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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIAFACULDADE DE COMUNICAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM COMUNICAO E CULTURASCONTEMPORNEAS
JOO SENNA TEIXEIRA
BATMAN E ROBIN NUNCA MORRERO:A CONSTRUO DO CNONE E DA CONTINUIDADE NA
PASSAGEM DE GRANT MORRISON PELO BATMAN
Salvador2014
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JOO SENNA TEIXEIRA
BATMAN E ROBIN NUNCA MORRERO:
A CONSTRUO DO CNONE E DA CONTINUIDADE NAPASSAGEM DE GRANT MORRISON PELO BATMAN
Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Comunicao e CulturasContemporneas, Faculdade de Comunicao,Universidade Federal da Bahia, como requisito paraobteno do grau de mestre em comunicao social.
Orientador: Profa. Dra. Maria Carmem Jacob de
Souza
Salvador2014
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SISTEMA DE BIBLIOTECAS - UFBA
Teixeira, Joo SennaBatman e Robin nunca morrero: a construo do cnone e da
continuidade na passagem de Grant Morrison pelo Batman. por Joo Senna
Teixeira. - 2014.
164 f.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Carmem Jacob de Souza.
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Comunicao, Salvador, 2014.
1. Historias em quadrinhos. 2. Seriados. 3. Continuidade. II. Souza, MariaCarmem Jacob de. II. Universidade Federal da Bahia. III. Faculdade de
Comunicao. IV. Ttulo.
CDU -
CDD
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AGRADECIMENTOS
Primeiro aos meus pais. Minha me por ter me dado minha primeira revista de comics emuma tarde de semana de 1993. Meu pai pelo gosto pela discusso acadmica e pelasconversas ponderadas.
Aos trs professores que marcaram minha longa passagem por essa faculdade. Benjamimpela pacincia e pela ajuda por tantos anos. Monclar pelo desafio e pela paixo pelosestudos. Finalmente Carmem por me acolher e ensinar que possvel ser rigoroso semser duro e ser competente sem ser arrogante.
Aos dois grupos de pesquisa que participei e que me auxiliaram nesse trabalho, Grafo eA-Tev. Pelo A-Tev, obrigado a Joo, Rodrigo, Elva, Inara, Renata, Tatiana, Danilo eEmlia. Pelo Grafo, obrigado a Greice, Andr, Angie e Jlio.
Em especial gostaria de agradecer aos companheiros e amigos do Grafo, Jnathas, Jssicae Cristiano que discutiram e leram partes desse trabalho.
Aos meus amigos e colegas de apartamento Rafael e Mayla pela pacincia e pelo apoionesse ltimo ano.
Aos meus amigos todos com quem conversei, discuti e me diverti, nomes demais paralistar nessa pgina.
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Resumo
Este trabalho pretende analisar a continuidade em narrativas seriadas de longa durao,mais especificamente as histrias em quadrinhos norte-americanas de super-heris
conhecidas como Comics. Para chegarmos continuidade ns estudamos como os modospossveis de narrativas seriadas necessitam da continuidade para se diferenciar epercebemos como os Comics se modificaram ao adotar modos seriados diferentes aolongo do tempo. Depois disso propomos o desmembramento do conceito de continuidadeem dois elementos, o primeiro a relao de necessidade lgica entre duas histrias,sendo que uma s pode ser compreendida com conhecimento da outra, o segundo oconceito de cnone que d conta da validade daquela histria em relao ao corpus totalde histrias dentro daquele universo ficcional. Para estudar como o cnone pode sermodificado, ns precisamos entender como funciona a autoria dentro do campo dosComics, de modo a poder analisar como determinados autores conseguem ter forasuficiente para bancar suas idias e outros no. Essa autoria est mediada pela gesto da
prpria editora sobre esse cnone, ancorada na figura do editor, essa gesto pode ser umaposio de autoria tambm. Todo esse percurso terico nos deu embasamento paraanalisar as duas primeiras fases da passagem de Grant Morrison peloBatmanentre 2006e 2011, em que o roteirista escocs tenta recanonizar parte das aventuras do personagemdos anos 1950 e 1960.
Palavras Chave:Batman, Comics, Serialidade, Continuidade, Autoria
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Abstract
This dissertation goal is to analyze continuity in long duration serial narratives,specifically super-hero Comic books. Before continuity, we studied how the different
serial models needs continuity to differentiate e realized how Comics changed when theyadopted different serial models along its history. After that, we proposed thedismemberment of continuity in two different concepts. The first is the relation of logicnecessity between two stories, in which one can only comprehend the first withknowledge of the second. The second is the concept of canon, which comprises thevalidity of one story in relation with the complete corpus of stories comprised in that
particular fictional universe. To study how the canon can be modified, first we need tocomprehend how authorship works in the comicsfield. This is needed to explain howcertain authors have sufficient influence to defend their ideas and other authors do not.The management of the publisher mediates this authorship over this canon, anchored inthe figure of the editor. We defend that his management can also be an authorship. All of
this gave us grounding to analyze the first two phases of the Grant Morrison run onBatman between 2006 and 2011. In this run the Scottish writer recanonized some of thecharacter adventures from the 1950 e 1960.
Key Words:Batman, Comis, Seriality, Authorship, Continuity
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Lista de Imagens
Figura 1: Batman: The Killing Jokep.13 q3 ................................................................................. 72
Figura 2: Batmanv1 #655 p. 20 q.6 ............................................................................................ 72
Figura 3: Daredevil v2 #34 p.22; Alex Maleev ............................................................................. 77
Figura 4: Daredevilv3 #1 p.18; Paolo Rivera ............................................................................... 77Figura 5: Amazing Spider-Man #548, p.27-28 ............................................................................. 96
Figura 6: Batman #668 p.2 ........................................................................................................ 121
Figura 7: Batman #667 p.12 ...................................................................................................... 121
Figura 8: Batman & Robin #10 p.8-9 q.1 ................................................................................... 137
http://c/Users/Senna/My%20Dropbox/Mestrado/Disserta%C3%A7%C3%A3o/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20v2final.docx%23_Toc380501646http://c/Users/Senna/My%20Dropbox/Mestrado/Disserta%C3%A7%C3%A3o/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20v2final.docx%23_Toc380501646http://c/Users/Senna/My%20Dropbox/Mestrado/Disserta%C3%A7%C3%A3o/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20v2final.docx%23_Toc380501646http://c/Users/Senna/My%20Dropbox/Mestrado/Disserta%C3%A7%C3%A3o/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20v2final.docx%23_Toc380501647http://c/Users/Senna/My%20Dropbox/Mestrado/Disserta%C3%A7%C3%A3o/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20v2final.docx%23_Toc380501647http://c/Users/Senna/My%20Dropbox/Mestrado/Disserta%C3%A7%C3%A3o/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20v2final.docx%23_Toc380501647http://c/Users/Senna/My%20Dropbox/Mestrado/Disserta%C3%A7%C3%A3o/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20v2final.docx%23_Toc380501648http://c/Users/Senna/My%20Dropbox/Mestrado/Disserta%C3%A7%C3%A3o/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20v2final.docx%23_Toc380501650http://c/Users/Senna/My%20Dropbox/Mestrado/Disserta%C3%A7%C3%A3o/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20v2final.docx%23_Toc380501651http://c/Users/Senna/My%20Dropbox/Mestrado/Disserta%C3%A7%C3%A3o/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20v2final.docx%23_Toc380501652http://c/Users/Senna/My%20Dropbox/Mestrado/Disserta%C3%A7%C3%A3o/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20v2final.docx%23_Toc380501653http://c/Users/Senna/My%20Dropbox/Mestrado/Disserta%C3%A7%C3%A3o/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20v2final.docx%23_Toc380501653http://c/Users/Senna/My%20Dropbox/Mestrado/Disserta%C3%A7%C3%A3o/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20v2final.docx%23_Toc380501652http://c/Users/Senna/My%20Dropbox/Mestrado/Disserta%C3%A7%C3%A3o/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20v2final.docx%23_Toc380501651http://c/Users/Senna/My%20Dropbox/Mestrado/Disserta%C3%A7%C3%A3o/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20v2final.docx%23_Toc380501650http://c/Users/Senna/My%20Dropbox/Mestrado/Disserta%C3%A7%C3%A3o/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20v2final.docx%23_Toc380501648http://c/Users/Senna/My%20Dropbox/Mestrado/Disserta%C3%A7%C3%A3o/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20v2final.docx%23_Toc380501647http://c/Users/Senna/My%20Dropbox/Mestrado/Disserta%C3%A7%C3%A3o/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20v2final.docx%23_Toc380501646 -
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Lista de Tabelas
Quadro 1 Primeira fase do Batman de Grant Morrison ............................................................ 104
Quadro 2 Segunda fase do Batman de Grant Morrison ............................................................ 105
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SumrioIntroduo..................................................... ................................................................. ........................... 11
1 A serialidade dos Comics............................................................ ........................................................... 18
1.1 Modelos seriados........................................................................... ................................................. 33
1.2 Unidades seriadas especficas para Comics.................................................................................. 391.2.1 Histria.................................................................................... ................................................ 39
1.2.2 Edio...................................................................................................................................... 40
1.2.3 Arco......................................................... ................................................................. ................ 41
1.2.4 Passagem (Run) ............................................................ ........................................................... 42
1.2.5 Crossover(Eventos)...................................................... ........................................................... 43
1.2.6 Universo Ficcional............................................ ................................................................. ..... 45
2 Continuidade e Cnone.................................................................................................................... ..... 47
2.1 O que continuidade.......................................................... ........................................................... 47
2.1.1 Continuidade nos Comics............................................................................ ........................... 50
2.2 Um modelo cannico de continuidade.......................................................................................... 57
2.2.1 Dois Conceitos de Cnone........................................................................... ........................... 60
2.2.2 O cnone nos Comics.............................................................. ................................................ 63
2.2.3 Cnone, Continuidade e leitor modelo.................................................................................. 65
2.3 Estudando as mudanas no Cnone.................................................................. ........................... 71
2.3.1 Categorias da continuidade............................................................... ..................................... 71
2.3.2 Categorias da mudana no cnone........................................................................................ 74
3 Autoria e modelos de produo............................................................................................................ 793.1 Produo por encomenda, o modelo Work for Hi re......................................... ........................... 79
3.2 Modelos de autoria e de produo coletivas................................ ................................................ 82
3.3 Encargo, Diretriz e o estudo da intencionalidade........................................................................ 87
3.4 O Campo como ambiente de disputas pela definio da autoria no campo dos comics ........... 91
3.5 Exemplo de anlise.................................................................................................................... ..... 94
4 Batman........................................................ ................................................................. ......................... 102
4.1 Organizao seriada da passagem........................................................................................... ... 102
4.2 Trajetria de Grant Morr ison........................................................ .............................................. 106
4.3 Anlise das duas primeiras fases da passagem de Grant Morr ison.......................................... 113
4.3.1 Primeira Fase.................................................................................... .................................... 114
4.3.2 Segunda Fase..................................................... ................................................................. ... 131
4.4 Encargo e Diretriz.......................................................................................................... .............. 149
Concluso................................................................................................. ............................................... 154
Bibliografia............................................................................................................................................. 161
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Introduo
Em 2014 sero comemorados 75 anos de publicao contnua do Supermanpela DC
Comics, marcando a criao do seu primeiro super-heri e do seu universo ficcional.
