Download - A Culpa Da Personagem Luis Silva
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS
JULIANA PAULA BRAGGIO ZORAWSKI
A CULPA DA PERSONAGEM LUS DA SILVA DO ROMANCE
ANGSTIA DE GRACILIANO RAMOS
PORTO ALEGRE
2009
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JULIANA PAULA BRAGGIO ZORAWSKI
A CULPA DA PERSONAGEM LUS DA SILVA DO ROMANCE
ANGSTIA DE GRACILIANO RAMOS
Trabalho de Concluso de Curso apresentado como requisito parcial para a obteno do ttulo de Licenciado em Letras, pelo Curso de Letras - Portugus e Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientadora: Profa. Dra. Mrcia Ivana de Lima e Silva
PORTO ALEGRE
2009
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JULIANA PAULA BRAGGIO ZORAWSKI
A CULPA DA PERSONAGEM LUS DA SILVA DO ROMANCE
ANGSTIA DE GRACILIANO RAMOS
Trabalho de Concluso de Curso apresentado como requisito parcial para a obteno do ttulo de Licenciado em Letras, pelo Curso de Letras - Portugus e Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientadora: Profa. Dra. Mrcia Ivana de Lima e Silva
Aprovado em ____/____/____
BANCA EXAMINADORA:
__________________________________________________________________________
Profa. Dra. Gilda Neves da Silva Bittencourt Universidade Federal do Rio Grande do Sul
__________________________________________________________________________
Prof. Dr. Antnio Marcos Vieira Sanseverino - Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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SUMRIO
1 INTRODUO .....................................................................................................................4
2 ANGSTIA ............................................................................................................................6
2.1 Lus da Silva........................................................................................................................6
2.2 O crime ..............................................................................................................................10
3.3 As consequncias do crime para Lus da Silva: o sentimento de culpa.......................11
3 TEORIAS SOBRE A CULPA............................................................................................18
3.1 Estudos de Moacyr Scliar sobre a culpa.........................................................................18
3.2 Estudos de Sigmund Freud sobre a culpa ......................................................................20
3.3 Estudos de Friedrich Nietzsche sobre a culpa ...............................................................24
4 MOTIVAES DE LUS DA SILVA PARA COMETER O ASSASSINATO............27
4.1 Primeira hiptese: Redimir a sociedade.........................................................................27
4.2 Segunda: Livrar-se de seu rival Julio Tavares ............................................................30
4.3 Terceira: Lus da Silva j era vtima do sentimento de culpa antes de cometer o
crime ........................................................................................................................................33
4.3.1 Rasklnikof e Lus da Silva ..........................................................................................34
4.3.2 Destinos distintos Redeno.......................................................................................36
5 CONSIDERAES FINAIS..............................................................................................39
REFERNCIAS .....................................................................................................................42
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................43
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1 INTRODUO
Neste trabalho proponho-me fazer uma anlise do comportamento da personagem Lus
da Silva, do romance Angstia (2005), de Graciliano Ramos, e das suas condutas ao longo da
vida, relatadas por ela prpria, personagem-narrador na obra. Lus da Silva apresenta a mente
perturbada e a angstia, da qual vtima e que d nome obra, acompanha-o durante todo o
romance, antes e depois do assassinato que cometeu. Meu propsito mostrar, pois, que Lus
da Silva sente culpa por ter matado Julio Tavares. Constatada a culpa, buscarei abordar,
investigar e discutir as origens e o processo psquico do sentimento de culpa que o mortifica.
Uma vez que a prtica do crime torna a vida de Lus da Silva um tormento, desenvolverei um
estudo a respeito das motivaes que o levaram a cometer o assassinato. Para tanto, elaborarei
trs hipteses e discorrerei a respeito dessas possibilidades, a fim de chegar o mais perto
possvel do entendimento das atitudes e do cerne de Lus da Silva.
Dada a complexidade desta personagem, para interpret-la buscarei auxlio nos
conhecimentos de alguns tericos a respeito do tema, principalmente Sigmund Freud, que no
poderia ser ignorado quando o assunto culpa.
Usarei diversos trechos de Angstia para ilustrar o que constato bem como bibliografia
de diversos pesquisadores que se debruaram sobre Lus da Silva e nele tambm perceberam,
ou culpa, ou, no mnimo, indcios de perturbao, devidos ao crime que cometeu.
Foram muitos os estudiosos que analisaram a obra literria de Graciliano Ramos, de
forma que a fortuna crtica muito vasta e h muita divergncia de opinies a respeito.
Assim, selecionei para leitura e abordagem as obras que se mostraram interessantes ao meu
estudo, ciente, no entanto, de que muitas outras havia. O tempo e a natureza deste trabalho,
que no consiste em uma pesquisa to aprofundada quanto um trabalho de mestrado ou
doutorado, foram os impedimentos para uma explorao mais minuciosa do assunto e para a
contemplao de um maior nmero de trabalhos referentes ao romance escolhido.
Sendo assim, o trabalho composto de cinco captulos, divididos em subcaptulos, de
acordo com os pontos selecionados para o estudo. No primeiro captulo, este portanto, h uma
breve apresentao do trabalho, de sua estrutura e objetivos; no segundo, o propsito
apresentar o romance Angstia e a personagem Lus da Silva, bem como seu sofrimento com
a culpa que a domina. O terceiro captulo, mais terico, traz uma breve sntese do pensamento
de Moacyr Scliar, Sigmund Freud e Friedrich Nietzsche sobre a culpa; no quarto, lano
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hipteses acerca de possveis motivaes que conduziram a personagem prtica do crime,
bem como, fao uma comparao de Lus da Silva com Rasklnikof1, uma vez que Angstia e
Crime e Castigo (1994), de Dostoivski2, possuem estreita comunicao, apontando
diferenas e semelhanas entre seus comportamentos. As hipteses lanadas e esse paralelo
entre as obras colaboram para que se interprete o sentimento de culpa da personagem,
principal propsito deste trabalho, e assim possa ser construda a concluso, trazida no quinto
captulo.
O mundo das obras de Graciliano subjetivo, est no interior das personagens. Dito de
outro modo, seus romances diferem um tanto de grande parte da literatura, por explorarem
mais detidamente o universo psicolgico e individual das personagens de forma a
concentrarem sua abordagem mais nesses subterrneos que em acontecimentos. Neles nos so
apresentados monlogos interiores das personagens, que sempre travam lutas mortais com
suas conscincias. A partir desses dramas, surgem lacunas que permitem que a personagem
seja estudada mediante um vis psicolgico, aspecto que desejo explorar em Lus da Silva,
personagem-narrador de Angstia.
1 Para este trabalho esta foi a grafia adotada para o nome da personagem de Crime e Castigo, no entanto,
aparecero variaes (Raskolnikov, Raskolnikof, etc.), de acordo com as diferentes grafias adotadas por outros escritores.
2 Para este trabalho esta foi a grafia adotada para o nome do escritor russo, no entanto, aparecero variaes (Dostoievski, etc.), de acordo com as diferentes grafias adotadas por outros escritores
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2 ANGSTIA
Publicada em 1936, Angstia a terceira das obras de Graciliano Ramos de maior
vulto em ordem de publicao e figura dentre as mais respeitadas. As personagens dos
romances de Graciliano so dotadas de grande complexidade, so tridimensionais e
constituem universos ricos a perscrutar. Dentre esses seres fictcios, Lus da Silva,
protagonista do romance, um grande representante de um ser complexo, envolto em suas
prprias tramas e perturbaes.
Angstia o estado permanente de Lus da Silva. Esse sentimento, no entanto, agrava-
se medida que ele vai perdendo o pouco que possui - o amor de Marina e os amigos, que j
no eram muitos tendo em vista que se isola em casa aps ter ingressado em vida culpada,
isolamento que a alternativa encontrada aps a prtica de assassinato.
O romance Angstia tem como protagonista Lus da Silva, que um indivduo do
interior de Alagoas que vai morar na capital onde se emprega em uma repartio pblica
realizando tarefas burocrticas. Enamora-se de Marina, sua vizinha, e, aps mtuos e efetivos
planos de casamento e despesas para o enxoval, perde a noiva para Julio Tavares, seu rival,
sujeito gordo, falante, abastado, bacharel, conquistador, que a engravida, abandonando-a
posteriormente. Lus sente-se pequeno e inferiorizado em relao a Julio Tavares e, aps a
perda da noiva, comea a nutrir um dio mortal por ele. Esse sentimento vai tomando a forma
de uma raiva, que cresce junto com a certeza de Lus de que seu concorrente deve morrer at
que, em situao propcia, assassina-o. A partir desse fato, Lus da Silva, que j vivia
atormentado e perdido em pensamentos e devaneios, comea a ficar cada vez mais
perturbado, tem a impresso de que vo descobrir seu crime, sente que todos o olham
estranhamente, falta ao trabalho e vive de forma a no mais conduzir a vida normalmente. Ao
final do romance, encontra-se doente, atormentado pela sua conscincia e em pleno estado de
padecimento.
2.1 Lus da Silva
Lus da Silva julga-se um perdedor, um covarde, sente-se um verme, um desajustado
no mundo, costuma esconder-se. Abomina seu trabalho, no tem orgulho de si prprio e
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completamente s, no consegue adquirir a postura de um homem e percebe-se incapaz de
assumir posies.
O trecho abaixo revela um pouco da personagem na descrio que faz de si prpria:
[...] tenho a impresso de que me faltam peas do vesturio. Assaltam-me dvidas idiotas. Estarei porta de casa ou j terei chegado repartio? Em que ponto do trajeto me acho? No tenho conscincia dos movimentos, sinto-me leve. Ignoro quanto tempo fico assim. Provavelmente um segundo, mas um segundo que parece eternidade. Est claro que todo o desarranjo interior. Por fora devo ser um cidado como os outros, um diminuto cidado que vai para o trabalho maador, um Lus da Silva qualquer (RAMOS, 2005, p. 25-26).
Um homem perdido, desajustado, desequilibrado. Essa a noo que nos do seus
prprios relatos, uma vez que ele o prprio narrador da obra. Tenho vivido em numerosos
chiqueiros. Provavelmente esses imveis influram no meu carter. (RAMOS, 2005, p. 46)
Tampouco aprova Lus as suas caractersticas fsicas: Alm de tudo sou feio. Perfeitamente,
tenho espelho em casa. Os olhos baos, a boca muito grande, o nariz grosso. (p. 41). Suas
palavras transmitem uma completa desaprovao e desgosto de si mesmo. Com efeito, ao
longo de toda a obra, o monlogo de Lus traz o passado, intercalando-o com o presente e
cogitando o porqu da sua desgraa, da sua condio de desalinhamento junto ao meio social.
Seus pensamentos escancaram o medo, o desconforto e o desequilbrio que o perturbam.
Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mos, que emagreceram. As mos j no
so minhas: so mos de velho, fracas e inteis. As escoriaes das palmas cicatrizaram (p.
8).
