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“Teoria do Treino da Tomada de Decisão no Desporto”
Duarte Araújo (1), Pedro Passos (1)(2) & Pedro Esteves(1)
(1) Laboratório de Psicologia do Desporto
Faculdade Motricidade Humana – Universidade Técnica de Lisboa
(2) Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
Contacto: [email protected]
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“Não há nada mais prático que uma boa teoria”
Kurt Lewin
1. Introdução
Um dos aspectos fascinantes no desporto é o comportamento decisional do atleta nos
seus variados níveis de perícia: como é que o jogador resolve a situação onde está inserido
para atingir o seu objectivo? A explicação da tomada de decisão tem sido feita sobretudo com
base na teoria do processamento de informação de Claude Shannon e Warren Weaver (1949),
ambos engenheiros e matemáticos. Nesta influente teoria, a informação refere-se à quantidade
de incerteza que é reduzida quando aparece um sinal. Por exemplo, no meio de uma situação
com muitos jogadores (com “ruído”, que por isso mesmo é tido como gerador de incerteza), o
árbitro distingue aquele que agarra o adversário (o “sinal”). A quantidade de informação
contida num sinal (aquilo que se pretende identificar) é medida em bits (que quer dizer binary
digits – dígitos binários). Um bit é uma escolha sim/não (ou 1/0) entre diferentes alternativas.
O número de bits indica o menor número de decisões “sim/não” necessárias para resolver o
problema criado numa dada situação. Por exemplo, se numa situação forem possíveis oito
escolhas, um atleta deveria responder em três passos binários (i.e., respostas de sim/não), o
que implica um processamento de informação de 3 bits.
Esta forma de tomar decisões (de processar informação) não é condizente com o
comportamento humano mas sim com o funcionamento de sistemas informáticos. No
enquadramento complexo e dinâmico do mundo onde vivemos as fontes de informação e as
situações nem sempre estão definidas à partida, nem são respondíveis apenas em sim/não ou
1/0. Esta tendência computacional da teoria do processamento de informação é entendível a
partir da sua génese, já que a sua criação correspondeu à necessidade de explicar os aspectos
formalmente definidos da comunicação em sistemas de controlo (p.ex., envio e recepção de
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mensagens de telégrafo) e não os aspectos subjacentes às interacções informacionais entre um
indivíduo e o ambiente onde se insere.
Uma primeira evidência de que esta teoria não corresponde a muitos dos processos
psicológicos do atleta em acção, é que a teoria da informação aplica-se, na melhor das
hipóteses, à capacidade de discriminar entre alternativas definidas a priori. Contudo, se se
pretender que essa selecção seja informativa, o conjunto de opções tem de ser, por princípio,
previamente conhecido. Por sua vez, o reconhecimento dessa fonte de informação depende de
um processo perceptivo empobrecedor já que equivale a variável informacional a um mero
conjunto de estímulos Se a informação até ser “interpretada” apenas equivalesse a estímulos,
a problemática que envolve a distinção entre diferentes estímulos, como por exemplo a bola, o
adversário, ou os colegas seria irresolúvel. Na verdade, para o atleta, estas situações
oferecem-lhe informações bem distintas. Curiosamente, na psicologia tradicional não há uma
resposta para a questão “qual é a informação de um estímulo?”.
As interacções entre o indivíduo e o ambiente exigem informação no sentido de ser
informação acerca de alguma coisa, ou específica a alguma coisa; ou seja, um tipo de
informação que permita a percepção (a detecção) de alguma coisa, em vez de ser a
discriminação (a distinção) entre coisas. Os lugares, os objectos, ou os acontecimentos
especificam aquilo que são realmente, ou seja, quando são percepcionados, o indivíduo
detecta a informação que estes têm disponíveis sobre eles próprios e que é por si só
detectável. Perante a mesma situação, uns indivíduos detectam uma informação e outros
outra, de acordo com as capacidades de cada um (há variáveis informacionais que alguns
indivíduos não conseguem detectar, mesmo que esteja disponível no ambiente: por exemplo,
um indivíduo que nunca tenha visto um jogo de futebol não conseguirá identificar um fora de
jogo. Isto não impede que essa fonte de informação esteja disponível no jogo). A informação
é específica simultaneamente do ambiente e das capacidades do indivíduo.
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Uma das premissas mais questionáveis das teorias da tomada de decisão vigentes
(p.ex., o processamento de informação) é a assunção do jogador enquanto máquina que
necessita de um estímulo para iniciar o seu funcionamento, caso contrário, continua passivo.
Além desta visão mecanicista, as teorias clássicas da tomada de decisão prevêem apenas
decisões estáticas, que acontecem num dado momento (ou em momentos sequenciais), e não a
interdependência de decisões e acções que caracteriza o funcionamento do jogador em
competição. No cerne desta nossa análise está, portanto aquilo que Laguna (2002) define
como táctica individual: “a capacidade do jogador para tomar decisões durante o jogo”(p.5),
conceito este que é partilhado por muitos outros treinadores de diversas modalidades. A
tomada de decisão do atleta em competição num desporto como o Basquetebol, por exemplo,
acontece na sua acção, não sendo um processo prévio que decorre apenas na cabeça do
jogador. O jogador pode ter planos para a competição, mas o modo como resolve as situações
é muito influenciado pelo que está a acontecer na própria situação. Sabendo que a acção de
verbalizar é diferente da acção de jogar, se o treinador pretende ensinar o jogador a jogar
“bem”, necessita de compreender e desenvolver a “acção táctica” dos seus atletas.
Defendemos, com isto, que a afinação perceptiva é a essência da acção táctica, enquanto a
reflexão consciente (verbalizável) assume um papel secundário no processo de tomada de
decisão dinâmica. Porém, estamos de acordo que esta reflexão pode ajudar muitos jogadores a
tornarem-se perceptivamente afinados (i.e., sensibilizados a detectar fontes de informação que
permita juízos perceptivos mais eficazes) às fontes de informação relevantes do contexto onde
actuam. O que queremos dizer é que esta competência de se reflectir sobre a tomada de
decisão em competição ou em treino, designada por meta-decisão, não é o mesmo que decidir
em competição ou em treino. E aquilo que se pretende do jogador é que “decida bem” (i.e.
atinja os objectivos específicos de uma tarefa), sendo a meta-decisão uma possível ajuda, e
não um fim em si mesma.
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Ao analisarmos a competição, verificamos que as acções nunca são iguais nem os
jogos se repetem, por mais semelhanças que possam existir entre eles. Isto indica
precisamente que, embora a estratégia possa ser planeada antecipadamente, a resolução das
situações do jogo é sempre única. Esta realidade é ainda mais evidente quando constatamos
que os jogadores previsíveis (que “programam” ou “mecanizam” as suas acções) não são os
que constituem maior perigo para a equipa adversária. Pelo contrário, os jogadores criativos
que resolvem autonomamente as situações numa lógica colectiva são os que mais problemas
criam aos adversários.
2. A ecologia da competição como um sistema complexo
A ecologia do jogo é fundamental para a compreensão do desempenho eficaz dos
atletas (Araújo, 2005; 2006; Araújo et al., 2006). Para a consecução deste propósito, ao
contrário do que a teoria do processamento de informação advoga, é necessário que se atenda
à complexidade e à dinâmica do jogo.
O conceito de “Complexidade” detém uma conotação multidimensional. Uma
perspectiva sistémica mostra como as competições desportivas podem diferir em
complexidade. Por exemplo, algumas são caracterizadas por interacções directas entre atletas
e adversários (e.g. judo), ao passo que outras são caracterizadas essencialmente pela
interacção entre dois grupos de atletas que cooperam internamente entre os seus elementos
(e.g. rugby).
Para perceber o desporto é necessária uma descrição com múltiplas escalas, desde a
neuronal, passando pela hormonal, biomecânica, psicológica, social, até à organizacional e
cultural. Uma abordagem que ligue e atenda às diferentes escalas de influência do
desempenho desportivo permite compreender, entre outras coisas, que parâmetros de uma
escala micro são mais relevantes para uma escala macro. Por exemplo, de que modo
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jogadores excepcionais têm tanto impacto na sua modalidade e na sociedade em geral
(Maradona, Michael Jordan, ...), ou simplesmente porque há equipas que diminuem muito o
seu rendimento quando determinado jogador titular não joga.
