A ESCOLA “FAZ” AS JUVENTUDES? REFLEXÕES EM TORNO DA SOCIALIZAÇÃO
JUVENIL[1]
Juarez Dayrell[2]
1. Introdução
A educação da juventude, na sua relação com a escola, tem sido alvo de debates que tendem
a cair numa visão apocalíptica sobre o fracasso da instituição escolar, com professores, alunos e
suas famílias culpando-se mutuamente. Para a escola e seus profissionais, o problema situa-se na
juventude, no seu pretenso individualismo de caráter hedonista e irresponsável, dentre outros
adjetivos, que estariam gerando um desinteresse pela educação escolar. Para grande parte dos
jovens, a escola se mostra distante dos seus interesses e necessidades, reduzida a um cotidiano
enfadonho, com professores que pouco acrescentam à sua formação, tornando-se cada vez mais em
uma “obrigação” necessária tendo em vista a necessidade dos diplomas. Parece que assistimos a
uma crise da escola na sua relação com a juventude, com professores e jovens se perguntando a que
ela se propõe.
Ao buscar compreender essa realidade, um primeiro passo é constatar que a relação da
juventude com a escola não se explica em si mesma: o “problema” não se reduz nem apenas aos
jovens nem apenas à escola, como as análises lineares tendem a conceber. Considero que essa
relação e seus desafios remetem a questões muito mais amplas, situando-se nas relações
intergeracionais, objeto de um conflito sempre presente na história humana. Como diz Erikson
(1980), “a crise da juventude não é mais nada do que um tênue reflexo da crise de cada geração
adulta”. Ou seja, tenho como hipótese que as tensões e os desafios existentes na relação atual da
juventude com a escola são expressões de mutações profundas que vêm ocorrendo na sociedade
ocidental, interferindo na produção social dos indivíduos, nos seus tempos e espaços.
Conseqüentemente, afetam diretamente as instituições e os processos de socialização das novas
gerações.
As instituições classicamente responsáveis pela socialização, como a família, a escola e o
trabalho, vêm mudando de perfil, estrutura e também de funções. Por conseguinte, os jovens da
atual geração vêm se formando, se construindo como atores sociais de forma muito diferente das
gerações anteriores, numa mudança de tempos e espaços de socialização, que interfere diretamente
nas formas como eles vivenciam o seu estatuto como alunos. As diferenças geracionais são muito
profundas, trazendo novos desafios para a relação intergeracional, na qual os adultos e,
especificamente os professores, não podem mais contar tanto com a sua experiência anterior como
referencia para lidar com os jovens atuais. Quando o ser humano passa a se colocar novas
interrogações, a pedagogia, a escola e seus profissionais também têm de se interrogar sobre o seu
papel.
É nesse contexto mais amplo que coloco a questão: Será que a escola faz as juventudes?
Como os jovens vivenciam a escola? Qual é o papel que a escola vem desempenhando na
socialização das juventudes? Para discuti-las aqui, desenvolvo inicialmente um breve diagnóstico da
escola pública brasileira, com ênfase no ensino médio, situando o problema. Em seguida faço uma
análise da condição juvenil no Brasil, enfatizando a centralidade das culturas juvenis e a questão do
território, bem como discutindo em que medida tal condição expressa possíveis mutações dos
processos de socialização na sociedade contemporânea. Logo após retomo à discussão da escola,
buscando problematizar as tensões e desafios presentes na relação com os jovens, para finalmente
apontar algumas pistas que possam contemplar as demandas e necessidades educativas dessa
parcela da população.
É necessário salientar que neste texto, ao refletir sobre os jovens, estou considerando uma
parcela da juventude brasileira que, maioritariamente, freqüenta as escolas públicas, formada por
jovens pobres que vivem nas periferias dos grandes centros urbanos[3] marcados por um contexto
de desigualdade social. Porém, mesmo tratando-se de uma realidade específica, não significa que as
questões e desafios com os quais esses jovens se debatem não espelhem de alguma maneira aqueles
vivenciados por jovens de outros grupos sociais tanto brasileiros quanto europeus, principalmente
no caso de jovens de origem migrante. Não podemos nos esquecer de que, no contexto de uma
sociedade cada vez mais globalizada, a dimensão local se encontra articulada com a dimensão
global e, como veremos, muitos dos desafios vivenciados pelos jovens pobres brasileiros
ultrapassam as barreiras de classe, ou mesmo as fronteiras dos países, podendo, assim, trazer
contribuições para uma compreensão mais ampla da relação da juventude com a escola.
2. Um breve diagnóstico do ensino médio público no Brasil
Correndo o risco de cair em simplificações, podemos afirmar que a propalada crise atual do
ensino médio público no Brasil inicia-se com os processos de massificação escolar, ocorridas no
contexto de redemocratização da sociedade brasileira a partir da década de 1980[4]. Mas é a partir
da década de 1990 que se acelera, ocorrendo uma expansão significativa do número de matrículas,
com um crescimento de mais de 60% apenas nos últimos cinco anos dessa década[5], resultado
tanto da ampliação das vagas quanto das medidas tomadas contra a retenção escolar. Apesar desse
crescimento, o Brasil ainda não atingiu a meta de uma cobertura total, persistindo defasagens entre
série e idade, e, o mais grave, mais da metade dos jovens brasileiros ainda continuava fora da escola
em 2002[6].
As escolas públicas de ensino médio no Brasil até recentemente eram restritas a jovens das
camadas altas e médias da sociedade, os “herdeiros” segundo Bourdieu (2003), com uma certa
homogeneidade de habilidades, conhecimentos e de projetos de futuro. Passam então a receber um
contingente de alunos cada vez mais heterogêneo, marcados pelo contexto de uma sociedade
desigual, com altos índices de pobreza e violência, que delimitam os horizontes possíveis de ação
dos jovens na sua relação com a escola.
Para grande parte desses jovens, o trabalho é condição de sobrevivência, obrigando-os a uma
superposição de projetos muitas vezes difícil de conciliar, quando não convivendo com as
dificuldades geradas pela realidade crescente do desemprego. Aliam-se às heranças culturais
diversificadas, com valores e comportamentos próprios nem sempre condizentes com a cultura
escolar hegemónica; a tradição escolar reduzida das famílias, com predominância da cultura oral; os
altos índices de gravidez precoce, dentre outras dimensões da realidade das camadas populares. Em
suma, esses jovens trazem com eles para o interior da escola os conflitos e contradições de uma
estrutura social excludente, interferindo nas suas trajetórias escolares e colocando novos desafios à
escola (Fanfani, 2000; Sposito;2005).
Ao mesmo tempo, ocorreu uma migração significativa dos alunos das camadas altas e
médias para a rede particular de ensino, que experimentou uma expansão significativa na última
década, uma nova face da elitização que consolidou o sistema publico de ensino no Brasil como
uma “escola para pobres”, reduzindo e muito o seu poder de pressão e o zelo pela qualidade. Nesse
processo, o próprio sentido do ensino médio veio se transformando. Antes significava o caminho
natural para quem pretendia continuar os estudos universitários. Agora, principalmente com a sua
incorporação à faixa de obrigatoriedade do ensino, tornou-se também a última etapa da escolaridade
obrigatória e, para grande maioria dos jovens, o final do percurso da escolarização. Esse contexto
vem gerando o debate entre o caráter propedêutico ou profissionalizante a ser tomado por esse nível
de ensino.
Durante esse período, apesar de várias iniciativas do Poder Público, não houve ainda uma
adequação da estrutura escolar a esta nova realidade. Salvo algumas exceções, principalmente no
âmbito das redes de ensino municipais de algumas cidades brasileiras, a estrutura da escola pública,
incluindo a própria infra-estrutura oferecida, e os projetos político-pedagógicos ainda dominantes
em grande parte das escolas não respondem aos desafios que estão postos para a educação dessa
parcela da juventude. Predomina ainda uma estrutura rígida, com tempos e espaços segmentados e
uma grade curricular estanque, na qual o conhecimento se mostra distante da realidade e das
necessidades e desafios atuais dos jovens, no contexto de uma sociedade baseada cada vez mais na
informação e na tecnologia. Se a escola se abriu para receber um novo público, ela ainda não se
redefiniu internamente, não se reestruturou a ponto de criar pontos de diálogo com os sujeitos e sua
realidade.
Ao mesmo tempo, predomina uma representação negativa e preconceituosa em relação aos
jovens, reflexo das representações correntes sobre a idade e os atores juvenis na sociedade. É muito
comum nas escolas a visão da juventude tomada como um “vir a ser”, projetada para o futuro, ou o
jovem identificado com um hedonismo individualista ou mesmo com o consumismo. Quando se
trata de jovens pobres, ainda mais se forem negros, há uma vinculação à ideia do risco e da
violência, tornando-os uma “classe perigosa”. Diante dessas representações e estigmas, o jovem
tende a ser visto na perspectiva da falta, da incompletude, da irresponsabilidade, da desconfiança, o
que torna ainda mais difícil para a escola perceber quem ele é de fato, o que pensa e é capaz de
fazer. A escola tende a não reconhecer o “jovem” existente no “aluno”, muito menos compreender a
diversidade, seja étnica, de género ou de orientação sexual, entre outras expressões, com a qual a
condição juvenil se apresenta.
Essa situação é reforçada pelo conflito de autoridade na escola, uma expressão possível de
um novo equilíbrio de poder entre as gerações. Mas os professores não se sentem preparados para
lidar com essa nova realidade, negando-a ou demandando uma formação que lhes dêem elementos
para se adequarem a ela. Nesse contexto, não é de se estranhar a dificuldade para estabelecer um
diálogo entre professores e alunos. Esse contexto gera uma significativa ampliação de situações de
tensão ou mesmo de violência escolar que concorrem, de alguma forma, para trajetórias de
insucesso e/ou abandono escolar (ABRAMOVAY e RUA, 2002).
Este breve diagnóstico revela, em parte, a realidade da escola na qual chega o jovem. Mas
quem é ele? Como se constitui a condição juvenil com a qual chega à escola?