Antonio Candido (2006, p. 47) diz que Lus da Silva a personagem mais dramtica
da moderna fico brasileira: Raras vezes encontraremos na nossa literatura estudo to
completo de frustrao. Lus , para Candido, um frustrado violento, cruel, irremedivel,
que traz em si reservas inesgotveis de amargura e negao (p. 47). No mesmo livro, acham-
se dados bem pertinentes a este estudo, de acordo com Candido, acerca da personalidade da
personagem de Graciliano: [...] tmido e solitrio, dotado de um poder mrbido de auto-
anlise, que o faz, em consequncia, desenvolver um nojo impotente dos outros e de si
mesmo (p. 112). Acrescenta Candido que a caracterizao de Lus da Silva complexa. Ele
por excelncia o selvagem, o bicho, escondido na pele dum burgus medocre (p. 114) e
que, no mesmo indivduo Lus da Silva, colidem:
[...] um ser social, ligado necessidade de ajustar-se a certas normas convencionais para sobreviver, e um ser profundo, revoltado contra elas, inadaptado, vendo a marca da contingncia e da fragilidade em tudo e em si mesmo. Da a incapacidade
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de viver normalmente e o nascimento do senso de culpa, ou autonegao (CANDIDO, 2006, p. 114).
Medos e emoes terrveis acometem Lus da Silva. Candido menciona tambm as
suas divagaes, constatando-o um tanto perturbado:
[...] o devaneio chegar em Angstia ao crispado monlogo interior, onde evocao do passado vem juntar-se uma fora de introjeo que atira o acontecimento no moinho da dvida, da deformao mental, subvertendo o mundo exterior pela criao de um mundo paroxstico e tenebroso, que, de dentro ri o esprito e as coisas (CANDIDO, 2006, p. 27).
Candido (2006) compara Lus da Silva a outras personagens da literatura brasileira e
cita Bento Santiago, dizendo que este possui certa complacncia irnica ou piedosa, uma
forma de perdoar-se a si mesmo; j em Lus o que se manifesta uma depravao dos valores,
sentimento de abjeo ante o qual tudo se colore de tonalidade corrupta e opressiva. Falta-
lhe, na verdade, o mnimo de confiana necessria para viver (p. 48). Na anlise psicolgica
que Candido faz acerca de Lus, conclui que o protagonista de Angstia um pessimista,
possudo pelo negativismo, que a vida para ele se torna um pesadelo sem sada, onde as
vises desnorteiam e suprimem a distino do real e do fantstico. Da resulta a fuligem que
encobre, suja, sufoca e d desejos impossveis de libertao (p. 48).
Da mesma forma, Antonio Marcos Vieira Sanseverino no ensaio, Dyonlio e
Graciliano, apresenta Lus da Silva como um ser inferior, subserviente, esmagado pelo
mundo burgus. Neste trabalho apresenta-nos todo um estudo das semelhanas entre as
personagens dos romancistas citados no ttulo, quais sejam, Naziazeno, personagem principal
do romance Os ratos, e Lus da Silva, que aqui nos interessa. Para o autor, ambos so dois
pobres coitados, funcionrios pblicos fracassados e frustrados (SANSEVERINO, 1993, p.
29). Comparando-os, cita Jos Paulo Paes, quando os percebe representantes do pobre diabo
na literatura brasileira. Este, segundo Paes, seria: tpico funcionrio subserviente, que se
coloca sempre abaixo, fazendo tudo e apenas aquilo que lhe mandado. Sua atividade
meramente rotineira, no mais das vezes tarefa improdutiva, com a qual recebe os favores,
salrio, do Estado. (PAES, 1990 apud SANSEVERINO, 1993, p. 28-29). Que Lus da Silva
vive sem identidade prpria, como diz Sanseverino, o prprio nome da personagem ilustra.
Seu av chamava-se Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva; seu pai, Camilo Pereira da
Silva. Lus da Silva simplesmente Lus da Silva, um nome comum, igual a milhes de
outros brasileiros, ou seja, sem distino no grupo, sem um espao seu, sem identidade,
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individualidade e, portanto, esmagado pelo peso grosseiro da sociedade. Ilustro melhor,
transcrevendo Sanseverino:
Por seu turno, o narrador de Angstia o prprio protagonista, Lus da Silva. Ele mesmo autodenomina-se de pobre diabo e percebe a posio acanalhada (por dentro dela) em que se encontra. Ele , alm de funcionrio pblico, escrevinhador de artigos para serem usados por outras pessoas. Ele vende sua habilidade tcnica para assumir a voz de prefeitos e polticos do interior de seu Estado, ele assume a voz do dono como sua. Ao mesmo tempo, se v incapaz de se assumir como empregado, como um trabalhador qualquer, porque no h mais uma linguagem comum. Seu modo de pedir cigarros ou bebida o afasta de outros freqentadores de um boteco qualquer (SANSEVERINO, 1993, p. 29-30).
A leitura de Angstia confirma o que dizem esses estudiosos, uma vez que Lus da
Silva o retrato do homem fraco, covarde, medroso.
No ensaio Itinerrio de uma Angstia, de autoria de Simone Schmidt, tambm h uma
percepo de que Lus da Silva vive em permanente estado de isolamento, o que a autora
atribui ao desajuste da personagem no mundo em que vive:
A Julio Tavares cairia muito bem o papel do culpado pelos tormentos do protagonista, no fosse a desconfiana, sempre pairando sobre as palavras de Lus da Silva, de que a culpa, se existe, informe e sem dono. A culpa poderia ser da cidade grande, onde foi encontrar o paradeiro quando seu pequeno mundo ruiu (estou feito um molambo que a cidade puniu demais e sujou.) Em outros momentos, Lus da Silva julga que a culpa por sua condio estaria em sua origem (SCHMIDT, 1993, p. 60).
A estudiosa afirma que essa personagem vive um tormento, que sua prpria angstia.
A dor de Lus diz respeito ao passado, ao presente e a uma constante sensao de medo,
rejeio e isolamento:
A realidade significa esta ameaa de desmoronamento. Lus da Silva tem medo: dos outros, da realidade. Por isso anseia por fugir do que o ameaa, envolvendo-se na solido. O foco narrativo em primeira pessoa, a presena constante do monlogo interior, dispensando o interlocutor direto, revelam o isolamento do personagem. Seu atordoamento tambm tem sinais claros na narrativa, e por isso que ela no se fixa, em momento algum, numa nica referncia temporal. [...] Jogando-se em direo ao passado, desponta no personagem um falso saudosismo, estratgia intil de fuga seu passado o oprime tanto quanto o presente. Projetar seu desejo para um futuro improvvel significa alcanar um lugar, um instante em que se liberte da convivncia imposta com o mundo: uma viagem, embriaguez, suicdio... Tudo em vo. No h libertao possvel para Lus da Silva. Est claro que todo o desarranjo interior (SCHMIDT, 1993, p. 59).
muito significativa a desordem interior de Lus da Silva, que vive perdido em
pensamentos e em suas memrias, envolto em labirintos sem sada, imerso na sua viso
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pessimista da vida, vivendo maquinalmente, sem perspectivas, sem f em si e nos outros,
completamente aptico. Lus no tem ningum, so poucos os seus amigos, vive numa penso
e carrega lembranas tristes das mortes da famlia, de como resultou sozinho na capital do
Estado, pagando aluguel, vivendo em penses.
Conforme Carvalho, a personagem de Graciliano incorpora heris na sua alma como
uma tradio (2009, p. 144). Na tese de doutorado, Graciliano Ramos: a dor e a nusea, esta
estudiosa menciona o desajuste de Lus da Silva e afirma que as personagens do passado
permeiam o romance Angstia, trazendo lembranas da sua infncia, acontecimentos
pretritos, recordaes e dores, traos comuns na obra de Graciliano, que apresenta tambm
em outras obras personagens recheadas de lembranas, sonhos, divagaes e angstias. Essas
rememoraes chegam ao leitor por meio de insights da personagem, medida em que Lus
da Silva imerge em lembranas, trazendo muitos fatos do seu passado. Segundo a autora,
esses heris representam: [...] o contraponto que Lus da Silva encontra para a sua fragilidade
fsica e a sua incapacidade total de comunicao com os outros (ele praticamente s se
comunica com sua criada, Vitria, que velha e surda, e com o papagaio, Currupaco, que
totalmente mudo) (p. 144).
2.2 O crime
Julio Tavares, grande, forte, falante, extrovertido, poderoso, era invejado por Lus
porque, influente, tinha nome, presena e dinheiro. Lus, que diante dele sentia-se
inferiorizado, alm de perder a amada Marina por Julio, tambm foi trado pelos dois que,
juntos, encontravam-se aos olhos dos pais de Marina quando ela ainda estava comprometida
com Lus, o qual no recebeu sequer uma satisfao de que os planos de casamento estavam
desfeitos. O descaso de Marina, a traio de todos, a sobressalncia de Julio, os boatos que
circundavam o romance de crimes sexuais praticados por este, vitimando mulheres indefesas,
todos esses fatores moviam Lus em direo ao crime que ele era tentado a cometer. Assim,
Lus comeou a seguir os passos de Julio e descobriu que Marina estava sendo trada. As
investigaes de Lus acusavam tambm as visitas freqentes de Julio a casas de
prostituio, bem como as prticas contnuas de seduo de moas ingnuas. A reunio de
todos esses fatos fez a raiva de Lus tomar ainda mais fora. Em uma noite que estava no
encalo de Julio Tavares, em uma rua de pouco movimento, Lus percebeu a oportunidade de
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pr em prtica o delito. Conforme j mencionado, seduzido por idias assassinas, puxou do
bolso a corda que ganhara do seu Ivo - um pedinte que costumava visit-lo e levou a cabo seu
plano insano. Com efeito, foi o que realizou, suspendendo o corpo pesado de Julio Tavares
com a corda no pescoo nos galhos de uma rvore, na rua deserta.
Schmidt analisa a trajetria de Lus da Silva e assevera:
Como era de se esperar, Lus da Silva fracassa tambm no amor. sua frustrao alia-se um outro elemento agravante: a traio. E logo quem a protagoniza - Julio Tavares, a caricatura do bom burgus, da fala abundante e intil, do cio, do poder e das conquistas. A figura do rival se converte na do invasor, que simbolicamente penetra em sua casa, instala-se, adona-se, rouba-lhe a mulher, rouba-lhe tudo. Julio Tavares deve morrer. A ideia, lentamente, toma forma na conscincia do personagem (SCHMIDT, 2005, p. 61).
No trecho acima, Schmidt deixa claro os motivos que fizeram com que Lus
assassinasse Julio Tavares. Segundo ela, era o que lhe parecia o mais correto a fazer. Na
verdade, difcil seria para Lus controlar seus impulsos e evitar o assassinato, tendo em vista
que todos os seus pensamentos convergiam para Julio Tavares, toda a sua energia era
despendida em vigi-lo, em observ-lo. Lus estava obcecado pela idia de enforcar Julio
Tavares.
