DEMO, Pedro; INSTITUTO PAULO FREIRE. Saber pensar. 4. ed. São Paulo:
Cortez, 2005. 159 p. (Guia da escola cidadã) ISBN 8524907622.
Os livros serão adaptados com a norma ortográfica de acordo com o seu ano de
publicação
Página 1
SABER PENSÀR
GUIA DA ESCOLA CIDADÃ vol. 6
Página 2
Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Bibliografia
ISBN 85-249-0762-2
Demo, Pedro, 1941-
Saber pensar / Pedro Demo. — 4. ed. — São Paulo : Cortez: Instituto Paulo Freire,
2005. — (Guia da escola cidadã; v. 6)
1- Autonomia (Filosofia) 2- Ciência—Filosofia 3- Educação—Finalidades e objetivos
4- Lógica 5- Pensamento. 6- Raciocínio 1- Título. 11- Série.
Índices para catálogo sistemático:
1 - Educação: Filosofia 370.1
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GUIA DA ESCOLA CIDADÃ
INSTITUTO PAULO FREIRE
Pedro Demo
SABER PENSAR
4° edição
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SABER PENSAR
Pedro Demo
Capa: DAC
Revisão: Maria de Lourdes de Almeida
Composição: Dany Editora Ltda.
Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização
expressa do autor e do editor.
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Impresso no Brasil — fevereiro de 2005
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INSTITUTO PAULO FREIRE
Série “Guia da Escola Cidadã”
Coordenação: Ângela Antunes Ciseski (São Paulo), Carlos Alberto Torres (UCLA,
Los Angeles), Francisco Gutiérrez (ILPEC, Costa Rica), José Eustáquio Romão
(UFJF, Juiz de Fora), Moacir Gadotti (USP, São Paulo), Paulo Roberto Padilha (USP
e UNICASTELO, São Paulo) e Walter Esteves Garcia (ABT,Brasília)
Cortez Editora (São Paulo - SP)
Conselho Internacional de Assessores
(Fórum Paulo Freire — São Paulo, abril de 1998)
Presidente: Budd Hall (Canadá), Vice-presidentes: Akira Kusuhara (Ásia), Carlos
Rodrigues Brandão (América Latina), Frank Youngman (Africa) e Jürgen Zimmer
(Europa). Membros: Adriana Puiggrós (Argentina), Adriano Nogueira (Brasil), Alfredo
Ghiso (Colômbia), Antônio Faundez (Suíça), Antônio João Mânfio (Brasil), Antônio
Monclós Estella (Espanha), Afonso Celso Scocuglia (Brasil), Arturo Ornelas
(México), Azril Bacal (Suécia), Barbara Freitag Rouanet (Repóblica Tcheca),
Bartolomeo Bellanova (Itália), Beno Sander (Brasil), Bernardino Mata Garcia
(México), Birgit Wingenroth (Alemanha), Celso de Rui Beisiegel (Brasil), Daniel
Schugurensky (Canadá), Edna Seratìm de Oliveira (Brasil), Elizabeth Protacio-
Marcelino (Filipinas), Fátima Freire (Brasil), Fausto Telleri (Itália), Francisco Vio
Grossi (Chile), Genoino Bordignon (Brasil), Heinz Schulze (Alemanha), Henry Giroux
(Estados Unidos), Hiroyuki Nomoto (Japão), Ilse Schrimpf Herken (Alemanha), Ira
Shor (Estados Unidos), Isabel Hernández (Argentina), Isolina Centeno Ubeda
(Nicarágua), João Francisco de Souza (Brasil), Jorge Werthein (Brasil), José Rivero
(Chile), Ladislau Dowbor (Brasil), Liam Kane (Escócia), Lilians M. Lopes (Argentina),
Luis Eduardo Wanderley (Brasil), Marcela Gajardo (Chile), Marcos Guerra (Brasil),
Madalena Freire (Brasil), María Teresa Sirvent (Argentina), Martin Carnoy (Estados
Unidos), Miguel Escobar Guerrero (México), Nestor Alfredo Fuentes (Argentina),
Orlando Fals Borda (Colômbia), Osmar Fávero (Brasil), Peter Mayo (Malta), Peter
McLaren (Estados Unidos), Peter Park (Estados Unidos), Pierre Furter (Suíça),
Pierre Marc (Suíça), Pilar O’Cadiz (EUA), Roberto Orozco Canelo (Chile), Roger
DaIe (Nova Zelândia), Sergio Guimarães (Angola), Sergio Martinic (Chile), Sylvia
Schmelkes (México), Teresa Penna Firme (Brasil), Torbjön Stockfelt (Suécia), Zelda
Groener (Africa do Sul).
Equipe Técnico-Pedagógica do IPF
Adriano Nogueira, Alice Akemi Yamasaki, Ana Maria do Vale Gomes, Antônio João
Mânfio, Bianco Zamora Garcia, Claudinéli Moreira Ramos, Cláudio Eduardo de
Souza, Carlos Alberto Daniel dos Santos, Custódio Gouvea da Motta, Débora
Cristina Goulart, Débora Mazza, Eliana de Oliveira, Eliseu Muniz dos Santos, Fábio
Cascino, Genoíno Bordignon, Izabel Cristina Petraglia, João R. Alves dos Santos,
José Rubens Lima Jardilino, Júlio Wainer, Lúcia Helena Couto, Luiz Carlos de
Oliveira, Luiz Marine José do Nascimento, Lutgardes
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Costa Freire, Marcia Moraes, Maria de Lourdes MeIo Prais, Maria lsabel Orofino
Schaefer, Maria José VaIe, Maria Leila Alves, Maria Lucinete de Carvalho Silva,
Maria Luiza Peíxoto Ferreira, Margarita Victoria Gomez, Maurício Franklin, Misael
Geraldo Souza Camargo, Paulo Silveira, Regina Elena Pinto Ribeiro, Reinaldo
Matias Fleuri, Rudolf Wiedemann, Sônia Couto Souza Feitosa, Sônia Marrach,
Teresa das Dores Femandes de Castro, Valdete A. Melo, Valter José da Silva.
A ausência de uma literatura especifica voltada para os problemas do cotidiano
escolar tem dificultado a ação dos profissionais e demais atores que interagem na
Escola de Ensino Fundamental no Brasil. Por isso, diante do movimento
descentralizador, que lhes exige um desempenho técnico-político cada vez mais
consistente, as dificuldades por eles sentidas são progressivamente maiores,
levando-os, na maioria das vezes, a um ativismo intuitivo, sem uma clara
consciência dos fins objetivados e sem uma nítida percepção dos resultados
alcançados.
Professores, especialistas e até mesmo diretores de unidades escolares têm
manifestado uma série de dificuldades, tanto pela carência de material que os ajude
na fundamentação teórica, quanto na construção de mecanismos e instrumentos
para uma série de ações que têm sido obrigados a assumir em face do novo perfil
que se desenha para a instituição escolar.
Por outro lado, principalmente para os pais dos alunos das escolas públicas, a
participação na chamada “gestão democrática da escola” oferece maiores
dificuldades, por uma série de fatores, dentre os quais se destaca um auto
sentimento de inferioridade no domínio dos instrumentos — e até mesmo da
linguagem — com que a escola opera. A falta de tempo, tanto dos pais quando dos
profissionais da educação, estes envolvidos com encargos em mais de uma escola,
tem cobrado uma literatura pedagógica ágil, sem ser superficial, didática, sem ser
maçante, técnica, sem ser árida, e que dê conta do salto da teoria para a prática,
num cotidiano que exige respostas rápidas, eficientes e eficazes.
Foi pensando nisso que o Instituto Paulo Freire apresentou à Cortez Editora a Série
“Guia da Escola Cidadã”, publicizando estudos e pesquisas que o IPF vem fazendo,
para responder, de forma concreta, aos desafios do ensino fundamental no Brasil.
GUIA DA ESCOLA CIDADÃ
Volumes já publicados:
1- Autonomia da escola: princípios e propostas:
M. Gadotti e José E. Romão (orgs.)
2- Avaliação dialógica: desafios e perspectivas:
José E. Romão
3- Ecopedagogia e cidadania planetária
Francisco Gutiérrez e Cruz Prado
4- Organização escolar e democracia radical
Licínio C. Lima
5- Educação de jovens e adultos
M. Gadolti e José E. Romão (orgs.)
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Para Professor Carlos Alberto Torres, sociólogo, amigo, por ter-me aberto a
oportunidade de fazer sabático na UCLA.
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Sumário
Prefácio- 11
Paulo Roberto Padilha
Introdução- A gestão da autonomia- 17
Primeira Parte
COMPONENTES DO SABER PENSAR
1- Pensar - 23
2- Lógica e jeito - 31
3- Arte de argumentar - 39
4- Saber aprender - 47
5- Saber cuidar - 55
6- Saber inovar - 63
7- Saber acreditar - 73
Segunda Parte
RECONSTRUIR CIENCIA
1- Aprender-85
2- Pesquisar e elaborar - 93
3- Trabalho científico - 99
4- Argumentar e contra-argumentar - 107
5- Questões da base empírica - 113
6- Obter e produzir informação - 123
7- Teorizar e praticar - 131
8- Meios cibernéticos - 137
Conclusão — A construção social da autonomia - 145
Bibliografia -155
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Página 11
Prefácio
Prefácio
SABER PENSAR... IMAGINAR... SABER SONHAR A SOCIEDADE CIDADÃ
“Saber pensar”. Desde o primeiro momento em que me deparei com os originais
deste livro do Professor Pedro Demo, senti-me impelido ao exercício do saber
pensar. O livro é um convite sedutor a pensarmos sobre algumas questões caras a
nós, educadores e educadoras: como organizarmos nossos pensamentos, nossos
argumentos enquanto pessoa, cidadãos, professores-cientistas-pesquisadores?
Somos convincentes, lógicos, criativos, ou- sados e ao mesmo tempo coerentes com
a nossa proposta de vida e de educação?
O agradável estilo do autor, pela sua didática, clareza e dialogicidade, incentiva-nos
a uma leitura ativa e ininterrupta. O Ieitor e a leitora terão a oportunidade de refletir
sobre a prática cotidiana que nós, educadores e educadoras, vimos desenvolvendo.
O autor nos fala sobre a nossa formação e sobre a nossa cultura, associadas à
política social que podemos ajudar a construir, seja por meio de nossa ação ou da
nossa omissão.
As ideias apresentadas no livro nos permitem uma associação com os princípios e
fundamentos da Escola Cidadã que estamos vivenciando e construindo. Pedro
Demo considera que saber pensar é o fulcro central da política social (p. 152). Isso
nos remete
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ao que temos repetidas vezes discutido no Instituto Paulo Freire: mais do que uma
Escola Cidadã, queremos uma Sociedade Cidadã.
