Download - 2012 Lagrou miçanga Cahiers Fausto e Severi
Um corpo feito de artefatos: o caso da miçanga Els Lagrou 2012. In Cahiers d’anthropologie sociale. Collège de France. “Uma grande quantidade de nativos se reuniu naquele lugar... Para ganhar a amizade e a
afeição das pessoas, e porque estava convencido de que sua conversão para nossa sagrada fé poderia ser mais bem promovida através do amor do que através da força, coloquei algumas capas vermelhas e tinha alguns colares de contas que coloquei nos seus pescoços, e com outras quinquilharias de valor insignificante que os deixava encantados e através dos quais obtivemos um maravilhoso impacto sobre seus afetos.” (Cristóvão Colombo ao chegar nas Bahamas, 1492 (apud Dubin, 1987: 271).
Introdução A centralidade da corporalidade para a constituição da pessoa entre os
Ameríndios se tornou um paradigma na área de etnologia ameríndia1, mas as maneiras
como artefatos são mobilizados na fabricação das pessoas e dos grupos sociais
recebeu somente recentemente uma atenção mais sistemática por parte dos estudiosos
do campo. O estudo em profundidade do mundo artefatual que participa da fabricação
do corpo ameríndio lança nova luz sobre conceitos ameríndios de corporalidade e de
pessoa2. Um aspecto importante desta relação diz respeito à superposição sistemática
dos discursos ameríndios que dizem respeito a artefatos e a corpos. Tanto no caso da
pintura corporal quanto na decoração do corpo com colares de contas, dentes e
sementes, temos o mesmo entrelaçamento entre artefato e corpo, entre a fabricação de
um corpo com capacidade agentiva e sua decoração exterior e interior.
Neste artigo visamos abordar esta questão a partir da elaboração,
transformação e ‘pacificação’ artística e semântica pelos ameríndios dos materiais
obtidos através do contato com os brancos, mais especificamente da miçanga, as
famosas contas de vidro trocadas com os viajantes desde as primeiras viagens
europeias para as Américas. As miçangas são verdadeiras 'pérolas de vidro', expressão
que aponta para o paradoxo da miçanga: uma preciosidade e matéria prima na
fabricação de artefatos de alto valor entre a maior parte das populações nativas do
mundo e parte do escambo entre colonizadores e populações nativas, onde
1 O paradigma da importância do discurso sobre a corporalidade para a noção de pessoa ameríndio 2 Precursores na valorização do mundo artefatual e sua relação com a construção da pessoa foram os
trabalhos de Erikson (1996), Van Velthem (2003), Lagrou (1998, 2007) e Barcelos (2008). O volume editado por Santos Granero (2009) reúne pesquisas recentes em torno da questão, como a pesquisa de Steven Hugh-Jones sobre o corpo Tukano composto por artefatos invisíveis e o de Joana Miller sobre a relação entre o fio de contas e a alma da pessoa. Para um ensaio teórico e comparativo sobre a relação entre pessoas e artefatos no mundo ameríndio ver Lagrou, 2009a.
constatamos desde o começo um desencontro de perspectivas de valor. Os viajantes e
colonizadores achavam estar trocando quinquilharias por preciosos matérias primas,
enquanto os nativos apreciavam muito estas contas de vidro cujo modo de produção e
origem desconheciam3. Contas de materiais mais ou menos preciosos, desde as
conchas de Espindola vermelho e a turquesa às contas pretas de tucum e brancas de
caramujo, estiveram em uso bem antes da chegada dos brancos. O gosto indígena
pelos colares de contas fez com que as contas de vidro trazidos pelos europeus
caíssem em solo fértil4.
Sabe-se desde os escritos de Lévi-Strauss e Clastres (1982) que a maior parte
das sociedades ameríndias situa no exterior a fonte de inspiração artística e cultural.
Para Wayana (Van Velthem, 2003) e os Yekuana (Guss, 1989) todos os motivos et
técnicas foram conquistados e roubados de inimigos sobrenaturais, seus proprietários
originários, e a estética consiste em sua tradução estilística: as forças do inimigo são
controlados e introduzidos através de uma incorporação que os redefine, transforma,
para que possam ser postos a serviço da sociedade. Vemos aqui uma continuidade
lógica com o canto do inimigo que canta no homicida entre os Araweté (Viveiros de
Castro, 1986) e o tratamento dado ao sangue do inimigo que aumenta o poder
reprodutivo do guerreiro wari (Vilaça, 1992; Conklin, 2001). O sangue do guerreiro
produz a fertilidade das mulheres e os dentes dos inimigos yagua garantem, ao modo
das cabeças reduzidas dos jivaro (Taylor, 1985), uma descendência ao guerreiro e
ajudam na fertilidade das plantações das mulheres.
A obtenção e elaboração dos materiais vindos do exterior em materiais
constitutivos da própria identidade grupal segue uma lógica similar, quer se trate da
incorporação de pessoas, qualidades ou capacidades agentivas de pessoas (alma,
canto, nome) ou de objetos. Estes elementos conquistados sobre ou negociados com o
exterior precisam ser pacificados, familiarizados5. Este processo de transformação do
que é exterior em algo interior tem características eminentemente estéticas6.
3 Nas Américas, a técnica de produção de vidro era desconhecida e as contas de vidro eram recebidas como preciosidades exóticas. Sabemos que um dos primeiros gestos de Colombo ao chegar ao Caribe em 1492 foi o de oferecer miçanga aos índios arawak (veja epígrafe). Cem anos mais tarde, Jean de Léry dará testemunho de uma verdadeira fascinação por parte das mulheres Tupinamba pela miçanga trazida pelos franceses. Jean de Léry, 1975 (1580), pp. 110-111 (apud Schoepf, 1976: 57). 4 Ver por exemplo Dransart e Meisch em Sciama & Eicher (eds) sobre o uso pré- e pos-hispánico de contas nos Andes e em Ecuador (1998:129-146; 147-175) e Graeber (2001) para os Estados Unidos.
5 A ideia da familiarização ameríndia de xerimbabos e cativos foi elaborada respectivamente por Erikson (1984) e Fausto (1999). Em ambos os casos enfatiza-se uma relação de domesticação, implicando em relação hierárquica entre o dono e seu “filho adotado”. No caso da pacificação
As contas constituem itens cruciais na tessitura de caminhos entre mundos
diferentes e visualizam de modo exemplar as diferentes maneiras adotadas pelas
populações indígenas de lidar com a alteridade, através de uma incorporação
estilisticamente controlada de itens provindos do exterior. A miçanga aparece em
grande parte relacionada aos mitos de origem do branco, sendo interpretada ora como
fonte de beleza e riqueza, ora como veículo e origem de novas doenças. O discurso
mítico e, em alguns casos, cantos rituais apontam para uma estreita relação entre a
atitude frente ao branco e a atitude frente à alteridade em geral.
Este questionamento comparativo será explorado a partir da análise do
material Kaxinawa, povo de língua pano que vive no Brasil, Acre e Amazônia
peruana. Entre os Kaxinawa a estética e eficácia ritual consistem em mover os
“outros”, “ex-inimigos”, na maior parte seres invisíveis yuxibu, donos de matérias
primas necessárias para a construção de um novo corpo, a ceder voluntariamente
aqueles itens que foram notoriamente negados em tempos míticos, quando resultavam
em guerras de conquista dos bens desejados. A estética é, neste caso, o operador
relacional central que garante a eficácia ritual que consiste na transformação de
inimigos em aliados, permitindo a produção de pessoas a partir de pedaços de
artefatos ‘vivos’ que carregam agência de outros seres na sua própria constituição.