3.3 As consequncias do crime para Lus da Silva: o sentimento de culpa
A prtica do crime torna-se inevitvel para Lus da Silva. A partir dela, no entanto, sua
vida transforma-se em um tormento. Desesperado, imediatamente aps a concretizao do
delito no sabe como agir, o que fazer com o cadver, como voltar para casa. Julga que tudo,
seu jeito, sua expresso, suas vestes, seu cheiro denunciaro seu ato horrendo; imagina que
todos os olhos buscam a sua direo, bem como que dedos alheios apontam-no. A narrativa
de Angstia, que no obedece linearidade do tempo, quando do assassinato de Julio
Tavares fica mais confusa e desordenada, e o leitor perde-se um pouco com a ordem dos
fatos. Lus sente medo, no quer tocar no cadver, ouve barulhos o tempo todo, teme a
aproximao de pessoas, sofre, enfim, com emoes bem tpicas de um assassino inexperiente
e covarde, atormentado pelo ato que praticou, o qual lhe trar futuros tormentos:
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Apareceram vozes na estrada. Vozes? Ou seria que eu estava tresvariando? Alucinao. No queria acreditar que pessoas normais se avizinhassem de mim sossegadamente. Agarrava-me com desespero corda. - Trinta anos de priso, tinta anos de priso. As grades que a gente no pode tocar, to nojentas so elas, as esteiras, as cortinas de pucum, os muros grossos, fome, sede [...] (RAMOS, 2005, p. 243).
A conduta criminosa, recm-praticada, desperta-lhe o medo da punio e Lus j
imagina a condenao pela sociedade, o julgamento e o castigo (a priso). Imagina-se atrs de
grades sujas, de muros intransponveis, numa vida de penria que teria, uma vez descoberto.
O curioso aqui que ele j se percebe exposto, julgado, condenado. Abaixo trago mais uma
passagem de um trecho, logo aps o enforcamento de Julio, quando Lus ainda encontra-se
no local do crime:
Agora os dedos seguravam mal aquele suporte incmodo e oscilante. Enorme preguia e enorme sono prendiam-me ao galho. Creio que dormi uns minutos. Seria bom cair: talvez a queda sacudisse o torpor e me restitusse a vontade necessria para entrar em casa e embriagar-me. Embriagar-me, naturalmente. Teria dormido? (RAMOS, 2005, p. 246).
Faltam foras a Lus para tomar qualquer providncia, finalizar a sua faanha e sair do
local do crime. Lus fica em dvida a respeito de ter dormido uns minutos, a qual reflete a
confuso mental da qual vtima, aps ter praticado o crime. Tambm a busca que ele faz de
um suposto chapu, que estaria usando, quando do assassinato, demonstram essa confuso:
Procurava o chapu, cado na luta, mas no sabia o que procurava. [...] Achei-o, mas ficou-
me a dvida de que fosse o mesmo experimentado minutos antes (RAMOS, 2005, p. 247).
Em meio ao desespero e sem sada, vem a Lus um pensamento mgico, uma soluo
irreal que o retira milagrosamente da situao desesperadora e aterrorizante em que se
encontra para transport-lo a um mundo de aconchego, onde estaria protegido, onde no
haveria assassinatos nem medo. O trecho abaixo exemplifica:
Como me seria possvel alcanar outro ramo? Passando a outro ramo, estaria em segurana. Se pudesse retirar-me dali [...]. Tive a ideia extravagante de chegar cidade andando sobre as rvores. - Em segurana, em segurana. Evidentemente era preciso descer, mas isto me apavorava. L embaixo numerosos inimigos iam perseguir-me (RAMOS, 2005, p. 246).
Esses pensamentos acusam tambm a mania de perseguio que ele comea a
desenvolver e que se estender at o final do romance porque Lus comea a sentir uma culpa,
que vai atormentar-lhe sempre. E ele se v sozinho, cercado de inimigos. Tinham passado
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por baixo da rvore, visto o homem enforcado, iam encontrar-me e denunciar-me (RAMOS,
2005, p. 247).
Imediatamente, percebe-se sinais de paranoia: Perceberiam logo a mentira. Em
seguida viriam perguntas insignificantes em tom misterioso, e eu me cansaria inutilmente para
desviar-me delas. (RAMOS, 2005, p. 251). Lus, atormentado, ouve barulhos noite,
confunde sonho e realidade; torna-se, ento, vtima de pesadelos, e parece perder a sanidade e
a lucidez. Tudo fruto de um sentimento dilacerante e incontrolvel que o torna perdido, que o
faz sentir-se mal, que lhe causa um completo e eterno mal-estar.
Aps o crime, os fantasmas esto por toda a parte. Tudo nebuloso como a mente de
Lus que, transtornado, no consegue mais pensar com linearidade, trabalhar, no goza mais
de sade mental nem fsica, tem pesadelos, sente medo de tudo, julga-se impossibilitado de
sair de casa e de levar a vida que tinha antes do crime do qual foi autor.
Nas pginas subsequentes do romance, Lus menciona a culpa que sente: Uma culpa
grave. Se fosse descoberto, infelicidades me chegariam. Todos os gestos eram culpas graves.
Pisava como um gato (RAMOS, 2005, p. 254). Pisava como um gato, evidentemente, porque
temia a revelao do ato vergonhoso por ele praticado. O sentimento de culpa de Lus
manifesta-se atravs de perturbaes, angstias e insnia, as quais o impedem de esquecer
seus monstros internos e fugir de sua prpria conscincia.
O suor molhava-me o pescoo, a vista escurecia, a memria dava saltos, a respirao encurtava-se. Uma lembrana vaga de cavalos perseguia-me. [...] Fazia um minuto que o homem da polcia tinha batido. Sentado na cama, suando, tossindo, as mos esfoladas, encolhia-me (RAMOS, 2005, p. 266).
Luciana dos Santos Carvalho tambm aborda o sofrimento de Lus da Silva aps o
assassinato de Julio Tavares:
Exteriorizando esses sentimentos rebarbativos, acompanhamos, passo a passo, o calvrio do narrador-protagonista, at seu aniquilamento final, quando, aps assassinar Julio Tavares, passa a viver acuado pela prpria conscincia. (CARVALHO, 2009, p.135-136).
A lembrana do crime que cometeu ser um tormento para Lus para o resto de sua
vida porque no tem mais paz; no entanto, parece ter matado Julio Tavares justamente para
alcan-la, uma vez que este representava uma ameaa a Lus. Morto Julio Tavares, todavia,
aumentou o sofrimento de Lus da Silva, que passou a viver uma tortura cada vez maior.
Buscava ento fugir da realidade consolando-se com paliativos: [...] verdade que tenho o
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cigarro e tenho o lcool, mas quando bebo demais ou fumo demais, a minha tristeza cresce.
Tristeza e raiva [...] (RAMOS, 2005, p. 9). Sinais evidentes da fuga de um forte sentimento
de culpa, fruto da sua conscincia, que o perturba.
Lus queria fugir de si mesmo e solues mgicas deslumbram-no: Desejava ser
como os bichos e afastar-me dos outros homens. As mos doam-me, as pernas doam-me, os
ps dos cabelos doam-me. No queria imaginar o que aconteceria l fora, o que tinha
acontecido. Fatos possveis misturavam-se a coisas absurdas (RAMOS, 2005, p. 264).
Evidncia clara que Lus quer fugir de si mesmo, desvincular-se de quem , lavar-se
da sujeira que o cobre, despir-se de seu ser. Seus desejos denotam a vontade de que algo
superior propulsione-o, encoraje-o a mover-se, a tomar uma atitude de autopreservao, uma
atitude consciente e s que o possa recompor.
Candido (2006) tambm pronunciou-se sobre o sofrimento ps-crime de Lus da Silva.
Para ele, o romance Angstia fuliginoso e opaco. O leitor chega a respirar mal no clima
opressivo (p. 47). Este sentimento de abjeo volta-se sobre ele prprio; Lus da Silva se
anula pela autopunio e s consegue equilibrar-se assassinando o rival, equilbrio precrio
que o deixa arrasado, mas de qualquer modo a nica maneira de afirmar-se (p. 49).
Nesta narrao autobiogrfica, um dos traos mais constantes o sentimento de humilhao e de machucamento. Humilhao de menino fraco e tmido, maltratado pelos pais e extremamente sensvel aos maus-tratos sofridos e presenciados. Por toda a parte, recordaes dodas de alguma injustia, de alguma vitria descarada do forte sobre o fraco. Talvez porque ante a sensibilidade do narrador as circunstncias banais da vida avolumassem como outras tantas brutalidades. Em casa, na rua, na escola, v sempre um indefeso nas unhas de um opressor. A priminha, Venta-Romba, o colega perseguido, Joo, ele prprio. E sempre - sempre a punio gratuita, nascendo daquela desnorteante injustia com que trava conhecimento certo dia, por causa do cinturo paterno. A conseqncia natural o refgio no mundo interior e o interesse pelos aspectos inofensivos da vida. (CANDIDO, 2006, p. 71-72)
O autor explora tambm o sentimento de culpa que dilacera Lus da Silva. Compara o
romance Angstia ao poema A Mo Suja, de Carlos Drummond de Andrade, que no
transcreverei aqui: Analisando esse sentimento de culpa, encontramos no livro um
movimento de conscincia angustiada que o aproxima do poema (CANDIDO, 2006, p. 49).
Ele acrescenta tambm que, lendo o poema, compreendemos melhor o romance e o desespero
da personagem. DEIXAR?
Desespero oriundo do sentimento de um drama no s pessoal, mas tambm coletivo. Drama de todos, de tudo; da vida malfeita, dos homens mal vividos. [...]. Gente acuada, bloqueada, esmagada pela vida, espremida at virar bagao, sem
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entender o porqu disso tudo. E a dureza, a incrvel dureza desse pequeno mundo sem dinheiro nem horizonte, cuja existncia uma rede simples e bruta de pequenas misrias, golpes midos e infinitas cavilaes. [...] Na crispada corrente da narrativa, todos se dispem como projeo dele prprio: a misria dos outros a sua e uma vaga fraternidade liga-o a seu Ramalho, fraqueza de d. Adlia, maluquice de Vitria. O vagabundo Ivo um eco da sua prpria inquietao, da resignada submisso ao fado; Moiss tem na revoluo a confiana que quisera ter e no pode; o prprio Julio Tavares, que entra na vida de ombros e cotovelos, possui desenvoltura que o atrai. Essa solidariedade do narrador com os outros personagens contribui para unificar a atmosfera pesada, multiplicando em combinaes infindveis o drama bsico da frustrao (CANDIDO, 2006, p. 50-51)
Nesse trecho, Candido refere algumas das personagens e analisa o que representam no
romance, concluindo que tudo est a servio da frustrao que ele percebe em Lus. Essa
frustrao decorre das tantas infelicidades, das quais o protagonista julga-se vtima.