Ao pensarmos e repensarmos sobre o nosso contexto e nossa própria ação,
podemos nos sentir infelizes diante de uma escola com muitos problemas, entre os
quais, docentes mal formados, baixos salários para os educadores e funcionários,
falta de educação continuada, aulas desinteressantes... Os prédios escolares não
apresentam, muitas vezes, a mínima condição de uso: sem Iaboratórios, sem
bibliotecas, sem vidros, sem quadras, sem anfiteatros, sem recursos suficientes para
a conservação e reforma, para a ampliação do número de salas, para experiências
coletivas, sem áreas livres para que os discentes possam explorá-las, sem materiais
de ensino, sem verba para transporte, para merenda, para comprar computadores
para as escolas (muitos, não meia dúzia de computadores em meia dúzia de
escolas, apenas para aparecer na televisão). Podemos nos emocionar com esses
problemas, indignarmo-nos com eles, mas certamente há que se partir para a ação e
buscar respostas para eles. Como dizia Paulo Freire: paralelo à denúncia, o anúncio.
Não podemos nos manter indiferentes ao fato de que muitos dos nossos alunos e
alunas continuam a ser esquecidos, maltratados, reprovados e expulsos das nossas
escolas, instituições que jamais deveriam desistir deles. Eles continuam sendo
vítimas de humilhações, e o sentimento de culpa pelo fracasso na escola permanece
recaindo sobre eles.
Em plena passagem para o século 21, a existência das dificuldades acima citadas
poderia sugerir que não há alternativas. E quase chegamos a acreditar nisso e a
aceitar como normal uma esc1a sem amor, sem calor, sem a paixão pelo
conhecimento, pela descoberta, pela curiosidade, pela ciência, pela arte. Até parece,
às vezes, que a instituição escolar se transformou num depósito de tudo o que há de
mais negativo na sociedade, da falta de responsabilidade à falta de ética e de
esperança... e que, se é assim, não tem mais jeito.
Segundo Pedro Demo, “é mister tratar com jeito a realidade jeitosa” (p. 36). É
preciso analisar o contexto histórico em que tudo acontece, caçar os sentidos, os
significados, as insinuações, os silêncios (idem) dos discursos, das práticas e da
realidade. Se assim agirmos, vamos perceber que existem alternativas e
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muito o que fazer e “esperançar”. Há saídas. Dentre elas, o fato de que esses
problemas devem ser pauta dos nossos textos, das nossas reflexões, dos nossos
pensares, das nossas buscas e tentativas de acerto.
Este livro nos apresenta os componentes do saber pensar (Primeira Parte), e nos
oferece instrumentos e ferramentas para que possamos reconstruir ciência
(Segunda Parte). Fala-nos de autonomia, de cidadania, de lógica, de jeito, de
aprender, de saber cuidar, inovar e acreditar, mostrando-nos como temos
descuidado da construção dessa autonomia, dessa cidadania e como não temos
sabido cuidar dos nossos alunos. Sugere alguns caminhos, tais como a
possibilidade de superarmos a nossa arrogância em face do pseudoconhecimento e
o nosso despreparo para lidar tanto com a informação quanto com a formação e
com o próprio conhecimento. Essas são apenas algumas das contribuições que este
novo livro do Professor Pedro Demo nos apresenta, cujo título Saber Pensar nos
remete a essa temática sempre fecunda: o problema do saber, do pensar, do saber
pensar necessário às pessoas, aos professores-pesquisadores-professores e ao
desenvolvimento humano no próximo milênio.
A atualidade do livro revela-se sob muitos aspectos. Destacamos o seu caráter
transdisciplinar. As diferentes áreas do conhecimento se entrecruzam, orientando-
nos a uma visão mais ampla do ato pedagógico. Temas complexos são abordados e
analisados de forma poética, com simplicidade e, ao mesmo tempo, com enorme
profundidade. Em várias partes do livro, leveza e bom humor nos conduzem a
densas reflexões:
“Ideia boa é sempre um pouco torta, mal acabada, um tanto aérea, e aí permite
aprender, mudar, saltar” (p. 29).
“(...) a razão nos dá a capacidade de análise, enquanto o coração a de participar” (p.
32)
(...) “a mudança provém de dentro, da própria realidade” (p. 35)
“Toda teoria não representa diretamente a realidade, mas a reconstrói de acordo
com certa expectativa de realidade, o que é mais que suficiente para reconhecer seu
teor interpretativo.” (p. 39)
“Argumentamos porque não há coincidência direta entre pensamento e pensado” (p.
39)
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“No coletivo vemos melhor “(p. 40)
“Aprender é antes de tudo repelir a reprodução” (p. 47)
“(...) mais decisivo que inovar é humanizar a inovação “(p. 53)
“É preciso, pois, aninhar a arte no saber pensar” (p. 62)
“Coisas tão fundamentais como a felicidade não encontram eco maior na ciência,
mas podem ser realçadas realizadas pela sensibilidade à flor da pele, capaz de
emprestar ao ser humano dimensão muito mais ampla e solidária” (p. 62)
O texto é rico em argumentos e exemplos em relação à importância da abertura às
novas ideias, à valorização da ciência ao lado da cultura, da sensibilidade humana, e
da possibilidade da mudança com base na leitura e na interpretação da realidade, de
nós próprios, dos outros, fundamentando nossas ações com ênfase, sobretudo, ao
trabalho coletivo.
Pedro Demo reaviva a denúncia da ciência positivista enquanto sustentáculo da
ideologia neoliberal e a necessidade de criação de uma outra ciência, uma ciência
complexa que, antes de considerar as necessidades do capital, leve em conta as
dos seres humanos e do planeta. Assim sendo, ele presta uma valiosa contribuição
à compreensão do projeto da Escola Cidadã, que vem se constituindo numa
alternativa ao projeto pedagógico neoliberal.
Paulo Freire também é citado por Demo: “A politicidade de Paulo Freire é hoje
testada também nas ciências naturais, sobretudo na biologia, que reconhece no ser
vivo a capacidade de auto-organização e construção de proposta própria” (p. 47). E
o que é isso senão reconhecermos que a educação é, como sempre defendeu
Freire, um ato político, um ato de amor, de autoconhecimento, de busca da
autonomia e da construção da cidadania ativa, da gestão democrática da escola e
da constituição de uma sociedade mais justa, humana e equânime para todos?
Ao afirmar que aprender é fazer-se sujeito de história própria, individual e coletiva (p.
51), vemos reafirmada a exigência da autonomia, da sua conquista enquanto
“autonomia solidária” (idem), antes referida pelo “Andarilho do Óbvio” e aqui
compreendida como conquista árdua e nunca terminada (p. 19), numa andarilhagem
que pertence a todos nós.
Página 15
Qual o futuro da Educação?
Esta é outra pergunta sobre a qual inúmeras vezes temos nos questionado e que,
neste livro, Pedro Demo dá algumas respostas, conectado à discussão do papel da
tecnologia, da informática, das mais recentes descobertas e inovações científicas
para a construção de uma sociedade mundial da informação e do conhecimento. Ele
nos fornece valiosas pistas que comprovam a importância de estarmos também
discutindo e sabendo pensar, por exemplo, o futuro em relação à utilização do
computador na escola.
O livro trata, ainda, de algumas questões que nos ajudam a entender quais são os
pontos-chave do processo de aprendizagem na educação contemporânea e no
futuro, por exemplo, como lidar com a “cultura da violência” e como trabalhar a
crença — o acreditar — e ao mesmo tempo a ciência.
Em sua segunda parte, intitulada Reconstruir Ciência, fica evidente uma
preocupação mais prática do autor, sem permitir que as ideias aqui apresentadas se
tornem receituário. Nesse sentido, o livro se aproxima ainda mais dos objetivos da
Série “Guia da Escola Cidadã”. Pedro Demo é contra o fato de estarmos sempre
servindo “café requentado” na educação. Em sua coerência, ele vai, aos poucos,
envolvendo-nos e seduzindo-nos para a arte de argumentar, de como fazer
trabalhos em grupo, de como ler enquanto exercício de contraleitura, de como
exercer a profissão de professores, de como pesquisar em colaboração e,
principalmente, como aprender de forma reconstrutiva.
A experiência do autor como professor e produtor de conhecimento, sobretudo
relacionados à pesquisa científica e ao trabalho acadêmico, mostra-nos como é
importante saber levantar dados, saber interpretá-los, significá-los e contextualizá-
los. Propõe que isso seja feito em favor de um determinado projeto de sociedade,
um projeto que considera científico tudo “o que for discutível” (p. 109). E este é um
desafio permanente da Escola Cidadã, está escola que sonha com uma sociedade
também cidadã, em que o centro da cidadania, como afirma Pedro Demo, é o” saber
pensar” (p. 145).
Sinto-me feliz e honrado, em meu nome e em nome de todos os companheiros e
companheiras do Instituto Paulo Freire, por prefaciar o livro do Professor Pedro
Demo, que, certamente,
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inaugura brilhantemente as publicações da Série “Guia da Escola Cidadã” no novo
milênio. Mais do que isso. Enfatizo a excelente e relevante contribuição que este
livro trará a todos aqueles e aquelas que, como nós, estão desenvolvendo pesquisas
científicas como forma de ampliar a nossa aprendizagem, a aprendizagem dos
nossos alunos e a construção de uma escola autônoma e verdadeiramente cidadã,
porque constituída de sujeitos sempre mais aprendentes do pensar e geradores de
soluções para os problemas sobre os quais souberam pensar.
Paulo Roberto Padilha
Instituto Paulo Freire
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A Introdução
GESTÃO DA AUTONOMIA
Saber pensar não é só pensar. É também, e sobretudo, saber intervir. Teoria e
prática, e vice-versa. Quem sabe pensar, entretanto, não faz por fazer, mas sabe por
que e como faz. Nem sempre é questão de estudo, pois nas instituições
educacionais, por vezes, desaprendemos, mormente quando somos submetidos a
processos instrucionais reprodutivos. Ouvi esta no Movimento de Educação de Base
dos Bispos do Brasil: Dona de casa com curso superior saiu para comprar artefato
da cozinha que implica ter de montar. Comprou, leu as instruções, tentou, mas não
conseguiu montar. Chega, então, sua empregada doméstica, analfabeta. Olha o
artefato atentamente e monta, sem maiores dificuldades. A patroa estranha a perícia
e questiona como poderia fazer aquilo, se ela, tendo estudado, não havia
conseguido. Ela diz singelamente: “Madame, quem não sabe ler, precisa usar a
cabeça!” Esta anedota significa, para mim, a crítica mais dura que já ouvi a nossas
instituições educacionais, que dão diplomas mas não cultivam o saber pensar.