Neste mesmo ano, alguns meses depois, o segundo super-heri da editora de contnua
publicao, oBatman,tambm completar seus 75 anos ininterruptos. Neste de sculo
os dois personagens sofreram diversas modificaes, morreram e voltaram vida, tiveram
suas origens recontadas diversas vezes e passaram por pelo menos duas reformulaes de
todo o universo ficcional, primeiro em 1986 com Crisis on Infinite Earthse depois em
2011 aps os eventos deFlashpoint.
Durante essas reformulaes no houve uma perda completa das histrias pregressas dos
personagens. As relaes entre essas novas verses e as anteriores foram cortadas ao
incio dessas reformulaes, com o tempo certos eventos foram retomados e modificados
para serem compatveis com as histrias atuais. Em outros casos mais extremos, eventos
anteriores a essas reformulaes so resgatados e servem como base para histrias novas,
criando pontes entre essas duas verses do personagem.
Ao percebermos esses movimentos, precisamos compreender que existe um estatuto
sobre a validade dessas histrias pregressas. Quando ocorre uma reformulao completa
do universo ficcional presumido que as histrias anteriores tenham se tornado invlidas,
ou seja no se pode presumir que elas tenham ocorrido com o estado atual do personagem.
Quando ocorre essa retomada ou resgate citados anteriormente, essas histrias pregressas
so reinvestidas de validade, porque se conectam com uma narrativa reconhecida como
vlida.
Olhando mais atentamente para as histrias em quadrinhos de super-heris norte
americanas podemos perceber que esses processos de validao e invalidao dashistrias pregressas no ocorrem somente em momentos de mudanas gerais no conjunto
dos personagens pertencentes ao universo ficcional publicado por uma editora. Eles
podem ocorrer tambm em outros momentos e variar em seu alcance, sendo possvel que
afete uma parte de um universo ficcionala modificao da morte daPhoenixdiz respeito
mais diretamente aoX-Mendo que todo o universo ficcional da Marvel Comicsou
mesmo situaes que s digam respeito a um personagem para continuar com os X-
Men, a revelao do passado de Wolverine em Origins (2001-2002). Todos esses
acontecimentos acabam por modificar a continuidade desses universos ficcionais.
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Temos a convico que a continuidade narrativa essencial para se compreender os
diferentes modos possveis de criar narrativas seriadas. Os diferentes modos de
serialidade possuem maior ou menor relao entre as suas partes (episdios, edies,
captulos), marcando assim uma diferena especfica entre os modelos de serialidade e o
andamento de suas histrias. Quando um episdio no continua a histria do anterior,
mantendo apenas os personagens principais e a estrutura narrativa apresentao do
mistrio, busca de pistas, resoluo do mistrio, por exemplo estamos diante de uma
serialidade com pouca continuidade. Da mesma maneira, se temos um episdio que
continua ou resolve partes da histria dos anteriores, estamos diante de uma serialidade
com muita continuidade.
No caso dos Comicsde super-heris houve uma mudana no modelo de serialidade apartir dos anos 1960, inicialmente com os personagens da Marvel Comics e
posteriormente com os personagens daDC Comics. Antes dessa poca, a maior parte das
histrias publicadas possuam pouca continuidade, sendo captulos isolados. Quando
havia uma maior continuidade elas ocorriam em histrias de duas partes ou, no mximo,
continuando uma histria anterior de sucesso, mas referenciando a edio para o leitor
poder retornar se necessrio. Quando aMarvelfoi criada e lanou o seu primeiro ttulo,
oFantastic Four(1961), suas histrias possuam muita continuidade com o final de cada
edio j apontando a prxima aventura que seria desenvolvida no prximo ms. A DC
Comicsdemorou mais para modificar seu modelo seriado, mas quando o fez resolveu
modificar a posteriori o estatuto da continuidade das histrias j publicadas, colocando-
as em relao.
Isso gerou dois universos ficcionais muito diferentes entre si. A Marvelconstruiu mais
organicamente a relao de continuidade entre suas histrias e personagens, a DCcriou
de uma vez uma longa continuidade de mais de 20 anos a partir de histrias que no forampensadas para isso. Diversas histrias que eram possveis com a falta de continuidade
casamento de personagens, mortes, mundos futurosprecisaram ser invalidadas para que
houvesse uma linha narrativa coerente. Mltiplas tentativas de resolver essas questes de
quais histrias seriam vlidas ou no levaram quelas reformulaes completas do
universo ficcional daDC Comicsque mencionamos anteriormente.
Essas mudanas foram realizadas por motivos narrativos contar melhores histrias ou
criar universos ficcionais mais consistentesmas tambm por motivos estratgicos paraas editoras que controlam esses universos e personagens. Estes motivos incluem a
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percepo de um universo mais consistente e organizado, a tentativa de agradar fs ou
autores especficos, ou mesmo a busca pela publicidade que vem de uma reorganizao
seja ela grande ou pequena. Todos esses motivos tm como objetivo final um ganho
financeiro para a editora, seja ele a curto prazovendas maiores de ttulos com validaes
ou invalidaes recentes seja a longo prazo valorizao de um ttulo para venda de
encadernados ou valorizao de um autor.
Para estudar as maneiras como ocorrem os processos de validao e invalidao nos
Comics de super-heris foi necessrio, pois, atentar para a gesto das editoras desse
processo. Levamos em conta as estratgias que a editora estava desenvolvendo e como
isso afetava a sua viso das histrias pregressas, principalmente no que tange o trabalho
direto do editor, pois ele que est em contato direto com a equipe criativa queefetivamente produz a histria em quadrinhos (roteirista, desenhista, arte-finalista,
colorista, letrista e capista) e negocia com eles sobre as possveis modificaes em seus
planos originais ou faz demandas para sua aprovao.
Nesse momento tocamos em outro ponto que interessante frisar, o papel da equipe
criativa e o quanto ela influencia no modo como a histria publicada. Essa investigao
atentou para diversos componentes: 1) Quais dos participantes dessa equipe criativa
possuem controle criativo a ponto de serem considerados autores? 2) Qual a capacidadede negociao desses autores junto com a editora e como essa capacidade pode melhorar?
3) Como o papel do editor enquanto figura de ligao entre esse polo criativo e gerencial
pode facilitar ou dificultar essa relao?
O primeiro deles indica quem, em geral, possui o maior controle criativo e creditado
como autores principais: o roteirista e o desenhista, sendo que o primeiro recebe maior
reconhecimento. Os outros membros podem ser considerados secundrios, sendo que
muito raramente eles podem ser considerados autores no sentido de deterem algum
controle criativo sobre a obra. Isso importa ainda mais para o nosso objeto, uma vez que
roteiristas so os principais artfices de validao e invalidao de partes da continuidade
nos Comics. O componente seguinte mostrou que quanto mais prestigiado o roteirista
maior o seu poder de barganha frente editora, sendo capaz de repelir demandas dela e
realizar propostas que seriam recusadas para outros. O terceiro deles refere-se a
importncia do papel do editor, quanto mais ele interfere, corta e modifica o trabalho da
equipe criativa, mais ele possui um papel de um autor oculto, detentor do poder de lutarpara que a equipe criativa possua maior liberdade, tentando diminuir a presso e as
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cobranas sobre eles. Nesses dois modos de agir do editor esto duas maneiras de ver a
sua possvel autoria.
Estas trs dimensesvalidade das histrias; continuidade na narrativa seriada; autoria
associada a gesto da validao das histriasforam orquestradas em nosso esforo emconstruir um modelo de anlise da continuidade nos comics que permita compreender
como esses processos de validao e invalidao so constitutivos da continuidade dessas
obras e no so anomalias ou quebras. O modelo analtico colocado em operao orientou
a anlise da passagem de Grant MorrisonpeloBatmanpara demonstrar como ele teve a
oportunidade de modificar a validade de determinadas histrias e como esse processo de
revalidao instrui os leitores sobre as intenes da obra.
No primeiro captulo relacionamos a histria dos Comics com os modelos narrativos
seriados prestando ateno redobrada para o surgimento e depois gerncia da
continuidade nesses universos ficcionais compartilhados. Em seguida propomos as
categorias de serialidade baseadas nas unidades narrativas j utilizadas nos comics,
partindo da menor delas, a Histria, passando pela Edio, pelo Arcoe pela Passagem
e chegando ao Eventoe ao Universo Ficcional. Essas categorias so importantes porque
serviro de base para a compreenso das unidades seriadas nos comics, principalmente
quando falarmos de autoria no captulo 3, quando o conceito de passagem se torna maisimportante.
