a obra perfeita que Ele já começou.

A causa eficiente da nossa salvação se encontra no amor de Deus, o Pai; a causa material na obediên­cia do Filho; a causa instrumental na iluminação do espírito, isto é, na fé; e a causa final no louvor da bonda­de divina. Isso, pois, não há nada que impeça o Senhor de envolver as obras como causas inferiores. Mas, co­mo? Desta maneira aqueles a quem, na sua misericór­dia, Ele destinou para a herança da vida eterna, na sua administração ordinária lhes dá entrada na possessão dela, por meio de boas obras. Por essa razão, muitas vezes Ele far a vida eterna conseqüência das obras, não porque seja atribuída a elas, mas porque aqueles a quem Ele elegeu justifica, para que possam afinal glorificar. Romanos 8.30: “Aos que predestinou, a estes também chamou; aos que chamou, a estes também jus­tificou, aos que justificou, a estes também glorificou”. Ele faz a graça primeira ser uma espécie de causa, por­que é um tipo de degrau para o que vai seguir. Mas quando a verdadeira causa deve ser designada, Ele nos concita a não buscar refúgio nas obras, mas manter o nosso densamento inteiramente fixo na misericórdia de Deus, “porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna” (Rm 6.23).

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O Senhor, acrescentando graça a graça, toma oca- isão da primeira para adicionar a subseqüente, de mo­do a não omitir nenhum meio de enriquecer seus ser­vos; ainda de acordo com a sua liberalidade, Ele de­seja que olhemos sempre para a eleição gratuita co­mo a sua fonte e começo, pois, não obstante, Ele apre­cia as dádivas que diariamente nos concede, desde que elas procedem daquela fonte; é ainda nosso dever fir- marmo-nos na aceitação gratuita, único apoio das nos­sas almas, e, assim, relacionar a dádiva do espírito que Ele posteriormente nos concedeu como a causa primá­ria dessas bênçãos.

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COMO OBTER A GRAÇA DE CRISTO

Enquanto estivermos sem Cristo, separados dEle, nenhum benefício nos advirá das coisas que Ele sofreu e fez para a humanidade. A fim de nos comunicar as bênçãos que recebeu do Pai, Ele tem de se tornar pos­sessão nossa e habitar em nós. Por isso mesmo, Ele se chama Cabeça, Primogênito entre muitos irmãos.

Por outro lado, diz-se a nosso respeito que somos enxertados nEle, revestidos dEle. Nada do que Ele pos­sui, no entanto, será nosso até que nos tomemos um com Ele. Nem todos, indiscriminadamente, aceitam a oferta de Cristo que os evangelhos fazem.

Embora obtenhamos os benefícios que provêm de Cristo, pela fé, convém inquirir com respeito à secreta eficácia do Espírito, pela qual desfrutamos de Cristo

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em todas as suas bênçãos.Cristo veio por água e por sangue, conforme a seu

respeito testifica o Espírito, para que não percamos os benefícios da salvação que nos comprou.

Assim como se diz que são três os que testificam nos céus — o Pai, a Palavra e o Espírito — assim tam­bém são três que testificam na terra — a água, o sna- gue e o Espírito. Em 1 Pedro 1.2 nos diz ele: “. . . em santificação do Espírito, para obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo”.

Com essas palavras lembra-nos que o derramamen­to do sangue sagrado não nos foi em vão — nessas a l­mas devem ser levadas nele pela secreta purificação do Santo Espírito, por cuja razão Paulo, falando da pu­rificação ,diz: “Tais fostes alguns de vós; mas vós vos lavastes, fostes santificados, e fostes justificados, em nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus” (1 Coríntios 6.11).

Em resumo, o Espírito Santo é o elo pelo qual Cristo, eficazmente, nos une a Ele mesmo. Lembre­mo-nos de que Cristo veio, possuído do Espírito de ma­neira peculiar, para nos separar do mundo e unir­-nos na esperança da herança eterna.

Por isso, o Espírito é chamado Espírito de santifi­cação, pcrqde Ele nos aviva e nos estimula; não pela energia comum dos homens ou dos outros animais, mas porque Ele é a semente e a raiz da vida espiritual em nós.

Uma das mais altas apreciações dadas pelos pro­fetas ao reino de Cristo se constitui na proclamação de que Ele derramará, com a mais rica abundância, o seu espírito sobre nós. Em Joel 2.28 assim encontra­mos: “Acontecerá que derramarei o meu espírito so­bre toda a carne. . Embora o profeta pareça limitar a dádiva do Espírito ao dom da profecia, declara em figura que Deus, pela iluminação do seu espírito, pro- ver-se-á com discípulos, os quais antes ignoravam com­pletamente a doutrina dos céus. E é por causa do Seu Fiuho que Deus concede o seu espírito a nós, e o tem colocado em toda a sua plenitude aos filhos, para

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que sejam dispenseiros da Sua liberalidade; assim ele é chamado uma vez espírito do Pai, e outra vez espí­rito do Filho. Romanos 8.9: “Vós, porém, não estais na carne, mas no espírito, se de fato o espírito de Deus habita em. vós. É, se alguém não tem o espírito de Cris­to, esse tal não é dEle. Por isso mesmo, Ele nos enco­raja a aguardar a nossa completa renovação: “Se o espírito daquele que ressuscitou dos mortos a Jesus ha­bita em nós, esse mesmo que ressuscitou Jesus Cristo

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pos mortais, por meio do Seu Espírito que em <?\ habita (Rm 8.11). ’ (2-^

Não há a menor inconsistência em atribuir /áS^ggp rias dessas dádivas ao Pai, desde que Ele é o<&u|ó£7de- las e as conferiu a Cristo, com quem pe\\.5jVuarda para dar ao Seu povo. Efésios 4.7: “E) aí^ístçàrToi con­cedida a cada um de nós, segunda do domde Cristo”. O Espírito, pois, é_/^Mmaáo<: Espírito de Cristo, não somente porque eJjefe@Lxmido ao Verbo e ao Pai, mas também em^á^ãôuro seu ofício de Me­diador, pois, se Ele nãó^çss&vna virtude do espírito, a sua vinda a nós teria sidôveiii vão. Por isso, Ele é cha­mado o último Adao espírito vivificador, mandado dos céus. 1 Córífítitiã_ í5.45: “Pois assim está escrito: O primeiro AdãXxN^feito alma vivente. O último Adão, porém, vivificante”.

diz que o amor de Deus é derramado ar ara^o^corações pelo Espírito Santo que nos foi dádV^CKm 5.5).

w A V\j0onvém ainda observar os títulos que são dados VatK Espírito nas Escrituras. Primeiro, Espírito de ado­

ção, porque ele testemunha a nós o favor gratuito de Deus e Pai que nos abraça no Seu Filho amado, tor­nando-se nosso Pai; dando-nos ousadia de acesso ao Pai para que clamemos: Aba, Pai.

Daí dizer que ele nos selou no espírito e nos deu o penhor do espírito no nosso coração.

Segundo, o Espírito que se chama Vida por cau­sa da justiça. Como por secreta irrigação, Ele nos faz produzir frutos, e é também descrito como água —

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Isaías assim diz: “Vós que tendes sede, vinde às águas”, ".. . Eu derramarei água sobre o sedento”.

Correspondem essas palavras ao ensino de Jesus: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba”.

Como aqueles que são aspergidos com o Espírito são revigorados, as palavras óleo e unção a ele se refe­rem.

Terceiro, por outro lado, o Espírito recebe o no­me de fogo, uma vez que, empregado pra subjugar e destruir os vícios da nossa concupiscência, inflama-nos com o amor de Deus.

Ainda é chamado a fonte de onde jorram sobre nós todas as riquezas celestiais; ou a mão pela qual Deus exerce o seu poder e não nos deixa agir por nós mesmos.

No entanto, o espírito de nada serve, senão àque­les aos quais Ele ligou ao cabeça e primogênito entre muitos irmãos, revestidos dele.

Com respeito a nós, Ele não nos veio em vão.A nossa união com Ele se refere como sagrado ma­

trimônio, pelo qual nos tornamos osso dos seus ossos, carne da sua carne, um com Ele. Efésios 5.30: “Porque somos membros do seu corpo”.

Como, porém, a fé é a sua principal operação, to­das as passagens que se referem à sua ação e ao seu poder, também se referem em grande medida à fé.

Pois, diz-se que os que crêem têm o privilégio de ser chamados filhos de Deus — “os que crêem no seu nome; os quais não são nascidos do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus”.

Em Mateus 16.17, o Senhor diz a Pedro: “A car­ne e o sangue não te revelaram, mas meu Pai que está nos céus”.

São Paulo, em Efésios 1.13, afirma que somos se­lados pelo espírito da promessa.

Ainda em 2 Tessalonicenses declara: “Por isso que Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação, pela santificação do espírito e fé da verdade”.

E, mais claramente, explica: “Sabemos que nós

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habitamos nele e Ele em nós, porque nos tem dado o seu espírito.

E para fazer seus discípulos capazes com a sabe­doria celestial, Cristo prometeu-lhes o espírito de ver­dade que o mundo não pode receber, João 14.17.

Paulo altamente proclama o ministério do espírito em 1 Coríntios 3.6.

Em resumo, a salvação é perfeita na pessoa de Cristo.

Para nos fazer participantes dela, Ele nos batizou com o Santo Espírito e com fogo — Lucas 3.16; ilumi­nando-nos na fé de seu evangelho, regenerando-nos, fa­zendo-nos novas criaturas. Assim, limpos de toda a poluição, Ele nos consagra para templos do Senhor.

Verifica-se, desse modo, a solidez dessa doutrina do Santo Espírito, como espírito da graça que Calvino tão firmemente alicerça nas Escrituras e com clareza discerne através da interpretação serena, judiciosa, e cautelosa do texto; conjugando, em perfeita harmo­nia, todas as partes, de modo a oferecer até mesmo aos menos instruídos uma compreensão razoável dessa obra eficaz e misteriosa, que o Espírito de Deus rea­liza na operação dos dons de Cristo Jesus em favor dos crentes verdadeiros.

Como devia ser enfática a exposição da doutrina da livre graça de Deus num ambiente em que a busca dessa graça se tinha tomado numa comercialização ri' dícula e profana!

Lutero, Calvino e outros reformadores procura­ram dar ênfase a esta verdade da livre graça de Deus,

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FÉ - DEFINIÇÃO E PROPRIEDADES PECULIARES

Relembra Calvino considerações anteriores sobre a condição miserável do homem caído e a solução para essa condição irremediável, até que Cristo aparece.

Deus, misericordiosamente, houve por bem socor­rer-nos.

As bênçãos de Cristo, no entanto, só podem ser alcançadas pela fé, que tem toda a sua firmeza em Cristo Jesus e Deus.

Combate Calvino a chamada fé implícita, doutrina que obscurece a pessoa de Cristo, quase anulando a fé verdadeira com esta fé inventada, para engano do povo e, conseqüentemente, a sua perdição, destruindo a fé e sepultando-a.

Essa fé implícita é ditada pela igreja, à qual igreja deixamos a prerrogativa de tudo impor e tudo deter­

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minar, no que diz respeito à salvação.A nossa entrada no reino dos céus nos é concedi­

da quando reconhecemos Deus como nosso Pai, benevo­lente, pela reconciliação que Cristo fez por nós e nos é oferecida para justificação e vida.

Quando o apóstolo nos diz que com o coração se crê para a justiça e com a boca se faz confissão para a salvação, está nos afirmando que não é bastante crer, implicitamente, sem entender ou inquirir (Romanos 10).

O que se exige é um reconhecimento explícito da bondade divida da qual provém a nossa justiça.

Reconhece Calvino que há muitas coisas envolvidas em mistério e para nós assim ficarão até nos despirmos da nossa carne, na presença de Deus.

Nesse caso, o melhor é suspender o nosso julga­mento e manter a unidade da Igreja.

Apelidar estas coisas de fé é exaltar a ignorância» temperando-a com humildade, o que é absurdo.

Fé consiste no conhecimento de Deus em Cristo Jesus, João 17.3 “E a vida eterna é essa: Que te conhe­çam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste”.

Fé não é reverência à Igreja.Exemplo dessa fé implícita se encontra nos discí­

pulos antes que fossem plenamente iluminados, embo­ra cressem em Jesus.

Ele lhes falara da sua ressurreição, mas não pu­deram crer na palavra das mulheres que foram ao se­pulcro e diziam que Ele ressuscitou, o que parecia um sonho das mulheres. As próprias mulheres que prepa­raram o aroma para ungir o corpo do Senhor não es­peravam a ressurreição, embora dessem crédito à pa­lavra de Jesus. A ignorância que ainda envolvia a sua fé em trevas as levou a estupefação.

Elas tinham uma fé verdadeira, implícita, no ver­dadeiro Mestre, mas falharam naquela questão, embo­ra o aceitassem como Salvador e Cristo.

Este é um exemplo de fé misturado com incredu- ildade. Por outro lado, fé implícita pode ser uma pre­paração para a fé verdadeira.

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É o caso do homem que creu na palavra de Je­sus, que lhe dizia que seu filtío estava curado e vol­tou para casa. Diz o evangelista, “ ...tendo ele cri- do. . (Jo 4.50).

Há uma relação inseparável entre a fé e a Pala­vra, como raio de luz e o sol.

Isaías diz “Ouvi, e a vossa alma viverá” Isaías 55.3.

E João indica a mesma fonte, quando declara que o que está escrito foi “para que creiais” (Jo 20.31).

Por essa razão» as palavras discípulo e crente são pelos evangelistas freqüentemente tratadas como sinô- inmo; em Atos 9.36, uma mulher é chamada de discí­pula.

Paulo recomenda aos Filipenses a obediência da fé, Filipenses 2.17.

Não é suficiente crer que Deus é verdadeiro e não pode mentir ou enganar, a menos que sejamos persua­didos firmemente de que toda a palavra que procede da sua boca é sagrada e inviolável verdade.

Calvino julga bom dar uma definição de fé e, as­sim, diz: “Fé é o firme e seguro conhecimento do fa­vor divino para conosco, fundado na verdade de uma promessa gratuita, em Cristo, e revelada a nossa men­te, selada em nosso coração pelo Santo Espírito.

Refuta Calvino a distinção que fazem os doutores entre fé formada e não formada, pela qual imaginam que o indivíduo, mesmo sem o temor de Deus no co­ração, sem nenhum senso de piedade, possa crer tudo que é necessário para a salvação; como se o Espírito Santo não fosse testemunha da nossa adoção.

O apóstolo São Paulo diz: “Com o coração se crê para a justiça e com a boca se faz confissão para a salvação” (Rm 10.10). Ainda em Romanos 1.5 refe­re-se à “obediência da fé”.

Desde que a fé recebe lCristo como Ele nos é ofe­recido pelo Pai, e Ele não nos é oferecido apenas para justificação, para perdão de^ecados e paz, mas tam­bém para santificação, como rente de água da vida, é certo que ninguém pode conhecê-lo de modo real sem receber a santificação do espírito.

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Fé consiste em conhecer a Cristo e Cristo não po­de ser conhecido sem a santificação do espírito.

Portanto, fé não pode existir separada de santa afeição.

Quando o apóstolo São Paulo fala de fé sem amor, ele nos mostra a nulidade dessa fé. Embora a fé ver­dadeira seja a dos eleitos de Deus observa-se que f© é às vezes atribuída a alguns dos reprovados. Expli­ca-se que eles possuem uma fé temporária, mas não rceeberam o verdadeiro poder espiritual da graça e verdadeira luz da fé.

O Senhor, para não deixá-los sem escusas, insti- lou na sua mente tal senso de sua bondade, que pode ser sentido sem o espírito de adoção.

Nos eleitos somente Ele planta a raiz viva da fé para que perseverem até o fim.

A vontade de Deus é imutável, a sua verdade é sempre consistente consigo mesma; de modo que, em­bora fraca e tênue, a fé dos eleitos dada pelo espírito de Deus, é para eles como penhor e selo da sua ado­ção.

Saul, por algum tempo, manteve uma disposição afetiva para com Deus, atraído pelo cuidado paternal de Deus; como, porém, o reprovado não tem convicção arraigada do amor paternal de Deus, assim não pos­sui o verdadeiro amor de filho e é levado por interes­se mercenário.

Paulo declara que a fé é um privilégio peculiar dos eleitos, de modo que muitos, não estando enraiza­dos permanentemente, caíram — Tt 1.1.

Afirma o Senhor: “Toda planta que meu Pai ce­lestial não plantou será arrancada” (Mt 15.13).

Deve se notar que, às vezes, a palavra fé é utiliza­da para significar doutrina, como em Colossenses 1.23.

Em outros lugares, fé se aplica a um objeto par­ticular, como em Mateus 9.2.

A fé ó certeza de algo futuro, São Paulo diz em 2 Coríntios 5.6,7 “Temos, portanto, sempre bom âni­mo, sabendo que, enquanto no corpo, estamos ausei

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tes do Senhor; visto que andamos por fé e não pelo que vemos”.

Às vezes, o termo fé é utilizado no sentido de con­fiança, Efésios 3. 12: “Pelo que temos ousadia e aces­so com confiança, mediante a fé nele”.

Embora digamos que a fé é segurança, não quer isso dizer que essa fé não possa ser afetada por dú- ivdas, ou assaltada por ansiedades; pelo contrário, o cristão terá sempre lutas com a sua própria fé.

Longe está de possuir uma consciência plácida incessantemente imperturbável. No entanto, qualquer que seja a luta, o crente não abandona a confiança, firme na misericórdia de Deus.

Em meio às comoções, a fé sustenta o seu cora­ção, como a palmeira que suporta o peso que sobre ela repousa e se levanta acima dele. Aquele que luta com as suas próprias enfermidades tem na fé recur­sos e é muitas vezes vitorioso em grande medida. Sal­mo 27.14 — “Espera pelo Senhor, tem bom ânimo, e fortifique-se o teu coração; espera, pois, no Senhor”. Isaías 7.4 — “Acautela-te e aquieta-se; não temas, nem se desanime o teu coração.. . ”

Tão logo a fé é instilada em nossa mente, come­çamos a ver a face de Deus serena e propícia a nós — longe, mas, sem dúvida distintamente — a assegurar- nos de que nela não há ilusão.

A mente, inicialmente iluminada pelo conheci­mento de Deus, está ainda envolvida em muita igno­rância — ignorância que, contudo, será gradualmente removida.

Não obstante os assaltos a. que está sujeita, a fé se arma e se fortifica na Palavra de tíeiis.

Quando a tentação sugere que Deus é inimigo, por­que nos aflige, a fé responde pelo espírito que aflição é um ato de misericórdia e o seu castigo provém mais do amor do que da ira.

Jó declara: “Ainda que Ele me mate, eu confiarei nele” (Jó 13.15).

Não se diz que o crente é vitorioso em alguns combates ou em um só, mas que é vitorioso sobre to­

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do o mundo. João 5.4 — “Essa é a vitória que vence o mundo, a nossa fé”.

Embora seja assaltado em milhares de vezes, o cristão vence o mundo pela fé.

Quando Deus nos ordena a operar a nossa própria salvação em temor e tremor, está exigindo que nos acostumemos a pensar da nossa força com humildade e confiar na força do Senhor.

Quando lemos que o temor do Senhor que é atri­buído a todos os santos, em uma passagem é o prin­cípio da sabedoria e, em outra passagem, que é Ele mesmo a sabedoria, temes duas coisas: Deus merece a nossa reverência como Pai e Senhor. Assim aque­le que deseja verdadeiramente cultuá-lo procede co­mo filho obediente e como servo ao mesmo tempo. “O filho honra o pai, e o servo a seu senhor”. Obser­ve-se que em João 4.18, o apóstolo afirma que onde há temor não há amor, todavia, não se refere ao temor do crente, muito diferente do temor do incrédulo.

A fé não é decisiva até que atinja a livre promes­sa de Cristo, pela qual nos reconcilia com Deus.

Mais uma vez convém dizer que a fé precisa da Palavra, como o fruto de uma árvore depende das raí­zes. Salmo 9.10 e Salmo 119.67, diz o salmista: “Espe­ro na tua Palavra”.

A fé, às vezes, vai além do limite da palavra: é o caso de Rebeca, que aguarda o cumprimento da pala­vra a respeito do seu filho Jacó e busca-lhe a bênção por Aieio de um estratagema iníquo e reprovável, mas não vazio de fé.

A agência do Espírito Santo é a única força que nos assiste, pois o nosso discernimento é defeituoso e prejudicado — Romanos 11.33-36 e 1 Coríntios 2.14.

Em resumo: quando Cristo produz em nós a fé pela agência do seu espírito, ao mesmo tempo nos en­xerta no seu corpo, para que sejamos participantes das suas bênçãos.

O espírito sela em nossos corações a promessa e a certeza do que imprimiu em nossa mente — Efésios 1.13,14; 2 Coríntios 1.22: “Porque também nos selou e nos deu o penhor do Espírito em nossos corações”

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Combate Calvino a idéia daqueles que alegam ser presunção e vaidade nossa dizer que temos um conhe- icmento indubitável de Deus. Responde que, quando São Paulo afirma que não recebemos o espírito do mundo, mas o espírito que é de Deus, diz que é para que saibamos que são concedidas gratuitamente a nós por Deus — Romanos 8.14-17. Não se pode duvidar dis­so sem insultar o espírito de Deus. Nós sabemos que Ele habita em nós pelo espírito que nos foi dado. Àquele que afirma que a certeza da perseverança da fé permanece em suspenso, dizemos que a fé não se li­mita ao tempo; os crentes, iluminados pelo Espírito, desfrutam da perspectiva da vida celeste pela fé.

Fé ê a segura certeza e possessão das coisas pro­metidas a nós por Deus.

Onde quer que exista a fé, deve haver esperança da vida eterna, como companheira inseparável.

A fé crê que Deus é verdadeiro; a esperança aguar­da que em tempo devido Ele manifestará a sua ver­dade.

A fé crê que Ele é Pai; a esperança aguarda que Ele aja sempre como Pai para conosco. A fé crê que a vida eterna nos foi dada; a esperança aguarda que um dia ela nos seja revelada.

A fé é o alicerce no qual a esperança repousa.A esperança alimenta e sustenta a fé, por isso,

São Paulo afirma que nós somos salvos pela esperança— Romanos 8.24; porque a esperança silenciosamente aguarda pelo Senhor e segura a fé contra a pressa e a precipitação demasiada.

A esperança afirma, quando ela vacila em relabão às promessas de Deus ou começa a duvidar da verdaa^_^

Estende a sua vista para o alvo final para evitar que abandone a carreira no meio ou logo à saída.

O ofício da esperança é realizar aquilo que o pro­feta recomenda: “Embora Ele retarde espera” (Hc 2.3).