Saber pensar não é algo avesso a títulos acadêmicos, mas não se correlaciona
diretamente com eles. E outra coisa. E saber reconhecer rapidamente as relevâncias
do cenário e tirar conclusões úteis, ver longe para além das aparências, perceber a
greta das coisas, inferir texto inteiro de simples palavra, porque, a bom entendedor,
uma palavra basta. Para a madame, todas as instruções,
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lidas e relidas, não bastaram. É aprender a lógica das coisas: enquanto o artefato for
apenas amontoado de peças, nenhuma se liga a nenhuma. Será preciso relacionar
umas às outras, dentro de mapa com sentido, para que se possa começar de algum
lugar e ir chegando a bom termo, peça por peça. Quem sabe pensar não capta só o
que é semelhante, pois sabe sobretudo sacar do que aparentemente nada tem a
ver. Sabe olhar por trás, fazer o caminho inverso, desfazer a trama, ler o problema.
Surpreende a luz escondida na sombra. Deduz da falta a presença de alguém.
Discutir o saber pensar inclui contradição inerente que é bom logo aclarar. Quem
imagina saber pensar não deveria meter-se a ensinar, porque tem como ponto de
partida a autonomia do pensar. Rigorosamente falando, não é praticável ensinar a
pensar, porque isto significaria treinar para reproduzir, não pensar. Quero
exatamente o contrário. Mas a natureza assim se fez, de tal sorte que a autonomia
se forma com a colaboração/intervenção dos outros. Estes podem abafá-Ia, como
podem também motivá-la. E o caso dos pais: normalmente, toda família educa os
filhos para irem embora fundar nova família. Por mais que se amem os filhos,
precisam descobrir seu próprio caminho, por vezes caminho contrário ao nosso.
Espera-se que a nova geração continue, de alguma forma, a anterior, mas queremos
também que tenha suas ideias próprias. A ligação talvez mais forte do saber pensar
é a gestação da autonomia. Esta, todavia, é fenômeno social tipicamente, não só
individual. Precisa de orientação. De um lado, para tornar-se autônoma toda pessoa
precisa de ajuda. De outro, tomando-se autônoma, deve saber dispensar a ajuda.
Rogoff fala de “participação guiada”, “para significar que tanto a condução quanto a
participação nas atividades culturalmente valiosas são essenciais para que a criança
aprenda a pensar. A condução pode ser tácita ou explícita, e a participação pode
variar à medida que as crianças ou curadores são responsáveis pelo seu arranjo.”
(1)
Saber pensar não combina com cidadania tutelada, aquela que nos quer massa de
manobra, submissos e ignorantes. Nem combina bem com cidadania assistida,
porque aceita apenas a assistência necessária e tem como ideal viver sem
assistência. (2)
Início de nota de rodapé
1- ROGOFF, B. 1990. Apprenticeship in thinking — Cognitive development in social
context. New York, Oxford University Press, p. 8.
2- DEMO, P. 1996. Cidadania tutelada e cidadania assistida. Campinas, Autores
Associados.
Fim de nota de rodapé
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Combina com cidadania emancipada, aquela que sabe o que quer, por que quer e
como quer. Dito isto, está claro que não posso produzir aqui receituário do saber
pensar. Antes, preciso fazer algo similar ao “mundo de Sofia”. Este mundo é aquele
no qual, de questionamento em questionamento, vamos forjando a capacidade de
história própria, sob orientação de professor orientador, que nem sequer dá aula (3).
A função é a de facilitador, não para “facilitar” as coisas, mas para motivar, apontar,
chamar a atenção, criticar, abrir oportunidades, avaliar. No “mundo de Sofia”, a
menina é desafiada, o tempo todo, a assumir sozinha o confronto com teorias e
ideias, tendo no professor escondido apenas referência motivadora. Autonomia é
conquista árdua e nunca terminada. Dói, sobretudo no começo, pois sua primeira
fase é sentir-se perdido. Tirada a muleta, a pessoa se sente abandonada. Mas só
assim descobre que pode andar sem muleta. O maior erro do professor é tirar a
muleta e depois dar de volta. Não só voltamos à estaca zero, como sobretudo
reinstalamos a tutela. Entretanto, o sentido da autonomia do saber pensar é social,
ou seja, não se trata de autonomia isolacionista, mas aquela convivente. A Iiberdade
humana não pode ser entendida contra os outros, mas com os outros, e por isso
mesmo também nunca é total.
Buscamos neste texto ensaiar tópicos importantes do saber pensar, no sentido da
“propedêutica básica”, compreendida como iniciação. Imaginamos que possa ser
importante para o início dos cursos universitários, bem como para qualquer atividade
que se baseie na construção da autonomia das pessoas, procurando estilo
reconstrutivo de aprendizagem. Longe de ser tratado de lógica, pretende apenas
abrir caminhos dentro de alguma estruturação lógica, indicando modos de fazer
conhecimento que impliquem o constante refazer. Temos que ressaltar também os
limites do conhecimento, porque saber pensar seria contraditório se produzisse a
quimera de dar conta de tudo. De todos os modos, parece ideia boa que todo
estudante, antes de meter-se a profissional, aprenda a saber pensar.
Início de nota de rodapé
3- GAARDER, J. 1995. O mundo de Sofia — Romance da história da filosofia. São
Paulo, Companhia das Letras.
Fim de nota de rodapé
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PRIMEIRA PARTE
COMPONENTES DO SABER PENSAR
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Página 23
1
PENSAR
Por trás do pensar está a ideia da compreensão do que se diz e faz. Por isso,
dizemos “saber pensar”. O povo reconhece isto quando diz que fulano sabe das
coisas. Compreender é questão de lógica, e geralmente entendemos por lógica a
capacidade de deduzir uma coisa da outra, de tal sorte que cada coisa esteja no seu
lugar e se relacione com outra. A lógica, porém, que mais interessa, não é aquela
que logo aparece, mas a que está por trás. Notamos isto quando, conversando com
alguém que não nos entende, lhe dizemos: não está me entendendo, porque, em
vez de perscrutar a amarração mais profunda das ideias, fica na superfície; ou lhe
sugerimos que não permaneça apenas nas palavras que escuta, mas perceba seu
significado para além disso. Por exemplo, a namorada quer desfazer-se do
namorado e começam a conversar. O namorado insiste na relação, enquanto ela
alude que o momento é diferente. O namorado prefere entender “diferente” como
evolução no tempo, talvez até mesmo como se a relação tivesse amadurecido mais.
Ela precisa passar a ideia de que diferente significa que já tem outro namorado. Diz,
então: “Você não está me entendendo”. A lógica humana é assim, cheia de nuances
e curvas. Para compreender é mister também sacar o que não se diz, o silêncio, a
entonação, o meneio. “Sorriso amarelo” indica que não há nada ou pouco do que rir.
Página 24
Indo pelo contrário, não conseguimos compreender o que não tem lógica. Tanto é
assim, que, ao descobrirmos falta de lógica, o fazemos porque encontramos alguma
lógica na falta de lógica. Vale isto precisamente para a ideia corrente de caos:
estritamente falando, se fosse total falta de lógica, não entraria em nossa cabeça.
Dizemos, por isso, “caos estruturado”, para indicar que a desordem descoberta é
outra ordem. E como mesa de professor, cheia de livros, textos, papéis, canetas,
anotações, bagunça perfeita. Para ele, entretanto, se alguém se pusesse a arrumar
sua mesa, colocando tudo em seu lugar, diria: “desarrumaram minha mesa, não
encontro as coisas” Naquela desordem anterior havia ordem, e o professor
encontrava as coisas, mesmo com dificuldade. Agora, tudo arrumado, tem
dificuldade ainda maior. Podemos, então, dizer duas coisas: compreende-se melhor
o que está melhor ordenado, porque as coisas mantêm relação diretamente visível
entre elas e cada qual está em seu lugar; mas a ordem que funciona é aquela que
compreendo melhor, porque está dentro de minha lógica. Esta possui alguma coisa
de necessário, sobretudo quando aplicada a relações simples, como dois e dois são
quatro, ou se acabar a gasolina, o carro para, ou se não estudo, fica difícil passar.
Em relações mais complexas, entra cada vez mais o fator humano, e a lógìca não
apenas diz o que é necessariamente, mas também e por vezes sobretudo o que
gostaríamos que fosse. Seria lógico pensar que, ao casarmos, queremos ficar juntos
a vida toda. Alguém vai dizer, porém, que não é lógico, porque diante da vida toda é
impraticável pretender tamanha Iinha reta. Será Iógico desejar. Mas, se surgirem
problemas intransponíveis, também será lógico separar-se.
Costumamos ver a lógica pelo seu lado necessário, quase impositivo. Filósofos
clássicos se esmeraram em cultivar esta parte, sobretudo para garantir êxito nas
discussões acadêmicas. Chamavam de “silogismo” aquela forma de argumentação
que, colocando sentença maior de sentido geral — todo ser humano é mortal —
mais outra sentença menor de sentido particular — Maria é ser humano — seguia
conclusão inamovível — Logo, Maria é mortal. Talvez seja a ideia mais comum da
lógica a obrigatoriedade das conclusões, uma vez colocadas as premissas. Damos o
nome de “dedução” à habilidade de sacar afirmações ou negações necessárias de
tais premissas. Dada a lei da gravidade (premissa), segue que, quando as coisas
caem, caem para baixo. Vamos do geral ao particular. Entretanto, se a premissa for
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discutível, as conclusões começam a titubear. Dirá alguém: o avião voa, não cai.
Será possível mostrar que o avião voa, não porque é exceção, mas porque sabe
trabalhar bem a Iei da gravidade, porque um objeto dotado de certa velocidade e de
certa aerodinâmica e formato, consegue ficar no ar. Tanto não é exceção que, se
isto não funcionar, cai.
O problema da dedução são as premissas. Uma vez postas, o resto segue. Mas,
cabe sempre perguntar, como se chegou às premissas? Algumas foram obtidas
através da descoberta científica, como a lei da gravidade, e podemos confiar mais
nelas, porque possuem, por trás, meticuloso caminho de demonstração. Outras têm
proveniência dogmática, como é o caso de aceitar que todo ser humano é mortal por
conta da BíbIia. Mas outras são colhidas da experiência repetida, fazendo o caminho
inverso da dedução, indo do particular ao geral. Por exemplo, criança mal nutrida
não aprende. Antes de afirmar isso, vamos observar os fatos, procurando constatá-
los. Chamamos de “indução”. Esta, porém, mesmo nos fornecendo por vezes grande
sensação de certeza, é frágil, porque nunca conseguimos acumular todos os fatos.
Rigorosamente falando, para afirmar que todos os cisnes são brancos, teria de
garantir que nunca houve no passado cisne que não fosse branco, não existe hoje
em nenhum lugar do mundo, e jamais haverá. Assim, a indução funda raciocínios
prováveis e são mais ou menos cogentes, conforme conseguimos manejar os fatos.