A formação de padrões é talvez a maior contribuição que os sistemas complexos
podem dar ao desporto. Quando se analisa a formação de padrões, um aspecto interessante é o
de se perceber como o padrão anterior (p.ex., equilíbrio entre atacantes e defesas) originou o
padrão actual (vantagem dos atacantes). Diversos estudos efectuados no desporto (Araújo,
2006) demonstraram que pequenas variações (perturbações) podem permitir a recuperação do
padrão anterior, mas variações de maior magnitude podem originar mudanças radicais nas
propriedades desse sistema, originando um novo padrão. O estudo da dinâmica de fenómenos
com várias transições de padrões (p.ex., um jogo) não deverá sustentar-se em estatísticas
descritivas, já que se corre o risco de perder o essencial do fenómeno, isto é, como se
originam e mantêm os padrões (p.ex., como se origina uma situação de ataque que culmina
em golo). A manutenção do padrão (p.ex., transição defesa-ataque) depende de tendências
autónomas de organização, e não de um supra-organizador que controla os diversos
intervenientes. A auto-organização, enquanto capacidade de manter relações padronizáveis
estáveis e instáveis entre as partes do sistema, é o processo que explica o facto das partes se
ajustarem espontaneamente umas às outras. Naturalmente que uns subsistemas (p.ex., sectores
da equipa) podem limitar ou influenciar o comportamento de outros subsistemas.
Ao passo que a auto-organização mantém os padrões na sua dinâmica, a transição
entre padrões dá-se essencialmente devido a um fenómeno chamado emergência. Este
conceito está relacionado com a dependência que o todo tem das partes, com a
interdependência das partes, e com a especialização das partes. O estudo da dinâmica dos
sistemas deve implicar a análise das partes integradas no todo, porque só assim é que estas
expressam representatividade e conferem sentido e identidade ao todo (p.ex., acção do
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guarda-redes relativa à dinâmica posicional do bloco defensivo). A natureza dos sistemas
complexos pode ser identificada pela investigação dos efeitos que uma das partes produz no
comportamento das outras (p.ex., como é que os defesas influenciam os médios), e do todo
(p.ex., qualidade de jogo da equipa). As transições nos padrões comportamentais e a
coordenação entre atletas são manifestações de emergência que desafiam o conceito de
representações mentais. Esta acepção sustenta-se na frágil plausibilidade das soluções
encontradas pela equipa se encontrarem na cabeça dos atletas.
A lista seguinte de características interrelacionadas pretende ser abrangente o
suficiente para incluir os diferentes tipos de complexidade que podem ser encontrados em
sistemas complexos como é o caso da competição desportiva (cf., Araújo et al., 2006, Davids,
Button & Bennett, 2007):
1) Possibilidades ilimitadas. A competição desportiva tende a ser composta por
muitos elementos e forças de natureza diversa. Como resultado, o número de factores
potencialmente relevantes que devem ser tidos em consideração pelos treinadores e
pelos atletas pode ser enorme. Por exemplo, num jogo de futebol a possibilidade de
combinações entre jogadores é ilimitada. Neste sentido, a sessão de treino deve ser
rentabilizada para permitir que o atleta aprenda a lidar com todo o espaço de
possibilidades, sem exceder os recursos disponíveis (energéticos, informacionais,
materiais).
2) Interacção social. A competição desportiva é normalmente composta por
muitas pessoas (i.e. atletas, treinadores, dirigentes, médicos, familiares, etc.) que devem
trabalhar em conjunto de modo a permitir que todo o sistema funcione devidamente. Isto
cria a necessidade de uma comunicação clara entre as diferentes partes envolvidas para
que as acções sejam eficazmente coordenadas.
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3) Localização distribuída. As exigências associadas à coordenação social são
afectadas pelo facto de diferentes pessoas se localizarem em lugares distintos, quando
pretendem comunicar e coordenar as suas acções e decisões para atingir um objectivo
(p.ex., os jogadores durante o jogo).
4) Ocorrência de acidentes. Há também um elevado grau de potenciais acidentes
em certos tipos de competições uma vez que crenças, objectivos, ou acções
inapropriadas podem induzir consequências catastróficas (p.ex., a morte), ameaças à
segurança pública (p.ex., o comportamento violento de um atleta pode instigar lutas
violentas entre claques rivais), consequências económicas (p.ex., desinteresse por parte
dos patrocinadores), ou estragos ambientais (p.ex., práticas desadequadas de
montanhismo). Nestes casos, não existe espaço para uma metodologia de” tentativa e
erro”.
5) Acoplamento constitutivo. Os eventos desportivos também tendem a ser
compostos por muitos subsistemas que estão altamente acoplados (i.e., dependem da
interacção para funcionar). Esta característica faz com que seja muito difícil, senão
impossível, predizer todos os efeitos de uma acção, pois as vias de propagação podem
ser divergentes (Araújo et al., 2004).
6) Incerteza. Há tendência para haver incerteza nas fontes de informação
disponíveis para os atletas (p.ex., grau de contribuição dos jogadores suplentes, decisões
estratégicas do treinador adversário). Devido a esta característica, o acesso ao
“verdadeiro” estado de uma competição é, em teoria, impossível. Além disso, os atletas
devem distinguir mudanças que são causadas por acontecimentos na competição,
daquelas que são causadas por variações aleatórias. Portanto, haverá sempre a
necessidade de resolução continuada de problemas (Araújo, Davids & Serpa, 2005).
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7) Perturbações. Os atletas são também responsáveis por lidarem com
acontecimentos não antecipáveis (p.ex., dois cartões vermelhos a jogadores da mesma
equipa no mesmo jogo). Os jogadores devem improvisar e adaptar-se rapidamente às
contingências de eventos não antecipados para manter a produtividade da equipa
(McGarry et al., 2002). Assim, os programas de treino não se podem basear estritamente
nas situações esperadas ou frequentes. Mas também em condições raras, difíceis de
antecipar, quer pelos treinadores, quer pelos atletas.
8) A indeterminação do comportamento. Tal como temos vindo a evidenciar o
comportamento não é determinista (Glimcher, 2005). Para o comportamento ser
eficiente é necessário manter uma certa dose de aleatoridade irredutível.
9) Existência de múltiplos graus de liberdade independentes e variáveis. Graus
de liberdade são componentes independentes de um sistema que podem agregar-se de
muitas formas (p.ex., numa equipa os jogadores são graus de liberdade independentes
que se relacionam entre si, constituintes de uma entidade maior).
10) O potencial para comportamento não-linear. Uma vez que as partes do
sistema podem interagir de muitas formas, os estados de organização do sistema podem
manifestar transições abruptas. Por exemplo, as flutuações no desempenho de uma
equipa ao longo de um jogo ou de uma época.
É importante enfatizar que nem todas as competições desportivas têm a mesma
expressão em todas estas dimensões. Há diferenças importantes entre diversos desportos
(p.ex., vela e basquetebol), portanto algumas características podem até nem ser relevantes
nalguns sistemas, enquanto outras serão. Importa sobretudo destacar que estas dimensões
devem ser analisadas de modo a que se perceba como constrangem a eficácia do atleta em
competição. Uma vez analisadas as características dos sistemas complexos, clarificaremos
com maior detalhe a sua dimensão temporal enquanto sistemas dinâmicos.
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2.1. Características dos sistemas dinâmicos
Além de ser complexa, a competição desportiva é dinâmica. A hipótese subjacente à
aplicação da teoria dos sistemas dinâmicos é que a morfologia do comportamento humano
pode ser formalizada matematicamente em termos mais simples que a descrição única de cada
situação, i.e., em termos de sistemas dinâmicos com menores dimensões (Kugler et al., 1980).
Os modos estáveis e preferidos do sistema de comportamento podem ser identificados em
termos de atractores e transições qualitativas entre estes, através de bifurcações. As ideias
básicas sobre sistemas dinâmicos incluem: 1) o conceito de espaço de estado (i.e., a totalidade
hipotética de todos os estados de ordem possíveis, os quais são alcançáveis através de um
sistema de acção; 2) a ideia de um conjunto de possíveis trajectórias que um sistema de acção
pode tomar no espaço de estado; e 3) o uso da matemática para descrever as leis que
determinam as formas das trajectórias do sistema de movimento.
As aplicações da teoria dos sistemas dinâmicos ao comportamento humano estudam
como padrões de movimento coordenado emergem, persistem e transitam. Baseia-se na ideia
de que os sistemas biológicos consistem num grande número de partes em interacção, que têm
a capacidade de formação espontânea de padrões. A criação espontânea de padrões
macroscópicos nos sistemas biológicos de movimento é importante pois fornece pistas sobre
os processos de tomada de decisão. Deste modo é possível o estudo de padrões macroscópicos
emergentes (p.ex., decidir rematar ou passar) em termos da dinâmica de uma ou de várias
variáveis colectivas (p.ex.,relação entre jogador adversário directo, colega e baliza), sem que
se tenha de saber todos os estados microscópicos do sistema (p.ex., pensamentos, emoções,
direcção do olhar, preferências pessoais, instruções do treinador, etc.). Por seu lado, quando a
dinâmica dos fenómenos microscópicos é identificada, é mais compreensível a dinâmica do
sistema global mesmo numa lógica “de cima para baixo”, analisando-se, por sua vez, a sua
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influência (macro) nos componentes (micro) do sistema. Simultaneamente, esta abordagem
expande e modifica o conceito de auto-organização em sistemas não-vivos pela introdução de
novos conceitos de forma a atender ao facto do comportamento humano ser também
caracterizado por formas de auto-organização dirigidas ou supervisionadas (i.e., através das
intenções pessoais ou da condução de um treinador).
