Download - A Música Na Literatura
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UNIVERSIDADE DE CABO VERDE
LICENCIATURA EM LETRAS
ESTUDOS CABO-VERDIANOS E PORTUGUESES
O Som na Palavra, a Msica na Linguagem:
A Msica na Literatura Cabo-verdiana
Drio Osvaldo Dias Furtado
Praia, Setembro 2010
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Dedicatrias:
Aos amores da minha vida: minha querida me, minha fora, ao meu querido
filho e minha sempre Presena, amiga, esposa, namorada e companheira ao longo desta
caminhada e de outras. Tambm dedico-a aos meus irmos, quele que estar sempre
cantando no meu corao. Ao meu querido e amado pai, aonde quer que estejas estars
sempre comigo.
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Agradecimentos:
Por que sei do risco de esquecer de algum, antecipadamente quero pedir desculpas, e agradecer a todos.
Em especial, minha me, pela compreenso, carinho, amor e por ser a fonte de
energia e razo da minha luta.
minha Presena, pelo carinho, pela imensa generosidade e pelas incontveis
vezes em que sua ajuda foi absolutamente decisiva, inclusive para o concretizar deste
trabalho.
Ao meu professor, orientador e amigo Antnio Germano Lima, pelas, sempre,
ajustadas sugestes, que ao longo deste percurso aclararam os atalhos. Agradeo pelos
pacientes conselhos e por acreditar que seria capaz de acompanhar as suas to sbias
exigncias e encaminhamentos.
Aos colegas e amigos do curso pelos momentos que serviram para acalentar o meu
trabalho. Em especial aos meus colegas de turma, da sala 100, a nossa sala.
Aos funcionrios da Biblioteca Nacional de Cabo Verde pelo profissionalismo e
pacincia que demonstraram durante o tempo de pesquisa e, espero que continuemos a nos
auxiliar.
Aos entrevistados pela ajuda e disponibilidade demonstrada, em especial ao
Corsino Fortes, pelo encorajamento e -vontade com que deixou nas nossas conversas.
A todos os meus amigos.
Muito obrigado a todos que me acompanharam nestas jornadas repletas de prazer.
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ndice:
Introduo............................................................................................................................1
Parte I: FUNDAMENTAO TERICA..7
Captulo 1 - Msica e Literatura:
1.1 - Msica e Literatura: Comparao e Articulao .......17
1.2 - O Som Na Palavra, a Msica na Linguagem..23
1.3 Exemplos da Relao entre Msica e Linguagem.........30
Captulo 2 Msica e Poesia.............34
Captulo 3 A Recepo de Obras de Arte.......43
Parte II: MSICA NA LITERATURA CABO-VERDIANA
Captulo 1 Apresentao e justificao dos Mtodos e Tcnicas de Investigao..47
1.1 Conceitos, Tpicos, Ferramentas para a Compreenso da Msica na Literatura...47
Captulo 2 Literatura e a Msica em Cabo Verde...52
Captulo 3 Msica na Literatura Cabo-verdiana.....62
3.1 A Forma Sonata em Corsino Fortes...76
Concluso....83
Bibliografia.....86
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A memria do universo uma harpa de silncio.
Quando tangida pelo ar em movimento produz
sonoridade, mas se pressionada pela atmosfera
envolvente pode dar origem a relmpagos e troves,
maremotos e terramotos. Todavia, se for tangida
pelo sentimento humano produz harmonia, a
matria-prima da arte musical; ento, a msica
a potica vibrao do silncio.1
1 Corsino Fortes, numa perspectiva potica da msica.
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Introduo:
O sculo XXI atingiu a conscincia de que tudo interligado na vida e, por isso, a
exigncia de estudos, seja qual for a expresso de arte, cada vez mais voltados para a
totalidade e para o sistmico.
As fronteiras se deslocam. A poesia e a msica que, originariamente, caminhavam
sempre unidas, passaram a pisar caminhos diferentes, contudo, era ntido o prejuzo para
ambas as artes.
A discusso proposta para esta pesquisa a possibilidade de se elucidar na literatura
cabo-verdiana, na base potica ou prosa, elementos de linguagem sonoro-musical. O
objectivo deste trabalho verificar como que na literatura cabo-verdiana se estabelece a
relao com a msica. uma proposta alternativa para leitura e para anlise de poemas
tendo como ponto de partida a explorao do aspecto sonoro musical.
Para isso propomos analisar obras de alguns autores para nelas fazermos o
levantamento de elementos do campo musical, das sonoridades que povoam o imaginrio
cabo-verdiano. Tambm verificar se h a nomeao de artistas da msica, de personagens
msicos, se h o uso de estruturas musicais na estrutura das obras. nos romances, nos
contos e poesias que pretendemos verificar esta relao msica na literatura.
Tive um encontro com um artigo, cuja base foi a dissertao de mestrado, da
professora piauiense Maria do REGO (2001), A Leitura na Escola: Representaes de
Alunos do Ensino Mdio realizado com jovens teresinenses de escolas pblicas e privadas,
que apontava, numa estatstica, o ndice de 81% de preferncia pela msica como a forma
de lazer que mais lhes proporcionava prazer. A leitura viria em 5 lugar. Da, considerarmos
relevante a abordagem intersemitica que procedemos sobre msica e literatura. No
objectivo deste trabalho fazer um estudo didctico pedaggico da msica no ensino da
literatura. A referncia que fazemos a esse campo apenas para realar a pertinncia que
esta abordagem poderia ter no ensino da literatura em Cabo Verde. O nosso objectivo , de
certo modo, verificar como os escritores da literatura cabo-verdiana estabelecem a relao
com a arte da msica, consciente de que est fora do alcance desta monografia abarcar todo
o universo da literatura cabo-verdiana.
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Ainda constituiu factor de motivao para este trabalho a escassez de pesquisas
feitas em Cabo Verde, no mbito msico-literrio, onde destacaria o artigo da brasileira, a
professora Simone Caputo Gomes, Ecos da Cabo-verdianidade: Literatura e Msica no
Arquiplago, onde mostra como os escritores cabo-verdianos tm feito o intercmbio com o
universo musical para expressarem a cabo-verdianidade. Tambm o livro Baltasar Lopes
da Silva e a Msica, da professora Ondina Ferreira, nos mostra a relao deste escritor,
estudioso, poeta e romancista com a msica.
A literatura e a msica contriburam de forma significativa para a formao da
identidade cabo-verdianidade. A experincia muito enriquecedora tida com a primeira, nas
cadeiras Literatura Africana de Expresso Portuguesa e Literatura Cabo-verdiana,
ministradas na licenciatura em Estudos Cabo-verdianos e Portugueses pela Uni-Cv
tornaram natural a sua escolha como co-objecto de estudo. A msica apareceu neste
inquietao porque se mostrou sempre presente na minha vida. Ento, surgiu a ideia-motivo
que justificou a escolha do tema, A Msica na Literatura Cabo-verdiana.
Todos reconhecem a importncia da Msica e da Literatura na campanha em prol da
independncia e na prpria independncia de Cabo Verde. Foi uma poca em que a poltica
e a cultura andaram de mos dadas, funcionando esta ltima como um instrumento de
mobilizao poltica,1 isto porque se encarava a luta de libertao como um facto de
cultural. curioso a afirmao do escritor Corsino Fortes quando confrontado com o
questionrio que lhe endereamos: Quando junta literatura msica implicitamente essa
conexo leva cidadania.2
Por protagonizar a descoberta das razes culturais cabo-verdianas, a partir de 1936, o
movimento cultural Claridade , 50 anos depois, considerado, pelo ento presidente da
repblica Aristides Pereira, a primeira independncia literria de Cabo Verde.3 Mas,
sobretudo a nvel musical que a independncia ir revelar a sua pujana, destacando-se,
neste perodo, Carlos Alberto Silva Martins (Katxas), que se vai notabilizar por ter trazido,
1 LOPES, Jos Vicente; Cabo Verde, Os Bastidores da Independncia; Spleen Edies; 2 ed. Praia 2002;
P.586 2 Corsino Fortes, entrevistado a 10/09/2010. 3 LOPES; op. cit; P.581.
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da zona rural de Santiago, ritmos como o funan, o finason, batuque, etc.4 Isto porque a
nvel literrio j havia uma literatura com as corres das ilhas. Lembremos o propsito dos
Claridosos de fincar os ps na terra. Todos reconhecemos a importncia cultural tanto da
msica como da literatura para o povo Cabo-verdiano.
Podemos dizer que a msica, nas suas mais variadas vertentes, o sector cultural
mais praticado nestas ilhas do atlntico. No interior das ilhas, na cidade, nos meios de
comunicao como a Internet, a televiso e a rdio, nos bares e restaurantes, nos festivais,
oferece-se, ouve-se e goza-se msica. Em Cabo Verde j se fez estudos sobre msica,
especialmente relacionando-a como smbolo da identidade nacional. Sobre msicos
realamos, por exemplo, os estudos de Tom Varela da Silva, na dcada de 80, sobre as
cantadeiras do Finason, Nha Bibinha Cabral Bida y obra, e Nha Gida Mendi
Simenti di onti na tchon di maan. Em 1997, com a projeco a nvel internacional da
Cesria vora, publicado o livro Cesria vora: la voix du Cap Vert, de Vronique
Montaigne. Temos tambm a apontar o livro, publicado mais recentemente, em 2008,
Bana: Uma vida a cantar Cabo Verde de Raquel Ochoa. Apontar Les musiques du Cap
Vert de Vladimir Monteiro, de 1998, Os aspectos evolutivos da msica caboverdiana,
do Manuel Tavares, e Kab Verd Band de Carlos Gonalves, estes em 2006.
A nossa busca vai no sentido de mostrar, at certo ponto, dado natureza deste
trabalho, como que os escritores cabo-verdianos fazem referncia a elementos do campo
musical para estabelecerem, de forma espontnea/natural ou no, esta relao secular de
irmandade inter-artes, entre a literatura e a msica. A palavra tm uma honra que no aceita
que seja vilipendiada (violada, desprezada). No tinha muita conscincia disso, de que
escrever tambm uma forma de fazer msica. Por exemplo, quando a gente pe uma
entonao numa palavra capaz de ser uma forma de tambm fazer msica Neste
momento estou a especular, mas se calhar h esta inteno mesmo que inconsciente.5
H uma preocupao que surge. Queremos, de alguma forma, dar o nosso contributo
e esperamos que este trabalho venha a servir para despertar futuros estudos que aprofundem
mais a relao inter-artes em Cabo Verde.