Dizer que “criança malnutrida não aprende” pode ter base em fatos observados, por
exemplo, comparando com a aprendizagem de gente bem nutrida. Facilmente
descobrimos que estes aprendem melhor. Mas, observando mais profundamente,
como fazem os pesquisadores, descobre-se que criança mal nutrida também
aprende, aprende menos, mas aprende. Será necessário ainda definir o que é má
nutrição, porque sendo leve, seu impacto na aprendizagem talvez seja desprezível,
enquanto sendo grave, pode interferir mais e até impossibilitar. A afirmação ficaria
melhor se a formulássemos assim: criança mal nutrida tende a aprender menos.
O problema da indução são os fatos, mesmo que estejamos habituados a escutar
que contra os fatos não há argumento! Pareceriam óbvios. Pois nem sempre é
assim. Tomando o exemplo do júri em processo criminal, todos aceitam que só
podemos condenar a alguém diante de fatos comprovados. Admite-se que todo
mundo é inocente sem prova contrária. Para condenar,
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precisamos ir aos fatos. A. polícia e outros peritos se põem a levantar os fatos, e
muitas vezes não conseguem estabelecê-los, pela simples razão de que não
estavam presentes. Agora será necessário reconstruir os fatos. Reconstruir fatos
tem como ideal refazê-los assim como sucederam, objetivamente, mas, ao fazermos
isso, entra o fenômeno da interpretação, que sempre é algo diferente em cada um
de nós. O advogado de defesa tenta mostrar a inocência do cliente, enquanto o de
ataque busca o contrário. Quem teria razão? Os fatos! Mas, quais foram os fatos?
Se fossem óbvios, tudo estaria resolvido. Não são. Assim, para estabelecer fato
criminoso é mister:
a) Existir código penal que defina o que é crime; daí para a frente só é crime o que
entra na definição do código; por exemplo, é imputável o adolescente que completar
18 anos; se tiver 18 anos e um dia cabe-lhe punição penal de adulto; um dia antes,
não;
b) Trabalho de reconstrução dos fatos, sobretudo quando no se trata de flagrante;
para isso, podemos recorrer a métodos científicos sofisticados, que consagram os
detetives, mas representam sempre conclusões que valem, se os fatos forem bem
reconstruídos.
A justiça recorre a testemunhas, mas estas podem testemunhar falso, além de
poderem estar longe ou mortas. O exemplo da morte de Paulo César Farias e sua
namorada ilustra bem esta complicação. A cláusula a) está preenchida: ocorreu
claramente crime. Mas, quem matou, ainda é mistério. Os peritos, por sua vez,
divergem: um diz que foi crime passional e quem matou PC Farias foi a namorada,
que, logo a seguir, teria se suicidado; outro diz que, pela trajetória da bala, é
impossível que a namorada tivesse atirado, donde seguiria que outra pessoa teria
feito o disparo. A justiça inventou saída honrosa para isso: o júri. Convoca-se um
grupo de pessoas, supostamente “isentas”, que, ouvindo e vendo tudo, “decidem” os
fatos! Cabe sempre recorrer ao júri, obviamente, porquanto — acontece
frequentemente — descobre-se, depois, que os fatos não eram aqueles.
Podemos ilustrar esta dificuldade em outro exemplo comum: casamento de vinte
anos se desfaz e os dois põem-se a pensar sobre o que teria levado à separação.
Podemos perguntar: quais foram os fatos decisivos? A própria pergunta indica que
foram tantos, que seria o caso de apenas enumerar os mais importantes.
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Mas como sei quais seriam mais importantes? Depende do que creio ser importante.
O marido pode dizer que suas infidelidades não foram importantes, porque são coisa
comum e ocasionais. Acha que a separação se deve mais ao fato de gostar de
beber e por vezes bebe demais. Aí, trata mal a esposa. Esta, por sua vez,
argumenta que o problema maior é a infidelidade. Se muitas mulheres ainda
aceitam, ela já não o faz, porque aprendeu que os direitos são iguais. Quem teria
razão? Provavelmente, nenhum dos dois, porque separação após vinte anos é
resultado mais comum de uma série de problemas, não de problemas isolados. A
ciência poderia destacar alguns, mas insistiria no todo, porque é dele que advém a
probabilidade. Entretanto, podemos ainda olhar mais fundo e duvidar do que dizem
um para o outro: enquanto ele aceita que é um pouco infiel, pode continuar amando;
ela, reclamando da infidelidade do marido, está se separando porque sempre
preferiu outro homem. Fato, assim, não é apenas o que acontece objetivamente,
mas sobretudo o que sucede “para mim”. Por isso, alguém pode achar que não
chove, porque Deus está castigando.
Colocando as coisas assim, posso insinuar o dito: tudo que é sólido se desmancha
no ar (4). Em parte é verdade, mais do que se imagina. Mas lógica tem seu Iugar.
Um dos traços mais fortes do discurso científico é fazê-lo sem contradição. Significa
que o texto progride sistematicamente, passo a passo, um ligado no outro, uma
coisa fluindo da outra, até ao final. Não posso, por isso, começar meu discurso
dizendo que a base do conhecimento é o questionamento, e imaginar que esta
afirmação seja inquestionável. Se aceito questionar, devo aceitar, pela mesma
lógica, ser questionado. Chama-se a isto de “contradição performativa,” querendo
assinalar discurso que se desfaz a si mesmo, negando-se ao afirmar-se. Não se
pode avaliar os alunos e imaginar que o professor, por isso mesmo, esteja acima ou
fora da avaliação. Quem avalia, não pode fugir de ser avaliado, ou perde qualquer
condição de avaliar. O aluno, no fundo, aceita a avaliação do professor, porque sabe
que ele, para chegar a ser professor, passou e ainda passa por interminável
processo de avaliação. Já os deputados inventaram a “imunidade parlamentar,” em
parte por
Início de nota de rodapé
4- BERMAN, M. 1986. Tudo que é sólido desmancha no ar — A aventura da
modernidade. São Paulo, Companhia das Letras.
Fim de nota de rodapé
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boa razão, mas que já virou malandragem. A boa razão está em preservar o direito
de falar. A má razão está em ir além disso, e pedir impunidade. Contradição
performativa é mais comum em nossas vidas do que pensamos. Aparece facilmente
nos privilégios, que queremos como expressão de mérito, quando são sempre
usurpação. Logicamente, é impossível inventar a noção de privilégio sem usurpação,
porque inclui a decorrência de que o outro precisa se submeter e manter o privilégio.
O machismo afirma que o homem tem direitos que a mulher não tem ou não deveria
ter. A “família real” apela para tradição que um dia não foi. Ela chegou ao poder
porque o usurpou, deixando outras para trás. Aparece também facilmente nas
autoridades inconsequentes, quando exigem dos outros o que não fazem. O
professor pode insistir em que o aluno estude todos os dias, e ele mesmo jamais
estudar. O fundamentalista quer liberdade religiosa, para garantir que a sua religião
seja a única verdadeira. O chefe chega sempre tarde, mas exige que todo mundo
esteja cedo no trabalho. O professor questiona tudo, mas irrita-se quando o aluno o
questiona. Na verdade, logicamente falando, deveria esperar exatamente isto, ou
seja, que o aluno aprenda a questionar. Mas isto é bom de dizer, difícil de engolir.
O mal da lógica é que quer ser fatalmente necessária. Torna-se facilmente
impositiva. Desconhece que na realidade e na vida as coisas não são preto/branco,
mas sobretudo cinzentas. A lei precisa ser quadrada, porque, se admitir exceções, já
não vale. Por isso, traça limites fatais: o motorista é considerado alcoolizado quando
ultrapassa certa medida detectada por instrumentos, ou corre demais quando estiver
acima de certo limite de velocidade. Olhando bem, esses parâmetros são em si
fluidos, porque, dependendo da constituição física, uma pessoa pode tomar mais
álcool e aparecer menos no sangue, enquanto outra se entrega com bem menos, ou
correr demais também é função do instrumento de medida. Por isso, costuma-se dar
desconto de 10% para cima. Mas isto não muda o problema: se a velocidade
permitida for de 60 km por hora, mais 10% dariam 66, donde decorre que alguém
correndo a 65 km por hora está bem e outro correndo a 67 km já está fora. Ao
mesmo tempo, a punição vem por atacado, porque é difícil estabelecer
proporcionalidade, ou, fazendo isso, permitimos manobras em excesso. E muito
diferente andar a 67 km ou a 167 km, mas a punição tende a ser a
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mesma. Legalmente falando, pode ser lógico. Na vida real, algo insensato.
Podemos ver isto claramente na complicada relação entre pais e filhos, quando
aqueles se sentem impelidos a impor limites a estes — por exemplo, hora para voltar
à noite no fim de semana, digamos à meia-noite. Os filhos acham absurdo, porque
lhes tolhe a liberdade. Os pais já pensam que a noção de liberdade implica limites,
para o bem dos filhos. Pais quadrados insistem que meia-noite é exatamente às 24
horas. Outros são mais concessivos, e o conceito de meia-noite pode ir até uma
hora da manhã. Quer dizer, a relação humana também conta, por vezes mais que a
lógica. Melhor que impor limites é negociá-los. Pais inteligentes não se irritam se a
filha chega quinze minutos atrasada. Podem até ver nisso algo positivo: a filha está
tentando conquistar seu espaço. O que seria mais lógico: hora estrita ou flexibilidade
inteligente? Esta também reconhece limites, mas nunca fatais. A lógica tende a ser
binária, ou/ou. Com isto toma as coisas claras, mas também irreais. Por isso, toda
ideia totalmente clara tende a ser vazia, ideia boa sempre é um pouco torta, mal
acabada, um tanto aérea, e aí permite aprender, mudar, saltar. Nem por isso ideia
confusa é preferível à ideia lógica, mas é fácil mostrar que as pessoas mais criativas
são mais confusas, no bom sentido.
Este papo pode cansar, porque vai e volta, sobe e desce, e não parece sair do lugar.