Contudo, tal como argumentou Van Gelder (1998), a teoria dos sistemas dinâmicos é
uma perspectiva muito geral que deve ser adaptada, complementada e refinada para se ajustar
ao fenómeno a ser analisado, tal como a tomada de decisão no desporto. Esta aplicação
implica normalmente fundir o estudo da dinâmica do sistema com outras abordagens teóricas,
como acontece com a psicologia ecológica. Por isso, é necessária uma abordagem teórica ao
comportamento humano para situar a dinâmica específica observada em sistemas biológicos
de movimento. Uma vez que a interpretação dos sistemas dinâmicos do comportamento
humano cruza os limites tradicionais a nível do cérebro, corpo e ambiente, os fenómenos
cognitivos podem ser analisados na interacção entre atleta e ambiente, numa concepção
teórica e vocabulário uniformes, facilitando a compreensão das interacções complexas entre
os dois.
3. A dinâmica ecológica da tomada de decisão em competição
Em competição os jogadores não estão perante um conjunto de estímulos conhecidos à
partida, mas antes influenciam uma situação com inúmeras variáveis, que muda ao longo do
tempo. As fontes de informação estão no contexto, e os jogadores peritos distinguem-se
precisamente por agir para encontrar as variáveis informacionais que lhes permitem atingir o
seu objectivo. Estes contextos caracterizados pela variabilidade implicam obrigatoriamente
que o jogador seja activo, que acompanhe a dinâmica do que se passa à sua volta, em vez de
passivamente esperar por estímulos para dar respostas. Mais do que trazer toda a informação
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do jogo para dentro da sua cabeça, o jogador tem de detectar e usar as fontes de informação
que estão no jogo e que estão sempre a ser actualizadas. É esta interacção jogador-jogo que
forma o sistema onde são resolvidos os problemas. Portanto, as situações não podem ser
previamente resolvidas no cérebro do jogador, nem são resolvidas exclusivamente por este.
Pelo contrário, o jogador explora e alcança aquilo que o contexto permite. Naturalmente que o
jogador tem objectivos e intenções. Estas intenções constrangem, obviamente as suas acções.
Mas as acções são também constrangidas, ou influenciadas, por outras variáveis, como por
exemplo as acções do adversário, as acções dos colegas, etc. É da interacção de todas estas
variáveis que emerge a decisão, e não apenas da intenção do jogador.
Esta abordagem ecológica, distingue-se por rejeitar o dualismo e ao fazer isso está a
defender que a psicologia não está na “cabeça” do praticante, mas antes na interacção entre o
praticante e o ambiente. Outro aspecto importante desta abordagem é ser funcionalista, ou
seja procura mais saber “para que serve” uma dada capacidade (p.ex., a tomada de decisão) do
que o que a constitui. Um dos aspectos mais distintivos desta abordagem é o facto de ser
realista. Ou seja parte do princípio que o mundo existe enquanto tal e que os indivíduos o
percepcionam de acordo com as suas próprias características. Portanto, o mundo não é uma
interpretação, nem um conjunto de símbolos na mente, nem mesmo uma construção mental
feita pelo indivíduo. O mundo é o que é (é a realidade), independentemente do que o
organismo percepciona. Vemos aqui que a psicologia ecológica se distingue da visão
construtivista do “ensino do jogo para a compreensão” (Bunker & Thorpe, 1982), a qual tem
influenciado (e a nosso ver positivamente) os jogos desportivos com bola (ver Araújo, 2006,
para uma discussão). Neste sentido torna-se óbvio que, segundo a psicologia ecológica, a
capacidade psicológica pela qual acedemos ao mundo e agimos nele é a percepção. Em
contraste com a primazia da memória assumida pelas correntes tradicionais, tais como as
construtivistas (a interpretação do mundo constrói-se e armazena-se na mente), a psicologia
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ecológica orienta-se para a primazia da percepção (acede-se ao mundo por via empírica). A
generalidade das abordagens tradicionais da psicologia ao sublevarem o papel da memória,
arrogam que é através dela que se controla e organiza o comportamento e que é através dela
que conhecemos o mundo (medeia o nosso acesso ao mundo). Por outro lado, a psicologia
ecológica defende que temos acesso directo ao mundo (i.e., a percepção é directa), ao passo
que as outras perspectivas defendem que não temos acesso directo ao mundo, mas antes a
uma representação mental, a um esquema mental, a um estado neuronal, o qual, esse sim,
acede ao mundo e lhe dá significado (a percepção é indirecta ou mediada, ou seja a percepção
dos estímulos tem de ser interpretada pela mente/mediador para se tornar compreendida pelo
sujeito).
Todos os aspectos que acabámos de referir desembocam numa hipótese que distingue
a psicologia ecológica de Gibson: a percepção é específica das propriedades ambientais que
são percepcionadas, i.e., a informação especifica as propriedades ambientais. Esta hipótese da
especificidade diz que são os objectos, as superfícies e os eventos que têm disponível a
informação que “diz” o que estes são. As relações que existem entre o mundo e a energia
ambiente deram azo ao que Gibson (1979) designou por especificação. Uma tarefa (p.ex., uma
pancada no golfe) que o indivíduo tenha para realizar tem-lhe inerentes padrões de energia
(potencial estimulação sensorial), e o indivíduo tem-lhe inerente o poder de recolher essa
informação. A hipótese da especificidade não exige nenhum processo perceptivo particular,
mas antes, torna possível que a percepção seja directa e verídica (por oposição a construída).
Gibson (1979), na sua teoria da percepção directa, enfatizou que os humanos e os
outros animais percepcionam e agem em substâncias (e.g., água), superfícies (e.g., o chão em
torno da água), lugares, (e.g., uma piscina), objectos (e.g., uma bola) e acontecimentos (e.g.,
uma competição de pólo aquático) existentes no ambiente. Tais propriedades fornecem
oportunidades para a acção definidas ao longo da relação complementar entre o ambiente e a
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pessoa. Estas oportunidades, ou possibilidades para a acção, conhecidas como affordances
(Gibson, 1966, 1979) não são nem fenomenológicas, nem subjectivas. As affordances são
definidas pelas relações complementares entre propriedades objectivas, reais e físicas, e são
ecológicas, uma vez que são propriedades do ambiente em relação ao atleta (Turvey & Shaw,
1999). As affordances são, então, o ponto de partida para o estudo ecológico do que os
indivíduos percepcionam, o que aprendem e sabem, e como decidem e agem (Turvey, 1992).
Este ponto de vista implica que, por exemplo, para uma affordance, o que uma substância é e
o que uma substância significa são inseparáveis. O constrangimento do comportamento pela
detecção de affordances inclui, numa actividade unitária, o processo de percepcionar e o de
cogitar (Turvey & Shaw, 1999). De acordo com Fajen, Riley & Turvey (in press) há vários
pontos que devem ser clarificados sobre o conceito de affordances:
a) As affordances são reais. O que quer dizer que estas podem ser especificadas em
padrões de energia ambiental disponível para o atleta utilizar. Neste caso, as affordances não
dependem de nenhum processo de construção mental podendo ser percepcionadas
directamente.
b) As affordances não são propriedades dos objectos ou do ambiente, mas sim
específicas do atleta. Isto quer dizer que são definidas de acordo com as capacidades de acção
de um dado indivíduo. Implícito a esta proposição é a afirmação de individualidade: o que
constitui uma certa affordance para uma pessoa pode não constituir uma affordance para
outra pessoa.
c) As affordances captam a reciprocidade da percepção e acção. O que os indivíduos
percepcionam no ambiente não é uma simples descrição métrica em unidades de distância,
volume, luz ou temperatura, mas as suas possibilidades de acção. O indivíduo capta
propriedades invariantes do ambiente (e.g., foco de expansão óptico) as quais especificam a
sua acção determinando, por exemplo, se um objecto está suficientemente próximo para ser
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agarrado. Portanto, o ambiente promove ou inibe certos comportamentos, dependendo dos
limites de acção de cada indivíduo. Uma implicação desta assumpção é que as acções são
escalonadas ao corpo, numa base morfológica e funcional, e a percepção é guiada por
unidades intrínsecas relacionadas com as capacidades de acção individuais e com os
constrangimentos biomecânicos e não por unidades extrínsecas ou medições absolutas.