3. A condição juvenil no Brasil
Inicialmente é preciso reconhecer as dificuldades existentes na própria categorização da
juventude: afinal, o que é juventude? Seria, no dizer de Bourdieu, apenas uma palavra ou apresenta
especificidades que a distinguem como um grupo social próprio? Esse debate está presente na
sociologia da juventude desde o seu surgimento no início do século XX, sendo objeto das mais
diversas abordagens. Para uns, a juventude é tomada como uma fase da vida. São enfatizados os
aspectos mais uniformes e homogêneos que a caracterizariam e que fariam parte de uma cultura
juvenil, unitária, específica de uma geração definida em termos etários. Já para outros, a juventude é
vista como um conjunto social necessariamente diversificado, em razão das diferentes origens de
classe, que apontam para uma diversidade das formas de reprodução social e cultural. Nessa
perspectiva, as culturas juvenis seriam sempre culturas de classe (PAIS, 1993). Em abordagens
culturalistas mais recentes, podemos notar, ainda, uma tendência em considerar a juventude na
perspectiva da dimensão simbólica, com forte ênfase no aspecto significativo, estético, muitas vezes
incorrendo no risco de desvincula-la das condições sócio-históricas, o que gera um empobrecimento
da sua capacidade de análise (MARGULIS, 2000).
Sem nos alongarmos muito neste debate[7] que foge aos limites desse texto, podemos
afirmar que parte das dificuldades em definir a categoria juventude advêm do fato de esta se
constituir como uma condição social e, ao mesmo tempo, um tipo de representação (PERALVA,
1997). De um lado, se caracteriza pelas transformações do indivíduo numa determinada faixa etária,
na qual convive com mudanças no seu desenvolvimento físico e psicológico. Mas se essa dimensão
biológica tende a ser universal, a forma como cada sociedade, e no seu interior cada grupo social,
vai lidar e representar essa fase é muito variada. Significa reafirmar aqui o que já foi muito
reiterado: a juventude é uma categoria socialmente construída e ganha contornos próprios em
contextos históricos, sociais e culturais distintos, marcada pela diversidade nas condições sociais
(origem de classe, por exemplo), culturais (etnias, identidades religiosas, valores, etc), de género e,
até mesmo geográficas, dentre outros aspectos. Além de ser marcada pela diversidade, a juventude é
uma categoria dinâmica, transformando-se na medida das mutações sociais que vêm ocorrendo ao
longo da história. Na realidade, não há tanto uma juventude e sim jovens, enquanto sujeitos que a
experimentam e sentem segundo determinado contexto sociocultural onde se insere.
Desse modo, mais do que conceituar a juventude, optamos em trabalhar com a ideia de
“condição juvenil” por considerá-la mais adequada aos objetivos dessa discussão. Do latim
conditio, refere-se à maneira de ser, à situação de alguém perante a vida, perante a sociedade. Mas
também se refere às circunstâncias necessárias para que se verifique essa maneira ou tal situação.
Assim existe uma dupla dimensão presente quando falamos em condição juvenil. Refere-se ao
modo como uma sociedade constitui e atribui significado a esse momento do ciclo da vida, no
contexto de uma dimensão histórico-geracional, mas também à sua situação, ou seja, o modo como
tal condição é vivida a partir dos diversos recortes referidos às diferenças sociais – classe, género,
etnia, etc. Na análise, permite-se levar em conta tanto a dimensão simbólica como os aspectos
fáticos, materiais, históricos e políticos nos quais a produção social da juventude se desenvolve
(ABRAMO,2005; MARGULIS, 2000).
3.1 As múltiplas dimensões da condição juvenil
Para situarmos as variadas dimensões constitutivas da condição juvenil no Brasil, temos de
partir do contexto sociocultural mais amplo no seio do qual eles vêm construindo tal experiência.
Esse contexto se expressa nas profundas transformações socioculturais ocorridas no mundo
ocidental nas ultimas décadas, fruto da ressignificação do tempo e espaço e da reflexividade, dentre
outras dimensões (GIDDENS, 1991), o que vem gerando uma nova arquitetura do social. Ao
analisar esse processo, Melucci(1996) aponta algumas das suas características. Uma delas é a
diferenciação, ou seja, a autonomização dos âmbitos da experiência fazendo com que o indivíduo
possa participar simultaneamente em diferentes contextos, grupos e dimensões da vida social e
cultural. Outra é a variabilidade, com a ampliação cada vez maior das possibilidades simbólicas e
imaginárias com as quais o indivíduo se defronta e, finalmente, pelo paradoxo da escolha, o que
implica uma extensão do espaço de autonomia individual que se expressa na escolha, mas também
na impossibilidade de não escolher, gerando uma ampliação das incertezas e da insegurança.
Tais características interferem de alguma forma na constituição da condição juvenil, nos
seus tempos e espaços. A elas aliam-se as transformações que vêm ocorrendo no mundo do
trabalho. No Brasil, constata-se uma mudança nos padrões da organização do trabalho que altera as
formas de inserção dos jovens no mercado. Segundo Pochmann (1998), o modelo econômico
implementado principalmente a partir da década de 1990, baseado numa inserção externa
competitiva, tem gerado um movimento de desestruturação do mercado de trabalho que se
manifesta na expansão das taxas de desemprego aberto, no desassalariamento e na geração de
postos de trabalho precários, que atinge, principalmente, os jovens das camadas populares,
delimitando o universo de suas experiências e seu campo de possibilidades.
Nesse contexto mais amplo, a condição juvenil no Brasil manifesta-se nas mais variadas
dimensões. Na perspectiva aqui tratada, vamos privilegiar algumas delas que podem clarear melhor
a relação da juventude com a escola.
As culturas juvenis. Uma primeira dimensão refere-se às culturas juvenis. A partir da
década de 1990 assistimos, no Brasil, a uma nova forma de visibilidade dos jovens na qual a
dimensão simbólica e expressiva tem sido cada vez mais utilizada por eles como forma de
comunicação, expressas nos comportamentos e atitudes pelos quais se posicionam diante de si
mesmos e da sociedade. A música, a dança, o vídeo, o corpo e seu visual, dentre outras formas de
expressão, têm sido os mediadores que articulam jovens que se agregam para trocar ideias, ouvir
um “som”, para dançar, dentre outras diferentes formas de lazer. Mas também tem se ampliado o
número daqueles que se colocam como produtores culturais e não apenas fruidores, agrupando-se
para produzir músicas, vídeos, danças, ou mesmo programas em rádios comunitárias. Nas periferias
dos grandes centros urbanos, podemos constatar essa efervescência, com jovens pobres vivenciando
formas próprias de lazer, muitos deles se colocando como produtores culturais, inserindo-se em um
circuito cultural alternativo que envolve produtores culturais, produtores musicais e seus pequenos
estúdios, inúmeras rádios comunitárias, shows e eventos culturais, dentre outros.
O mundo da cultura aparece como um espaço privilegiado de práticas, representações,
símbolos e rituais no qual os jovens buscam demarcar uma identidade juvenil. Nessas práticas,
criam novas formas de mobilizar os recursos culturais da sociedade atual além da lógica estreita do
mercado, assumindo um papel de protagonistas, atuam de alguma forma sobre o seu meio,
construindo um determinado olhar sobre si mesmos e sobre o mundo que os cerca. Significa dizer
que, no contexto da diversidade existente, a condição juvenil é vivenciada por meio da mediação
simbólica, expressa nas mais diferentes expressões culturais. Longe dos olhares dos pais,
educadores ou patrões, mas sempre tendo-os como referência, os jovens constituem culturas juvenis
que lhes dão uma identidade como jovens. As culturas juvenis, como expressões simbólicas da
condição juvenil, se manifestam na diversidade em que esta se constitui, ganhando visibilidade
através dos mais diferentes estilos, que tem no corpo e seu visual uma das suas marcas distintivas.
Jovens ostentam os seus corpos e neles as roupas, as tatuagens, os piercings, os brincos, dizendo da
adesão a um determinado estilo, demarcando identidades individuais e coletivas, além de sinalizar
um status social almejado. Ganha relevância também a ostentação dos aparelhos eletrônicos,
principalmente o MP3 e o celular, cujo impacto no cotidiano juvenil precisa ser mais pesquisado.
Nesse contexto ganha relevância os grupos culturais. As pesquisas indicam que a adesão a
um dos mais variados estilos existentes no meio popular ganha um papel significativo na vida dos
jovens. De forma diferenciada, lhes abre a possibilidade de práticas, relações e símbolos por meio
dos quais criam espaços próprios, com uma ampliação dos circuitos e redes de trocas, o meio
privilegiado pelo qual se introduzem na esfera pública. Por meio da produção dos grupos culturais a
que pertencem, muitos deles recriam as possibilidades de entrada no mundo cultural além da figura
do espectador passivo, colocando-se como criadores ativos. Através da música ou da dança que
criam, dos shows que fazem, dos eventos culturais que promovem, eles colocam em pauta no
cenário social o lugar do pobre. Para esses jovens, destituídos por experiências sociais que lhes
impõem uma identidade subalterna, o grupo cultural é um dos poucos espaços de construção de uma
auto-estima, possibilitando-lhes identidades positivas. Eles querem ser reconhecidos, querem uma
visibilidade, ser "alguém" num contexto que os torna "invisíveis", "ninguém" na multidão. Eles
querem ter um lugar na cidade, usufruir dela, transformando o espaço urbano em um valor de
uso.(GOMES e DAYRELL, 2002;2003).
Ao mesmo tempo, é preciso enfatizar que as praticas culturais juvenis não são homogêneas.
As configurações sociais em torno de identidades culturais não se constituem abstratamente, mas se
orientam conforme os objetivos que as coletividades juvenis são capazes de processar num contexto
de múltiplas influências externas e interesses produzidos no interior de cada agrupamento
específico. Em torno do mesmo estilo cultural podem ocorrer práticas de delinquência, intolerância
e agressividade, assim como outras orientadas para a fruição saudável do tempo livre ou ainda para
a mobilização cidadã em torno da realização de ações solidárias.
A sociabilidade. Aliada às expressões culturais, uma outra dimensão da condição juvenil é a
sociabilidade. Uma série de estudos[8] sinaliza a centralidade dessa dimensão que se desenvolve
nos grupos de pares, preferencialmente nos espaços e tempos do lazer e da diversão, mas também
presente nos espaços institucionais como na escola ou mesmo no trabalho. Segundo Pais (1993:94),
os amigos do grupo “constituem o espelho de sua própria identidade, um meio através do qual
fixam similitudes e diferenças em relação aos outros”, enfim, um espaço de afinidades e
afetividades.
A turma de amigos cumpre um papel fundamental na trajetória da juventude, principalmente
na adolescência. Geralmente este é o momento quando iniciam uma ampliação das experiências de
vida, quando alguns deles começam a trabalhar, quando passam a ter mais autonomia para sair de
casa à noite e poder escolher as formas de diversão. É quando procuram romper com tudo aquilo
que o prende ao mundo infantil, buscando outros referenciais para a construção da sua identidade
fora da família. É o momento privilegiado de se descobrirem como indivíduos e sujeitos, buscando
um sentido para a existência individual. É um momento próprio de experimentações, de descoberta
e teste das próprias potencialidades, de demandas de autonomia que se efetivam no exercício de
escolhas.