Dando continuidade reflexo a respeito da conduta criminosa de Lus e do motivo
que o levou a matar, retomo Simone Schmidt, que observa o sentimento de culpa no
comportamento de Lus da Silva aps a prtica do crime por ele protagonizado:
As sensaes imediatas ao crime so logo substitudas por medo e culpa. Nas pginas finais do romance, Lus da Silva dir: e da em diante todas as perguntas seriam como cobras enrodilhadas que se preparavam para armar o bote. O sentido da corda que enforca desliza para o da cobra que arma o bote Num movimento circular, a cobra morde sua prpria cauda, e aquele que mata passa a ser o perseguido; o potente autor do crime se converte em nova vtima. Lus da Silva, ainda uma vez, pobre-diabo como sempre. No percurso fragmentrio e catico dos tormentos do personagem, progride a angstia [...] (SCHMIDT, 1993, p. 61-62).
Tambm Luciana dos Santos Carvalho reflete sobre o sentimento de culpa de Lus em
sua tese de doutorado, como se verifica na citao:
Lus da Silva no vai para cadeia, entretanto passa a viver uma escravido psquica. Completamente delirante, escrever um livro sobre si mesmo indica uma tentativa inconsciente de regenerao, de expirao voluntria de sua culpa, de desejo de se libertar do diabrete que lhe habita, das foras malignas que lhe perturbam (foras desintegradoras de sua personalidade). Talvez ele no queira mais ser aquele menino que saa pinoteando, nu, num cabo de vassouras, no se diferenciando dos animais da fazenda. Talvez ele queira se aproximar do esprito de Deus que bia sobre as guas. Talvez depois de sair desse estado de torpor em que se encontra (estado esse decorrente do ato insano que cometeu), ao verbalizar as vises alucinantes que lhe perseguem, ele consiga encontrar o equilbrio, substituir o homem despedaado entre seus desejos e compreender a si prprio. Talvez. Mas essas incertezas, essas dvidas, que nos provocam essa sensao pungente que nos acompanha at o final de cada livro de Graciliano Ramos. (CARVALHO, 2009, p. 144-145).
Segundo Carvalho, escrever um livro sobre si mesmo uma tentativa de expiar a
prpria culpa, com a qual um tormento viver. Lus no descoberto, embora julga que todos
o apontam. Sendo assim, no punido. Ento, de alguma maneira, procura uma forma de
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expurgar a culpa, de tirar de si a dor que sente porque, mesmo dentro de sua prpria casa no
tem mais sossego e seu tormento cada vez maior. Aproximei-me novamente da parede:
uma neblina diante do mostrador. Felizmente, agora estava fumando, quase tranquilo. Teria
ouvido as trs pancadas? (RAMOS, 2005, p. 255). Seu pesadelo continua:
Queria deixar-me embalar pelo rumor abafado e dormir. Impossvel. Os dedos agitavam-se despedaando o fsforo. Levantei a cabea, arregalei os olhos e novamente cheguei a eles os dedos, que desapareciam no nevoeiro [...]. Provavelmente no conseguiria dormir. Um dois, um dois. Eram as pancadas do pndulo, mas eu pensava em marchas. [...] Que loucura ter deixado aquela porta aberta! Se algum, oculto entre as folhas, me espiasse? Fechei a porta. Estava em segurana. Tentei encaminhar o pensamento para coisas simples e ordinrias, mas estas coisas fugiam, truncavam-se (RAMOS, 2005, p. 256-257).
Seu tormento transforma-se em sensaes fsicas, sua sade atingida, ele definha,
convalesce em febre, suores e agitaes. Sua mente est poluda de pensamentos paranoicos e
de um medo mortal que o dominam:
Eu tambm estava cansado, mas no podia dormir. [...] Uma felicidade no pensar, andar assim trpego como um papagaio. [...] Pancadas na porta da frente. Abri os olhos numa agonia. O suor corriame pela cara, ensopava a toalha, no havia jeito de estanc-lo. Teriam realmente batido na porta? (RAMOS, 2005, p. 257).
Aparecem novos sinais da perseguio que supostamente sofre:
Quem estaria l fora, na calada? O relgio bateu meia hora e depois quatro. No me lembro de ter feito nenhum movimento na derradeira meia hora, mas quando veio a primeira pancada eu estava de p, quando soaram as quatro estava sentado, o queixo encostado mesa. Levantei-me, dirigi-me ao quarto, firmando-me s paredes, tombei na cama, pesado, como um morto. (RAMOS, 2005, p. 258).
A necessidade de esconder-ser do mundo e de todos, de ocultar quem e o ato
vergonhoso que praticou: Se dessem busca na casa? Fui remexer o saco, ver se na roupa
branca havia sinais que me pudessem comprometer. O palet e a cala no estavam bem
escondidos. Pensei em queim-los, enterr-los (RAMOS, 2005, p. 258).
Lus permanece sofrendo, num crculo de dor e angstia. A morte de Julio no lhe d
paz; a fuga da realidade, o comportamento infantil e o delrio, mesmo que logo arrebatado
pela dura realidade, tomam conta dele:
Minha me me embalava cantando aquela cantiga sem palavras. A cantiga morria e se avivava. [...] Em alguns minutos a criana crescia, ganhava cabelos brancos e rugas. No era minha me a cantar: era uma vitrola distante, to distante que eu tinha a iluso de que sobre o disco passeavam pernas de aranha (RAMOS, 2005, p. 273).
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Outras passagens de Angstia mostram o sofrimento do protagonista. Febre, dor,
convalescena: Com certeza a febre ia crescer. O corpo morinhento pedia cama. [...] Achei-
me sentado, murmurando palavras desconexas (RAMOS, 2005, p. 269). Lus ilude-se
dizendo a si mesmo que inocente, tentando acreditar em suas palavras acalentadoras: No
fui eu, gritei, recuando e tropeando na cadeira [...]. Nada havia acontecido comigo. Senti-me
vtima de uma grande injustia e tive desejo de chorar (p. 271).
A vontade de acabar com o prprio sofrimento e de parar de esconder-se:
Voltaria para junto da mesa, aguardaria novas pancadas, novas torturas. Por que no se acabava logo aquilo? Bati com a mo na mesa e isto me arrancou um grito que abafei e se transformou em praga imunda. Por que no me vinham buscar os miserveis da polcia? Por que faziam comigo aquela brincadeira de gato com rato? Eu os acompanharia, mostraria a roupa rasgada, os fios de gravata no monturo, falaria no cigarro oferecido pelo vagabundo. Por que no vinham logo? (RAMOS, 2005, p. 268).
Desejaria achatar-me, confundir-me com as coisas moles e midas que os meus
dedos tinham esmagado sobre a casca da rvore. (RAMOS, 2005, p. 246). Lus despreza o
homem que . Quer confundir-se com as coisas, camuflar-se, disfarar-se porque tem
vergonha de si e dos seus atos.
Tendo em vista o sofrimento oriundo do sentimento de culpa que apresenta e os
diversos trechos que o ilustram extrados da obra, busquei em tericos e estudiosos do assunto
alguma teoria que possa auxiliar na interpretao da origem da culpa que sente Lus, quais as
caractersticas desse sentimento e porque ele ocorre to fortemente.
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3 TEORIAS SOBRE A CULPA
3.1 Estudos de Moacyr Scliar sobre a culpa
Moacyr Scliar (2006), escritor que se dedicou ao tema, no livro Enigmas da Culpa
aprofundou o assunto e chegou a algumas concluses. Nesta obra realiza toda uma trajetria
para desvendar a origem desse sentimento, menciona os desdobramentos dele na literatura de
fico, no cinema, seus vrios sentidos e efeitos, dentre outros reflexos.
Scliar elaborou um conceito de culpa que pode ser reproduzido como segue:
Podemos conceituar culpa como uma acusao ou auto-acusao, por um crime ou uma falta
ou ato inadequado, reais ou imaginrios. (2006, p. 37). Esse escritor divide a culpa em trs
sentidos: moral, religioso e neurtico. Neste trabalho interessam-nos apenas os dois primeiros.
A culpa moral, para Scliar, refere-se quele:
[...] conjunto de costumes, crenas, valores e normas de carter coletivo e pessoal, resulta da assimilao, desde a infncia, de padres de conduta transmitidos (ou impostos) pela famlia, pelo grupo, pela escola, pela religio. A moral responde fundamentalmente pergunta: o que bom, o que mau, o que certo, o que errado? O comportamento moral resulta de duas coisas: do julgamento moral, que um processo cognitivo, racional, de avaliao; e dos sentimentos morais, que podem ser positivos (o sentimento do dever cumprido) ou negativos (o sentimento de culpa). (SCLIAR, 2006, p. 49).
Explorando a culpa moral, Scliar (2006) menciona que, se desviados dos padres
morais, o ser humano sofrer vrias consequncias, dentre elas, a culpa e a vergonha. Explica,
dessa forma, que a vergonha precisa, para ser sentida, de terceiros, de olhos alheios, ou seja,
a pessoa sente-se envergonhada quando algum a v fazendo algo vergonhoso ou numa
postura vergonhosa; por isso a pessoa envergonhada quer sumir, desaparecer, entrar cho
adentro. J a culpa, diz respeito a uma peculiar forma de audio: a audio da implacvel
voz interior, que acompanha o culpado ainda que ele se enfie em qualquer buraco. (p. 51). E
continua:
A culpa nem sempre motiva uma ao; a pessoa pode se sentir culpada durante dcadas e nada fazer a respeito, mesmo porque como veremos, a culpa pode ser inconsciente e neste caso a pessoa nem sabe o que fazer. A vergonha uma resposta avaliao alheia, ao passo que a culpa resulta de uma avaliao interna, equivocada ou no; privilegia, portanto, a autonomia individual. A culpa no precisa de
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audincia, de pblico; a vergonha ocorre mediante a desaprovao ou o deboche de outros. Freud via na vergonha uma formao reativa contra impulsos de exibicionismo sexual, ao passo que a culpa seria o resultado de um conflito complexo entre o Superego e o Ego. A vergonha precede o aparecimento do Superego, ainda que este depois a incorpore. A culpa desenvolve-se mais tarde, durante a fase edipiana, e requer a presena do Superego (SCLIAR, 2006, p. 52).
No contexto religioso, segundo Scliar, culpa simplesmente a consequncia pessoal
da transgresso (p. 82). O escritor pergunta-se:
Mas em que consiste a transgresso? A resposta varia conforme a religio e conforme a cultura: comer carne de porco proibido no judasmo e no islamismo, mas no no cristianismo. Da a necessidade de cdigos morais e de intrpretes para o cdigo moral. Durante a confisso o sacerdote avalia, pelo relato que lhe faz o fiel, se houve de fato pecado e se se aplica uma penitncia no caso da religio, a clssica forma de expiar a culpa. Para o crente, Deus decide o que pecado, a vontade divina chegando ao ser humano atravs da religio e dos textos sagrados: os Dez Mandamentos bblicos, por exemplo. J o no-crente ver no pecado o resultado de injunes sociais, culturais e polticas. O cdigo moral pode ser o ponto de partida para o surgimento de uma verdadeira cultura da culpa, que o cristianismo partilha com o judasmo, enfatizando a punio como forma de manter padres de conduta. Nestas circunstncias, os mecanismos psicolgicos que desencadeiam a culpa encontram um reforo externo poderoso. (p. SCLIAR, 2006, p. 82-83).