O segundo captulo explora o conceito de continuidade. Segue da definio geral de
continuidade para a relao entre continuidade e coerncia textual, esmiuando a
continuidade narrativa e os seus muitos significados. Depois disso apresentamos um
modelo de continuidade para os quadrinhos baseado em uma cronologia linear em que
todos os eventos ocorridos nas histrias publicadas precisam se suceder no tempo. Vamos
desconstruir esse modelo, demonstrando que ao necessitar de uma linha cronolgica ele
acaba por tratar os processos de validao e invalidao de histrias como um problema
e no como uma caracterstica do modelo de continuidade dos Comics.
Para substituir esse modelo cronolgico foi proposto um modelo baseado no conceito de
Cnone,porque ele permite compreender a validao das histrias anteriores. Podemos
falar que uma histria est no cnone sem necessariamente relacionar os eventos
especficos de uma histria passada com a atual. Isso amplia o conceito de continuidade
que se referia apenas relao de necessidade entre duas histrias, pois para compreender
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uma necessrio conhecer a outra. Ao separar esses dois aspectos da noo de
continuidade ficou mais evidente os dois sentidos possveis: a relao com uma
cronologia linear e a relao lgica com o passado e, s vezes, com o futuro.
Construmos, assim, categorias para examinar as modificaes no cnone e a utilizaoda continuidade em separado. As categorias de continuidade que foram formuladas aqui
so a Necessidade narrativa a necessidade de se conhecer os eventos da histria
passada; a Necessidade temticaa necessidade de se conhecer alguma poca ou estilo
do personagem para se entender a histria atual; e a Citaoa simples referncia a um
evento ou personagem passado sem que isso influencie na compreenso da narrativa. As
categorias de modificao no cnone que foram formuladas aqui so a Retomadaa
recontagem de uma histria ou situao com o objetivo de substituir a verso original, oexemplo mais comum seria a recontagem de uma histria de origem; e o Resgatea
recanonizao de uma histria que estava invalidada, ou esquecida, anteriormente.
O terceiro captulo apresenta os possveis modelos de autoria dentro de uma produo
coletiva de Comics, em como a editora pode influenciar as decises da equipe criativa e
quais so as condies para que uma equipe criativa possua uma maior liberdade e
controle. Para isso, identificamos os modelos de autoria coletiva, a autoria compartilhada
e a autoria individual, que pode compreender casos em que a equipe criativa secundriaapenas executa um plano feito pela equipe principal (roteirista e desenhista). Depois
disso, indicamos os mecanismos da relao entre as demandas da editora e as tarefas de
execuo da equipe criativa a partir dos conceitos de Encargoe Diretrizdesenvolvidos
por Baxandall (2006). Por ltimo recorremos aos conceitos de Campo, Posio e
Trajetria de Bourdieu (1996) para explicar como os autores conseguem angariar
prestigio o suficiente para realizar demandas editora ou repelir demandas feitas por ela.
Ainda no terceiro captulo realizamos uma pequena anlise com o intuito de testar o
modelo de anlise construdo a partir das categorias acerca de cnone e continuidade
apresentadas anteriormente, mas tambm para verificar um caso em que a autoria recairia
sobre um editor e no sobre um roteirista ou mesmo uma dupla roteirista/desenhista. Para
isso, analisamos o arco One Moment in Time da fase Brand New Daydo Spider-Man
(Amazing Spider-Man#546-647, 2008-2011). Esse arco teve como roteirista o editor-
chefe daMarvel Comics,Joe Quesada, mas queremos apresentar esse arco como o ponto
fulcral de toda a fase e argumentar que sua recusa em deixar outro dos talentosos
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roteiristas que estavam trabalhando com o personagem um sinal de seu controle criativo
durante toda essa fase.
No quarto captulo aplicamos todas as categorias na anlise da passagem de Grant
Morrison pelo Batman entre setembro de 2006 e julho de 2013. Essa passagem foiescolhida por que a principal contribuio de Morrisonfoi com o resgate de uma fase
muito esquecida e invalidada do personagem, o perodo entre o final da dcada de 1940
e o final da dcada de 1960. Esse perodo esquecido do personagem foi invalidado antes
mesmo da reestruturao do universo ficcional daDCem Crisis on Infinite Earths(1986)
porque alguns autores e os editores da poca acreditavam que oBatmanmais leve dessa
poca que inspirou o seriado de televiso no fazia jus origem do personagem.
Toda a passagem de Morrisonpode ser dividida em trs fases: a primeira fase inclui
Batman#655-658 e #664-683 mais as sete edies deFinal Crisise conta o encontro de
Batmancom um passado que ele no acreditava ser real e depois o seu duelo com o deus
do Mal que leva sua morte. A segunda fase incluiBatman & Robin#1-16,Batman#700-
702 e seis edies The Return of Bruce Waynecontando comoDick Graysonassumiu o
capuz do Batman e lutou contra o mesmo inimigo que levou Bruce ruina, alm do
retorno deBrucee de como esse seu inimigo do passado est relacionado com o deus do
Mal da fase anterior. A terceira fase inclui Batman Inc.v1 #1-8, a One-shot LeviathanStrikes#1, aBatman Inc.v2 #0-13 e uma edio especial, ela conta comoBatmanreuniu
um grande grupo de aliados internacionais para lidar com a ameaa deLeviathanbaseada
em uma viso que ele teve no final da fase anterior.
Nossa anlise se restringiu s duas primeiras fases da passagem deMorrison, excluindo
a ltima fase por trs motivos: 1) A ltima fase continuou apesar da reformulao
completa do universo DC em 2011. Isso acarretou diversos ajustes nos planos de
Morrison, incluindo que Dick Grayson precisou abandonar o manto de Batman e
Stephanie Brown retirada da continuidade apesar de aparecer em algumas edies; 2)
Por causa disso a viso deMorrisonpara oBatmanfoi colocada de lado, ele deixou de
ser o principal artfice do Batmanpara a editora, sendo que o novo roteirista da revista
Batman Scott Snyderassumiu esse papel, inclusive escrevendo a nova origem doBatman
logo aps o termino da terceira fase de Morrison; 3) Essa terceira fase a que possui
menos modificaes no cnone e usos de continuidade. Os dois primeiros motivos
associado com o menor contedo do material para nossa anlise levaram excluso dessaterceira fase.
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Assim, lidamos com 57 edies nicas, sendo elas 28 edies de Batman (#655-658;
#664-683; #700-702), 16 edies de Batman & Robin (#1-16), sete edies de Final
Crisise seis edies de The Return of Bruce Wayne. Precisamos apontar duas excees a
esse corpus; primeiro, as edies #670-671 se referem a um evento chamadoResurrection
Of Ra's Al Ghule embora tenham sido escritas porMorrison, elas no possuem nenhuma
ligao com o seu planejamento e essas edies podem ser puladas sem nenhuma perda.
Segundo, Final Crisis lida com um cnone muito diferente das histrias do Batman,
resgatando oFourth Worldcriado porJack Kirbye fazendo diversas referncias ao seu
desenvolvimento. Por isso, vamos nos ater s partes que possuem reflexo direto na
histria que Morrison estava contando sobre o Batman, as outras referncias foram
ignoradas para os fins desse trabalho.
O objetivo deste trabalho , portanto, estudar os modos de construo da continuidade
narrativa em narrativas seriadas longas, mais especificamente, nos Comics de super-
heris norte-americanos. A continuidade narrativa nos comics consegue ser mantida
enquanto os mesmos personagens so publicados por dcadas com um grande nmero de
criadores envolvidos tanto na manufatura das histrias quanto na manuteno do universo
ficcional compartilhado. Este fato gerou o desafio enfrentado nessa pesquisa: formular
um modelo de anlise da continuidade narrativa especifica dos comics, ou seja, uma linha
de anlise que permitisse examinar um grande nmero de modificaes ao longo do
tempo alinhavadas por uma coerncia lgica.
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1 A serialidade dos Comics
A caracterstica mais marcante dos quadrinhos de super-heris norte-americanos
(chamados daqui em diante de Comics) seu complexo universo ficcional, povoado com
centenas de personagens e milhares de histrias construdas ao longo de diversas dcadas
de publicaes peridicas. Todos esses personagens habitam o mesmo universo ficcional
e todas as suas histrias so conectadas, formando uma gigantesca narrativa que se
desenvolveu por dcadas em tamanho e complexidade. Este estgio atual, entretanto, no
corresponde a toda a histria dos Comics, mas sim de sua metade mais recente, tendo
tomado forma moderna nas histrias da Marvel do incio da dcada de 1960 e sendo
paulatinamente adotado pela DC Comics durante esta dcada e a seguinte. Para
compreender melhor o momento em que vamos estudar os Comics preciso, primeiro,
compreender sua histria e como esse modelo de serialidade atual surgiu.
Os antepassados dos Comics so as tiras de jornal de aventura, principalmente os
derivados dos personagensPulp, como nos diz Petersen:
A ficopulpdo sculo XX foi uma continuao das publicaes de bolso comsangue-e-trovo do sculo XIX que haviam cultivado uma confivel formula parao escapismo. Como antes, capas sensacionalistas seduziam leitores a ler relatos
chocantes de assassinatos, peripcias, amores sublimes, justia cruel ehumilhaes patticas.1(PETERSEN, 2011, p. 137)
Tais personagens tinham uma ampla presena miditica no comeo do sculo XX, com
grande parte deles aparecendo em mais de um meio de comunicao, normalmente
revistas, livros baratos e programas de rdio, os mais rentveis podiam ainda colocar
programas de televiso (Tarzan) e filmes (Buck Rogers, Tarzan) no seu currculo.