Porque artefatos são produzidos para agirem dentro da rede de intencionalidades
humanas na qual surgiram, constituem o índice desta rede de relações, o nó, a
cristalização de um campo de forças relacionais que pode ser explorado através da
análise detalhada de sua materialização7.
A miçanga no mito e no rito entre os Kaxinawa “Tia faça pulseiras, braçadeiras, tornozeleiras e joelheiras para mim (3x) Esprema remédio para desenho, remédio para desenho nos meus olhos (2x)
estética em questão, no entanto, trata-se mais da sedução de um poderoso inimigo que voluntariamente
e temporariamente cede sua colaboração do que de sua subjugação. 6 Um belo exemplo de 'domesticação' dos objetos dos brancos aparece em foto tirada por Lux Vidal
entre os Kayapó-Xikrin, onde vemos duas crianças xikrin segurando uma boneca de plástico. As bonecas foram pintadas com jenipapo com os motivos da pintura corporal Xikrin e decoradas com um colar de miçanga. O tratamento estético dado à boneca permitiu sua transformação em boneca xikrin (Vidal, 1992).
7 Nossa proposta de tratar artefatos como nexos de agências interrelacionadas segue Gell (1998). Ver a respeito das afinidades entre a proposta teórica de Gell e as ontologias ameríndias Lagrou, 2007 e 2009.
Faça meus olhos como contas, meus olhos como contas (2x)”8 Canto do Nixpupima, cantado pelas mulheres para as neófitas.
Foi no contexto da tradução dos cantos do nixpupima, rito de passagem para
meninos e meninas em fase de trocar os dentes, que as ‘contas de vidro’ chamaram
minha atenção para uma reflexão nativa sobre o fascínio e sedução pelo Outro, desde
a mítica figura do Inka ao atual nawa, o estrangeiro não-indígena. Nos cantos rituais
as contas ligam em cadeia associativa conceitos chaves como dentes, olhos, sementes,
metal, ossos, milho, kene (desenho), Inka e yuxin (princípio vital, alma, espírito)
(Lagrou, 1998).
O nome do ritual, nixpu pima, significa: “fazê-los comer nixpu”, um planta que
faz enegrecer os dentes. Esta intervenção marca o estágio final no processo de
preparação dos jovens para a participação nas atividades produtivas. Depois de
mastigar nixpu as crianças ficam em reclusão por vários dias até o momento da sua
volta à vida normal, marcada pela aplicação do veneno do sapo kampun que provoca
fortes vômitos que visam limpar o corpo do nixpu ingerido. O rito de passagem opera
uma verdadeira remodelagem do corpo e dá atenção especial aos ossos, dentes e olhos
da criança. A dieta e os pulos forçados (ixtiu) que antecedem a aplicação do nixpu
visam fortalecer e fazer crescer rapidamente os ossos, enquanto o nixpu endurece os
dentes. O banho medicinal e as gotas de plantas medicinais, espremidos nos olhos dias
antes da aplicação do nixpu, quando as crianças já estão reclusas e saem do
mosquiteiro somente para serem levados pelos adultos para pular, servem para clarear
a visão e a mente, ajudam no aprendizado e fortalecem o corpo. É significativo que a
palavra mane, no duplo sentido de conta e metal, material imperecível, tenha sido
invocada para emprestar suas qualidades tanto para os olhos quanto para os ossos e
dentes da criança.
Dentes são, em muitas sociedades Ameríndias, o locus da força vital. Como
exemplo da associação muito difundida entre dentes e força vital na Amazônia
Ocidental podemos citar o costume Yágua de extrair os dentes de seus inimigos,
mortos na guerra, para usá-los em colares, e um mito deste mesmo povo descrevendo a
humanidade primordial como mole e frágil por causa da falta de dentes (Chaumeil,
8 “Yaya huxe waxunuuun; yaya huxe waxunun eee ee; yaya huxe waxunun; ea kene daun kene dau w(b)etxeswe; ea kene dahun kene dahunwetxeswe hee ee; ea mane beduwa mane beduwawee; ea mane beduwa mane beduwa teka ee hee.”
2002:115-126).
Segundo Augusto, especialista ritual que executou e explicou o rito de
passagem para mim, dentes possuem yuxin (força vital), e é este yuxin que faz com que
não quebrem. Homens, mulheres e crianças usam dentes como troféus de caça,
proteção ou decoração (dau). Crianças e mulheres usam dentes de macaco e roedores
para se embelezar e dentes de jacaré para se protegerem de picadas de cobras; os
homens guardam os caninos da onça em colar com contas como troféu. Dentes são
dispostos em colares, alternando-se com sementes e contas. Dentes de macaco podem
também ser costurados em largas fileiras sobre faixas brancas de algodão, usados como
cintos, colares, pulseiras ou testeiras.
Por ser o vetor da força vital os dentes ocupam lugar prestigioso na vida social
kaxinawa. A única matéria prima que pode competir com os dentes é a miçanga. As
mulheres kaxinawa adoram contas e tentam colecionar a maior quantidade possível. Os
Kaxinawa e a grande maioria dos seus visinhos no Brasil e no Peru vêem nos
antropólogos e missionários uma fonte indispensável destas contas que não se
encontram no estoque dos marreteiros que vendem mercadoria nos rios e nos mercados
locais. Outra maneira de obter miçanga são as viagens de lideranças para grandes
centros urbanos no Brazil ou no exterior. Se o acesso às contas era muito difícil no
Acre dos anos noventa, esta situação começou a mudar recentemente com a introdução
no mercado da miçanga chinesa, muito mais em conta que a tcheca.
As miçangas brancas, por sua associação com o imperecível e seu aspecto de
eternamente novo, são preferidas em detrimento das tradicionais faixas tecidas em
algodão (yumen huxe), atadas ao redor do pulso, braço, tornozelo e abaixo do joelho
em faixas de cinco a dez centímetros de largura. Estas faixas dão suporte às juntas,
assinalando a estrutura óssea (igualmente branca) que sustenta o corpo, e as
articulações que possibilitam o movimento.
As articulações são, junto com a testa e os olhos, os pontos de intervenção nos
ritos de cura. Quando um recém-nascido sofre de febre alta, o sumo de ervas
medicinais será espremido primeiramente em sua testa, depois nos olhos e, finalmente,
em cada uma das juntas. A mesma ordem de procedimento é seguida quando se trata
de sopro curativo ou de massagem. No mito, a técnica usada para dar vida ao morto
segue este mesmo padrão: os ossos são reunidos, ervas medicinais são espremidas nos
olhos e nas juntas e o herói, um yuxibu bake (filho de yuxibu), sopra o crânio e os
ossos, invocando o yuxin do olho de volta para o corpo. Assim que os ossos são
reunidos e umedecidos pelo líquido curativo, uma nova pele cobrirá o esqueleto e a
pessoa renasce.
Nos cantos do rito de passagem, a miçanga (mane) aparece como
quintessência de dureza e resistência. Pede-se para as crianças dentes e ossos “duros
como miçanga”, assim como olhos brancos, videntes e brilhantes como a miçanga. No
canto ritual, contas são sistematicamente associadas aos Inka, donos do imperecível.