Nesses trechos, pequenos recortes do livro de Scliar, est claro que a origem do
sentimento de culpa fortemente ligada represso, imposio de normas e de proibies,
as duas ltimas, segundo Freud, necessrias ao convvio em sociedade. No tocante religio,
da se poderiam extrair dezenas de exemplos e poderamos pensar em diversos sistemas
religiosos em que suas instituies, atravs de fortes dogmas, usam a culpa para manter seus
fieis dependentes, lutando na busca da redeno de seus pecados, no perdo de suas dvidas,
mediante as promessas de garantia de vida eterna, sem purgao.
J no que diz respeito vida moral, o indivduo sente culpa quando pratica uma ao
que tida como m, desumana com o prximo. Essas aes condenveis muitas vezes esto
subentendidas no inconsciente coletivo da sociedade e foram elas e os costumes de uma
comunidade que posteriormente constituram a base dos cdigos penais e dos aparatos
jurdicos que enquadram os homens em cidados ou no, em criminosos ou no, e
determinam quais devem ser alijados do convvio em sociedade, com base nas suas condutas.
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3.2 Estudos de Sigmund Freud sobre a culpa
Sigmund Freud juntamente com Nietzsche, foi dos estudiosos que mais se deteve
sobre o tema, portanto, no h como falar em culpa sem mencion-lo. Dentre seus livros, um
dos que mais aprofunda o assunto Dostoievski e o Parricdio, no qual explora a figura do
criminoso:
Um criminoso, para ele, quase um Redentor, que tomou sobre si prprio a culpa que, em outro, caso, deveria ter sido carregada pelos outros. No h mais necessidade de que algum mate, visto que ele j matou, e h que ser-lhe grato; no fosse ele, ver-nos-amos obrigados a matar. Isso no apenas piedade bondosa, mas uma identificao com base em impulsos assassinos semelhantes na realidade, um narcisismo, ligeiramente deslocado (FREUD, 2006, p. 194).
No livro citado, o psicanalista analisa a personalidade do escritor russo, o que
certamente fez a partir da obra deste. Por esse meio constata que muitos fatos que aparecem
nos romances do escritor remetem sua vida, uma vez que a complexa personalidade de
Dostoivski (FREUD, 2006, p. 185) justifica a extraordinria intensidade de sua vida
emocional. (p. 185). No primeiro pargrafo da obra, Freud distingue na personalidade de
Dostoivski quatro facetas, quais sejam: o artista criador, o neurtico, o moralista e o pecador
ou criminoso (p. 183). Interessa neste estudo apenas a explorao desta ltima que despertou
em Freud diversas dvidas acerca dessa conduta pelo objeto do seu estudo. Diz o criador da
psicanlise que: Num criminoso, dois traos so essenciais: um egosmo sem limites e um
forte impulso destrutivo. Comum a ambos, e condio necessria para sua expresso a
ausncia de amor, a falta de uma apreciao emocional de objetos (humanos) (p. 184). Freud
lembra, ento, que Dostoivski apresentava uma grande necessidade de amor e uma enorme
capacidade de amar (p. 184), conforme relatos de suas condutas na vida, com seus
relacionamentos e reaes a fatos. Percebendo a contradio, Freud encontra soluo para ela:
[...] pela compreenso de que o instinto destrutivo muito intenso de Dostoievski, que facilmente poderia t-lo transformado num criminoso, foi, em sua vida real, dirigido principalmente contra sua prpria pessoa (para dentro, em vez de para fora), encontrando assim sua expresso como masoquismo e sentimento de culpa (FREUD, 2006, p. 184)
Na anlise de Doistoivski, refere o psicanalista a morte do pai do escritor, que
ocorreu quando este tinha apenas 18 anos, a epilepsia, da qual era vtima, e uma neurose
afetiva que lhe atribui como as causas determinantes de um sentimento de culpa que o
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perseguia. Da resulta que muita violncia e aes vingativas, no somente na obra, mas
tambm na conduta na vida de Dostoivski so constantes. Suas tramas literrias so
recheadas de personagens estranhas, desajustadas, antissociais, agressivas, vingativas,
homicidas. Freud, que em alemo, lngua que escrevia, chamava o sentimento de culpa de
schuldefhl, defende que o mal que Doistoivski sentia gerava nele o desejo de punir-se,
masoquismo e culpa. No livro citado, afirma o psicanalista que o parricdio [...] a fonte
principal do sentimento de culpa, embora no saibamos se a nica; as pesquisas ainda no
conseguiram estabelecer com certeza a origem mental da culpa e da necessidade de expiao
(p. 188). Na mesma obra ele cita a culpa filial, [...] que se acha presente nos seres humanos
em geral e sobre a qual o sentimento religioso construdo [...] (p. 192) e diz ter ela atingido
em Dostoivski uma intensidade superindividual e permanecido insupervel inclusive sua
grande inteligncia.
A leitura por Freud de diversas obras do escritor russo e de outros clssicos de
escritores famosos que tratam do tema do parricdio, dentre eles, dipo Rei (1998), de
Sfocles, Hamlet (2004) de Shakespeare e, principalmente, Os Irmos Karamazov (1994),
romance onde o sentimento de culpa objeto, foram a base da sua teoria. Foi estudando Os
Irmos Karamazov, no entanto, que Freud erigiu uma de suas grandes revelaes, o complexo
de dipo.
Segundo o psicanalista, o parricdio uma das fontes principais do sentimento de
culpa, conforme j transcrito. Por isso, detenho-me nesse tema e trago em seguida mais
algumas passagens do livro de sua autoria que trata do assunto, para, posteriormente buscar
entender e teorizar sobre o sentimento de culpa de Lus da Silva, apoiada na teoria desse
estudioso.
Assim, diz Freud que:
O relacionamento de um menino com o pai , como dizemos, ambivalente. Alm do dio que procura livrar-se do pai como rival, uma certa medida de ternura por ele tambm est habitualmente presente. As duas atitudes mentais se combinam para produzir a identificao com o pai; o menino deseja estar no lugar do pai porque o admira e quer ser como ele, e tambm por desejar coloc-lo fora do caminho. Todo esse desenvolvimento se defronta com um poderoso obstculo. Em determinado momento, a criana vem a compreender que a tentativa de afastar o pai como rival seria punida por ele com a castrao. Assim, pelo temor castrao isto , no interesse de preservar sua masculinidade abandona seu desejo de possuir a me e livrar-se do pai. Na medida em que esse desejo permanece no inconsciente, constitui a base do sentimento de culpa. Acreditamos que aqui descrevemos, so processos normais, o destino normal do chamado complexo de dipo[...] (FREUD, 2006, p. 188-189).
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Parece, pois, segundo Freud, que aquilo que jogado para o inconsciente torna-se
nebuloso e passa perto da ideia que se tem de tabu, perturbando a mente do sujeito de forma a
confundi-lo em pensamentos, atitudes e escolhas. De nada do que se passa no inconsciente ele
tem clareza e por isso sente-se perdido, em luta consigo prprio.
Acrescento outras consequncias da represso do dio pelo pai no complexo de dipo,
referenciadas por Freud:
[...] a identificao com o pai finalmente constri um lugar permanente para si mesma no ego. recebida dentro deste, mas l se estabelece como um agente separado, em contraste com o restante do contedo do ego. Damos-lhe ento o nome de superego e atribumos-lhe, como herdeiro da influncia parental, as funes mais importantes. Se o pai foi duro, violento e cruel, o superego assume dele esses atributos e nas relaes entre o ego e ele, a passividade que se imaginava ter sido reprimida restabelecida. O superego se tornou sdico e o ego se torna masoquista, isto , no fundo, passivo, de uma maneira feminina. Uma grande necessidade de punio se desenvolve no ego, que em parte se oferece como vtima ao destino e em parte encontra satisfao nos maus tratos que lhe so dados pelo superego (isto , no sentimento de culpa), pois toda punio , em ltima anlise, uma castrao, e, como tal, realizao da antiga atitude passiva para com o pai. Mesmo o Destino, em ltima instncia, no passa de uma projeo tardia do pai (FREUD, 2006, p. 190).
De acordo com Freud, em linhas gerais, o id regido pelo princpio do prazer e
formado por instintos, impulsos orgnicos e desejos inconscientes, aquilo que Freud designa
como pulses. Sua funo buscar o prazer e evitar o sofrimento. O id localiza-se na zona
inconsciente da mente.
O ego faz o contato do mundo psquico com a realidade. Ele estabelece o equilbrio
entre as reivindicaes do id e as exigncias do superego e localiza-se na zona consciente da
mente.
O superego age como censor do ego. o representante interno das normas e valores
sociais que foram transmitidos pelos pais atravs dos sistemas de castigo e recompensas
impostos criana. So os nossos conceitos do que certo e do que errado. O superego
controla-nos, pune-nos e inibe os impulsos do id. Tambm localiza-se na zona inconsciente da
mente.
A principal funo do ego, por conseguinte, tentar equilibrar, uma vez que
consciente, as demandas do id e as imposies do superego.
Assim, o superego que impera as obrigaes, as punies e a represso aos instintos do
id, o responsvel pela aceitao do sofrimento de um indivduo, no somente o sofrimento
merecido, ou seja, a aceitao de uma pena ou castigo decorrente de um crime pelo qual nem
responsvel. Dessa forma, um indivduo com certa perturbao, que se julga pecador e autor
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de erros, seja na forma de atitudes, seja de pensamentos, acaba acatando, ainda que sejam os
erros mais banais, punies que venham a impor-lhe e conforma-se com elas porque se julga
merecedor de sofrimento. O sentimento de culpa, responsvel por essa atitude, , portanto,
resultante dos maus tratos do superego que, por sua vez, so oriundos, na maioria das vezes,
de processos inconscientes por que passou o indivduo, podendo ter sido nos primeiros anos
de sua vida.
Acrescento mais alguns trechos da obra de Freud, que colaboram no esclarecimento
dos mecanismos que regem o sentimento de culpa e da necessidade de sofrer a pena. Ainda,
em Dostoievski e o Parricdio, encontram-se as seguintes informaes: [...] o dio de Dostoievski pelo pai e seu desejo de morte contra esse pai malvado foram mantidos. [...]. As crises de Dostoievski assumiram ento um carter epilptico; ainda, indubitavelmente, significavam uma identificao com o pai como punio, mas se tinham tornado terrveis, tais como a prpria morte assustadora do pai. [...] na aura da crise epilpsia, um momento de felicidade suprema experimentado. Pode bem ser um registro do triunfo e do sentimento de liberao experimentados ao escutar as notcias da morte, seguidos imediatamente por uma punio ainda mais cruel. Imaginamos exatamente essa sequncia de triunfo e de pesar, de alegria festiva e de luto [...]. Essa necessidade de punio por parte da economia mental de Dostoievski antes explica o fato de ele ter passado inabalado por esses anos de tormento e humilhao. A condenao de Dostoievski como prisioneiro poltico foi injusta e ele deve ter sabido disso, mas aceitou o imerecido castigo das mos do Paizinho, do Czar, como um substituto da punio que merecia por seu pecado contra o pai real. Em vez de se punir a si mesmo, conseguiu fazer-se punir pelo representante paterno. Temos aqui um vislumbre da justificao psicolgica das punies infligidas pela sociedade. fato que grandes grupos de criminosos desejam ser punidos. O superego deles exige isso; assim se poupam a si mesmos a necessidade de se infligirem o castigo (FREUD, 2006, p. 190-192).