Aos que clamam perguntando pela sua vinda, São Pedro responde em sua segunda carta, capítulo 3, ver­sículo 4.

Às vezes, a afinidade da esperança e da fé faz com

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que as Escrituras usem o termo fé quando se trata de esperança.

Pois, quando Pedro diz que nós somos guardados pelo poder de Deus através da fé até a salvação pres- ets a ser revelada, 1 Pedro 1.5, atribui à fé o que perten­ce mais à esperança.

Às vezes, elas vêm juntas na mesma epístola: “Que a vossa fé e esperança estejam em Deus” (1 Pe 1 . 21 ) .

Paulo, ainda, na epístola de Filipenses, fala da espe- amça e diz expectação (1.20).

O assunto poderá ser bem entendido do capítulo 11 da Epístola aos Hebreus.

Diz o apóstolo São Paulo em Gálatas 5.5: . .quenós pelo Espírito esperamos a justiça que vem pela fé".

Confiemos, pois, naquele que diz: “Seja feito se­gundo a vossa fé" (Mt 9.28) .

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A TRINDADE

Deve Calvino tratar aqui de uma doutrina que lhe trouxe muitas preocupações, pois foi motivo de azedas polêmicas e a respeito da qual chegou mesmo a ser ta­xado de herege por Sebastião Castélio e por Servetus, que julgavam o tratamento do assunto como apare­cia nas Institutas uma doutrina errônea, que os re­formadores não expurgaram de sua corrupção anterior— a Doutrina da Trindade.

Inicialmente, Calvino fala nos ídolos, pois anterior­mente, ao apresentar a doutrina do Deus verdadeiro, referiu-se aos falsos deuses, vindicando a exclusividade do culto que lhe pertence.

Recorda o ensino das Escrituras com respeito à unidade de Deus, unidade que não é apenas de nome, mas também de essência.

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Recrimina a distinção que tem sido feita entre Dulia e Latria — Dulia, que se refere aos santos, e La- tria, que se oferece somente a Deus. A palavra Dulia significa serviço e Latria, culto e adoração.

Para Calvino, a distinção é capciosa e infeliz, por­que servir acaba sendo mais elevado do que cultuar. Nós não servimos a quem não rendemos reverência.

Embora alguns padres antigos tivessem feito es­sa distinção, observa Calvino a sua impropriedade, por­que, segundo ele, dá-se mais aos santos do que a Deus.

Mostra que Paulo, escrevendo aos gálatas, lem­bra-lhes que antes que viessem ao conhecimento de Deus — “eles serviam aos que por natureza não eram deuses” (G1 4.8). Porque Paulo usa Dulia, e não La­tria, para a superstição praticada pelos gálatas, é esta escusável? Paulo condena a essa superstição, que lhe dá o nome de Dulia, tanto quanto o que chama La­tria.

 resposta de Cristo a Satanás, repelindo a sua proposta de adoração, é: “Está escrito: Ao Senhor teu Deus adorará e só a Ele servirás” (Mt 8.10). Não se trata de Latria, pois que tudo que Satanás pedia era obediência,

De igual modo, João, quando foi repreendido pelo anjo ao cair de joelhos, Apocalipse 19.10; 22.8.

Qualquer que, exercendo ato de piedade, dirigir-se a algo que não seja Deus, somente pratica um ato de natureza sacrílega.

A inclinação do homem para esse ato o leva a praticar o culto a heróis do passado e a outros espíri­tos, contra o ensino da Palavra de Deus.

TrindadeAs Escrituras nos ensinam, com respeito à essên­

cia de Deus, que é imensa, espiritual, repelindo, assim, a idolatria e a tola sabedoria que se manifesta entre maniqueistas e antropomorfistas.

A imensidade de Deus deve-nos impedir de tentar medí-lo pelos nossos sentidos. A sua natureza espiri tural proibe-nos especulações carnais e terrenas a seu- respeito,

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Embora se fale do céu como lugar de habitação de Deus, como Deus é incompreensível, Ele enche a terra e todo o mundo.

Erram, pois os maniqueistas, que adotam dois princípios iniciais e fazem o demônio ser igual a Deus, o que restringe a sua unidade e destrói a sua imensida­de. Por outro lado, erram os antropomorfistas que atribuem um corpo a Deus porque as Escrituras falam da boca, dos ouvidos, dos olhos, das mãos e dos pés de Deus, expressões que somente são usadas para aco­modar o conhecimento de Deus à nossa limitação.

A fim de nos oferecer um conhecimento mais ínti­mo de sua natureza, é que Deus proclama a sua unidade distintamente, colocando diante de nós a sua existên­cia em três pessoas.

Cuidadosamente, Calvino estabelece a diferença en­tre essência e subsistência.

Quando o apóstolo afirma que o filho de Deus é a expressa imagem da sua pessoa, Hebreus 1.3, evi­dentemente atribui ao Pai alguma subsistência em que Ele difere do Pilho. A essência de Deus é simples, in­divisível, contida inteira nele mesmo, em absoluta per­feição, sem partição ou diminuição.

Quando se fala de pessoa (palavra a que muitos objetam), Calvino afirma que não se trata de um Deus tríplice ou que essa essência simples seja dividida pe­las três pessoas.

A palavra pessoa, latina — persona, corresponde à palavra grega hipóstasis. Daí o uso de subsistência, que parece melhor para distinguir cada um.

Cada uma das pessoas da Trindade é Deus, perfeita, mas não há pluralidade de Deus., A alegação de alguns de que a palavra pessoa é estranha às Escrituras, Cal­vino responde que, se por “estranho” se quer dizer algo inventado, sem cuidado e depois defendido supersticio­samente — algo que tende para a dissenção e não pa­ra edificação, algo que é usado fora de qualquer ligação do assunto ou sem qualquer benefício, algo que ofende os ouvidos pios pela sua grosseria e nos desvia da sim­plicidade da palavra de Deus, Calvino de todo o co­ração concorda com a alegação.

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Todavia, se por “estranho” se entende aquilo que não está nas Escrituras com todas as sílabas, e só por isso; então, toda a interpretação bíblica torna-se di­fícil, quando se usam palavras que não estão nas Es­crituras.

Temos que usar meios para expressar o pensa­mento das Escrituras com fidelidade.

Combate Arius. que confessava que Cristo era Deus e Filho de Deus, mas, porque não podia ver isso com clareza nas passagens das Escrituras, afirmava que Cristo tivera um princípio, como outras criaturas.

Para evitar tal erro, a Igreja antiga declarou que Cristo era eterno e consubstanciai com o Pai.

Posteriormente, Sabelius, que rejeitara as palavras Paí, Filho, Espírito Santo, como significado de pes­soas» declarava que era apenas atributo de Deus.

Daí a necesidade que tiveram os doutores da Igre­ja de afirmar que a Trindade é de pessoas subsistindo em um só Deus, que é um mesmo na sua unidade.

Daí Calvino declarar: “Por pessoa quero dizer a subsistência na divina essência; uma subsistência que, relacionada com as outras duas, delas se distingue por propriedades incomunicáveis.

Por subsistência quero dizer algo mais do que substância. Onde quer que o Pai é comparado com o Filho, as propriedades particulares de cada um os dis­tinguem um do outro.

Com respeito ao Filho, chamado Palavra ou Ver­bo, Pedro afirma que os profetas falavam pelo espíri­to de Cristo, Pedro 1.11, tão bem como os apóstolos, os quais eram todos ministros da doutrina dos céus.

Como, porém, Cristo não era ainda manifesto, necessariamente entendemos que a Palavra foi gerada por Deus, antes de todos os tempos. Claramente indi­ca Moisés isso, quando na narrativa da criação colo­ca a Palavra como intermediário.

Dir-se-ía que a Palavra foi usada aqui no sentido de ordem ou comando; mas os apóstolos afirmam que os mundos foram criados pela Palavra, que Ele sus­tenta tudo pela Palavra de seu poder, Hebreus 1.2.

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Palavra aqui é usada como comando do Filho, que é Ele mesmo a Palavra eterna e essencial do Pai.

Jesus afirma em João 5.17, . .meu Pai trabalhaaté agora e eu trabalho também”.

Como toda a revelação dos céus é designada com razão pelo título Palavra de Deus, assim o lugar mais elevado se reserva à palavra substancial, fonte de toda a inspiração, que não sofre variação alguma e perma­nece para sempre, um com Deus e Deus.

Alguns, porém, aceitam a divindade de Jesus, mas negam a sua eternidade, alegando que a Palavra só vem à existência na criação, é isso absurdo, pois se­ria admitir mudança na essência de Deus.

Tiago diz, capítulo 1, versículo 17, que em Deus não há sombra de variação alguma.

Quando Deus abriu a sua boca, a energia da Pa­lavra se fez sentir, porque ela já existia muito antes.

A palavra de Jesus mesmo diz, no Evangelho de São João, capítulo 17, versículo 5, “Glorifica-me ago­ra, ó Pai, com aquela glória que eu tinha contigo, antes da fundação do mundo”.

João, o evangelista, declara: “No princípio era o Verbo. . . e o Verbo era Deus”.

Daí concluímos que o Verbo foi eternamente gera­do por Deus e com ele existiu desde a eternidade”.

Passa Calvino a tratar das profecias do Velho Testamento para mostrar a judeus a divindade de Cris­to, Isaíias 11.6; Jeremias 23.6; Isaías 4.8; Ezequiel 48.35, indicando, também que a palavra Jeová muitas vezes usada no Velho Testamento quando Jeová apa­rece na forma de anjo do Senhor, é nada mais do que a manifestação de Cristo antes da sua encarnação.

No Novo Testamento são inúmeras as passagens nas quais os apóstolos falam do Mediador encarnado.

Paulo em Filipenses 2.6; 1 Coríntios 8.5-6; João 20.28. A divindade de Cristo também se comprova pelos seus milagres e por afirmações do próprio Cris­to — “Se credes em mim, credes também em Deus” (Jo 14.1).

As mesmas provas oferecidas para provar a divin­

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dade do espírito são usadas para Cristo; todos os atri­butos peculiares à divindade são atribuídos a ele, 1 Coríntios 12.1.

Paulo fala do testemunho do espírito de Deus que habita em nós, 1 Coríntios 3.16; 4.19; 2 Coríntios 6.16.

A divindade se tornou mais clara com o advento de Jesus Cristo. Jesus ordenou que os verdadeiros cris­tãos fossem batizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Mateus 28.19. Por outro lado, as Es­crituras mostram que há uma distinção entre o Pai, o Verbo e o Espírito.

Calvino cita Gregório Nazianzeno, quando diz: “Eu não posso pensar de unidade, sem que seja de* monstrada pela Trindade; eu não me posso referir à Trindade, sem que seja conduzido à unidade”.

Termina Calvino provando que há uma unidade geral entre os doutores antigos da Igreja sobre a dou­trina, embora nem sempre se expressem de modo claro.

Agostinho, que muitos têm procurado taxar de herege sobre esse assunto, abraça reverentemente a doutrina dos antigos doutores.

Compreende Calvino a sutileza do assunto e as di­ficuldades que ele oferece e faz votos a que os pios e tementes a Deus possam encontrar na sua exposição a demolição dos erros sobre o assunto, pelo qual Sata­nás tem procurado perverter muitos, desviando-os da fé. Julga que a substância da doutrina exposta deve satisfazer àqueles que não são possuidores de excessi­va curiosidade, procurando saber mais do que devem saber.

Percebe-se que Calvino chega ao fim do seu tra­balho sem, contudo, se dar por satisfeito.

A lembrança amarga que o tratamento dessa dou­trina lhe trouxe está sempre presente em sua mente e, embora ele a trate com a clareza e profundidade que o assunto requer, e como é do seu feitio curvar-se hu­mildemente ante a enormidade da tarefa, sente-se pe­quenino em face do mistério que envolve essa grande doutrina. Por isso, a sua última afirmação: “Desde a eternidade há três pessoas num só Deus”.

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A SANTA IGREJA CATÓLICA A IGREJA VERDADEIRA

Vamos falar da Igreja no seio da qual aprouve Deus reunir seus filhos; não somente para que pelo seu auxílio e ministérios sejam alimentados enquan­to infantes, mas também conduzidos por ela até à idade adulta, e possa matingir a perfeição da fé. Àque­les a quem. ele é Pai, ela é a mãe.

Quando dizemos creio, no Credo, não devemos di­zer creio na igreja, mas creio a igreja, uma expressão usada por Santo Agostinho e outros antigos. Nós de­claramos que cremos em Deus, porque nele a nossa mente se reclina e a nossa confiança é plenamente sa- itsfeita. Não podemos dizer o mesmo da Igreja, como não podemos dizer o mesmo do perdão dos pecados e da ressurreição do corpo.

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A Igreja é chamada Católica ou Universal, pois não há duas ou três, a menos que dividamos Cristo, o que é impossível.

Os eleitos de Deus devem estar reunidos em Cristo, do qual dependem, porque é a cabeça, formando eles ura corpo, no mesmo espírito de Deus, na mesma fé, na mesma esperança, na mesma caridade. Esse artigo do Credo se relaciona, de algum modo, com a Igreja externa, pois devemos manter os laços de fraternidade com todos os filhos de Deus, obedecendo à autorida­de da Igreja e vivendo como ovelhas do mesmo reba­nho.

Daí a expressão “comunhão dos santos”. Essa co­munhão dos santos não é incompatível com a diversi­dade de dons que o espírito distribui; nem é incompa­tível com a ordem civil, a qual é necessária para pre­servação da paz entre os homens e seus direitos.

Lucas afirma, descrevendo a Igreja em Jerusalém: “A multidão dos que criam era um coração e uma al­ma” (At 4.32).

Se Deus é o pai comum de todos e Cristo a cabeça comum, devem estar unidos em amor fraternal e par­tilhar uns com os outros as bênçãos.

Quando cremos a Igreja, fazemo-lo de modo a nor tomar persuadidos de que somos seus membros, A nossa salvação, pois, repousa em base firme e se­gura, de modo que, ainda que o mundo inteiro desapa­reça, ela não será destruída. Ela está de pé com a elei­ção de Deus, não pode falhar, como não falha a sua eterna providência; isto está ligado à estabilidade de Cristo, que mantém assim unidos os seus fiéis e não permitirá que seus membros sejam separados.

Enquanto continuarmos no seio da Igreja, a ver­dade estará conosco. Devemos confiar em promessas, tais como: “No Monte Sião em Jerusalém, haverá livra­mento” (J1 2.32), e, ainda: “Deus está no meio dela, não será abalada” (SI 46.5).

Pelo poder do Espírito Santo temo-nos tornado participantes com Cristo, e, separados como posessão peculiar de Deus e como membros dela, participantes da sua graça.

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A Igreja é nossa mãe, dizemos que ela nos conce­beu no seu ventre, deu-nos à luz, alimenta-nos no seu seio, guarda-nos sob o seu cuidado e governo, até que, despidos da carne mortal, nos tornemos como os anjos» Mateus 22.30.

Além do pálio da Igreja não há perdão de pecados, nem salvação se pode esperar, como testifica Isaías e Joel. Isaías 37.32 e Joel 2.32.

Paulo diz que nosso Salvador subiu aos céus para que possa cumprir todas as coisas e deu alguns para apóstolos; alguns para profetas; alguns para evangelis­tas; alguns para pastores e mestres; para o aperfei­çoamento dos santos; para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo: “Até que todos chegue­mos à unidade da fé, ao conhecimento do Filho de Deus, a Varão perfeito, segundo a medida da estatu­ra plena de Cristo” (Ef 4.10-13).

Para conduzir seus filhos à maioridade, Deus os educa pela Igreja. A pregação da doutrina celeste ó entregue aos pastores.

Isaías, anteriormente, deu as características do rei­no de Cristo, desta maneira: “Meu espírito está sobre ti, e a minha palavra que pus na tua boca, não se afastará da tua boca e nem da boca da tua semente, diz o Se­nhor, desde agora e para sempre” (Is 59.21).

Paulo nos lembra: “Que a fé vem pelo ouvir” (Era 10.17).

Para nos ensinar que os tesouros oferecidos a nós em vaso de barro são de valor inestimável, Deus mes­mo parece, como autor dessa ordenança, reconhecer a sua própria instituição; proibindo embora o seu povo de dar ouvido a espíritos familiares e feiticeiros e ou­tras superstições, Levítico 19.30,21, acrescenta que não nos deixará sem profetas.

Como no passado, Ele nos escolhe mestres que nos dêem assistência. Há duas vantagens niso, levar­-nos à obediência, quando ouvirmos os ministros, como se ouvíssemos Ele mesmo e, atendendo à nossa fra­queza, dirigir-nos de maneira entendível, atraindo-nos a si em vez de nos assustar.

Deus dotou a raça humana de um dos mais notár

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veis dons — a Palavra — pela qual Ele faz sua voa ouvida.

Davi se queixa da tirania dos homens que o impe­dem de entrar no tabernáculo de Deus. Salmos 84.

Deus somente consagra os templos pelo uso legí­timo da sua palavra E Deus, pelo seu espírito, ao qual Ele liga a pregaçao da Palavra, torna-a de resultados benéficos para o seu povo.

O ofício do segundo Elias, conforme Malaquias declara, é tornar o coração dos pais aos filhos, e dos filhos aos pais. Malaquias 4.6. Cristo declara que en­viou os apóstolos para produzir frutos. João 15.16. E que frutos são esses, Pedro declara, quando afirma que nós somos gerados de novo de semente incorruptível, 1 Pedro 1.23 Paulo se gloria de que por meio do evange­lho, ele gerou os coríntios, 1 Coríntios 4 15. Ele tam­bém afirmr que os gálatas receberam o espírito pela palavra da fé. Gálatas 3.2.

Portanto, Deus se agrada desse método de ensinar e, por isso colocou sobre os crentes esse jugo.

As Escrituras falam da Igreja de. duas maneiras: Às vezes, é a Igreja como ela é realmente diante de Deus, na qual só são admitidos os que receberam a adoção de filho pela santificação do Espírito e são, assim, membros de Cristo. Nesse caso compreende todos os santos que existiram desde o começo do mun­do.

Outras vezes, o nome Igreja se aplica ao corpo inteiro daqueles que adoram a Deus em Cristo ou pro­fessam adorar; que foram, pelo batismo, iniciados na fé; participam da Ceia do Senhor; professam estar unidos à verdadeira doutrina e à caridade; aceitam a Palavra de Deus e o ministério da pregação.

Nessa igreja ná uma grande mistura de hipócritas, qúe nada têm de Cristo, a não ser a aparência exterior. O Senhor os distingue por certas marcas, como se fossem símbolos, pois é prerrogativa de Deus conhecer os que são seus, 2 Timóteo 2.19.

Para conhecer o seu corpo, conforme sabia que

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seria necessário, Ele nos faz conhecido por algumas marcas.

Onde quer que nós vemos a Palavra de Deus sin­ceramente pregada e ouvida; onde quer que vemos os sacramentos ministrados de acordo com a instituição de Cristo, aí não temos dúvida de que a Igreja de Deus existe de alguma maneira, uma vez que Ele prometeu e não pode falhar: “Onde dois ou três se reúnem em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Mt 18.20).

A Igreja Universal é a multidão dos que foram reu­nidos de todas as nações, os quais, embora dispersos, distantes uns dos outros, aceitam uma só e verdadeira doutrina e etão ligados pelo laço comum da religião.

Isso compreende Igrejas isoladas nas cidades e vilas, e também compreende indivíduos que perten­cem a tais igrejas; embora alienados, mas não corta­dos por uma pública decisão.

A comunhão da Igreja é de tal importância para o Senhor, que aqueles que obstinadamente dela se afastam são tidos como desertores da religião.

A designação dada à Igreja de casa de Deus coluna e fundamento da verdade, 1 Timóteo 3.15, indica que a Igreja é a fiel guardiã da verdade para que essa ver­dade não pereça no mundo.

Daí se segue que revoltar-se contra a Igreja é ne­gar a Deus e a Cristo.

Mesmo na ministração da Palavra podem entrar erros que, todavia, não nos devem alienar da sua co­munhão .

Algumas verdades devem ser mantidas, por exem­plo: que Deus é um, que Cristo é Deus e Filho de Deus, que a nossa salvação depende da misericórdia de Daus, e coisas semelhantes.

O que convém dizer é que não devemos, por pe­quenas diferenças, abandonar a Igreja, uma vez que ela mantenha firme a doutrina em que consiste a pieda­de e mantém os sacramentos instituídos por Nosso Senhor.

Pensar que não há Igreja onde não há completa pureza e integridade de conduta, alegando que a Igre­ja de Deus é santa, é ignorar o ensino do Senhor a es­

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se respeito.O bem e o mal podem estar misturados na Igreja,

conforme a Palavra do Senhor, na qual Ele compara a peixes, que, porém, não são separados até que sejam trazidos à praia, zidos à praia.

Convém lembrar também que a Igreja é compara­da ao campo onde a boa semente foi plantada, mas onde o inimigo fraudulentamente ministrou o joio, os quais só serão separados na colheita.

Entre os coríntios não foram poucos os que erra­ram; e não havia lá apenas uma espécie de pecado; e nem se tratava de erros triviais; mas alguns crimes exe­cráveis. E não havia apenas corrupção nos costumes, mas na doutrina.

Que é que fez o apóstolo? Procurou a separação deles?

Expulsou-os do reino de Cristo?Feriu-os com anátemas finais?Não, não fez nenhuma dessas coisas, mas reco­

nheceu-a como Igreja de Cristo e sociedade dos san­tos.

Não obstante a Igreja falhe em seu dever, não quer dizer que indivíduos decidam a questão de se­paração por si mesmos.

Quando Paulo nos exorta à pura e santa comu­nhão, não diz que dexemos examinar os outros, ou que cada um devia examinar a Igreja inteira, mas ape­nas que cada um devia examinar a si mesmo, 1 Corin- tios 11.28,29.

Pensamos que ninguém tem direito de passar jul­gamento sobre os atos dos outros, considerando que, às vezes, os mais santos podem cometer sérias que­das.

A Igreja deve fazer progresso constante em obe­diência às ordens do Senhor, mas a sua santidade não é ainda perfeita, não alcançou ainda o alvo.

Vamos lembrar que em nenhum período da his­tória do mundo o Senhor ficou sem sua Igreja, e não ficará até a consumação dos séculos. Ainda que o joio e os vasos impuros sejam vistos na Igreja, não é isso

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razão para que nos retiremos dela, dizia Cipriano. O que nós devemos é trabalhar afim de que sejamos o trigo, o que devemos buscar é ser vasos de ouro e de prata.

Parece, então, claro o seguinte: primeiro — não há excusas para o abandono espontâneo da comunhão da Igreja, onde a Palavra de Deus é pregada e os sa­cramentos administrados.