Nesse processo, a turma de amigos é uma referência: é com quem fazem os programas,
"trocam idéias", buscam formas de se afirmar diante de outros grupos juvenis e também do mundo
adulto, criando um “eu” e um"nós" distintivo. Como lembra Morcellini (1997, p.118), “o grupo de
pares responde a necessidades de comunicação, de solidariedade, de autonomia, de trocas, de
reconhecimento recíproco e de identidade [...] A força atrativa dos primeiros grupos de pares
favorece a construção de uma autonomia em relação ao mundo adulto”.
Podemos afirmar que a sociabilidade é uma dimensão central na constituição da condição
juvenil, remetendo às reflexões de Simmel(1983) sobre essa dimensão da vida social. Para esse
autor, a sociabilidade é uma forma possível de sociação, mas que apresenta características próprias.
Uma delas é a sua emancipação dos conteúdos, uma relação na qual o fim é a própria relação; com
os indivíduos se satisfazendo em estabelecer laços, os quais têm em si mesmos a sua razão de ser.
É o que vemos acontecer nas relações que os jovens pesquisados estabelecem com o grupo
de pares, sejam eles os "chegados" do hip hop, a galera do funk ou os parceiros da capoeira. Outra
característica é a forma de jogo de sociação, expressa na conversação, por exemplo. Na
sociabilidade, o falar torna-se o próprio fim, o assunto é simplesmente o meio para a viva troca de
palavras revelar seu encanto. É um jogo, e um "jogo com". No caso desses jovens, a conversação
assume um papel importante, tornando-se uma das motivações principais dos seus encontros. O
"trocar idéias" é de fato um exercício da razão comunicativa, ainda mais significativo quando
encontram poucos espaços de diálogo além do grupo de pares.
Tal como na arte e no jogo, diz Simmel, a sociabilidade demanda certa simetria e certo
equilíbrio, uma relação entre iguais. Mesmo que existam diferenças, que não são muitas entre os
jovens, uma vez que dominam as relações em um mesmo estrato social, "faz-se de conta" que essas
não existem. Simmel acentua que esse "fazer de conta" não é mais mentira do que a arte e o jogo
são mentiras por causa do desvio da realidade, desde que de acordo com suas regras.
São esses aspectos que apontam para a natureza democrática da sociabilidade. Como se
trata de um "jogar junto", de uma interação em que o que vale é a relação, cada qual deve oferecer
o máximo de si para também receber o máximo do outro. É a dimensão do compromisso e da
confiança que cimentam tais relações. Como não existe outro interesse além da própria relação,
para ela continuar a existir cada qual deve sentir que pode contar e confiar no outro, respondendo
às expectativas mútuas. O que alicerça a relação é o grau de compromisso existente entre os
amigos, que é fruto de uma escolha, e não de uma imposição. É o compromisso que faz com que
um possa contar com o outro, numa relação de reciprocidade, na qual se confia que o outro está
com você em qualquer situação.
Para garantir essa natureza, existem as regras, como as do tato e da discrição, que atuam
como auto-reguladoras das relações. Ao mesmo tempo existem as diferentes gradações que
definem aqueles que são mais próximos (os "amigos do peito") e aqueles mais distantes (a
"colegagem"). Quando as regras são rompidas, facilmente ocorre o distanciamento, surgindo outras
relações no seu lugar. Isso explica, em parte, a mobilidade existente entre as diferentes turmas ou
galeras.
Assim, a sociabilidade expressa uma dinâmica de relações, num movimento constante de
aproximações e afastamentos. Ao fazer a analogia com o jogo, Simmel também se refere a esse ir-
e-vir constante, como o jogar das “ondas” em que há um movimento contínuo que não está ligado a
uma finalidade última. O movimento também está presente na própria relação com o tempo e o
espaço. A sociabilidade tende a ocorrer em um fluxo cotidiano, seja no intervalo entre as
“obrigações”, o ir-e-vir da escola ou do trabalho, seja nos tempos livres e de lazer, na deambulação
pelo bairro ou pela cidade ou mesmo nos espaços virtuais, através de mensagens e blogues, dentre
outros meios. Mas também podem ocorrer no interior das instituições, seja no trabalho ou na
escola, na invenção de espaços e tempos intersticiais, recriando um momento próprio de expressão
da condição juvenil nos determinismos estruturais. Enfim, podemos afirmar que a sociabilidade
para os jovens parece responder às suas necessidades de comunicação, de solidariedade, de
democracia, de autonomia, de trocas afetivas e, principalmente, de identidade.
Mas nessa dimensão temos de considerar, também, as expressões de conflitos e violência
existentes no universo juvenil que, apesar de não ser generalizada, costumam ocorrer em torno e a
partir dos grupos de amigos, sobretudo masculinos. As discussões, brigas e até mesmo atos de
vandalismo e delinqüência, presentes entre os jovens, não podem ser dissociadas da violência mais
geral e multifacetada que permeia sociedade brasileira, expressão do descontentamento dos jovens
diante de uma ordem social injusta, de uma descrença política e de um esgarçamento dos laços de
solidariedade, dentre outros fatores.
Segundo Souto (1997, p.78), tais comportamentos não deixam de ser uma resposta perversa
a um contexto de desprezo social em que eles vivem, concretizado num tratamento discriminatório
que recebem da sociedade. Enfim, reforça a autora, a falta de esperanças e o desprezo social
formam um caldo de cultura que propicia a emergência de comportamentos violentos. Mas há
também uma representação da imagem masculina associada à virilidade e à coragem, que é muito
cultuada na cultura popular, constituindo-se um valor que é perseguido por muitos. Assim,
concordamos com Herschmann (2000:175) quando, ao analisar a violência presente em bailes funk
no Rio de Janeiro, afirma que essas práticas têm uma função na construção da sociabilidade juvenil,
enxergando nesses confrontos um papel cultural, no qual a violência e a competição bem como o
caráter sensório e experiencial, constituem elementos estruturadores de determinadas formas de
organização juvenil, como as galeras[9].
Jovens e o trabalho. É necessário superar a tendência a generalizações apressadas que caem
em imagens dicotômicas sobre os jovens pobres, identificando-os de forma homogênea com a
delinqüência e a criminalidade, ou no seu oposto, com uma imagem “romântica”, na qual inexistem
conflitos, tensões e violências. O que podemos constatar é que a vivência da condição juvenil nas
camadas populares é dura e difícil: os jovens enfrentam desafios consideráveis. Ao lado da sua
condição como jovens, alia-se a da pobreza, numa dupla condição que interfere diretamente na
trajetória de vida e nas possibilidades e sentidos que assumem a vivência juvenil. Um grande
desafio cotidiano é a garantia da própria sobrevivência, numa tensão constante entre a busca de
gratificação imediata e um possível projeto de futuro.
No Brasil, a juventude não pode ser caracterizada pela moratória em relação ao trabalho,
como é comum nos países europeus. Ao contrário, para grande parcela de jovens, a condição juvenil
só é vivenciada porque trabalham, garantindo o mínimo de recursos para o lazer, o namoro ou o
consumo. É comum a iniciação ao trabalho ocorrer ainda na adolescência, por meio dos mais
variados “biscates”, numa instabilidade que tende a persistir ao longo da juventude[10]. Mas isso
não significa, necessariamente, o abandono da escola, apesar de influenciar no seu percurso escolar.
As relações entre o trabalho e o estudo são variadas e complexas e não se esgotam na oposição entre
os termos. Como lembra Sposito (2005), não se pode configurar nem uma adesão linear à escola ou
um abandono ou exclusão total de aspirações por parte dos jovens trabalhadores. Para estes, a
escola e o trabalho são projetos que se superpõem ou poderão sofrer ênfases diversas de acordo com
o momento do ciclo de vida e as condições sociais que lhes permitam viver a condição juvenil[11].
Nesse sentido, segundo essa mesma autora, o mundo do trabalho aparece como uma mediação
efetiva e simbólica na experimentação da condição juvenil, podendo-se afirmar que “o trabalho
também faz a juventude”, mesmo considerando a diversidade de situações e posturas existente por
parte dos jovens em relação ao trabalho.
Jovens e lugar. Essas diferentes dimensões da condição juvenil são condicionadas pelo
espaço onde são construídas, que passa a ter sentidos próprios, transformando-se em lugar, o espaço
do fluir da vida, do vivido, sendo o suporte e a mediação das relações sociais, investido de sentidos
próprios, além de ser a ancoragem da memória, tanto individual quanto coletiva. Os jovens tendem
a transformar os espaços físicos em espaços sociais, pela produção de estruturas particulares de
significados.
Um exemplo claro é o sentido que os jovens atribuem ao lugar onde vivem. Viver na
periferia de uma grande cidade implica compartilhar, de alguma forma, os problemas relacionados à
ausência de equipamentos básicos de infra-estrutura, de serviços públicos, dentre eles o transporte.
Implica conviver com a lógica perversa da metrópole, que tende a segregá-los nos bairros distantes,
impondo limites ao próprio deslocamento, reforçando a existência de uma “cidade partida”.
Ao mesmo tempo, existem poucos equipamentos e espaços públicos e até mesmo praças,
contando com opções restritas de lazer. Mas significa também a convivência com o mundo do crime
organizado, uma presença que tem se ampliado nos últimos anos nas periferias das grandes
metrópoles brasileiras. Morar na periferia significa viver em um espaço liminar, entre duas ordens
sociais diversas, o da ordem instituída, das instituições, e o da criminalidade, cada qual com valores
e regras próprios. Muitos jovens convivem com o mundo do crime, com a sedução das drogas, com
as promessas de dinheiro fácil e prestígio acenadas pelo tráfico. As experiências são vividas ora em
um espaço, ora em outro, ora em ambos ao mesmo tempo, em escolhas que podem ser fatais,
expressas nos altos índices de mortalidade juvenil.
Mas para esses jovens, a periferia não se reduz a esta dimensão, muito menos aparece
apenas como o espaço funcional de residência ou de socialização, mas surge como um lugar de
interações afetivas e simbólicas, carregado de sentidos. Pode-se ver isso no sentido que atribuem à
rua, às praças, os bares da esquina, que se tornam, como vimos anteriormente, o lugar privilegiado
da sociabilidade ou, mesmo, o palco para a expressão da cultura que elaboram, numa reinvenção do
espaço. É significativo que em alguns estilos juvenis, como o rap e o funk, há uma tendência nas
letras em enaltecer o bairro, a quebrada onde moram, numa forma de reafirmação de onde estão os
seus amigos, de onde vivem. Podemos dizer que a condição juvenil, além de ser socialmente
construída, tem também uma configuração espacial (PAIS, 1993).