Freud (2006) acrescenta na mesma obra que o vcio pelo jogo, que Dostoivski nutriu
durante boa parte de sua vida, era um mtodo de autopunio (p. 195). Referindo-se ao
escritor e a sua esposa, Freud diz que:
Quando suas perdas os reduziam a mais extrema necessidade, extraa disso uma segunda satisfao patolgica. [...] Quando o sentimento de culpa dele ficava satisfeito pelos castigos que se havia infligido, a inibio incidente sobre seu trabalho se tornava menos grave e ele se permitia dar alguns passos ao longo da estrada do sucesso (FREUD, 2006 , p. 195-196).
Outra publicao de Freud apresenta suas reflexes sobre o sentimento de culpa. No
ensaio Criminosos em Conseqncia de um Sentimento de Culpa, que o terceiro de Alguns
Tipos de Carter Encontrados no Trabalho Psicanaltico. Freud refere que comeou a
perceber, no apenas em crianas, mas tambm em adultos, dentre eles, nos pacientes que
estavam sob seus cuidados, uma ndole para praticar aes proibidas, tais como furtos, fraudes
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e at mesmo incndio voluntrio. Diante desses comportamentos apresentados por seus
pacientes, precisou deter-se sobre o assunto.
O trabalho analtico trouxe ento a surpreendente descoberta de que tais aes eram praticadas principalmente por serem proibidas e por sua execuo acarretar, para seu autor, um alvio mental. Este sofria de um opressivo sentimento de culpa, cuja origem no conhecia, e, aps praticar uma ao m, essa opresso se atenuava. Seu sentimento de culpa estava pelo menos ligado a algo. Por mais paradoxal que isso possa parecer, devo sustentar que o sentimento de culpa se encontrava presente antes da ao m, no tendo surgido a partir dela, mas inversamente a iniqidade decorreu do sentimento de culpa. Essas pessoas podem ser apropriadamente descritas como criminosas em conseqncia do sentimento de culpa. A preexistncia do sentimento de culpa fora, naturalmente, demonstrada por todo um conjunto de outras manifestaes e efeitos. (FREUD, 1996, p. 347-348).
Na esteira dessas suposies, Freud fazia-se perguntas a respeito da origem de to
obscuro sentimento de culpa antes da ao criminosa e, se as causas desses sentimentos
desempenhavam um papel de vulto se observadas as taxas de crime humano.
[...] os crimes perpetrados com o propsito de fixar o sentimento de culpa em alguma coisa vinham como um alvio para os sofredores. Nesse sentido, devemos lembrar que o parricdio e o incesto com a me so os dois grandes crimes humanos, os nicos que, como tais, so perseguidos e execrados nas comunidades primitivas. Tambm devemos lembrar como outras investigaes nos aproximaram da hiptese segundo a qual a conscincia da humanidade, que agora aparece como uma fora mental herdada, foi adquirida em relao ao complexo de dipo. [...] Entre criminosos adultos devemos, sem dvida, excetuar aqueles que praticam crimes sem qualquer sentimento de culpa; que, ou no desenvolveram quaisquer inibies morais, ou, em seu conflito com a sociedade, consideram sua ao justificada. Contudo, no tocante maioria dos outros criminosos, aqueles para os quais medidas punitivas so realmente criadas, tal motivao para o crime poderia muito bem ser levada em considerao; ela poderia lanar luz sobre alguns pontos obscuros da psicologia do criminoso e oferecer punio com uma nova base psicolgica (FREUD, 1996, p. 347-348).
Dessarte, segundo Freud, assim o funcionamento do ser humano, vtima de
sentimento de culpa, que adota prticas criminosas. Toda a teoria do psicanalista austraco que
trago para este trabalho tem o intuito de encontrar Lus da Silva e seu sofrimento, uma vez
que muitas das caractersticas deste se comunicam com o que Freud preconizava.
3.3 Estudos de Friedrich Nietzsche sobre a culpa
Muito importantes so as colaboraes de Nietzsche sobre o estudo da culpa, todavia,
infelizmente, impossvel contemplar toda a parte da sua obra destinada ao assunto. Dizia ele
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que Dostoivski foi o maior psiclogo que j existiu. No foi toa que usou suas
personagens, tendo em vista a complexidade que elas apresentam, para construir sua teoria
sobre a culpa,
Na obra A Genealogia da Moral, Nietzsche observa que:
Pois todo o sofredor busca instintivamente uma causa para seus sofrimentos; mais precisamente, um agente; ainda mais especificamente, um agente culpado suscetvel de sofrimento em suma, algo vivo, no qual possa sob algum pretexto descarregar seus afetos, em ato ou in effigie [simbolicamente]: pois a descarga de afeto para o sofredor a maior tentativa de alvio, de entorpecimento, seu involuntariamente ansiado narctico para tormentos de qualquer espcie. Unicamente nisto, segundo minha suposio, se h de encontrar a verdadeira causao fisiolgica do ressentimento, da vingana e quejandos, ou seja, em um desejo de entorpecimento da dor atravs do afeto de ordinrio ela procurada, muito erroneamente, me parece, em um contragolpe defensivo, uma simples medida protetora, um movimento reflexivo, em resposta a uma sbita leso ou ameaa do tipo que ainda executa uma r sem cabea, para livrar-se de um cido corrosivo. Mas a diferena fundamental: em um caso quer se prevenir mais leses, no outro caso quer-se entorpecer, mediante uma emoo mais violenta de qualquer espcie, uma dor torturante, secreta, cada vez mais insuportvel, e retir-la da conscincia ao menos por um instante para isto necessita-se de um afeto, um afeto o mais selvagem possvel e, para sua excitao, um bom pretexto qualquer. Algum deve ser culpado de que eu esteja mal esta maneira de raciocinar comum a todos os doentes, tanto mais quanto lhes for desconhecida a verdadeira causa do seu mal-estar, a fisiolgica (NIETSCHE, p.116-117).
Na segunda dissertao do captulo quatro de A Genealogia da Moral, Nietzsche
(2008, p. 52) pergunta-se como veio ao mundo aquela outra, que chama de coisa sombria,
ou seja, a conscincia da culpa, a m conscincia. Refere:
Esses genealogistas da moral teriam sequer sonhado, por exemplo, que o grande conceito moral de culpa teve origem no conceito muito material de dvida? Ou que o castigo, sendo reparao, desenvolveu-se completamente margem de qualquer suposio acerca da liberdade ou no liberdade da vontade? [...]. (NIETZSCHE, 2008, p. 52).
Nietzsche trabalha muito com a concepo crist de culpa, bem como com o conceito
de moral, introduzido pelo judasmo e pelo cristianismo, e aborda tambm o ressentimento,
um sentimento prximo da inveja e do rancor, sobre o qual constri uma teoria. Segundo ele,
a moral religiosa condena os impulsos naturais dos seres humanos. O sentimento de culpa e a
m conscincia, termo cunhado por ele, so resultados disso.
A lgica para Nietzsche a seguinte: O ressentido um impotente e, por isso,
sofredor. Dessa forma, s consegue narcotizar, entorpecer o seu prprio sentimento e o faz
por meio de uma descarga patolgica. O sofredor imagina que, se sofre, algum responsvel
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por isso. O ressentimento uma crueldade interiorizada, uma autoagressividade e precisa de
expiao.
A partir desse vis poderamos explorar o Homem Subterrneo de Memrias do
Subsolo, de Dostoivski - maior exemplo de um ressentido - bem como tantas outras de suas
personagens. Sob o mesmo prisma poderamos interpretar o sofrimento sem fim de Lus da
Silva.
Diz Nietzsche (2008) que a origem do sentimento de culpa est na esfera das
obrigaes legais, de onde tambm surgiram os conceitos de conscincia, dever,
sacralidade do dever. (p. 55) e que O sentimento de culpa, da obrigao pessoal, para
retomar o fio de nossa investigao, teve origem, como vimos, na mais antiga e primordial
relao pessoal, na relao entre comprador e vendedor (p. 59).
Trazidas essas consideraes e a teoria que contemplei sobre a culpa, a qual retomarei
no caso concreto, passo a analisar a personagem de Lus da Silva e sua conduta criminosa no
romance estudado.
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4 MOTIVAES DE LUS DA SILVA PARA COMETER O ASSASSINATO
Lus da Silva, desencantado com este mundo e com os homens, desenganado por todos
e por si mesmo, condena-se e pune-se a viver at o fim de seus dias em meio a tormentos,
alijado da sociedade, no dividindo com ningum a sua dor, porque o outro inimigo,
representa perigo. Lus da Silva no se encaixa neste mundo, no faz parte da sociedade;
ento, sofre e chora, margem dela.
Dedico-me aqui a examinar a motivao de Lus da Silva para assassinar Julio
Tavares. Trago agora trs possibilidades que percebi, a partir das leituras realizadas e da
opinio de diversos estudiosos sobre a personalidade do narrador assassino. A terceira delas,
uma construo que elaborei, fundamentada nos textos de Freud, Criminosos em
Conseqncia de um Sentimento de Culpa e Dostoievski e o Parricdio. Ilustrarei essas ideias
com trechos de textos em que estudiosos expressam suas interpretaes, buscando
justificativas para a conduta do algoz de Julio Tavares.
As trs motivaes de Lus da Silva para a conduta criminosa seriam:
Primeira hiptese: Redimir a sociedade;
Segunda hiptese: Livrar-se de seu rival Julio Tavares;
Terceira hiptese: Lus da Silva j era vtima do sentimento de culpa antes de cometer
o crime.
4.1 Primeira hiptese: Redimir a sociedade
Freud, em Dostoievski e o Parricdio, conforme j exposto, referiu que o criminoso
toma para si a culpa que seria carregada por outros, de forma que estes ficam isentos de
qualquer conduta, posto que algum o faz. Do contrrio, teriam que ser autores de um crime.
Assim, o criminoso torna-se um redentor da humanidade e todos lhe sero gratos. A partir
disso, suponho que este poderia ser um dos motivos que conduziram Lus da Silva ao estigma
de assassino. Lus sentia um dio mortal de Julio Tavares e a ideia de que ele deveria morrer
ocorrera-lha muitas vezes.