4 Idem; op. cit; P.606. 5 Entrevista a Germano Almeida a 25/06/2010
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A literatura e a msica so das manifestaes artsticas mais expressivas para a
assertividade cultural de qualquer povo. A msica em toda a parte est presente e, talvez
com argumentos antropolgicos mais agudizados nos arquiplagos torna-se uma vivncia,
diria, omnidisciplinar e, por conseguinte, fonte inevitvel de consulta disciplinar.6 Ento,
serve tanto aos pesquisadores de cultura como especialistas das vrias disciplinas, em que
pelo aspecto cultural, se podero decompor a existncia humana.
Esta monografia est estruturada em duas partes. Na primeira fala-se da msica e da
literatura, das suas relaes. a relao da msica com a literatura. Ento, percorre-se, at
certo ponto, o caminho que as duas artes vm estabelecendo desde a antiguidade, com
aproximaes e afastamentos de acordo com o pensamento e a ideologia cultural vigente
num determinado perodo. Faz-se uma retrospectiva de forma a entender como que
adoptando-se uma determinada perspectiva epistemolgica a msica viu-se afastada das
preocupaes cientficas. Atitude, alis, avessa, ao cenrio epistemolgico, aos movimentos
de conexo em rede que caracterizam as abordagens mais contemporneas (multi, inter e
sobretudo transdisciplinares) as quais vem progressivamente impondo-se por uma
demanda da inflao praticamente incontrolvel do conhecimento que caracteriza a
actualidade.7
Falamos da literatura comparada como uma possibilidade de abordagem para este
tipo de estudo, configurado como tendo um carcter interdisciplinar pela escola Norte-
Americana, de forma a se entender outras estticas que penetram o texto. E, tambm, da
Melopotica, porque permite-nos estudos de eventuais analogias de obras musicais e
literrias.
Como que o som desaparece das cogitaes epistemolgicas, apesar da co-
naturalidade entre a palavra e o som?
6 CRUZ, Eutrpio Lima; O Peso da Msica na Cultura Cabo-verdiana; In: Simpsio Internacional Sobre
Cultura e Literatura Cabo-verdianas Actas (Mindelo, 23-27.11.1986); Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro; Praia 2010; P.370. 7 DOMINGUES, Ivan (org.). Conhecimento e Transdisciplaniridade II: aspectos metodolgicos. Belo
Horizonte, UFMG, 2005; in: BARBEIRAS Flvio, A Msica Habita a Linguagem: Teoria da Msica e
Noo de Musicalidade na Poesia, Faculdade de Letras da UFMG, Belo Horizonte 2007; P.4.
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Reconhece-se a importncia do leitor na recepo da obra de arte, como instncia
responsvel pelo significado a atribuir ao texto, de acordo com a sua mundivivncia.
Na segunda parte deste trabalho, perspectivando a realidade literria cabo-verdiana,
imergimos nela, com vista a verificar, at certo ponto, a forma como a msica com ela se
relaciona e se manifesta. Falamos, de uma forma geral, do percurso tanto da msica como
da literatura no contexto cabo-verdiano para, s depois, analisarmos alguns textos. O
contedo a ser analisado no obedeceu a nenhum critrio fixo, mas sim, medida que
fomos lendo apercebemos da manifestao musical nos textos. Claro que, a escolha dos
autores no foi to espontnea assim como parece, na medida em que, as disciplinas de
literatura cabo-verdiana permitiram este contacto mais apronfundado.
A metodologia adoptada neste trabalho, foi essencialmente a pesquisa documental e
a entrevistas semi-estruturadas. Primeiramente, atravs de leituras exploratrias e conversas
informais com professores e colegas de turma, procurei ver se o tema proposto seria vivel.
Esta fase mostrou-se encorajador e desafiante, apesar de no ter recebido encorajamento de
todos, uns pelas dvidas de um tal enlaamento msica-literatura e outros pela novidade do
tema. Mas confesso que recebi mais incentivos do que desencorajamentos.
A fase exploratria ajudou na construo de hipteses e o conhecimento do objecto
de estudo, assim como a leitura do patrimnio e a entrevista com fim exploratrio, como
tambm a leitura de algumas teses, principalmente na internet, que explorem esta relao
msica-literatura e a consulta de estudos e artigos que tem como tema a literatura e a
msica cabo-verdianas.
Foram algumas as dificuldades encontradas ao longo do percurso deste trabalho.
Primeiramente, a escassez de documentos que retratam a relao inter-artes como a msica
e a literatura em Cabo Verde. A outra dificuldade prende-se com a disperso das ilhas e
dificuldades financeiras que no permitiram entrevistar outros escritores que pudessem
elucidar outros pontos de contacto desta relao. O facto de estar ao mesmo tempo a fazer
esta tese e a frequentar o estgio pedaggico foi outra dificuldade com que me deparei. A
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um primeiro estudo com essa envergadura, o estgio pedaggico consome muito tempo,
pois exige, tambm, muita dedicao e esmero.
Mas, no obstante as limitaes e dificuldades, o desejo que esta monografia
venha, de alguma forma, contribuir para o melhor conhecimento da cultura cabo-verdiana
na sua vertente musical e literria e, levantar outras questes que podero ser debatidas
noutros estudos, como por exemplo, a literatura na msica cabo-verdiana.
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PARTE I FUNDAMENTAO TERICA
1 Msica e Literatura
A relao entre a msica e a literatura to antiga quanto essas duas formas de
expresso artstica. Desde a Antiguidade o texto literrio adapta-se msica, bem como a
msica adapta-se ao texto literrio, mais precisamente, poesia. A poesia mlica (musical,
harmoniosa) ou lrica era acompanhada por instrumentos musicais diversos (lira, ctara e
flauta) e cantada por uma s pessoa (lrica mondica) ou por um coro (lrica coral).
A histria d-nos exemplos elucidativos desta relao. A poesia e a msica na
antiga Grcia usufruam de um estatuto espiritual e cultural superior. Orfeu, msico e poeta,
smbolo mtico desta profunda unio das duas artes, amansava as feras com o seu canto,
animava as pedras, fazia mover as rvores e pacificava os homens.
De resto, na Antiguidade grega e romana, era quase inadmissvel que um poema fosse dito
em voz alta, sem que se fizesse acompanhar de msica: para tanto, o texto materializava-se
em frases de cadncia favorvel ao canto, e mediante regras mais ou menos uniformes.
Procurava-se captar o ouvinte pela palavra e pela msica ao mesmo tempo.
Contudo, ao longo da Idade Mdia a relao inter-artes era feita mais intensamente
entre a literatura, mais concretamente a poesia, e a pintura:
Plato apresenta o poeta em simetria com o pintor, Aristteles chama
ateno para as afinidades existentes entre as duas artes, no que toca
aos objectos de imitao, mas, chama igualmente ateno para as suas
diferenas no que respeita aos meios de imitao: a pintura usa as formas
e as cores; a poesia usa a linguagem, o ritmo e a harmonia8.
Mas, na Idade Mdia, na Provena, na Frana do Norte, na Galiza, em Portugal, na
Alemanha passou ao imaginrio a figura do trovador, simultaneamente poeta e msico,
perambulando pelas aldeias com seu alade e seus poemas de carcter ora jocoso, ora
ertico, ora satrico, ora de carcter sagrado, estes ltimos celebrando cenas da vida dos
santos ou na lembrana dos Sacramentos da Igreja. As cantigas de amigo, as cantigas de
8 SILVA, Vtor Manuel Aguiar e; Teoria e Metodologia Literrias; Universidade Aberta de Lisboa; 1990,
P.163
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amor, a canso9 provenal eram composies trovadorescas destinadas a serem
acompanhadas de msica e a serem cantadas. Raramente a msica era apenas instrumental:
excepto no caso das danas, a melodia conjugava-se palavra. Em provenal, a palavra
sonet significa melodia, texto com melodia, isto , o trovador compunha o texto potico e a
respectiva msica.
Com o Renascimento, at cerca dos meados do sculo XVIII, tanto no domnio da
teoria como no domnio da prtica artstica, a mimese passou a ser considerada como matriz
comum das artes, estendendo o princpio de raiz horaciana e aristotlica da imitao da
natureza, a todas as artes: a msica, a pintura, a escultura e a dana. Com Renascimento e o
Proto-Barroco os compositores do perodo, talvez imaginando que o coro de tragdia
clssica significasse o agrupamento musical que modernamente leva esse nome, criaram a
msica para o drama. V-se, ento, que no era apenas o poema que instigava as
imaginaes, mas o texto dramatrgico. Desse feliz equvoco, surgiu a pera moderna, que
mantm suas caractersticas quase inalteradas h cerca de quatro sculos. A pera constitui-
se numa obra dramtica ou lrica, sem dilogo falado, em que a msica e a poesia se
completam.10
Fundamentalmente, uma pea de teatro portanto, literatura que recebe
tratamento musical. Durante o Renascimento e o Barroco, a associao entre a poesia e a
msica foi ainda frequente, quer em gneros lricos como o madrigal ou a cantata, quer,
sobretudo, em gneros dramticos e em espectculos teatrais como o melodrama, o drama
lrico e a pera.
Com efeito, a diferenciao entre o texto potico e o texto musical, entre a lexis e o
melos, iniciou-se com a emergncia da poesia escrita e o correlativo declnio da poesia
oralmente comunicada. Intensificou-se com a difuso da poesia atravs do livro impresso, e
dirigem-se a leitores que realizam a sua leitura como acto privado, pois, a imprensa
privilegia a viso e no o ouvido, o que origina profundas alteraes na produo, na
transmisso e na recepo dos textos. Por outro lado, a preocupao destes poetas com as
doutrinas morais, filosficas e religiosas, relega os efeitos musicais, como a rima, que
poderiam, em seu entender, prejudicar aquele significado racional.
9 Canso: tipo de cano trovadoresca medieval. In: HOUAISS, Antnio et all; Dicionrio Houaiss da Lngua
Portuguesa, Temas e Debates; Instituto Antnio Houaiss; Lisboa; 2003. 10 Dicionrio Universal da Lngua Portuguesa; 5 ed. Texto Editora; Lisboa; 1999.