Perfeitamente. Lógica não nos faz sair do lugar, porque é procedimento, método. É
forma, não conteúdo. Ninguém mora na lógica, porque não é Iugar. E modo de fazer,
não é o fazer. Na vida real, geralmente vale mais o consenso que a lógica: se os
pais não reclamam dos primeiros quinze minutos de atraso, estes podem alargar-se
para trinta, e o novo limite já será uma hora da manhã. Não é lógico, mas vai se
tomando consenso. A lógica, por ser tendencialmente quadrada, ignora as
mudanças, as surpresas, o passar do tempo. Na dureza da lógica, se a filha chegou
trinta minutos atrasada, precisa ser punida. Mas pais inteligentes, dependendo das
circunstâncias e do conhecimento que têm da própria filha, podem pensar que é
melhor recompensá-la porque se atrasou pouco. E a filha pode aprender, para a
vida, mais da segunda posição do que da primeira. Difícil é decidir a partir de que
limite o abuso já seria inaceitável. Para este cálculo tão complicado, os pais acabam
apelando para o “bom senso”, que nenhuma lógica substitui. Expressa o senso
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pela medida das coisas, nem de mais, nem de menos. Questão de sensibilidade,
fineza de percepção. E muito mais que senso comum, porque este se satisfaz com o
conhecimento acumulado acrítica e tradicionalmente. O bom senso implica
capacidade de avaliar situações complexas e delas obter saída adequada, a melhor
do momento. Usa para isto a lógica, mas vai além, porque é sensível também à falta
de lógica, quando esta é a lógica da situação. Funciona, então, também a
experiência, a vivência, a sensibilidade. (5)
Início de nota de rodapé
5- SANTOS, B. S. 1995. Toward a new common sense — Law, science and politics
in the paradigmatic transition. New York, Routledge.
Fim de nota de rodapé
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2
LÓGICA E JEITO
Nem sempre a menor distância entre dois pontos é a linha reta, como quer a
matemática binária. Se assim fosse, quando um rapaz quer conquistar uma moça,
sairia em Iinha reta para abordá-la. Usaria franqueza direta. Todavia — todos sabem
— a franqueza é grande virtude, mas, dependendo da circunstância, apenas choca.
Para conquistar a moça é mister fazer algumas curvas, dizer por insinuações, não
por gestos ostensivos, planejar encontro “fortuito”, e outras coisas mais que todo
amante inteligente sabe fazer. Não desistimos da Iógica. Muito ao contrário, a
usamos com cabeça. Por isso, pensar não é apenas ter ideias, mas tê-las com jeito.
Está em jogo variedade de facetas relevantes no bom jogo de saber pensar, a
começar pelo reconhecimento de que não somos seres propriamente racionais.
Somos sobretudo emotivos. Enquanto a razão nos toma reticentes, desconfiados,
distantes, a emoção nos leva a entregas totais, inventa envolvências profundas,
arrasta paixões. Se, algumas vezes, a emoção atrapalha o raciocínio — quando
precisa ser frio —, outras vezes o torna tanto mais vivo, colorido, vibrante.
Precisamos, na verdade, dos dois. Quando a emoção é demais, é preciso “parar
para pensar”. Dizemos parar para pensar aludindo que é preciso parar de nos deixar
Ievar por condicionamentos pouco lógicos. Mas, vale o reverso: pessoa apenas
lógica é máquina, não ser humano. Isto mostra, outra vez, que a vida não é binária,
mas complexa.
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Não fosse talvez visão excessivamente estereotipada, diria que a razão nos dá a
capacidade de análise, enquanto o coração a de participar. Porquanto o ser
humano, quando compreende as coisas, não só as decifra, sobretudo delas
participa. E, assim, a vida em comum é mais emoção que lógica. Até porque, se
olharmos bem, as coisas mais lógicas são as que mais se repetem, tomando-se em
conta que da mesma causa sempre segue o mesmo efeito. A ciência aprecia isto,
porque traz resultados palpáveis, demonstrados. Mas se tudo fosse tão amarrado
assim, nada aconteceria, apenas se repetiria. E precisamente o contrário que
sucede na aprendizagem reconstrutiva, que afirma aparecer nela saltos qualitativos,
tipicamente criativos. Eis a diferença para com a instrução, que busca apenas
transmitir, repassar, reproduzir conhecimento. Mas está equivocada, porque farta
pesquisa atual, sobretudo da biologia e da psicologia, mostra que todo ser vivo,
quando capta a realidade, não a reflete mecanicamente ou a representa
diretamente, mas a reconstrói. Não a “constrói”, porque a realidade fora de nós não
depende de nós para existir. Mas a reconstrói, no sentido de que toda captação da
realidade é feita por sujeito particular, de modo interpretativo (6).
Podemos simular experiência bem ilustrativa. Tomam-se vinte pessoas, que
fazemos sentar em fila. Contamos para a primeira um segredo relativamente
complexo. Esta deve passar o mesmo segredo para a segunda, e assim
sucessivamente até a última. O relato da última dificilmente permite reconhecer o
segredo contado para a primeira, porque cada qual acrescentou algum matiz
interpretativo próprio. Não somos capazes de imitar pura e simplesmente, porque,
quando pensamos, não conseguimos pensar na condição de objeto. Somos sempre
sujeitos, subjetivos. Reconhecendo isto, o povo diz: quem conta um conto,
acrescenta um ponto. Também por isso, todo povo tem cultura própria, no contexto
de história própria. Mesmo assim, podemos encontrar coisas em comum nas
culturas, porque, ao final das contas, são seres humanos. Estes são, ao mesmo
tempo, diferentes e iguais. São iguais nas estruturas, e diferentes na história. Todas
as línguas possuem certas estruturas comuns iguais como verbos, substantivos,
Início de nota de rodapé
6- SEARLE, J. R. 1998. O mistério da consciência. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
MAGRO, C. et alii (orgs.) 1997. Humberto Maturana — A ontologia da realidade.
Belo Horizonte, Ed. UFMG. DEMO, P. 1999e. Educação e desenvolvimento — Mito
e realidade de relação possível e fantasiosa. Campinas, Papirus.
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vogais, advérbios, preposições, mas não sabemos a Iíngua se soubermos apenas
isso. No fundo, para aprender língua estrangeira é mister, mais que conhecer a
gramática, saber falar, e isto significa imergir na cultura, entrar na história, participar
do contexto. Quem sabe gramática, sabe a lógica da língua, mas ainda não sabe
como se fala.
Hoje já conseguimos falar de “lógica difusa”, mesmo dentro da matemática, porque a
visão linear da realidade é praticamente excepcional. Segundo Kosko, não é só a
realidade viva, sobretudo humana, que é imprecisa. Toda realidade o é (7). Causou
grande espanto a proposta de Prigogine, quando apresentou a dialética como
método mais maleável para captar realidade também maleável (8). No fundo, está
também o conceito de caos estruturado ou de complexidade, apontando para o
fenômeno geralmente chamado de “emergência”, através do qual componentes
simples produzem sistemas complexos, bastando que se ajuntem em determinada
ordem não linear (9). Especificamente, quer dizer que os componentes não só se
somam, sendo o todo apenas a soma das partes. Produzem entidades
qualitativamente diferentes. Podemos tomar o exemplo comum da formação da
água, a partir de H20. Antes, temos dois gases, e inflamáveis; depois, temos líquido,
e não inflamável. Ajuntando dois gases em determinada ordem não linear saltamos
para outro fenômeno. Neste sentido, como diria Norretranders, as coisas nunca
apenas somam, porque se compõem, concertam, articulam (10). Formam novos
padrões. O caminho pode ser inverso também, quando complexidades redundam
em coisas simples.
A dialética, com efeito, sempre mais pretendeu ficar do lado da realidade mais
complexa, do que a lógica linear. Primeiro, afirma que toda realidade é unidade de
contrários, intrinsecamente dinâmica, polarizada, de tal forma que a mudança é a
situação
Início de nota de rodapé
7- KOSKO, B. 1999. The fuzzy future — From society and science to heaven in a
chip. New York, Harmony Books.
8- PRTGOGINE, I. 1996. O fim das certezas — Tempo, caos e as Ieis da natureza.
São Paulo, Ed. UNESP. PRIGOGINE, I. & STENGERS, I. 1997. A nova aliança.
Brasília, Ed. UnB.
9- HOLLAND, J. H. 1998. Emergence — From chaos to order. Massachusetts, Helix
Books.
10- NORRETRANDERS, T. 1998. The user illusion — Cutting consciousness down
to size. New York, Penguin Books.
Fim de nota de rodapé
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característica, por vezes mais profunda (quando a antítese for radical e provocar
transformação ou revolução), por vezes menos profunda (quando menos radical,
permanecendo em reformas, ajustes, adaptações) (11). Houve tempo em que se
acreditava ser esta marca própria apenas da realidade histórica, sobretudo humana.
Aparece atualmente a tentativa de ver a realidade como um todo dotada deste tipo
de dinâmica, o que permitiria considerá-la “viva”. Porquanto vivo não é apenas o que
morre, é orgânico, mas o que é marcado pelo vira ser, pela “flecha do tempo”, como
diz Prigogine. A vida não é substância, mas nível da realidade, modo de se
organizar, auto-organização. Nasce, cresce, vive e morre. O universo também está
em expansão, em movimento intrínseco, caminhando em seu ritmo. Tudo isto é por
certo muito polêmico, mas tem contribuído para alargarmos nossa visão de mundo,
para além da ordem linear, binária, quadrada. Segundo, a dialética afirma que a
totalidade é maior que a soma das partes, dando a entender que a dinâmica,
embora em certo grau também se reproduza, no fundo mais que tudo se renova. A
lógica formalista — aquela estrita, binária até o fim — não capta esta característica,
porque aposta apenas na análise. Análise significa o método científico que procede
pela decomposição das partes, como faz a física, a biologia: entendemos o
funcionamento da realidade descobrindo seus átomos, bem como só percebemos a
estrutura da mente dissecando o cérebro. E importante este método, porque
produziu grandes resultados, mas não capta a realidade toda, como um todo.
Restringe-se à parte formal, ou mais formal dela. Já a dialética acrescenta à análise
o compromisso com a síntese, como reconhecia Marx, ao dizer que o concreto é
produto de múltiplas determinações. Tendo à mão os componentes do cérebro —
neurônios, axônios, sinapses —, sabemos de que partes é feito, mas estamos longe
de saber a razão pela qual, estando juntas, produzem pensamento, emoção,
consciência, esperança. Não há emoção sem adrenalina, mas emoção não é
adrenalina. Quer dizer, emoção é fenômeno emergente a partir de seus
componentes físicos.
Terceiro, a lógica formal prefere as leis da estática. Imagina que a realidade pode
ser decomposta em mínimos componentes e que, lá por baixo, não é complexa, é
simples, e aí estaria sua
Início de nota de rodapé
11- Veja discussão detalhada sobre dialética: DEMO, P. 1995. Metodologia científica
em ciências sociais. São Paulo, Atlas, capítulo sobre dialética.
Fim de nota de rodapé
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explicação. Toda a aparência externa superficial desordenada se reduz a ordem
interna invariante, a que damos o nome de lei. Observando esta mesa, por exemplo,
não conseguimos ver que é feita de átomos e que estes representam tabela finita
mais ou menos simples, e sempre os mesmos. Disto a ciência retira dupla
conclusão: para entender a realidade há que, antes, ir além da aparência, sendo
esta sempre enganosa, e, depois, levantar modelo simplificado dela, onde estaria
sua explicação. A dialética, por sua vez, prefere as leis da dinâmica, sem negar que
existam estruturas na realidade. Esta, sem dúvida, também se repete. Mas
sobretudo se muda, porque se considera estrutural, não a estática, mas a dinâmica.