A passagem desses personagens para as tiras dirias de jornal era algo natural, uma vez
que j havia uma variedade de tiras com narrativas mais extensas do que se poderia dar
conta em quatro quadros ou mesmo nas tiras triplas dominicais, mas que raramente
passavam de uma semana de durao, se caracterizando como sries episdicas de curta
durao. As primeiras tiras foram adaptaes das histrias curtas e novelas pequenas dos
personagenspulpque j haviam sido publicadas, seguindo o mesmo modelo narrativo das
histrias de aventura.
1Todas as citaes de textos em lngua estrangeira so tradues nossas.
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Com o tempo, j haviam sido adaptadas para tiras de jornal todas as histrias curtas j
publicadas. Mas, pelo seu sucesso foram comissionadas novas histrias feitas
especificamente para as tiras. Esse sucesso tambm levou criao de personagens
pensados para as tiras, como Flash Gordon (1934), Mandrake (1934) e The Phantom
(1936). Esses personagens permitiram histrias feitas especificamente para um ambiente
primariamente visual, tendo agora um maior cuidado visual com o trao, com o cenrio e
com a anatomia dos personagens, alm de criar narrativas mais longas e complexas.
(PETERSEN, 2011, p. 133)
Em paralelo a essa evoluo temtica (com personagens mais srios e um trao mais
sbrio) e de estrutura da narrativa (histrias pensadas para durar mais tempo e que
tivessem suas pausas e momentos fortes pensados pela semana) houve uma evoluo dosuporte fsicos dessas histrias. As editoras comearam a reimprimir comics antigos em
formatos de revistas e revende-los como revistas autnomas O formato original desses
livros com fundo de papelo variavam em tamanho, poderiam ter entre 24 e 60 pginas e
serem grandes (11 por 16 polegadas) ou pequenos (6,5 por 7 polegadas) e variavam de
preo entre 20 e 50 centavos. (PETERSEN, 2011, p. 139). Durante vrios anos diversas
dessas revistas inundaram o mercado, reimprimindo tiras de aventura, comdia e
romance, at que o formato comeou a se consolidar com a publicao da Funnies on
Paradeem 1933, Essa foi a primeira coleo de reimpresses de tiras que tem o formato
do que viria ser chamado Comic book: 7,5 x 10,5 polegadas com uma capa de papel.
(DUNCAN, 2009, p. 29).
Outro marco na evoluo do formato veio com a criao da revista chamadaNew Funem
1935 pela National Allied Publication. Essa revista se apresenta como a primeira
composta unicamente de contedo original e no de republicaes de tiras j publicadas
em jornais. importante notar que uma outra revista chamada The Funnies j haviapublicado tiras originais, mas sempre em conjunto com reimpresses. A New Funno
teve sucesso imediato, mas o dono da editora, Malcolm Wheeler-Nicholson, decidiu por
criar outra revista com a mesma proposta, a New Comics, e a New Funfoi renomeada
paraMore Fun. Quando Wheeler-Nicholson quis criar um terceiro ttulo, ele precisou se
associar a seus distribuidores Harry Donenfeld e Jack Liebowitz, por causa de dvidas e
ao fazer isso criou uma nova empresa aDetective Comics, Inc, chamada assim porque a
revista criada era chamada Detective Comics. Assim se criou a mais duradoura das
editoras de Comics, aDC Comics.
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A conjuno desses dois desenvolvimentos, modelos narrativos mais longos e complexos
e um formato do suporte com material indito que favorecia esse modelo narrativo,
culminou na criao do primeiro super-heri como viemos a classificar depois dele. A
publicao da quarta revista daDC ComicsaAction Comics#1 teve a estreia do Superman
em 1938, criado por dois amigos que j haviam trabalhado para a National Allied
Publicationanteriormente, Jerry Siegel e Joe Shuster.
A chegada do Superman Action Comicssinalizou o momento em que a indstriados Comic books veio a ser e abraou as vantagens do formato maior comhistrias que se dirigiam diretamente a uma audincia masculina e mais nova. Aolongo dos prximos meses, assim que os nmeros das vendas comearam aaparecer, se tornou cada vez mais bvio que um grande nmero de jovens estavacomprando as revistas do Superman e que a popularidade desse personagemestranhamente fantasiado estava espirrando em outros ttulos de Comics
(PETERSEN, 2011, p. 142)
Esse sucesso chamou a ateno de outras editoras que acabaram por criar personagens
seguindo a mesma receita (superpoderes, identidade secreta e fantasia colorida), e em
alguns casos plgios. O mais famoso caso de plgio o do Wonder Man, publicada pela
Fox Feature Syndicates, fundada por um contador na DC Comics que ao perceber o
sucesso do Supermanresolveu fundar a sua prpria editora e lanar uma revista com um
personagem similar. To similar era o personagem queDCse sentiu lesada e processou
a concorrente, ganhando a causa e impedindo a publicao do personagem. No entanto aeditora continuou a publicar outros personagens, como o Blue Beetle, mostrando que o
mercado estava aberto aos super-heris e no somente ao Superman.
Ao mesmo tempo outras editoras estavam tentando ganhar um espao nesse mercado
emergente. Editoras como a Fawcett Comicse a Timely Comicscomearam a produzir
seus prprios personagens e diversas outras editoras entraram no mercado entre o final da
dcada de 1930 e o comeo da dcada de 1940. No vero de 1940, Comic booksvendiam
10 milhes de unidades por ms. Haviam mais de vinte e nove editoras de Comicbookse mais de 150 ttulos diferentes eram publicados., (STEVENSON, 2008 apud,
PETERSEN, 2011, p. 44) em 1943 a tiragem aumentou para 18 milhes de exemplares
por ms (AMES e KUNZLE, 2007, apud, PETERSEN, 2011, p. 44).
Todas essas editoras criavam um grande nmero de personagens, uma necessidade visto
que o tamanho padro das histrias publicadas nos comic books eram de oito a doze
pginas. Assim, para encher as mais de 60 pginas eram criadas 6 a 8 histrias por edio,
normalmente com vrios personagens que poderiam retornar caso os leitores pedissem
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mais. AFawcettcriou o Captain Marvele toda uma leva de personagens secundrios na
Whiz Comicsem 1940, a Timely lanou oHuman Torche oNamorem 1939 e o Captain
Americaem 1941. ADCtambm comeou a lanar novos super-hrois, os mais famosos
sendo oBatmanque estreou naDetective Comics#27 de 1939 e a Wonder Womanteve
sua primeira apario naAll Star Comics#8 de 1942.
Com todos esses heris aparecendo juntos nas mesmas revistas e fazendo sucesso lado a
lado, no demorou muito para que se pensasse que juntando os personagens mais famosos
resultaria em vendas ainda melhores. O primeiro desses experimentos ocorreu na revista
Marvel Mystery Comics#8 de 1939 com o encontro entre o Namor e o HumanTorch,
uma histria elaborada em duas partes que serviam como um prlogo para a batalha entre
os personagens na edio #9. Cada parte da histria na #8 contada do ponto de vista deum dos personagens e explica o motivo de sua inimizade com o outro e prepara o combate.
Na edio seguinte, o combate entre os dois personagens toma a capa e 22 pginas da
revista, terminando em um cliffhangercom oHuman Torchsendo capturado peloNamor,
situao que se resolveria na edio #10 com uma histria de uma pgina apenas.
Um pouco depois, a DCem conjunto com a All-American Publications comearam a
juntar personagens secundrios de outros ttulos na revista trimestralAll Star Comics. Na
edio #3 foi criada a Justice Society of America, primeiro apenas como um elementopara unir as diversas narrativas dos personagens da edio, os personagens estavam
contando as suas aventuras. Com o sucesso da idia, as histrias dos personagens em
separado foram diminuindo para aumentar o espao para o grupo de heris, que com o
tempo foi tendo a adio dos heris mais famosos comoBatman,Flashe Supermancomo
membros honorrios. Por causa disso, Batman e Supermanapareciam muito pouco na
revista e havia uma regra de que se o personagem ganhasse uma revista prpria, ele
deveria parar de aparecer nas histrias, fato que ocorreu com o Flash e com o GreenLantern. A juno dos personagens em uma mesma histria , para a DC, uma estratgia
para viabilizar personagens secundrios, o que demonstrado pelo fato de que depois da
All Star Comics#7, edio em que so mostrados como membros honorrios da Justice
Society, Batmane Supermans voltam a aparecer juntos em uma histria em 1952 na
Superman #76.
O que est colocado nesses dois casos o germe do universo ficcional compartilhado que
marca os quadrinhos de super-heris modernos, sendo que nesses dois exemplos j se temum certo tom que marcar as duas editoras, no caso da Timely, futuraMarvel, a histria
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coloca dois heris em conflito, sendo que ambos se sentem justificados no embate. No
caso daDC, temos a incorporao de personagens de outras editoras para dentro de seu
universo ficcional, o que posteriormente vai acarretar na criao de diferentes terras para
cada um desses universos, que ocasionalmente se cruzam nas narrativas, criando um
multiverso ficcional.
Esse boom de criao de personagens continuou at um pouco depois da segunda guerra
mundial, onde foram muito utilizados como propaganda de guerra, inclusive com
personagens sendo criados especificamente para melhorar a moral das tropas e a criao
posterior de um gnero de guerra mostrando as aes hericas dos soldados. Passado esse
perodo, a popularidade dos super-heris diminuiu Em 1946 apenas um super-heri foi
lanado Blonde Phantonpela Marvel. Ao final de 1947 a circulao de praticamentetodas as revistas de super-heris diminuram. At a Captain Marvel Adventuresdiminuiu
cerca de 2,5 milhes de seu pico de 14 milhes de cpias em 1944 (DUNCAN, 2009, p.