Segundo — não obstante a falta de poucos, ou de muitos, nada nos deve impedir de professar devida­mente a nossa fé nas ordenanças instituídas por Deus, pois uma consciência pura não é prejudicada pela in­dignidade de outro; seja o pastor ou um simples in­divíduo; os sagrados ritos não são menos puros, nem menos salutares, para aquele que é santo e justo, em­bora tomados ao mesmo tempo por mãos impuras.

Não pode haver igrejas sem primeiro haver per­dão de pecados, pois Deus não prometeu a sua mise­ricórdia a não ser à comunhão dos santos; de modo que a entrada na Igreja e no reino de Deus é pelo per­dão dos pecados, sem o que não temos pacto nem união com Deus. Pela remissão dos pecados, o Se­nhor não somente nos admite na Igreja, mas nos pre­serva e defende nela. Uma vez que ainda levamos co­nosco restos dos nossos pecados, nós só podemos con­tinuar na Igreja pela ininterrupta graça perdoadora de Deus.

Quando Cristo deu ordem aos apóstolos, conferin­do-lhes o poder de perdoar pecados, Ele não apenas quis que eles libertassem os pecadores da impiedade pela fé em Cristo, mas também que eles pudessem per­petuamente exercer esse ofício entre os crentes.

Paulo nos ensina que a embaixada da reconcilia­ção foi entregue aos ministros da igreja, para que pos­sam em nome de Cristo exortar os homens à recon­ciliação com Deus, 2 Coríntios 2.20.

De modo que na comunhão dos santos, os nos­sos pecados são constantemente perdoados pelo minis­tério da Igreja toda vez que um bispo ou presbítero, a quem o ofício foi entregue, confirma as consciências

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pias na esperança do perdão, pelas promessas do evan­gelho, tanto em público, como em particular, confor­me o caso requer. Há três coisas que devem ser ob­servadas: primeiro — qualquer que seja o grau de san­tidade dos filhos de Deus, enquanto habitarem esse corpo mortal, não poderão permanecer diante de Deus sem perdão de pecados.

Segundo — esse benefício é tão peculiar à Igreja, que não podemos dele desfrutar fora da comunhão dela.

Terceiro — esse benefício é dispensado a nós pe­los ministros e pastores da Igreja, na pregação do evan­gelho e na mínistração dos sacramentos; é aí pois que se manifesta o poder das chaves que o Senhor entregou à companhia dos fiéis.

Há aqueles que pretendem que no batismo o po­vo de Deus seja regenerado para uma vida pura e an­gélica, que não pode ser poluída pela contaminação carnal.

Se o homem peca depois do batismo, nada lhe resta, a não ser o implacável julgamento de Deus.

Em resumo, ao pecador que escorregou depois de receber a graça não é dada a esperança do perdão, uma vez que o perdão só é concedido aos que são re­generados .

Em primeiro lugar, o Senhor ordena repetir dia­riamente a oração: “Perdoa as nossas dívidas”. Essa petição não é feita em vão; do contrário, o Senhor não nos teria ordenado pedir.

O Senhor requer dos seus santos confissão de pe­cados durante toda a sua vida; e sem cessar promete- lhes perdão.

Portanto, perdão não é para uma só vez, ou duas somente, mas tantas quantas nos sentirmos alarma­dos pelo senso das nossas faltas e clamarmos por perdão. .

Os livros proféticos estão cheios de ofertas de mi­sericórdia para um povo coberto de inúmeras trans­gressões .

Será que a vinda de Cristo privou os cristãos des­se privilégio de pedir perdão para os seus pecados?

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Pedro tinha ouvido Nosso Salvador declarar que aqueles que não confessassem o seu nome diante dos homens seriam negados diante dos anjos de Deus; ele negou Jesus três vezes numa noite e não sem execra­ção; todavia, não lhe foi negado o perdão.

Às vezes, uma igreja inteira pode ser implicada nos mais negros pecados e ainda Paulo, invés de en­tregá-la à destruição, misericordiosamente a exorta.

A defecção dos gálatas não foi uma falta trivial; os coríntios não foram menos excusáveis; no entanto, não foram excluídos da misericórdia de Deus.

Notemos que, com o Credo, somos lembrados de que o perdão dos pecados sempre reside na igreja de Cristo, pois, uma vez constituída, lhe foi entregue o perdão dos pecados.

A Palavra de Deus, que deve ser a nossa única re­gra, ensina-nos a ponderação; e que o rigor da disci­plina não deve ser exercido com tanta força a ponto de agravar a situação daqueles a quem os benefícios dela deviam ser designados.

A IGREJA FALSA E A VERDADEIRAOnde a mentira e a falsidade prevalecem não exis­

te igreja. A falsidade está onde a doutrina de Cristo não está em vigor, portanto, o papado não é igreja.

É difícil dizer quanto de igreja ainda subsiste no papado. Pois, ali, invés do ministério da palavra, pre­valece um governo pervertido, composto de mentiras; um governo que parcialmente extingue, parcialmente suprime a pura luz.

Em lugar da ceia do Senhor está o mais estulto sacrilégio; o culto de Deus é deformado por um amon­toado de superstições intoleráveis; a doutrina está in­teiramente enterrada; as assembléias públicas são es­cola de idolatria e impiedade.

Nessa situação, participar dessa igreja é correr o risco de ser separado da verdadeira Igreja de Cristo.

Que é que alegam para defender a autenticidade dessa igreja?

Que argumentos apresentam para provar que es­tão de posse da verdadeira igreja?

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Apelam para os registros antigos que outrora exis­tiram na Itália, França e Espanha, pretendendo deri­var a sua origem daqueles homens santos, que pela doutrina, fundaram e levantaram igrejas: baseados na doutrina e com sacrifício de seu sangue.

Apresentam a importância de homens, como Iri- neu, Tertuliano, Orígenes, Agostinho e outros, que fa­zem parte dessa sucessão apostólica. Pergunto-lhes: por que é que não citam África, Egito e toda a Ársia; naturalmente que naquelas regiões se interrompeu a sagrada sucessão pela qual se gabam de ser a conti­nuação da Igreja.

Alegam ser a verdadeira Igreja porque, desde o princípio, nunca lhe faltaram bispos que se sucedes­sem numa série ininterrupta.

Mais uma vez eu lhes pergunto por que não men­cionam a Grécia? Por que é que dizem que a Igreja pereceu entre os gregos, onde nunca houve interrup­ção na sucessão de bispos?

Por que é que chamam os gregos cismáticos?Porque eles se revoltaram contra a Sé Apostólica,

perderam seus privilégios.Por que é que aqueles que se revoltaram contra

Cristo não mereceram perdê-la muito mais?A pretensa sucessão apostólica é sem nenhum va­

lor, se a posteridade não retiver a verdade de Cristo a ela transmitida pelos seus pais, e sem corrupção contínua.

Podíamos comparar a pretensão dos romanistas a aquela dos judeus, quando os profetas do Senhor os acusaram de cegueira, impiedade e idolatria.

Gabavam-se de seus templos, de suas cerimônias e de seus sacerdotes, pelos quais aferiam a Igreja

Jeremias opôs-se à tolice dessa confiança dos ju­deus, dizendo: “Não confieis nas palavras mentirosas, dizendo: Templo do Senhor, templo do Senhor, tem­plo do Senhor são estes” (Jr. 7.4).

O Senhor não reconhece nada como seu, quando a sua palavra não é ouvida, nem observada.

Agostinho diz a respeito da Igreja: “Às vezes, ela

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é obscurecida por uma multidão de escândalos; às ve­zes, surge livre; às vezes, é coberta e batida pelas on­das da tribulação e da provação”.

Ele menciona que as mais fortes colunas da Igre­ja muitas vezes suportaram o exílio por causa da sua fé, ou se encontraram escondidos através do mundo.

Assim os romantistas atacam nos dias presentes aqueles que estão mal preparados, atribuindo a si pró­pria o nome de igreja, quando eles são adversários de Cristo.

Enquanto eles exibem templos, sacerdotes e ou­tras coisas semelhantes, o brilho vazio com que ofus­cam os olhos dos mais simples não nos levará a ad­mitir que haja igreja onde a Palavra de Deus não apa­rece.

O Senhor ofereceu-nos uma prova infalível, quan­do disse: “Aquele que é da verdade ouve a minha voz” (Jo 18.37). E ainda mais: “Eu sou o bom pastor, co­nheço as minhas ovelhas e delas sou conhecido”; “Mi­nhas ovelhas ouvem a minha voz, eu as conheço e elas me seguem” (Jo 10.14, 4 e 5).

Acusam-nos de cisma, porque pregamos uma dou­trina diferente; não nos submetemos às suas leis, reu- nimc-nos para oração, batismo, a Ceia e outros ritos separados deles.

Uma acusação séria, mas a que não nos damos ao trabalho de responder.

A nossa união no amor depende da unidade dafé.

Faulo nos exorta a manter como princípio fun­damental que: “Há um só Deus, uma só fé, um só batismo” (Ef 4.5).

De modo que, quando ele nos recomenda ter uma só mente, um só coração, acrescenta logo: “Que haja em vós o que houve em Cristo Jesus” (Ep 2.2,5). O que quer dizer: onde não está a Palavra do Senhor, não há união, mas há facção e impiedade.

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Com respeito aos judeus, enquanto eles persisti­ram nas leis do pacto, uma verdadeira Igreja existia entre eles; pela bondade de Deus, gozavam dos bene­fícios de uma igreja. A verdadeira doutrina se conti­nha na lei e o ministério era desempenhado pelos pro­fetas e sacerdotes.

Eles eram iniciados na religião pelo sinal da cir­cuncisão e por outros sacramentos eram exercitados e confirmados na fé.

Depois eles abandonaram a lei do Senhor e se entregaram à idolatria e superstição, perdendo, par­cialmente, o privilégio.

Sim, parcialmente, porque ainda conservavam a pregação da Palavra e a observação dos seus misté­rios .

Perguntar-se-ia: Nada ficou de igreja, quando os judeus se entregaram à idolatria?

Em primeiro lugar, deve-se considerar que a que­da dos judeus foi gradual. Entre Judá e Israel houve uma diferença de tempo. Jeroboão corrompeu a reli­gião inteiramente. No caso de Reboão, embora tives­sem adotado muitas cerimônias erradas, ainda a lei e o sacerdote, como a doutrina e os ritos instituídos por Deus, continuaram em Jerusalém, de modo que os piedosos tinham ainda a sua igreja numa situação aceitável.

Em Israel, principalmente depois de Acabe, a si­tuação foi de mal a pior. Em Judá, alguns reis eram corruptos, outros tentavam alguma reforma, até que o sacerdócio foi corrompido, o templo profanado e os ritos se tornaram abomináveis. Com os papistas, em­bora queiram negar, a situação é comparada ao reino ed Israel no tempo de Jeroboão —■ a mais grosseira idolatria, a doutrina inteiramente impura e eles são, talvez, mais impuros ainda.

Quando desejam forçar a nossa comunhão com a sua igreja, fazem duas exigências: Primeiro, que nós participemos de suas orações, seus sacrifícios, de to­das as cerimônias. Segundo, que a honra, poder, ju­risdição que Cristo deu à sua Igreja lhes sejam atri­

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buídas.Com respeito à primeira, admitimos que os profe­

tas que estavam em Jerusalém quando tudo estava cor­rompido não se separaram para sacrifícios ou orações; pois eles tinham a ordem de Deus para se reunirem no templo e o sacerdócio, por mais indigno que fosse, tinha esse título a ele conferido e o direito de mantê- lo . Êxodo 29.9. No entanto, os profetas não eram obri­gados a participar de cultos supersticiosos ou idóla­tras.

Nenhum profeta verdadeiro pode ser apontado ofe­recendo sacrifícios em Betei.

Portanto, eu afirmo que a comunhão com a Igre­ja não é obrigatória àqueles que são fiéis, quando esta igreja tem se degenerado.

Quanto à segunda parte, a nossa objeção é ainda maior: embora os profetas dos judeus e israelitas nos seus dias, em semelhante condição, denunciassem as reuniões da sua igreja como profanas, delas não lhes era lícito participar mais, a menos que abjurassem o seu Deus. Isaías 1.14. De modo que, se aquilo era igreja, Elias, Miquéias e outros de Israel; Isaías, Je­remias, Oséas e outros semelhantes em Judá, a quem os profetas, sacerdotes e o povo de seus dias execra­vam e odiavam, mais do que os incircuncisos, estavam alienados da Igreja de Deus.

Pois se aquilo era igreja, não era ela mais a co­luna da verdade, mas da falsidade; não era o taber- náculo do Deus vivo, mas o receptáculo dos ídolos, por isso eles sentiram necessidade de se negar a par­ticiparem das suas reuniões, desde que isso seria nada mais de que uma conspiração contra Deus.

Por essa razão, nos dias presentes, quando a igre­ja está contaminada pela idolatria, superstição e dou­trina ímpia, participar da comunhão dela é concor­dar com ela e é um grande erro.

Onde há igreja está o poder das chaves, mas o poder das chaves é inseparável da palavra que eles aboliram. Se eles são igreja, eles podem ar rogar-se a promessa de Cristo: “O que quer que ligardes..

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Ao contrário eles separam da comunhão todos os que protestam servir a Cristo. Portanto, ou a promessa de Cristo é vã ou eles não são igreja.

Embora estejamos dispostos a conceder que o no­me de igreja possa ser dado a algumas de suas igre­jas, a questão que levantamos relaciona-se à legítima constituição da Igreja, que implica na comunhão, nos ritos sagrados, que são sinais da profissão, e especial­mente da doutrina

Daniel e Paulo predisseram que o anti-Cristo se assentaria no templo de Deus; e nós consideramos o pontífice romano como chefe e porta-estandarte da­quele reino abominável e ímpio. Daniel 9.27 e 2 Tes- salonicenses 2.4.

Em uma palavra, consideramos igrejas aquelas que o Senhor miraculosamente preserva como rema nescente do seu povo; não obstante partidas e espa­lhadas, desde que com elas alguns símbolos da igreja ainda permanecem — especialmente, cuja eficácia nem as artimanhas do diabo, nem a depravação humana podem destruir.

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INDULGÊNCIA EPURGATÓRIO

O dogma da satisfação produziu as indulgências, pelas quais se supôs que, faltando em nós a capacida­de, essa pode ser suprida com a dispensação de Cris­to, dos apóstolos e dos mártires, que o Papa conce­de mediante a publicação das suas bulas.

A salvação ficava, assim, sujeita a um trágico lu­crativo, que foi tabelado por peças de dinheiro — nada concedido gratuitamente. E nesse caso servia pa­ra custear muita luxúria do pecado.

A essas indulgências deu-se o nome de "Tesouro da Igreja” e o depósito desse cabedal foi entregue ao bispo de Roma; tornou-se ele, nesse caso, dispenseiro das grandes bênçãos.

De tal maneira lhe pertencem esses tesouros que

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os pode exercer por si mesmo ou delegar poderes a outros para tanto.

Assim o Papa oferece indulgências plenárias em certas ocasiões e em outras por alguns anos. O car­deal oferece por cem dias, o bispo por quarenta dias.

Isso é uma profanação do sangue de Cristo; ilu­são de Satanás, pela qual o povo cristão foi condu­zido para longe da graça de Deus, da vida de Cristo, desviado do verdadeiro caminho da salvação.

Como poderia o sangue de Cristo ser profanado de maneira mais vergonhosa, do que por negar-lhe su­ficiência para remissão de pecados, reconciliação e sa­tisfação, como se, por um defeito qualquer, ele se se­casse, esgotasse e tivesse de ser suplementado?!

Pedro, em Atos 10.43, afirma: “Dele todos os pro­fetas dão testemunho de que, por meio de seu nome, todo aquele que nele crê recebe remissão de peca­dos” .

As indulgências, porém, atribuem a Pedro e Pau­lo, e também, aos mártires a remissão de pecados.

E João nos diz: “Que o sangue de Jesus Cristo nos purifica de todo pecado” (1 Jo 1.7).

A indulgência fez o sangue dos mártires ablução pelo pecado — em 1 Coríntios 1.13, encontramos: “Aca­so Cristo está dividido? Poi Paulo crucificado em fa­vor de vós?”

Que é que fazem as indulgências, senão transfor­mar Jesus Cristo em um vulgar san:i)ho, que mal po­de aparecer em meio à muidão?!

A interpretação tortuosa da passagem de Paulo em que ele diz completar no seu corpo o sofrimento de Cristo, em Gálatas 1.24, é que se aplica às indul­gências; essa passagem não se refere à santificação ou expiação, mas aos sofrimentos da vida como membros do corpo de Cristo que somos nós.

E quando São Paulo diz, em 2 Timóteo 2.10, “Tu­do sofro por amor dos escolhidos”, ou quando escre­ve, 2 Coríntios 1.6, “Se somos afligidos é para a vos­sa salvação”, explica, no entanto, que era ministro da Igreja e não autor da redenção, conforme a dispensa- ção que recebera para pregar o evangelho.

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E Pedro testemunha, em Atos 15.11: “Cremos que fomos salvos pela graça do Senhor Jesus”.

Paulo, ainda, em Romanos 5.10: “porque se nós, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, estando reconciliar dos, seremos salvos pela sua vida”.

Quanto ao purgatório, é um insulto intolerável à misericórdia divina, que torna vã a cruz de Cristo e corrói a fé.

O purgatório é a satisfação oferecida depois da morte. Alegam, no entanto, que, quando Jesus diz que os pecados contra o Espírito Santo não serão perdoa­dos nem neste mundo, nem no futuro, está admitindo que há remissão dos pecados depois dessa vida.

Que é que isso tem que ver com o purgatório? (Ainda que essa alegação fosse verdadeira).

Uma vez que eles mesmos admitem que o pecado daqueles que vão para o purgatório será redimido na presente vida?

O que Jesus está afirmando ê que não serão li­vres, nem do julgamento da consciência, na vida pre­sente, nem do julgamento publicamente na ressurrei­ção dos mortos.

Outra passagem levantada para defesa do purga­tório é, Mateus 5.25.26: “Em verdade vos digo, que não sairá dali até que pague o último ceitil”.

Calvino diz que, se nessa passagem o juiz é Deus, o adversário o Diabo, o oficial o amigo, a prisão o pur­gatório, pode se aceitar. Mas, o que Cristo quer mos­trar são os riscos a que se expõem todos os que obs­tinadamente insistem na sua perfeição, ao invés de se contentarem com o que é justo e razoável, exortan­do-os à concórdia. Não há aqui nenhum purgatório.

Procura-se argumento para o purgatório na pas­sagem de Paulo, quando se refere aos joelhos que se hão de dobrar a Cristo, em Filipenses 2.10, tomando- se as coisas debaixo da terra como se fossem as almas do purgatório.

O que o apóstolo está querendo dizer é que Cris­to recebeu domínio de todas as criaturas, as quais es­tão sujeitas a Ele.

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Paulo, do mesmo modo, interpreta a profecia, quan­do diz: “Como está escrito: Por minha vida, diz o Se­nhor, diante de mim se dobrará todo o joelho, e toda a língua dará louvores a Deus”. “Assim, pois, cada um de nós dará conta de si mesmo a Deus” (Rm 14.11.12).

Quanto à passagem tomada do livro de Macabeus, Calvino se recusa a tratar, pois não está incluida nos livros canônicos.

Em 1 Coríntios 3.12-15, São Paulo fala de ser sal­vo pelo fogo, daí a interpretação como se fosse fogo do purgatório.

Todavia, a grande maioria dos padres da Igreja dão uma interpretação diferente — a tribulação é um meio pelo qual o Senhor prova o seu povo para que não se acomode às impurezas da carne — isto é mui­to mais provável do que fogo do purgatório, embora Calvino tenha uma outra interpretação.

São Paulo não diz que são as obras de algumas pessoas que são provadas, mas de todas, como pensa Agostinho.

O apóstolo usa de uma metáfora, quando utiliza a figura de madeira, do feno, da palha.

Pois a madeira é consumida pelo fogo e destruí­da, de modo que nenhum será capaz de resistir à pro­vação, feita pelo Espírito de Deus.

A prata, o ouro, quanto mais perto do fogo mais claramente provam a sua genuinidade e pureza.

Assim é a verdade do Senhor, quanto mais subme­tida ao exame, mais bem firmada a sua autoridade.

A madeira, o ferro, o feno são invenções dos ho­mens, não a Palavra de Deus, e não podem suportar o exame do Espírito Santo, porque é doutrina espúria.

São Paulo usa a expressão dia do Senhor, comum nas Escrituras quando toda a verdade será manifesta.

Alguns alegam que a observância da doutrina do purgatório é de grande utilidade na Igreja.

São Paulo, incluindo a sua própria época, que ninguém pode pôr outro fundamento, senão o que já foi posto, Jesus Cristo.

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Isso quer dizer que as falsas doutrinas são anti­gas, pois já existiam no tempo de Paulo.

Não há passagem na. Escritura que abone ora­ção pelos santos, nem exemplos de santos que lemos e que falam disso.

Mesmo aqueles que, no passado, oraram pelos mor­tos afirmavam que não tinham apoio nas Escrituras.

Os crentes não devem se empenhar na prática da­quilo de que não tenham firme convicção, como São Paulo nos exorta, em Romanos 14.22-23: “Bem aven­turado é aquele que não se condena naquilo que apro­va.. . tudo que não provém de fé é pecado”.

O grande conforto que se encontra nas Escrituras está em Apocalipse 14.13: “Bem aventurados os mor­tos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem das suas fadigas”.

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A ETERNA ELEIÇÃO

Como resultado da vontade divina, a salvação é oferecida gratuitamente a alguns e outros são impe­didos de alcançá-la.

Esse assunto levanta questões muito importantes e difíceis de responder.

O pacto da vida não é pregado igualmente a todos e não tem a mesma recepção entre aqueles a quem é pregado.

Nunca estaremos convencidos suficientemente de que a nossa salvação provém da livre graça de Deus até que entendamos que resulta duma eterna eleição, pela qual Deus não confere promiscuamente a espe­rança da salvação, mas a dá a alguns e a recusa a outros.

A ignorância desse princípio detrata a glória de

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Deus, impede a verdadeira humildade. Paulo declara que nada pode ser conhecido, a não ser que Deus co­locou de lado as obras inteiramente fora de questão e elege aqueles que predestinou, não pelas obras, mas pela graça. Romanos 11.6 — “Se é pela graça não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça”.

Paulo afirma, pois, que somente quando a salva­ção é atribuída à eleição gratuita, chega-nos ao conhe­cimento que Deus salva a quem Ele quer, segundo o seu único prazer, e não paga um débito, que nunca foi devido. João 10.28 — “Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão eternamente, e ninguém as arreba­tará das minhas mãos”.