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Edmund Burke afirma que na realidade a poesia e a retrica no fazem uma
descrio exacta das coisas, to perfeita como a pintura; toca-nos mais atravs da simpatia
do que da imitao; antes, mostra o efeito das coisas na mente de quem fala, ou na mente
dos outros, do que dar uma ideia clara dessas mesmas coisas.11
Ora, o sublime no
concilivel com a clareza das ideias, com a representao clara da natureza: o sublime
exige obscuridade, o terror, o sofrimento, a grandeza. S a linguagem verbal, s a poesia e
a eloquncia podem gerar experincia do sublime, porque despertam e agitam poderosas
paixes.
Lessing12
, na sua famosa obra Laocoonte: ou sobre os limites da pintura e da
poesia, em 1776, advoga a existncia de profundas diferenas entre a pintura e a poesia: os
smbolos usados naquela so figuras e as cores existentes no espao, ao passo que os
smbolos usados pela poesia so os sons articulados no tempo; os smbolos da pintura so
naturais enquanto que os da poesia so arbitrrios; a pintura pode representar objectos que
existem simultaneamente no espao, ao passo que a poesia pode representar objectos que
sucedem no tempo. Em suma, para ele a pintura a arte do espao, da aco imobilizada; a
poesia uma arte do tempo, do movimento, da aco.
Todavia, as anlises de Lessing tm uma fundamentao pertinente. A leitura de um
texto literrio processa-se obrigatoriamente em conformidade com determinadas regras: o
texto tem um princpio e um fim topograficamente e temporalmente demarcados, devendo
o leitor iniciar a leitura na primeira linha e acabar na ltima, da esquerda para a direita e de
cima para baixo. O processo desta leitura pode ser temporalmente muito dilatado, como
num romance ou num poema pico. A leitura de um texto pictrico exime-se a um
processamento pr-determinado, visto que em rigor, embora topograficamente delimitado,
no tem um princpio nem um fim: o olhar do espectador move-se com uma liberdade.13
O texto literrio, graas aos recursos da semiose literria, tanto pode descrever
estados de coisas como narrar, na sua sequencialidade, na sua causalidade e no seu
11 BURKE, Edmund; Indagao Filosfica sobre a origem das nossas ideias sobre o sublime e o belo (1757).
Apud: SILVA, Vtor Manuel Aguiar e; Teoria e Metodologia Literrias, Universidade Aberta de Lisboa;
1990. 12 Idem; op. cit. P.167 13 Ibidem; op. cit. P.172
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circunstancialismo, eventos. As palavras utilizadas compem um encadeamento sgnico
que produz uma imagem cognitiva na mente do leitor.14
So signos individuais cuja
significao estabelecida na relao com outros signos, fazendo com que novos e
diferentes signos possam ser percebidos ao longo de sua construo. Este encadeamento
chama-se semiose, caracterizando a aco do signo sobre seu intrprete.
O signo constitudo de trs partes, a saber: o signo, a coisa significada e a cognio
produzida na mente. Equivale dizer que na leitura temos um representamen, que so os
termos utilizados; depois os objectos ao quais se referem estes termos. Sobre ambos a
cognio opera a atribuio de significado valendo-se de seu interpretante.15
Ou seja, a
mente tem a capacidade de substituir um signo por outro mais preciso, o que leva a um
aprofundamento da funo de cada um dos componentes da trade sgnica.
O filsofo francs Victor Cousin (1792-1867) coloca a poesia no topo das artes:
As outras artes devem respeitar a forma uma das outras, existe uma todavia, que parece
aproveitar dos recursos de todas a poesia. Com a palavra a poesia consegue pintar e
esculpir; constri edifcios com a arquitectura; imita at certo ponto a melodia da
msica.16
Ento, ocorre-nos questionar: que relao h entre a msica e a poesia?
Com o Romantismo e, depois, com o Simbolismo e o Modernismo, a relao da
poesia com a msica voltou a ser muito profunda, tendo mesmo a msica alcanado o
estatuto de arte por excelncia. A expresso da subjectividade , agora, o princpio gerador
da arte que, ao exaltar a criao e no a imitao, privilegia a msica como a arte mais
resistente ao modelo mimtico, arte gmea da poesia. Nega-se, assim, a imitao da
natureza como princpio constitutivo da arte em que se fundara desde o Renascimento, e
que permitia valorizar a pintura como arte superior poesia. Paul Verlaine, no seu poema
Art potique, condensou em dois clebres versos esta ideia de que a msica a arte
suprema e a matriz da poesia: la musique avant toute le chouse/ de la musique ancore e
14 Segundo talo Calvino,[...] ler despojar-se de todo objetivo e de toda concluso preconcebida, estar
disposto a pegar essa voz que soa quando menos se a espera. A semiose resulta, ao fim e ao cabo, na leitura
do mundo, universo de signos. In: www.fcsh.unl.pt (30/06/10). 15 ARALDI, Ins Staub; Semiose, Cognio e Literatura: Uma Abordagem Semitica de O Nome da Rosa; in: http://busca.unisul.br; 13-03-2010. 16 SILVA (1990), Pg.168;
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toujour.17
No texto literrio, os sons, na sua materialidade, com seu timbre, sua intensidade,
sua harmonia originam fenmenos que podem ser caracterizados como sendo fenmenos de
fono-estesia e que se assemelham muito a fenmenos musicais. O ritmo constitui, assim,
num aspecto fundamental do texto literrio e representa um dos factos que mais aproximam
a literatura e a msica. uma espcie de respirao do discurso, uma msica interior
materializada na cadncia, no movimento, nas pausas e nas inflexes do discurso.
, segundo Plato, a forma do movimento, uma relao estrutural que se estabelece entre
uma srie de elementos, originando a sua repetio e a sua distribuio no tempo e
marcando a sua durao e a sua nfase. No texto literrio, manifesta-se como ritmo fnico,
isto , como um fenmeno de combinao e repetio de elementos da textura fnica, mas,
manifesta-se tambm como ritmo de pensamento, ou seja, como recorrncia no discurso de
elementos lexicais, sintcticos e semnticos. O ritmo de pensamentos manifesta-se em
fenmenos discursivos como o paralelismo, o refro, o quiasmo, a anfora, a anadiplose, o
leitmotiv, etc.
As profundas relaes entre a literatura e a msica manifestam-se em muitos termos
e conceitos da metalinguagem literria. Veja-se, por exemplo, a palavra canto, utilizada
para designar a poesia em geral, o discurso potico ou um poema em concreto. Fala-se da
modulao de um tema e de variaes sobre um tema. O termo leitmotiv, que designa um
motivo que se reitera, com significado especial, num texto ou numa obra total de um
escritor, provm da linguagem da msica. Era um termo utilizado na Alemanha, no sculo
XIX, para designar marcas caractersticas da msica de Weber.18
A proximidade existente entre estas duas manifestaes ainda se refora, porque ambas so
artes temporais, isto , artes cujos textos tm uma existncia temporal, quer enquanto
artefactos, enquanto sequncias e signos produzidos por um autor, quer enquanto objectos
estticos, isto , objectos percepcionados e compreendidos por um ouvinte ou por um leitor.
O objecto da audio e o acto de leitura inscrevem-se no tempo e, por isso, ouvir uma
17 Idem. 18 Idem, Ibidem.
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sonata ou uma sinfonia, ler um romance ou um poema, so processos que implicam
necessariamente a memria.
fcil constatar que em Cabo Verde ainda rareia uma reflexo mais aprofundada e
desafiadora sobre a prpria msica, sobre a musicalidade, e at sobre as condies
histricas e scio-culturais do fazer musica e, isso, pode ser encarado como paradoxal, se
levarmos em conta o facto da msica ter manifestaes e gneros absolutamente relevante
no contexto cultural cabo-verdiano e, por se comear a aventar a criao de escolas de
msica.
Colocar em questo a msica significaria aprender a, tambm, disp-la sempre na
relao com o homem e com a cultura, abdicando de uma viso neutra que a v, acima de
tudo, como uma linguagem pura e especfica, ou uma dada manifestao esttica que visa
principalmente a formao de instrumentistas e compositores dentro, sobretudo, de uma
concepo eminentemente tcnica.
Edward Said chama a ateno para a existncia de uma inadequao radical do uso
da linguagem verbal nas referncias que faz da msica. O paradoxo est em que, embora
seja acessvel, a msica incompreensvel19. Ou seja, de certa forma, mesmo as outras artes,
em que pese a especificidade da expresso, parecem amoldar-se bem melhor a uma espcie
de traduo lingustica, do que a msica que, sempre se demonstrou refractria a funcionar
dentro do sistema de signos. Admite-se que pesquisadores, mais familiarizados com a
organizao e o desenvolvimento dos estudos musicais na Europa ou nos Estados Unidos,
poderiam contestar as suas dvidas defendendo que a Musicologia,20
, que teria por objecto
a msica em sentido amplo, possui a envergadura, o rigor e a metodologia necessrios para
suprir a lacuna acima identificada e construir a ponte entre a msica e os demais saberes.
Ento, porque que a msica, apesar da sua universalidade, ainda marginalizada nos
estudos acadmicos, que no a v como uma fonte de manifestao e conhecimento
19 BARBEIRAS Flvio; A Msica Habita a Linguagem: Teoria da Msica e Noo de Musicalidade na
Poesia; Faculdade de Letras da UFMG; Belo Horizonte (2007); P.4. 20 Estudo erudito da msica. Tradicionalmente, a palavra implicava o estudo da histria da msica, mas o
seu significado foi ampliado durante o sc. XX, passando a abranger todos os aspectos do estudo da msica,
incluindo a musicologia comparada e a musicologia sistemtica, esta abordando tpicos como teoria,
educao musical, a msica como fenmeno sociocultural, psicologia e acstica; SADIE, Stanley;
Dicionrio Grove de Msica; Ed. Concisa; Zahar; Rio de Janiro; 1994.
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humano? Ou ser que h mesmo uma separao incomunicvel entre um logos racional que
organiza os discursos epistemolgicos, cientficos e disciplinares e o fenmeno msica?
Ou, ser mesmo que a msica uma barreira ou limite inefvel para a linguagem? Nesse
sentido, at que ponto a superao da metafsica, de que tanto se fala na ps-modernidade,
mesmo possvel sem uma rigorosa tematizao da msica e de tudo o que ela coloca em
questo, incluindo a dificuldade de poder se falar dela?
O estado actual dos estudos musicolgicos apontam, realmente, para uma mudana
qualitativa grande em relao viso vulgar que se descreveu anteriormente e que, de
modo geral, ainda predomina. Em outras palavras, o desenvolvimento da Musicologia vem
contribuindo para tornar menos ingnua a viso de msica, ao procurar envolv-la numa
trama de relacionamentos histricos e sociais bem mais ampla.