d) As affordances permitem o controlo prospectivo da acção. O controlo prospectivo
do comportamento diz respeito ao ajustamento da acção aos constrangimentos e às
oportunidades no ambiente. A percepção tem um papel preparatório na acção bem como no
seu ajustamento on-line à medida que esta decorre. Na ausência de controlo prospectivo a
acção seria reduzida a mera reacção, o que seria insuficiente para corresponder a diversas
situações do dia-a-dia e ao fenómeno desportivo em si (Montagne, 2005).
e) As affordances são significativas. Gibson (1979) propôs que o ambiente é
percepcionado fundamentalmente em termos daquilo que permite ao observador, por
contraponto à concepção do ambiente com propriedades neutras, desprovidas de significado
para o atleta (ou para a sua acção), tais como extensão, forma ou cor por si só. Se os atletas
fossem perceptivamente sensíveis apenas a esses tipos de propriedades do ambiente, tal como
a maioria das teorias modernas de comportamento defendem, então o significado da
percepção deveria ser complementado pelo observador através de algum tipo de estruturas
mentais. Pelo contrário, as affordances são inerentemente significativas no que respeita ao
que um animal pode ou não pode fazer num dado ambiente. Se as affordances podem ser
percepcionadas directamente então a percepção pode ser significativa sem que o significado
seja fornecido por processos cognitivos construtivos. Gibson propôs que a viabilidade da
percepção directa das affordances depende dos processos sujeitos às leis naturais que ditam a
relação entre padrões de energia do estímulo (i.e. o arranjo óptico) e as propriedades
ambientais que dão origem a esses padrões. Se os padrões da energia do estímulo são
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específicos (i.e. relacionam-se com base em leis naturais) ao ambiente, este pode ser
percepcionado sem mediação cognitiva.
f) As affordances são dinâmicas. As oportunidades para a acção podem aparecer e
desaparecer com os movimentos do atleta, mesmo sabendo que as superfícies e os objectos no
ambiente do atleta se mantêm estáticos, ou mesmo que as mudanças ocorram no ambiente do
atleta enquanto este se mantém estático. As possibilidades de acção podem evoluir
rapidamente, e também ao longo de grandes escalas temporais.
Em suma, as affordances são propriedades do sistema atleta-ambiente e podem ser
especificadas em padrões de energia do estímulo, os quais podem ser directamente
percepcionados (Fajen et al., in press). A psicologia ecológica assume a mutualidade e a
reciprocidade atleta-ambiente, na qual ambos se combinam para formar um ecossistema. Sob
esta sinergia, a biologia e a física juntam-se com a psicologia para definirem uma ciência a
uma nova escala – a escala ecológica (Turvey & Shaw, 1995). Numa física ecológica
emergente, um desafio maior é o de compreender a capacidade de cada indivíduo para
percepcionar a configuração envolvente do ambiente onde actua, à escala do seu corpo e
potencialidades de acção (Turvey & Shaw, 1995, 1999). Nesta perspectiva, o papel da
informação e intencionalidade na tomada de decisão e acção precisam de ser compreendidos
em termos físicos (i.e., há a necessidade para uma compreensão baseada em leis naturais dos
aspectos discretos e dinâmicos do comportamento humano).
No contexto desta abordagem, a dinâmica (leis evolutivas de movimento e mudança) e
os sistemas dinâmicos (evolução temporal de quantidades observáveis de acordo com a lei
natural) podem ajudar-nos a compreender a tomada de decisão no desporto, tal como foi
iniciado por Kugler, Kelso e Turvey (1980, 1982). Surge assim a dinâmica ecológica que
recorre aos sistemas dinâmicos para compreender fenómenos que acontecem à escala
ecológica – a escala onde os indivíduos e os seus contextos são definidos. A tomada de
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decisão, nesta perspectiva é considerada um processo complexo que se desenvolve
continuamente e onde a decisão não antecede a sua expressão comportamental (Beer, 2003).
Na verdade, se as decisões são expressas por acções (Turvey & Shaw, 1995), a análise
ecológica do movimento humano é a forma fundamentada de se compreender a tomada de
decisão. Esta análise funcional da tomada de decisão contrasta com as abordagens tradicionais
do processamento de informação, nas quais os humanos têm sido modelados como decisores
racionais, computando e seleccionando opções de entre aquelas representadas em modelos
mentais ou neuronais, concebidos para maximizar o desempenho (Mellers et al., 1998).
4. A tomada de decisão assenta nas capacidades de percepção e de acção
Se as decisões não fossem realizadas pela acção, a cognição manter-se-ia para sempre
fechada numa caixa preta. Concordamos com Turvey e Shaw (1995) quando argumentam que
a compreensão da cognição deve começar com a locomoção controlada. Um jogador de rugby
com bola quando ataca a zona de ensaio tem de percepcionar os caminhos disponíveis no
campo. Para isso ele tem de identificar os obstáculos que estão na sua linha de corrida, bem
como os espaços que permitem a sua passagem, de acordo com o seu tamanho
(escalonamento corporal). Dado o elevado número de jogadores no campo, o jogador deve
percepcionar selectivamente os jogadores da sua equipa, bem como as zonas favoráveis ao
passe e evitar aquelas que poderão colocar estes objectivos em risco. Ao avançar pelo campo
em corrida e ao fugir aos adversários, o jogador deve também percepcionar os momentos que
induzam contacto com um adversário, (nos casos de manutenção das mesmas condições de
velocidade e direcção), de modo a que se possam fazer ajustamentos relativamente à sua
posição (corporal). Paralelamente, o atleta deve também percepcionar a distância para o
adversário, bem como se está a desacelerar ou acelerar apropriadamente para chegar à linha
de ensaio, ou evitar uma placagem.
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O sistema “jogador de rugby-campo” mostra porque a locomoção controlada é uma
forma fundamental de cognição. Para Gibson (1966) esta é a melhor forma de se compreender
como é que a percepção pode regular a acção: por detectar os constrangimentos
informacionais específicos às vias disponíveis para atingir um dado objectivo (Shaw &
Turvey, 1999). Os movimentos voluntários de um atleta situam-se para além da situação na
qual o movimento é iniciado e podem estar orientados para consequências posteriores à acção.
As acções (comportamentos orientados para objectivos) e as percepções são intencionais
porque o seu significado situa-se para além das suas origens causais.
Estas ideias exemplificam as interacções complexas entre constrangimentos
intencionais e informacionais durante a tomada de decisão emergente. Mostram que pretender
um dado objectivo comportamental (i.e., uma condição final), implica que o atleta seleccione
as condições iniciais que permitam a obtenção da condição final sob as leis físicas existentes.
Com cada passo mais próximo do objectivo a informação detectada e usada para a acção deve
tornar-se mais específica, estreitando as vias de acção possíveis e disponíveis para o sistema
de movimento, até que finalmente, no momento da obtenção do objectivo, a via emergente
torna-se unicamente definida (Kugler et al., 1990; Shaw, 2001). Com esta perspectiva, a
tomada de decisão é vista como um processo funcional e emergente no qual a selecção é feita
entre vias convergentes para um objectivo pretendido. As escolhas são feitas em pontos de
bifurcação onde informação mais específica se torna disponível, constrangendo o sistema
atleta-ambiente a passar para a via mais funcional. Quando decide, o atleta usa as suas fontes
de energia interna para influenciar as interacções contextuais e para definir uma via em
direcção a um objectivo específico. Em suma, a capacidade para estar sensível e afinado aos
constrangimentos ecológicos sustenta a emergência de ordem num sistema de movimento e
sustenta a tomada de decisão eficaz em ambientes complexos (Araújo et al., 2006).
19
Quando um indivíduo age num determinado contexto, todos os seus sistemas
(biológicos e psicológicos) auto-organizam-se de forma a possibilitar-lhe atingir o seu
objectivo. Ou seja, as acções não são componentes (mecanismos) do organismo, mas
ajustamentos do indivíduo ao seu meio. Dito de outro modo, a flexibilidade nos processos
garante um maior sucesso na obtenção de invariância funcional (i.e., de maior robustez na
sucessiva realização de objectivos). Esta auto-organização dos sub-sistemas do indivíduo em
função de um objectivo ocorre em função da afinação perceptiva do indivíduo às propriedades
do ambiente. De seguida apresentamos os diferentes estádios de evolução das habilidades
decisionais dos atletas.