Duas observações sobre o assunto. Primeiro: da­da a dificuldade do assunto da predestinação, é peri­goso que a curiosidade do homem não se restrinja àquilo que podem saber e vagueie por caminhos proi­bidos a nós, buscando os segredos de Deus. Segundo: quando inquirimos de predestinação, estamos pene­trando no recesso da divina sabedoria; e, ao invés de satisfazermo-nos, entramos num labirinto inescap ivel que o Senhor houve por bem ocultar dentro de si mesmo.

Não é justo que o homem, sem impunidade, esteja espiando as coisas que Deus houve por bem ocultar em si mesmo, ou penetrar a sabedoria eterna e subli­me que não quis que nós aprendêssemos, mas adorás­semos .

Esses segredos são revelados na sua Palavra, até onde Ele julga condizente com o nosso interesse e bem estar.

No momento em que saímos dos limites de sua Palavra desviamo-nos e tropeçamos.

Não devemos ter vergonha de ser ignorantes, em matéria em que a ignorância é sabedoria.

Alguns preferem omitir essa doutrina por não en­tendê-la .

As Escrituras, no entanto, são a escola do Espí­rito Santo, em que nada que é útil ou necessário ao nosso conhecimento foi omitido. Daí, não devemos

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querer ocultar o que está revelado nas escrituras so­bre predestinação, pois, assim, estaremos privando de bênçãos os crentes ou pareçamos reprovados, ou cen­surando o Espírito Santo por ter publicado aquilo que convém suprimir.

Quando atribuímos presciência a Deus, dizemos que todas as coisas sempre foram e sempre continuam perante seus olhos, para os quais o conhecimento não tem passado, nem futuro, pois que todas as coisas es­tão presentes a sua imediata observação.

Essa presciência se estende ao mundo interior e a todas as criaturas.

Por predestinação queremos dizer o decreto eter­no de Deus pelo qual determinou consigo mesmo o que Ele deseja que aconteça com respeito a todo homem— todos são criados em igual termo, mas alguns são preordenados para vida eterna e outros para perdi­ção eterna.

Exemplos disto são Abraão, Jacó, Esaú, — Mala- quias 1/2,3 — Romanos 9.13.

O dom de Deus pelo qual escolhe alguns está ba­seado na livre misericórdia de Deus, sem qualquer res­peito humano.

Não obstante o Evangelho se dirija a todos os homens em geral, o dom da fé é concedido a poucos.

Deus sela os seus eleitos, chamando-os, justifican­do-os e, assim, excluindo os reprovados do conheci­mento do seu nome e da santificação do Espírito.

Refutação às objeções da doutrina da eleição in­justamente atacada.

A mente humana ao ouvir essa doutrina deve re­primir a sua petulância.

Alguns professam defender a divindade, admitin­do a doutrina da eleição, mas negando que alguns se>- jam reprovados.

Essa posição é pueril, pois não pode haver elei­ção sem reprovação.

Não se pode tolerar a petulância dos homens que não se limitam ao ensino da Palavra de Deus em re­lação ao seu conselho incompreensível, que os anjos adoram.

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Paulo não assume essa atitude, acha que não é lícito à criatura contender com o Criador.

A palavra de Jesus afirma: “Toda planta que meu Pai celestial não plantou será arrancada” (Mt 15.13)

Paulo, na epístola aos Romanos, Capítulo 9, ver­sículos 22 e 23, assim afirma, “Que diremos, pois, se Deus querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou, com muita longanimidade, os va­sos de ira, preparados para perdição, afim de que tam bém desse a conhecer as riquezas da sua glória, em vasos de misericórdia, que para a glória preparou de antemão?”.

A suprema lei da justiça é a vontade de Deus, de modo que tudo que Ele deseja tem que ser aceito co­mo justo, pelo simples fato de seu querer, porque Deus desde o princípio predestinou alguns para a mor­te, os quais nem ainda tinham nascido; como podem merecer a sentença de morte? Perguntam!

Respondemos, perguntando: que é que pensamque Deus deve ao homem?

— Se todos que Ele condena já são, pela sua pró­pria natureza sujeitos a isso!

Assim, quando perecerem na sua corrupção, estão apenas sofrendo o castigo pela culpa que têm, desde que, quando Adão caiu, arrastou consigo toda a sua posteridade.

A resposta vem da Palavra do apóstolo Paulo: “Quem és tu, ó homem, que contendes com o teu Deus?” (Rm 9.20).

Paulo não está evadindo, apenas declarando, queo procedimento da justiça divina é alto demais para ser escrutinizado pela medida humana, ou compreen­dido pela fraqueza do nosso intelecto.

Para Paulo, nenhuma conta disso deve ser dada; porque a sua magnitude excede ao nosso 'entendimen­to.

A imensidade do julgamento divino é conhecida pela nossa experiência.

Olhar para a estreiteza de sua própria mente e

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dizer que não entende os decretos de Deus será o me­lhor.

Vemos no livro de Jó e nos livros proféticos a in- compreensibilidade da sabedoria e do poder tremendo de Deus.

Convém ouvir o conselho de Agostinho: “Tu ó ho­mem! Esperas uma resposta de mim? Eu também sou homem”.

Uma outra objeção procura justificar o pecador: Por que Deus culpa o homem por coisas que ele pra­tica por necessidade: por ser predestinado, que é que ele poderia fazer?

Salomão diz que Deus faz todas as coisas para o seu próprio fim, até o ímpio para o dia do mal. Pro­vérbios 16,14: “O Senhor fez todas as coisas para de­terminados fins, até o perverso para o dia do mal”.

Agostinho dizia: “Confessemos, com maior bene­fício, o que cremos como maior verdade que Deus o Senhor de todas as coisas tudo fez muito bom. Tanto previu que o mal havia de surgir do bem e sabia que pertencia a sua onipotente bondade trazer o bem do mal, ao invés de não permitir o mal; assim ordena a vida dos anjos e dos homens, para mostrar: Primei­ro: — o que a vontade livre pode fazer; Segundo — o que os benefícios da sua graça e seu julgamento jus­to podem fazer”.

Há uma outra terceira objeção que levantam os adversários da predestinação; parte da afirmação de Pedro, em Atos 1034; Paulo em Romanos 2.10, Efé­sios 6.9, Gálatas 3.27, e em Tiago 2.5. Declaram que Deus não faz acepção de pessoas, no entanto, na elei­ção adota um e deixa outro; Por que isto? Se não há diferença de mérito? Quando Deus assim procede, se­gundo a sua misericórdia o faz conforme é do seu agrado.

Ainda um outro argumento empregado para derru­bar a predestinação não há estímulo para a prática do bem, uma vez que tudo já está decidido. A resposta quem dá é Paulo, em Efésios 1.4-6: “Assim como nos escolheu nele, antes da fundação do mundo, para ser­

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mos santos e irrepreensíveis perante Ele; e em amor nos predestinou para Ele, para adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito da sua vontade, para louvor e glória da sua graça, que nos concedeu gratuitamente no amado”.

Paulo, com fervor, exorta à vida de piedade e de­clara que fomos criados em Cristo para boas obras, as quais Deus tem preparado para os que nela andam.1 Tessalonicenses 4.4-7.

A piedade deve ser prezada, para que Deus seja devidamente adorado, e a predestinação deve ser pre­gada para aqueles que tem ouvidos para ouvir; com respeito à àgraça divina, gloriem-se não em si mesmo, mas no Senhor.

Porque Ele nos lembra que as coisas que são verdadeiras devem ser propriamente ditas.

Agostinho afirma: “Porque não sabemos quempertence ao número dos predestinados ou quem nãc pertence. Daí, o nosso desejo é de que todos sejam Salve'S e a todos os que encontramos desejamos que sejam participantes conosco da paz; mas a nossa paz repousa sobre os filhos da paz... a Deus cabe fazêla ao alcance dos que Ele antes conheceu e predestinou”.

Eleição confirmada pela vocação de Deus A eleição é secreta, mas é manifesta por um cha­

mado eficaz, ou vocação eficaz. Ambas têm a sua fon­te na misericórdia de Deus. Romanos 8.29,30.

Pela vocação, Deus admite os eleitos na sua famí­lia e os une a si mesmo, para que possam ser um com Ele. O apóstolo São Paulo e os profetas proclamam a vocação livre de Deus.

A dispensação da vocação consiste não somente na pregação da Palavra, mas também na iluminação do espírito. '

Dois erros devem ser evitados. Primeiro, pensar que o homem como cooperador de Deus ratifica a sua eleição — assim a vontade do homem fica sendo supe­rior ao conselho de Deus.

Outros fazem a eleição depender da fé — com respeito a nossa parte, sim, mas ela já existia no se-

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ereto conselho de Deus, que é então exposto, ratificado e selado.

Que prova tem uma pessoa de que é eleita, uma vez que a salvação é pura obra de Deus?

É perigoso tentar penetrar no eterno conselho de Deus; pois, saber se é eleito é uma indagação que começa e termina com a vontade de Deus conforme as Escrituras declaram em Romanos 8.32, João 3.16, e João 5.24.

De modo que quem tem a Palavra de Deus deve descansar nas declarações das Escrituras.

Aqueles a quem Deus chamou entregou aos cuida­dos do grande Pastor. Ele declara que as suas ove­lhas ouvem a sua voz, João 10.3-11.

Pergunta-se: e os que se desviam depois de ter seguido por algum tempo? João nos afirma, 1 João 2.19, “Eles sairam do nosso meio, entretanto, não eram dos nossos; porque se tivessem sido dos nossos, te­riam permanecido conosco; todavia, eles se foram pa­ra que ficasse manifesto que nenhum deles era dos nossos”. Não se nega que tinham sinais, como se fos­sem verdadeiros chamados; mas eles não tinham as raízes profundas.

Embora os hipócritas finjam piedade, como se fossem verdadeiros cultuadores de Deus, Cristo decla­ra que tais serão lançados fora.

E Judas? Jesus disse que nenhum se perderia, se­não o filho da perdição. João 17.12,

Judas foi eleito para o cargo, mas não para a sal­vação .

A oferta da salvação não é proclamada a todos? Sim, mas a vocação eficaz só é dada àqueles a quem Ele iluminou; e Ele iluminou aqueles que são predes­tinados para a salvação.

A misericórdia de Deus é oferecida a todos pelo Evangelho e a fé distingue entre o que é de Deus e o que não é.

De modo que um experimenta a eficácia do Evan­gelho, mas o outro dela não deriva nenhum benefício. Se Deus não odeia nada que Ele fez, como explicar que alguns são condenados? A resposta é que os que

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são reprovados são realmente odiados por Deus, com muita justiça, pois são destituídos do seu espírito e naua fazem senão para merecer sua condenação

Finalmente, tudo que se disse de um lado ou de outro nos conduz ao grande mistério que surpreendeu Paulo e que o fez exclamar às línguas petulantes o que nós devemos fazer também oom ele: “ó homem, quem és tu que réplicas a Deus?” Como Agostinho bem afir­ma, é um ato mau medir a justiça de Deus pelos pa­drões da justiça humana.

Verifica-se que a doutrina da predestinação, ou eleição, é algo que realmente excede os limites da com­preensão humana.

Ninguém mais do que Calvino entendeu isso e dei­xou bem claro que não entendia a doutrina que, no entanto, estava clara na Bíblia.

A cada passo na sua exposição está ele advertin­do-nos de que há mistério, reservado ao secreto con­selho de Deus; que não nos compete especular ou ten tar descobrir, a menos que nos queiramos perder num labirinto sem saída: “Tenhamos em mente que dese­jar qualquer outro conhecimento da predestinação, a não ser aquele que está desenvolvido na Palavra de Deus... seria como desejar andar em caminhos im- passáveis, ou ver no escuro. Não nos envergonhemos de ser ignorantes de algumas coisas em relação a um as­sunto no qual a ignorância é uma espécie de sabedoria”.

Aliás, perguntaríamos: É a doutrina da predestina­ção a única doutrina que envolve mistério? Que dizer­mos da doutrina da Trindade, ou do grande mistério da encarnação? Que dizermos nós da humilhação de Cristo, pela qual, sendo Deus, se sujeitou às fraquezas e contingências da nossa natureza humana? É aí que en­tra a fé, esse sexto sentido, que nos permite ver o que não podemos ver, aceitar o que não podemos aceitar.

É lamentável que até alguns descendentes espiri­tuais de Calvino o mantenham em certa reserva e des­confiança, qusm sabe até desprezo, por causa dessa doutrina.

Já se observou que Calvino não trata de predes­

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tinação no seu livro antes que chegue o momento em que, pela ordem natural dos assuntos, o tenha de in­cluir na sua exposição.

De modo que seria exagero querer tomá-la a dou­trina máxima de Calvino.

Por outro lado, é fácil verificar que Calvino não inventou a doutrina da predestinação, nem usou de artifícios de hermenêutica para formulá-la.

Agostinho é tão predestinacionista quanto Calvi­no.

É Paulo a fonte em que ambos vão buscar a sua doutrina: suas epístolas aos Gálatas, e aos Efésios e, principalmente, aos Romanos, apresentam essa doutri­na, que ele também declara insondável à compreensão humana.

Se interpelássemos Paulo a respeito da predesti­nação, estou certo de que ele nos diria que não a in­ventara, mas recebera por revelação do espírito de Deus.

O que acontece com Calvino é que a Palavra de Deus lhe inspira um tal respeito, que não lhe permite fugir da verdade que ela nos revela, ainda que essa verdade seja à nossa maneira de entender inexplicá­vel e aparentemente terrível.

Mas, Calvino não tem dúvida daquilo que as Es­crituras afirmam: “O que foi escrito, para o nosso en sino foi escrito”.

E previne-nos contra dois perigos: ou de parecer que estamos querendo corrigir o Espírito Santo, re­tendo aquilo que ele houve por bem publicar, cu que procuremos penetrar naquelas coisas que o Senhor ocultou. Corremos o risco de ser condenados por curio­sidade excessiva, de um lado, ou por ingratidão, do outro lado.

Calvino tinha a preocupação de lidar com a Pa­lavra de Deus com reverência, e absoluta honestidade, por isso mesmo, podia dizer nos últimos momentos de sua vida que nunca torceu um texto da Palavra de Deus, à espessura de um fio de cabelo, para defender sua posição.

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MESTRES E MINISTROS DA IGREJA

Já mencionamos as razões porque Deus, no go­verno da Igreja, usa o ministério dos homens.

Essas razões são encontradas nas Escrituras.O ministro é o mais útil cargo em toda a Igreja.As Escrituras falam dos apóstolos, profetas, evan­

gelistas, pastores e mestres. Efésios 4.11.Desses, somente os dois últimos têm ofício ordi­

nário na Igreja. O Senhor levantou os outros no co­meço do seu reino, conforme a necessidade.

Pastores e Mestres, dos quais a Igreja nunca po­de abrir mão: e entre os quais, pensamos, não há dife­rença; os mestres não presidem sobre a disciplina, mi- nistração do sacramento ou admoestações, ou exorta­ções, mas na interpretação das Escrituras somente, para que a pura e sã doutrina seja mantida entre os crentes. O ofício pastoral abrange tudo isso.

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Entendemos que os oficiais do governo da Igreja eram temporários, que os ofícios, porém, são de perpé­tua duração.

Se colocarmos os evangelistas com os apóstolos, teremos dois ofícios de um certo modo corresponden­do um ao outro.

A mesma semelhança que os nossos mestres têm com os. antigos profetas, os pastores têm com os após­tolos .

O ofício profético era mais excelente, em virtude do dom da revelação especial que o acompanhava; mas o ofício de mestre é quase da mesma natureza e com a mesma finalidade.

Semelhantemente os doze que o Senhor escolheu para a pregação do Evangelho no mundo, Lucas 6.13, excedem aos outros em classe e dignidade.

Pois, não obstante a natureza do caso, e a etimo­logia da palavra, todos os oficiais eclesiásticos podem ser chamados apostolos, pois são enviados pelo Se­nhor e são seus mensageiros.

Como era de grande importância que uma prova segura fosse dada da missão daqueles que entregavam uma nova e extraordinária mensagem, convinha que os doze (aos quais São Paulo foi depois acrescentado) devessem ser distinguidos dos outros por um título peculiar. O nome é dado por Paulo a Andronico e Jú- nia, dos quais diz ele: “Notáveis entre os apóstolos” (Rm 16.7), todavia, quando fala com propriedade, con­fina o termo àquela primeira ordem. Isso é uso comum nas Escrituras.

Ainda os pastores, mesmo quando designados pa­ra uma Igreja particular, têm funções de apóstolosr.

Quando nosso Senhor enviou os apóstolos, deu- lhes a comissão de pregar o Evangelho e batizar os que cressem para remissão de pecados.

Já os tinha ele, anteriormente, incumbido de dis­tribuir o simbolo do seu corpo e do seu sangue, con­forme o seu exemplo. Mateus 28.19 e Lucas 22.19.

Tal é a lei sagrada, inviolável e perpétua, ligada àqueles que tomaram o lugar dos apóstolos — pregar o evangelho e administrar os sacramentos.

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E que dizer dos pastores? São Paulo, falando não somente de si mesmo, mas de todos os pastores, diz: "Que os homens nos considerem como ministros de Cristo, dispenseiros dos mistérios de Deus” (1 Co 4.1).

Em outra passagem, ele descreve o bispo como aquele que mantém firme, fiel, a palavra que lhe tem sido ensinada, para que possa ensinar a sã doutrina, exortar e convencer os contradizentes.

Dessa, e de outras passagens semelhantes, inferi­mos que as duas principais funções do pastor são pre­gar o evangelho e administrar os sacramentos.

O ensino, contudo, não consiste apenas na prega­ção pública, mas também na admoestação particular.

Lembrai-vos de que, por espaço de três anos, não cessei de vos exortar dia e noite com lágrimas” (At 20.20,31).

Quando o pastor é destinado a uma igreja, pode dar assistência a outras igrejas, se algo ocorrer que requeira a sua presença, seu conselho ou a solução de alguma dúvida. Contudo, para manutenção da paz e da ordem da igreja, cada um há de ter o seu dever de­signado para evitar desordem e outros males.

Isso não é uma invenção humana, mas é uma or­denação de Deus.

Lemos que Paulo e Barnabé nomeavam presbíte­ros em cada Igreja: em Listra, Antioquia e Icônio, Atos 14.23. E Paulo mandava a Tito que ordenasse presbí­teros em cada cidade, Tito 1.5.

Menciona bispo de Filipos, Archipo, o bispo de Colossos.

“Ao dar os nomes de bispos, bresbíteros e pastores, indiscriminadamente, aos que governam a igreja, faço com autoridade das Escrituras, que usam essas pala­vras como sinônimas”.

Todos os que desempenham o ministério da Pa­lavra recebem o nome de bispo.

Em Atos, os presbíteros de Éfeso são designados bispo, Atos 20.17.

O cuidado dos pobres era entregue aos diáconos, dos. quais Paulo menciona duas classes.

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Romanos 12.8 “O que exorta, faça com dedicação; o que contribui, com liberalidade; o que preside, com diligência; o que exerce misericórdia, com alegria”. En­tende que a primeira classe são os diáconos que ad­ministram as esmolas.

Os últimos aqueles que se dedicam ao cuidado dos pobres e dos enfermos: tais como as viúvas menciona­das em 1 Timóteo 5.10.

A origem, instituição e ofícios são descritos por Lucas, em Atos 6.3.

Para que alguém seja um verdadeiro ministro da Igfeja, é preciso que ele seja primeiramente chamado; e que ele responda ao chamado, isto é, execute o ofí­cio que lhe foi designado.

Quem deve nomear os ministros? E qual a ceri­mônia? Ou o rito inicial? Estamos referindo-nos ao chamado extedno, não àquele chamado íntimo do qual todo ministro deve estar consciente diante de Deus; isto é, aquele testemunho do nosso coração, de que não buscamos o ofício por ambição, nem por avareza, nem por qualquer outro sentimento egoístico, mas com um sincero temor de Deus e desejo de servir à Igreja, o que é indispensável para sermos aprovados diante de Deus.

Àqueles a quem Deus separou para esse ofício an­tecipadamente, fornece as armas para desempenhá-lo. Quem deve ser eleito Bispo? Tito 1.7 e 1 Timóteo 3.1. Ninguém deve ser escolhido senão aquele que é são na doutrina, tem uma vida santa e não é notório por qualquer defeito que prejudique a sua autoridade e o seu ministério.

A descrição do diácono e do presbítero é muito semelhante. Convém ter cuidado para não colocar so­bre eles uma carga para a qual não estão preparados.

Que é que se deve observar para a eleição dos presbíteros? Atos 14.23, Lucas narra como isto era feito: “Promovendo em cada igreja a eleição de pres­bíteros, depois de orar com jejuns.. . ”

Entendendo a seriedade do assunto, eles o trata­vam com grande reverência e solicitude e, acima de

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tudo, com oração, pedindo a Deus espírito de sabedo­ria e discernimento.

Por que, quem eram os ministros escolhidos? Os apóstolos foram escolhidos de um modo diferente, não por eleição dos homens, mas somente pela ordem de Deus e Cristo. O apóstolo São Paulo dizia que ele não foi feito apóstolo, nem dos homens, nem por ho­mem algum, mas por Jesus Cristo e Deus o Pai. Gá­latas 1.1.

No entanto, a maneira regular hoje é que os bis­pos sejam designados por homens, pelo que várias passagens das Escrituras assim o declaram.

Com respeito à pergunta, se o ministro deve ser escolhido pela Igreja inteira ou somente por alguns colegas e presbíteros encarregados para isso: ou se eles devem ser nomeados por uma autoridade; respon­de-se — Aqueles que atribuem esse direito a uma pes­soa, citam Paulo em Tito 1.5, 1 Timóteo 5.22.

Enganam-se, porém, supondo que Timóteo tinha essa autoridade em Éfeso e Tito em Creta para dispor das coisas ao seu bel prazer.

Eles somente presidiram, mas não faziam só; Lu cas relata que Barnabé e Paulo ordenavam presbíteros nas Igrejas, mas as palavras usadas significavam que cies selecionvam dois ou mais era o corpo todo ou assembléia em eleições que declarava, levantando as mãos, qual dos dois desejava ter.

Os ministros são vocacionados de acordo com a palavra de Deus e são eleitos com o consenso e apro­vação do povo, presidido por um ou mais pastores.

Cem respeito à ordenação, quando os apóstolos eram esclhidos, usavam a cerimônia da imposição das mãos, um costume que cremos ter sido dos judeus, quando se desejava impetrar a bênção. Esta era s. forma regular, sempre que alguém era consagrado ao ministério.

Os ministros são vocacionados de acordo com a palavra de Deus e são eleitos com o consenso e apro­vação do povo, presidido por um ou mais pastores.

Com respeito à ordenação, quando os apóstolos

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eram escolhidos, usavam a cerimônia da imposição das mãos, um costume que cremos ter sido dos judeus, quando se desejava impetrar a bênção.