Mas existe também uma ampliação do domínio do espaço urbano para além do bairro,
principalmente para aqueles jovens integrantes de grupos culturais. É comum a realização de
eventos como apresentações, shows, festas ou até mesmo reuniões, seja no centro da cidade seja em
alguma região mais distante. Mesmo com a falta de dinheiro e a dificuldade do transporte, esses
momentos não deixam de significar um desafio lúdico, capaz de trazer prazer e alegria. Podemos
dizer que esses jovens produzem territorialidades transitórias, afirmando por meio delas o seu lugar
numa cidade que os exclui. São nesses tempos e espaços que criam o seu cotidiano, encontram-se,
dão shows, divertem-se, perambulam pela cidade, reinventando temporariamente o sentido dos
espaços urbanos. (HERSCHMANN, 2000)
Jovens e o tempo. Aliada ao espaço, a condição juvenil expressa uma forma própria de
viver o tempo. Há predomínio do tempo presente, que se torna não apenas a ocasião e o lugar,
quando e onde se formulam questões às quais se responde interrogando o passado e o futuro, mas
também a única dimensão do tempo que é vivida sem maiores incômodos e sobre a qual é possível
concentrar atenção. E mesmo no tempo presente é possível perceber formas diferenciadas de
vivenciá-lo, de acordo com o espaço: se nas instituições (escola, trabalho, família) que assumem
uma natureza institucional, marcada pelos horários e a pontualidade. Ou aqueles vivenciados nos
espaços instersticiais, de natureza sociabilística, que enfatizam a aleatoriedade, os sentimentos, a
experimentação. Esses espaços são vivenciados preferencialmente à noite, quando experimentam
uma ilusão libertadora, longe do tempo rígido da escola ou do trabalho.
Nessas diferentes expressões da condição juvenil, podemos constatar a presença de uma
lógica baseada na reversibilidade, expressa no constante “vaivém” presente em todas as dimensões
da vida desses jovens. Vão e voltam em diferentes formas de lazer, com diferentes turmas de
amigos, o mesmo acontecendo aos estilos musicais. Aderem a um grupo cultural hoje que amanhã
poderá ser outro, sem maiores rupturas. Na área afetiva, predomina a idéia do “ficar”, quando
tendem a não criar compromissos com as relações amorosas além de um dia ou de uma semana.
Também no trabalho podemos observar esse movimento com uma mudança constante dos
empregos, o que é reforçado pela própria precarização do mercado de trabalho que pouco oferece
além de “biscates” ou empregos temporários. É a presença dessa lógica que leva Pais (2003) a
caracterizar esta geração como “ioiô”, numa rica metáfora que traduz bem a idéia da vida
inconstante das gerações atuais.
Essa retttttttttversibilidade é informada por uma postura baseada na experimentação, numa
busca de superar a monotonia do cotidiano através da procura de aventuras e excitações, mas
também uma forma de lidar com as precariedades e exigências postas no seu percurso de vida.
Nesse processo, os jovens tendem a testar suas potencialidades, improvisam, se defrontam com seus
próprios limites e muitas vezes se enveredam por caminhos de ruptura, de desvio, sendo uma forma
possível de auto conhecimento. Para muitos desses jovens, a vida constitui-se no movimento, em
um trânsito constante entre os espaços e tempos institucionais, da obrigação, da norma e da
prescrição, e aqueles intersticiais, nos quais predomina a sociabilidade, os ritos e símbolos próprios,
o prazer. É nesse trânsito, marcado pela transitoriedade, que vão se delineando as trajetórias para a
vida adulta. É nesse movimento que se fazem, construindo modos próprios de ser jovem.
Transições para a vida adulta. Esse conjunto de características conflui para diferentes
trajetórias na transição para a vida adulta, que adquirem um novo caráter. Antes, essa transição
tendia a ser marcada por alguns acontecimentos que sinalizariam o fim da juventude: a saída da
escola; o emprego em tempo integral, o casamento e o nascimento dos filhos e a constituição de
unidades residenciais autónomas da família (Margulis, 2000; Galland, 1996). Esse processo, porém,
vem se modificando e complexificando a partir dos novos contextos de socialização da juventude,
como mostramos anteriormente, principalmente a expansão do acesso escolar para novos segmentos
sociais e o conseqüente aumento da escolaridade entre os jovens, a flexibilização e a precarização
do mercado de trabalho, com o aumento dos índices de desemprego juvenil, aliados a uma mudança
nas estruturas familiares, com a pluralização das formas de organização familiar.
Essa realidade estaria levando a uma descronologização do percurso etário e a uma
desconexão dos atributos da maturidade (Peralva,1997). Comentando esse processo, Sposito (2002)
nos fala da multiplicidade e da desconexão das diferentes etapas de entrada na vida adulta. Ressalta
um duplo movimento de descristalização, significando a dissociação no exercício de algumas
funções adultas e a latência que separa a posse de alguns atributos do seu imediato exercício,
fazendo com que orientações próprias da vida adulta convivam com situações de dependência.
Nesse contexto, é cada vez mais difícil definir modelos na transição para a vida adulta. As
trajetórias tendem a ser individualizadas, conformando os mais diferentes percursos nessa
passagem. Da mesma forma que os jovens portugueses, analisados por Pais(2003), podemos dizer
que, no Brasil, o princípio da incerteza domina a vida dos jovens, que vivem verdadeiras
encruzilhadas de vida, nas quais as transições tendem a ser ziguezagueantes, sem rumo fixo ou
predeterminado. Se essa é uma realidade comum à juventude, no caso dos jovens pobres os desafios
são ainda maiores. Se há uma ampliação de possibilidades, fruto da modernização cultural, essa não
veio acompanhada de uma modernização social, contando com menos recursos e margens de
escolhas, imersos que estão em constrangimentos estruturais. Para muitos deles, o desejo, aquilo
que gostariam de fazer, se vê limitado por aquilo que eles podem efectivamente fazer. É o caso, por
exemplo, daqueles jovens que gostariam de sobreviver das atividades culturais, fazendo dela o seu
meio de vida.
Apesar desses limites, muitos conseguem elaborar projetos de futuro, procurando no
presente formas e alternativas de inserção na sociedade no rumo que elaboram, a partir das
condições e dos recursos de que dispõem, numa postura ativa diante de si mesmos e da realidade.
Em outro extremo, encontramos aqueles que assumem uma postura mais passiva, à espera de uma
ocasião, da “sorte”, deixando que o acaso, o rumo dos acontecimentos lhes dirija a vida. Esses
tendem a se refugiar na vivência do presente, muitas vezes buscando meios de fuga dessa realidade
através das drogas, e, o mais trágico, a delinquência. Mas tais posturas não são rígidas e muitas
vezes se misturam. Para a maioria, a transição aparece como um labirinto, obrigando-os a uma
busca constante de articular os princípios de realidade (que posso fazer?), do dever (que devo
fazer?) e do querer (o que quero fazer?), colocando-os diante de encruzilhadas onde jogam a vida e
o futuro (PAIS, 2003).
É nesse contexto que temos de situar a experiência escolar desses jovens. Fica evidente que
o jovem que chega às escolas públicas, na sua diversidade, apresenta características, práticas sociais
e um universo simbólico próprio, que o diferencia e muito das gerações anteriores. Nesse processo,
a referência maior são as relações de natureza sociabilística, que ocorrem nos espaços situados nos
interstícios das instituições, nos fluxos que criam nos tempos livres, dominados pela lógica da
reversibilidade e experimentação. Essa nova condição juvenil revela que os jovens vem se
produzindo e sendo produzidos socialmente em processos de socialização específicos, expressão
das mutações que vêm ocorrendo nas instituições socializadoras, dentre elas a escola. É o que
discutiremos a seguir
4. A condição juvenil e a socialização
A construção da condição juvenil, tal como esboçamos, expressa mutações mais profundas
nos processos de socialização, seus espaços e tempos. Nesse sentido a juventude pode ser vista
como uma ponta de iceberg no qual os diferentes modos de ser jovem expressam mutações
significativas nas formas como a sociedade “produz” os indivíduos.
Essas mutações não se reduzem aos espaços liminares próprios dos jovens, interferindo
também nas instituições tradicionalmente responsáveis pela socialização das novas gerações. A
família é uma delas. Segundo Nogueira (2005), a família contemporânea apresenta novas
características: passa de unidade de produção para unidade de consumo; a incorporação crescente
da mulher no mercado de trabalho e sua crescente autonomia criou novos arranjos de poder,
colocando em questão o modelo patriarcal. Ao mesmo tempo, há uma tendência na mudança do
lugar do filho, de elo na cadeia geracional para o centro da afetividade familiar, diversificando seu
papel educativo, além de uma crescente democratização das relações familiares. No caso desses
jovens é necessário destacar também as possíveis interferências advindas da maior escolarização
dos filhos em relação aos pais, além da tendência em dominarem mais a linguagem e os meios
informáticos, o que contribui para alterar as relações de poder entre as gerações. Como
compreender tais processos?
Na sociologia clássica, desde Durkheim, desenvolveram-se reflexões sobre a socialização a
partir de diversas perspectivas teóricas, de acordo com o próprio contexto histórico, com
concepções distintas de sociedade, dos atores sociais e das interações, exprimindo modelos
determinados de sociedade e de cultura. Os estudos centram-se, principalmente, nas relações com a
família e com a escola, vistas como as instituições centrais na formação da juventude. Mas será que
tais paradigmas conseguem explicar os processos sociais que ocorrem na sociedade
contemporânea?
Vários autores[12] passaram a questionar os paradigmas da sociologia clássica,
evidenciando seus limites para explicar os processos de socialização contemporâneos. No âmbito
deste texto, vou me ater às contribuições de Dubet e Lahire.
Ao fazer a critica às abordagens clássicas da socialização, Dubet (1994) ressalta que tais
teorias buscam entender e explicar a socialização na perspectiva da reprodução social, questionando
como as instituições garantem a continuidade social. Nelas o ator é o sistema, ou seja, a conduta, a
subjetividade, e os sentimentos são interiorizações de uma posição objetiva do sistema. Nessa ótica,
explicar os indivíduos é explicar a determinação de seu lugar social sobre sua personalidade, uma
vez que haveria um processo de interiorização do social. O objeto de análise se constitui em torno
da religião, da família e/ou da escola, instituições que permitem “fabricar” os atores pelo sistema.