Esta associação as faz, enquanto categoria social, coincidir com os nawa. Inka e nawa
são proprietários de bens que pertencem à civilização urbana. Suas cidades são feitas
de pedra, suas ruas são largas e limpas, são os donos do metal, do ouro e de miçanga
de cores fortes e brilhantes. No mito possuem o fogo e as plantas cultivadas, e na
história do contato possuem metal, espingarda, facas e máquinas. Seu comportamento
com relação aos kaxinawa é caracterizado pela crueldade, falta de reciprocidade e
avareza. São canibais, comedores de carne crua. São a quintessência da alteridade,
assim como o destino póstumo de todo huni kuin (autodenominação dos Kaxinawa,
significando “gente verdadeira”). Entre si, no entanto, sua vida é descrito nos mitos
como altamente social e organizada. Através da conjunção com o branco, a figura do
Inka é atualizada.
O modo pelo qual os mitos e alguns cantos de Txidin (ritual do gavião)
abordam a origem e manutenção da diferença étnica, transforma o ‘outro’, inimigo, em
epítome da alteridade: nos mortos. Esta associação da alteridade com a morte é
alcançada através do contraste entre os mundos do perecível e do impericível. Ao
associarem os inimigos ao imperecível, os Kaxinawa os distanciam, cada vez mais, da
humanidade. Os Inka, predadores prototípicos, causadores de doença, infligem a morte
e de certo modo se assemelham à própria morte na forma como manifestam seu poder
e estilo de vida.
A floresta está marcada por processos de crescimento e enfraquecimento,
enquanto a vida nas aldeias dos mortos é eterna e circular. A fertilidade na floresta é
obtida através da colaboração entre pares complementares e ‘predação’ mútua, ao
passo que no mundo da morte não há mutualidade, pois a morte nunca dá, somente
leva através da violência. Como uma onça com fome de carne, a morte devora o que
pode, voracidade ridicularizada no mito do Inka solitário que, não tendo mais nada o
que comer, devora a si mesmo. A imagem de voracidade é evocada, também, na
imagem do sol, o fogo do Inka. Por isso, quando uma moça menstrua pela primeira
vez, não sai de casa sem a cabeça coberta: Inka pintsi (o Inka com fome de carne) pode
vê-la (cheirar seu sangue) e canibalizá-la.
O mito de origem da separação da humanidade menciona como causa da
migração a procura de terras melhores, por causa da qualidade ruim do barro: todas as
panelas que as mulheres faziam costumavam quebrar com facilidade. Por isso as
pessoas decidiram abandonar a floresta e migrar na direção do oriente, rio abaixo
(maikidi) a procura de barro bom (pedras e minerais). Chegam a um grande lago onde
vêem um enorme jacaré, cujo corpo cruzava o lago de um lado ao outro. O jacaré
concordou em deixá-los cruzar o lago passando por suas costas, mas pediu caça como
pagamento. Tudo corria bem até o momento em que alguém colocou um filhote de
jacaré em sua boca. Enraivecido, o jacaré virou as costas e a ‘ponte’ desapareceu. Em
pânico, as pessoas gritavam umas para as outras. As que conseguiram atravessar
gritavam: “Vai na direção dos dentes!” (“xetadabanã kayuwe!”); as que ficaram do
outro lado respondiam: “vai na direção das contas (metal)” (“manedabanã kayuwe!”).
As que não conseguiram atravessar o lago tornaram-se os huni kuin, índios que
vivem na floresta; os que conseguiram cruzá-lo se tornaram os nawa, não-índios. Ao
finalizar o mito, Augusto conclui: “Os estrangeiros são nossa metade partida há muito
tempo.” (nawa kuin nukun bais xateni).
Outro fragmento de mito narra como as pessoas viajavam pela floresta e de
repente encontraram uma grande árvore, “parecida com a samaúma” (xunu keska),
cheia de contas coloridas. Nesta árvore cresciam contas vermelhas, azuis, amarelas e
brancas, em grande quantidade. Infelizmente, esta árvore tinha sido plantada pelo Inka,
que a guardava ciumentamente.
O tema dos caminhos que levam aos dentes e às contas é retomado nos cantos
do txidin, ritual de iniciação do líder de canto e no mito que o acompanha. Este mito,
chamado manendabanã (no caminho da miçanga), conta como os quereres conflitantes
de um casal, o dele por dentes, o dela por contas, resulta na separação do casal.
Existem várias versões deste mito. A primeira versão que colhi enfatiza a
escolha de caminhos diferentes. O casal anda na floresta e na encruzilhada o homem
escolhe o caminho na direção das nascentes do rio e a mulher toma o rumo da jusante.
A mulher é muito bonita (hawendua txakayamanã). O casal discute: “Vamos na
direção dos dentes” (xetandabanã kanuwe!), insiste o marido; a mulher responde:
“Não! Vamos na direção das miçangas” (manendabanã kanuwe!). Assim foi, cada um
chamando o outro, cada um tentando convencer o parceiro para mudar de idéia. Mas de
nada adiantou. Quando Neabu percebe que não escuta mais a voz da sua mulher, em
desespero sobe na árvore mais alta que encontra e a chama, porém, não obtém
resposta. A mulher está longe e não o escuta mais. Perturbado, Neabu cai da árvore e
quando consegue ficar de pé de novo comporta-se como ‘louco’ repetindo a mesma
frase todo o tempo: “minha mulher, minha mulher, minha mulher!...” (en ainen, en
ainen, en ainen...). Não nos deteremos aqui nas peripécias de Neabu, que são narradas
com muitos detalhes nas diversas versões que conlhi, mas na chegada de sua esposa na
terra dos Inka.
O mito que me foi contado recentemente por Leoncio Salomão, respeitado
especialista recém chegado do Peru, conta o destino da mulher:
“Neabu voltou. E a mulher dele foi na frente no rio, vai andando na praia,
encontrando a família. Mas ela não encontrou a família não, encontrou o Inka. Vinha toda bonita. Quando procurou e achou miçanga, foi enfiando a miçanga. Depois de enfiar miçanga, dizem que colocou os enfeites de miçanga, se pintou toda com miçanga. Aí pendurou no corpo todo. Amarrou o corpo com miçanga. Aí se pintou todo com miçanga (com listras na vertical). O nome dela é: Mane tsauani (sentou na miçanga), mane betxia (encontrou miçanga), mane uinyani (olhou miçanga). Ela canta que encontrou miçanga, tudo isso é nome dela. Este é o canto do txidin.” Depois deste relato, Leônico canta o canto da miçanga:
Mane tsauani
colocou a miçanga para sentar inka mane betxia aa
encontrou a miçanga do Inka mane uinyani está vendo miçanga
inka mane betxia a a encontrou miçanga do Inka ... inka mane panei pendurou pelo corpo todo
mane uiyani viu miçanga inka mane keuin e
está enfiando a miçanga mane betxia e encontrou miçanga en kai kai e ee eu vou e ee mane tsaua ee está sentada na miçanga en kai kai e ee
eu vou, eu vou mane uinyane
olhar a miçanga en kai kai e e eu vou, eu vou Neste momento passa-se ao segundo canto, o canto de manendabanã:
Manen kene manen kene e e e
Desenho com miçanga, desenho com miçanga Inka mane kenei en dakake
Estou pintando com a miçanga do Inka, estou deitada Inka mane daui en dakake
Enfeite com miçanga estou deitada Inka mane nexeu en dakake e
Amarra a miçanga toda estou deitada Inka mane panai en dakake e e
Com a miçanga pendurada no corpo todo estou deitada Inka mane daui en dakake
Com o enfeite de miçanga do Inka estou deitada “Apaunibuki: Assim fazia antigamente. É assim para começar, antigamente começava para cantar. Eu não sei muito mas vou explicar para você entender. Sei um pouco e vou te ensinar.”