Contudo, disciplinas tidas como internas ao campo musicolgico, para muitos, tem
uma abrangncia muito maior do que a prpria Musicologia. Seria o caso da
Etnomusicologia21
, que de um incio histrico limitadamente comparativa, ao confrontar
sistematicamente formas e comportamentos musicais de diversas sociedades e culturas,
passou a se configurar, cada vez mais, como um estudo da msica enquanto aspecto
universal do comportamento humano e, produziu o efeito altamente salutar de pr em
xeque o prprio conceito de msica sobre o qual assentava a Musicologia. Evidenciou
exactamente isto: o facto de msica ser tambm uma palavra, uma representao mental
que ns associamos a uma realidade de mundo, a qual tendemos a absolutizar. Nesse
caminho, a Etnomusicologia demonstrou que, em outras realidades culturais, a msica
desempenha um papel muito mais central do que poderamos supor a partir da nossa prpria
experincia.
As questes que a msica e o universo sonoro colocam ao pensamento e cultura
continuam. Alguns desses impasses comeam a incomodar e a tomar forma nas reflexes
de certos musiclogos. o que pode se deduzir diante de um texto de Jean-Jacques Nattiez:
21 Idem, op. cit.: Ramo da Musicologia em que se nfase o estudo da msica em seu contexto cultural.
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O ritmo no exclusivo da msica: existe um ritmo no desenho, na arquitectura, na dana, no gesto, num verso de Dante, para no falar dos ritmos biolgicos como a respirao e o
batimento cardaco.22
O que se prope, que se considere a existncia de um substrato gentico-
antropolgico do qual derivem todas as formas e prticas simblicas que cada poca e cada
cultura ir diversamente conhecer e nomear. Esse substrato seria uma espcie de modelo
ideal de um ncleo originrio e comum, por exemplo, s artes, mas anterior diferenciao
entre elas que decorre da sua nomeao e categorizao.
No ser discutvel pressupor que a msica seja uma prtica simblica?23 Para
Nattiez, msica uma forma ou prtica simblica na medida em que reenvia aquele que a
cria e aquele que a percebe a diferentes aspectos da realidade, uma realidade certamente
sonora, mas tambm afectiva, concreta, ideolgica.. Ou seja, a insero da msica dentro
desse conjunto dado o seu poder descritivo que nulo, ou quase, dada a ausncia de
referentes do seu discurso s pode mesmo se verificar colocando-se, de certo modo, em
crise a prpria noo enraizada do que seja uma forma simblica a qual sempre teve como
modelo principal a linguagem verbal.
Msica smbolo de qu? Pode-se legitimamente perguntar. Ser que temos que
primeiramente enquadr-la como forma simblica para que a possamos compreender? Ser
preciso valer-se da intermediao do conceito de simblico para relacionar msica e
linguagem? Toda a produo terica de tipo semiolgica, em autores como Nattiez,
persegue justamente esse objectivo. Investiga-se por exemplo, de que modo se
caracterizaria uma semntica musical.
Refutando-se, portanto, a ideia de que a msica nada representa ou significa ela,
ento, teria uma outra forma de representar ou significar. H significado quando um certo
22 NATTIEZ Jean Jacques: Musica e significato. In: Enciclopedia della musica, (vol II) apud: BARBEIRA (2007); P.11. 23 Para o entendimento da msica nesses termos, j se trabalha at com a noo de sistema semi-simblico que seriam aqueles sistemas significantes que no possuem a mesma conformidade entre as unidades do plano da expresso e as do plano do contedo, como ocorre no sistema lingustico (considerado, em
semitica, sistema simblico por excelncia) TATIT Luiz, , Musicando a semitica ensaios. So Paulo: Annablume, 1997; apud: BARBEIRA, Flvio: A Msica Habita a Linguagem, Teoria da Msica e Noo de
Musicalidade na Poesia; Faculdade de Letrras da UFMG; Belo Horizonte, 2007; P.13.
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objecto colocado em relao com um determinado horizonte24
. Ora, dentro dessas
dimenses vastssimas realmente sempre haver significado, posto que, simplesmente,
inconcebvel a existncia de qualquer objecto ou coisa dissociado de um horizonte.
Mais do que ser uma forma simblica, mais plausvel considerar a msica uma
eterna possibilidade simblica25
, como se nela o smbolo estivesse permanentemente em
estado de latncia e, qualquer operao analtica que o buscasse evidenciar acarretasse um
empobrecimento ou uma banalizao. Em suma, a msica de modo algum se reduz s
representaes que se constroem em torno dela. Pode-se ouvir uma msica considerada
lenta e isto provocar um estado de esprito agitado, pode ouvir msica cujo compasso
rtmico mais acelerado e ter uma relao de relaxamento ou calma. Uma msica
dificilmente provocar a mesma reaco, na mesma lgica de no se banhar duas vezes na
mesma gua do rio.
Discutir msica e literatura no ser proveitoso, penso, se nos ativermos, de sada, a
modelos prontos. Embora j saibamos, de certo modo, o que significam os termos msica e
literatura, e partamos inevitavelmente do mbito por eles instaurado, fundamental deixar
um espao aberto para o encontro do inesperado. A articulao desse substrato deve se
construir em torno da noo de literatura. O que no se pretende indicar um lugar, um
abrigo para a msica, como se a literatura, fosse um sistema maior que a englobasse., nem
provar que a msica , em si, uma forma simblica, uma linguagem ou um sistema
semitico, tampouco para compar-la com a chamada linguagem verbal, a fim de elencar
possveis semelhanas e diferenas.
O fio condutor e a hiptese desta tese so a de que msica e literatura no so
instncias separadas e incomunicveis. Independentemente do facto de hoje imaginarmos
coisas completamente diferentes quando deparamos com os significantes msica e
literatura, o principal exactamente o que permanece esquecido sob essa superfcie, ou
seja, a unidade de sentido composta por msica e literatura. A msica na literatura
apenas um ponto em torno do qual se procura exercitar o pensamento, fazendo aparecer
24 NATTIEZ, Ibidem P.13. 25 BARBEIRAS (2007); op. cit; P.14
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aqui e ali outras maneiras de se entender a relao. Pretende-se apenas indicar uma
impossibilidade radical de distanciamento entre as duas manifestaes. Ficam aqui, dentro
do possvel, suspensas as categorizaes tradicionais e, no porque elas sejam
necessariamente iludidas ou invlidas, mas, para que surja a possibilidade de se pensar de
uma outra forma, ou de se pensar o que, se calhar, at aqui, no foi suficientemente
pensado.
1.1 Msica e Literatura: Comparao e Articulao
rien ne plonge plus profondment au coeur de lme que le rythme26
Cada cultura caracterizada pelo respectivo contexto cultural, ou seja, o conjunto de
conhecimentos predominantes, de ideias estabelecidas, de crenas admitidas, de normas
aceites, dos valores e condutas especficas de cada sociedade. A vida social
eminentemente gregria, constituda de unidades irredutveis formando redes que do
configurao ao tecido social. A especificidade cultural uma caracterstica dos grupos e
das sociedades, as quais diferem enquanto conjuntos culturais, com indivduos que tm
diferentes sistemas interiorizados mas que so considerados como a simples soma de
componentes mentais inseparveis.27
Uma vez apreendidas e partilhadas, as normas e
valores culturais contribuem para que determinado nmero de pessoas forme uma
colectividade particular, passvel de ser reconhecida e distinguida pela sua especificidade.
Os sistemas simblicos que resultam da interaco social e da manipulao do cultural
so uma apropriao do mundo; tais sistemas somente adquirem significado dentro das
26 [nada mergulha mais profundamente ao corao da alma que o ritmo], COLLOT (1997), apud: SOUZA,
Marly Gondim Cavalcanti; Anlise Msico-Literria dos Poemas de Walt Whitman, Antnio Francisco da
Costa e Silva e Leopold Sedar Senghor; Recife 2006; P.29. 27 FILHO, Joo Lopes, Introduo Cultura Cabo-verdiana; Instituto Superior de Educao; Praia 2003;
Pg.47.
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unidades socioculturais onde nascem, suscitando, assim, reaces emocionais e
comportamentais semelhantes.28
A cultura integra um conjunto multifacetado e interdisciplinar de ideias, saberes,
atitudes etc., em que, os seus elementos no se encontram justapostos uns relativamente aos
outros, encontrando-se, antes, unidos por laos e relaes de coerncia, porque alteraes
efectuadas num determinado sector, implica mudanas noutras reas da mesma.
Comparar um procedimento que faz parte da estrutura do pensamento do homem e
da organizao da cultura. Por isso, valer-se da comparao hbito generalizado em
diferentes reas do saber humano. Compara-se, ento, no apenas com o objectivo de
concluir sobre a natureza dos elementos confrontados, mas, principalmente, para saber se
so iguais ou diferentes. No entanto, quando a comparao empregada como recurso
preferencial no estudo crtico, convertendo-se na operao fundamental da anlise, ela
passa a tomar forma de mtodo e comea-se a pensar que tal investigao um estudo
comparado29
. Pode-se dizer, ento, que a literatura comparada compara no pelo
procedimento em si, mas porque, como recurso analtico e interpretativo, a comparao
possibilita a esse tipo de estudo literrio uma explorao adequada de seus campos de
trabalho e o alcance dos objectivos a que se prope.
O desenvolvimento da Literatura Comparada ao longo do sculo XX alargou
consideravelmente os limites da disciplina. Pouco a pouco, foi-se diluindo a antiga busca da
identificao das famlias, das fontes e influncias entre autores e sistemas, para incorporar
um dilogo cada vez mais abrangente com outras reas do conhecimento de modo a melhor
fundamentar o estudo literrio. A lgica que sustentava o comparatismo tradicional toda
ela baseada nos dualismos modelo/cpia, fonte/influncia, centro/periferia, entre outros de
natureza semelhante tem sofrido um continuado processo de desconstruo30, no sentido
de se quebrar as amarras da dependncia de fundo colonial.
Estudos mais recentes de Literatura comparada tm-se pautado pelo cruzamento da
literatura com sistemas semiolgicos diversos como o cinema, a pintura, o jornalismo e a
28 Idem, Pg.48 29 SILVA, Maria Gronzato da; Literatura Comparada I; ed. Artculturalbrasil; Arapangas Paran in: [email protected] (27/06/2010). 30 BARBEIRAS (2007); op. cit.; P.41.