Jair Francelino Ferreira, autor do livro Do Meio aos Mitos: a tradio religiosa na
obra de Graciliano Ramos, faz nesta obra um estudo sobre os mitos presentes nos romances
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de Graciliano Ramos, da mesma forma que examina seus elementos simblicos. Jair aborda o
mito da serpente, que pertinente aqui referir, uma vez que traz a representao que tomou
Julio Tavares aos olhos de Lus da Silva:
[...] Julio Tavares no apenas rival de Lus Silva, mas representa o opressor das classes menos favorecidas, o capitalista sem escrpulos; enfim, o espelho da classe dominante, da burguesia, que precisa ser eliminada para que os humildes e humilhados herdem a Terra. Dessa forma, ao matar Julio Tavares, Lus Silva faz no plano individual o que a revoluo socialista de que tanto ele quanto seu criador eram simpatizantes faria no plano coletivo, e a serpente surge no texto no como inspiradora da perdio, mas como instrumento da libertao do homem do jugo de seus opressores; representa, portanto, no o Mal, mas o instinto natural do homem do ser livre, de no estar sujeito a nenhum tipo de dominao, mesmo que esta se apresente, como na Bblia, na forma de um Criador justo e todo-poderoso. (FERREIRA, 2004, p. 74).
Tambm Donaldo Schler (1993), crtico e ficcionista cr que Lus da Silva teve
necessidade de matar Julio Tavares pela situao inferior em que se percebia, comparado
quele, porque achava-se em cruis condies financeiras, fora enganado e trado por Marina,
fora passado para trs por Julio, era empregado, sentia-se sufocado pelas ordens que recebia
no trabalho e pelas normas que lhe tolhiam a criatividade nas suas tentativas de ser escritor.
Lus o descendente ltimo de duas geraes de proprietrios de terras que, criado no
campo, simboliza a inabilidade camponesa para vencer a cidade (p. 41).
O trecho abaixo, retirado do artigo Angstia, Romance e Salto, expressa o pensamento
de Schler acerca desta questo:
Graciliano Ramos ignora os aspectos policiais do crime. Julio Tavares reprime aspiraes vitais: modestas aspiraes conjugais, relaes sadias, palavras sensatas. Consentir-lhe a vida submeter-se ao mal numa sociedade injusta. Quando a angstia se insinua, quando Lus da silva, vtima da decadncia coronelcia, vtima da administrao pblica, vtima da aparncia, passa a sonhar com mais dignas formas de viver [...] Ao agir, Lus da Silva ingressa em vida culpada e responsvel; reativa o movimento da histria. O enredado, descendente de enredados, enreda. A vertigem final, conseqncia do crime, denuncia a ameaa do abismo aberto pela ao ousada. (SCHLER, 1993, p. 43).
Julio Tavares, para Lus, representa um mentiroso, um conquistador, um galanteador,
um homem que usa seu poder e dinheiro para seduzir e iludir as mulheres e que, perante a
sociedade, age tal qual um poltico corrupto. Movido por seu discurso, Julio ludibria a
grande massa para tomar-lhe o que seu. O prprio Lus percebia-se como uma vtima de
Julio, bem como Marina, que aps ter sido abandonada, precisara submeter-se a um aborto,
ao mesmo tempo em que Julio iludia outras garotas para divertir-se. Desse modo,
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compreensvel a raiva que sentia Lus e que tomava grandes propores. Para ele, portanto,
no de todo infundada a ideia de assassinar Julio Tavares.
A clera engasgava-me. Julio Tavares comeou a falar e pouco a pouco serenou, mas no compreendi o que ele disse. Canalha. Meses atrs se entalara num processo de defloramento, de que se tinha livrado graas ao dinheiro do pai. Com o olho guloso em cima das mulheres bonitas, estava mesmo precisando uma surra. E um cachorro daquele fazia versos, era poeta. [...] A loquacidade de Julio Tavares aborrecia-me. Uma voz lquida e oleosa que escorria sem parar. A minha clera esfriava, o suor colava-me a camisa ao corpo. [...] Julio Tavares falou sobre poltica do pas. A enxurrada cobria-se de ndoas de gordura, que se alastravam. Ia l discutir com aquele bandido? O meu desejo era insult-lo. (RAMOS, 2005, p. 91-92).
Essas passagens ilustram as acusaes de crimes sexuais de autoria de Julio Tavares e
ao corrupta deste para livrar-se da responsabilidade delas. Tambm evidencia a
repugnncia que sentia Lus por Julio.
Se um indivduo configura perigo para a sociedade e pode vir a agir em seu
detrimento, colocando os cidados em risco, ao Estado cabe o dever de providenciar a
segurana da populao e promover o alijamento desse indivduo do meio social, prticas
legais que se baseiam nos direitos de ir e vir dos demais cidados de forma segura. Neste
caso, Lus da Silva, que um redentor, toma para si a incumbncia do Estado e separa este
indivduo do convvio com os demais, mas o faz, tirando-lhe a vida.
Dessa forma, a mente de Lus acusa a ideia irrefutvel que Julio Tavares no tem
valia, no deve conviver em sociedade, enfim, no merece viver.
A partir desses dados, est construda a primeira hiptese a respeito da motivao de
Lus para cometer o crime do romance Angstia. Lus sentiu o mpeto de salvar a
humanidade, pois tinha diversos motivos para tal, pessoais e coletivos. Todavia, cometeu o
crime a seu modo: acanalhado, s escondidas, na escurido e em lugar ermo. Dessa forma
motivado, luz de Freud, Lus da Silva pouparia a humanidade de tomar providncias para
livrar-se de Julio e para evitar o convvio com ele, portanto, pouparia humanidade o
sentimento de culpa, que passa a ser s dele. Lus seria o redentor, o salvador, um homem que
age maneira de Cristo, para o bem da coletividade.
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4.2 Segunda: Livrar-se de seu rival Julio Tavares
Est clara a inferioridade de Lus frente a Julio Tavares, conforme to fartamente
claro no romance Angstia, uma vez que escancarado o comportamento de Lus, tal qual um
rato.
O trecho abaixo ilustra o sentimento de inferioridade que sente Lus da Silva diante de
Julio Tavares, surgido desde seus primeiros contatos: O outro sujeito intil que nos apareceu era muito diferente. Gordo, bem vestido, perfumado e falador, to falador que ficvamos enjoados com as lorotas dele. No podamos ser amigos. Em primeiro lugar o homem era bacharel, o que nos distanciava. Pimentel, forte na palavra escrita, anulava-se diante de Julio Tavares. Moiss, apesar de falar cinco lnguas, emudecia. Eu que viajei muito [...] metia a viola no saco. .[...] Alm disso Julio Tavares tinha educao diferente da nossa. Vestia casaca, freqentava os bailes da Associao Comercial e era amvel em demasia.[...] Diante dele eu me sentia estpido. Sorria, esfregava as mos com esta covardia que a vida spera me deu e no encontrava uma palavra para dizer. (RAMOS, 2005, p. 58-59).
Essa hiptese seria a mais razovel dentre as trs apresentadas. Destaca-se nessa
possibilidade, a motivao de Lus, exclusivamente pessoal, e no colaboram para a morte do
bacharel Julio outros fatores alm da inveja, da mesquinharia daquele e da inferioridade que
sente perante Julio.
Diversos dos estudiosos que se dedicaram ao assunto assim pensam, conforme
mostrarei nas linhas subseqentes.Cristiane Guimares Arteaga, cuja dissertao de mestrado,
de ttulo A alma russa de um nordestino: Graciliano Ramos leitor de Dostoivski, colaborou
muito para a elaborao deste estudo, principalmente por aproximar os dois autores, tanto no
aspecto particular de suas vidas, quanto nos pontos comuns de suas obras, o que vem iluminar
a teoria que aqui busco desenvolver. Cristiane, quando discorre sobre a morte de Julio
Tavares, declara:
Por tudo isso, por tudo que Julio Tavares possua, por tudo que ele representava em oposio ao nada que era Lus da Silva que Julio Tavares merecia morrer. A morte, por estrangulamento (p. 190), no soluciona a sensao de inferioridade de Lus, mas suaviza-a na medida em que Julio Tavares no mais o pode afrontar e duvidar que ele seja um homem. Um homem sim. [...] Eis como fica nosso heri aps o crime, que, sob o pretexto da passionalidade, esconde-se o seu verdadeiro motivo. Lus da Silva no mata por Marina. Lus da
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Silva mata Julio Tavares pela sua superioridade. Mata-o por ele ter tudo e Lus, nada. Mata-o para ser menos inferior, para sentir-se superior, mas aps o crime, percebe a impossibilidade de mudana. Ento, resta-lhe a resignao: Habituar-me-ia. A gente se habitua em toda a parte. Dorme beira das estradas, nos bancos dos jardins. (p. 213) (ARTEAGA, 2005, p. 50-51)
Outras passagens da dissertao de mestrado de Arteaga ilustram a motivao de Lus
e corroboram a ideia do crime em prol de seu bem-estar:
O motivo para o assassinato de Julio Tavares o cime paranico de Lus da Silva, sendo o mvel, Marina. No entanto, impossvel atribuir somente a Marina o motivo da morte de Julio Tavares. Lus o mata por outros motivos entre os quais Marina est includa, mas no nem de longe o motivo central. H toda uma referncia sobre a gordura de Julio Tavares, em oposio magreza nordestina de Lus da Silva, que, apesar de mais inteligente, no elogiado como Julio Tavares. Alm de gordo, Julio rico e tem mulheres enquanto Lus vive humildemente e no consegue relacionar-se com o sexo oposto. Sua inaptido para relacionamentos amorosos explcita, [...] (p. 66)
Segundo Arteaga, Julio Tavares significa a opulncia, a abastana; ele a
concretizao de todas as opresses que maltratam Lus da Silva. De fato, Julio Tavares
sempre est em situao vantajosa em relao a Lus. Julio rico, Lus pobre. Julio
eloqente, Lus quieto, no se impe, fala baixo; Juliao gordo, Lus magro, portanto
pequeno, ocupa pouco espao, nos cantos; Julio conquistador, um sedutor de mulheres,
Lus tmido, inseguro, precisa dos servios das prostitutas para sentir-se homem e, quando
conquista uma mulher que o deseja, atravessa-se Julio Tavares no seu caminho e a toma para
si.
Na noite do crime, Lus, que estava nervoso, sentia incontrolvel necessidade de
fumar. Apalpava seus bolsos procura da nicotina e no encontrava. Ento v Julio Tavares
acendendo um cigarro e o odeia mais ainda por esse fato. Conforme Arteaga, esse foi mais um
motivo de afronta, de humilhao por parte de Julio vitimando Lus. O cigarro simbolizou
novamente, e em uma situao desesperadora para Lus, que Julio tinha tudo, e ele, nada.
Dessa forma, Lus no consegue evitar o crime. O cigarro pode ter sido a gota dgua para o
assassinato ter ocorrido.
Longe de ser um crime passional, o assassinato de Julio Tavares um crime de auto-afirmao, que evidentemente no se concretiza. impossvel para Lus obter sua identidade de indivduo, mesmo com a ausncia de Julio Tavares, pois no ele o responsvel pela sua nulidade individual. [...] Impedido de integrar-se, a soluo de Lus da Silva acabar com o culpado de seu duplo malogro: O assassinato lhe parece como a nica maneira de afirmar uma liberdade sempre desejada e jamais alcanada, a nica forma autntica possvel de romper com a alienao. (ARTEAGA, 2005, p. 66-69)
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Um ponto importante a respeito dessa questo a concretizao de toda a
inferioridade de Lus que Julio Tavares representa, pois sua existncia lembra quele, o
tempo todo, como inferior, o quanto um nada e um pobre-diabo.