Esta era a forma regular, sempre que alguém era consagrado ao ministério.

Em um outro lugar, Paulo menciona que ele mes­mo, sem outras pessoas, impõe suas mãos sobre Ti­móteo, 2 Timóteo 1.6.

Embora fale na Primeira Epístola da imposição das mãos do presbitério, não penso que Paulo estives­se falando de colégio de presbíteros.

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SACRAMENTO

Aliado à pregação do evangelho, temos um outro auxílio à nossa fé nos sacramentos, a respeito dos quais convém que a pura doutrina nos informe da finalida­de com que foram instituídos e seu uso presente.

Primeiramente, convém definir quê é sacramento. ‘ÍÉ um sinal exterior pelo qual o Senhor sela em nossa consciência as suas promesas de boa vontade para co­nosco, sustentando a fraqueza da nossa fé, para que de nossa parte testifiquemos a nossa piedade para com Ele, diante dele, diante dos anjos e diante dos homens”, "Um testemunho do favor divino para conosco, con­firmado por um sinai exterior correspondente à afir­mação da nossa fé para com Ele” Agostinho diz: "Sa­cramento é um sinal visível de uma coisa sagrada; ou a forma visível de uma graça invisível”.

Calvino julga que essa forma última obscurece o

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sentido e pode levar os mais ignorantes ao erro, pre­fere a forma mais extensa, por amor à clareza.

A palavra freqüentemente usada no grego é Mys- térion, em Efésios 1.9, 3.2; Colossenses 1.26.

No latim, a palavra é sacramentum, 1 Timóteo 3.16.

Daí o termo ser aplicado àqueles que represen­tam coisas espirituais e sublimes.

Não há sacramento sem promessa antecedente; e eles são dados para sustentar a nossa fé, ajudando a nossa ignorância e fraqueza. Costuma-se dizer que o sacramento compreende: palavra e sinal. A palavra pregada, nada de mágicas ou ditos de encantamento.

Em Romanos 10.8, São Paulo diz da palavra da fé que pregamos.

Em 1 Pedro 3.21, diz a palavra da fé que prega­mos e cita o exemplo da circuncisão, que Paulo diz era o selo.

Os sacramentos são a confirmação para o aumen­to da fé; mas isso não quer dizer que possuam virtu­de perpétua e inerente e eficaz para o avanço e con­firmação da fé, apenas que foram instituídos pelo Se­nhor com o propósito expresso de promover o seu es­tabelecimento em aumento.

São, no entanto, eficazes, quando acompanhados pelo Espírito, o eterno mestre, mercê de cuja energia so­mente nossos corações são quebrantados e nossa afei­ção movida; só assim o sacramento tem entrada em nossa alma.

Se ele está ausente, o sacramento não produz ne­nhum efeito, mais do que a luz do sol para o cego.

Os sacramentos são meros instrumentos: a ener­gia é do Espírito.

A função do sacramento é, pois, precisamente igual à da palavra de Deus; apresentar Cristo a nós e nele os tesouros da sua graça.

Nenhum proveito haverá, no entanto, se não fo­rem recebidos por fé.

Os sacramentos variam conforme o período e dis- pensação em que Deus houve por bem se manifestar.

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Para Abraão e sua posteridade é a circuncisão, a qual Moisés depois acrescentou a ablução, sacrifícios e outros ritos — esses eram sacramentos dos judeus até a vinda de Cristo, os quais foram com a sua vin­da substituídos por outros, a saber, o Batismo e a Santa Ceia.

A diferença é que aqueles prefiguravam Cristo prometido e ainda esperado; estes Cristo já vindo e manifesto.

O batismo testifica a nossa purificação e lava­gem.

O BATISMOO Batismo é um sinal de iniciação pelo qual so­

mos admitidos na sociedade da igreja, afim de ser mos incorporados a Cristo e sermos contados entre os filhos de Deus.

O Batismo tem como finalidade promover a fé em Deus e testificar a nossa confissão perante Ele.

Há três coisas no Batismo: primeiro — atestar o perdão dos pecados. O perdão não somente dos pecados passados, mas também dos futuros, o que não deve ser nenhum encorajamento para continua­ção no pecado. Segundo — o batismo nos ensina que fomos enxertados em Cristo, para a nossa mortifica­ção e novidade de vida. Terceiro — o Batismo nos ensina que estamos unidos a Cristo e somos partici­pantes de todas as suas bênçãos.

João Batista, e os apóstolos depois dele, batiza­ram para arrependimento e remissão de pecados, fi­cando entendido pelo termo arrependimento, regene­ração, e pela remissão de pecados, a lavagem.

É erro e falsa doutrina dizer que o Batismo nos isenta do pecado original, da corrupção de Adão, trans­mitida à sua posteridade .

Esta maneira de ver resulta do não entendimento do que realmente significa pecado original, bem co­mo da graça do batismo.

Os crentes recebem pelo batismo a afirmação de que os seus pecados foram redimidos, tanto da culpa que lhes foi imputada, como da penalidade em que

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incorreram pela culpa; isso tudo pelos méritos de Cristo.

O apóstolo São Paulo nos expõe, claramente, nos capítulos 6 e 7 da carta aos Romanos, o que significa o Batismo.

Ele fala da justificação gratuita e depois exorta os crentes a não permitir que o pecado reine em seus membros. Afirma que fomos aceitos por Deus, não por merecimento nosso, mas, porque fomos revestidos da justiça de Cristo e, regenerados pelo Espírito, rece­bemos o penhor disso no Batismo.

Refere-se à constante luta que permanece em nos­sa carne, pela qual ele clama: “miserável homem que sou, quem me livrará do corpo dessa morte?” (Rm 7.24).

Para a nossa consolação, ele acrescenta: “Agora não há nenhuma condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus”.

O Batismo nos dá a oportunidade de confessar diante dos homens, ao mesmo tempo de declarar aber­tamente, que desejamos fazer parte do povo de Deus e participar com todos os cristãos do culto a Deus; publicamente declaramos a nossa fé, para que com a nossa língua confessemos o que vai no nosso co­ração .

O valor do sacramento não está nas mãos daque­le que administra, pois ele é recebido das mãos de Deus: e, nesse caso, não é prejudicado, nem benefi­ciado, pela dignidade ou não do ministrador.

O batismo é ministrado em nome do Pai, do Fi­lho e do Espírito Santo, portanto não é um batismo dos homens mas de Deus, não importa quem seja o ministrante.

• Quanto à forma do batismo, se a pessoa é imer­sa uma ou três vezes, ou se ela é apenas aspergida com água, não há diferença. As igrejas devem ter li­berdade de adotar uma ou outra, de acordo com a diversidade do clima, não obstante o termo batismo signifique imersão e esta fosse a forma usada pela igreja primitiva. «

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Como a Santa Ceia» a ministração do batismo per­tence ao ministro, pois Cristo não ordenou qualquer homem ou mulher batizar, mas aqueles que escolher para apóstolos. A prática usada por muito tempo, des­de o começo, do batismo por leigos em perigo de morte quando o ministro não estava presente, não tem base suficiente.

Quando não podemos receber o sacramento da igreja, a graça de Deus não é inseparavelmente ligada a ele, de modo que a podemos receber pela fé, segun­do a sua palavra.

O BATISMO DA CRIANÇAO argumento contra o batismo de crianças é de

que não se trata de uma instituição divina; foi intro­duzido somente por vaidade humana, é uma curiosi­dade depravada e recebida na prática, posteriormente.

As Escrituras nos mostram que o batismo apon­ta para a purificação de pecados, que obtivemos pelo sangue de Cristo, e pela mortificação da carne, que consiste na participação da sua morte e regeneração para uma nova vida.

Antes da instituição do batismo, o povo de Deus tinha em seu lugar a circuncisão.

Vejamos a semelhança e diferença destes dois si­nais. Na circuncisão havia uma promessa espiritual dada aos pais, semelhantes àquela dada pelo batismo, pois que figurava para ambos perdão de pecados e mortificação da carne.

Deus prometeu a Abraão bênção para ele e nele às nações; e, para selar essa graça, deu-lhe o sinal da circuncisão.

Daí, não é difícil ver em que esses dois sinais são semelhantes e em que é que eles diferem.

A promessa a que nos temos referido acompa­nha ambos. Isto é, promessa do favor paternal de Deus, do perdão de pecados e da vida eterna. A coisa figurada é a mesma — regeneração. A base da qual essas coisas dependem é de ambos; assim, quanto ao significado interior não há diferença.

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A única diferença é na cerimônia exterior, isto é, a parte menos importante. Daí concluímos que tudo que se aplica à circuncisão se aplica ao batismo, ex­ceto na cerimônia visível. A circuncisão assegurava ao judeu a sua adoção na família de Deus, a sua entrada na Igreja e a sua aliança com Deus, o que se aplica perfeitamente ao batismo.

Como o Senhor antigamente concedeu a circun­cisão às crianças, fazendo-as participantes de tudo o que ela significava, o mesmo acontece no batismo com as crianças.

A circuncisão era o selo da promessa do pacto e esse pacto se estende às crianças cristãs.

Após o Senhor fazer o pacto com Abraão, orde­nou-lhe que esse pacto fosse selado nos infantis pelo sacramento exterior, o que se aplica às crianças cris­tãs de hoje.

Nosso Senhor Jesus Cristo tomou os pequeninos no seu braço e repreendeu os seus discípulos, que ten­tavam impedir que as crianças viessem a Ele. Mateus 19.13. E Ele mesmo afirmou: “Dos tais é o Reino dos céus”. Ele as abraçou e, com oração e bênção, entre­gou-as aos cuidados do Pai. Se é certo trazer as crian­ças a Cristo, por que não admití-las ao batismo, sím­bolo da nossa comunhão com Ele?

Se o reino dos céus lhes pertence, por que ne­gar-lhes o sinal pelo qual nele se tem acesso?

Alega-se que nenhuma criança foi batizada pelos apóstolos.

No entanto, embora não expressamente dito pe­los evangelistas, não são também expressamente ex­cluídas, quando se mencionam famílias batizadas, co­mo em Atos 16.15-32.

Se tal argumento é válido, então deveríamos ex­cluir as mulheres da Santa Ceia, uma vez que elas também não são mencionadas como participantes de­la nos dias dos apóstolos.

Com respeito à alegação de que o batismo de crian­ça foi introduzido muito depois da ressurreição de Cristo, não é verdade, pois que não há nenhum es­

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critor a,ntigo que não trace a sua origem aos dias dos apóstolos.

Esse símbolo aplicado às crianças confirma a pro­messa dada aos pais crentes pela qual o Senhor de­clara que será Deus dele e de sua semente.

O batismo é um estímulo aos pais para que se­jam mais afeiçoados aos seus filhos e os concita ao dever de consagrá-los à Igreja, anima,ndo-os a uma confiança maior nas promessas de Deus; as crianças são beneficiadas com o batismo, porque se tornam parte do corpo da igreja e objeto maior de interesse por parte dos membros. Quando adultas, são estimu­ladas a servir a Deus, que as recebeu como filhos pe­lo símbolo de adoção, antes que elas pudessem reco­nhecê-Lo como Pai.

Quanto à alegação de que as mulheres não deviam ser batizadas, se o batismo é o substituto da circun­cisão, responde-se que, embora o rito não pudesse ser aplicado às mulheres, elas no entanto, eram partici­pantes das bênçãos por associação.

Alegam que as crianças não têm idade para en­tender os mistérios com que são selados.

Se elas são descendentes de Adão, nada podem re­ceber de Adão, senão a morte, mas se são ligadas a Cristo, Ele é a vida, porque em Adão todos morreram e a esperança da vida está em Cristo.

Perguntam eles: são as crianças regeneradas sem o conhecimento do bem e do mal? Deus opera por meios além da nossa capacidade, de maneira eficaz, portanto, as crianças são salvas, até que idade não temos certeza, mas, sem dúvida, previamente regene­radas pelo Senhor.

Mesmo porque Jesus disse que, a não ser que o homem nasça de novo, não pode ver o reino dos céus. João 3.3.

Lucas nos diz que João Batista foi santificado des­de o ventre de sua mãe, uma prova de que pode fazer isso em outros.

As crianças são batizadas para uma fé e um arre­pendimento futuro, a semente dos quais está nelas pe­la operação secreta do espírito.

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Procuremos criar as crianças, educá-las na pieda­de e temor do Senhor, na observância de sua lei, lem­brando que, desde o seu nascimento, elas são consi­deradas e reconhecidas por Deus como seus filhos. Apresentemos os nossos infantes a Deus pelo batis­mo, pois Ele lhes tem designado um lugar entre os seus amigos e a sua família, isto é, os membros da Igreja.

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SANTA CEIA

Já que Deus nos recebeu na sua família, não nos trata como servo, mas como filho, agindo para co­nosco como um Pai bondoso e solícito, provendo o ne­cessário para as nossas necessidades no cúrso da vi­da; mais do que isso, Ele nos assegura sua constante liberalidade; por isso nos deu Ele, pelas mãos de seu filho, a festa espiritual na qual Cristo testifica que Ele mesmo é o Pão da Vida, da qual as nossas almas se alimentam para uma bem-aventurada importalidade.

Os sinais são o pão e o vinho, que representam o alimento invisível, o qual nós recebemos do corpo e sangue de Cristo. Deus nos regenerou pelo batismo e nos enxertou na comunhão da Igreja, através da sua adoção.

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Esse mistério da união secreta de Cristo com os crentes é incompreensível, mas apresentado em figu­ra visível, adaptado à nossa capacidade e Ele o faz, como se os nossos próprios olhos pudessem ver.

Daí entendemos a finalidade que esta união mís­tica tem para assegurar-nos que o corpo de Cristo, que uma vez foi sacrificado por nós, nos é dado como ali­mento, de modo que dele nos alimentamos, sentimos essa eficácia do seu sacrifício único.

Às almas piedosas derivam grande alegria e con­fiança desse sacramento pela certeza de que formam um corpo com Cristo e são participantes com Ele da sua riqueza. Tendo se tornado um como nós, o Filho do Homem nos fez um como Ele é, filho de Deus.

Essas coisas nos asseguram esse sacramento, que nos é apresentado como se Cristo, pela sua presença corporal, estivesse diante de nós e fosse tomado pelas nossas mãos. Pois essas são as palavras que não po­dem mentir nem enganar: “Tomai e comei, e bebei, isso é meu corpo, que é quebrado por vós; isso é meu sangue, que é derramado para remissão de pecados”.

Ordenando tomar, Ele nos afirma que é nosso; ordenando-nos comer, Ele nos afirma que se torna uma substância conosco; afirmando que o seu corpo foi quebrado e seu sangue foi derramado por nós, Ele mostra que ambos não eram tanto seus como nossos, porque Ele ofertou a ambos em nosso favor, para a nossa salvação.

Quando o pão é dado como símbolo do corpo de Cristo, devemos pensar imediatamente nessa semelhan­ça: como o pão alimenta, sustenta e protege a nossa vida corporal, do mesmo modo o corpo de Cristo é o alimento único, que revigora e mantém viva a nossa alma.

Quando olhamos para o vinho como símbolo do seu sangue, pensamos que, do mesmo modo com que o vinho serve nosso corpo, o mesmo nos faz o sangue de Cristo, para nos fortificar, fortalecer, refrigerar e alegrar.

A carne e o sangue de Cristo alimentam as nos­

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sas almas, como o pão e o vinho mantém e sustentam a nossa vida corporal. Aquilo que a nossa mente não compreende, a nossa fé concebe, isto é, que o Espí­rito Santo une as coisas separadas pelo espaço, que a sagrada comunhão da carne e do sangue de Cristo transfunde a sua vida em nós, como es fosse pela pe­netração dos nossos ossos e medulas. De modo que, apresentando sinais, exerce a eficácia do espírito cum prindo o que prometeu; de modo que a coisa signifi­cada se transforma numa festa espiritual, que recebe­mos com fé e coração agradecido.

Por isto é que o apóstolo diz: “O cálice de bên­çãos que abençoamos não é comunhão do sangue de Cristo? O pão que partimos não é comunhão do cor­po de Cristo?” (ICo 10.16).

Nesse caso, a coisa exibida está presente pelo sím­bolo.

A Ceia consiste de duas coisas — os sinais cor- póreos, apresentados aos olhos, que representam coi­sas invisíveis, adaptados à nossa capacidade limitada; e a verdade espiritual, que é manifesta por estes si­nais .

Há três coisas: a primeira coisa a significada, a ma­téria de que ela depende e a eficácia e virtude de am­bas.

A coisa significada consiste das promessas que são, de certa maneira, incluídas nos sinais.

Por matéria ou substância quer-se dizer, Cristo, a sua morte e ressurreição.

Pelo efeito entende-se: Redenção, Justificação, Vi­da Eterna, e outros benefícios a nós concedidos por Cristo.

No mistério da Ceia, pelo símbolo do pão e do vinho, o corpo e o sangue de Cristo são, realmente, apresentados a nós. Nele se cumpriu toda a obediên­cia para que pudesse fazer-nos um corpo com Ele; para que fôssemos participantes da sua substância e pudéssemos sentir os resultados disso, como partici­pantes de todas as bênçãos.

A transubstanciação é um erro misturado com su­

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perstições, uma perversão inútil, além de errada — a afirmação de que o corpo de Cristo está localmente presente na Santa Ceia, para ser tomado em nossas mãos, mastigado e engolido; o que é inteiramente des­necessário à nossa participação com ele, desde que o Senhor pelo seu espírito concede-nos a bênção de ser um com Ele em corpo e espírito.

O laço que a Ele nos liga é espiritual; é o espí­rito de Cristo que a Ele nos une; é como um canal pelo qual tudo que Cristo tem é encaminhado a nós.

A transubstanciação é um erro que tem produzi­do muitas lutas e muitos males.

Há dois erros que devem ser evitados na Santa Ceia.

Primeiro — desvalorizar os sinais, separando-os de todos os mistérios com os quais estão ligados.

Segundo — exaltá-los demasiadamente, obscure- cendo a glória dos próprios mistérios. Enganam-se aqueles que pensam não ser possível conceber a pre­sença do corpo de Cristo na Ceia, a não ser presa ao pão, pois desse modo, não deixam lugar à operação secreta do espírito, pela qual nos une a Cristo.

Nem é necessário que Cristo desça corporalmen­te dos céus para estar presente, unido a nós.

Na Santa Ceia Ele nos ordena tomar, e comer, e beber, seu corpo e seu sangue, debaixo do símbolo do pão e do vinhn.

Não duvidamos que Ele verdadeiramente esteja presente e que o recebamos — a presença do corpo de Cristo é tal como o sacramento requer,

Com respeito à cerimônia exterior — se os cren tes tomam o pão na sua mão, se dividem entre eles; se cada indivíduo toma o que lhe é dado; se devolve o cálice aos diáconos ou passa à pessoa próxima; se o pão deve ser levedado ou não, se o vinho é verme­lho ou branco, nada disso tem a mínima importância e deve ser deixado à liberdade da Igreja conforme as circunstâncias.

Quantas vezes a Santa Ceia deve ser celebrada?Verifica-se que. no princípio, a celebração da San­

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ta Ceia era muito freqüente. Parece que todas as ve­zes que a igreja se reunia era celebrado o sacramento.

Conforme a época e o lugar e à vista de circuns­tâncias variadas, a freqüência maior ou menor da ce­lebração da Santa Ceia se verificou.

É perigosa a negligência com respeito à celebra­ção da Santa Ceia, de modo que, em alguns casos, uma vez por semana pareceu uma regra conveniente.

Convém lembrar que a Santa Ceia não deve ser separada da Palavra, da Palavra de Deus.

De modo que a Santa Ceia deve estar ligada ao serviço do culto.

Pode se começar com uma oração pública, depois o sermão; o Pão e o Vinho colocados sobre a mesa; a recitação pelo ministro, do texto da instituição da Ceia; esclarecimento das promessas que são nele con­tidas; declarados excluídos os que foram, por proi­bição do Senhor, separados. Depois, orar para que o Senhor com a sua bondade com que Ele nos tem con­cedido esse sacramento, Ele mesmo nos prepare pa­ra recebê-lo com fé e gratidão; e, como somos indig­nos, que Ele nos faça dignos pela sua misericórdia.

Então, o Salmo poderá ser cantado; ou alguma coisa lida, enquanto os fiéis em ordem participam do sagrado banquete; o ministro parte o pão e dá ao po­vo, e distribui o vinho.

A Ceia deve ser terminada com uma exortação à sinceridade da fé, à confissão da fé, à caridade para que as vidas se tornem cada vez mais cristãs.

Finalmente, ações de graças são oferecidas e lou­vores cantados ao Senhor. Isso feito, a Igreja será despedida em paz.

Tem-se observado, com razão, que a doutrina de Calvino sobre a Santa Ceia deve ser entendida à luz da controvérsia que ele manteve sobre o assunto, não apenas com a Igreja Católica, contra a qual ele fre­qüentemente se levanta, mas também com outros re­formadores, como Lutero e Zwínglio, ou os seguidores deles.

Procura Calvino combater com veemência a tran-

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substanciação católica, mostrando pela Bíblia e pela História o absurdo de tal doutrina.

No outro extremo fica Zwínglio, com a sua idéia de Santa Ceia como mero memorial simbólico come morativo da morte de Cristo.

A consubstanciação Luterana lhe parece também intolerável.

Nem sempre os termos foram bem definidos, de modo que presença real de Cristo na Santa Ceia man­tida por Lutero e por Melanchthon, na verdade, sig­nifica algo bem diferente da presença real que Calvi­no defende.

Um grande esforço foi feito para que essas dife­renças pudessem ser eliminadas. Calvino deu um grande passo, mas não foi possível o acordo, mesmo porque Lutero se obstinava na sua posição e Melanch­thon que devia ser o intermediário, ou por acomoda­ção, temendo o choque entre os dois grandes refor­madores, ou por negligência, deixou de fazer a apro­ximação tão necessária entre eles, antes que enfermi­dade e a morte de Lutero pusessem termo à oportu­nidade do encontro.

McDonnell (John Calvin, the Church and Eucha- rist; Kilian, Princeton University Press, Princeton, N.J. 1967) salienta algumas características da doutrina de Calvino sobre a Eucaristia. Primeiro — a sua ênfase na Palavra, isto é, na Palavra de Deus, como parte do sacramento. Segundo — a ênfase da eucaristia como um ato público da Igreja. Terceiro — a sua reação contra o sacramentalismo, defendendo a união com Cristo em o espírito.

Longe está a doutrina de Calvino sobre a Santa Ceia de ser uma expressão de racionalismo, fruto da influência dos filósofos, pois, a sua ênfase constante na presença espiritual de Cristo no sacramento, e da nossa participação no corpo místico de Cristo, é pro­fundamente espiritual. É uma afirmação incisiva do mistério e uma exigência à fé verdadeira na Palavra de Deus e no caráter sobrenatural da união e comu­nhão do crente com Cristo.