Daí segue visão muito típica da dialética, segundo a qual a mudança provém de
dentro, da própria realidade. Pode também ser mudada de fora, por interferência
externa, mas, mesmo se isto não ocorrer, a mudança acontece por razão própria
inerente. Tomando exemplo extremo: podemos morrer de morte matada — acidente,
por exemplo — como morremos também de morte morrida, no curso natural das
coisas. Assim, a dialética não dispensa a noção de estrutura, mas vê como lei da
dinâmica. A noção de lei da dinâmica reconhece que a dinâmica não se faz ao léu,
ao bel-prazer, mas dentro de certa ordem. Nossa mente parece ser assim
construída: entendemos a variação, quando captamos como ela invariavelmente
varia! Ocorre o mesmo com o conceito de caos estruturado: é outra ordem, não
propriamente desordem, porquanto, para termos idéia de caos, mister se faz
reconhecer traços constantes do caos. Mas uma coisa é estrutura como paralisia da
história — que sempre no fundo apenas se repete —, outra é estrutura como usina
da mudança, o que permite ver a mudança dentro, intestinamente, de toda
realidade.
Caricaturando um pouco as coisas, podemos notar esta diferença no estudo do
discurso, digamos, do presidente da República. Discurso é fenômeno complexo, que
traduz formas e conteúdos muito variados, em momentos também variados. Em
certo sentido, sempre há coisas que se repetem, porque toda pessoa tem jeito
próprio de ser. Não muda toda hora. A lógica formal destaca este lado, e procede
geralmente pela frequência das ideias ou palavras: conta o que aparece mais.
Assim, se a palavra que mais aparece nos discursos do presidente é controle da
inflação ou solidariedade, infere-se que é isto o que sobretudo quer dizer. Esta
arrumação analítica tem seu lugar, é claro, e ajuda pelo menos a ordenar a
frequência dos conteúdos,
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mas pode estar muito longe de compreender os discursos. Poderia suceder, por
exemplo, que a frequência maior de certas palavras fosse feita para dizer o
contrário: o presidente insiste no controle inflacionário e na solidariedade, não
porque esteja compromissado com isso, mas porque imagina ser sua estratégia de
permanecer mais tempo e melhor no poder. Ao mesmo tempo, pode usar muito a
noção de solidariedade para livrar-se de fazer política social mais profunda, porque
está mesmo preocupado com o andamento da economia e considera política social
subproduto da dinâmica do mercado. A dialética, por conta disso, vai além da
formalização estrutural do discurso, cavando as dinâmicas, sobretudo suas
contradições, e apalpando os sentidos também ocultos, perdidos, informais. Damos
o nome de hermenêutica à visão dialética, segundo a qual em particular as
realidades sociais podem ser o contrário do que aparentam. E preciso, para além de
somar componentes analíticos, caçar os sentidos, os significados, as insinuações,
os silêncios, o que se queria, ao final, dizer. Porquanto se pode falar muito para não
dizer nada, bem como existe silêncio ensurdecedor. Ao falar, tão importante quanto
o dito é o não dito, o reprimido, o evitado. Sobretudo em discursos do presidente,
que precisa calcular tudo que diz, evitar interpretações indesejáveis, não ofender os
aliados, provocar adesões. Esta dinâmica é, em parte, formalizável, em parte não.
Terá que ser “interpretada” a partir de contextos, também de momentos, do encaixe
histórico. E sabe que, no fundo, nunca se chega ao fundo. A fala humana é tão cheia
de detalhes, sinais e meneios, olhares e rostos, gestos e entonações, que muito
escapa ao olhar mais analítico e, ao final das contas, só quem fala sabe, e, por
vezes, nem sabe. A psicologia mostraria que, ao falar, nunca dominamos tudo o que
dizemos, porque em grande parte agimos de modo inconsciente. Por outra, mesmo
tomando como ponto preferencial tamanha complexidade, não ficamos apenas com
ela, mas a debulhamos em padrões dinâmicos que permitem ver melhor, segundo
as relevâncias que imaginamos preponderar. Não conseguimos compreender a
complexidade complexamente, mas por aproximações redutoras. Nestas
aproximações redutoras, podemos ver melhor o que o método permite, mas
podemos também só ver o que o método permite.
Disto resulta que é mister tratar com jeito a realidade jeitosa. Ela não se dá
ostensiva e quadradamente. E manhosa, se esconde, dá voltas. Mas, mesmo neste
vaivém interminável, podemos
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descobrir padrões menores que se repetem, a que damos hoje o nome de
algoritmos, para indicar que o complexo possui elementos ordenados definíveis, ou
séries pequenas de passos que sempre reaparecem, refrões que voltam. Através
deles, percebemos traços da dinâmica, que deixa de ser apenas caos, para
comparecer como estruturada. Todavia, não aceitamos mais que possa ser reduzida
a elementos simples finais — átomo quer dizer indivisível, porque imaginávamos que
ele mesmo não poderia mais ser decomposto —, porquanto o que vemos como final
é apenas nova fronteira, ela também complexa. Não vamos do complexo ao simples,
mas do complexo ao menos complexo. Ao mesmo tempo, a tarefa de descobrir
padrões ou algoritmos não é dada, pois supõe atividade interpretativa, guiada por
alguma hipótese sobre a realidade. Conclusão: não se pode estudar qualquer
realidade sem interpretá-Ia. Observar, por mais formal que possa querer ser,
também é interpretar. A razão pode ser simples: somos sujeitos, não objetos;
entidades subjetivas, hermenêuticas.
Como percebeu Lévi-Strauss, antes de distinguirmos entre lógica formal e dialética,
há que aceitar que ambas são lógicas. Sendo instrumentos de captação da
realidade, não são a realidade como tal. E como o mesmo bisturi que se continua
usando em cada nova cirurgia. E como a mesma rede que se joga para pescar.
Dependendo da rede, apanha-se mais isto ou aquilo mas é impossível apanhar
todos os peixes. Sendo ambas lógicas, possuem de comum a atividade formalizante,
redutora a modelos invariantes. A diferença, porém, está em que a lógica formal
indigita a estática invariante, enquanto a dialética aponta para a mudança
permanente como invariante. Se a realidade fosse estática, a lógica formal seria
mais adequada. Não sendo assim, parece que a dialética poderia servir melhor,
como diria Prigogine. Mesmo assim, é fundamental entender que a mente humana,
ao captar a realidade, procede, no plano científico sobretudo, a descobrir padrões da
dinâmica, dentro da expectativa de que a realidade, por mais dinâmica que seja,
apresenta dinâmica estruturada. O caos puro e simples, não podendo ser
formalizado, não será também captado.
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Em branco
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3
ARTE DE ARGUMENTAR
Pode servir como definição sucinta de ciência, desde que se ultrapasse o
reducionismo positivista. Por reducionismo positivista entendemos a tendência da
ciência de reduzir a realidade àquilo que o método consegue captar dela, ou seja, ao
mensurável, quantificável, lógico e formalizável. Não conseguimos estabelecer
coincidência pura e simples entre pensamento e pensado, como se a ideia de algo
fosse exatamente este algo. Dentro da visão reconstrutivista, a ciência tem da
realidade um modelo construído logicamente, reduzido, por questão de método, a
modelo simplificado. Toda teoria não representa diretamente a realidade, mas a
reconstrói de acordo com certa expectativa de realidade, o que já é mais que
suficiente para reconhecer seu teor interpretativo. Na prática, se houvesse
coincidência direta entre pensamento e pensado, não necessitaríamos argumentar,
pois seria possível a evidência. Bastaria constatar, ver.
Nada sendo evidente — inclusive esta afirmação —, torna-se inevitável o esforço de
fundamentar o que se diz diante de interlocutor que pode sempre pensar de outra
forma, ver de outro jeito, revelar outras faces. Esta circunstância transmite à ciência
o caráter de polêmica, pelo menos até certo ponto, porque tudo que coloca é, por
definição, discutível. Dizer que a ciência é
sempre algo discutível supõe dois horizontes entrelaçados:
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a) seu discurso precisa de tessitura lógica e sistemática para ser adequadamente
discutível; não se trata de defeito, mas de virtude flagrante, porque só podemos bem
discutir o que se apresentar bem-feito cientificamente falando;
b) seu alcance é sempre limitado, porque, ao buscar revelar a realidade, mostra
melhor o que consegue ver, obnubilando o que não interessa ou não pode ver; não
retrata, mas interpreta a realidade a partir de ponto de vista.
Argumentar torna-se “arte” porque implica a construção jeitosa de discurso que,
consciente de seus limites, busca convencer pela fundamentação aberta,
submetendo a teoria ao questionamento alheio sem artimanhas. A arte não se
esgota em modelagens metodológicas, alcançando sempre igualmente os
horizontes da sensibilidade e da envolvência. Em vez de assertivas certas,
peremptórias, quer fazê-las plausíveis, contando com adesão crítica. Tentamos
cercar realidade que sempre é maior que nossa capa- cidade de argumentar.
Precisamos dos outros pontos de vista para vemos melhor, já que, sozinhos, não
ultrapassamos nossa maneira de ver. Estamos diante de fenômeno epistemológico
que significa, ao mesmo tempo, Iimite e potencialidade. É limite, porque todo
discurso científico, dispensando suporte externo, em particular qualquer autoridade,
aposta em seus próprios métodos, enredando-se na assim dita circularidade
hermenêutica: quando definimos termos, usamos termos ainda não definidos, assim
como, quando argumentamos, usamos referências ainda não devidamente
argumentadas. Neste sentido, a ciência funda-se a si mesma, apelando para
“metanarrativas circulares”, como diz a crítica pós-moderna (12). Não produz
certezas para todos, mas para seus adeptos. Não haveria como inventar
argumentação unânime, a menos que os interlocutores desistissem de argumentar,
engolindo simplesmente o que se afirma. Dito de outra forma, todo questionamento
provoca contra questionamento pela mesma razão lógica. E típica contradição
performativa pretender questionar sem ser questionado. Toda argumentação é, em
si mesma, convite à contra argumentação.
Início de nota de rodapé
12- LYOTARD, J.-F. 1989. La condición postmoderna. Madrid, Catedra. DEMO, P.
1993d. Conhecimento moderno — Sobre ética e intervenção do conhecimento. 3°
ed. Petrópolis, Vozes.