E e e e inka mane kenane ee ee ee
O banco de miçanga do Inka Mane kena wanixun
Fizeram o banco de miçanga Mane kena tadankin
O banco de miçanga está rolando (como bola) Tadan tadan baini
Rola ligeiro indo embora .... O último canto associa a miçanga ao banco ritual, kenan, feito das raízes tubulares
da sumaúma para as crianças durante o rito de passagem. É sentado no banquinho que
as crianças receberão a aplicação de nixpu. Este banco é concebido como modelo
reduzido do corpo da criança (Lagrou, 2007 e 2002). A idéia do modelo reduzido do
corpo é resumido em uma das frases do canto ritual entoado durante a fabricação do
banco: “duas pernas com um buraco no meio”. O banco é esculpido na floresta pelos
homens, assim como o feto é esculpido no ventre da mulher durante a gravidez, e
depois de pronto pintado pelas mulheres como se fosse um corpo. Interessante notar
que no canto ritual do txidin esta antropomorfização do banco é completada pela sua
decoração com miçanga.
Se a separação transformou Neabu em uma criatura boba e errante, sua mulher,
ao encontrar a miçanga, encontrou igualmente os Inka, o que equivale a um processo
de tornar-se outro, estrangeira. Seu desejo por contas era tão forte que a fez viajar
sozinha, abandonando seu marido. Esta é uma interpretação possível, outra, no entanto,
é o fato dela estar, na verdade procurando seus parentes: o pai da mulher estaria entre
aqueles que conseguiram atravessar a ponte do jacaré e o motivo real para a fascinação
da esposa por miçanga seria o desejo de rever seus parentes. Leoncio explicita, no
entanto, que o que ela encontra não são seus paretens mas os Inka.
Os bens dos Inka e dos nawa precisam ser conquistados, ou pagos ao preço de
correr o risco de se tornar, como a esposa de Neabu, um estrangeiro. Não obstante, os
bens desejados do estrangeiro constituem, ao mesmo tempo, a estrutura mais interior
da vida social e do corpo. Esta consciência da presença constitutiva da alteridade no
que é considerado interior, é uma temática recorrente na mitologia e nos cantos rituais
do Nixpupima e Txidin.
Os Kaxinawa se interessam muito em saber como as coisas são feitas, quem é
o dono, quem plantou as árvores que produzem os frutos que comem e os materiais
que utilizam para produzir artefatos. Com relação aos objetos trazidos das grandes
cidades pelos visitantes, estas são perguntas insistentes, o de saber como e onde são
produzidos. Todo objeto é um artefato e foi, portanto, feito por alguém. O artefato
aponta para uma relação.
As substâncias utilizadas possuem uma agência própria que deriva do laço que
os liga de forma permanente a seu ibu, aquele que as fez, as engendrou. No rito de
passagem de meninos e meninas este saber se revela através da utilização constante de
cantos a acompanhar as atividades. Todos os itens utilizados na remodelagem dos
meninos devem ser devidamente cantados para garantir a presença dos seus donos: a
água, o milho, a tinta utilizada para enegrecer os dentes, a sumaúma de onde serão
cortados os bancos, as ervas medicinais com os quais os meninos serão banhados.
O foco de interesse do ritual está nos dentes e nos ossos das crianças. Os ossos
precisam crescer de forma rápida e vigorosa como uma planta de milho. Os dentes
endurecer como um grão de milho. Na teoria da concepção kaxinawa o sangue da mãe
formará a carne e a pele da criança, enquanto o sêmen formará os ossos. Sêmen e leite
materno são o que sobrou da caiçuma de milho feita pelas mulheres. Aquilo que fica
na barriga do homem, depois de tomar a caiçuma são as ‘sementes’, o sêmen do
milho. Ficam ali para mais tarde ‘se tornar gente’. Quando guardadas nas vigas das
casas são ditas morar em famílias, com nomes próprios pertencendo às metades.
O canto das mulheres ao descer para o rio com as panelas para pegar a água na
qual será fervido o milho revela bem esta cadeia de associação onde não somente os
ossos são chamados de Inkan mane (contas, metal do Inka), e de xeki bedu (olhos,
sementes de milho), alimento do Inka que foi roubado em tempos míticos, mas o
próprio milho é chamado de “miçanga do Inka”:
en badiwaka betxia he he he o encontrei no rio do sol
en txana hene betxia encontrei a água do japim
Inka mane itxumaki Faz pular a miçanga do Inka
txanawaka beatãwe Vai e pegue água no rio do japim
Inka mane itxumaki Faz pular as miçanga do Inka
Assim como ossos e milho, olhos e dentes são chamados de miçanga, mane,
no canto ritual, pois a intenção é passar suas qualidades de dureza, brilho e
durabilidade para estas partes do corpo. Vemos assim que contas estão por toda parte,
constituindo a estrutura que sustenta o corpo, assim como decorando-o. A miçanga
ilustra claramente que ao construir a identidade através da tradução e incorporação
estética da alteridade, é de crucial importância que esta não é nunca aniquilada. No
caso kaxinawa, a agência desta alteridade não é nem controlada nem domesticada,
como fica claro nos cantos que invocam os donos da miçanga, os Inka, mas capturada
através da sedução estética. Todos os donos das substâncias utilizadas no ritual são
chamados pelo seu canto, seu nome, seu desenho, são convidados para a festa para
alegrá-los para que colaborem voluntariamente, fazendo com que seu yuxin permeie o
produto de sua agência, dando-o substância e vigor. Uma tinta não cantada será
pálida, uma pena que cai no chão quebradiça.
A estrutura invisível interna que sustenta o corpo, sendo a parte mais
duradoura do corpo, é associada ao bedu yuxin, o espírito do olho. Este é o único dos
espíritos que habitam o corpo que possui destino pós-mortem no céu entre os Inka. O
canto ritual visa transformar ossos, olhos e dentes em miçanga, uma miçanga plantada
no corpo, como sementes que precisam criar raízes e crescer como árvores, do mesmo
modo que o espírito do olho foi plantado no coração da criança ao nascer para lá criar
raízes.
Estas sementes, miçangas do Inka, são miçangas do inimigo; as mesmas ou
parecidas com aquelas agora obtidas dos brancos, os nawa. Esta incorporação de
substâncias e suas qualidades agentivas associadas à alteridade, ao inimigo, aponta
para o modelo de predação ameríndio onde o eu é constituído a partir de capacidades
agentivas obtidas de fontes exteriores. Às vezes a obtenção do conhecimento é
consentida. Os saberes relacionados ao controle do fluxo do sangue e ao fluxo de
imagens e desenho foram doados a uma velha kaxinawa pela jiboia, assim como o
foram as contas e a pintura corporal dos Inka, com o único porém que da terra dos
Inka nunca se volta. Chegar no barranco onde moram os Inka e enfeitar-se com sua
miçanga equivale a assumir seu corpo e tornar-se Inka, isto é morrer.
A dialética Pano da identidade e alteridade, com suas metades englobadas e
englobantes, é rebelde à classificação que dispõe coisas e símbolos em categorias
fixas. Se em termos de destino e filosofia social a figura do Inka é mais exterior que a
de Yube, a anaconda ancestral, e, portanto, a metade dos inu associada ao Inka mais
exterior que a dos dua, associados à anaconda, ao nível da ontologia os termos estão
invertidos, o elemento englobado e interno se torna a semente do Inka, enquanto o
englobante é seu invólucro, a pele de Yube, a anaconda. Pode-se dizer que ao nível da
antropogênese os humanos são como ‘filhos’ para Yube (porque o líquido e o sangue
originam do reino de Yube, a anconda/lua/yuxibu, chamado ‘nosso pai’ (nukun ibu)), e
afins para o Inka (chamado ‘nosso cunhado’ (nukun txai), com quem o yuxin do olho
se casará depois da morte). No nível da ontogênese, entretanto, a relação entre o
interior e o exterior é invertida: nada é mais ‘interior’, mais ‘próprio’, kuin, para um
humano que seus ossos, dentes e o yuxin do olho. Na medida que estes elementos estão
associados ao Inka, nada seria considerado mais kuin que o próprio Inka.