36)
Outros gneros comearam a ganhar fora no lugar dos heris: Comics de faroeste,
populares depois da segunda guerra mundial, se misturavam livremente com de romance,
mas foi o advento dos Comicsde horror e de crime que teriam o impacto mais dramtico
no futuro da indstria (PETERSEN, 2011, p. 156). Essa diversificao de gnerosampliou o mercado, aDellComicsassinou um contrato em 1940 com os Estdios Disney
para criar uma linha de histrias em quadrinhos sobre seus personagens. A Timelylanou
o incio das revistas de romance em 1949 com a Young Romance, criado pela mesma
equipe do Captain America: Joe Simon e Jack Kirby. Os Comics de crime se
popularizaram em 1948 quando as dez revistas publicadas em 1947 cresceram para 33
em 1948. O gnero de horror foi popularizado pelaEntertaining Comics, principalmente
pelo lanamento da sua linha New Trendem 1950, contendo ttulos como The Vault ofHorrore Crypt of Terror, este ltimo renomeado posteriormente como Tales from the
Crypt. Todos esses gneros ajudaram a indstria a atingir seu pice Em 1954, as grficas
estavam produzindo 150 milhes de revistas todos os meses. No incio do ano haviam
mais de seiscentos ttulos diferentes sendo publicados. (BENTON, 1993, apud
DUNCAN, 2009, p. 39).
Coincidindo com esse crescimento dos Comics de horror e de crime, houve um
crescimento da preocupao com os efeitos nocivos desse tipo de histrias sobre osleitores, principalmente os mais jovens. Embora no houvesse evidncia estatstica da
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conexo entre Comics e delinquncia juvenil, diversos incidentes sensacionais
envolvendo crianas imitando Comicsviolentos elevou a percepo pblica de que algo
precisava ser feito(PETERSEN, 2011, p. 160). Durante o final da dcada de 1940 a
Association of Comics Magazine Publishers (Associao das editoras de revistas em
quadrinhos) tentou responder a esse concernimento com a criao de um conjunto de
regras e um selo que mostraria a aceitao dessas regras. No entanto as editoras no
aderiram ao selo e continuaram publicando suas revistas sem ele.
Essa imagem negativa dos Comicsse transformou em uma cruzada com a publicao do
livro The Seduction of the Innocentem 1954. O livro, escrito pelo psiquiatra Frederic
Wertham
atacou os Comics em diversas frentes, incluindo sua falta de verissimilitude(super-heris desafiando as leis da fsica); sua falta de mrito artstico (arte ruim,mal impressos, com cores mal feitas); sua falta de decoro (contedo sexualmentesugestivo com ajudantes e personagens femininas); e, mais importante, umacelebrao da violncia (ataques aos olhos e decapitaes tratadas como atoshumorados ou sexualmente excitantes). (PETERSEN, 2011, p. 161)
As acusaes de Wertham levaram a uma audincia com o senado dos EUA sobre o caso
da influncia nociva dos Comics sobre a juventude. Embora essas audincias fossem
focadas nos temas tratados nas revistas de horror e de crime, Wertham acreditava que a
nica soluo seria a proibio da venda de Comicsa menores de 16 anos. Muito emboraos mtodos utilizados e os resultados encontrados por Wertham sejam contestados hoje
(TILLEY, 2012), os danos de suas acusaes foram duradouros para a indstria dos
Comics.
Para evitar medidas legais, as maiores editoras se uniram para criar um comit revisor
independente chamado Comic Code Authority que iria avaliar as histrias e depois
conceder um selo de aprovao para aquelas que cumprissem os padres e regras
acordados. Entre essas regras estavam a impossibilidade de se mostrar bandidos fugindo,
de se mostrar cenas de horror, de excesso de sangue, de sadismo, entre outras regras
voltadas para se manter o decoro. Essas regras foram criadas principalmente para acabar
com o mercado de Comicsde horror e de crime, tendo sido utilizadas pelas trs grandes
editoras de material mais ameno,Dell,DCeArchie, retirando competidoras do mercado
e cimentando osComicscomo uma mdia voltada para o pblico infantil.
O ComicsCode no foio nico motivo para a queda das vendas de revistas em quadrinhos
nos EUA na dcada de 1950. A televiso tomava parte do tempo livre das pessoas e a
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situao financeira de muitas editoras no ia bem. As editoras mdias e pequenas
acreditaram que a tendncia de crescimento do mercado da primeira metade da dcada de
1950 ia se estender, assim produziam mais revistas do que vendiam, cerca de metade da
produo apenas (PETERSEN, 2011, p. 159). A audincia do senado engendrada por
Wertham foi apenas um fator de acelerao de um declnio j iniciado.
Se aproveitando da falncia das concorrentes, aDCcontinuou a engolir os personagens
de outras editoras. Primeiro com o licenciamento do Captain MarveldaFawcettaps um
longo processo jurdico que permitia a DC criar novo material para o personagem
principal e todos os seus coadjuvantes. Ela tambm comprou a Quality Comicse seus
personagens, principalmentePlastic Man,Blackhawke Uncle Sam.
Nesse mesmo perodo os nicos super-heris que continuaram a ser publicados
regularmente eram os trs personagens mais famosos da DC, Superman, Batman e
Wonder Woman. Mas, suas histrias cada vez mais tomavam rumos escatolgicos, com
histrias estapafrdias que sempre retornavam ao status quo. Essa era ficou conhecida
como a era de prata dos quadrinhos, em contraste com a era de ouro que veio antes do
Comics Code. Um temapredominante nos Comics desse perodo (a era de prata) era o
seu no engajamento com assuntos do mundo real, mas a utilizao cada vez maior de
elementos meta-narrativos que chamavam a ateno para o fato de que a histria era umahistria em quadrinhos.(PETERSEN, 2011, p. 165).
Era comum a ampliao do elenco de apoio dos personagens, a criao de contrapartes
femininas (Supergirl, Batwoman, Batgirl), mascotes superpoderosos (Kripto, Ace the
Bat-Hound) e outros elementos incomuns, um melhor amigo para o Superman(Jimmy
Olsen) e um amigo de outra dimenso para o Batman (Bat-Mite). Esses personagens
tornavam as histrias mais leves, sendo que muitas vezes elas deixavam de ser sobre os
heris combaterem criminosos para mostrar situaes inusitadas envolvendo, por
exemplo, oBatmanviajar para um planeta em que ele possua os poderes do Superman
(Batman#113, 1958), ou a apario de um pedao de Kryptonita vermelha que poderia
ter diversos efeitos como: ...perda de memria (Adventure Comics#284, 1961) ou de
poderes importantes (Superman#128, 1959), mas tambm poderia transform-lo num
ano (Action Comics#284, 1962), em um drago que cospe fogo (Action Comics#303,
1963) ou dar a ele um terceiro olho na sua nuca.2(DUNCAN, 2009, p. 43).
2Os Exemplos so do autor da citao, as referncias das edies so nossas.
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O final da dcada e 1950 tambm viu a DC lanar, timidamente, novos super-heris.
Primeiro, em 1955 ela apresentou o Martian Manhunter, um marciano com diversos
poderes que se escondia entre os humanos, mas suas histrias pareciam mais histrias de
detetives com o seu lter ego J'onn J'onzz do que histrias de super-heris. Depois foram
renovaes de personagens antigos, oFlashfoi reinventado em 1956 e em 1959 o Green
Lanterntambm foi repaginado. O sucesso desses dois personagens iniciou um renovado
interesse por Comicsde super-heris, tanto que o editor daDC, Julius Julie Schwartz,
investiu na recriao da idia de uma super-equipe que havia dado certo nos anos 1940
com aJustice Society of America. Modificando o nome de SocietyparaLeaguefoi criada
aJustice League of Americana The Brave and the Bold#28 de 1960 contando com ... o
Flashe com o Green Lantern, Schwartz adicionou o Martian Manhuntere os brases,
Aquamane Wonder Woman. Supermane o Batmantambm eram membros, mas eram
relegados a pequenas aparies nas primeiras aventuras do grupo.(DUNCAN, 2009, p.
45).
O sucesso da nova super-equipe da DClevou o dono da Marvel Comics(antiga Atlas,
antiga Timely), Martin Goodman, a encomendar a seu editor Stan Lee uma histria sobre
uma equipe nos mesmos moldes que a da editora rival. Lee, que j estava cansado de seu
trabalho refazendo histrias de monstros, decidiu fazer a revista que ele gostaria de ler.
Em colaborao com o veterano criador do CaptainAmericae dos Comicsde romance
Jack Kirby, Lee criou o Fantastic Fourem 1961. De uma determinada maneira aqui
nascem as histrias de super-heris modernas, baseadas principalmente em caracterizao
e nos conflitos entre os personagens, diferentemente da DCque ... tendia a focar no
desenvolvimento da trama em detrimento da caracterizao... (DUNCAN, 2009, p. 46),
gerando a percepo de que todos seus heris eram iguais e que falavam da mesma
maneira.
Lee e Kirby transformaram esse foco na caracterizao dos personagens em uma frmula
para a criao de diversos heris, ocasionadas por um acidente que dava a sua vtima
poderes especiais
O que tornou esta frmula ser to bem sucedida foi que em cada instncia, atransformao da pessoa ordinria em um super-heri estabelecia um personagemfalho que era cheio de dvidas se os poderes dados a ele eram, na melhor dashipteses, uma faca de dois gumes, ao mesmo tempo elevando-o e o alienando davida ordinria (PETERSEN, 2011, p. 163)
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Os diversos personagens criados pela editora como Iron Man (1963), Hulk (1962),
Daredevil(1964), Spider-man(1962), tinham outras diferenas alm da caracterizao.
Primeiro, eles habitavam em um mundo ficcional muito mais familiar que os personagens
daDC, moravam em cidades existentes, ao invs das inventadas, principalmente Nova
York que serve como pano de fundo para a maior parte das histrias. Segundo, seus
personagens possuam problemas pessoais para alm de manter sua identidade secreta,
pode ser porque morem em um local violento (Daredevil), podem precisem trabalhar para
se sustentar (Spider-man), podem ter brigas familiares (Fantastic Four) ou podem ter
medo de ferir aquele que amam (Hulk). Terceiro, seus personagens secundrios realmente
influenciam nas histrias, no sendo apenas figuras intercambiveis para mover a trama.