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arquitectura urbana, entre outros, configurando um carcter interdisciplinar discutido,
sobretudo, pela escola Norte-Americana. Segundo os crticos, essa abertura para estudos de
natureza cultural significa uma ampliao do horizonte comparativo na actualidade, por
descentrar o lugar hegemnico ocupado pela literatura e por avanar no sentido de
introduzir novos termos de comparao.
H tericos mais preocupados com a perda da hegemonia do objecto literrio num
mundo cada vez mais referenciado pela imagem e pelo espectculo. Deve absorver novos
termos na sua base de comparao e confrontar metodicamente a literatura com outras
manifestaes culturais, at como modo de melhor contemplar sua circulao na
sociedade.31
Incluem-se tambm nesse conjunto, ensaios voltados a questes mais amplas
da cultura e da vida social que no prioriza a literatura como centro de investigao, mas a
encaram como mais um fato ou manifestao no conjunto dos processos culturais.
No cenrio ps-colonial no restam dvidas que o contexto sociocultural como o
cabo-verdiano, por exemplo, em que no havia quadros suficientes para as necessidades do
pas, historicamente marcado pela baixa escolaridade no meio rural, e pelo reduzido
contingente de leitores, a divulgao de obras literrias precisava se adaptar a meios e
suportes que no apenas o livro. Alm do cinema e da televiso grandes divulgadores de
narrativas tambm a msica pode desempenhar, nesse sentido, um importante papel, no
apenas da maneira que lhe mais caracterstica, isto fazendo circular textos inditos sob a
forma de letras de cano, mas tambm absorvendo poemas preexistentes e relanando-os
como obras musicais a um pblico mais amplo.
A linguagem, seja ela expressa atravs dos sons ou atravs dos signos lingusticos,
flui carregada de sentimentos que no so necessariamente os que o artista experimenta ao
compor sua obra; so sentimentos pelos quais ele pode ser afectado atravs da vivncia de
outras pessoas ou at de sua imaginao que, por sua vez, podem ser totalmente distintos
daqueles que brotam no receptor, ao ter contacto com a obra. O que deve ser sempre
procurado uma relao de referncia com um mundo, com uma lngua, porque, caso
31 Idem, P.34
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contrrio, constituiria uma quebra de cdigos e, consequentemente, o isolamento, a no
comunicao.
E o ser humano, porque no passvel de diviso em partes ou em fases do conhecimento,
de acordo com o momento e com a aco a ser desenvolvida, vive cada instante como uma
unidade integral. A fisionomia no se define por um s trao de cultura.32
A complexidade
conduz suas produes para um ponto de encontro, de convergncia. Cada criao ou
recepo de uma obra constitui uma sntese de todo o ser que se entrega a este acto.
O mundo actual da globalizao parece ter em si uma grande contradio, um
cancro, isto porque, as experincias tecnolgicas aplicadas comunicao, criadas para
uma sociedade global, tm conduzido a sociedade a uma vivncia isolada, individualista,
cada dia mais forte. J no comum a roda de pessoas sentadas porta de casa
conversando sobre os acontecimentos do dia. A prtica cada um encontrar-se apenas
indirectamente com os outros, porque o contacto se faz, na maior parte das vezes, atravs
de um meio, de um instrumento seja ele telemvel, computador, um rdio ou uma
televiso a ss.
Esse indivduo assim se apresenta descontextualizado por conceitos estranhos sua
realidade, oprimido por avaliaes que exigem o inutilizvel, preso a teorias educacionais
ultrapassadas por um mundo com novos valores, alheio a processos de articulao msica e
poema como ferramentas de percepo artstica sob os estratos de ritmo e mensagem.
Ao buscar-se a articulao entre a expresso melopotica de uma msica, integrada
expresso literria de um texto, tal sentido de dialogismo pode residir, por exemplo, na
composio de um conjunto de actividades envolvendo msicas e textos-base aplicados.
Tais msicas e textos visariam o estabelecimento de novos paradigmas educacionais, e
inter-artsticos, para a compreenso da sociedade ps-moderna.
Em algumas pessoas grande a unio entre msica e literatura que sucedem casos
como o do brasileiro paulistano Vtor Martins, que contumaz ouvinte de rdio, no
conseguia memorizar as letras das canes. Recriava ento outros versos para as melodias
32 FERREIRA Manuel; Cabo Verde visto por Gilberto Freyre; Praia 1956; 3ed, Pltano Editora, Lisboa.
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que ouvia33
. Este, no conseguindo apreender aquilo que os artistas da msica popular
expressavam, desviava a percepo para outro caminho o de compor textos motivados por
uma melodia. Dois romancistas brasileiros Chico Buarque, um msico, em Budapeste
(o seu melhor romance) no usa msica como tema, nem se deixa influenciar pela tcnica
musical. Ao passo que Autran Dourado, que no msico, no romance A pera dos
Mortos, inspira-se na pera, como o prprio ttulo diz.34
Em Cabo Verde temos o escritor, musico e compositor Mrio Lcio que nos afirma que:
quando escrevo fico ou narrativa escolho a msica que eu escuto durante a escrita e a
msica que me dita o ritmo e o sentimento, a harmonia geral que eu quero passar para a
obra.35
Partir de um texto, seja ele musical ou literrio, e perceber seu sentido profundo
abre horizontes infinitos, porque ambas as escrituras so uma sntese complexa que
ultrapassa de longe os signos usados. Assim, nulo pensar que se pode criar ou perceber
uma obra de arte, usando apenas uma ou outra perspectiva. Os textos pretendem conter o
universo imaginado enquadrado na sintaxe da escritura; tambm, sabido que os textos
artsticos mexem com o imaterial, com as emoes e com as impresses, tentando colocar
tudo em linhas / pautas. Consequentemente, a leitura de um texto ser tanto mais limitada
quanto mais realizada, fundamentada em apenas um aspecto do saber. Ou, por outro lado,
ser tanto mais abrangente quanto mais aspectos forem tomados como ngulos possveis de
apreciao. Da poder se observar em obras lricas outras estticas que penetram o texto,
activando a dinmica da sua criao/percepo. Veja-se em que aspectos a msica pode
marcar presena na obra lrica.
Paul Valry36
, sempre que se refere potica apela comparaes com a msica,
pois, constata nos seus estudos, uma analogia entre a esttica musical e a do som da lngua,
33 BRASIL (retratos poticos, 2003), in: SOUZA, Marly Gondim Cavalcanti; Anlise Msico-Literria dos
Poemas de Walt Whitman, Antnio Francisco da Costa e Silva e Leopold Sedar Senghor; Recife 2006; P.30. 34 Entrevista a Armnio Vieira no dia 22/06/2010; Praia. 35 Mrio Lcio entrevistado a 13/09/2010. 36
Escritor francs (1871-1945) que possui reflexes sobre pintura, msica, linguagem e cincias. Publicou
poesia (Jeune Parque, 1917 e Charmes, 1922), ensaios (Varit, 1924 1944), dilogos de forma socrtica (me et la Danse, 1923). Obra pstuma: Mon Faust; (), a viso da literatura como ars combinatoria (Fil. Processo de derivar ou inventar novos conceitos ou juzos mais complexos pela combinao lgica de
conceitos ou juzos mais simples ou primitivos) e a defesa da gratuidade da arte, da inexistncia de um
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apresentando a msica como portadora de caractersticas fundamentais para uma anlise
literria. Pelo aspecto sensorial-corporal, a msica penetra o poema atravs do ritmo, das
rimas, das sonoridades das palavras exploradas. Inclui o impulso rtmico gerador presente
na primeira fase da criao/percepo de uma obra lrica. O vocabulrio musical aparece
atravs do uso de palavras ou de expresses do universo musical (termos da teoria musical,
nome de compositores, nome de obras e outros agentes ou musas inspiradoras)
responsveis por criar no leitor / ouvinte a experincia sonora. O aspecto funcional37
e
estrutural abrange as tcnicas de composio musical, quando responsveis pelas estruturas
nas quais o poema se desenvolve. A msica possuidora dos dois momentos em si: a que
est fixada no papel a partitura, o texto e a que fica retida na memria sonora. A escrita,
ou a representao grfica de um som, tem tambm um valor em si, como signo visual, e
sua transformao em evento sonoro uma outra etapa de leitura do signo,
independente.38.
Sendo a literatura uma arte, possui toda a carga emocional e holstica da palavra e,
como tal, exige o envolvimento de todo o ser daquele que a l, requer a entrega do amante,
sem restries, e no apenas do intelecto, parte s vezes suposta como nica necessria para
a leitura. Sem dvida, a leitura de um texto literrio pode tornar-se num acto
completamente sofrido, spero e sem sentido, quando a preocupao for apenas a anlises
de estruturas lingusticas ou de aspectos da forma literria em si.
Estruturas textuais praticadas por artistas sensveis s diversas solues de
expresso artstica tm fornecido material favorvel ao mltiplo olhar: o caso de Stphane
Mallarm que encontra em James Joyce um arsenal de situaes-desafio na evocao das
linguagens39.
As obras poticas, no momento em que chegam ao receptor, o que almejam antes
aventar, insinuar, sugerir do que dizer. So obras que partem de um ntimo e se dirigem a
um outro ntimo. Obras cuja significao confundida com o sentido e aponta para uma
objecto determinado para o jogo ritual que a poesia; in: COLAO, Jorge; VICENTE, Geoge; Enciclopdia
Verbo Luso-Brasileira de Cultura, Ed. Sc.XXI Editorial Verbo, 2003. 37 SOUZA (2006); op. cit.; P.31 38TRAGTEMBERG Lvio. Artigos musicais. So Paulo: Perspectiva, 1991 apud: SOUZA (2006), op. cit;
P.32. 39SOUZA (2006) op. cit. P.33
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direco, para um caminho, em que a subjectividade caracterstica e, as palavras gozam
de uma maior liberdade semntica e, por isso, fogem uma s significao ou
interpretao, a um s sentido. Significao esta que se encontra suspensa, quando
entendida como significado ltimo ou como inteno significante, como verdade ou ainda
como comunicao40
.
1.2 O Som na Palavra, a Msica na Linguagem
A linguagem uma dimenso originria em relao literatura e msica, permite-
lhes a manifestao, mas com elas no se confunde por no se reduzir a um meio de
representao da realidade com base em signos ou sons. Pode ser compreendida de certa
forma como dimenso onde se manifesta o sentido. Ela no um elemento de mediao
entre o homem e o mundo, como a literatura e a msica, mas a prpria nomeao. a
linguagem como a deve ter entendido Herclito no seu fragmento 50: Auscultando no a
mim, mas ao Logos, sbio concordar que tudo um41. Isto , a linguagem, como
Logos, produz e revela a unidade. Logos, aqui, guarda o sentido grego de reunio, de um
dizer que rene e resguarda: Logos rene linguagem e realidade enquanto sentido e
verdade, identidade e diferena; a unidade de reunio da tenso de contrrios do real, em
sua ambiguidade abismal e misteriosa.