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RECONCILIAÇÃO ENTRE AS PROMESSAS DA LEI E DO

EVANGELHO

Há aqueles que apelam para as promessas da lei, ou para observação dessa lei, e indagam qual a vali­dade dela.

Alegam a eficácia das obras e dizem que a justi­ficação não é só pela fé.

Já notamos, anteriormente, que o Senhor não acei­ta nada e nada promete a não ser que haja uma per­feita observância da lei; e que não há ninguém, em nenhuma parte, que foi assim encontrado, capaz des­sa observância perfeita.

A libertação da sujeição da lei nos alegra, quan­do pela fé apreendemos a misericórdia de Deus era Cristo, pela qual nos é assegurada a remissão dòs pe­cados

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Todas as promessas da lei serão sem efeito e va­zias, se não forem assistidas pela bondade de Deus no Evangelho. Deus nos socorreu, apontando Jesus Cris­to para nos suprir a nossa retidão.

Admitimos, não que haja apenas uma parcial re­tidão nas obras como mantém os adversários, mas que elas serão aprovadas por Deus, se forem absolutamen­te perfeitas.

Se lembrarmos em que base isso repousa, vere­mos que toda dificuldade será resolvida.

A primeira vez que uma obra tem aceitação ini­cial é recebida com perdão.

Somente porque Deus olha para nós e tudo que nos pertence como em Jesus Cristo. Portanto, uma vez que somos enxertados em Cristo, aparecemos jus­tos diante de Deus, pois, os nossos pecados são co­bertos pela sua inocência; as coisas defeituosas que existem em nós são sepultadas na pureza de Cristo e não nos são imputadas. De modo que. dessa maneira, não somente nós, mas as nossas obras são justifica­das pela fé somente. Paulo prova que a nossa bem- aventurança não provém das nossas obras, mas da mi­sericórdia de Deus nas palavras de Davi: “Bem-aven­turado aquele cuja transgressão é perdoada, cujo pe­cado é coberto; bem-aventurado aquele a quem o Se­nhor não imputa iniqüidade”. Costuma-se alegar o exemplo de Cornélio, que praticava boas obras e foi aceito por Deus.

Calvino responde, fazendo distinção entre duas aceitações, pois, Cornélio foi aceito livremente, an­tes que as suas obras pudessem ser aceitas. Devemos lembrar-nos de que a única maneira pela qual os ho­mens são aceitos por Deus em relação às suas boas obras é que, tendo Deus mesmo conferido boas obras a quem Ele admite a seu favor, por uma liberalidade maior, nos honra com a sua aceitação.

Com respeito à aparente divergência entre o após tolo Paulo e Tiago, observa-se que um apóstolo não pode ser oposto ao outro. Em Tiago, a fé não justi­fica, porque é uma opinião vazia; em Paulo, ela é um

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instrumento pelo qual nós recebemos Cristo com nossa justiça.

Paulo fala da causa, Tiago do efeito da justifica­ção.

Paulo, em Romanos 2.13, afirma que os que ou­vem a lei somente não são justos diante de Deus, mas os que praticam a lei hão de ser justificados.

Paulo está, pois, referindo-se à obra da lei.Em muitas passagens, os crentes, com certa ousa­

dia, apresentam a sua justiça perante o julgamento de Deus e desejam ser julgados de acordo com ela: “Julgam-me, Senhor, segundo a minha justiça e de acordo com a minha integridade que está em mim” (SI 7.8) e, ainda mais: “Tu me provaste, e não achas- te nada”. Paulo também indulge às vezes em se ga­bar: “Nós nos regozijamos nisto, o testemunho da nossa consciência, que, em simplicidade e sinceridade, não com sabedoria carnal, mas pela graça de Deus, temos tido a nossa conversação no mundo, e mais abundantemente, para eonvosco” (1 Co 1.12).

Esses são casos em que o cristão não está vindi- cando a sua justiça com respeito à salvação, mas a sua inocência e retidão, em determinadas circuns­tâncias .

Não neguemos que haja integridade parcial, re­lativa, nos filhos de Deus, o que é, a despeito de sua imperfeição, degraus para a imortalidade.

Assim, Deus aqueles que Ele incluiu no pacto da graça aceita com paterna indulgência e aprova as suas boas obras. Estas boas obras, inchadas pelas outras transgressões, não têm nenhum valor para salvação, mas o Senhor indulgentemente as recebe com miseri­córdia .

Não há perfeição nos santos.Agostinho afirma que o alvo a que devemos aspi­

rar é apresentar-nos diante de Deus sem mancha e sem culpa; mas, com respeito à presente vida, nós nunca poderemos alcançar esse alvo até que ponhamos de lado o corpo do pecádo e sejamos completamente uni­dos ao Senhor,

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E acrescenta, ainda, Agostinho: quando falamos da perfeita virtude dos santos, parte dessa perfeição consiste no reconhecimento da nossa imperfeição, tan­to ehi verdade como em humildade.

Os que se gabam de obras meritórias subvertem a glória de Deus e a certeza da salvação

Qualquer coisa louvável em nossas obras procede da graça de Deus e não podemos atribuir-nos força ou mérito.

Se considerarmos bem isso, toda a nossa confian­ça em nossos merecimentos se desvanece.

As boas obras são agradáveis a Deus e não sem proveito para quem as pratica.

Deus as recompensa amplamente; não porque ne­las mesmas haja mérito, mas porque a bondade divi­na lhes atribui recompensa.

A doutrina da justificação gratuita encontra opo­sição daqueles que indagam se, por acaso, as nossas boas obras não propiciam favor de Deus.

Calvino faz objeção ao emprego da palavra mérito» nesse caso.

Agostinho diz que os méritos humanos pereceram com Adão e que nos devemos caiar e deixar a graça de Deus reinar em Cristo.

Crisóstomo diz que as nossas obras se tornam em débitos, mas as dádivas de Deus são graça, bene­volência e grande liberalidade.

Ezequiel 36.22 diz: “assim diz o Senhor Deus: não é por amor de vós que eu faço isso, ó casa de Israel, mas pelo meu sano nome, que profanaste en­tre as nações para onde foste”.

Em Efésios encontramos: “Porque nós somos fei­tura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais ordenou de antemão que nela andássemos” (Et 2.10).

Desde então, que nenhum bem procede de nós, a menos que sejamos regenerados — e a nossa regene­ração é sem exceção inteiramente de Deus — não há nenhuma razão para atribuirmos a nós mesmos um iota de boas obras; finalmente, enquanto se nos en«=í-

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na constantemente a prática das boas obras, ao mes­mo tempo se exercita a nossa c nsciência, para que não se arrisque a confiar que tais obras nos façam propícios e favoráveis diante de Deus.

Pelo contrário, sem mencionar qualquer mérito, devemos ensinar aos crentes que as suas boas obras são agradáveis e aceitáveis diante de Deus. Portanto, não nos desviemos desse caminho a espessura de uma unha.

Os eleitos de Deus são vasos de misericórdia, esco­lhidos para honra, para purificação e santificação, a fim de serem usados pelo Mestre e preparados para toda boa obra.

Cristo assim descreve seus discípulos: “Se alguém vier após mim, negue a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e siga-me”.

O exemplo de Cristo nos estimula à piedade e santidade.

Ele foi obediente ao Pai até à morte; toda a sua vida foi gasta fazendo o bem, as obras de Deus; Ele entregou a sua vida pelos seus irmãos, fez bem aos seus inimigos e orou por eles.

As palavras seguintes nos oferecem um admirá­vel conforto: “Em tudo somos atribulados, porém, não angustiados, perplexos, porém, não desanimados, per­seguidos, porém, não desamparados abatidos, porém, não destruídos; trazendo, por toda a parte, no corpo a mortificação de Jesus, para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo”.

Verificamos que os homens não são justificados diante de Deus por suas obras, mas todos os que são de Deus, são regenerados e feitos novas criaturas, para que passem do reino do pecado para o reino da justiça: assim, eles confirmam a sua vocação e, como árvores, são julgados pelos seus frutos.

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A RESSURREIÇÃO FINAL

Para que seja a nossa perseverança na vocação in­capaz de ser batida, convém que sejamos animados com a bem-aventurada esperança do advento final de Nosso Salvador.

Estamos mortos e a nossa vida está escondida com Cristo em Deus, disse Paulo. Quando Cristo se mani­festar, então, apareceremos com Ele em glória.

Em tempos antigos, os filósofos discursaram, de­batendo uns com os outros com respeito ao Sumo Bem.

Nenhum deles, a não ser Platão, reconheceu que esse sumo bem consiste na união com Deus.

Ele não poderia, contudo, formam nem mesmo uma pálida idéia do que seria a verdadeira natureza

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dessa união. Nós, contudo, em nossa peregrinação terrena, sabemos em que consiste a nossa perfeita fe­licidade, a qual nos inflama o coração e nos anima até que a alcancemos na sua completa fruição.

Ninguém participa dos benefícios de Cristo, senão aqueles que têm suas mentes postas na ressurreição.

É isso mesmo que Paulo coloca diante dos crentes, quando diz, em Filipenses 3.8: .perdi todas as coi­sas e as considero como refugo para ganhar a Cristo”.

A importância desse assunte deve estimular o nosso ardor e entusiasmo.

Paulo diz que, se Cristo não ressuscitou, todo o evangelho é ilusivo e vão. 1 Coríntios 15,13-17.

Jesus é colocado diante de nós pelo Espírito San­to como exemplo de ressurreição,

É difícil crer que nossos corpos, depois de serem consumidos, ainda levantarão em tempo aprazado.

A fé, no entanto, nos habilita a superar a gran­de dificuldade, e as Escrituras nos fornecem duas provas auxiliares: uma é a semelhança da ressurreição de Cristo e a outra é a onipotência de Deus.

Na miséria em que nós somos colocados, diz São Paulo em 2 Coríntios 4.10: "Levando sempre no cor­po o morrer de Jesus, para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo”.

Paulo distintamente afirma que o nosso corpo se­rá feito à semelhança do seu corpo glorioso. Filipen­ses 3.20

Cristo ressuscitou para que possamos ser parti­cipantes da vida futura.

Ele é o cabeça da Igreja, da qual Ele se não pode separar. Ele ressuscitou, porque Ele é a ressurreição e a vida. O apóstolo São Paulo diz que Cristo é as primícias da ressurreição. 1 Coríntios 15.23.

Temos muitas provas da ressurreição de Cristo, ressurreição na qual está fundada a nossa ressurreição.

Há aqueles que perguntam: por que é que os apóstolos não apresentaram Jesus ressuscitado no tem­plo ou no fórum? Por que é que Ele não se apresentou a Pilatos, para derribá-lo de terror? Por que é que Ele

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não se apresentou aos sacerdotes em Jerusalém?O sepulcro de Jesus foi selado e guardado por sen­

tinelas e, ao terceiro dia, o seu corpo ali não se en­controu .

Os soldados foram comprados para espalhar a notícia de que seu corpo tinha sido roubado; como se eles (os apóstolos) tivessem meios de forçar a um ban­do de soldados, ou possuíssem armas e treinamento suficientes para fazer tal tentativa.

Supondo que eles tivessem meios de o fazer, e os soldados não tivessem coragem suficiente para repeli­-los, por que é que não os prenderam com a ajuda do povo?

Pilatos o que fez foi pôr o seu sinete na ressurrei­ção e os guardas colocados junto ao sepulcro acabaram sendo os mensageiros da ressurreição.

A voz do anjo se fez ouvir: “Ele não está aqui, mas ressuscitou” (Lc 24.6).

Se alguma outra dúvida ainda restasse, Jesus a removeu.

Os discípulos o viram freqüentemente; eles até tocaram nas suas mãos e pé. Ele subiu aos céus de­pois de ter estado na presença de mais de quinhentos irmãos. 1 Coríntios 15.6.

Mandando o Santo Espírito, Ele deu prova não somente da sua vida, mas também do seu poder su­premo, como tinha predito: “Convém que eu vá, por­que se eu não for o confortador não virá a vós (Jo16.7).

Paulo não foi atirado no caminho de Damasio pe­lo poder de um homem morto; a Estêvão Ele apare­ceu, para que pudesse vencer o medo da morte pela certeza da vida.

Paulo nos ensina a respeito do poder de Deus, quando diz que o Senhor Jesus “transformará o nos­so corpo abatido, para que ele possa ser semelhante ao seu corpo glorioso, segundo o seu poder, pelo qual é capaz de sujeitar a si todas as coisas” (Fp 3.21).

Ninguém é verdadeiramente persuadido da futu­

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ra ressurreição, senão aqueles que, com admiração, dão glória a Deus pela ressurreição de Cristo.

Jó, quando estava mais morto do que vivo, con­fiando no poder de Deus, não hesitava em, como em pleno vigor, dizer: “Eu sei que o meu Redentor vive e que Ele estará de pé no último dia sobre a terra; e, ainda revestido esse meu corpo da minha pele, em mi­nha carne verei a Deus” (Jó 19.25-27).

Em meio aos nossos conflitos, exultemos à seme­lhança do apóstolo Paulo, sabendo que aquele que nos prometeu a vida futura é capaz de guardar-nos o que foi entregue a Ele. 2 Timóteo 1.12 e 2 Timóteo 4.8.

Os quiliastas limitaram o reino de Cristo a mil anos, utilizando-se das palavras de Apocalipse 2.4. No entanto, as Escrituras inteiras proclamam que a felicidade da Igreja não terá fim, que os eleitos serão felizes e os reprovados punidos para sempre.

Há aqueles que afirmam que a alma ressuscitou com outro corpo; enquanto outros, admitindo que o espírito é imortal, dizem que ele será revestido com um novo corpo, desse modo negando a ressurreição da carne.

Afirma que nada em nós, no presente, se consti­tuirá em obstáculo à ressurreição.

Paulo ordena aos crentes que se limpem de toda impureza da carne e do espírito. 2 Coríntios 7.1. E ainda diz ele em 1 Tessalonicenses 5.23 — "Peço a Deus que todo o vosso espírito, alma e corpo sejam preservados sem culpa até a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo”.

Note-se que diz: tanto corpo, como espírito e al­ma; pois, não é de se admirar, seria um absurdo que os corpos que Deus dedicou a si como templos caís­sem na corrupção, sem a esperança da ressurreição. Pois, não são eles também membros de Cristo?

Sobre nenhum assunto as Escrituras são tão cla­ras como a ressurreição da nossa carne.

São Paulo diz que “O corruptível se transformará em incorruptível e o mortal em imortalidade” (1 C 15.53).

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Pelo ensino do apóstolo São Paulo sabemos que o corpo com o qual ressuscitaremos será o mesmo do presente no que diz respeito à substância, mas dife­rente quanto à qualidade, como o corpo de Cristo de­pois de ressuscitado.

Há uma distinção que deve ser feita entre aque­les que morreram muito antes e aqueles que se en­contrarem vivos na ressurreição; pois Paulo declara: “Nós não dormiremos, mas seremos transformados” (1 Co 15.51).

Pergunta-se como é que a ressurreição, que signi­fica uma bênção especial de Cristo, se aplique também aos ímpios, que estão sob a maldição de Deus.

Sabemos que em Adão todos morreram. Cristo veio para ser a ressurreição e a vida.

É certo que, no entanto, haverá uma ressurrei­ção para julgamento e outra para a vida e que Cristo virá separar os bodes das ovelhas. Mateus 25.32.

Alguém objetaria que a ressurreição não é compa­rada devidamente ao emurchecimento das bênçãos ter­renas.

A resposta é a seguinte: quando os demônios fo­ram inicialmente alienados da fonte da vida, que é Deus, mereciam ser totalmente destruídos; todavia, pe­lo admirável conselho de Deus, um estado intermediá­rio lhes foi preparado, onde, sem vida, eles possam vi­ver em morte.

Parece haver a uma semelhança, com respeito à ressurreição dos ímpios, os quais, contra a sua vonta­de, serão arrastados perante o tribunal de Cristo, a quem Eles agora recusam receber como seu mestre e senhor. Ser aniquilados pela morte seria uma puni­ção muito leve.

O apóstolo São Paulo diz, perante Félix: “Haverá uma ressurreição dos mortos, tanto justos como in­justos” (At 24.15).

Portanto, o credo menciona a vida eterna, somen­te, porque, para falar de um modo certo, Cristo não veio para destruição, mas para a salvação do mundo.

Quando o apóstolo São Paulo nos diz que iremos

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de glória em glória — 2 Tessalonicenses 2.19 — está- -se referindo, naturalmente, às riquezas espirituais, que são dons de Deus a nós neste mundo, e que nos adornarão na glória celestial.

Daniel diz: “Aqueles que são sábios brilharão co­mo estrelas no firmamento” (Dn 12.3).

Diríamos, então, que Cristo, pela variedade dos seus dons, começa a nos glorificar nesse mundo, gra­dualmente, até completar nos céus.

A completa fruição pura e a libertação de todos os defeitos é o ponto final dessa felicidade.

A linguagem bíblica descreve a severidade do cas­tigo divino aos que são reprovados; as suas dores e tormentos são figurados por coisas corpóreas, tais co­mo as trevas e ranger dos dentes, fogo inextinguí- vel, etc . ..

Deus nos concita a que carreguemos a nossa cruz e caminhemos para a frente, até que cheguemos a Ele, que é tudo em todos.

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O GOVERNO NA IGREJA PRIMITIVA

O modo de governar a Igreja Primitiva não era em todos os aspectos regido pela palavra de Deus. Havia três ordens dos ministros. Primeiro, o Bispo: com o fim de preservar a ordem, presidia sobre presbí­teros e pastores.

Cada província tinha um arcebispo entre os bis­pos. Essa prática, contudo, não era comum e a razão pela qual foi instituída resultava da conveniência de resolver problemas que surgissem nas igrejas, referin­do-se a um concilio provincial.

Se o problema era muito grande, valiam-se dos patriarcas, com os sínodos, e, no caso de apelo, o as­sunto ia a um concilio geral.

A este tipo de governo deu-se o nome de hierar­quia, um nome impróprio e não usado nas Escrituras,

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porque o Espírito Santo não conferia primazia de do­mínio a ninguém no governo da Igreja. Aliás, parece que não havia a intenção de estabelecer esse governo entre os bispos antigos.

Ao chamar aqueles que presidem sobre as Igre­jas pelos nomes de bispos, presbíteros, pastores e mi­nistros» sem qualquer distinção, estamos apenas se­guindo as Escrituras que os aplica pelos nomes indi­ferentemente..

Parece que, com o correr do tempo, pessoas de mais idade foram escolhidas para participar com os bispos no exercício da disciplina e admoestação.

O Senado, ou o concilio dos mais velhos, compos­to de homens santos, graves e piedosos, os quais eram encarregados da correção dos vícios, foi um costume da Igreja Primitiva.

Com respeito aos diáconos podemos dizer que a eles foi entregue o cuidado dos pobres.

A Epístola aos Romanos parece mencionar duas funções distintas, Romanos 12.8, quando diz: “Aque­le que dá, que o faça com simplicidade, e o que semeia misericórdia, com. alegria”.

Parece-nos que São Paulo separa aqui aqueles que cuidavam dos pobres e os que se encarregavam das viúvas, Timóteo 5.10.

Na igreja de Deus, tudo deve ser feito com decên­cia e ordem, isso deve se observar no governo da Igre­ja, por causa do perigo da desordem, nesse caso maisdo que em outros.

O ministro deve ser devidamente vocacionado, es­colhido conforme as cerimônias próprias ao ofício, co­mo a ordenação pública pela igreja, levando-se em conta o chamado íntimo de que cada um deve estar consciente.

Paulo estabelece em duas passagens distintas, 1 Timóteo 3.1 e seguintes; e Tito 1.7 — etc. . as qua­lidades do bispo, que são: a sã doutrina, a vida santa e o bom conceito, para que a sua autoridade não seja prejudicada e nem a dignidade de seu ministério.

A maneira pela qual eles devem ser escolhidos in­

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clui jejum e oração, o que se observa ter sido prati­cado, segundo Atos 14.23.

Da importância das suas funções, estes homens devem ser zelosos na oração, na súplica diante de Deus, buscando prudência e sabedoria.

Discute-se se o ministro deve ser escolhido somen­te pela igreja inteira, ou somente por outros minis­tros e presbíteros que presidem sobre o governo da igreja, ou, ainda, se devem ser nomeados por uma au­toridade superior.

De acordo com as Escrituras, aqueles que se mos­tram capazes para o cargo devem ser nomeados com consentimento e aprovação do povo, presidido por pastores, de modo a manter a ordem e evitar confu­são.

Com respeito à ordenação pela imposição das mãos, embora não haja nenhuma determinação ex­pressa, parece ter sido uso constante entre os após­tolos, de modo que sancionado pelo costume, deve ser mantido, uma vez que se trata de uma cerimônia que condiz com a dignidade do ministério. Neste caso, tem o valor de não somente chamar a atenção do po­vo para essa dignidade, como também mostrar à pes­soa ordenada a sua submissão ao Senhor.

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GOVERNO CIVIL

Há dois governos no homem. Um que se coloca na alma, no íntimo do homem e se relaciona com a vida eterna.

Outro que pertence às instituições civis e rege os assuntos exteriores.

Quem quer que saiba distinguir entre corpo e al­ma, entre a vida presente, fugaz, e a futura e eterna, não terá dificuldades em entender o que é reino es­piritual de Cristo e governo civil — duas coisas intei­ramente separadas. De modo que, não importa nossa condição, nem sob que lei vivemos, porque o reino de Cristo não consiste dos reinos das coisas deste mundo.

Contudo, não pensemos que o governo civis é al-

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go tão contaminado com o qual o cristão não tem na­da que ver.

O governo civil é necessário e o cristão dele deve participar, no cumprimento da sua vocação. Há três coisas no direito civil: Primeiro — o magistrado, o guardião da lei. Segundo — a lei com a qual o ma­gistrado governa. Terceiro — o povo, governado pela lei e obediente ao magistrado.

Os magistrados são instituídos por Deus, investi­dos de autoridade divina; representam a pessoa de Deus, em cujo nome agem, já que a providência e o santo decreto de Deus houveram por bem governar os negócios dos hpmens — por meio dos homens.

Portanto, nenhum homem deve duvidar que a au­toridade civil é, à vista de Deus, não somente sagra­da e legal, mas a mais sagrada na esfera da vida mor­tal. 1 Timóteo 2.1-3: “Antes de tudo, pois, exorto que se use a prática de súplica, orações, intercessões, ações de graça, em favor de todos os homens, em favor dos reis e de todos os que se acham investidos de autori­dade, para que vivamos vida tranqüila e mansa, com toda a piedade e respeito. Isso é bom e aceitável diante de Deus, nosso Salvador”.