Todos esses elementos so potencializados por uma mudana crucial no modelonarrativo, pois enquanto a DC ainda publicava mais de uma histria por revista
(normalmente 3 de 8 pginas ou 2 de 12) a Marvelpreferia mostrar captulos de uma
mesma histria em uma nica edio, dispondo assim de todas as 24 pginas para
formular uma narrativa mais complexa. Alm disso, muitas edies tinham ganchos para
edies futuras, como a luta entre o Hulk e o Thing (Fantastic Four#25, 1964) que
continuou na edio seguinte com a chegada da super-equipe daMarvel: The Avengers.
Temos assim dois elementos importantes a adicionar, a criao de arcos narrativos mais
longos do que uma nica edio e a consolidao de um universo ficcional compartilhado
entre todos os personagens da editora, sendo que eles no esto presos a seus ttulos, mas
podem aparecer em outras revistas quando fizer sentido e eles forem necessrios.
Em nenhum ttulo todas essas caractersticas so mais aparentes do que em The Amazing
Spider-Man. As primeiras 36 edies foram realizadas com o time de Stan Lee como
roteirista e Steve Ditko como desenhista. Nelas Peter Parkerdeixaria de ser um heri
relutante, passaria a aceitar seus poderes e as dificuldades que isso traz, mas que eleprecisa ser um heri porque s ele tem a capacidade para tal. Essa transformao do
personagem ocorre ao longo do tempo enquanto Peter cresce, se gradua, vai para a
faculdade, ganha amigos, rivais e interesses amorosos. Nesse meio tempo ele tambm
encontra com outros personagens do universo ficcional daMarvelque funcionam como
conselheiros ou amigos. Uma das histrias da primeira edio de The Amazing Spider-
Man(1963) o seu encontro com oFantastic Four, iniciando um longo relacionamento
de amizade com o segundoHumanTorch, o membro mais novo da equipe.
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Essas mudanas atingiram seu pice com o arco If This Be My Destiny...! que foi
publicado nas edies de The Amazing Spider-Man #31-33. Nesse arco somos
apresentados a Harry Osborn (futuro melhor amigo de Peter) e Gwen Stacy (futura
namorada), alm de descobrir que sua tia estava doente. Na luta para conseguir o remdio
para a cura de sua tia, Spider-Manacaba soterrado por uma pilha de escombros e para se
soltar decide Eu preciso meprovar altura da tarefaEu preciso ser dignodessa fora
(LEE; DITKO, 1966, p. 3, q. 3). Nesse ponto o personagem se modificou, longe do
menino invejoso que queria usar seus poderes para ganhar fama e fortuna e que por isso
perdeu seu tio, temos agora um personagem disposto a fazer jus aos poderes que tem,
mesmo diante das dificuldades.
Todas essas caractersticas pintam um quadro muito diferente do modo como aDCaindacriava suas histrias, muita separao entre seus heris, eram raras as aparies de um
personagem na revista de outro, personagens que no mudavam ao longo do tempo e
histrias episdicas. Havia excees como as histrias do Metamorpho (1965) que
continham histrias longas de mais de 20 pginas divididas em captulos exatamente no
modelo daMarvel.
Outra diferena era o modo da expanso do universo ficcional. Enquanto a Marvel
construiu seu conjunto de heris praticamente apenas dentro da sua editora, com algunssendo reingressos da Timelycomo Captain America e Namor, a DC aumentava o seu
celeiro de personagens com a aquisio e a licena de heris de outras editoras, como j
foi mencionado. Para sustentar esse modelo, aDCdecidiu criar terras diferentes para cada
um desses universos ficcionais, universos paralelos que ainda se tocariam em
determinados pontos, criando um multiverso ficcional. Isso se iniciou com o encontro do
segundo Flash (Barry Allen) com o primeiro (Jay Garrick) em Flash (v2) #123 de
setembro de 1961. A histria fez sucesso o suficiente para que os personagens seencontrassem mais vezes nas edies #129 e #137, sendo que foram feitas menes
Justice Society of Americanas duas edies. Finalmente, nas edies #21 e #22 deJustice
League of America as duas equipes se reuniram e se criou a nomenclatura dos dois
mundos, a daJustice Leagueera aEarth-1 e a daJustice SocietyaEarth-2. Esse padro
continuou com a adio dos personagens daFawcet ComicsnaEarth-S, personagens da
Charton na Earth-3 e a criao de diversas terras paralelas distintas em histrias dos
prprios personagens como modo de explicar um universo diferente.
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Esses modos de construo de universos ficcionais geraram formas diferentes de lidar
com o acumulo de histrias. AMarvelmanteve seu crescimento orgnico e deixava a sua
cronologia seguir, com alguns pontos que eram deixados de lado e outros que eram
realinhados posteriormente, a sua continuidade relativamente limpa, sem nenhuma
quebra brusca. Na DC ocorre o contrrio, a quantidade de histrias que pediam
esclarecimentos ou notas de rodap especficas posteriormente era muito grande,
principalmente porque alguns personagens existiam de forma repetida em mais de um
universo. O Superman, por exemplo, existia em trs verses concomitantes, o membro
fundador daJustice Society que vivia naEarth-2 e era mais velho, o regular daEarth-1e
o Superboyque existia em um processo de continuidade diferente, que s vezes parecia
estar no universo ficcional principal, como quando participava das aventuras da Legion
of Super-heroesno sculo 30, enquanto outras vezes ele participava de aventuras que
contradiziam as histrias do Superman.
Toda essa confuso se estendia por toda a linha daDCe ela era tamanha que foi decidido
que haveria uma reorganizao desse multiverso narrativo. Ento em 1985 se iniciou a
histria que acabaria com a continuidade anterior e iniciaria uma nova: Crisis on Infinite
Earths. Essa minissrie em 12 edies foi publicada entre abril de 1985 e maro de 1986
e conta uma saga csmica de uma fora de destruio imensa que aniquila realidades
inteiras, destruindo todas os universos paralelos ao principal da DC e obrigando os
personagens a se refugiarem naEarth-1. Ao final da saga, em uma escolha com um toque
de ironia, o segundo Flash (Barry Allen) se sacrifica para permitir aos outros heris a
possibilidade de derrotar o vilo e salvar um dos universos, mas no processo reescrever o
universo ficcional de modo que s exista um e que todos os heris coexistam nele. A
ironia se d porque o Flash considerado a raiz do problema da multiplicao dos
universos ficcionais daDC, j que o primeiro contato entre as terras paralelas se deu sem
sua revista. Ela mais forte porque na nova continuidade o sucessor de Barry Allen
tambm quebra a proposta de Crisis on Infinite Earths, uma vez que ele lembra dos
eventos dessa saga, algo que no deveria ocorrer. Mas, estamos nos adiantando ao
problema.
A inteno da srie (Crisis on Infinite Earths) era de ordenar a continuidadeas inter-
relaes entre as histrias publicadas anteriormente e idealmente tornar os ttulos da
DC mais acessveis a novos leitores. (DUNCAN, 2009, p. 78). Com isso aDCrelanou
toda a sua linha de revistas contando histrias de origem, construindo novos mitos
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criadores que funcionassem sem mencionar as histrias passadas, permitindo uma
continuidade mais organizada e coesa. Esse processo se iniciou com o Superman, trabalho
que foi atribudo John Byrne, primeiro na minissrie em seis ediesMan of Steelque
conta a nova origem do personagem e depois em duas revistas mensais, Action Comics
continuando a numerao original na #584 e uma nova revista chamada Superman
iniciando do #1, enquanto Marv Wolfman escrevia e desenhava a terceira revista do
personagem Adventures of Supermanque continuou a numerao da antiga Superman.
Nessas revistas tudo ocorreu conforme o planejado, com a reintroduo dos personagens
secundrios e viles antigos como se fossem as suas primeiras aparies, efetivamente
reconstruindo o universo do Superman a partir do zero.
No entanto nem todas as revistas fizeram o mesmo com os outros personagens.Batman,por exemplo, teve uma nova origem recontada porFrank MillereDavid Mazzucchelli
emBatman: Year Onepublicado na revistaBatman#404-407 em 1987, mas no se teve
um recomeo da continuidade, portanto, eventos ocorridos antes de Crisis ainda eram
considerados como parte da continuidade. O pior caso foi o relanamento da revista do
Flash(v2) em 1987 escrita porMike Baron, nela Wally West, sobrinho deBarry Alleno
segundoFlashque morreu durante Crisis, assume a identidade do tio, deixando de ser o
ajudante Kid Flash. Embora no haja referncias diretas Crisis, a srie basicamente
continua a vida de Wallycomo se crise no houvesse acontecido, apenas com a morte do
tio e mentor, mantendo a mesma continuidade anterior e no recontando uma histria de
origem, nem reintroduzindo personagens antigos. O novo incio para oFlashs veio em
1992 quandoMark Waidassume o ttulo na #62 e inicia o arcoFlash: Year One, Born to
Run!que reconta as origens do personagem e sua histria comBarry Allen.
Temos, ento, trs modos com os quais aDClidou com a sua continuidade aps Crisis,
o reinicio completo, em que nenhuma histria anterior era vlida (Superman, WonderWoman), uma recriao do mito fundador mas sem reiniciar toda a continuidade (Batman)
e uma simples continuidade das histrias anteriores ignorando os eventos de Crisise a
existncia de universos paralelos (Flashv2,Justice League International).
Como esses trs modos podem entrar em contradio, a DC foi tentando novamente
ajustar sua continuidade de maneiras menos drsticas, primeiro com o eventoZero Hour
de 1994, que reestruturou parte do universoDC, incluindo a invalidao deBatman: Year
Two, e a reconstruo de toda a cronologia do Hawkman. Essa segunda tentativanovamente criou outros problemas, dessa vez com cronologias diferentes como a do
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prprioHawkmane a da segunda Supergirl(tambm conhecida comoMatrix Supergirl).