Mas para esse autor, os atores e as instituições não são mais redutíveis a uma lógica única, a um
papel e a uma programação cultural de condutas, como era pensada a socialização na sociedade
industrial. Passa a ocorrer uma heterogeneidade de princípios culturais e sociais que organizam as
condutas, com os atores podendo adotar simultaneamente vários pontos de vista. Há mutações
globais dos quadros de referência e nenhuma delas assume uma centralidade. Não há mais uma
unidade do sistema e do ator. O ator não é totalmente socializado a partir das orientações das
instituições nem a sua identidade é construída apenas nos marcos das categorias do sistema.
Nesta mesma direção, Lahire (2002;2005) afirma que na sociedade contemporânea os atores
sociais estão expostos a universos sociais diferenciados, a laços fragmentados, a espaços de
socialização múltiplos, heterogéneos e concorrentes. Enfim, o indivíduo atravessa instituições,
grupos, campos de força e de lutas diferentes. Ele é um produto complexo de múltiplos processos de
socialização. Nesse sentido podemos afirmar que a constituição da condição juvenil é cada vez mais
complexa, com o jovem vivendo experiências variadas e, às vezes, contraditórias. Constitui-se
como um ator plural, produto de experiências de socialização em contextos sociais múltiplos, dentre
os quais ganha centralidade aqueles que ocorrem nos espaços intersticiais dominados pelas relações
de sociabilidade. Os valores e comportamentos apreendidos no âmbito da família, por exemplo, são
confrontados com outros valores e modos de vida percebidos no âmbito do grupo de pares, da
escola, das mídias, etc. Pertence assim, simultaneamente, no curso da sua trajetória de socialização,
a universos sociais variados, ampliando as suas referências sociais (SETTON, 2005; LAHIRE,
2002).
Esse processo aponta para o que alguns autores chamam de “desinstitucionalização do
social”. Para Abad (2003), por exemplo, a desinstitucionalização significa uma crise das instituições
tradicionalmente consagradas à transmissão de uma cultura hegemônica, cujo prestigio tem se
debilitado pelo não-cumprimento de suas promessas e pela perda de sua eficácia simbólica como
ordenadoras da sociedade. Para o autor, o espaço deixado por essas formas tradicionais – e a escola
seria uma delas – passa a ser ocupado por um maior desdobramento da subjetividade juvenil,
explicando, assim, o surgimento de uma nova condição juvenil.
Já Dubet (2006), ao examinar algumas instituições na França, sobretudo aquelas que têm
como trabalho o cuidado com o “outro” – escolas, hospitais e serviços sociais - analisa sua crise e
mutação a partir do esgotamento do que ele chamaria de “programa institucional”, nascido na
modernidade, explicitando como ele percebe a desinstitucionalização[13]. Essa matriz estabeleceu
as relações entre os indivíduos e as instituições por meio de um programa de ação onde seria
exercida, sem conflitos, a missão socializadora das instituições e a formação da personalidade. A
crise desse “programa” atinge de forma diferente cada instituição e cada classe social. Nesse
contexto a socialização não pode ser mais percebida como aprendizagem crescente de papéis ou de
jogos sociais: “trata-se de um ator confrontado com uma grande diversidade de orientações, isto é,
com certos antagonismos, e que é obrigado a construir por si mesmo o sentido de sua experiência.
(DUBET, 1998, p. 30).
Por essas razões, mais do que crise, Dubet (2006) considera a existência de um processo de
mutação que transforma a própria natureza da ação socializadora das instituições, fazendo com que
parte importante do processo seja considerada tarefa ou ação do próprio sujeito sobre si mesmo. No
caso específico da escola, esse processo de mutação não elimina, mas transforma a natureza da
dominação no cotidiano da instituição escolar, pois “obriga os indivíduos a se construírem
‘livremente’ nas categorias da experiência social” que lhe são impostas. A dominação se manifesta,
assim, não cessando de afirmar que “os indivíduos são livres e mestres de seus interesses [...], a
dominação impõe aos atores as categorias de suas experiências, categorias que lhe interditam de se
constituir como sujeitos relativamente mestres deles mesmos... (DUBET, 2006, p.403).
Ao comentar sobre esse mesmo processo, Pais (2003, p. 316) afirma que “assistimos à
desinstitucionalização do social, não porque as instituições estejam em declínio ou em vias de
extinção, mas pelo fato de serem vias de mudança social”. Para ele, seria mais apropriado falar em
uma “re-institucionalização permanente”, uma vez que as instituições revelam uma propensão para
a crise, encontrando-se em uma permanente reconstrução. Segundo esse autor, estaríamos assistindo
a uma passagem da sociedade disciplinadora para uma sociedade de controle, na qual persistem as
lógicas disciplinadoras mas agora dispersas por todo o campo social.
Tal processo caracteriza-se pelo desmoronamento dos muros que garantiam uma autonomia
das instituições, tornando difícil distinguir o dentro e o fora, com os contornos cada vez mais
tênues. É a mídia que penetra e interfere em todos os espaços institucionais; é a família que se
mostra cada vez mais permeável às influências do consumo e seus apelos; ou mesmo um grupo de
presidiários que organiza, de dentro dos presídios, uma série de atentados contra a polícia como
aconteceu na cidade de São Paulo.
A escola também assiste a um ruir dos seus muros e talvez a primeira evidência tenha sido a
massificação, que significou a superação das barreiras que antes impediam as camadas populares de
frequentarem-na. Mas não só: é a concorrência cada vez maior da informação difundida pelos meios
eletrônicos; é a convivência crescente com situações de violência, é a polêmica em torno da
participação dos pais na avaliação dos professores e da escola.
Por seu lado, a lógica escolar parece invadir cada vez mais a sociedade, atingindo,
principalmente, as crianças e jovens, reforçando ainda mais sua identidade como “alunos”, como se
essa fosse sua condição natural. Podemos perceber isso na proliferação de atividades extra
escolares, que vão dos cursos de língua estrangeira às atividades culturais e até mesmo o esporte,
que seria uma atividade mais espontânea, cada vez mais praticado em “escolinhas”. As crianças e os
jovens passam a ter grande parte do seu tempo cotidiano regulado e estruturado em atividades que
traduzem elementos e traços da escola.
Essa tendência também se encontra disseminada nas camadas populares, onde se percebe
uma ampliação de projetos e entidades que propõem atividades educativas, seja culturais, esportivas
ou de “reforço escolar”, nas quais as exigências e as práticas escolares são de alguma forma
retomados pelos educadores. Podemos ver aí uma tendência em transformar cada instante em
instante de educação, cada atividade em uma atividade educativa, ou seja, como uma atividade cuja
finalidade é formá-los, formar-lhes o corpo, os conhecimentos, a moral. Como se não existisse outra
forma de estabelecer relações, como se não existisse outra forma de estruturar atividades que não na
forma escolar (DAYRELL et al, 2006). Como lembram Vincent, Lahire e Thin(2001,p. 39), “nossa
sociedade está cada vez mais escolarizada, incapaz de pensar a educação a não ser segundo o
modelo escolar, até mesmo nos domínios alheios ao currículo consagrado das escolas de cultura
geral ou de formação profissional”, num processo de pedagogização do social.
Por mais paradoxal que possa parecer, esse processo não tem gerado o fortalecimento da
instituição escolar. Ao contrário, apesar de ainda manter o monopólio da cultura académica, a
escola perdeu o monopólio cultural, com uma concorrência cada vez maior da cultura de massas e
da circulação social de informações (DUBET,2006). No caso dos jovens, por exemplo, eles criam
momentos próprios de socialização baseada nas relações de amizade, nos espaços intersticiais fora e
dentro das instituições, inclusive na própria escola, onde trocam informações e produzem
aprendizagens. É o que muitos deles chamam da “escola do mundo”, prescindindo da escola para o
seu crescimento pessoal. Ao mesmo tempo, a escola, por si só, não consegue responder aos desafios
da inserção social dos jovens, tendo poder limitado na superação das desigualdades sociais e nos
processos de emancipação social. Parece que a instituição escolar se torna parte dos problemas que
ela se propôs a resolver. Nesse contexto, tanto professores quanto alunos vem perguntando pelo
papel da escola, pela sua função, levando-nos a interrogar sobre o lugar que essa ocupa na
socialização dos jovens: Será que a escola “faz” as juventudes? É com esse olhar que temos de
analisar a relação da juventude com a escola.
5. A escola “faz” as juventudes?
Na frequência cotidiana à escola, o jovem leva consigo o conjunto de experiências sociais
vivenciadas nos mais diferentes tempos e espaços que, como vimos, constituem uma determinada
condição juvenil que vai influenciar, e muito, a sua experiência escolar e os sentidos atribuídos à
ela. Por outro lado, a escola que ele freqüenta apresenta especificidades próprias, não sendo uma
realidade monolítica, homogénea. Podemos afirmar que a unidade escolar se apresenta como um
espaço peculiar que articula diferentes dimensões. Institucionalmente, é ordenada por um conjunto
de normas e regras que buscam unificar e delimitar a ação dos seus sujeitos.
Mas no cotidiano, convive com uma complexa trama de relações sociais entre os sujeitos
envolvidos – alunos, professores, funcionários, pais - que incluem alianças e conflitos, imposição de
normas e estratégias, individuais ou coletivas, de transgressão e de acordos. Um processo de
apropriação constante dos espaços, das normas, das práticas e dos saberes que dão forma à vida
escolar. Fruto da ação recíproca entre o sujeito e a instituição, esse processo, como tal, é
heterogêneo. Nessa perspectiva, a realidade escolar aparece mediada, no cotidiano, pela
apropriação, elaboração, ou reelaboração expressas pelos sujeitos sociais, fazendo da instituição
educativa um processo permanente de construção social (Ezpeleta e Rockwell,1986; Dayrell, 1996;
Abrantes, 2003).
Tal processo é cada vez mais complexo na medida do desmantelamento das fronteiras da
instituição escolar, que tem na progressiva massificação uma das suas evidências. Os jovens pobres
estão cada vez mais transpondo os seus muros, trazendo suas experiências e novos desafios. Dentre
eles, uma questão central passa a ser as transformações que vêm ocorrendo nas formas de esses
jovens se constituírem como alunos. Pode causar estranheza tal afirmação, uma vez que há uma
tendência à naturalização da categoria “aluno”, como se fosse uma realidade dada, universal,
identificada imediatamente com uma condição de menoridade, seja da criança ou do jovem,
marcada por uma relação assimétrica com o mundo adulto.