Nenhum governador pode ser bem sucedido e ter estabilidade, a menos que o seu primeiro cuidado se­ja piedade. Toda lei é absurda, desde que não respei­te os direitos de Deus e consulte somente os direitos dos homens.

Os magistrados são ordenados por Deus para vin- dicar os direitos públicos dos inocentes, manter a hon­ra, a tranqüilidade, a sobriedade e promover a paz e a segurança.

Jeremias 21.12 e 22,3, ordena os reis e outros go­vernadores executarem a justiça e retidão, cuidar dos inocentes, defendendo-os, vingando a sua causa e pon­do-os em liberdade.

Cabe, portanto, ao poder civil garantir o culto a Deus, defender a religião e a constituição da Igreja e regular as nossas vidas na sociedade com justiça, paz e tranqüilidade.

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O governo civil é tão necessário à humanidade, como o pão e a água, a luz e o ar.

E, mais excelente ainda, pois, não somente busca assegurar a acomodação (te todas as coisas, para que o homem possa respirar, comer, beber, sustentar-se, evitando ofender a Deus com idolatrias, blasfêmias e outras ofensas contra a religião, as quais devem ser reprimidas, para que não sejam disseminadas aberta­mente.

São Paulo afirma que não há autoridade, senão de Deus, e Pedro ordena honrar ao rei.

Quanto à forma de governo, é ocioso discutir qual a melhor.

Há três formas de governo — a monarquia, o go­verno de uma só pessoa, um rei, um duque, etc . ..

Aristocracia, o governo dos principais homens de posição.

Terceiro — a democracia, o governo popular.Quanto ao primeiro, há o perigo de pender para

a tirania.Quanto ao terceiro, é perigoso descambar na anar­

quia. Calvino parece, preferir o que ele chama aris­tocracia, uma forma modificada de governo popular, representativa. Não raro, um rei se descuida do que é reto e justo. É raro haver reis possuídos de tanta agudeza de espírito e prudência, de modo a ver tudo corretamente.

Dados os vícios e defeitos do homem, é melhor que muitos governem, para que possam assistir-se mu­tuamente e mutuamente se admoestar.

O magistrado deve se guardar contra os extremos, nem severidade excessiva, nem indulgência demasiada.

Cita Calvino o que se dizia a respeito de Nerva: “Na verdade, é coisa má viver sob o domínio de um príncipe para o qual nada é lícito, mas é muito pior viver sob o domínio de um para quem todas as coi­sas'são lícitas”.

Com respeito à guerra, às vezes é necessário ao rei e ao estado tomar armas para executar a vingan­ça pública.

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Dependendo das razões, a guerra é um meio acei­tável e legal, pois, como lhe é necessário manter a tranqüilidade dos seus súditos, reprimir as sedições, cabe-lhe utilizar-se das armas para defender a tran­qüilidade do indivíduo, como da comunidade.

O príncipe, no entanto, deve se armar não somen­te para reprimir os crimes por meios judiciais, mas também guardar os seus cidadãos dos assaltos hostis de outros povos.

Mais do que os pagãos, devemos experimentar to­dos os recursos antes de recorrer às armas.

O interesse público é que pode exigir a guerra e não o nosso particular.

TAXAS E IMPOSTOSAs taxas e impostos são rendas legítimas dos prín­

cipes e devem ser principalmente empregadas para manter as responsabilidades do seu ofício. Delas po­de utilizar-se para manter as suas propriedades do­mésticas condizentes com a dignidade de seu exer­cício .

As rendas públicas não devem ser desperdiçadas nem dilapidadas •— Romanos 13.6, 7.

Devem os príncipes considerar que as suas ren­das, tributos e taxas, são meros subsídios às necessi­dades públicas e que é tirania e rapacidade oprimir o povo com elas, sem devida causa. Nem deve o povo estigmatizar os príncipes pelos seus gastos, a menos que excedam os limites naturais com respeito às leis, as leis são os nervos do governo. Cícero e Platão as chamavam a alma do governo, sem a qual a autori­dade não se pode exercer. As leis não terão nenhum efeito sem os magistrados.

As leis são o magistrado mudo; e o magistrado é a lei viva.

A lei de Moisés se dividia em lei moral, lei ceri­monial e lei judicial.

Cada uma delas merece atenção na sua parte, tanto quanto elas nos dizem respeito.

A lei moral nos leva a adorar a Deus com fé e piedade, a envolver os homens com afeição sincera,

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eterna regra da justiça que agrada a Deus em todos os tempos e nações.

A lei cerimonial pertencia aos judeus para a sua tutelagem.

A lei judicial, dada a eles como uma espécie de norma, derivava de certas formas de justiça, pelas quais eles deviam viver juntos em paz e pureza.

Cada nação tem o direito de promulgar suas leis, conforme o interesse do seu povo, mas essas leis de­vem ser testadas pela regra do amor; podem variar na forma, mas devem obedecer ao mesmo princípio— o princípio da eqüidade.

Devemos observar a lei moral que Deus nos ofe­rece em a natureza e na consciência para nosso testemu­nho.

A eqüidade Deus gravou na mente do homem.Qual é a utilidade que uma sociedade cristã de­

riva da lei, dos processos judiciais e dos magistra­dos?

Essa pergunta está relacionada com outra questão: qual a deferência que os indivíduos em particular de­vem manter para com o magistrado e até onde pro­cede a obediência a eles?

O cristão deve se valer das leis e autoridades para preservar os seus próprios direitos, sem ódio para com o inimigo, para manter o interesse público e exi­gir a primazia das leis morais, as quais não se mo­dificam senão pela morte.

Com respeito à passagem de 1 Coríntios 6.6, ci­tada por alguns, para dizer que Paulo condenou qual­quer demanda judicial, Calvino explica.

São Paulo está aqui tratando do litígio legal en­tre os irmãos, o qual podia ser resolvido pela igreja.

Condenava a facilidade com que alguns iam aos tribunais contra seu irmão, sem mais nem menos, quando, às vezes, seria melhor abrir mão de algum direito para o bem da igreja, evitando escândalo.

A regra no entanto, é: “O melhor conselheiro de todo homem é a caridade”.

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Às autoridades devemos a obediência que elas re­querem.

Um mau rei pode ser sinal de juízo de Deus para puniír a nação pelos seus pecados — 1 Samuel 24.9-11.

Davi assim se expressa: “Não estenderei a mão contra o meu Senhor, porque é ungido de Deus”.

O sentimento de reverência, e até mesmo de pie­dade, é devido aos que nos governam, qualquer que seja o seu caráter.

Nesse caso, não consideramos os indivíduos em si mesmos, mas a autoridade de que estão investidos.

A obediência não se deve apenas ao magistrado justo. Há uma exceção muito importante com respei­to a obediência que o cristão deve aos governadores. Essa obediência não pode ser incompatível com a obe­diência àquele a cuja vontade o desejo de todos o? reis devia estar sujeitos. Como seria impróprio que, agradando aos homens, incorrêssemos na ofensa da­quele por cuja causa obedecemos aos homens.

Convém lembrar o exemplo de Daniel, que embo­ra fiel e obediente ao rei, deixou de obedecer o seu decreto, quando este o impedia de invocar o seu Deus. Por isso, Daniel dizia: “Também coiitrà a ti, ó Rei» não cometi delito algum”. “Importa mais obedecer a Deus do que aos homens” (At 5.29). Estaremos obe­decendo ao Senhor, quando suportarmos tudo, para não jogarmos fora a nossa piedade. 1 Coríntios 7:23— “Fostes comprados por preço, não vos torneis es­cravos dos homens”.

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ORAÇÃO, PERPÉTUO EXERCÍCIO DA FÉ

Já verificamos, anteriormente, que o homem é destituído de todos os meios hábeis para a busca da sua própria salvação; daí, a necessidade de buscar socorro em outra fonte.

O conhecer de Deus como soberano dispenseiro de todos os bens nos convida a apresehtar a Ele os nossos pedidos.

O espírito de adoção, que sela o testemunho do evangelho nos nossos corações, nos anima a apresen­tar nossos pedidos a Deus, e pedir com gemidos inex­primíveis, clamando: Aba, Pai.

Por meio da oração, podemos penetrar diante de Deus na busca das riquezas que Ele tem entesourado para nós, como nosso Pai Celestial.

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É do nosso interesse, portanto, suplicar a Deus aquilo que precisamos: em primeiro lugar, que o nos­so coração possa estar sempre inflamado de um ver­dadeiro desejo de buscá-lo, amá-lo, serví-lo, à medida em que nos acostumamos a recorrer a Ele para todas as nossas necessidades; segundo: que nenhum desejo ou aspiração de que nos envergonhemos entre em nos­sa mente, à medida que colocamos diante dele os an­seios de nosso coração; terceiro, e último: que seja­mos preparados para receber todos os seus benefí­cios com verdadeira gratidão e ações de graça, de vr que as nossas orações nos lembrem que tudo procede das suas mãos.

A Bíblia nos assegura que, embora Deus saiba to­das as coisas, tem prazer, contudo, que nós lho peça- mos. Salmos 34:15: “Os olhos do Senhor estão sobre os justos e os seus ouvidos atentos ao seu clamor”.

E ainda mais: “Aquele que guarda Israel não dor­me” (SI 31.3).

A primeira regra da oração deve ser: manter o coração e a mente preparados convenientemente, co­mo quem vai apresentar-se diante de Deus e com Ele conversar. Isso significa que devemos pôr de lado os nossos pensamentos e cuidados carnais que possam, de algum modo, interferir com a nossa contemplação de Deus. Todas as preocupações estranhas devem ser banidas da nossa mente, para que não fiquemos va­gueando aqui na terra, em vez de voltar para os céus.

Nada é mais prejudicial à verdadeira reverência que devemos a Deus do que a leviandade que nos afas­ta do verdadeiro temor de Deus.

A segunda regra com respeito à oração é que de­vemos pedir de acordo com a vontade de Deus. Sal­mo 52.8: “Quanto a mim, porém, sou como a olivei­ra verde jante na casa de Deus; confio na misericórdia de Deus para todo o sempre”. Embora Deus mesmo nos ordene a apresentar-lhe o nosso coração, derra­mando-o em súplica diante dele, Deus não nos con­cede indiscriminadamente o que pedimos levamos pe­la nossa insensatez e afeições depravadas.

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Deus não se submete aos nossos caprichos, em­bora seja indulgente para conosco; devemos observar o que diz 1 João 5.14: “Essa é a confiança que temos para com ele, que, se pedirmos alguma coisa segundo a sua vontade, Ele nos ouve”.

Deus nos dá a direção do Espírito nas nossas ora­ções, para nos ditar o que é direito, regular nossas afeições, para que não peçamos o que não devemos: “O Espírito faz intercessão por nós com gemidos inex­primíveis" (Rm 8.26).

Com razão, Paulo chama de gemidos aquilo que não pode ser dito em oração, que os crentes fazem sob a direção do Espírito, pois, aqueles que são exer­citados na prática de oração sabem que as nossas an­siedades nos impedem de dizer aquilo que convém.

Orar de maneira certa é, pois, uma dádiva espe­cial.

De modo que, cansados da nossa imperfeição e fraqueza, desejamos e aguardamos o auxílio do espí­rito. Paulo nos aconselha a orar no espírito e, ao mes­mo tempo, não cessa de nos exortar à vigilância, pois, embora a inspiração do Espírito seja necessária à for­mação da oração, ela não impede a nossa iniciativa e esforço. 1 Coríntios 14.15. Uma outra regra com res­peito à oração é que devemos sempre desejar seria­mente aquilo que pedimos; as nossas orações devem ser acompanhadas de um desejo sincero de que elas sejam ouvidas.

Os crentes devem ter cuidado de sempre se apre­sentar diante de Deus com pedidos acompanhados de desejo sério de alcançá-los.

Quando, por exemplo, pedimos a Deus: Santifica­do seja o teu nome, deve haver em nós um desejo correspondente, ou uma fome e sede de que isso acon­teça.

Admite-se que nem sempre as nossas orações são movidas do mesmo desejo ardente.

Tiago diz: “Está entre vós alguém aflito, ore. Está alguém alegre, cante salmos” (Tg 5.13).

De modo que o nosso bom senso nos dirige, para

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que oremos a Deus com insistência, quando a ocasião requer.

Davi chama isso o tempo aceitável, quando Deus pode ser encontrado.

Por outro lado, o apóstolo Paulo, em Efésios 6.18, nos manda “orar em todo o tempo no espírito”.

Um homem pode ter abundância de trigo e de vi­nho, mas ele não pode utilizar-se de um pedaço de pão, a menos que a constante abundância de Deus o supra de tudo, daí, a razão de orar pelo pão diário.

Um dos requisitos da verdadeira oração é arre­pendimento. As Escrituras nos dizem que Deus não ouve a pecadores; que as suas orações e seus sacrifí­cios são abomináveis a Ele.

Por isso é que aqueles que, por sua dureza de coração provocam a Deus, o encontrarão inflexível: “Quando fazeis as vossas orações, eu não ouço; as vos­sas mãos estão cheias de sangue” (Is 1.15). Igual­mente, Jeremias diz da parte de Deus: “Ainda que eles clamem a mim, eu não os ouvirei” (Jr 11.7,8,11).

Uma admoestação que se encontra em João con­vém observar: “Qualquer coisa que dele pedimos re­cebemos, porque guardamos os seus mandamentos, e fazemos diante dele o que lhe é agradável” (1 Jo 3.22).

Uma terceira regra com respeito à oração é que quem se apresenta diante de Deus deve fazê-lo des­pido de toda vangloria, pondo de lado qualquer idéia de merecimento, humildemente dando a Deus toda a glória, para que não aconteça que, por sua arrogân­cia, Deus afaste dele a sua face. Assim, Daniel, a quem Deus atribuiu tão alta consideração, orava: “Não apre­sentamos nossas súplicas diante de ti, por nossa jus­tiça, mas pela tua grande misericórdia. Oh Senhor, ouve, oh Senhor, perdoa, oh Senhor, ouve e faze; aten­de, por amor de ti mesmo, não retardes, oh meu Deus” (Dn 9.18-20).

Em resumo, o pedido de perdão, com humilde confissão de culpa, é uma preparação e começo pró­prio para a oração.

Deus é propício àqueles a quem Ele perdoa.

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Davi, fazendo um pedido sobre um assunto dife­rente, dizia, no entanto: “Não te lembres dos pecados de minha mocidade, nem das minhas transgressões, de acordo com a tua misericórdia, lembra-te de mim, pela tua bondade, salva-me, Senhor” (SI 25.7).

Às vezes, os servos de Deus, ao fazerem suas sú­plicas, parecem apelar pela sua própria justiça, como Davi: “Guarda a minha alma, porque eu sou santo” (SI 86.2).

Também Ezequias: “Lembra-te agora, Senhor, ro­go-te, como eu tenho andado diante de ti em verdade, e com coração perfeito, e tenho feito o que é bom diante de seus olhos (ls 38.3).

Estas expressões significam que tais pessoas se de­claram entre os servos de Deus e filho a quem Deus as­sim os declarou, pela regeneração, e os coloca sob o seu favor.

Por outro lado, o que eles estão declarando é a justiça da causa que eles representam.

Quando se comparam com os inimigos de cuja injustiça desejam ser libertados, não é de se admirar que tragam perante o Senhor a sua integridade e sin­geleza de coração, para que Deus venha em seu auxílio.

Uma quarta regra para oração é que, com humil­dade, sejamos, contudo, animados pela esperança de sermos atendidos. Arrependimento e fé, de mãos da­das, unidos por um elo indissolúvel, se um causa ter­ror, outro alegria, de modo que, na oração, ambos de­vem estar presentes.

Davi assim se expressa: “Quanto a mim, eu virei à tua casa na multidão das tuas misericórdias, e no teu temor eu te oferecerei culto no teu templo” (SI5.7). .

O melhor estímulo que os crentes têm para orar, quando em grande inquietação e movidos pelo deses­pero, é a fé de que Deus está pronto a estender-lhes •i mão para ajudá-los. A este respeito se aplicam as pa­lavras de Jesus: “Portanto eu vos digo, qualquer coi­sa que desejardes, quando orardes, crendo que recebe- reis, vos serão dadas” (Mc 11.24 e Mt 21.22).

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De acordo com essas palavras, afirma Tiago: “Se alguém tem falta de sabedoria, peça a Deus, que a to­dos dó liberalmente e nada lhe impropera, e ser-lhe-á concedida".

Em resumo, é a fé que obtém o que a oração nos dá.

Os nossos muitos pecados devem-nos impelir à oração.

O salmista nos dá um exemplo: “Cura a minha alma, porque eu pequei contra Ti” (SI 41.4).

Deus mesmo nos concita a orar e nos recrimina, se não obedecemos a essa injunção: “Clama-me no dia da angústia" (SI 1.15). “Pedi e dar-se-vos-á; buscai e achareis; batei e abrir-se-vos-á” (Mt 7.7).

As passagens que nos ordenam a orar nas Escri­turas nos inspiram a confiança em fazê-lo. Deus mes­mo abre caminho a nós pela sua Palavra: “Eu direi, é meu povo, e eles dirão o Senhor é meu Deus" (Zc 13.9).

Lembremo-nos especialmente das palavras do sal­mista: "Oh, tu que ouves a oração, a ti virá toda a carne" (SI 65.2).

Deus se dirige a todos, dizendo: “Clama-me no dia da angústia: Eu te livrarei, e tu me glorificarás" (SI 50.15).

Joel, depois de predizer o terrível desastre que estava para acontecer, acrescenta a seguinte sentença memorável: “E acontecerá que qualquer que clamar pelo nome do Senhor será salvo”. E também Isaías exclama. "E acontecerá que, antes que eles clamem, eu responderei, enquanto eles estiverem falando, eu ouvirei".

Essa honra Ele confere à sua igreja inteira, a to­dos os membros de Cristo: “Ele clamará a mim e eu lhe responderei, estarei com Ele na sua angústia, eu o livrarei, e ele me glorificará" (SI 91,15).

As bênçãos dessas orações virão sobre os que cla­mam a Deus com confiança, pois que Ele mesmo nos estimula a fazer.

Quando não há uma promessa certa, os nossos pe­

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didos a Deus devem ser condicionados. Assim, Davi ora: "Desperta-te em meu favor, conforme o juízo que designaste” (SI 7.6).

As orações prejudicadas pelas faltas dos que oram merecem ser rejeitadas, a menos que os crentes la­mentem, façam a correção e busquem o perdão de Deus.

Com respeito à petição de perdão, Davi assim diz: "Os sacrifícios para Deus são um coração quebranta- do, a um coração quebrantado e contrito tu não des- prezarás» ó Deus (SI 51.17).

Cristo promete que obteremos resposta das ora­ções que fizermos em seu nome: “Tudo que pedir des em meu nome eu o farei; até agora não tendes pedido em meu nome, pedi e recebereis, para que o vosso go­zo se cumpra” (Jo 14.13 e Jo 16.24).

Convém notar que Cristo ordena aos seus discí­pulos recorrer à sua intercessão, depois que Ele tiver subido aos céus: “Naquele dia pedireis em meu no­me” .

Desde o princípio, todas as orações foram ouvidas por meio do Mediador. As orações feitas a Deus, des­de o princípio, pelo seu povo foram recebidas pela in­tercessão de Cristo. No entanto, depois de subir aos céus, Jesus tornou-se mais do que nunca o advogado da sua Igreja.

Isaías proclama a singular misericórdia, dizendo: “Cantai ao Senhor um novo cântico” e também: “Abre, Senhor, os meus lábios e a minha boca entoará o teu louvor".

Toda vez que o crente pede a Deus alguma coisa, pede por amor do seu próprio nome.

Paulo nos exorta, dizendo: “Orai sem cessar, em tudo dai graças” (1 Ts 5.17,18).

Deseja ele que sejamos constantes em todo o tem­po» em todos os lugares, em todas as coisas, em qual­quer circunstância, nas nossas orações a Deus.

Esta constância na oração, embora se dirija espe­cialmente às orações individuais, estende-se também às Igrejas. O Templo foi chamado pelo Senhor de casa

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de oração, Isaías 56.7, mostrando que uma das par­tes principais do culto é a oração. E uma grande pro­messa foi acrescentada: “O louvor te espera, Senhor, em Sião e a Ti os votos que serão formulados" (SI 65.1).

Com essas palavras, o salmista nos lembra que.,as orações da igreja não são em vão, porque Deus sem­pre oferece ao seu povo razões para cantos de alegria. O templo representava para os judeus o lugar da pre­sença de Deus, no entanto, o valor da oração está em que ela provém de lábios e de coração que realmente honram o Senhor.

O uso dos cânticos nas Igrejas não é apenas an­tigo, mas foi usado pelos apóstolos, conforme a pala­vra de São Paulo: “Eu cantarei com o Espírito, e can­tarei também com entendimento” (1 Cl 14.15) e ain­da diz ele aos Colossenses: “Ensinando e admoestan­do uns aos outros com salmos e hinos e cânticos espi­rituais, cantando com graça em vossos corações ao Se­nhor” (Cl 3.16).

De modo que o único caminho de acesso a Deus e ao trono da sua graça é por meio de Jesus Cristo. “Cristo, portanto, é o único Mediador, por intermé­dio do qual o Pai é propiciado” (1 Tm 2.5).

Erram aqueles que alegam que Jesus é o Media­dor da redenção, mas que os crentes são mediadores da intercessão, como se Cristo tivesse realizado uma mediação temporária apenas e tivesse deixado a me­diação eterna e imperecível a seus servos.

Mui diferente é a linguagem da Escritura, pois que João diz: “Se alguém pecar, temos um advogado com o Pai, Jesus Cristo, o justo" (1 Jo 2.1).

Com respeito à intercessão dos santos, condena-a Calvino pela absoluta falta de apoio bíblico e alega: Que eles não podem ser invocados sem que isso não ofenda a Deus, pois rouba a Deus a sua glória, anula a intercessão de Cristo, contraria a Palavra de Deus e é oposta ao verdadeiro método de oração.

Com respeito à forma de oração, embora pareça confinada aos votos de súplicas, há uma ligação mui­

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to íntima entre petição e ação de graça. Em Timóteo 2:1, Paulo diz: "Exorto que se use a prática de súpli­cas, orações, intercessões, ações de graça, em favor de todos os homens”.

Uma vez que tudo o que temos e tudo que rece­bemos através das orações são dádivas de Deus, de quem procede todo o bem, devemos não somente pe­dir, mas agradecer.

Expressar constantemente as nossas ações de gra­ças pelos seus favores. Será uma ingratidão nossa re­ceber suas bênçãos e não lhe render louvores. Contem­plar as suas bênçãos e não lhe dar graças.