Lus um homem recalcado, amargo, invejoso, pois desaparece diante de figuras que
se destacam, e s pode ocupar espao e ser digno de vida se essas figuras que o intimidam
anularem-se.
Conforme j mencionado, Lus da Silva tem grande afinidade com a personagem o
Homem Subterrneo, de memrias do subsolo, uma vez que ambos so fracos, covardes,
vingativos. Ainda que a personagem russa apresente autoconfiana e autoestima elevada,
claro est que as duas so encolhidas, tm problemas de convivncia e, diante de pessoas que
se sobressaem, seu sentimento de incapacidade vem tona e machuca.
O Homem do Subterrneo diz-se um homem doente, mau, desagradvel. Ele tortura-se
o tempo todo e sente necessidade de causar sofrimento a si mesmo, alis, percebe-se que ele
sente prazer com a autotortura. Ele um ser parasitrio e, portanto, fraco, porque a sua
identidade depende da negao do outro. O Homem Subterrneo , portanto, a representao
do ressentido que, conforme Nietzsche, s existe como parasita do outro, mesmo que seja sob
a forma de negao. Esta negao necessria para sua autoafirmao; o agente da negao
um ressentido, portanto, um vingativo. O vingativo fraco porque impotente para se
desembaraar de suas vivncias negativas, metaboliz-las. Ele no consegue esquecer o mal
que lhe causaram. O ressentido sente sempre o mesmo, isto , ressente, permanentemente. Ele
um sofredor e pensa que, se sofre, algum culpado por seu sentimento.
Assim, um olhar sobre a personagem de Memrias do Subsolo remete imediatamente
a Lus da Silva. gritante a semelhana entre eles, conforme j mencionado. Lus
exatamente como o Homem Subterrneo: fraco, amargo, parasita, vingativo. O Homem
Subterrneo precisa vingar-se de seu inimigo, todavia, apesar de toda a energia que gasta
planejando aes vingativas, pouco consegue realizar, tamanha sua fraqueza e covardia.
Lus tambm se consome em pensamentos que demonstram que incapaz de metabolizar suas
experincias negativas, suas perdas. Seu desejo de vingar-se de Julio gera-lhe a iluso de
que, se assim agir, conseguir viver em paz. Ento, ele precisa destruir Julio porque
ressentido e, vingativo que , para existir, precisa anular Julio. Dessa forma, comete o crime,
porm o faz, covardemente, s escondidas, por meio de aes prprias de um ser acanalhado,
como ele mesmo se autodenomina, j que no possui a coragem para impor-se de maneira
nobre, corajosa.
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4.3 Terceira: Lus da Silva j era vtima do sentimento de culpa antes de cometer o crime
A terceira motivao ocorreu-me quando buscava em Freud a explicao para
entender as demandas, os fantasmas e o sofrimento da alma de Lus da Silva. A leitura de
Angstia e o conhecimento da personagem, que alcancei com a ajuda dos diversos estudiosos
que iluminaram este trabalho, ajudaram-me a perceber que a alma humana mais complexa
que inicialmente eu supunha. Lus da Silva enquadra-se nesta classificao, de forma que
pode ser comparado a um ser humano, tendo em vista a elaborao da personagem, a sua
profundidade e as elucubraes de sua conscincia a que temos acesso, graas mo e
mente frtil de Graciliano, e, claro, a sua genialidade criativa. H que se lembrar que
Graciliano, conforme muitos j disseram, mestre em explorar, em desvendar e em traduzir a
alma humana, e mesmo usando de linguagem objetiva, s vezes seca, tem talento especial
para essa arte. Comparado ento, riqueza humana, Lus da Silva est sujeito a toda uma srie
de intempries sentimentais e emocionais a que estamos todos expostos.
Com efeito, Lus da Silva, julga-se um ser incapaz, nulo, covarde e pobre em todos os
aspectos. Pouco importa se ele , de fato, to insignificante como descrito; importa termos
cincia da opinio que ele tem de si prprio, que o que desencadeia todas as suas condutas e
a forma como age. Conforme abundantemente mencionada, essa convico a pior possvel e
ele no acredita que pode melhorar. As lembranas da infncia, os fatos pretritos, a histria
de seus antepassados, do pai, do av e de tantas personagens remotas que se encontram no
romance, so trazidos pela memria de Lus, que reconstitui o passado para apresent-las ao
leitor e assim justificar a pessoa que . Todas essas informaes esto a servio da histria do
protagonista, que produto de um menino oriundo do interior nordestino e descendente de
uma gerao coronelcia de decadentes.
Dadas essas consideraes, possvel afirmar, com base em Nietzsche, que Lus da
Silva um ressentido e, por isso, precisa buscar um agente culpado para o seu sofrimento. No
caso dele, o culpado era Julio Tavares, a quem atribui a total responsabilidade por seus
infortnios. Por isso Julio Tavares deve morrer.
Algumas outras consideraes so necessrias para a construo desta hiptese e
futuras concluses.
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4.3.1 Rasklnikof e Lus da Silva
Na esteira das supostas motivaes de Lus da Silva julgo interessante abrir um breve
parntese com o intento de comparar sua conduta de Rasklnikof, do romance Crime e
Castigo.
Constatadas diversas semelhanas entre Graciliano Ramos e Dostoivski, impossvel
desenvolver esse estudo sem recorrer a elas. Interessante trazer neste contexto o que escreveu
Arteaga a respeito da conduta de ambas as personagens dos dois escritores. Essa autora
analisa os motivos que fizeram com que os protagonistas de Angstia e de Crime e Castigo
cometessem seus crimes e compara tambm o desenrolar dos fatos, ps-crime, bem como o
estado emocional dos assassinos em consequncia de suas condutas.
No se encontra em Rasklnikof indcios de baixa auto-estima, como h em Lus da Silva, pelo contrrio. Sua vontade de fazer-se superior que motiva o crime contra a agiota Alena e sua irm. [...] Os crimes, cujos motivos aparentes so roubo e passionalidade, escondem outros segredos. Rasklnikof mata para ser mais; Lus, apenas para ser (grifo nosso). [...] Para todo o crime h um castigo e, para o crime de Rasklnikof, o castigo a angstia, como nos coloca o narrador de Crime e Castigo (Dostoievski, 1996 p. 63): [...] para Lus da Silva, a angstia que o faz cometer seu crime, ou seja, se, para Rasklnikof, a angstia conseqncia do crime; para Lus, ela a causa (ARTEAGA, 2005, p. 63-64).
Se, segundo Arteaga, Lus da Silva cometeu o crime apenas para ser, porque julgava-
se inferior, essa ideia vai ao encontro das opinies de tantos estudiosos que se detiveram no
comportamento da personagem, conforme mostrado no item acima de nmero 4.2 deste
trabalho.
As semelhanas e diferenas entre o que ocorre com Lus da Silva o que se d com
Rasklnikof, aps a prtica do crime devem ser consideradas:
Rdia percebe que um felizardo porque tem o amor de sua famlia, que o estima, um amigo verdadeiro, uma aparncia agradvel e o amor sincero de Snia. Apesar disso, angustia-se muito, uma angstia asfixiante que s termina com a expiao e o amor. Lus. Por seu lado, no possua nada: beleza, amor, famlia, f. Seu tormento muito mais intenso, pois no h cura para seu mal. [...] essa a diferena primordial entre eles: h, ainda que com longos e dolorosos sacrifcios, uma nova vida para Rasklnikof, enquanto que para Lus no. A mediocridade de Lus, que mata para ser algum, permanece, pois ele no tem uma segunda chance. [...] A angstia de um se inicia com o crime; o seu castigo. Para outro, a angstia o fator gerador do crime. [...] a angstia do heri brasileiro muito mais dura que a do russo, uma v que no h perspectiva de recomeo para Lus da Silva. (grifo nosso) (ARTEAGA, 2005, p. 56-57).
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Assim, Rasklnikof, que matou para ser superior aos outros, aps o baque que sentiu
comentendo o crime e sofrendo suas conseqncias, torna-se mais humilde e percebe a sua
condio humana, a sua normalidade e adquire, mesmo sendo punido, a esperana de uma
nova vida. J com Lus, no isso o que ocorre e seu pesar bastante maior.
Na citao acima fica clara a distncia entre ambos no que diz respeito motivao e
forma de ver os fatos, bem como postura perante a vida de cada uma das personagens.
Vrias transcries de outros autores, apresentadas neste trabalho, apontam para um forte
sentimento de baixa autoestima em Lus da Silva. Cite-se Antonio Candido, um dos tericos
que d nfase a essa caracterstica da personagem. Assim, diversas so as opinies que
concluem que a fraqueza de Lus da Silva, seu sentimento de inferioridade, a situao de
perdedor e a pequenez que se percebe diante de Julio Tavares conduzem-no, covardemente, a
encontrar uma suposta sada para essa situao e, assim, acabar com a vida do rival, o que lhe
permitiria ocupar o seu lugar, no se deixar humilhar por ele, no ser novamente vtima do
seu poder, ou, ao menos, viver sem o tormento que a existncia de Julio representava.
No final do ltimo pargrafo do trecho acima, no entanto, Arteaga parece acreditar que
possa Lus da Silva ter sido tomado por outra motivao que o teria conduzido prtica
ilcita, quando diz que, para ele a angstia o fator gerador do crime. Nessa passagem, ela
traz o mal-estar de Lus antes da prtica do crime. Chamo a ateno aqui para o fato de essa
angstia estar muito misturada ao sentimento de culpa que ele sente.
Arteaga faz uma reflexo sobre as motivaes de Lus da Silva e, quando as compara
s de Rasklnikof, percebe como ambos agem de com motivaes distintas. Ento reafirma
que Lus da Silva uma personagem bastante diferente de Rasklnikof, mas comete o
mesmo pecado. Para ele, no entanto, a angstia acontece muito antes do crime, , por
assim dizer, sua motivadora. (grifo nosso). ( p. 65).
Arteaga, que elabora um estudo aprofundado sobre os estados psquicos e tambm
aborda a culpa sentida por Lus da Silva, vai alm e traz consideraes sobre a angstia, que
segundo ela, o resultado do desequilbrio entre o desejo e a falta. (p. 45). A angstia, para
ela:
[...] est associada clera, punio do supereu, [...] acarretando o famoso sentimento de culpa. Para saciar a culpa, o sujeito se sente obrigado a sofrer, a ser punido. O supereu, ento, torna-se extremamente cruel, fazendo o indivduo autopunir-se pelo ato praticado, ainda que sob a hiptese de pensamento. [...] O problema quando o sujeito, ao utilizar a angstia no mais como um meio de
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proteger-se, vive em estado de angstia, caracterizando a psicopatologia. (ARTEAGA, 2005, p. 45).
Nas ltimas linhas