Ao contrário, porém, o “aluno” é uma construção histórica, construída no contexto de uma
determinada forma escolar, em torno da qual veio se formando toda uma ordem social na qual se
desempenham determinados papéis e se conforma um modo de vida específico (SACRISTÁN,
2003). Assim o jovem se torna aluno em um processo no qual interferem a condição juvenil, as
relações intergeracionais e as representações daí advindas, bem como uma determinada cultura
escolar. Acredito ser aqui, na forma como os jovens vêm se constituindo como alunos, que reside
um dos grandes desafios na relação da juventude com a escola, colocando em questão velhos
modelos, com novas tensões e conflitos.
Na escola ainda domina uma determinada concepção de aluno gestada na sociedade
moderna. Nesse momento havia uma clara separação da escola com a sociedade, com a escola
sendo considerada espaço central de socialização das novas gerações, responsável pela inculcação
de valores universais e normas que deviam conformar o individuo e, ao mesmo tempo, torná-lo
autônomo e livre (DUBET,1994). Quando o jovem adentrava naquele espaço, deixava sua realidade
nos seus portões, convertendo-se em aluno, devendo interiorizar uma disciplina escolar e investir
em uma aprendizagem de conhecimentos.
Em um modelo ideal, muito próximo àquele que regia o mundo do trabalho e o trabalhador,
esperava-se que o aluno fosse disciplinado, obediente, pontual e se envolvesse com os estudos com
eficiência e eficácia. Ao mesmo tempo, não se considerava os alunos na sua dimensão de jovens,
numa tendência em representar ambos os conceitos como se fossem, de alguma forma, equivalentes.
Nessa ótica homogeneizante, a diversidade sóciocultural dos jovens era reduzida a diferenças
apreendidas no enfoque da cognição (inteligente ou com dificuldades de aprendizagem; esforçado
ou preguiçoso, etc.) ou na do comportamento (bom ou mal aluno, obediente ou rebelde, etc.).
Diante desse modelo, a única saída para o jovem era submeter-se ou ser excluído da instituição.
Com a desinstitucionalização, há uma mutação nesse processo. A escola é invadida pela vida
juvenil, com seus looks, pelas grifes, pelo comercio de artigos juvenis, constituindo-se como um
espaço também para os amores, as amizades, gostos e distinções de todo tipo. O “tornar-se aluno” já
não significa tanto a submissão a modelos prévios, ao contrário, consiste em construir sua
experiência como tal e atribuir um sentido a este trabalho (DUBET, 2006). Implica em estabelecer
cada vez mais relações entre sua condição juvenil e o estatuto de aluno, tendo de definir a utilidade
social dos seus estudos, o sentido das aprendizagens e principalmente seu projeto de futuro. Enfim,
os jovens devem construir sua integração em uma ordem escolar, achando em si mesmos os
princípios da motivação e os sentidos atribuídos à experiência escolar.
Mas não é um trabalho fácil, dificultado principalmente pelo fato de a escola ainda basear-se
numa visão do discente própria da sociedade moderna, negando a sua condição juvenil. Ao proceder
dessa forma, a escola espera que o jovem já tenha internalizado esse modelo e se comporte de
acordo com os princípios dela, responsabilizando-o pelo trabalho de tornar-se aluno. A escola tende
a não levar em conta que essa concepção é inadequada para as gerações atuais muito menos que o
tornar-se aluno não é um trabalho de competência exclusiva do jovem, sendo necessário um
diálogo, uma ação de construção coletiva de novos valores e regras no seu cotidiano.
Dessa forma, o jovem vivencia uma tensão na forma como se constrói como aluno, um
processo cada vez mais complexo, onde intervém tanto fatores externos quanto internos à escola.
Uma dimensão significativa é o lugar que o jovem ocupa na estrutura social, com uma determinada
realidade familiar com suas demandas de sobrevivência e uma herança cultural que possibilita uma
maior ou menor identidade com a cultura escolar e seus valores. Outra dimensão é o espaço onde
vive bem como as diferentes experiências sociais vividas enquanto jovem, constituindo determinada
condição juvenil.
Mas tais dimensões são mediadas pela realidade escolar concreta que ele freqüenta. Assim, o
espaço físico e a infra-estrutura escolar, com o tipo e a qualidade dos equipamentos oferecidos; a
sua localização geográfica, se em áreas centrais da cidade ou no bairro onde mora; o corpo docente
existente, com maior ou menor sensibilidade e formação para trabalhar com cada clientela; o
projeto político-pedagógico existente e a forma como implementam os processos educativos, dentre
outros, são exemplos de variáveis que vão interferir na forma como os jovens constroem o seu
estatuto como alunos, criando maior ou menor identificação com a escola que freqüentam e
determinando o seu percurso escolar. Como lembra Abrantes (2003), os jovens não vão
simplesmente à escola: apropriam-se dela, atribuem-lhe sentidos e são influenciados por ela.
No cotidiano escolar, essa tensão se manifesta não tanto de forma excludente, ser jovem OU
ser aluno, mas, sim, geralmente na sua ambigüidade de ser jovem E ser aluno, numa dupla condição
que muitas vezes é difícil de ser articulada. Ele traz a sua condição juvenil, informada pelos
princípios da reversibilidade e experimentação, mas também por uma determinada concepção da
escola, das suas funções, bem como por uma visão própria do que significa ser aluno, que podem ou
não ser coincidentes com as da escola. E no seu interior tem de lidar com as especificidades da
realidade escolar, com o que esta oferece de relações, práticas, regras e valores. Desse modo, o
tornar-se aluno implica uma tensão que se concretiza em práticas e valores nem sempre afinadas
com aquelas que vivencia nas outras dimensões da vida, o que vai caracterizar o seu percurso
escolar e os sentidos atribuídos a essa experiência.
Nossa experiência com os jovens e algumas investigações realizadas com jovens alunos do
ensino médio no Brasil[14], nos fornecem elementos para tecer considerações sobre essa tensão.
Um primeiro aspecto é a dimensão das relações sociais na escola. A sociabilidade é constitutiva da
condição juvenil fora, mas também é central no cotidiano escolar. As pesquisas indicam a
importância atribuída pelos jovens às relações com os colegas, cuja ênfase expressa uma
reelaboração da condição juvenil no interior da escola, através da qual a experiência escolar ganha
sentido. O cotidiano torna-se um espaço complexo de interações, com demarcação de identidades e
estilos, visíveis na formação dos mais diferentes grupos, que nem sempre coincidem com aqueles
que os jovens formam fora dela.
A escola possibilita a ampliação das relações, e os agrupamentos se formam mediados pelas
diferentes expressões da diversidade existentes entre eles. Se há uma aproximação geracional em
um círculo que iguala a todos como jovens, este é atravessado pelas diferenças de condição social,
de gênero, de “raça” e de estilos de vida, que se traduzem em critérios que norteiam as lógicas de
associação. Uns podem se agregar em torno de estilos culturais, como os rappers ou funkeiros, já
outros pela condição social e o padrão de consumo (os boys e as patricinhas[15]), ou mesmo
estigmatizados, como “favelados(as)”, dentre outros grupos, todos eles perspassados de alguma
forma pelas diferenças de género.
Aliados a esses critérios, existem outros relacionados às diferentes posturas diante da escola
e do desempenho escolar, como o cê-dê-efe[16] ou os bagunceiros, que podem ou não se sobrepor
às classificações anteriores. Mas, de qualquer forma, ter amigos na escola tende a ser considerado
um valor e um status, afinal, “estar com os amigos, conversar sobre a vida espanta as tristezas,
melhora os ânimos, faz passar o tempo e preenche de afeto as relações (NOGUEIRA, 2006).
A escola aparece como um espaço aberto a uma vida não escolar, numa comunidade juvenil
de reconhecimento interpessoal.(MARTUCCELLI, 2000). É em torno dessa sociabilidade que
muitas vezes a escola e seu espaço físico são apropriados pelos jovens alunos e reelaborados,
ganhando novos sentidos. É o pátio do recreio que passa a ser lugar de encontro e relacionamentos;
é o corredor, pensado para locomoção, sendo utilizado para encontros próprios; são os locais
escolhidos para as práticas de transgressão, como o “matar” aula. Em todos eles, jovens se agrupam
para animadas conversas sobre o dia-a-dia, as disputas acaloradas em torno do futebol, namoros e as
novas ondas da moda e da mídia. Mas também as relações intra e intergrupais são palco de
competições e conflitos, muitas vezes resvalando para situações de violência no cotidiano
escolar[17].
Tal como ocorre fora da escola, é grande a dinâmica das relações, sendo comum a troca de
grupos, a maior aproximação e/ou afastamento de uns ou outros, numa expressão da reversibilidade
típica da condição juvenil. Os grupos se constituem como um espaço de trocas subjetivas, no qual
as relações entre eles ganham mais relevância do que as regras escolares, constituindo-se em uma
referência determinante na construção de cada um como aluno, tanto para adesão quanto para a
negação desse estatuto. Não podemos nos esquecer de que os jovens vivem uma fase da vida na
qual estão elaborando suas identidades, em um processo no qual a imagem de si, para os outros e
para si mesmo assume uma importância fundamental (SPOSITO, 2004). No caso dos jovens pobres,
a sociabilidade ganha uma maior dimensão à medida que a ausência de equipamentos públicos e de
lazer nos bairros deslocam para a escola muitas das expectativas de produção de relações entre os
pares. Enfim, podemos afirmar, com Martuccelli (2000,p. 256), que a escola cessa de ser modelada
pelos critérios únicos da sociabilidade adulta e vê penetrar aqueles da sociabilidade juvenil,
operando com lógicas e critérios próprios, como os de justiça e autoridade, que podem entrar em
choque com os existentes na escola.
Outro espaço significativo na construção do jovem como aluno é a sala de aula. Esse espaço
foi e ainda é considerado o núcleo central da vida escolar, espaço privilegiado do ensino e
aprendizagem, que funcionaria como um corpo simples de alunos e professor, regido por princípios
que regram as atividades pedagógicas, com centralidade na disciplina dos corpos e mentes. Cada
vez mais, porém, a sala de aula aparece como uma complexa trama de relações de alianças e
conflitos, de imposições de normas e estratégias individuais e coletivas de transgressão, na qual é
visível a tensão entre o “ser jovem” e “ser aluno” com um e outro ganhando mais visibilidade
dependendo do contexto. É a formação dos subgrupos, definidos espacialmente, com as conversas e
brincadeiras, a “zoação”[18], ocorrendo no seu interior e entre os diferentes grupos, muitas vezes
motivos de conflitos que explodem durante as aulas. É o descompasso entre a velocidade e fluidez
dos tempos juvenis com o tempo vagaroso e muitas vezes letárgico das aulas, diminuindo a
concentração e o envolvimento dos jovens com as disciplinas.