Notamos deste modo a ambigüidade do conceito Inka, simultaneamente o mais
“eu” (kuin) e o mais “outro” (nawa) dos seres. Inka, suprema alteridade, é também
Inka kuin, o destino do yuxin do olho, o tornar-se o “mesmo” tanto quanto “outro”
através da morte. Na escatologia Kaxinawa, a aldeia dos mortos é descrita como uma
aldeia que apresenta o estilo dos antepassados (xenipabu). São o superlativo do ser
próprio: totalmente decorados, acumulando todos os dau possíveis. O Inka vem
receber o novato em roupa de festa, a túnica tecida com desenho (tadi keneya), brincos
redondos de concha nas orelhas e penas de arara nas narinas. Como marido da mulher
morta ele a recebe tocando flauta, instrumento usado somente no contexto da sedução
para chamar a namorada. O Inka da morte, assim, é huni kuin, a qualidade mais própria
do ser humano.
O caso kaxinawa no contexto ameríndio
É importante atentar para a sobreposição sistemática de discursos relacionados
à produção de artefatos e de corpos que ressalta do material apresentado. Assim como
no caso da pintura corporal, no caso da decoração do corpo com miçanga, dentes e
sementes temos um intenso entrelaçamento ente artefato e corpo, entre a fabricação
interior de um corpo vivo e pensante e sua decoração exterior. Crescente evidência
etnográfica reforça esta ideia. Assim Van Velthem (2003) mostra como as mesmas
técnicas que fazem o artefato fazem o corpo humano e Overing (1991) revela a
estreita relação entre os colares invisíveis no interior do corpo e os a abundância de
colares de contas usados por mulheres com muitos filhos e poderosos xamãs.
Overing mostra como entre os Piaroa as contas usadas como enfeites
exteriorizam os poderes produtivos, encapsulados no interior invisível dos seus
corpos. No corpo estes poderes estão igualmente estocados na forma de contas, contas
invisíveis, e é o xamã que procura estas contas carregadas de energias e saberes
perigosos durante suas visitas noturnas e visionárias às caixas de cristal do céu onde
habitam os deuses que as possuem. O trabalho do xamã consiste em limpá-las para
que possam servir somente os objetivos construtivos da vida social, tendo em vista
sua origem nos excrementos envenenados da anaconda-tapir primordial.
Miller descreve processo similar entre os Maimondê – Nambikwara (Miller,
2007). Entre os maimondê, o destino da pessoa está ligado a suas contas e colares, de
tal forma que o fio da vida pode ser rompido ao romper o fio do colar que se porta no
pescoço. Deste modo, se uma mulher não guardou bem seus colares de contas, ela
pode adoecer. A cura consiste em uma operação xamanística na qual o xamã recupera
as contas perdidas no corpo da mulher que delas descuidou. O caráter de exterioridade
das contas de vidro se torna evidente em caso relatado pela autora. Estas,
diferentemente do próprio fio do colar e daquelas de coco de tucum feitas pelos
próprios Maimondê, que são reintroduzidas no corpo do paciente, são usadas pela
paciente para fabricar um colar para seu marido.
Também entre os grupos pano existe uma relação explicita entre saúde, poder
e enfeites. Entre os Shipibo (Colpron, 2004), Kaxinawa (Lagrou, no prelo),
Sharanahua (Déléhage, 2007) et Marubo (Cesarino, 2008) o xamã recebe suas coroas,
colares e desenhos invisíveis dos mestres quando estes transferem para ele seus
poderes. Para os Marubo, os colares de contas de caramujo constituem proteção para
crianças, mulheres e homens. Recentemente, os colares brancos feitos de finos discos
de caramujo podem igualmente ser feitos com PVC. Chama atenção o fato do PVC
sofrer o mesmo processo de produção das contas que o caramujo. A conta não vem
pronta como no caso da miçanga. O xamã marubo enfatiza a diferença entre colares
de contas feitas de PVC e colares de miçanga. Se os primeiros podem substituir os de
caramujo para uso no cotidiano, os segundos são tidos como produzindo coceira,
‘alergia’. Este exemplo aponta para a importância dada pelos indígenas ao modo de
fazer os enfeites no processo simultâneo de produção de corpos e enfeites9. Se para
alguns este processo de “pacificação estética” se dá pelo modo como o descontínuo (a
multiplicidade de continhas) se torna contínuo (um tecido em estilo nativo feito a
partir das continhas), para outros, como no caso marubo, o interesse no fazer incide
sobre a produção da própria conta.
Entre os Kaxinawa, pelo contrário, o que vem de fora é que dá força e acesso à
cura. O jovem informante de Capistrano de Abreu conta que conheceu o poderoso
mukaya (xamã) chamado Yawabiti que sabia materializar seu muka (poder do amargo,
a substância xamânica) contido em seu corpo de várias formas, entre as quais a forma
de miçanga:
“Quando ele (o mukaya Yawabiti) os mostrou seu muka, eu os vi. Eu vi os muka que ele mostrou para eles: uma pequena bola de veneno, um pequeno pedaço de faca, uma pequena lasca de madeira assim, eles lhes mostrou, e uma conta, vi tudo. (Muka dau tunku mixtin, na nupe teke mixtin, na kadu tumesmixtin hatun uinmaki, na mane hatun uinmaki, keyuwa en uiniki.)” (Capistrano de Abreu, 1941 (1914): 163)
Um mito, chamado Bixku txamiya, fala do poder de cura dos colares e enfeites
em geral. Um convalescente abandonado à morte e coberto de úlceras escapa do
urubu rei que quer comê-lo e rouba deste seus enfeites. A palavra para enfeite é dau
que significa igualmente ‘remédio’ e veneno. O dau do urubu rei deixa Bixku
esplêndido, irreconhecível. Crianças com um problema de doença da alma são
decoradas com muita miçanga para protegê-las. Conheci uma moça que sofria do que
pareciam ser ataques epilépticas. Ela era a criança mais decorada da aldeia. As contas,
aliadas a banhos medicinais e o rosto pintado de urucu serviam para afastar o duplo
do animal que estava tentando levá-la.
O uso de contas neste contexto é significativo. Para a cura procura-se
substâncias que apontam para o poder agentivo do inimigo, nas contas está 9 Comunicação pessoal de Nilse marubo em pesquisa desenvolvida pela autora no quadro de
preparação do projeto comparativo ‘miçanga’.
encapsulado seu poder. Os Huichol (2005) e Kuna compartilham com os Kaxinawa o
uso da miçanga com fins protetivos. Os poderes dos brancos encapsulados nos objetos
por eles produzidos não são patogênicos em si. Você ganha poder sobre o outro
imitando-o, incorporando seu poder (Taussig, 1993).
Já entre os entre os Desana, os mitos de origem da varíola e do sarampo
contam como estas doenças são a manifestação exterior das miçangas que ao terem
sido dadas às mulheres indígenas por mulheres brancas, penetraram sua pele e se
exteriorizaram na forma de bolhas vermelhas na superfície. Aqui o poder contagioso
do branco acompanha os objetos que emanam da sua ação (Buchillet, 2000).