5. Estádios de desenvolvimento das habilidades decisionais dos atletas
Segundo o fisiologista Russo Nicolai Bernstein (1967) há três estádios de
desenvolvimento que se relacionam directamente com a mudança sistemática na organização
da dinâmica do movimento: bloquear, explorar e amplificar os graus de liberdade. Por
exemplo, a perna tem apenas os dois graus de liberdade que a articulação do joelho lhe
possibilita: extensão e flexão. Mas todo o membro inferior tem um elevado número de graus
de liberdade que resulta da combinação de todas as articulações que o constituem. Este
número continua a aumentar exponencialmente se pensarmos na combinação de ambos os
membros inferiores, membros superiores, a totalidade das articulações do nosso corpo, e das
possíveis contracções combinadas dos músculos, e das possíveis congregações de neurónios,
etc. E ainda estamos a situar-nos no organismo. Se pensarmos em todas as combinações
possíveis de interacções que o organismo pode ter com o contexto, rapidamente concluímos
que temos infinitos graus de liberdade. Por isso, os estádios de Bernstein captam
genericamente as mudanças qualitativas na dinâmica do movimento. É portanto necessário
atender ao facto da evolução da aprendizagem não ser um fenómeno contínuo e linear,
20
principalmente em tarefas complexas. Contrariamente ao que as curvas clássicas de
aprendizagem pressupõem, o caminho é muito tortuoso, tem uma variabilidade imensa e é
comum haver significativos retrocessos de desempenho antes de se avançar no sentido
pretendido. Especialmente se, tal como defenderemos aqui, as habilidades decisionais
implicarem a coordenação de graus de liberdade entre o atleta e o contexto de competição ou
de treino. Esta ideia está para além do que defendeu Bernstein, não sendo portanto uma
questão de controlo motor, mas antes uma questão de controlo perceptivo (Savelsbergh &
Van der Kamp, 200) e decisional (Araújo & Carvalho, 2007).
5.1. Bloquear graus de liberdade.
Numa abordagem inicial a uma tarefa desportiva, o cumprimento dos seus objectivos
exige a coordenação dos graus de liberdade redundantes. Sendo assim, começam-se por
estabelecer relações básicas com o contexto de modo a adquirir-se um mínimo de controlo
para realizar a tarefa. Esse controlo é obtido à custa de se fixar ou de se bloquear as soluções
que primeiro sejam descobertas. Neste ponto não é de estranhar que diferentes indivíduos
bloqueiem diferentes movimentos para uma mesma tarefa. Por exemplo, isto acontece quando
um atleta aprende uma técnica nova no basquetebol – mudar de mão para fintar o adversário –
e em que sempre que recebe a bola essa finta é imediatamente realizada, mesmo quando não é
muito pertinente.
Nesta primeira fase, o movimento fica acoplado a uma fonte de informação, sendo por
isso desejável que o treinador leve o atleta a focar a sua atenção, por exemplo, na distância a
que se posiciona o adversário. Esta variável informacional funciona (i.e., permite que se
resolva o problema), mas não é necessariamente a mais eficaz, pois facilita apenas a
identificação da oportunidade para realizar essa técnica. Esta primeira fase caracteriza-se pelo
aparecimento do controlo dos graus de liberdade redundantes a partir da relação entre
21
movimento e informação. Os graus de liberdade que requerem ser constrangidos para que a
acção seja bem sucedida são normalmente em maior número que aqueles requeridos para
resolver a própria tarefa motora, por isso são redundantes. É a redundância do sistema que
permite o largo e flexível repertório de comportamento decisional.
5.2. Explorar graus de liberdade
Numa fase posterior o atleta explora os graus de liberdade disponíveis na sua
interacção com as tarefas de treino. O atleta terá de recrutar novas possibilidades de acção e
integrá-las gradualmente na forma como desempenha a tarefa. Ele vai “descongelando”
gradualmente os graus de liberdade que tinha “congelado” no estádio anterior. Cada vez que o
jogador faz um batimento terá de estar atento às perturbações decorrentes, pelo que novas
sinergias serão criadas, provavelmente com a libertação de articulações ou com a eliminação
de acoplamentos entre informação e movimento, de forma a que a eficiência seja superior.
Mas, nesta fase, ainda é comum existirem muitas acções que se dirigem à eliminação de
problemas de postura ou de forças reactivas indesejáveis, como por exemplo receber a bola e
deixá-la fugir logo a seguir.
Portanto, do padrão de coordenação anteriormente manifestado, o atleta começa a
conseguir realizar acções mais flexíveis e eficazes. É precisamente esta variabilidade do
movimento que permite adaptar o comportamento à alteração permanente dos
constrangimentos da tarefa. Em termos perceptivos, o atleta liberta-se da fonte de informação
anteriormente usada e selecciona outras fontes de informação que também lhe permitem
atingir o objectivo. A interacção que foi inicialmente estabelecida entre o praticante, a tarefa e
o ambiente passa a ser sensível a outras fontes de informação que proporcionam acções,
percepções e decisões mais eficazes que as anteriores.
22
5.3. Amplificar os graus de liberdade
Numa fase seguinte os movimentos parecem fluidos, aproveitando mesmo forças
externas (por exemplo, a utilização do bloqueio no basquetebol), e todas as suas capacidades
no sentido de um desempenho óptimo. Em vez de se opor às forças reactivas ou de as
procurar eliminar, o atleta utiliza-as na elaboração do seu movimento. Nesta fase, a utilização
dos graus de liberdade e o aproveitamento dos constrangimentos é bastante eficiente.
Este processo caracteriza-se pelo escalonamento eficaz que o atleta faz dos seus
recursos, usando as forças reactivas geradas durante o movimento. A amplificação dos graus
de liberdade motores e perceptivos permite que o indivíduo seja adaptável às variações das
exigências tanto internas (mecânicas, metabólicas, atencionais) como externas (forças como a
gravidade, fontes de informação contextual). Além disso, o indivíduo começa cada vez mais a
ser influenciado pela antecipação das consequências de futuros acontecimentos, incluindo a
própria acção. Os lançamentos de recurso por baixo do cesto, ou o passe para jogo aéreo com
finalização (remate) sobre a área de baliza no Andebol são exemplos de manifestações neste
terceiro estádio. A libertação de graus de liberdade pode também proporcionar mais
variabilidade na tarefa e no indivíduo. A razão para esta variabilidade é a numerosa
quantidade de soluções para um conjunto particular de constrangimentos da tarefa. É
precisamente por esta razão que a variabilidade é essencial no treino, sendo esta
proporcionadora do aparecimento de soluções unicamente ajustadas ao atleta, num dado
ambiente para realizar uma dada tarefa. O desenvolvimento da habilidade decisional é um
processo sequencial, mas não homogéneo porque depende da interacção particular dos
constrangimentos do indivíduo e do ambiente. Por isso não é necessário que os indivíduos
passem necessariamente por todos os estádios quando praticam uma nova tarefa. É também
possível que um atleta habilidoso bloqueie os seus graus de liberdade numa dada situação (por
exemplo, numa situação de protecção a uma zona lesionada).
23
6. O treino da tomada de decisão no desporto
A estrutura do processo de treino da tomada de decisão parte do princípio que o treino
deve atender às concepções ou modelos (teorias!) do treinador. Dois treinadores com pontos
de vista diferentes sobre um mesmo assunto, implementarão processos de treino distintos.
Dito de outro modo, aquilo que cada treinador pensa que deve ser o treino, ou a sua
planificação, corresponde à sua “própria teoria” de treino. Contudo, o treino da tomada de
decisão parte do pressuposto que o treinador conhece os fundamentos da tomada de decisão,
tal como temos vindo a apresentar até aqui. Nesta base, o treino (os exercícios, os métodos,
etc.) só tem sentido se for ao encontro daquilo que o treinador diagnosticou como sendo o
mais relevante a ser treinado. Em função do desenvolvimento das habilidades decisionais
pensamos que há cinco questões sucessivas que situam o diagnóstico a ser realizado pelo
treinador:
1. Quais as características da tarefa (objectivo, regras.) em que se pretende ter um
desempenho eficaz?
2. A que fontes de informação dessa tarefa deve o atleta estar afinado?
3. O atleta tem movimento funcional acoplado a essas fontes de informação?
4. Este acoplamento está demasiado “rígido”?
5. O atleta pode antecipar mais cedo, de modo a tornar as suas acções mais fluidas? Uma
vez diagnosticados os aspectos relevantes para serem treinados, é necessário identificar qual a
melhor forma de atingir os objectivos propostos para os atletas ou para a equipa. Neste
sentido passa-se a uma fase de prescrição dos exercícios e de organização do treino. Quer o
diagnóstico quer a prescrição são passíveis de reavaliações e de reajustamentos em função da
evolução dos atletas ou da equipa. De acordo com os fundamentos anteriormente expostos,
24
pensamos que a tomada de decisão deve ser treinada seguindo a Abordagem Baseada nos
Constrangimentos – “ABC” (Araújo, 2005; Davids et al. 2007).