Fim de nota de rodapé
Página 41
É potencialidade, porque toda argumentação coerente sedimenta processo infindo
de renovação própria. Reconhecendo que nada se pode, a rigor, provar, mas
fundadamente reconstruir, temos de aceitar que, primeiro, diante de realidade
complexa, selecionamos facetas consideradas relevantes, e, segundo, que assim
procedendo também escondemos o que não consideramos relevante. Focar facetas
mais que outras implica esquecer as outras, sem falar que a questão da relevância
é, em grande parte, problema de interpretação. A relevância jamais é óbvia, mas
produto de antecedentes e circunstâncias teóricos e históricos de cada cientista ou
paradigma. E precisamente neste sentido que toda argumentação bem-feita
pretende abrir novas discussões, nunca fechá-las. Toda nova teoria conclama outras
que a possam superar, em nome de realidade que nunca vemos de todo.
Atualmente, quer-se recuperar o velho sentido da retórica, que tinha como pretensão
não só deduzir ou inferir, mas igualmente convencer, seduzir. Todos sabemos que
lógica, por mais evidente que possa parecer, está longe de necessariamente
convencer. Frequentemente, deixamo-nos levar pela emoção ou pela expectativa,
ou pelo senso comum, ou pela ideologia, mais do que por raciocínios formalmente
bem arquitetados. Galileu, quando defendeu o heliocentrismo, tinha formalmente
razão, mas foi condenado porque, em termos sociais da época, não “convenceu”. A
retórica pode ser abusada, como fazem os políticos quando proferem promessas
falsas e buscam enrolar a população, mas pode ter o sentido pertinente de conduzir
o discurso científico com elegância, sensibilidade, adequada entonação, para que
mereça tanto mais ser ouvido e, sobretudo, ser aceito. Não insiste apenas na lógica.
Quer, além dela, a possibilidade de adesão. Se esta for excessiva, a retórica decai
para adesismo. Mas não deixa de ser propósito importante, por exemplo, produzir
texto em ciência que seja mais facilmente legível, atraente, jeitoso, ainda que se
possa sempre confundir isto com “vulgarização”. Bem olhando, trata-se de arte,
daquela arte de colocar no papel coisas muito complicadas de maneira que todos
possam entender.
Do ponto de vista hermenêutico, toda fundamentação mostra, à revelia, que padece
de falta de fundamento, porque não podemos produzir nenhum argumento final.
Podemos apenas produzir o próximo argumento, em processo interminável de
aproximações sucessivas. A crítica vive precisamente da falta de fundamento,
Página 42
tornando-se contraditória consigo mesma, quando imagina poder dispensar a
argumentação. Por isso, dizemos que a coerência da crítica está na autocrítica. Pois
a lógica implicada no criticar é a mesma implicada no ser criticado. Mostrar os limites
da argumentação do outro é implicar reconhecer limites na própria argumentação,
por pura coerência Iógica. Consciência autocrítica há de significar duas coisas:
a) exercício irrestrito da crítica, colocando a realidade acima de qualquer teoria e,
em nome da realidade, mostrar as incongruências de toda teoria; precisa ser
sistemática e implacável, perseguindo todos os possíveis percalços, além de não
admitir qualquer tipo de censura;
b) exercício modesto da crítica, porque sabe que apontar erros é também neles
incidir, já que é impraticável produzir discurso científico totalmente isento de erros; a
abertura diante de novas críticas é essencial, não se podendo exigir dos outros o
que nós mesmos somos incapazes de garantir.
Varela, em seu livro sobre a “mente incorporada” (13), procura estabelecer caminho
do meio entre os excessos do representacionismo — a cognição conhece
diretamente a realidade e a pode devassar analiticamente — e o relativismo niilista
— a cognição é sempre apenas algo particular. Este caminho do meio é chamado
por ele de “falta de fundamento último” (groundlessness), no contexto da visão
cognitiva de estilo oriental, mais propensa a certo compromisso entre os extremos.
Não podemos descobrir chão último, porque este próprio chão não poderia ser
estabelecido sem nossa interpretação e história. E sempre historicamente relativo,
porque não há sujeito cognoscente que não esteja plantado em certo tempo, espaço
e cultura, mas a realidade externa não depende de nós para existir. A ciência
ortodoxa, entretanto, mantém a pretensão de devassar as entranhas da realidade,
até seu último chão, mas sua complexidade intrínseca parece estar sempre além
desse intento. Por certo, a ciência é ótima para destruir respostas metafísicas, por
ser naturalmente método de questionamento antes de tudo, mas nada deixa no lugar
que também não mereça ser questionado. Assim, ela mesma nos leva a viver sem
fundamento, se tivermos devida autocrítica.
Início de nota de rodapé
13- VARELA, F. J. et alii. 1 997. The embodied mind — Cognitive science and
human experience. Cambridge, Massachusetts, The MIT Press.
Fim de nota de rodapé
Página 43
A persecução de fundamentos inabaláveis mostra apenas ciência que perdeu o
sentido da crítica e, sobretudo, da autocrítica. Nem satisfaz transformar a falta de
fundamento último em fundamento último da argumentação, dando a entender que
isto seria ponto final de referência, porque, de novo, estamos atrás de abertura tão
total que já seria fechada. Pois, o que se pensa como objetivo não passa, no plano
humano, do que é representado pelo sujeito.
Por certo, como diz Varela, afeta a vida e o ser perceber que não há chão sólido e
que as coisas passam, pervadindo a compreensão e a atualização da vida humana,
tornando-a questionável, duvidosa e incerta. Chama a isto de grande dúvida,
visualizada na própria impermanência da existência. O caminho do meio não é
niilista, apenas reconhece a falta de fundamento. Não se pode desistir da
fundamentação, transformando isto em nova fundamentação. Ao contrário, é preciso
transformar essa ânsia por fundamento último em capacidade de convivência aberta,
preferindo à impossibilidade do peremptório e fatal a convivência fecunda da
comunicação relativamente fundada. Assim, a falta de chão último não indica o
desespero de causa, nas a potencialidade de infinita abertura à aprendizagem
sempre renovada. O objetivismo incide nesta contradição ao postular competência
insustentável de tudo poder ver e dissolver, substituindo um deus ex machina por
outro. A lógica, deduzindo uma coisa da outra sem fim, não pode chegar ao fim,
porque, sendo circular, não tem fim. Mal entendida, pode pretender evidências que
são apenas as próprias, circunscritas ao círculo.
Ideias de Habermas, nesta parte, podem ser interessantes, porque, aceitando que
somente pode ser científico o que for discutível, abrem espaço para a referência
política de toda argumentação (14). Tomando verdade como “pretensão de
validade”, não como trama lógica dada e necessária, para que o discurso seja válido
carece de dupla referência:
a) referência lógica, porque todo discurso científico válido pleiteia sistematicidade,
tessitura lógica, penetração analítica; se for contraditório, malfeito, embaralhado, não
pode ser discutido
Início de nota de rodapé
14- HABERMAS, J. 1989. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro. DEMO, P. 1998b. Pesquisa e construção do conhecimento —
Metodologia cientifica no caminho de Habermas. 2° ed. Rio de Janeiro, Tempo
Brasileiro.
Fim de nota de rodapé
Página 44
adequadamente; sua tessitura Iógica não serve para fugir da discussão, em nome
de alguma pretensa evidência, mas para facilitá-la;
b) referência política, porque a validade sempre implica reconhecimento histórico
relativo, que Habermas vê no consenso aberto da comunicação desimpedida; ser
socialmente aceito significa ser capaz de reconhecimento no contexto da linguagem
intercomunicada, na qual o compromisso comum acaba impondo-se ao que é
apenas lógico; ainda que todo consenso tenda a ser medíocre, porque é aquilo em
que todos poderiam acreditar, é o que pode valer concretamente.
O processo de argumentar implica as duas referências, por mais que a ciência,
muitas vezes, nos queira dar a entender que se basta com a primeira. Podemos
também exagerar na segunda referência, quando já preferimos ideologia a
argumento. Discurso ideológico é aquele no qual predomina o intento de justificação
a serviço do contexto de poder. Pode usar ciência para tornar-se melhor aceito, mas
seu compromisso básico é provocar convencimento, adesão, mais do que postura
crítica. Discurso científico é aquele no qual predomina a argumentação, estando
mais a serviço de desvendar a realidade do que de vendê-la para adeptos. Dizemos
“predomina” porque ideologia é intrínseca à ciência não no objeto, pelo menos no
sujeito. A ciência, por outra, também busca ir além do senso comum, porque pleiteia
postura crítica para além das aparências, mas também incorpora coisas do senso
comum, já que a crítica total não seria manejável por mente limitada e histórica e
evolucionariamente marcada. O que condiciona sobretudo o fazer científico é o
método, comprometido com o teste crítico, enquanto o senso comum é crédulo e a
ideologia é submissa. Enquanto o senso comum se basta com as aparências, a
ideologia se satisfaz com a adesão.
Neste sentido, podemos dizer que verdade necessita de qualidade formal e política.
Formalmente falando, precisa de sustentação lógica. Politicamente falando, precisa
de consenso. Não segue daí relativismo, porque, primeiro, toda sociedade funciona
por alguns acordos válidos para todos ou pelo menos para a maioria, e, segundo,
porque o relativismo é em si mesmo contraditório: não se pode afirmar que tudo é
relativo. Mas segue a relatividade da verdade, ou seja, que sua validade tem o
tamanho da pretensão historicamente contextuada de validade. De um lado,
Página 45
possui parâmetros que ultrapassam a facticidade, permitindo reconhecer, por
exemplo, na lógica, certos modos estruturais de pensar, próprios da mente em
qualquer tempo e lugar. Chamar a estes modos estruturais de referências
transcendentais pode levar ao que Sfez chama de modo “kantiano”, e hoje rejeitado
pelo pós-modernismo (15), porque desconhece a validade social do discurso. Como
pretende Bourdieu, a validade do discurso se dá na sociedade concreta, não em
parâmetros meramente estruturais ou transcendentais (16). Rejeita, por isso, que o
primeiro impulso da fala seja comunicar. Será mais propriamente influir. Assim, de
outro lado, a facticidade se alimenta da história concreta de cada sociedade,
expressando a relatividade natural das coisas. Os consensos, além de medíocres
geralmente, podem também ser injustos, sem falar de ilógicos. Mas eles é que
acabam valendo. E impraticável definir verdade fora do contexto do poder. São dois
conceitos logicamente diferentes mas socialmente imbricados, pois, ao final das
contas, verdade é menos o que parece inconsútil e transparente do que aquilo que
vale concretamente.