É claro que as orações públicas não devem ser em grego entre os latinos, nem em latim entre os france­ses ou ingleses, como tem sido praticado até agora, em toda a parte; mas na língua vulgar, para que to­dos os presentes possam entender, para edificação de toda a Igreja.

O apóstolo São Paulo condena a oração que não é intelegível: "Quando tu abençoares com o espírito, como é que o que ocupa o lugar do não instruído dirá Amém à tua ação de graça, desde que não entende o pedido?” (1 Co 14:16).

Toda oração, pública ou particular, em que hou­ver palavras sem entendimento será desagradável a Deus.

Por outro lado, não é necessário haver palavras na oração particular, desde que o sentimento íntimo substitua as expressões da língua. Assim era a ora­ção de Ana, em 1 Samuel 1.13.

Olhemos, agora, a forma da oração que o nosso Pai celestial nos entregou por meio de seu Filho ama­do e que se encontra em Mateus 6.9-15 e Lucas 11.2-4.

Nesse modelo de oração, atendendo a nossa igno­rância, o Senhor nos ensina que devemos pedir de acordo com o nosso interesse e o que é necessário às nossas necessidades, evitando aquilo que não convém e não é agradável a Ele.

Essa forma de oração contém seis petições, o pri­meiro lugar é designado à glória de Deus e mui espe­

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cialmente as três primeiras petições. As restantes são dedicadas ao nosso interesse e àquelas coisas que nos é lícito pedir. Quando pedimos que o nome de Deus seja santificado, Deus deseja provar se o amamos e servimos livremente, ou se pela esperança da recom­pensa não estamos pensando somente no nosso inte­resse.

Devemos colocar a sua glória diante de nossos olhos e colocar nela todo o nosso intento.

Nas outras petições, esta é também a maneira que nos devemos dirigir.

É verdade que o nosso próprio interesse é gran­demente promovido, porque se o nome de Deus é san­tificado na maneira em que nós pedimos, resulta tam­bém na nossa santificação. De outro modo, quando pedimos o pão de cada dia, não obstante desejemos aquilo que é para o nosso próprio bem, devemos esr pecialmente buscar a glória de Deus, pois nada deve­mos pedir que não redunde em sua glória.

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MEDITANDO NA VIDA FUTURA

Qualquer que seja a tribulação com que formos afligidos, devemos considerá-la como uma oportuni­dade para que nos habituemos a desprezar a vida pre­sente e aspirar à vida futura.

Tiraremos o devido proveito da disciplina da Cruz, quando aprendemos que a vida, em si mesma, é sem repouso, atribulada, afligitiva de muitas maneiras, e nada feliz.

Aprenderemos a dedicar nossos desejos e espe­ranças ao futuro e aprenderemos a desprezar o pre­sente .

Não há meio termo — a terra deve ser conside­rada sem valor em nossa avaliação ou nós nos man­teremos escravizados por amor dela.

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Se temos qualquer consideração para com a eter­nidade devemos libertar-nos das algemas do presente.

Todavia, o nosso desprendimento da vida terrena não deve ser uma espécie de ódio ou de ingratidão para com Deus; pois, apesar de todos os males, a vida é povoada de bênçãos divinas, que não devem ser des­prezadas .

Se, pois, reconhecemos nela a bondade de Deus, não deve ser pequena a nossa gratidão a Ele pela vida que temos. Antes de nos mostrar com mais clareza a herança da glória celeste, aprouve a Deus manifes- tar-se-nos como Pai, em demonstrações menores, por exemplo, as bênçãos diárias com que Ele nos agracia.

À medida , que o nosso apego à vida presente di­minuir, deve aumentar em nós o deSejo de uma vida melhor.

Todos aspiram a uma situação permanente, por isso devemos buscar a imortalidade.

Se o céu é a nossa Pátria, que poderá ser a ter­ra, senão o nosso exílio?

Se a vida futura é que é a verdadeira vida, este mundo é um sepulcro.

Se nos libertarmos do corpo, ganhamos a liber­dade, e esse corpo presente não é mais do que uma prisão.

Contudo, devemos estar dispostos a continuar aqui, se Deus nos tem dado na terra um papèl a desempe­nhar,* até que Ele mesmo nos convoque para fora daqui.

Sê nos convém viver e morrer para o Senhor, dei­xemos o período da nossa vida e a nossâ morte à dis­posição dele. Muitos cristãos têm medo de ouvir fa­lar da morte.

Até certo ponto é racional esse medo. Mas, a luz da piedade deve oferecer poder em Cristo para ven­cer esse temor . A Igreja — ò corpo dá fé — tem que viver neste mundo como ovelhas para o matadouro, para se conformar com Cristo, o seu cabeça.

A cruz de Cristo somente triunfa ho coração do cristão contra o diabo, a carne ê o pecado, quando seus

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olhos se fixam diretamente no poder da ressurreição. Romanos 8.36.

Como usar a vida presenteSe somos passageiros nessa vida, então, devemos

usar das bênçãos que ela nos oferece, somente no li­mite em que elas assistam ao nosso progresso e não o retarde.

Deus não consulta apenas a nossa necessidade, mas também o nosso prazer e o nosso gozo, ao dar-nos as coisas desta vida.

As dádivas de Deus são para o bem e não para a nossa destruição.

Ele não nos dá as coisas desnecessariamente. O Senhor nos ordena a cada um de nós a nossa ativida­de nesta vida, por isso, devemos respeitar a nossa vo­cação .

A luxúria é a causa de grandes cuidados e os cui­dados a causa dos descuidos da virtude.

Para que as coisas não sejam atiradas em confu­são, Deus determinou a cada um de nós deveres distin­tos, de acordo com o nosso modo de vida.

Cada um, na sua maneira de viver, ocupa uma posição a ele determinada por Deus, para que não es­teja sempre ao léu da sorte.

De modo que o Senhor nos ordena a cada um em todas as atividades da vida levar em conta a nossa vo* cação.

Essa é uma admirável consolação: saber que, se­gundo o chamado de Deus, nenhum trabalho será tão baixo ou sórdido que não tenha brilho ou valor diante do Senhor.

Carregando a crus — uma parte darenúncia do cristãoAqueles a quem o Senhor escolheu, a quem honrou

com o seu chamado para uma vida superior, devem estar preparados para enfrentar toda espécie de ma­les, pois, começam com Cristo e continuam com Ele.

Como seriamos isentos do que Cristo mesmo so­freu? A única razão para que Cristo tomasse a Cruz é a prova da obediência ao Pai.

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Nós somos aflitos quando condescendemos à con­fiança da carne Salmos 30.6,7: “Quanto a mim, dizia eu na minha prosperidade: Jamais serei abalado. Tu, Se­nhor, por teu favor fizeste permanecer forte a minha montanha; apenas voltasse o rosto, fiquei logo contur­bado” .

Quando somos exortados por Deus nos toriwnos humildes.

São Paulo nos ensina que a tribulação produz pa­ciência; e a paciência a experiência — experiência de que Deus nos oferece ajuda.

Deus nos prova a paciência, e nos exercita em obe­diência. Pedro nos diz que a nossa fé é provada como o ouro no fogo. Abraão foi provado e tentado — Gê­nesis 21.1-12. .

Para evitar que nos tornemos ousados pela supe- rabundância das riquezas; ou enfatuados com orgulho por outras vantagens do corpo, da mente e da fortuna, e nos tornemos insolentes, Deus interfere por meio da cruz para subjugar a nossa arrogância, de várias ma­neiras .

Deus não trata a todos do mesmo modo, uns com mais brandura, outros com mais dureza, mas para pro­ver cura a todos. Ninguém fica isento, porque Ele co­nhece a todos.

Devemos reconhecer a bondade do Senhor em to­das as tribulações. Provérbios 3.11,12 “Filho meu, não rejeites a disciplina do Senhor, nem te enfades da sua repreensão. Porque o Senhor repreende a quem ama, assim como o pai ao filho a quem quer bem”.

Perseguidos por causa da justiça — por causa do evangelho, concede-nos uma consolação especial.

Pobreza, considerada em si mesma, é miséria; as­sim, o exílio, a prisão, a ignomínia, mas a última de todas as calamidades é a morte.

Mortos, entramos na vida eterna.Se Jesus Cristo sofreu o suor e lágrimas até de

sangue, quê devemos nós sofrer?O filósofo diz: tem que ser — em face da calamida­

de, mas nós não devemos aceitar o sofrimento como

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fatalidade inevitável. Nós obedecemos a Deus, não somente porque é necessário e inevitável, mas, se a tribulação é salutar, por que não recebê-la como calma e gratidão?

Suportando-a pacientemente, nós estamos-nos sub­metendo não à necessidade, mas procurando o nosso próprio bem. Daí vem a gratidão, que é fruto da alegria.

Assim, temperamos as amarguras da cruz com a alegria espiritual.

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A VIDA DO CRISTÃO - ARGUMENTO DAS ESCRITURAS

O objetivo da regeneração é trazer a vida do cren­te a uma, situação de acordo e harmonia com a justiça de Deus e, assim, confirmar a adoção, pela qual são recebidos por Deus como filhos.

As Escrituras se propõem estes dois objetivos prin­cipais na santificação.

O primeiro é que o amor à justiça, a que somos por natureza pouco inclinados, seja implantado em nós.

O segundo é prescrever normas que nos livrem, de, na busca da justiça, nos desviarmos do Caminho.

As Escrituras têm muitos e admiráveis meios de re­comendar à justiça e à retidão.

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Lembram-nos que devemos ser santos, porque Deus é santo.

Levítico 19.1 “Santos sereis, porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” e I Pedro 1.16” “Porque escri­to está: sede santos, porque eu sou santo".

Pois, nós nos encontrávamos como ovelhas tresma­lhadas nos labirintos deste mundo, quando Ele nos trou­xe de volta ao seu redil.

Santidade é o elo da nossa união com Deus.“ us, por causa " sua g" ' ia, ~ 1 cor “o

com a maldade e impureza. <\ \Por isso, Ele nos diz que esta é a finalidad^&gQ

nossa vocação, a qual devemos respeitar, se qirájçèirS» corresponder a esta vocação — “Quem habitáM.^jp? ta- bernáculo teu, Senhor? O que vive c i.<iiitegrtdade e pratica a justiça, e, de coração, fala (à. v@ w le. Quem subirá ao monte do Senhor? Q u e ^ ^ üe^èrm anecer no seu santo lugar? O que é limpbkx^m s e puro de coração, que não entrega a suar^mna^à falsidade e nem jura dolosamente” (SI 2 ^ \3 U ^)

E melhor ainda: par\nqsjefguer a Deus, o Pai, que, tendo nos reconciliadoxconàigo mesmo no Ungido, im­primiu em nó&aimlgieVn que Ele quer-nos confirmar.

Diferent<OT\ C:eNç3õs filósofos, que pensam que po­demos exe c ^ r v irtu d e , recomendando-nos viver con­forme a /n t\^ e z a , a Palavra de Deus acrescenta que Cri to r^^w es de quem fomos restaurados ao favor de Bçi í 0i\e<5ioca diante de nós, como modelo, a imagem

r\dCKmfâí devemos expressar.\V O Que mais poderíamos desejar?

^ Se Deus se revela a nós como Pai, seremos extre­mamente ingratos se nao nos mostrarmos a ü,ie com o filhos.

Se Cristo nos purificou com o seu sangue e nos restaurou com o batismo, é incompreensível que nós nos poluíssemos.

Uma vez que o Espírito Santo nos dedicou como templo do Senhor, devemo-nos esforçar, de todo o co­ração, para manifestar a glória de Deus e nos guardar mo$ de ser profanados e manchados pelo pecado.

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Já que nosso corpo e alma se destinam aos céus, devemos esforçar-nos para mantê-los incorruptíveis até o dia do Senhor.

Aqui é o lugar de se dirigir um apelo aos que são cristãos de nomes e de sinais apenas, quanto a como usar esse nome.

Os evangelhos nos dizem que ninguém aprendeu a Cristo realmente, sem abandonar o velho homem que é corrupto.

Efésios 4.22: “Quanto ao trato passado, que vos des­pojeis do velho homem que se corrompe segundo as concupiscências do engano”.

Doutrina não é uma questão de palavras, mas de vida; não é aprendida pelo intelecto e memória somen­te, como outro ramo do conhecimento, mas é recebida somente quando possui a alma e encontra assento no mais íntimo do coração.

Cessemos, pois, de insultar a Deus !A vida cristã nos conduz ao verdadeiro evangelho

que se deve buscar e desejar.Não insiste Calvino na estrita perfeição evangéli­

ca, a ponto de não reconhecer como cristãos aqueles que ainda não a têm atingido, pois, assim, todos seriamos excluídos da Igreja, uma vez que ainda estamos longe dela.

Somos todos limitados por muitas imperfeições, mas aquele que não faz nenhum progresso, cada dia vai mal.

Façamos as coisas que concorrem para esse pro­gresso, não nos deixemos vencer pelo desânimo.

O que convém é uma mei te singela, sem duplicida­de, sem auto engrandecimento, evitando os vícios, num constante esforço para melhor

Se assim o fizermos, quando no final libertados das enfermidades da carne, seremos admitidos à ple­na comunhão com Deus.

Aspectos NegativosEmbora a lei do Senhor contenha as regras per­

feitas e admiráveis para a nossa maneira de viver or­

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denada, pareceu bem ao divino Mestre acrescentar ao seu povo um método mais apurado.

O princípio supremo é que o crente deve apresentar o seu corpo como sacrifício vivo, santo e aceitável a Deus, que é o seu culto racional. Romanos 12.1.

Daí a exortação: “Não vos conformeis com este mundo, mas transiormaivos. . . ” (Rm 12.2).

A grande questão é: somos consagrados a Deus, então, não devemos pensar, falar, planejar ou agir sem ter em vista a sua glória.

O que Ele consagrou, não pode, sem que signifi­que um insulto a Ele, ser dedicado ao uso profano.

Nós não somos de nós mesmos -— portanto, quan­to for possível, esqueçamo-nos das coisas que são nossas.

Somos de Deus, vivamos e morramos para Ele.Romanos 14.8 “Porque se vivemos, para o Senhor

vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer, pois, vivamos ou morramos, somos do Senhor”.

De modo que o primeiro passo é abndonarmo-nos e nos dedicarmos, com toda a energia da nossa mente, ao serviço de Deus.

Por serviço, não queremos dizer somente a obedien- cia verbal, mas aquilo que a mente, despida de seus sentimentos carnais, implicitamente obedece segundo o chamado do Espírito de Deus.

A transformação que ò apóstolo São Paulo chama de renúncia da mente — Romanos 12.2 e Efésios 4.23.

É isso a completa submissão ao Espírito Santo, de modo que o homem não vive mais para si, mas Cristo vive, reina nele. Gálatas 2.20 “Logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” .

Dai vem um outro princípio — que não procure­mos a nossa própria vontade, mas a do Senhor, e tu ­do façamos com vistas primeiro a sua glória.

Uma vez que Cristo toma posse da mente cio cris­tão, não há lugar para orgulho, exibição, ostentação, desejos da carne, nem. luxúrias, nem efeminação, ou outros vícios resultantes do amor a si mesmo.

O velho ditado afirma: há um mundo de iniqüida-

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des entesourado na alma humana. E não há outro re­médio senão negar-se a si mesmo.

Renunciar a tua razão e dirigir a tua mente em busca das coisas que Deus requer de ti — somente por­que só isso lhe agrada.

Numa outra passagem, Paulo dá uma breve, mas distinta apresentação de cada parte da vida cristã bem ordenada.

Tito 2.11-14 “A graça de Deus se manifestou pa­ra a salvação de todos os homens, educando-nos para que, renegadas as impiedades e as paixões mundanas, vivamos no presente século, sensata, justa e piedosa­mente, aguardando a bendita esperança e manifesta­ção da glória de nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo”.

Depois de dizer que a graça de Deus nos anima e aplaina o caminho para o verdadeiro culto a Ele — re­move dois grandes obstáculos, a impiedade e as con- cupisciências mundanas — então, nos leva a ambas as tábuas da lei. A nossa mente renuncia qualquer coisa que a razão não dita: sobriedade, castidade, temperan­ça e frugalidade no uso dos bens temporais.

Justiça compreende todos os deveres da eqüidade; e piedade nos livra da poluição do mundo e nos une a Deus.

Paulo nos diz que somos peregrinos neste mundo e, para que possamos obter herança celestial, é preciso que tenhamos humildade de coração, que só se adqui­re com uma opinião humilde a nosso respeito.

Ê difícil buscar o bem do nosso próximo, por isso, é de mister a nulificação do nosso eu, a fim de que rea­lizemos a divina caridade, pois o dever da caridade é muitas vezes cumprido por mera formalidade, com orgulho e desprezo.

Coloquemo-nos no lugar do que necessita assistên­cia.

Não devemos desejar a prosperidade, à parte das bênçãos de Deus, pois, nada vale a prosperidade que o Senhor não nos dá. A prosperidade verdadeira vem do Senhor, mas a bênção do Senhor não pode estar onde há fraude e rapina.

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Como é que podemos aspirar que Deus nos ajude a adquirir as coisas contra a sua lei?

Se o nosso sucesso não corresponder às nossas ex­pectativas, não nos devemos tornar impacientes, nem murmurar contra Deus.

Todo aquele que o Senhor escolheu e honrou com a admissão na sociedade dos santos deve se preparar para uma vida dura, laboriosa, inquieta e cheia de vá­rias calamidades.

Quem deseja a bênção do Senhor não usa meios -ilícitos.

Se a sua colheita foi arruinada com geada e sa­raiva, e vê, por isso, a fome perto, mantenha a con­fiança em Deus, sem murmurar contra Ele.

“Quanto a nós, teu povo e ovelhas do teu pasto para scempre, te daremos graça, de geração em gera­ção proclamaremos os teus louvores" (SI 79.3).

Se aflito com enfermidades, as dores não o ven­cerão, fazendo tornar-se contra Deus, mas, reconhe­cendo a justiça e a razoabilidade da correção, paciente­mente se sujeitará.

O que quer que aconteça, sabendo que provém do Senhor, receberá com paciência, com serenidade e gra­tidão.

O cristão não deve, como os pagãos, imputar os males à má sorte, cega, que fere o bom e o mau.

A regra da piedade é que o Senhor é o árbitro da fortuna de todos, que não age com violência cega, mas dispensa o bem e o mal com perfeita regularidade.

A liberdade cristãA liberdade cristã, segundo Calvino, parece con­

sistir de três partes. Em primeiro lugar, a consciência dos crentes na busca da certeza da sua justificação diante de Deus, tem que se colocar acima da lei e não pensar em ser justificado por ela.

A questão não é como podemos ser justos, mas co­mo, apesar de injustos e indignos, podemos ser tra ta­dos como justos. Essa primeira parte se encontra ex­posta com clareza na epístola aos Gálatas.

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A segunda parte da liberdade cristã é que a cons­ciência livre do jugo da lei obedecerá a Deus, o que não poderia ser feito enquanto estivesse debaixo da lei.

Livres das imposições severas da lei, estaremos em condições de, com alegria, voluntariamente responder ao chamado de Deus.

A terceira parte da liberdade consiste no uso livre das coisas secundárias. O conhecimento dessa parte nos liberta da superstição e remove a nossa perturbação.

A epístola aos Romanos trata dessa parte.Com respeito à liberdade cristã, naquelas coisas

que são essenciais, não nos devemos omitir com medo e ofender ao próximo, ofendendo a Deus.

Com respeito às coisas secundárias devemos agir com tolerância e simpatia para com os fracos, para a paz, e não para dissensão.

Parece-nos, então, que a regra certa é aquela dada pelo apóstolo PauloTodas as coisas são lícitas» mas nem todas as coisas convém; todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas edificam. Ninguém bus­que o seu próprio interesse mas o que é de outrem” (1 Co 10.23,24).

Nada parece mais claro do que esta regra de qu« não usemos da nossa liberdade, se não for para edifica­ção do nosso próximo, se não for para o bem dele.

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NOTAS DA III PARTE

1. Les Cahiers de Foi et Calvin et Luther, Angelo Lemaitre Genève, 1950.

2. The W ord of God and The W ord of Man, p .34

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8. Op. cit. pg. 155.

9. W arfield — Calvin and Calvinism, Oxford University Press, New York: 1931.

10. W arfield — Calvin and Calvinism, Oxford University Press, New York: 1931.

11. Ensaio Incerto no livro Reform atio Perennis, editado por B.A. Genish, em colaboração com Roberto B ernadetto, The Pickwick Press, Pittsburgh, Penn, 1981.

12. Leith, pg. 51

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14. Leith, pg. 52

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16. Tracts and Treatises, pg. 86, VI 1.

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31 — CALVIN, John, Conceming The Scandals, translated byJohn Frazer, Wm. Eerdm ans P. Co., G. Rapids MI, 1978. Uma exposição dos escândalos e seus perigos na vida da Igreja. Oferecido ao grande amigo Laurent de Nor- mandis, Prefeito de Noyon, perseguido e sofredor.

32 — CALVIN, John, Conteúdo do II Volume de Tratados deCalvino, Publicação de Calvin Translation Society, Edin- burg, 1849 e reeditado em 1950, Wm. Eerdm ans P. Co., Grand Rapids MI, com prefácio de T. Torrance.a) Catechism of the Church of Geneva.b) Several Godly Prayersc) Form of prayers for the Church.d) Form and m anners of celebrating marriagee) Visitation to the sickf) Brief form of confession of faithg) Confession of faith in name of the Reformed Church

of Franceh) Short Treatise on the Supper of Our Lordi) Mutual consent in regard to the Sacram entj ) Second Defense of the Faith Conceming the Sa­

cram ent1) Last admonition to Joachim Westphalm) The True partaking of the Flesh and Blood of Christn) The Best Method of Obtaining Concord

33 — CALVIN, John, E ditor Henry Van Andei, The GoldenBooklet of the Christian Life, a modern Translation from the Fhench, and Latin, Edited by Henry Van Andei, Baker Book House, Grand Rapids MI, 1952.Uma preciosa e bem cuidada separata de um a das par­tes das Institu tas que tem sido utilizada na Holanda e outrop países da Europa. Aparece nas três últim as edi­ções das In stitu tas com o título de Vita Christiana — so­bre a vida cristã.

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35 —; CALVIN, John, Tracts and Treatises — Translated fromthe original Latin by Hebry Veveridge, Vol. I, Eerdm ans P.C .a) Carta do Cardeal Sadoleto ao Senado e ao povo de

GenebraResposta de Calvino à carta de Sadoleto

b) Artigos aceitos pela Faculdade da Sagrada Teologia de Paris com Antidoto

c) A necessidade de reform ar a Igrejad) Carta do Papa Paulo II I ao Im perador Carlos V.

Anotações na carta do Papa Paulo IIIe) Admoestações com respeito às relíquias

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