Entre os Wayana, por sua vez, o modo da miçanga agir sobre e no corpo difere
tanto dos Kaxinawa quanto dos Desana. O que ressalta é uma ambiguidade
constitutiva. É preciso lembrar a antiguidade da presença maciça da miçanga na
região das Guianas. A rede extensa de intercâmbio entre os indígenas das Guianas e
os Saramaka e Boni, negros que habitavam as florestas guianenses e eram
responsáveis pelo comércio, levou a miçanga desde cedo para regiões afastadas do
convívio imediato com a vida das cidades (Schoepf, 1976:58). Com a miçanga, os
indígenas de língua carib et arawak da região fabricam há séculos as famosas tangas
tecidas com miçanga. A antiguidade da presença destas tangas é atestada por Van
Velthem e por Schoepf e remonta no mínimo ao século XXVII10.
Se o uso destas tangas não é mais generalizado entre as mulheres wayana hoje
em dia, toda pessoa wayana, tanto o homem quanto a mulher, faz uso de colares de
miçanga. Uma pessoa não adornada com seus colares é considerada nua, como os
macacos cairara (Van Velthem, 2008). Van Velthem chama, no entanto atenção para o
estatuto ambíguo dos artefatos feitos com miçanga. Si de um lado “as contas
europeias não se apresentaram aos indígenas exatamente como algo desconhecido,
mas antes como uma fonte de re-elaborações a partir de um material que os era
familiar” (2008 :51), nota-se no uso atual do material um potencial disjuntivo:
“Os missionários, católicos e protestantes, na intenção de modificar os grafismos dos Ameríndios para convertê-los mais facilmente, introduziram desde o século XIX motivos europeus nas Américas. Os indígenas de língua carib das Guianas e do Norte do Brasil reproduzem até hoje nos seus enfeites tecidos de miçanga figuras e cenários em estilo realista, como cachorros, helicópteros, flores em vasos e crianças brincando com balões entre outros, inclusive motivos tradicionais de indígenas norte-americanos. Entre os Wayana, os pamila imirikut, “pinturas corporais dos livros”, 10 “Sous ça nouvelle forme de verroterie, elle (a tanga) est attestée en Guyane française dès 1689. »
(Schoepf, 1976:57).
constituem uma categoria aparte, porque aparecem nos catálogos de bordado, trazidos pelos missionários norte-americanos instalados no Suriname na metade do século XX. A reprodução destes motivos se limita aos enfeites feitos com miçanga, o que reforça seu caráter exógeno. Por outro lado, do ponto de vista wayana, esta conjunção amplifica os princípios ontológicos e expressivos da alteridade, o que acresce um valor estético ao enfeite” (2008 :51-52)
Deste modo, os homens usam cintos de miçanga com motivos listrados que
representam ao mesmo tempo o arco-íris, um ser sobrenatural, e a bandeira da
Suriname11. Van Velthem fala de ‘objetos cativos’ (2000) e da necessidade de
domesticar estes objetos. Os objetos feitos pelos Wayana são chamados de ‘enfeites
verdadeiros’, enquanto os objetos feitos pelos brancos são ‘falsos enfeites’ e o serão
para sempre, recebendo tratamento diferenciado. As miçangas, no entanto, são os
únicos objetos de origem ocidental a possuir um mito de origem entre os Wayana.
O mito do “japu que defecava miçanga” revela que a miçanga possui, na
verdade, origem wayana. Schoepf (1976) analisa o mito, revelando sua intrincada
relação, tanto com o mundo dos seres invisíveis quanto com o mundo dos brancos. O
mito de origem da miçanga é, ao mesmo tempo, a história de uma iniciação xamânica
e de um êxodo tão radical que se torna um devir outro, um devir branco do
protagonista. O mito conta as peripécias de um homem wayana que tinha a
capacidade de entender a fala da sumaúma, árvore considerada, pelos Wayana (e
outros grupos da região, entre os quais os Kaxinawa) como “a sede de poderosas
forças ocultas aparentadas às de xamãs e pajés” (Schoepf, 1976: 59).
A sumaúma anuncia que irá morrer e pede ao homem que cuide de seus
“bichinhos”. “Se cuidar dos meus bichinhos, você será rico”. Quando a gigantesca
árvore tomba, o homem pega os bichinhos para cria-las. Trata-se de um japu, um
gavião e um pássaro cancan (oiseau cancan). Depois de alimentá-los, todos defecam
contas, contas de vidro de várias cores. O homem guarda os pássaros num cesto até
que um vizinho curioso os deixa escapar. Quando o dono consegue captura-los de
volta, o japu comunica que não quer mais morar na aldeia, que precisa de lugar maior
para morar, distante da aldeia. O homem decide obedecer e seguir suas crias. E assim
11 No Xingu, assim como entre os Kayapó, encontramos a mesma onipresença de bandeiras e
símbolos de temes de futebol nos cintos, no caso dos primeiros, e nas braçadeiras, no caso dos segundos, tecidos com miçanga, o que parece sugerir uma lógica similar àquela praticada pelos Wayana.
acontece que anda tão longe que chega no Paraná onde funda uma cidade. É nesta
cidade que mora, hoje, o japu fazedor de contas.
A este mito o narrador, Dondon, chefe da aldeia e grande conhecedor da
mitologia do seu povo, dá vários seguimentos, atualizando e interpretando o
significado do mito. Assim conta que hoje em dia são os franceses que colhem as
contas e que quando se pega muita conta do japu, paga-se inevitavelmente com as
vidas de vários coletores de contas, os próprios franceses que hoje em dia controlam a
fonte de miçanga. O narrador informa que um herói histórico, Mékuanari, foi até lá,
até o mar e voltou para contar como se fabrica e coleta contas hoje em dia.
O narrador conta igualmente que ele mesmo já encontrou um japu fazedor de
miçanga duas vezes. Uma vez o matou e encontrou miçanga no seu ventre, outra vez
o flechou vivo e logo depois de pegá-lo, o pássaro defecava contas. O pássaro, no
entanto, fugiu e morreu pouco tempo depois de ter sido capturado (Schoepf, 1976: 61-
66).
A ressonância das problemáticas levantadas pelo mito de origem da miçanga
wayana com o mito kaxinawa ressalta aos olhos. Ambos os mitos e suas atualizações
nos rituais e/ou no cotidiano falam de três problemáticas entrelaçadas que me
parecem resumir bem o interesse da miçanga para a etnologia ameríndia: a origem
exógena de muitos saberes, técnicas e materiais necessários à fabricação e decoração
dos corpos; a problemática da perda de um saber que já foi endógeno e a importância
das técnicas de produção, do fazer, na transformação de materiais exógenos em
artefatos e corpos ‘próprios’.
Schoepf mostra que os Wayana se interessam pelo próprio processo de
fabricação da miçanga, e que o mito visa mostrar que a miçanga era originalmente um
artefato resultante de um saber fazer wayana. Trata-se da junção de um poder
sobrenatural - os “bichinhos” da sumaúma mantêm relação metonímica com o poder
xamanístico desta - , com um alimento duplamente humanizado: é somente depois de
receber o inhame cozido do seu novo dono que o japu começa a defecar miçanga. O
inhame é uma planta cultivada que recebe o tratamento transformador do cozimento.
Temos assim a junção de três forças agentivas: a do antigo dono, a sumaúma, que
continua atuante na sua cria, a do novo dono e suas técnicas humanas de
transformação (o plantio e o cozimento) e a do japu que ingere e digere o alimento
transformando-o em contas preciosas.