6.1. Abordagem baseada nos constrangimentos para treinar a tomada de decisão
A ABC tem como princípio central a manipulação dos constrangimentos chave que
influenciam o comportamento em competição. Por constrangimentos entendemos as pressões
que são postas à acção, sejam elas aspectos tão diversos como as instruções do treinador, a lei
da gravidade ou a amplitude de uma dada articulação. No treino da tomada de decisão, o
treinador pode manipular os constrangimentos da tarefa, intervir no jogador, ou usar os
constrangimentos do ambiente, embora estas categorias não sejam independentes (Figura 1).
6.1.1. Manipular os constrangimentos da tarefa
A estruturação das tarefas de treino exige, a par de princípios científicos sólidos, um
diagnóstico competente da parte do treinador. Neste sentido, os constrangimentos da tarefa
assumem-se, provavelmente, como a categoria mais relevante a ser manipulada pelo treinador
no processo de treino. Este tipo de constrangimentos é caracterizado principalmente pelos
objectivos e pelas regras que especificam ou constrangem a dinâmica do movimento (Newell
& Jordan, 2007). O objectivo da tarefa normalmente é estabelecido numa ou mais dimensões
(p.ex., espaço e tempo), mas a forma de se atingir esse objectivo está constrangida pelas
regras do desporto ou pelas regras apresentadas pelo treinador (e.g, realização de cinco passes
antes de rematar). De notar que a intervenção do treinador pode ir modificando os
constrangimentos da tarefa, sendo portanto, a sua própria intervenção constitutiva da
dinâmica da tarefa. Neste sentido o próprio feedback do treinador sobre o desempenho do
atleta, pode ser integrado nas propriedades de sub-tarefas ou das condições ambientais da
prática, no sentido de uma maior adaptação à tarefa. Outras estratégias que podem ser usadas
pelo treinador são: 1) amplificar fontes de informação presentes no contexto, por exemplo,
25
alguns treinadores de ténis colocam uma manga de cor berrante no braço com raquete do
atleta que serve, para que o atleta que recebe o serviço foque a sua atenção neste braço de
modo a melhor antecipar a direcção da bola; 2) realizar gestos e toda uma panóplia de acções
não verbais a que um treinador pode recorrer; 3) utilizar linguagem verbal, o que corresponde
ao chamado feedback aumentado, ou informação de retorno extrínseca verbal, e ao método
interrogativo.
A ideia de fundo é que estas informações não são passivamente recebidas pelos atletas,
mas antes tornam-se disponíveis no contexto para o jogador explorar, tal como este explora o
jogo, a competição, o treino, ou qualquer situação com que se depare. O treinador que
compreenda este facto poderá estruturar diversas situações de treino que promovam uma
eleição selectiva, por parte do atleta, de determinada fonte de informação contextual. Se
nalgumas situações é vantajoso haver “competição” de fontes de informação para que o
jogador aprenda a atender às que são mais importantes para atingir um dado objectivo,
noutras situações esta “competição” (por exemplo entre o que o jogo oferece e o que o
treinador diz) pode ser inibidora de um desempenho eficaz. Isto quer dizer que a tomada de
decisões do atleta é um processo social, que para além da exploração, por parte desse atleta,
da informação disponível no contexto, implica também a selecção e a transformação de muita
dessa informação no contexto, por parte do treinador.
Figura 1 – Processo de treino da tomada de decisão tendo por referência a competição.
AtletaAmbiente
Tarefa
Intervenção do treinador Melhoria do
desempenho em competição
AtletaAmbiente
Tarefa
Intervenção do treinador Melhoria do
desempenho em competição
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É importante destacar que os objectivos da tarefa devem ser concebidos de tal modo
que não “compitam” com os objectivos do jogo. Por exemplo, para que o ataque da equipa de
andebol seja eficaz é indispensável a rápida circulação da bola entre os jogadores. Mas muitas
vezes observa-se que a equipa (principalmente no início da fase ofensiva) fica empenhada em
passar a bola, sem manifestar qualquer intenção de ataque à baliza adversária (Araújo &
Volossovitch, 2005). Isto indicia que os jogadores estão sobretudo focados em passar a bola e
não em marcar golo. Ou seja esta acção, em vez de ser o meio, passou a ser o fim. Chegámos
à noção de representatividade da tarefa. Ou seja de que modo a tarefa de treino permite um
comportamento competente no jogo. Para se criarem contextos proporcionadores de perícia,
as tarefas propostas no treino não devem quebrar os acoplamentos entre percepção e acção
que acontecem em competição. Por outras palavras, o treino deve ter affordances semelhantes
às da competição. Do que vimos sobre o desenvolvimento das habilidades decisionais, o
desenvolvimento do desempenho perito requer que se estabeleça a ligação entre informação e
movimento a curto prazo, e o aperfeiçoar desta ligação a longo prazo. Portanto o trabalho do
treinador será promover este desenvolvimento através da organização da interacção entre
atleta e ambiente para um determinado fim (tarefa). Esta interacção só pode evoluir se houver
um ajustamento continuado do indivíduo à situação de desempenho. Todavia, este
ajustamento não é conhecido antecipadamente pois as situações mudam a todo o momento,
sendo que a intenção é que o indivíduo não seja previsível, estereotipado, mas sim criativo na
busca de soluções específicas. Para isso a organização da tarefa deve possibilitar que o atleta
fique sensível, ou “afinado” para detectar a fonte de informação que reclama a acção eficaz
para atingir o seu objectivo. O desafio do treinador é o de responder a questões do género
“Como é que se sabe que aquilo que se faz no treino se aplica à competição? Porque é que “se
joga como se treina?”.
27
De facto, estas questões são difíceis de responder, mas a ideia que gostaríamos de
deixar é que mais do que uma reprodução minuciosa de um dado contexto de competição,
mais do que uma reprodução de um dado movimento, importa controlar a “fidelidade da
acção” (decisão/percepção/cognição). Ou seja, será que a informação disponível permite que
o atleta resolva a tarefa de modo flexível e adaptativo tal como acontece em competição? Um
exemplo do desacoplamento entre informação e movimento é treinar o levantamento da bola,
no serviço em voleibol, separado do seu batimento. Portanto, quando se defende que as
tarefas de treino devem ser representativas isto indica que devem manter a funcionalidade do
jogo, mesmo que se criem regras que não existem em competição (Passos et al., submitted).
Veja-se os próximos exemplos de tarefas no basquetebol e no rugby.
28
Manipulação dos Constrangimentos da Tarefa para o Basquetebol Diagnóstico A equipa demonstra uma incapacidade de ajustar o seu comportamento colectivo face a cenários de jogo desfavoráveis ou a mudanças repentinas no comportamento do adversário. Possíveis causas Leitura inadequada da dinâmica do jogo. Incapacidade do colectivo coordenar as suas acções e orientá-las para objectivos comuns. Descrição da tarefa de treino Situação de jogo reduzido de 3x3, em campo inteiro, em que o treinador subitamente coloca pressão sobre a equipa que ataca ou que defende, criando cenários de jogo hipotéticos, como seja: - Limite de 10 segundos para o tempo de ataque; - Quatro segundos para transpor o meio-campo; - Desvantagem de 8 pontos com 2 minutos para o final da partida ou vantagem de 6 pontos com 1 minuto para o final; - Pressão a campo inteiro no momento de reposição da bola. Comportamentos desejáveis Ajustamento rápido e coordenado da dinâmica colectiva face aos cenários de jogo propostos pelo treinador, como por exemplo: - Sucessão de movimentos de ruptura de forma a criar rapidamente situações de lançamento favorável; - Aumento da velocidade e da eficiência da transição ofensiva; - Aumento em bloco da pressão defensiva para recuperar a bola e assim converter um cesto; - Criação espontânea de situações de 2x1 sobre a bola para tentar superar a desvantagem; - Modificação rápida e organizada do sistema defensivo (passagem de marcação individual para zonal) para diminuir a desvantagem pontual; - Circulação da posse de bola “pela posse”, com menor ofensividade, para esgotar o tempo de jogo; - Reacção coordenada à pressão defensiva em campo-inteiro na transição defesa-ataque; Tarefas subsequentes O mesmo tipo de situações, embora com um aumento no número de jogadores (4x4 e 5x5), de forma a aproximar-se à lógica do jogo formal, nomeadamente no seus aspectos estruturais e funcionais. O treinador pode também pontuar um lançamento convertido antes dos 10 segundos de ataque (valorização de uma estratégia de risco para recuperar o resultado) ou nos últimos 5 segundos de ataque (valorização de uma estratégia de contenção). Funcionalidade da tarefa Esta tarefa exige dos jogadores uma constante leitura do contexto de jogo e um ajustamento coordenado da dinâmica colectiva (ofensiva ou defensiva) face às súbitas modificações produzidas pelo treinador.