Isso levou a uma terceira tentativa de reorganizao do universoDCcomInfinite Crisis
(2005), dessa vez retornando ao modelo de multiverso com diversas terras, contando com
a participao do SupermandaEarth-2 de Crisis on Infinite Earths.
Mesmo com essa terceira reorganizao a DC novamente decidiu por reiniciar o seu
universo ficcional em 2011. Dessa vez era o projeto mais ambicioso desde Crisis on
Infinite Earths, um reinicio completo de todos os personagens, estabelecendo uma nova
cronologia, invalidando todas as histrias ocorridas antes. Esse projeto, chamado deNew
52, uma referncia ao nmero de terras alternativas criadas ao final deInfinite Crisise ao
fato de que elas so uma nova cronologia, reapresenta o Supermancomo o primeiro super-
heri a surgir e monta o universo ficcional ao redor dele, tentando construir umacontinuidade mais simples e mais amistosa a novos leitores, exatamente como Crisis on
Infinite Earths.
S que, novamente, certos personagens escaparam dessa reforma completa de sua
continuidade, nos dois casos devido ao seu roteirista estar no meio de um conjunto de
histrias bem aceitas pelo pblico e rentveis para a editora. O primeiro caso a passagem
de Geoff Johnspelo Green Lanterndesde 2004 que trouxeHal Jordan,o segundo Green
Lantern, de volta e criou diversos novos personagens a partir de outros anis ligados acores do espectro luminoso. Nesse primeiro caso toda a passagem do autor foi mantida,
mesmo as conexes com sagas anteriores, como a morte deJordanemFinal Night(1996)
e sua ressureio em Green Lanten: Rebirth(2004).
O segundo caso mais interessante para ns, se trata da passagem de Grant Morrison
pelo Batman que se estendeu de 2006 a 2013. Nesse perodo, Morrison construiu a
primeira fase de suas histrias com base em histrias do Batmanda dcada de 1950 e
1960, reconstruindo-as para serem apreciadas pelos leitores atuais, sem perder uma certa
referncia ao perodo. Isso significa que boa parte da narrativa dessa fase est ancorada
em uma continuidade anterior a Crisis on Infinite Earths, s que nesse caso condensadas
para que tudo ocorra em apenas 5 anos na nova cronologia. Pode no parecer algo
complicado, mas entraremos em maiores detalhes sobre a passagem de Morrison no
Batmanno captulo 4 e tentaremos explicar porque essa mudana enfraquece a proposta
dele, e ao mesmo tempo a torna mais interessante.
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O modo como aMarvelcontinuou a gerir seu universo ficcional foi comparativamente
muito mais simples, mas tambm pede uma explicao maior. Enquanto a DCutilizava
seus grandes eventos para reorganizar seu universo ficcional, aMarvelos utilizava para
mostrar as inter-relaes entre os personagens do seu universo, algo que ela sempre
priorizou.
As interconexes com as edies passadas foram enfatizadas primeiro por StanLee naMarvel,que as colocava em seus comentrios e depois em notas de rodapque citava as referncias na atual edio com eventos em edies passadas. Umamaior continuidade permitiu mais crossovers3entre ttulos, o que permitiu quehistrias populares ajudassem a promover outras histrias no mesmo universo. AMarvel Comics tomou a liderana em promover essa continuidade em seumassivo crossoverde 1982, Contest of Champion. (PETERSEN, 2011, p. 169)
Isso no significa que aMarvelno expandisse seu universo ficcional de outras maneiras,
como o fez ao criar personagens sob comisso comoRom: Spaceknight(1979), baseado
em um rob de brinquedo fabricado pela Parker Brothers. As histrias do personagem
foram inseridas dentro do universo Marvel, tendo ocorrido encontros com diversos
personagens da editora como os X-Men (Rom #17, 1981), Fantastic Four (Rom #23,
1981) e enfrentou viles j consolidados como Galactus (Rom #26, 1982) ou a
Brotherhood of Mutants (Rom #31, 1982). Outro exemplo a revista que a Marvel
publicou do Godzillaentre 1977 e 1979, em que o monstro gigante enfrenta a S.H.I.E.L.D,
principalmente Dun DunDungan, e os Avengers (Godzilla #23, 1979). A Marvel
tambm teve personagens licenciados, como G.I Joe (1982 a 1994) e Conan (1970 a
1993) que no participaram do seu universo ficcional compartilhado.
Outra diferena no modo da Marvelde lidar com a continuidade a sua utilizao dos
eventos de crossover. Enquanto aDCutiliza esses eventos primariamente para organizar
o seu universo ficcional e tentar contornar seus problemas de continuidade passada, a
Marvelos usa para criar um fio condutor entre todos os seus ttulos, fazendo com que eles
se interconectem mais fortemente. Essa estratgia antiga na Marvel, tendo ocorrido
primeiro na minissrie Secret Wars (1984), em que diversos heris e viles so
transportados para um mundo distante chamado Battleworld por um ser absurdamente
poderoso para lutar para a sua diverso. Muitas revistas participaram desse evento alm
das edies da minissrie, mostrando eventos mais especficos dos seus personagens.
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Crossoverse refere ao encontro de personagens de ttulos diferentes se encontrarem na revista de umdeles. Por exemplo, o Iron Manaparecer numa revista do Spider-Manseria um crossover, mas o
encontro de ambos na revista dos Avengersno seria, j que os dois fazem parte do grupo.
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Diversos acontecimentos dessa minissrie influenciaram os personagens nos anos
seguintes, como a descoberta de um uniforme aliengena para o Spider-Man que se
tornaria um vilo depois e a permanncia do ThingdoFantastic Fournesse mundo por
algum tempo, o que levou a She-Hulka assumir seu lugar na equipe.
A partir dos anos 2000 aMarvelpassou a utilizar esses grandes eventos para avanar uma
trama geral de todo o universo ficcional, sendo que cada um dos eventos gerava
repercusses que montavam as bases para os eventos seguintes. Isso se iniciou com
Avengers: Dissambled(2004), que estruturouHouse of M(2005), uma nova trama geral
seguiu com Civil War(2006) que levou a Secret Invasion(2008) que gerouDark Reign
(2009) que desembocou em Siege (2010). Aps o ltimo, a Marvelresolveu diminuir a
importncia desses eventos, criando eventos menores e com menos repercusses, comoShadowland(2010) que lida apenas com os vigilantes menos poderosos deNew Yorkou
Schism (2011) que envolvia apenas os ttulos ligados aos X-Men. Em 2013 a Marvel
parece ter retornado aos grandes eventos comInfinity(2013), que, embora conte com um
menor nmero de crossoversdesaguar em outro evento chamadoInhumanity, esperado
para dezembro de 2013 e todo o ano de 2014.
Toda essa retrospectiva teve dois objetivos especficos. Primeiro, mostrar como a
continuidade dos Comicssurgiu e se tornou um elemento to essencial ao seu modo deapreciao. Os leitores se tornam especialistas nessas frestas narrativas, sabem quando
uma histria contradiz a outra, pedem por uma maior coerncia, reclamam pelo retorno
de uma formulao antiga da continuidade. Em suma, o conhecimento da histria
pregressa uma das fontes de diverso e gozo da leitura de Comicspelos seus fs. O
segundo objetivo apresentar a complexidade narrativa que foi construda e a
complexidade da gesto desses universos (algumas vezes multiversos) ficcionais. Por
exemplo, embora o modelo daMarvelparea menos complexo devido ao menor nmerode mudanas, preciso lembrar que ele tem um nmero maior de conexes presentes, os
eventos entre os ttulos precisam estar melhor sincronizados.
Partindo dessas demonstraes, podemos voltar nosso foco para os modos de construo
e manuteno dessa continuidade por parte das editoras, por que est claro que elas no
apenas reagem ao que os autores escrevem, mas indicam, arbitram e, parece bvio, editam
as histrias. Como um complemento a essa questo temos as maneiras como os leitores
lidam com esse imenso universo de informaes, fazem juzos sobre a qualidade de umahistria ou identificam a reverncia de um autor a um momento da histria do personagem
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que agora ele escreve. Essas duas questes se tocam muito profundamente, as editoras
mantm a continuidade porque os leitores compram revistas que fazem uso dela, no se
pode assumir que ela mantida porque ...existe uma determinao to focada entre
escritores e fs que a continuidade deve ser mantida a qualquer custo... (REYNOLDS,
1992, pp. 4748).
Ento, passaremos o restante deste trabalho para essas questes, o modo de
gerenciamento e de compreenso dessa continuidade, propondo um modelo de anlise
que estabelea os traos de coerncia diante de todas essas mudanas de equipe criativa
e validao e invalidao de narrativas passadas.
1.1 Modelos seriados
Postergaremos essa questo por um breve momento para tratarmos de um assunto
auxiliar, mas de grande importncia nesse trabalho, a construo de categorias de
serialidade especfica para o estudo dos Comics. Isso importante porque a continuidade
como discutida aqui um produto da serialidade das narrativas em quadrinhos de super-
heris. Ela ocorre por causa do acumulo de narrativas dentro de um mesmo universo
ficcional que so criadas para serem coerentes entre si. Durante a parte anterior j
utilizamos alguns termos como arco narrativo e passagem de um autor, mas necessrio
especificar seu significado e embasar a sua existncia antes de prosseguirmos.
Primeiro precisamos definir com preciso o que serialidade como uma estratgia
narrativa, se no poderamos pegar qualquer conjunto de textos, coloca-los de modo que
um venha depois do outro e teramos uma srie. Srie pode ser compreendida de duas
maneiras, partindo do seu modo de produo ou das caractersticas do produto. O primeiro
caso como um conjunto de itens produzido a partir do mesmo molde sendo idnticos,
teramos assim uma produo em srie. O segundo caso seria um conjunto de itens que
no sendo idnticos apresentam similaridades de famlia. A diferena fica clara fazendo
uma analogia txtil, uma cala jeans produzida industrialmente faz parte de uma srie
com todas as outras calas idnticas do mesmo modelo, mas tambm faz parte de uma
coleo de peas diferentes mas que apresentam certas caractersticas e tendncias em
conjunto.