Vale lembrar que o mito piaroa sobre a origem das contas, originário da
mesma região das Guianas, associa igualmente contas e excreções. Como vimos,
neste mito as contas pretas, feitas de uma pedra aluvial, têm como único dono o
poderoso ser sobrenatural, a anaconda-tapir.
O mito wayana de origem da miçanga continua, no entanto, para contar como
os Wayana perderam este saber. Assim como no mito kaxinawa da separação da
humanidade entre huni kuin, índios, habitantes da floresta, e nawa, brancos,
habitantes da cidade, o desfecho se deve a um erro aparentemente insignificante. Do
ponto de visto dos ofendidos, no entanto, trata-se de verdadeiras ofensas: matar um
parente do jacaré, no primeiro caso, e mexer na propriedade privada do dono do japu,
no segundo. A impressão que fica, no entanto, é a de que a causa não corresponde às
consequências irreversíveis que seguem o erro. O mesmo tema volta nos mitos que
contam a origem da vida breve: no caso kaxinawa uma pessoa não ouviu o conselho
do avô de trocar a pele e por isso a humanidade morre para sempre.
Todos estes mitos possuem em comum a questão de que antes o mundo não
era dividido entre os que morrem e os que vivem sempre, entre os que possuem alta
tecnologia e os que manuseiam arco e flecha, ou, para voltar a nosso tema, entre os
que sabem fazer miçanga e os que não o sabem (mais).
Em ambos os mitos de origem da miçanga, dos Wayana e Kaxinawa, notamos
o mesmo tema de que a miçanga aponta para a procura de um reencontro. Os Inka, ou
agora os brancos, aqueles que moram do outro lado da grande água que separou os
índios dos outros, são “nossa metade partida”, são aqueles huni kuin antigos que
partiram, atravessaram a ponte do jacaré e se tornaram brancos. A moça que vai à
procura da miçanga está, na verdade, procurando reencontrar seus parentes, seu pai. O
que ela encontra, no entanto, ao encontrar a fonte de miçanga, são os Inka.
Assim como os mitos de outros povos da região, como os Kayapó e os
Tiriyó12, o mito kaxinawa considera a miçanga mais como uma semente que como um
artefato. Todos estes mitos falam de uma grande árvore, que antigamente sabiam
encontrar, onde crescia todo tipo de miçanga que já vinha pronta. O mito wayana, no
entanto, aponta para uma preocupação em saber como as contas são feitas, o que
rende uma posição ambígua à miçanga, a meio caminho entre o interior e o exterior,
tendo sido fabricada através da junção de agências pertencentes a diferentes domínios 12 Comunicação pessoal de André Demarchi que faz pesquisa sobre o tema entre os Kayapó,
Mebengokrê e de Denise Fajardo, entre os Tiriyó.
do cosmos. Mesmo assim, a miçanga não é para os Wayana um artefato em si. Ela
ainda não é um enfeite, mas a matéria prima a partir da qual se produzem artefatos;
artefatos quiméricos, que decoram o corpo ao modo indígena, isto é, o completam
com colares em vez de cobri-lo com roupas.
Para os Huicholes mexicanos a origem exógena da miçanga não parece
constituir problema. Em vez de elaborar no mito, ao modo kaxinawa e wayana, sua
posição ambivalente entre o interior e exterior, o mito declara que a miçanga sempre
foi a expressão do que existe de mais próprio para os Huichol, sendo o ancestral
chamado Kuka Temai (o jovem homem miçanga) um dos heróis criadores do seu
universo. Cito:
«Parce qu’il permet de « voir les choses clairement », le nierika (shamane) détermine les critères esthétiques huichol. Ainsi, par analogie avec la capacité perceptuelle qu’il confère, est belle toute chose transparente, translucide, cristalline, brillante, qui a de l’éclat, mais aussi qui ressort bien, qui est précise et nettement contrastée; en résumé, toute chose claire au sens propre comme au figuré. Ces notions se rattachent à l’idée de l’art du nierika chez les Huichol (où l’art est) un « instrument pour voir ». (l’importance de la) lumière et de l’éclat nous permettent de comprendre le goût particulier des Huichol pour les couleurs vives. Pour définir la beauté, les catégories linguistiques principales de la langue huichol utilisent les termes chititemaiki ou chipitemaiki, que l’on traduit par « c’est beau » ou « c’est magnifique».
Sur le plan sémantique, ces qualificatifs de beauté se déclinent à partir de la racine temai, se référant à une personne jeune ou à un objet lisse et neuf. Ces termes évoquent la figure mythique de Kuka Temai, le Jeune Homme Perle, l’un des ancêtres chasseurs ayant réalisé le premier pèlerinage à Wirikuta, la terre du peyotl. Quant au terme kuka, il désigne les perles de verre utilisées pour décorer de nombreux objets: instruments cérémoniels, offrandes, bijoux ou artisanat touristique. Au dire de nombreux Huichol, «les perles signifient la vie », idée explicitée notamment par la conception de la naissance : la force vitale ... s’introduit dans le corps du nouveau-né, tandis qu’une contrepartie de la personne vivante, appelée « perle » (tauka), reste au ciel; cette perle «se dessèche» ou «se fane» lorsque la personne meurt (Preuss 1998 [1908] : 285). Ainsi, pour les Huichol, est beau ce qui est vivant. Les perles s’identifient également soit à des grains de maïs, soit à des gouttes d’eau (Kindl, Olivia, 2005: 247)
Como vimos acima, também para os Kaxinawa a miçanga é associada às
qualidades de durabilidade, brilho, claridade e vida durável, qualidades estas que as
meninas pedem no canto ritual do nixpupima transcrito acima para seus olhos, sua
visão. A visão pertence ao bedu yuxin, espírito do olho, que reside no coração e possui
origem e destino celestial entre os Inka.
A análise dos casos apresentados acima nos mostra que a significação da
miçanga na vida ameríndia vai além da metáfora do troféu de guerra, ela aponta antes
para uma ideia de pacificação, sedução, relação. Como já diziam Colombo e de Lery,
as contas são dadas para evitar a guerra, para conquistar o amor das mulheres
indígenas.
Para ilustrar esta ideia vale lembrar outro artefato, além das fileiras de conta
branca para amarrar nas articulações, produzido pelas as mulheres kaxinawa com
miçanga. Trata-se das pulseiras e colares tecidos com desenho. Esta arte da tecelagem
com miçanga é de origem mais recente. A pulseira de miçanga coexistia no Purus com
as tecidas em algodão, igualmente com motivos. As mulheres faziam estas pulseiras
com motivos tirados do estoque tradicional da tecelagem (kene kuin) e as davam de
presente aos namorados, maridos ou amantes. Até recentemente este tipo de pulseiras
não era comercializada. Atualmente, no rio Jordão, vive-se uma explosão na produção
de artefatos com miçanga indo de grandes colares a tiaras, bolsas e até mochilas
tecidas com miçanga.
O tema de fios ou desenhos tecidos com miçanga como caminhos que ligam
mundos distintos13 aponta para a materialização dos laços com as várias faces da
alteridade estabelecidos pelos Kaxinawa hoje em dia, incluindo aí o fenômeno das
fronteiras permeáveis entre grupos e pessoas em constante fluxo e ‘estar entre’:
pessoas que, no entanto não esquecem da importância de tecer caminhos, de dar nós e
retornar pelos mesmos caminhos que vieram.
Podemos ver deste modo que as pulseiras tecidas com miçanga são artefatos
essencialmente relacionais, fazem pontes entre mundos, entre os rapazes que as usam
e que às vezes fornecem a própria matéria prima e as moças que as fazem e que
fornecem o saber do desenho e da técnica. Estes emblemas da relação amorosa ligam
os mundos nos quais as jovens lideranças circulam: o mundo da viagem e das cidades
distantes, de onde vem a miçanga e o mundo da aldeia para onde sempre retornam.