29
Manipulação dos Constrangimentos da Tarefa para o Rugby Diagnóstico O jogador em posse da bola opta por entrar no contacto com o defesa, não conseguindo realizar o passe, ou realiza de forma deficiente, ou quando a recepção é feita o jogador do apoio já não está nas melhores condições (i.e. está parado). O jogador do apoio recebe a bola parado. O jogador do apoio recebe a bola mas o defesa consegue realizar uma placagem. Possíveis causas O jogador de posse de bola não consegue “ler” a aproximação do defesa e é placado. O jogador de posse de bola não consegue distinguir entre a situação mais favorável para passar a bola ou para “entrar” num espaço deixado livre pelo defesa. O jogador de posse de bola não consegue “ler” a aproximação do defesa, o passe é feito cedo de mais, ficando o defesa em condições de interceptar o jogador que vem no apoio. O jogador do apoio não consegue “ler” as alterações de velocidade do jogador em posse da bola, não regula a velocidade da sua corrida e no momento da recepção está ao lado do jogador que passa a bola (isto é o que se chama estar sem profundidade), tendo de parar a sua corrida para receber a bola. Descrição da estrutura da tarefa de treino Dois atacantes para um defesa. Os dois atacantes podem ser designados por “o atacante com posse da bola” e “o atacante do apoio”. A tarefa realiza-se num espaço delimitado. O objectivo é o jogador no apoio receber a bola de forma a progredir no campo sem oposição. Os atacantes têm como objectivo marcar um ensaio. Para tal o atacante em posse da bola, deve “fixar” (atrair) o defesa e passar a bola para o atacante que surge no apoio ficando este livre de oposição no caminho para o ensaio (Figura 1). O defesa tem como objectivo evitar que o ensaio aconteça.
Figura 1. Tarefa de 2x1 no RugbyLi
nha
de e
nsai
o
Sentido do ataque
Atacantes
Defesas
Setas as cheio indicam as linhas de corrida dos jogadores. Setas a tracejado indicam o passe.
Comportamentos desejáveis durante a realização da tarefa Para “fixar” o defesa, o atacante em posse da bola deve correr na direcção deste,
30
passando a bola ao atacante do apoio, imediatamente antes do contacto com o defesa, quando este já não tiver qualquer possibilidade de interceptar nem a bola, nem o jogador do apoio. O passe deve ser feito para o lado (passar para a frente no Rugby é falta), para o espaço que existe em frente ao atacante do apoio. O atacante do apoio deve “atacar” o espaço para receber a bola em plena aceleração. Para tal, deve regular a sua corrida de forma a manter a “profundidade” até ao momento da recepção da bola. Deve ainda comunicar ao atacante em posse da bola para onde quer o passe, “esquerda, direita, curta ou longa”. O defesa deve perturbar a acção do atacante em posse da bola. Em situação de inferioridade numérica uma solução é fazer com que o seu comportamento não seja previsível (por exemplo não correr declaradamente na direcção do atacante). Para causar alguma incerteza no atacante, o defesa deve encontrar um equilíbrio entre o avançar para reduzir o espaço de acção do atacante e o adquirir uma posição no campo. Quando tiver oportunidade, deve placar o adversário ou interceptar a bola. Possíveis tarefas subsequentes Caso o posicionamento do defesa o permita, o atacante em posse da bola, pode tomar a iniciativa de não realizar o passe e avançar para a linha de ensaio. Passar a uma situação de 2x1+1. Ou seja, após a realização do 2x1, a dupla de atacantes tem de resolver uma outra situação de 2x1 mas com funções inversas, o jogador do apoio passou a ser o de posse de bola e o jogador de posse de bola, tem de rapidamente sair da situação anterior e aparecer no apoio. Uma outra tarefa subsequente pode ser uma situação de 3x2. Descrição da funcionalidade da tarefa Esta tarefa implica que os jogadores aprendam a “ler” o comportamento dos parceiros e adversários com os quais estão directamente ligados (i.e. onde existe uma interdependência de acções em comportamentos direccionados para um objectivo). O jogador em posse da bola estabelece uma relação com o seu defesa directo em relação ao qual necessita de “afinar” a sua decisão de qual “o momento certo” para passar a bola. O atacante do apoio deve “ler” as alterações da velocidade de corrida do jogador de posse de bola (é provável que com a redução da distância interpessoal entre o defesa o jogador de posse de bola, este diminua a sua velocidade na corrida), regulando a profundidade, sabendo decidir pelo momento certo de pedir a bola, acelerar para o espaço e receber a bola no topo da aceleração.
6.1.2. Intervir directamente no atleta
O treinador pode intervir directamente no jogador antes, durante, ou após este realizar
a tarefa representativa. Um exemplo de uma intervenção fora da tarefa representativa (antes
ou depois) é uma conversa no balneário relativa a determinados aspectos do desempenho do
atleta. Como vimos antes, é importante considerar as características do indivíduo desde o
momento em que se desenha a tarefa representativa, visando atingir os objectivos definidos.
Neste sentido, os treinadores podem seleccionar, transformar e apresentar fontes de
informação aos seus jogadores. Muitos treinadores usam esquemas, típicos em muitos
desportos colectivos com bola, revelando aspectos estratégicos, por exemplo, ou então
31
desenhos (a papel e lápis, no computador, e até em simuladores “virtuais”), mostrando uma
dada fonte de informação. A vantagem dos desenhos é que podem amplificar determinados
aspectos da realidade, por exemplo, colocando cores diferentes (vermelho, verde) nos espaços
a explorar e nos espaços a evitar. Já falámos anteriormente que a intervenção do treinador
durante a tarefa representativa é, de acordo com Newell e Jordan (2007), constitutiva da
própria tarefa. Neste sentido abordaremos nesta secção, as intervenções no atleta, antes ou
fora da tarefa representativa1.
6.1.2.1. Previamente à tarefa representativa. Há duas categorias de constrangimentos relativos
ao atleta: 1) os estruturais, que contemplam a morfologia, a composição corporal, o nível de
perícia numa dada tarefa, ou seja, os aspectos do indivíduo que se mantém relativamente
constantes ao longo do tempo; e 2) os funcionais, que dizem respeito aos pensamentos, às
emoções, à motivação, à fadiga, à velocidade, à concentração, etc, que são estados variáveis
de momento para momento. Quanto aos constrangimentos estruturais, o treinador deve
contemplá-los quando planeia a tarefa de treino de modo a que esta esteja adaptada às
características dos jogadores (p.ex., grupos equilibrados em termos de perícia numa dada
tarefa que vise a exercitação do ressalto no basquetebol). Quanto aos funcionais, o facto de
poderem variar de exercício para exercício, proporciona diferentes modos de explorar o
contexto.
Neste sentido o treinador pode induzir estados no atleta antes da realização de
determinadas tarefas (p.ex, induzir fadiga), desde que isto permita ir ao encontro das
necessidades levantadas pelo diagnóstico (Araújo & Esteves, 2006). O treinador pode também
fazer variar o estado emocional de determinado jogador antes de resolver determinada tarefa
representativa, incumbindo, por exemplo, outro jogador de “incomodá-lo”. António Damásio 1 Tarefa representativa é um termo que substitui “tarefa ecológica” usado por Araújo e Volossovitch (2005). Isto deve-se ao facto de todas as tarefas serem necessariamente realizadas numa dada ecologia, mesmo que esta não seja representativa do contexto para onde se pretende generalizar ou transferir o comportamento treinado.
32
(1994) tem realçado o modo como tomada de decisão e emoção estão ligadas. Uma vez que o
estado emocional do jogador é um constrangimento funcional no processo emergente da
decisão, esta intervenção do treinador pode ser útil para aqueles jogadores cujo diagnóstico
tenha indicado variações no comportamento após algum acontecimento emotivo em jogos
passados (alteração do comportamento após interacção agressiva com adversário, ou após
apupos do público, etc.). Outra possibilidade é através das instruções dadas ao jogador. Neste
âmbito, o treinador pode pedir ao jogador para variar as formas de resolver determinada
situação. Neste caso, a resposta do jogador não será verbal, mas será dada pela variação das
acções na sua exploração da situação. Naturalmente que podem haver combinações entre
intervenções no indivíduo e nos constrangimentos da tarefa. Por exemplo o modelo de ensino
do jogo para a compreensão (Bunker & Thorpe, 1982), incide especialmente no treino da
tomada da decisão, embora esta seja treinada previamente à acção do jogador na tarefa. Mas a
tarefa pode ser escolhida de modo a também dar suporte a esse treino prévio, tal como no
exemplo seguinte.