O mesmo descompasso se observa entre uma cultura baseada na imagem, hegemônica entre
os jovens, e a cultura escrita, valorizada pela escola. Muitas vezes a resposta dos jovens alunos se
dá mediante a utilização de aparelhos eletrônicos ( MP3, celulares, etc), ícones da cultura juvenil,
durante as aulas numa clara atitude de negação ou alheamento ao que se passa, rompendo com os
tempos rígidos da dinâmica escolar. Ao constituir-se como aluno, o jovem vivencia a ambigüidade
entre seguir as regras escolares e cumprir as demandas exigidas pelos docentes, orientadas pela
visão do “bom aluno”, e, ao mesmo tempo, afirmar a subjetividade juvenil por meio de interações,
posturas e valores que orientam a ação do seu grupo.
Podemos afirmar que as relações na sala de aula baseiam-se em um triângulo instável entre o
professor, o aluno e o seu grupo, onde muitas vezes é a oposição entre o mestre e o grupo que
permite entender o desenvolvimento da vida escolar (MARTUCCELLI, 2000). Essa tensão revela a
busca do jovem em integrar-se ao sistema e, ao mesmo tempo, afirmar a sua individualidade, como
sujeito, utilizando as mais variadas estratégias. Nesse processo, novos scripts sociais podem ser
criados e executados pelos jovens alunos em meio ao conjunto das interações que ocorrem na escola
e, em meio à aparente desordem, eles podem estar anunciando uma nova ordem que a instituição
escolar ainda insiste em negar.
Ainda no âmbito das relações sociais que ocorrem no cotidiano escolar, é necessário
ressaltar aquelas existentes entre alunos e professores. Vem ocorrendo uma mudança significativa
nessa relação, principalmente na questão da autoridade, onde os alunos não se mostram dispostos a
reconhecer a autoridade do professor como natural e óbvia. Como lembra Dubet (2006), a mudança
dos alunos interfere diretamente nas formas e metas das relações de poder presentes na instituição.
Se antes a autoridade do professor era legitimada pelo papel que ocupava, constituindo-se no
principal ator nas visões clássicas de socialização, atualmente é o professor que precisa de construir
sua própria legitimidade entre os jovens. Mas isso não diminui sua importância na relação
pedagógica.
Nas escolas, é comum a existência de professores com posturas diversas tanto nas
concepções em relação ao ensino e sua funções quanto nos posicionamentos diante dos alunos. A
postura do professor, tanto no discurso quanto no comportamento, termina produzindo normas e
escalas de valores, a partir das quais classifica os alunos e a própria turma, comparando,
hierarquizando, valorizando, desvalorizando, influenciando na criação de imagens e estereótipos
que terminam tendo uma grande influência, positiva ou negativa, no processo de ensino e
aprendizagem.
Por seu lado, os alunos também classificam os professores de acordo com a postura deles.
No geral, tendem a reclamar da falta de compromisso e do pouco investimento na qualidade das
aulas, além da falta de escuta, mas principalmente da tendência em “infantilizá-los”, aliado ao
desrespeito ou mesmo da humilhação a que são submetidos pelos professores, resultado da
existência de regras instáveis que regulem essa relação. Nesse jogo de acusações mútuas, parece
evidente que, além dos alunos, os professores também enfrentam o problema de motivar-se para o
trabalho escolar, gerando um circulo vicioso no qual é o jovem aluno que tende a sair perdendo.
A tensão entre ser aluno e ser jovem se manifesta também na relação com o conhecimento e
os processos de ensino aprendizagem. Nas pesquisas já citadas, tem sido reiterada a crítica dos
alunos a um currículo distante da sua realidade, demandando que os professores os “situem na
matéria”, ou seja, os ajudem a perceber o que determinado conteúdo tem a ver com eles e sua vida
cotidiana. Segundo Sposito (2004), nessa demanda os jovens explicitam a necessidade de
subjetivação do conhecimento como sua efetiva apropriação e de que os professores os ajudem a
transformar o conhecimento em caso “pessoal”, o que nem todos conseguem.
Por outro lado, o investimento dos alunos e o seu envolvimento com as disciplinas é
diferenciado, dependendo da forma como cada um elabora o seu estatuto como aluno mas também
com a capacidade de atribuir sentido ao que é ensinado, condição essencial para a aprendizagem.
Dessa forma, “entre a ação de ensinar e o aprender, situa-se o sujeito que reivindica estar implicado
e que demanda realizar um trabalho pessoal tendo em vista o seu processo de construção como
aluno do ensino médio”(SPOSITO, 2004,p.18).
Essa tensão, manifesta nessas diferentes dimensões, concretiza-se nos mais diversos
percursos escolares, marcados pela participação e/ou passividade, pela resistência e/ou
conformismo, pelo interesse e/ou desinteresse, expressão mais clara da forma como cada um
elabora a tensão entre o ser jovem e o ser aluno. Há um continuum diferenciado de posturas, no qual
uma pequena parte deles adere integralmente ao estatuto de aluno. Esses, geralmente os que reúnem
uma melhor condição social e incentivo familiar à escolarização, conseguem articular a utilidade
dos estudos com seus próprios interesses e gostos.
No outro extremo, encontramos aqueles que se recusam a assumir tal papel, construindo
uma trajetória escolar conturbada e, para a maioria, a escola se constitui como um campo aberto,
com dificuldades em articular seus interesses pessoais com as demandas do cotidiano escolar,
enfrentando obstáculos para se motivarem, para atribuírem um sentido a esta experiência e elaborar
projetos de futuro. Mas, no geral, podemos afirmar que se configura uma ambigüidade caracterizada
pela valorização do estudo como uma promessa futura, uma forma de garantir um mínimo de
credencial para pleitear um lugar no mercado de trabalho e uma possível falta de sentido que
encontram no presente.
Tal ambigüidade reflete as diferenças com as quais a escola e o jovem lidam com o tempo.
A instituição escolar ainda se pauta por uma visão reiterada de futuro, na lógica do "adiamento das
gratificações" (CAVALLI, 1980), ou seja, ela não tem sentido em si, pelo acesso a uma formação
no presente, mas pelas recompensas que supostamente trará em médio ou longo prazo. Por seu lado,
o jovem vive imerso no presente, buscando nele o sentido para as suas ações, muitas vezes
buscando uma gratificação imediata pelo possível esforço despendido nos estudos, através do
reconhecimento e principalmente das notas. Ao mesmo tempo, coloca em questão o peso do futuro,
em uma postura que é reforçada pelas transformações que ocorrem no mundo do trabalho e pela
relativização do peso dos diplomas no ingresso no mercado de trabalho.
Dessa forma, a relação dos jovens pobres com a escola expressa uma nova forma de
desigualdade social, que implica o esgotamento das possibilidades de mobilidade social para
grandes parcelas da população e novas formas de dominação. Neste caso, a sociedade joga sobre o
jovem a responsabilidade de ser mestre de si mesmo. Mas, no contexto de uma sociedade desigual,
além deles se verem privados da materialidade do trabalho, do acesso às condições materiais de
vivenciarem a sua condição juvenil, defrontam com a desigualdade no acesso aos recursos para a
sua subjetivação. A escola, que poderia ser um dos espaços para esse acesso, não o faz. Ao
contrário, gera a produção do fracasso escolar e pessoal. Como lembra Dubet (2006), o dominado é
convidado a ser o mestre da sua identidade e de sua experiência social ao mesmo tempo que é posto
em situação de não poder realizar este projeto.
Em busca de novos caminhos: reflexões e problematizações. Como já afirmamos, a
escola não é uma instituição estática, sendo palco de tensões entre propostas inovadoras e
tendências imobilistas. Nesse contexto, nos últimos anos vêm proliferando no Brasil a implantação
de novas propostas político-pedagógicas nos sistemas oficiais de ensino, principalmente no âmbito
municipal, patrocinadas por gestões de perfil progressista. Tais propostas, com pressupostos,
dimensões e alcances variados, têm em comum o discurso da democratização do ensino público e a
elevação da sua qualidade baseadas nos princípios da justiça social e eqüidade a partir do
reconhecimento da diversidade sociocultural dos alunos. O processo de implementação e avaliação
dessas propostas vêm colocando em questão, de alguma forma, a estrutura escolar com determinada
organização de tempos e espaços, o currículo e sua adequação, o papel dos atores escolares, dentre
outras dimensões, envolvendo educadores, pais e especialistas em um debate acalorado.
Muitas dessas propostas, na busca de estabelecer um diálogo com os jovens, tendem a
desenvolver ações em torno das mais diferentes expressões culturais, na perspectiva de valorizar a
cultura juvenil dentro da escola. Mas na sua implementação, tais ações assumem direções e alcances
variados. Em várias escolas, percebe-se uma tendência em reduzí-las a determinado tempo e espaço,
no recreio ou em atividades extra-escolares, fazendo delas um meio de ocupar o tempo dos alunos,
constituindo-se em um apêndice, sem nenhum impacto no conjunto do currículo. Ao mesmo tempo,
há o risco de uma escolarização das expressões culturais juvenis, numa formalização e numa
artificialização de tais práticas que pouco acrescentam à formação do jovem.
Já em outras escolas vem sendo experimentada uma perspectiva de maior alcance. Há uma
busca em atribuir uma centralidade às diferentes expressões culturais no currículo numa dupla
dimensão. Primeiro, considerar que as expressões culturais, seja música, teatro, dança, artes
plásticas, dentre outras, constituem a expressão superior das potencialidades que nos fazem
humanos, cada uma delas possibilitando trabalhar ao mesmo tempo com a totalidade das nossas
dimensões, tal como o afetivo, o corporal, o cognitivo, etc., com um potencial educativo em si
mesmas.
Dessa maneira, a escola gera um aperfeiçoamento cultural necessário, principalmente
tratando-se de jovens pobres, uma vez que lhes proporciona uma ampliação do acesso às diferentes
expressões culturais. Ao mesmo tempo, ao incentivar e atuar com os grupos culturais juvenis, tais
propostas buscam envolvê-los pelo prazer, possibilitando-lhes tempos e espaços para que se
aperfeiçoem, ampliem a rede de sociabilidade e se fortaleçam como sujeitos de uma identidade.
Mas há o cuidado de garantir a sua autonomia como um espaço próprio dos jovens, com a escola
intervindo apenas quando for demandada, sem pretender que eles atuem na perspectiva da lógica
escolar.
Outra tendência que se pode observar nessas propostas é a ampliação excessiva das funções
da escola, principalmente naquelas cujos alunos são caracterizados como “jovens em situação de
risco”. Esse movimento ocorre tanto nos currículos, com a inclusão de novas disciplinas como
“educação para cidadania”, dentre outras, como também na criação de projetos e oficinas as mais
diversas, até mesmo cooperativas de produção. Muitas vezes tais propostas baseiam-se em uma
leitura própria que os professores fazem da realidade e dos problemas vividos pelos jovens alunos
mas sem considera-los, eles que seriam os principais beneficiários, como interlocutores válidos no
processo da sua elaboração.