Verifica-se que h uma dissociao entre msica e conhecimento, dissociao como
fruto de um determinado modo de se conceber a linguagem que privilegia nitidamente a sua
capacidade de significao e de produo de conceitos. Essas dificuldades no se
relacionariam apenas a uma simples questo epistemolgica, nem seriam um problema ou
uma particularidade do objecto msica. Decorridos alguns sculos de histria, uma
manifestao absolutamente fundamental como a msica ainda no encontrou um lugar
duradouro nas preocupaes tericas. Se, como constatou Edward Said, ela est distante
40 NANCY, Jean-Luc; Ncessit du sens In: FINCK, Michle (Org.), apud: SOUSA (2006), op. cit; P.33. 41 LEO, Emmanuel Carneiro; Os pensadores originrios; apud: BARBEIRA (2007); op. cit. P.19.
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23
tanto das preocupaes quotidianas quanto das intelectuais42
porque, h algo mais
radical que a mantm separada do modo de estruturar o conhecimento, ou seja, algo de raiz
cultural e do modo de ver o mundo. Parece que h fundamentalmente uma disjuno, um
hiato incontornvel entre a realidade que a msica e aquilo que a teoria pode expressar.
Uma das causas levantada para reflexo, para identificar os motivos dessa separao
o videologocentrismo43 que caracteriza a tradio ocidental, em que o prefixo vdeo-,
acentua a matriz visual da metafsica que representou o afastamento do universo sonoro das
preocupaes da filosofia ocidental e, que relegou voz, som e msica a um plano
secundrio em relao a um suposto verdadeiro conhecimento.
Ento, torna-se claro que as dificuldades de uma teoria da msica, ou a falta de um discurso
lgico sobre a msica, que consiga inclu-la em nossas tentativas de ordenao ou
desordenao da realidade, no podem ser absolutamente dissociadas de um
questionamento da prpria actividade terica e da prpria lgica enquanto um uso
determinado da linguagem para a explicao do mundo.
Essa pista do videologocentrismo, para explicar a disjuno entre msica e
conhecimento, associa-se a um momento especial em que a prpria linguagem verbal
rompe com a prioridade absoluta do significado, em que ela diferencia-se justamente do seu
uso logocntrico (logocentrismo sintetiza com muita felicidade exactamente aquilo que a
metafsica privilegiou e que a msica no pde suprir: o apego a uma suposta realidade
dos significados veiculados pela linguagem verbal)44
. Esse momento, sem dvida, a
poesia.
Gerd Bornheim, no ensaio Sobre a linguagem musical,45
inicia o texto com uma
ressalva: De todas as artes, a msica talvez a mais difcil de ser interpretada. Frase que
tambm anuncia a principal discusso do ensaio, isto , a clebre dificuldade de abordar a
msica com os recursos da linguagem abstracta e conceitual da filosofia. Embora a palavra
42 BARBEIRA (2007), Op. cit.; P.18. 43 Idem. 44 Ibidem. 45 Ibidem; P.21
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24
seja muito mais prxima da msica do que das artes plsticas pensar o fenmeno musical
uma tarefa bem mais rdua, afirma o autor.
Realmente, h todo um tipo de poesia que busca conscientemente
aproximar-se da msica; e o verso, o ritmo potico, no passam no fundo de
fenmenos musicais. A chamada msica programtica, por exemplo,
avizinha-se do literrio, tendendo ao narrativo; e quando a msica se serve da palavra, seja individual ou coral, sente-se muitas vezes que a palavra
como que brota, com uma espcie de necessidade interna, de dentro da
prpria msica.46
Essa proximidade entre palavra e msica, o fato elementar de a palavra compartilhar
a sonoridade musical, nada disso, contudo, facilita o relacionamento entre ambas quando se
trata de dizer a msica ou de indicar aquilo que a msica diz. que a palavra
explicitamente sonora da literatura ainda no a mesma palavra conceitual da filosofia,
aquela est de tal modo fincada no plano fsico que se adapta mal convencional funo de
signo, encontrando-se mais prxima, talvez, da concepo mtica da palavra originria que
traz consigo, na sua enunciao, a presena da coisa, a presena de todo um mundo. Ao
contrrio do conceito, que sai completamente do corpreo, em benefcio de uma abstraco
racional, meta-fsica, a palavra sonora depende do voclico; nele, e somente nele, adquire
sentido e sobrevive. Tanto assim que a poesia, que a sua manifestao natural, carece
quase invariavelmente de uma leitura em voz alta que manifeste a plenitude do ritmo e
revele aquilo que a absoro silenciosa por si s talvez no consiga perceber. Palavra
sonora est tambm presente na arte da representao teatral, como esclarece o autor:
Precisamente o facto de
que a dico se liga de modo essencial a uma lngua determinada, empresta
ao tratamento sonoro das slabas os breves e longos, os altos e baixos o poder de explicar o sentido do texto. A interpretao do actor se prende antes
de mais nada ao fenmeno sonoro.47
O parentesco da msica com a palavra, possibilitado pelo elemento comum que o
som, desaparece, ou pelo menos se dilui, quando entra em cena a linguagem conceitual,
aquele tipo de organizao discursiva formada e consolidada em solo grego a partir de
Plato. Com efeito, essa uma passagem que de certo modo funda a metafsica e
determina o futuro de sculos de filosofia ocidental. A linguagem, em Plato, adquire uma
46
BORNHEIM Gerd; Metafsica e Finitude; apud: BARBEIRAS (2007); P.22. 47 BARBEIRAS (2007); P.23.
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25
funo: expressar significados que se aproximem o mximo possvel do mundo
transcendente das Ideias supra-sensveis, do mundo metafsico que encerra a verdade do
real.48
Esvazia-se, ento, por meio da reduo simblica que ir caracterizar a relao
significante/significado, o carcter sagrado da palavra; desfaz-se o poder presentificador da
linguagem. Empenhado numa tarefa abstracta e racional, o lgos despreza o seu elemento
fsico o som que passa a ser representado como uma interferncia na clareza da
significao, uma intromisso inquietante at, na medida em que capaz de comprometer a
pureza e a transparncia dos significados cunhados pelo discurso. Perigoso, corpreo e
irracional, o som confinado no plano secundrio do sensvel e do ininteligvel49
o
espao imperfeito das sombras descrito pelo filsofo grego no famoso Mito da Caverna,
exemplo clebre e lapidar desse amor helnico pelo olhar. Um dos intentos principais de
Bornheim reabilitar todo o plano do sensvel, seguindo a constatao de que ele
justamente aquilo que foi deixado de lado no construto metafsico desde as decises e
escolhas platnicas. Na e para a elaborao e afirmao do logos metafsico uma das
vtimas foi o som, a msica, impedida de compartilhar o valor de verdade que somente o
poder representacional e significante do discurso racional era capaz de produzir e guardar.
O facto que os estudos que se debruam sobre a msica, encurralados pelo seu
baixo poder de representao, comummente tratam esse objecto como um sistema fechado
em si mesmo, como uma linguagem neutra, assptica, que se transforma apenas em razo
da mudana nas suas prprias leis de funcionamento. Nesse raciocnio, seria musical, e
portanto digno de anlise, s o que diz respeito organizao do discurso sonoro
cristalizada na obra, praticamente todo o resto sendo tachado de extra-musical e, como tal,
remetido ao estudo de cincias como a Antropologia, a Histria, a Sociologia etc. a
anlise musical hermtica, fechando-se completamente s relaes da msica com o
mundo. Da Bornheim50
poder dizer que a anlise objectiva se resume ao pr-musical, ou
48 Idem, P.23. 49
A beleza e o encanto da fala socrtica no devem ser procurados no nvel da expresso sonora e do significante acstico o lado apenas exterior, aparente e superficial do discurso mas no plano do contedo, na ordem dos significados, na esfera videocntrica e notica do pensamento. O efeito encantatrio
tpico da msica no recusado e inclusive chamado em causa, mas a sua direco decididamente
alterada: no discurso, belo o espectculo contemplativo das ideias. Sai de cena o ouvido corpreo para a
entrada triunfal do olho notico. CAVARERO Adriana, A pi voci; apud: BARBEIRAS (2007). 50 BARBEIRAS (2007) op cit.
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seja, dedica-se msica antes que ela propriamente acontea como manifestao humana,
social ou cultural.
Por outro lado, diante da falta de um plano semntico e da inexistncia de conceitos
ou supostos contedos verificveis externamente ao enunciado, o comentrio sobre a
msica tende a reflectir no mais que uma experincia individual de audio, realizando
uma traduo verbal dos efeitos que os sons despertam no ouvinte singular, sem garantias
mnimas de articular universalidade e consenso. No Romantismo chegou-se mesmo a uma
expresso terica dessa abordagem exactamente porque, seguros da verdade de um mundo
fundado no indivduo, os romnticos no temeram apontar a msica como a linguagem
representativa dos sentimentos, dos afectos, daquela interioridade subjectiva que excedia as
palavras.
O caminho, ento, para uma reabilitao do musical, para a interpretao da cultura
deve ser outro, fora dos limites de um campo disciplinar especfico, constituindo-se numa
experincia que, em vez de perseguir a elaborao de mais um discurso sobre a msica,
coloque em xeque os momentos constitutivos desse exlio da msica no horizonte
ocidental. Alm disso, essa experincia deve procurar abrir nossos ouvidos l onde o
musical emerge no nvel das palavras, onde, de algum modo, h uma falha na rigidez
imperial da racionalidade, da semanticidade, da visibilidade, e onde, num atrito entre melos
e logos, e mesmo que metaforicamente, a msica se faz linguagem e esta se transmuta em
msica.
possvel analisar o ritmo musical de modo autnomo, sob a faceta do factor
emocional51
. Tambm que as frmulas rtmicas apresentam uma organizao temtica,
podendo suscitar sentimentos particularizados, como os de admirao, satisfao, prazer e
jbilo; de ateno, tenso e contrio; de f, esperana e amor. Por outro lado, reconhece
que a msica no pode, por si s, traduzir sentimentos definidos ou paixes, mas que, por
meio de movimentos fsicos, qumicos, fisiolgicos e emotivos, que ela provoca, pode
51 SOUZA, Jos Geraldo de (2005); apud: CAMPOS Marco Donisete de; REIS, Clia Maria Domingues da
Rocha; Entre o Poema e a Partitura: A Valsa de Casimiro Abreu; Belo Horizonte; n.15; 2007; P.64;
www.googleacadmico.com (5/04/2010).