Intervenção no jogador e manipulação da tarefa no basquetebol Diagnóstico Os jogadores deterioram a qualidade das suas acções em jogo (número de perdas de bola e redução da percentagem de lançamento, etc.) pela dificuldade em lidar com decisões da arbitragem ou com o comportamento pressionante do adversário. Possíveis causas Alteração dos estados emocionais (concentração, auto-controlo, ansiedade). Descrição da estrutura da tarefa de treino nº1 Situação de jogo 5x5, com características semelhantes ao jogo formal, onde o treinador previamente indica a um determinado atleta que se comporte de forma a provocar uma reacção indesejada da parte de outro atleta (ex: agressividade na marcação defensiva ou comentários perturbadores no decorrer do jogo). Descrição da estrutura da tarefa de treino nº2 Situação de jogo de 5x5 em que a equipa técnica poderá desempenhar as funções de arbitragem e assim, suscitar, através de algumas decisões intencionalmente polémicas, reacções precipitadas de certos atletas. Comportamentos desejáveis O jogador deverá estabilizar os seus estados emocionais na situação de jogo para que a sua prestação não seja afectada. Tarefas subsequentes Recorrer, pontualmente, a árbitros do Conselho de Arbitragem Distrital para que o contexto competitivo se aproxime o mais possível das condições de um jogo formal, ou então a atletas
33
mais velhos do clube que possam assumir essas funções. Funcionalidade da tarefa A vivência frequente e diversificada destas situações deverá permitir ao atleta uma maior capacidade de regulação dos seus comportamentos, mantendo ou mesmo melhorando o seu desempenho em jogo. Simultaneamente o treinador pode emitir feedback que facilite o controlo do atleta, e ensinar técnicas de regulação emocional, por exemplo através do chamado diálogo interno (o atleta conversar consigo próprio baseado no que há a fazer no momento presente em função dos objectivos da equipa para o jogo).
6.1.2.2. Fora da tarefa representativa. Deve-se atender aos constrangimentos do indivíduo
quer quando se desenha a tarefa representativa, quer quando se intervém directamente no
jogador (por exemplo, quando se fala com ele no balneário). Quando o treinador intervém
directamente no jogador, pode recorrer a vários meios disponíveis entre os quais o
visionamento de vídeos de outros jogadores e do próprio, a imagética (imaginar situações
possíveis de acontecerem na próxima competição), o estabelecimento de rotinas de
concentração, e a discussão de casos. É preciso assegurar que a utilização destes meios seja
coerente com a planificação geral do treino (i.e., os objectivos previamente definidos).
O treino dos processos indirectos da tomada de decisão (meta-decisionais) diz respeito
fundamentalmente ao desenvolvimento da compreensão estratégica do jogo com base em
indicações que orientem o jogador a percepcionar uma fonte de informação mais relevante
para agir. Utiliza-se normalmente o visionamento de jogos ou a simulação de situações de
jogo para revelar as fontes críticas de informação (por exemplo, a posição do adversário no
ténis, apoios em “open stance” ou “square stance”, amplitude do backswing, o lançamento da
bola no serviço), para perceber em determinada situação de jogo qual deverá ser a resposta
provável do adversário (observar o comportamento do adversário em situações semelhantes,
perceber o espaço que deve cobrir e atacar), ou ainda, para conhecer outras decisões para lidar
com as acções do adversário (decisões que se revelaram como eficazes) (Araújo & Carvalho,
2007).
34
Um exemplo que tem sido pouco usado na psicologia do desporto é o treino das
habilidades decisionais desenvolvido por Klein e colegas (e.g. Pliske, McCloskey & Klein,
2001). Este método começa por se entrevistar um perito para saber como este tomou decisões
em situações críticas concretas. A etapa seguinte é a partir das situações descritas pelo perito,
criar situações/cenários de jogo (em texto e imagens), onde os atletas têm de decidir por
escrito o que fazer. Em alguns dos jogadores procede-se a uma avaliação crítica das decisões
tomadas (Porque escolheste esse curso de acção? qual foi o teu ponto fraco?). No contexto de
grupo, aprofundam-se as decisões mais desafiantes procurando saber que fonte de informação
foi usada e razões para essas decisões serem consideradas difíceis. Neste estádio pode ser
usado o “exercício post mortem” tal como é designado, em que através de uma bola de cristal
imaginária discute-se o que correu mal num cenário em que o plano que se acabou de elaborar
falhou, e as razões possíveis para o curso de acção falhar. Finalmente, os jogadores
descrevem as intenções ou o racional para o plano formulado para a situação de jogo,
comparando-se depois as diferenças entre o racional dos jogadores e o do treinador (assente
na resolução apresentada pelo perito na entrevista inicial).
6.1.3. Usar os constrangimentos do ambiente
Em contraste com os constrangimentos da tarefa, não é possível manipular os
constrangimentos do ambiente. Contudo, é evidente que constrangimentos sociais (p.ex., o
comportamento do público ou a presença de familiares), factores relacionados com as
condições do recinto (p.ex., a temperatura ou a luminosidade) ou até factores como o tipo de
competição do ponto de vista organizacional (p.ex., torneio regional, campeonato nacional)
influenciam o desempenho e, inerentemente, a tomada de decisão dos jogadores. Neste
sentido, apontamos algumas sugestões que, baseando-se no princípio de variar o local e a
organização dos jogos, podem influenciar indirectamente o comportamento decisional:
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- Abertura do espaço de treino à presença de pais, ou outros espectadores;
- Realização frequente de jogos treino entre diversos escalões do clube;
- Realização de jogos amigáveis com outros clubes;
- Organização de encontros desportivos que culminem numa classificação final.
A chuva é um constrangimento do ambiente que constrange aspectos técnicos e
tácticos do rugby, dado que a bola fica mais escorregadia, os equipamentos ficam mais
pesados, o terreno enlameado dificulta a velocidade das acções e aumenta a fadiga. Em dias
de chuva podem ser treinadas funções que sejam mais condicionadas por este
constrangimento, como por exemplo a circulação de bola para dar continuidade ao ataque.
Há ainda aspectos ambientais sobre os quais pode haver alguma influência do
treinador, nomeadamente no “ambiente de treino”. O clima que o treinador cria no treino é
com certeza um factor que influencia o desempenho do jogador na realização das tarefas
representativas. Neste sentido, podem-se diferenciar dois tipos de ambiente de treino criados
pela intervenção do treinador: ambiente orientado para o ego do jogador e ambiente orientado
para a mestria do jogador. O primeiro leva o jogador a comparar o seu desempenho com os
outros, levando-o a colocar questões como, “Fui eu o melhor no treino?”; “Consegui marcar
mais golos que o jogador X?”. O ambiente orientado para a mestria, solicita mais a motivação
intrínseca do jogador e incentiva-o a contribuir para os objectivos da equipa, ou seja, a
percepção do jogador é a de que ele é tanto mais competente quanto mais evoluir na
contribuição para objectivos da equipa, e não por comparação com os outros. Neste caso, o
jogador perguntará questões como “Como posso melhorar determinado aspecto que não
consegui resolver em competição?”. É importante destacar que tanto um tipo de ambiente
como o outro, influenciam, de modo distinto, aquilo que o jogador reconhece como fontes de
informação relevantes no jogo, decorrendo daí diferentes tomadas de decisão.
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Posto isto pretendemos demonstrar que, apesar da categoria de constrangimentos
relativos à tarefa ser a mais importante a atender pelo treinador, uma vez que intervém
directamente no comportamento decisional, este deve também considerar intervenções
indirectas como as respeitantes à categoria de constrangimentos relativos ao indivíduo e à
categoria relativa ao ambiente. Todas estas categorias de constrangimentos influenciam
directa ou indirectamente a capacidade de tomar decisões no jogo.
Em conclusão, treinar, ou melhor, aprender implica, não uma mudança na associação
entre estímulo e resposta, nem o depositar de verbalizações na cabeça do atleta, mas uma
estruturação pertinente das actividades propostas no treino, aliadas a uma selecção e
transformação de fontes de informação disponível no contexto. O propósito passa por orientar
o comportamento perceptivo do atleta para a percepção das fontes de informação mais
relevantes que lhe permitam regular o seu comportamento. O treino visa levar o atleta a saber,
autonomamente, detectar e usar com mais acuidade as fontes de informação, ou seja, a
percepcionar para agir guiado pelas informações que conduzam à obtenção do objectivo da
competição, mas também a procurar activamente as fontes de informação que lhe permitem
atingir o objectivo com maior eficiência. Em suma, o treino da tomada de decisão deve levar
o atleta a percepcionar fontes de informação para agir, e a agir para ter melhores fontes de
informação, aquilo que se designa por acoplamento percepção-acção.
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