Ao mesmo tempo, muitas dessas propostas, mesmo com objetivos louváveis, terminam
reforçando uma concepção hegemônica da educação restrita à escola, que se torna apanágio para
todos os males, diluindo sua especificidade. E mais, investem como se a escola, por si só, fosse
capaz de garantir a superação das desigualdades sociais. Será possível? Os jovens pobres sabem que
não e demandam mais do que a escolarização. Eles, ao contrário da escola, já experimentam na pele
o descentramento das instituições e demandam mais. Demandam redes sociais de apoio mais
amplas, como equipamentos de lazer e cultura nos seus bairros, além de políticas públicas que os
contemplem em todas as dimensões, desde a sobrevivência até o acesso aos bens culturais.
5- Finalizando…
Depois de percorrer as trilhas dessa reflexão, retomamos a pergunta inicial: Afinal, a escola
“faz” as juventudes?
Para grande parte da juventude brasileira, aquela que de alguma forma foi excluída antes de
concluir o ensino básico, parece que a experiência escolar pouco contribuiu e contribui na
construção da sua condição juvenil, a não ser pelas lembranças negativas ou, o que é também
comum, pela sensação de incapacidade, atribuindo a si mesmos a “culpa” pelo fracasso escolar,
com um sentimento que vai minando a auto estima. Esses já vivem sua juventude marcados pelo
signo de uma inclusão social subalterna, enfrentando as dificuldades de quem está no mercado de
trabalho sem as certificações exigidas.
Para aqueles que freqüentaram e freqüentam o ensino médio, parece que a escola contribui,
em parte, na construção e na vivência da sua condição juvenil. E é em parte porque a escola perdeu
o monopólio da socialização dos jovens, mesmo continuando a ser uma referência significativa para
a vivência juvenil. Como vimos, a socialização juvenil vem ocorrendo em múltiplos espaços e
tempos, principalmente naqueles intersticiais dominados pela sociabilidade. Essa constatação traz
conseqüências significativas. Implica reconhecer que a dimensão educativa não se reduz à escola,
nem que as propostas educativas para os jovens tenham de acontecer dominadas pela lógica escolar.
Implica investir em políticas que considerem a cidade na sua dimensão educativa, garantindo o
direito de ir-e-vir, até mesmo nas noites dos finais de semana, o acesso a equipamentos de cultura e
de lazer mas principalmente transformando o espaço publico em espaços de encontro, de estímulo e
de ampliação das potencialidades humanas dos jovens, possibilitando, de fato, uma cidadania
juvenil.
Mas a escola também só contribui em parte porque a vivência juvenil no cotidiano escolar é
marcada pela tensão e pelos constrangimentos na sua difícil tarefa em constituir-se como aluno. A
escola e muitos dos seus profissionais ainda não reconhecem que seus muros ruíram, que os alunos
que ali chegam trazem experiências sociais, demandas e necessidades próprias. Continuam lidando
com os jovens com os mesmos parâmetros consagrados por uma cultura escolar construída em outro
contexto. A escola tem de se perguntar se ainda é válida uma proposta educativa de massas,
homogeneizante, com tempos e espaços rígidos, numa lógica disciplinadora em que a formação
moral predomina sobre a formação ética em um contexto de flexibilidade e fluidez, de
individualização crescente e de identidades plurais.
Parece que os jovens alunos, nas formas em que vivem a experiência escolar, estão nos
dizendo que não querem tanto ser tratados como iguais, mas, sim, reconhecidos nas suas
especificidades, o que implica serem reconhecidos como jovens, na sua diversidade, um momento
privilegiado de construção de identidades, de projetos de vida, de experimentação e aprendizagem
da autonomia. Demandam dos seus professores uma postura de escuta - que se tornem seus
interlocutores diante de suas crises, dúvidas e perplexidades geradas ao trilharem os labirintos e
encruzilhadas que constituem sua trajetória de vida. Enfim, nos parece que demandam da escola
recursos e instrumentos que os tornem capazes de conduzir a própria vida em uma sociedade na
qual a construção de si é fundamental para dominar seu destino.
Temos consciência que não conseguimos responder adequadamente à pergunta inicial. Para
sabermos de fato em que medida a escola faz a juventude, torna-se necessária uma investigação
empírica que traga elementos para aprofundar tal questão. Até então os estudos sobre a relação entre
juventude e escola tenderam a investir na análise do jovem na escola, buscando compreender o
conjunto de variáveis que interferem na sua trajetória escolar, que o leva a tomar determinada
posição em relação à instituição. Mas ainda sabemos muito pouco sobre o que a escola produz de
fato no jovem, sobre as possíveis influências do percurso escolar nas outras dimensões presentes da
sua trajetória de vida, quer na família, no grupo de pares, nas expressões da cultura juvenil e, se for
o caso, no trabalho. Em outras palavras, implica se interrogar pelas possíveis transferências de
conteúdo da socialização escolar para os outros espaços e situações sociais em que vive, buscando
compreender os possíveis impactos da experiência escolar na vida social do jovem. Ao enfrentar
esse desafio teórico- metodológico, será possível, então, uma resposta adequada a essa questão.
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[1]Esse texto foi apresentado parcialmente no Simpósio Internacional “Ciutat.edu: nuevos retos, nuevos compromissos” realizado em Barcelona em outubro de 2006. O texto completo integra a coletânea “Actores educativos: escola, jovens e media” organizada pela Prof. Maria Manuel Vieira a ser publicado em 2007 pela Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa.
Agradeço ao Prof. José Machado Pais e à Prof. Nilma Lino Gomes, bem como à equipe do Observatório de Escolas do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, pelas contribuições valiosas ao texto. Agradeço também o apoio do CNPq que tornou possível a realização desse trabalho.
[2] Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e Coordenador do Observatório da Juventude da UFMG.
[3][3] Tomamos como referência, além dos estudos citados ao longo do texto, duas pesquisas realizadas com os jovens integrantes de grupos culturais juvenis que participaram do projeto Formação de Agentes Culturais Juvenis, desenvolvido pelo Observatório da Juventude da UFMG, envolvendo 16 grupos culturais dos mais diversos estilos (GOMES e DAYRELL, 2002; 2003; DAYRELL, 2005).
[4] É interessante ressaltar que algumas análises sobre o ensino médio em outros países partem dessa mesma constatação, tanto na América Latina, como Dávila, 2005, ou mesmo na Europa, como Dubet(2000), dentre outros.
[5] Segundo dados do IBGE, PNAD (2001), entre 1995 e 2001, por exemplo, o número total de estudantes entre 15 e 24 anos passou de 11,7 para 16,2 milhões. Neste mesmo período, o ensino médio registrou um aumento de 3 milhões de matrículas, significando um crescimento relativo de 65,1%.
[6] A defasagem entre série e idade ainda é significativa: do total de matriculas no ensino médio da população até 24 anos – 7,6 milhões, apenas 3,9 estavam na faixa etária de 15 a 17 anos, que seria a idade ideal para esse nível de ensino. Outro limite é a alta taxa de jovens que continuavam fora da escola: em 2002, 17 milhões de jovens (51,5%) não estavam estudando e, destes, 48,5% não haviam concluído o ensino fundamental obrigatório. (IBGE,PNAD,2002)
[7] Para uma discussão mais ampla sobre a noção de juventude, cf. PAIS,1993; MARGULIS, 2000; SPOSITO,2002, DAYRELL,2005, dentre outros.
[8] Dentre eles podemos citar: Sposito (1993, 1999), Abramo (1994), Caldeira (1984), Minayo (1999), Abromavay (1999). Esta mesma tendência é constatada entre os jovens portugueses, analisados por Pais (1993), ou italianos analisados por Cavalli, 1997.
[9] Galeras são agrupamentos juvenis estruturados em torno de atividades de lazer, principalmente os bailes e festas, tendo como referência uma territorialidade, que pode ser o bairro e/ou aqueles vizinhos.
[10] De acordo com os dados da pesquisa Retratos da Juventude Brasileira, realizada em 2004, 36% dos jovens estudantes de 15 a 24 anos trabalhavam e 40% estavam desempregados, sendo que 76% deles estavam envolvidos, de alguma forma, com o mundo do trabalho (Sposito, 2005)
[11] Em um interessante artigo sobre o lugar do trabalho escolar, Vieira(2005) questiona a condenação generalizada do trabalho infanto-juvenil que o transforma em interdito na sua relação com a escola. Para a autora, é necessário reconhecer a pluralidade de dimensões, intensidades, formas, aprendizagens e representações do trabalho no ponto de vista das crianças e jovens.
[12] Dentre eles podemos citar VAN HAETCHT,1992; DUBAR ,1997 e CHARLOT,2000.
[13] Dubet afirma que usa o termo “instituição” em um sentido bem particular que não se identifica
com as organizações, com os sistemas de representação e de decisões políticas, com os costumes e maneira de ser. Sua escolha distingue-se, também, do uso da noção de institucionalização quando indica um processo de rotinização das condutas (DUBET, 2002). Por essas razões, para Dubet, a desinstitucionalização significa crise e mutação de uma modalidade de ação institucional consagrada pela modernidade.
[14] Sposito, 2004; Souza, 2003; Abromovay, 2003; Marques, 1997; Nogueira, 2006; dentre outros.
[15] Nome atribuído aos jovens que valorizam a ostentação de um padrão de consumo, por meio do vestuário principalmente, buscando sempre estar “na moda”.
[16] É a sigla de “cu-de-ferro”, atribuída àqueles que investem no ofício de aluno, quase sempre numa adesão às regras escolares. Corresponde ao “marrão” português, ao “nerd” americano ou ao “soplón” espanhol.
[17] As pesquisas sobre violência escolar revelam que esta se expressa sobretudo no âmbito das ameaças e agressões verbais, principalmente entre grupos de pares ( Sposito, 2004)
[18] O termo “zoação” refere-se às brincadeiras, piadas e trocadilhos entre os jovens, mas que podem resvalar também para a humilhação ou estigmatização. NOGUEIRA (2006) desenvolve uma brilhante análise da sociabilidade juvenil em uma escola publica, constatando que a zoação para os jovens é uma forma de diferenciar-se da escola e de suas regras e inserir-se nesse espaço como jovens alunos que são, constituindo-se como uma estratégia discente de realizar o trabalho escolar e atribuir novos significados à escola.