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exprimir o inexprimvel e comunicar o incomunicvel52. A dificuldade de definio
obriga o autor a optar pela negatividade e pela generalizao em relao ao que a msica
desencadeia: o inexprimvel e o incomunicvel. Isso implica em dizer que a msica
consegue atingir e envolver de imediato a alma do ouvinte despertando nele emoes as
mais fecundas e inconscientes, impossveis de serem verbalizadas.
Focaliza-se aqui, no compreender o Texto, mas compreender as possibilidades de
este ser compreendido. Na msica, aquilo que nos permite compreender o texto enquanto
significncia est presente metfora da msica. E esta para alm da reescrita de uma
partitura.53
Pode ser, tambm, metafrico, mas por isso mesmo iluminante falar, por exemplo,
da msica do pensamento, da musicalidade de um jogo como o futebol, ou ainda de uma
pintura e de uma paisagem musicais etc. A msica do pensamento pode querer dizer, por
exemplo, que alm do que est dito pelas palavras, alm da coerncia lgica exigida pela
exposio argumentativa, o discurso ainda consegue seduzir, encantar, hipnotizar o ouvinte.
Da mesma forma, a partida de futebol merece o adjectivo quando no se limita aos lances
mecnicos e consegue impor ritmo, leveza, dinamismo e genialidade, onde jogadores como
Leonel Messi e Ronaldo fazem levantar estdios de milhares e milhares de pessoas
emocionadas, em lances que em linguagem desportiva diz-se obra de arte. Por sua vez, o
quadro ou a paisagem podem ser musicais na medida em que, de alguma forma, incita a
uma nova possibilidade de ver e de sentir, pela harmonia que despertam nos olhares. Ora,
se a prpria linguagem em seus caminhos de abertura do mundo nos oferece a possibilidade
de pensar a msica de forma ampla, por que insistir em tranc-la exclusivamente na
especificidade da abordagem tecnicista que nunca poder vislumbrar justamente a ponte
que liga a msica ao todo da cultura?
interessante notar que tal como a msica, o potico, como metfora, tambm
pode se achar em toda parte. Poesia e msica, afirmam os manuais, so artes irms,
nasceram juntas e, no Ocidente, s foram separar-se depois de muito tempo, inventadas a
escrita e, sobretudo, a imprensa.
52Idem, op cit. 53 BARTHES, Roland; Leituras de Roland Barthes; Universidade Moderna; Publicaes Dom Quixote;
Lisboa 1982; P.232.
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No encontro entre msica e linguagem, o espao privilegiado em que ele se d a
poesia, onde se verifica uma maior explorao do poder e da imagem sonora das palavras
que provocam identificaes. Como afirma Senghor:
Quando escrevo um poema, estou verdadeiramente inspirado. Fico num estado
que, sem que me canse para construir meu plano, para procurar minhas imagens, meu ritmo ou a melodia, o canto me vem todo por completo com suas imagens
simblicas e meldicas, ritmadas com contratempos e sncopes. (...) Depois de ter
escrito o poema, retorno a ser professor e corrijo meu texto. Ento, no mudo nem as imagens, nem o ritmo do versculo, mas tal palavra ou tal concordncia sintctica.
54
Assim, mesmo quando no estamos falando de manifestaes hbridas como a
cano, nunca realmente abusivo aludir musicalidade do poema ou, de outro lado, ao
carcter potico ou lrico (palavra, alis, que nomeia a prpria interseco entre msica e
poesia) de uma obra sonora.
Alm disso, o encontro potico-musical cria o espao para aprofundar aquele ponto que
Gerd Bornheim apenas indicou, ou seja, a co-naturalidade de palavra e som, de msica e
linguagem, esquecida pela tradio lgico-discursiva da filosofia e da epistemologia. Ento
questiona-se: por que a msica, ou a musicalidade, em geral ignorada em outros contextos,
constantemente reivindicada na teoria da poesia como um anseio do poema?55
O que une
e o que separa a msica da poesia? O que significa exactamente, para a teoria da poesia, a
noo de musicalidade?
Estas perguntas continuam apontando caminhos. Nesse sentido, o dilogo com a poesia e
com a teoria potica promete render frutos por, pelo menos, dois motivos: 1) a poesia
sempre manteve uma relao estrutural ou de proximidade com a msica, no sentido das
questes levantadas acima; 2) a poesia revela que a mesma palavra que foi o instrumento de
excluso do som e da msica num contexto histrico especfico, fundamentalmente
sonora e, tal como o som, plurvoca. Pode-se considerar, ento, que na relao entre msica
e poesia h duas direces de anlise fundamentais: uma que parte da matria-prima som,
do elemento musical por excelncia, e investiga sua manifestao na palavra; outra que
parte da msica como metfora para a poesia, num procedimento que traz luz a
ambiguidade tpica do discurso potico.
54
URBANIK-RIZIK, Annie; tude sur Lopold S. Senghor thiopiques. Paris: Ellipses, 1997 in: op cit. SOUSA (2006), P.183. 55 BARBEIRAS (2007); op. cit. P.31.
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1.3 Exemplos da Relao Melopotica
A melopotica caracterizada, entre tantas possibilidades, sobretudo pelos estudos
que se baseiam em eventuais analogias estruturais de obras musicais e literrias. O criador
da designao foi o professor e crtico hngaro Steven Paul Scher.56
Calvin Brown (em
1948) cunhou o termo melopotica para estudos dedicados iluminao recproca entre
literatura e msica (do grego mlos/canto + potica). Ao delinear as tipologias dessa
relao intersemitica, Brown distinguiu trs tipos de estudos, classificados de acordo com
a natureza do objecto. As trs formas de se estudar a melopotica so: msica e literatura,
literatura na msica e msica na literatura.
O que nos prope Solange de Oliveira a explorao das possibilidades do que ela
mesma denomina melopotica cultural, ou seja, uma abordagem msico-literria que
enfatiza as implicaes culturais de referncias musicais57
. As analogias estruturais de
obras musicais e literrias, certamente os mais numerosos desse campo disciplinar, buscam
em diversas formas musicais (tema e variaes, sonata, fuga etc.) ou em procedimentos
composicionais (contraponto, harmonia, polifonia etc.) modelos e referncias para a
anlise e interpretao da obra literria e, vice-versa, o quanto as formas literrias
influenciam na composio musical e na crtica musicolgica. Trata-se do caso tpico de
considerao de msica e literatura como sistemas que podem ser comparados no nvel da
organizao interna exactamente por servirem-se, como veremos, de uma lgica discursiva
no mnimo semelhante.
56 OLIVEIRA, Solange de; Literatura e Msica, 2003; P.43. 57 OLIVEIRA; 2003 Op cit.
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Por seu turno, Flvio Barbeiras faz referncia ao ensaio de Silviano Santiago
intitulado A estrutura musical no romance: o caso rico Verssimo58
, que implicitamente
seguindo os procedimentos de investigao da melopotica, pega dos princpios da
composio musical para exemplificar diferentes processos de estruturao da narrativa em
romances de autores como Mrio de Andrade (Macunama), rico Verssimo (Caminhos
cruzados e Clarissa) e Andr Gide (Os moedeiros falsos). E que aponta como caracterstica
comum a essas obras, a tentativa, no mbito ficcional, de uma harmonizao, um pr em
relao, nunca como mera sntese, de vozes dissonantes e heterogneas, alm da
articulao, pela narrativa, de materiais que num primeiro momento parecem demonstrar
absoluta incompatibilidade.
No entanto, Amaro, personagem de Clarissa, e Mrio, o autor, se encontram no desejo de buscar uma forma que possa harmonizar e dar
sentido ao heterclito, e uma forma musical, a rapsdia, que vai dar conta
do compsito (o termo de Flaubert), sem que cada elemento perca a condio essencial de alteridade. A composio musical entra no universo
romanesco dos dois brasileiros assim como um elemento catalisador
precipita a combinao de elementos heterogneos numa experincia
qumica. No outra a razo pela qual Mrio de Andrade d como subttulo para Macunama uma rapsdia59
Segundo Silviano Santiago, cada um dos autores, ao deparar com a necessidade da
harmonizao na narrativa, ofereceu uma soluo prpria, sempre passvel de ser
confrontada com um princpio de composio musical. Quanto interpretao da
elaborao levada a cabo no romance, diz que se tratava de combinar dois conjuntos
dramticos de personagens, inicialmente presumidos pelo prprio escritor como
incompatveis. Ento, a soluo encontrada foi a de tratar os materiais de modo a justap-
los e imbric-los; tal como, na msica, procedia o compositor francs Csar Franck com
motivos pertencentes a andamentos contrastantes como o allegro e o andante.60
Acrescenta que medida que o texto ganha corpo e personagens, Andr Gide v-se
obrigado a questionar o modelo musical que elegera a princpio e, promove a atomizao
do narrador, esquartejado em nmero de partes equivalente ao nmero de personagens
importantes que havia no romance. A analogia possvel com a msica passa a ser, ento,
58 Silviano, SANTIAGO; Nas malhas da letra; apud: BARBEIRAS (2007) op cit; Pg.42. 59 BARBEIRAS (2007); op. cit. P.42. 60 Idem; P.43
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no mais a justaposio de Csar Franck, mas a mobilidade da Arte da Fuga de Johann
Sebastian Bach.61
Essa correspondncia, pode-se supor que resida no fato de o tema de uma Fuga62
,
qualquer que seja, ser sempre apresentado em diferentes tonalidades no decorrer da pea,
fazendo com que seja ouvido, a cada vez, com um colorido prprio. A referida atomizao
do narrador, portanto, encontraria ali uma analogia com esse tipo de organizao musical,
devendo-se observar, contudo, que a identidade do tema musical na Fuga se mantm
inalterada, a despeito das nuances tonais, ao contrrio, como afirma Silviano Santiago, da
identidade do narrador do romance efectivamente mudar.
O confronto msico-literrio na metodologia da melopotica no privilegia uma real
relao entre as duas manifestaes, apenas limita-se a colocar, lado a lado, as estruturas
literrias e musicais, dando como facto certo e incontestvel que ambas as artes so
sistemas semiticos diferentes. O que se termina por comparar so apenas os efeitos
diversos que uma mesma lgica discursiva63
produz ao agir sobre materiais distintos som
num caso, palavra (signo) noutro.