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Dessa maneira podemos perceber duas coisas, que as duas definies de srie no so
excludentes e que no cerne de seu significado est um determinado grau de similaridade
entre as partes. Est na gesto da similaridade o principal elemento que constitui a
serialidade, incluindo a serialidade narrativa: Se pensarmos nas principais estratgias
das fices seriadas, teremos o jogo entre novidade e redundncia operado em unidades
que fazem a narrativa evoluir ao passo que reiteram aquilo que importante sua
evoluo. (NEVES, 2012, p. 70).
Assim, na narrativa seriada a similaridade serial se d em questo de graus de
redundncia, ou de repetio. Omar Calabrese emA Idade Nobarroca(1999) se preocupa
em como essa repetio se realizaria em um novo modelo esttico que privilegiasse a
repetio, o que era encarado sob uma esttica romntica como algo menor ou desprovidode originalidade. Ele nomeia essa nova forma de expresso de Neobarroca no porque h
uma retomada das caractersticas do perodo histrico do Barroco, mas porque h
analogias formais. O Neobarroco encontra-se na procura de formas e na sua
valorizao , em que assistimos perda da integridade, da globalidade, da
sistematicidade ordenada em troca da instabilidade, da polidimensionalidade, da
mutabilidade(CALABRESE, 1999, pp. 1011).
Calabrese percebe que as narrativas seriadas de alguma maneira promovem uma estticada repetio. Essa esttica atua em diversos nveis, cada um afetando uma etapa do
processo de produo e circulao dos produtos seriados. A primeira diz respeito
produo de diversos produtos a partir de uma mesma matriz; a segunda a repetio
como estrutura geradora de textos; a terceira se refere a repetio como condicionante
dos modos de consumo dos produtos miditicos. (CALABRESE, 1999, p. 44)
No que tange segunda categoria Calabrese identifica duas formulas de repetio, a
variao do idntico quando do mesmo molde se tem produtos diversos; e identidade
dos mais diferentes quando de origens diferentes dois produtos resultam iguais.
(CALABRESE, 1999, p. 45). Dessas duas categorias surgem subclassificaes que
segundo Neves: Relativo a este aspecto, tem-se duas frmulas de repetio: a
acumulaoe aprossecuo. Na acumulao, os episdios se sucedem sem nunca porem
em jogo o tempo integral da srie. J naprossecuoo tempo da srie guiado pela busca
de um objetivo que s ser alcanado em seu final. (2012, p. 85)
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Partindo dessas categorias Calabrese elabora cinco prottipos a partir de sries norte
americanas existentes. O Primeiro se refere a Rin-Tin-Tin (1954-1959) em que os
episdios so completamente autnomos e no existe um objetivo final ou continuidade.
O segundo tem como baseZorro(1957-1959) em que os episdios so autnomos, mas
h um sentimento de avano em relao a um objetivo final que relembrado. O terceiro
se baseia emBonanzza(1959-1973) em que h trs nveis seriais, a histria do episdio,
o arco narrativo que constitudo de vrios episdios e a histria completa da srie. O
quarto se apresenta em Columbo(1968-1978) que h uma serialidade em cima de um
tema especfico, nesse caso o seu personagem ttulo. O quinto prottipo exemplificado
porDallas(1979-1991) que uma mistura do terceiro e do quarto prottipos, em que
arcos narrativos se mesclam a caracterizaes fortes, gerando um modelo deveras
complexo.
Todos esses modelos parecem um pouco especficos demais, provavelmente porque se
basearam excessivamente nas sries que deram origem aos prottipos. Ao mesmo tempo,
a classificao primria de variao do idntico e identidade dos mais diferentes no
ajuda a classificar apropriadamente sries. Concordamos com Neves quando ela diz:
A melhor classificao oferecida por Calabrese acaba sendo a intermediria, queconsiste nos dois modelos de repetio internos narrativa: a acumulaoe aprossecuo. Estas duas categorias nos permitem classificar as sries a partir domodo como seus episdios se relacionam, sem o risco de incorrer em detalhesque limitem demais os modelos. (NEVES, 2012, p. 86)
Esse par de conceitos tambm tem o benefcio de que eles se complementam dentro de
um conjunto de episdios, afinal nem toda a srie opera puramente por um ou outro modo
de relacionar os episdios. Assim, possvel ter uma srie com bastante continuidade,
portanto aderindo ao modo da prossecuo, mas que contm episdios que no
desenvolvam a trama principal, mas sim uma histria isolada, como um especial por causa
de um feriado (natal ou halloween). Da mesma maneira, mesmo a srie mais episdica
pode ter um arco narrativo, seja um episdio duplo para iniciar ou terminar a temporada,
seja um gancho no ltimo episdio de uma temporada que s se resolver no primeiro da
prxima.
Partindo das reflexes de Calabrese, Umberto Eco procura criar uma tipologia mais
consistente do que os prottipos da A Idade Neobarroca. Em A Inovao no Seriado
(1989) Eco cria cinco categorias da repetio, sendo que duas se subdividem em
subcategorias, ARetomada, oDecalque, aSrie, a Sagae oDialogismo intertextual. A
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Retomada a sequncia ou continuao de uma histria j realizada. ODecalqueseria a
reformulao de uma histria anterior, normalmente uma forma de Retomadavelada,
podendo incluir tanto os casos de verdadeiro plgio quanto os casos de reescrita com
explicitas finalidades de interpretao. (ECO, 1989, p. 123).
A Srie ...uma situao fixa e um certo nmero de personagens principais, da mesma
forma fixos, em torno dos quais giram personagens secundrios que mudam, exatamente
para dar a impresso que a histria seguinte diferente da anterior. (ECO, 1989, p. 123).
Esse modelo seria o iterativo e a srie mais comum, a esse Eco adiciona o modelo da
srie em loop onde ...o personagem no seguido ao longo do curso linear de sua
existncia, mas continuamente encontrado em diversos momentos de sua vida,
obsessivamente revisitada para descobrir novas oportunidades narrativas. (ECO, 1989,p. 124), o que distingue esse modelo que os personagens no envelhecem, sendo
mantidos para sempre na mesma etapa de suas vidas e prolongando a srie. A segunda
subcategoria seria a srie em espiral, em que embora ela parea com a iterativa, h sempre
um aprofundamento do universo ficcional e dos personagens, coisa que no ocorre no
primeiro modelo em que j sabemos tudo o que h para saber sobre o mundo e os
personagens. A ltima subcategoria seria a srie baseada no nos personagens, nem no
universo narrativo, mas nos atores, em que um John Wayne mais do que interpretar
personagens, interpretam variaes de si mesmos.
A Saga uma sucesso de eventos, aparentemente sempre novos, que se ligam, ao
contrrio da srie ao processo histrico de um personagem, ou melhor a uma genealogia
de personagens. Na saga os personagens envelhecem, a saga uma histria de
envelhecimento (ECO, 1989, p. 125). Eco coloca que a saga pode ser em linha contnua,
seguindo as geraes ou ad abertoem que no s os descendentes mas tambm os outros
de sua convivncia so acompanhados. Esse exemplo se aproxima muito do quintoprottipo de Calabrese e o exemplo o mesmo,Dallas. A ltima categoria oDialogismo
intertextual, nesse ponto Eco agrupa todos os modos de uso de um texto que apontam
para outro no diretamente relacionado. Nesse sentido temos a citao, o plgio, a pardia
e a citao irnica, todos esses relativamente auto-explicativos.
Nesse momento, Eco comea a se preocupar com as possibilidades estticas da repetio
e prope dois modos para tratar esse assunto, nos dois modos o interessante que ele
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institui uma diferena em nveis de leitura do leitor modelo4. No primeiro modo, o
moderado ou moderno, existem dois nveis de leitura, o primeiro seria o ingnuo, que
simplesmente padeceria com a histria e acreditaria estar presente uma histria diferente,
mesmo com todas as estratgias de repetio utilizadas. O segundo seria o leitor crtico,
que no cairia nas estratgias utilizadas, mas sim as reconheceria e as fruiria. Nesse modo
a ironia a maneira de fruio mais comum, uma vez que a maioria dos produtos seriados
estariam apenas interessados no leitor de primeiro nvel.
O segundo modo de tratar esse assunto seria o radical ou o ps -moderno, em que no
estaramos mais atentos ao embate entre inovao e repetio, mas sim que exista uma
variao infinita dentro dos modos mais repetitivos. O que interessa no a novidade,
mas sim o que repetido e, principalmente, o modo como repetido para que o leitor fruada sua capacidade de segmentar e reconhecer esses elementos. Mas tudoisso prev que
o leitor ingnuo de primeiro nvel desaparea, para deixar lugar somente ao leitor crtico
de segundo nvel. (ECO, 1989, p. 136). A afirmao de Eco se d pela aproximao
desse modo de fruio dos seriados ao modo de fruio da arte abstrata e minimal, em
que no interessa em maneira alguma a simples obra, mas a obra enquanto forma de um
fazer, isso indica que o leitor no s consegue compreender a diferena entre duas telas
com manchas de tinta vermelhas nela, mas consegue fruir essas diferenas. Seria a mesma
coisa com os seriados de televiso, onde todos podem contar a mesma histria, mas o
pequeno detalhe de mudana no modo de contar seria suficiente para ela poder ser fruda.
O problema dessa categorizao de Eco que ela perde de vista a possibilidade de se
mesclar essas categorias uma vez que muito raramente uma srie apresenta apenas um
desses modelos em toda a sua extenso, ou pelo menos no atualmente. Esse o
argumento que Mittel faz em Narrative Complexity in Contemporary American
Television(2006), que durante as ltimas duas dcadas, devido a mudanas de consumopor causa de tecnologias de visualizao fora do horrio de exibio normal (VHS, DVDs,
DVRs e a Internet) as sries abandona