Os motivos tecidos pelas mulheres, por sua vez, são considerados a ‘escrita
dos yuxin’ e remetem ao encontro secreto da desenhista com a jiboia ancestral, dona
dos desenhos. Ou seja, tanto por parte dos homens que coletam a matéria prima,
quanto por parte das mulheres que fabricam as pulseiras, estas remetem a relações
com um mundo além do mundo indígena, relações estas que têm profundos efeitos
sobre o mundo interno das relações de parentesco. Também aqui, como no caso
13 Em outro lugar analiso a concepção kaxinawa do grafismo como caminhos que ligam mundos
(Lagrou 2007, 2011) e que permitem a passagem, a transformação da percepção do mundo visível para o visionário.
Jívaro, vemos operante uma lógica de visibilização e ocultamento de relações com o
mundo humano e não-humano que constituem o sentido do eu de uma pessoa (Taylor,
2003).
Do mesmo modo que o grafismo age ao estabelecer relações entre corpos e
pessoas, como filtro ou malha protetora no corpo, guia no mundo das visões, ou
armadilha da alma no sonho, os fios de miçanga agem sobre o mundo social,
objetificando ou tornando visíveis redes de relações. O acesso à memória social
ativada por estas imagens-signos (Severi, 2003) se dá a partir dos cantos ligados aos
contextos nos quais os desenhos e as contas atuam.
Conclusão
Na introdução ao catálogo Iconoclash, Latour mostra como a civilização
ocidental teve desde seus primórdios problemas com a figura da mediação: quando ‘a
mão que produz’ as imagens se torna visível, a veracidade da revelação, seja ela
religiosa ou científica, é questionada. O paradoxo se coloca do seguinte modo: ‘ou
você faz ou é feito’. A procura do acesso não mediado a Deus ou à verdade é o motor
da história religiosa europeia. Como se pode revelar a mão humana presente na
fabricação do ídolo e ao mesmo tempo afirmar que o ídolo é deus? (Latour, 2002)
Os ameríndios não estão nem um pouco interessados em eliminar a mão que
faz, pelo contrário, o que este artigo visou mostrar é que eles visam multiplicar em vez
de ocultar essas mãos mediadoras, mostrando como todo produto, seja ele um artefato
ou um ser humano, é o resultado de múltiplas mediações e relações. A problemática
que induz aos iconoclasmos europeus não se coloca aqui. Em vez da questão de saber
se o ícone é ou não um ídolo, se coloca aqui a questão de indexicalidade.
E é esta a característica que mais fascinava Lévi-Strauss na arte por ele
considerada grande arte, que poderia ser encontrada tanto entre os mestres da
Renascença quanto entre os escultores da Costa Noroeste dos E.U. No primeiro
capítulo do ‘Pensamento Selvagem’ lemos que para se ter arte tem que haver
‘resistência’, é preciso ver a mão do artista lutando contra a resistência da matéria ou
contra a irrepresentabilidade do invisível. A visibilidade da mediação humana na
origem do artefato representa para Lévi-Strauss a força da obra de arte pré-moderna.
O que interessa reter aqui da contribuição lévi-straussiana ao debate sobre a
agência dos artefatos entre os ameríndios é esta ideia do fazer, da mão do artista ou do
feiticeiro que faz. Como também ilustrou Taussig (1993), quanto mais você revela os
truques necessários para convidar os deuses para a cerimônia, tanto mais forte é a
certeza de que as divindades estejam presentes.
Este artigo visou mostrar, a partir da análise do papel da miçanga no mito e
rito kaxinawa e sua comparação com dados de outros grupos ameríndios, como este
item pode nos permitir de lançar nova luz sobre temas importantes na discussão
contemporânea da etnologia ameríndia.
Temos primeiramente a importância dada pelos ameríndios ao ‘saber fazer’.
Esta questão está ligada ao conhecimento da origem e ao papel dos donos das
substâncias e dos domínios14, chamados de ibu pelos Kaxinawa. É preciso saber quem
fabricou, plantou ou engendrou, quem cuida de determinada substância para poder
usá-la sem riscos. Como mostramos, o rito de passagem consiste em chamar os donos
de todas as substâncias utilizadas no ritual para garantir a presença das qualidades do
material utilizado que se quer passar para os pequenos. Somente si a substância está
imbuída do yuxin (força vital) do seu dono, ela mostrará sua qualidade de forma
plena. Se no mito estas qualidades e o saber como reproduzi-las eram conquistadas
sobre o inimigo avarento, a técnica ritual consiste em convidar os donos e seduzi-los a
colaborar. Isto é feito não através da subjugação, mas através da entoação do canto do
dono, alegrando-o. É deste modo que, durante o ritual do nixpupima, o líder de canto
se torna o próprio Inka, cantando em seu nome, vestindo sua roupa e seu dau.
Outro tema central à socialidade ameríndia é o papel da incorporação das
forças agentivas da alteridade na constituição da pessoa. A miçanga se transforma de
troféu em força exógena encapsulada que vem ajudar a constituir o corpo da criança.
Este artigo visou mostrar como esta ‘captura’ das forças exógenas contidas na
miçanga segue uma lógica estética: uma multiplicidade de pequenas partículas
descontínuas é transformada num tecido ou numa fileira contínua de cores e motivos
que seguem a lógica estilística local. O trabalho de encapsulamento, no entanto, é
também ritual. Como vimos, os cantos do nixpupima visam “alegrar” seu dono
principal, o Inka, isto é torna-lo presente na matéria.
Como vimos acima, o tema da “vida breve”, trabalhado por Lévi-Strauss nas
Mitológicas, está também presente na mitologia que trata da miçanga. Assim como os
mitos de origem da morte falam de um tempo em que deuses e humanos viviam em
14 Para uma reflexão sobre a temática dos Donos na Amazônia ver Fausto, 2008.
continuidade e que os mortos podiam voltar à vida, os mitos sobre a origem da
miçanga falam de um tempo em que a miçanga era “nossa”. Esta temática está bem
explícita no mito do japu que defecava miçanga dos Wayana, mas se encontra
igualmente entre os Kaxinawa. O fascínio por materiais imperecíveis possui clara
relação com o tema mítico da origem da morte, assim como com a origem da
separação dos humanos entre índios e não índios. Foi ao procurar material durável
para suas panelas que os huni kuin encontraram primeiro a miçanga e com ela tanto a
morte quanto a vida. A morte porque Mane betxia, a mulher que achou miçanga, não
encontrou a família, o que ela encontrou foram os Inka, deuses da morte, donos da
vida eterna. Encontrar miçanga, no entanto, também significa vida, quando ela é
administrada em doses controladas, como no rito de passagem de meninos e meninas
que pedem ossos, olhos e dentes fortes e imperecíveis como miçanga.
Finalmente visamos chamar a atenção para o rendimento teórico da
superposição sistemática dos discursos ameríndios que dizem respeito a artefatos e a
corpos. Esta superposição aponta para uma concepção do mundo onde não existe
Natureza. Porque tudo foi fabricado, plantado e cuidado por alguém, tudo é produto
do pensamento (Overing, 1991) e do fazer de alguém. Por esta razão não existe
criação ex nihilo (Viveiros de Castro, 2002), nem de corpos nem de artefatos. Toda
fabricação é uma bricolagem, o lugar de encontro de relações materializadas nas
substâncias utilizadas.
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