Muito mais interessante do que uma analogia estrutural, quando identifica-se uma
interferncia de ordem musical sobre a linguagem, produzindo consequncias directas na
organizao do pargrafo, na harmonizao das vozes em alteridade e na simultaneidade
meldica, isto , quando aquilo que seria prprio da msica invade o cdigo verbal e revela
potencialidades comummente desprezadas da linguagem. Revela-se um efeito muito mais
encantador do encontro msico-literrio captado pelo mesmo Silviano Santiago ainda no
texto que Flvio Barbeiras vinha se referindo e que, desta vez, diz respeito ao romance
61
A referncia retirada do prprio romance de Andr Gide no momento em que o personagem Eduardo
revela: O que eu queria fazer, compreendam-me, qualquer coisa que seria como a Arte da fuga. E no vejo por que o que foi possvel em msica seria impossvel em literatura... (citado e traduzido por Santiago) Idem; P.43 62
O ciclo Arte da Fuga um conjunto de vrias peas, todas derivadas de um nico tema que tratado, em
cada uma delas, de um modo prprio. Idem, Ibidem,P.43 63
Porque o desenvolvimento das formas e dos procedimentos de composio musical no Ocidente e at certo ponto daquilo mesmo que entendemos comummente como msica ou como linguagem musical inseparvel do modelo lingustico (literrio, potico, retrico), e no apenas se consideramos a msica vocal,
em que essa constatao bvia, mas inclusive nos domnios da msica instrumental ou da chamada Msica
Pura, Ibidem P.44
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Clarissa, de rico Verssimo. Surge, ento, uma contribuio original, pois a voz do
narrador desaparece para dar lugar, na expresso de Santiago, a um imenso e sensvel
ouvido:
Nesse momento, confuso colorida de feira, diz o romance, o narrador retira de cena os personagens enquanto individualidades e deixa na pgina
apenas as vozes heterogneas, sem origem e sem assinatura, vozes estas que
perdem, portanto, a sua condio de articuladora de frases com um sentido
lgico, expressas por uma personalidade autnoma, e passam a ser apenas material para uma anotao musical. Esse o momento em que o som
fontico transforma-se em puro som musical.64
A transformao progressiva do narrador num imenso e sensvel ouvido65
indica a
superao da tentativa de retratar a penso apenas pelo tradicional discurso descritivo e
lgico linear. Trata-se de um pargrafo musicalmente construdo, compreensvel no mais
para o simples leitor-de-frases que at aqui acompanhava a histria, mas para um ouvinte
aberto s possibilidades de configurao de sentido que advm exactamente da
simultaneidade, da polifonia bablica da penso, receptiva a um outro nvel de realidade,
qual seja ao sentido da pura sonoridade produzido pelo todo.
A passagem citada merece ateno pela novidade que representa em relao a esses
antecedentes estilsticos. Pois, como diz o autor, no se trata mais, no caso de rico
Verssimo, de uma aliana com a msica visando apenas preencher as lacunas da palavra
ou suprir a deficincia desta em relao ao objecto, tal como na experincia simbolista. No
h tanto aquela perspectiva de complementaridade, mas, fundamentalmente, o
reconhecimento da insuficincia da linearidade discursiva na representao de situaes
particularmente dramticas como essa da penso. No se trata mais de tomar a organizao
lgica do discurso musical, caracteriz-lo como sistema semitico, destrinar os seus
procedimentos e transport-los para uma analogia com a criao ou interpretao do
romance. Muito menos se verifica a anotao de uma informao sobre a msica que ajuda
na correcta leitura da obra literria. Diversamente disso, o que ocorreu no ltimo caso
analisado foi a actuao de caractersticas potencialmente musicais sobre a linguagem.
Diferente do som fontico (que o tpico da linguagem verbal, contendo um sentido lgico
a ser captado pelo leitor-de-frases, e que, via de regra, encontra o seu fim na prpria
64 Idem, Ibidem, P.46 65 BARBEIRAS (2007), op. cit. P.46
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realidade externa de que signo, com a sua funo representativa constituindo a
possibilidade de recuperao de um fio condutor, de uma origem), o som musical,
justamente, por no estar comprometido com a representao, constituiria as possibilidades
da linguagem escapar da referncia imediata e adquirir densidade super-pondo planos de
sentido.
Captulo 2 Msica e Poesia
Como quem ouve uma melodia muito triste,
recordo a casinha em que nasci, no Caleijo.66
So longnquas as relaes entre essas manifestaes artsticas, msica e poesia, que
os gregos da poca clssica chamavam mlica (de melos, canto, melodia), a poesia
acompanhada de um instrumento musical como a lira, a ctara, aulos ou flauta, podendo ser
entoada por uma nica pessoa, mondica, ou por vrias pessoas, coral. Posteriormente, pelo
fato de ser seguida por instrumentos de corda, preferencialmente a lira, essa poesia ficou
conhecida como lrica, substituindo a palavra mlica, para fazer referncia a poemas curtos,
por meio dos quais os poetas manifestavam seus sentimentos.67
Na prosa, a palavra tende a identificar-se com um dos seus possveis significados custa dos outros: ao po, po; e ao vinho, vinho. Essa operao de carcter
analtico e no se realiza sem violncia, j que a palavra possui vrios significados
latentes, tem uma certa potencialidade de direces e sentidos. O poeta, em contrapartida, jamais atenta contra a ambiguidade do vocbulo. No poema a linguagem
recupera sua originalidade primitiva, mutilada pela reduo que lhe impem a prosa e
a fala quotidiana. A reconquista da sua natureza total e afecta os valores sonoros e
plsticos tanto como os valores significativos. A palavra, finalmente em liberdade, mostra todas as suas entranhas, todos os seus sentidos e aluses, como um fruto maduro ou
como um foguete no momento de explodir no cu.68
66 LOPES Baltasar, Chiquinho; Autores Africanos, Editora tica, So Paulo; 1986. 67 DONOFRIO (1995), apud: REIS,Clia M. D. da R., CAMPOS Marco D. de, Entre o poema e a partitura: A Valsa, de Casimiro de Abreu, Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, P.66. 68 PAZ Octvio, O arco e a lira, in: BARBEIRA (2007), P.50.
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Mais do que na prosa tradicionalmente na poesia, ou melhor, em qualquer texto
que explore a chamada funo potica da linguagem, que essas possibilidades afloram com
maior intensidade. Para a poesia, talvez sobretudo para a lrica moderna, o que mais
interessa exactamente aquele estado primitivo, natural da palavra ou, de forma mais geral,
a pluridirecionalidade do discurso, visando favorecer o surgimento da imagem potica.
O que foi sendo procurado nas prprias possibilidades que a palavra oferecia, foi o
carcter rtmico dos versos: seu veio sonoro (metro, acento, rimas, aliteraes, assonncias,
onomatopeias); a manuteno dos refros, inverses e outros recursos sintcticos; a
representao grfica (disposio em versos, estrofes) simblica; o emprego da metfora
como meio revelador da tenso entre o criador e seus objectos.
Tais expedientes conduzem noo de periodicidade, andamento, velocidade
a dinmica do discurso potico , o seu carcter temporal, com os temas, com o tom
afectivo dos versos, as experincias pessoais dos sujeitos lricos determinando
a noo de tempo, opondo entre si o sentimento de permanncia e mudana,
movimento e transformao69
.
No conjunto, resultam na amlgama da melodia da linguagem e das ideias, de onde
brota a emoo e se faz a exposio subjectiva da interioridade.
Em termos semelhantes, na msica, o ritmo pode ser considerado sob o aspecto
ordenador e formal, ou simplesmente forma a relao entre temas, perodos, processos
tonais, processos expressivos e, segundo o ponto de vista dinmico, de movimento, de
palpitao, ou seja, a ordem em que esto dispostas as divises do tempo no compasso. H
ainda a harmonia, criada pela simultaneidade de vrios sons.70
Mrio de Andrade na sua teoria do verso harmnico, que a tentativa de
constituio da linguagem potica permeada por uma outra linguagem, no caso, a musical,
69 REIS (2001), apud: REIS, Clia M. D. da R., CAMPOS Marco D. de, Entre o poema e a partitura: A Valsa, de Casimiro de Abreu, Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, P.56. 70 A msica se constitui pela sucesso, melodia, no sentido horizontal, e pela simultaneidade, harmonia, no
sentido vertical. A simultaneidade consiste nos acordes. SCHENEIDER (1957), apud: op. cit. P.57
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advoga ento a possibilidade do verso se estruturar segundo os princpios tanto da harmonia
quanto da polifonia musical.
Palavras ou frases, contudo, no se fundem como os sons musicais, e sua enunciao
simultnea poderia resultar apenas em confuso. O verso harmnico, ento, seria formado
por palavras que no se ligam umas s outras, no constituem frases, ficam ressoando,
vibrando... Por sua vez, o verso polifnico no usaria palavras soltas como o harmnico,
mas sim frases autnomas acarretando a mesma sensao de superposio, apenas com esta
mudana de elementos: em vez de palavras (anlogas aos sons isolados), frases. Dessa
forma, exigiria a fundamental participao do leitor, da inteligncia, para o desencadear de
actos de memria, numa organizao subjectiva.
Da variabilidade da produo musical e potica, independentes ou com relaes
entre si, seus caminhos podem se cruzar de modo consolidado no terreno das formas
usualmente denominadas poticas, a madrigal, o rond, a balada, a cantiga, ou das formas
classificadas como musicais, a cano, a pera, o musical, a modinha, a valsa.
A comparao entre msica e literatura pode despertar questes em geral
desprezadas num confronto apenas estrutural entre diferentes linguagens ou sistemas
semiticos. Jacques Derrida menciona a inflao do signo linguagem como um sintoma do
horizonte problemtico da poca histrico-metafsica. Na palavra e na linguagem, procura-
se o sentido, a significao e o conceito, na metafsica a vagueao, a estesia e o
descontrole. H claramente, a busca daquilo que boicotado pela representao discursiva:
a tentativa de alcanar aquela ausncia como o elemento em torno do qual se constri a
literatura.
Todo o relacionamento entre msica e literatura e, portanto, a diferenciao entre
som fontico e som musical, revelar-se-ia, ento, algo muito mais interessante do que a
elaborao de um dualismo excludente. O som musical, ao mesmo tempo em que indicaria
o limite da linguage