A arte de argumentar leva em conta que o ser humano e a sociedade em que vive
não funcionam apenas pela Iógica. As fundamentações racionais são muito
importantes; contudo, sendo o ser humano vastamente irracional, não por má
vontade e sim por constituição corporal, é mister motivar não só o raciocínio, mas
igualmente a envolvência. Toda comunicação humana pressupõe acordos tácitos,
que permitem o entendimento não problemático. São propriedades comuns que
ultrapassam a facticidade, revelando possibilidades estruturais do entendimento.
Mas isto indica os pressupostos do entendimento, não seu compromisso
historicamente válido. Maffesoli chama de “razão sensível” aquela que aponta para
além das formalizações exigidas pelo método científico estrito, de, certa maneira
postulando que não basta convencer a mente. (17) E mister também, talvez
sobretudo, convencer o corpo. O fenômeno participativo não poderia desvincular-se
da racionalidade — a fácil adesão a ditadores carismáticos bastaria para valorizar a
racionalidade crítica —, mas funciona pela
Início de nota de rodapé
15- SFEZ, L. 1994. Crítica da comunicação. São Paulo, Loyola.
16- BOURDIEU, P. 1996a. A economia das trocas linguísticas. São Paulo, Edusp.
BOURDIEU, P. 1996b. Razões práticas — Sobre a teoria da ação. Campinas,
Papirus.
17- MAFFESOLI, M. 1998. Elogio da razão sensível. Petrópolis, Vozes.
Fim de nota de rodapé
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envolvência emotivamente carregada, que, mais que criticar as propostas, nelas
acredita (18)
A argumentação bem conduzida cerca o fenômeno, funda- menta como pode a
hipótese, recolhe razões, mas o faz no sentido da abertura crítica. Ao mesmo tempo
que busca analisar a realidade, não perde de vista que pretende comunicar,
entender-se, convencer. No plano da retórica, persegue também tocar o coração,
motivar a sensibilidade, provocar curiosidade. Não desfaz a necessidade da razão
formal. Pelo contrário, reforçando-a com a percepção da envolvência humana,
atribui-lhe sentido histórico ainda mais integral, lembrando-a que é apenas um olhar.
Porquanto o rigor da lógica só se completa e vale a pena, se puder obter consenso.
Este, sendo a média de todos, também é a vala comum. O exemplo do Congresso é
típico: só passam as leis que tenham consenso, mesmo as mais ilógicas e injustas.
E muito difícil um partido de esquerda coligar-se a um de direita para poder
implantar reformas de esquerda. O que poderá ser implantado é algo no meio dos
dois, pendendo para o lado mais forte, não mais fundamentado.
Início de nota de rodapé
18- KATZ, J. 1999. Haw emotions work. Chicago, The University of Chicago Press.
Fim de nota de rodapé
Página 47
4
SABER APRENDER
Aprender é a maior prova da maleabilidade do ser humano, porque, mais que
adaptar-se à realidade, passa a nela intervir. Sendo atividade tipicamente
reconstrutiva de tessitura política, é também a maior prova do sujeito capaz de
história própria. Saber aprender é fazer-se oportunidade, não só fazer oportunidade.
Deixa-se de lado a condição de massa de manobra, objeto de manipulação, para
emergir como ator participativo, emancipado. Retomamos aqui o sentido da
autonomia, que precisa ser todo dia conquistada e reconstruída. Enquanto a
hereditariedade aponta para o lado repetitivo da evolução, a aprendizagem qualifica
seus saltos. No fundo está o fenômeno da emergência, segundo a qual não
conseguimos nos repetir pura e simplesmente, nem mesmo quando se trata de
gêmeos idênticos. Seus temperamentos, modos de ser e querer tendem a ser muito
diferentes. A prepotência humana busca seres que apenas replicam as ordens, mas
esta é a lógica binária da ditadura, como diz Kosko. Aprender é antes de tudo repelir
a reprodução. Neste sentido é fenômeno sempre reconstrutivo e político. A
politicidade de Paulo Freire é hoje atestada também nas ciências naturais, sobretudo
na biologia, que reconhece no ser vivo a capacidade de auto-organização e
construção de proposta própria(19). Prigogine aceita esta marca também
Início de nota de rodapé
19- TORRES, C. A. 1998. Democracy, education, and multiculturalism — Dilemmas
of citizenship in a global world. New York, Rowman & Littlefield
Fim de nota de rodapé
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no universo físico, sob a dinâmica da “flecha do tempo” ou das “estruturas
dissipativas”, como se fosse, metaforicamente falando, a capacidade de aprender da
natureza. Esta também é algo político e faz, de certa maneira, sua política ao
permanentemente vir a ser (20).
A acalorada disputa em torno do que seria, afinal, aprender vai sendo resolvida em
favor da postura reconstrutiva, retomando, pelo menos até certo ponto, o
lançamento de Piaget, pai do “construtivismo”. Este termo é tido, por muitos, como
excessivo, porque pode levar à pretensão de que a realidade externa depende de
nós para subsistir, sem levar em conta suas estruturas dadas (21). Por outro lado,
aproxima-se de posições ditas estruturalistas, realçando por demais leis universais
da aprendizagem humana, algo criticado hoje fortemente pelos pós-modernos (22).
Pela própria tessitura extremista dessas duas posições — subjetivismo exagerado
num canto e objetivismo excessivo no outro — pode-se duvidar que Piaget tenha
buscado abarcar horizontes tão desconexos. Polêmicas à parte, seu mérito foi
divisar que a aprendizagem é, na essência, fenômeno construtivo, reconhecendo
que é constituída por saltos não lineares, incorporando os estágios anteriores. Para
evitar mal-entendidos, uso o conceito de reconstrução, indicando que aprendemos
do que já tínhamos aprendido, conhecemos a partir do que já sabíamos, como todo
processo hermeneuticamente plantado. Mesmo havendo sempre componentes
reprodutivos, obtidos por imitação, prevalece sua reconstrução, no sentido preciso
de que somos seres incapazes de copiar o comportamento. Esta marca também
garante que se trata sempre de processo permanente, não só porque nunca é viável
atingir ponto final, mas principalmente porque significa movimento de recriação
infinita. A aprendizagem representa, por isso, algo naturalmente criativo e crítico,
porque não repete na situação B o que havia na situação A. Ao contrário, agrega
qualidades que não eram presentes antes, de maneira tipicamente não linear. A
mente humana não armazena propriamente
Continuação de nota de rodapé da página anterior
Publishers, Inc. FREIRE, P. 1997. Pedagogia da autonomia — Saberes necessários
à prática educativa. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
Início de nota de rodapé da página atual
20- CAPRA, F. 1997. A teia da vida — Uma nova compreensão científica dos
sistemas vivos. São Paulo, Cultrix.
21- HARDING, S. 1998. ls science multicultural? Postcolonialisms, feminisms, and
epistemologies. Bloomington and Indianapolis, lndiana University Press.
22.- FREITAG, B. (org.). 1997. Piaget — 100 anos. São Paulo, Cortez.
Fim de nota de rodapé
Página 49
mente dados e informações, mas os reprocessa, reconstrói, redimensiona,
revelando sempre a atividade de sujeito capaz de interpretação própria.
Na prática, temos dois movimentos reconstrutivos da informação vinda de fora. No
primeiro, os sentidos percebem a informação externa de modo seletivo, reduzindo o
excesso de dados de acordo com hipóteses de relevância útil para o sujeito. No
segundo, a mente elabora a informação sensitiva já filtrada, passando do estado
físico para o conhecimento, através da atividade neuronal. Alguns autores analisam
esta atividade de modo mais determinista, como Maturana, que chama o ser vivo de
“máquina”, insinuando que a captação da realidade externa se faria à revelia desta,
a tal ponto de ser impraticável distinguir o que seria alucinação. No fundo, defende
construtivismo extremo e determinista, que lhe permite, entretanto, entre outras
marcas, produzir uma das críticas mais resolutas contra o instrucionismo (23). Este
reduz o aluno a mero receptor, fazendo da educação movimento apenas
reprodutivo. Maturana tenta mostrar que é impossível instruir o aluno, porque este,
mesmo que o quisesse, não consegue manter-se apenas submisso, pois sua
consciência seria resultado mecânico da intervenção externa. Outros autores, como
Varela, buscam um meio-termo, indicando que a mente humana é influenciada pela
realidade externa, embora predomine sua característica reconstrutiva. Parte da
circularidade fundamental: estamos num mundo que parece estar lá antes que a
reflexão começa, mas o mundo não é separado de nós (24). A hipótese cognitivista,
que trata a mente como cálculo lógico de estilo computacional, desconhece que,
embora o nível simbólico seja fisicamente realizado, não pode ser reduzido ao nível
físico. E reducionista a tese de que o processamento da informação simbólica
estaria baseado em regras sequenciais e seria localizado. A proposta chamada
conexionista procura superar esta restrição, reconhecendo que a passagem de
regras locais para coerência global é o cerne do que costumou se chamar auto-
organização, apontando para o fenômeno emergencial de rede que dá origem a
novas propriedades. Entre as vantagens das teorias conexionistas está a de explicar
Início de nota de rodapé
23- MATURANA, H. & VARELA, F. 1994. De máquinas y seres vivos — Autopoiesis:
la organización de lo vivo. Santiago, Editorial Universitaria.
24- VARELA, F. J. et alii. 1997. The embodied mind — Cognitive science and human
experience. Cambridge, Massachusetts, The MIT Press.
Fim de nota de rodapé
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melhor certas capacidades cognitivas, como reconhecimento rápido, memória
associativa e generalização categorial.
O conhecimento passa a ser visto como emergência de estados globais numa rede
de componentes simples, destacando-se o emaranhado conectivo dos elementos. O
símbolo não é mais central, pois os itens significativos não são símbolos, mas os
padrões complexos de atividade entre as numerosas unidades que perfazem a rede.
Os símbolos são, ao mesmo tempo, físicos e significativos, não podendo ser
reduzidos ao físico como faz o computador. O sistema se assemelha a colcha de
retalhos de sub-redes armadas por processo complexo de arranjos, muito diverso de
desenho limpo e unificado. Torna-se fundamental superar a ansiedade cartesiana da
certeza final, provocada pela obsessão por fundamento absoluto. Esta falta de
fundamento é a própria condição para o mundo ricamente tecido e independente da
experiência humana. A aprendizagem, embora dependa de substratos físicos
estruturados, caracteriza-se pelo processo de contínua inovação, maleável por
natureza, flexível e dinâmico. Realiza a qualidade impressionante de saltar de
estruturas físicas para outras de estilo não físico, como é o pensamento, obtendo de
componentes simples resultados complexos através de processos auto
organizativos que não se esgotam na mera circularidade repetitiva. Para evitar esta
circularidade no fundo sistêmica, Varela usa o conceito de enação para indicar o
estilo de intervenção reconstrutiva monitorado também a partir de fora e tipicamente
emergente.
Tais posicionamentos biologicamente fundados asseguram, entre outras coisas,
que:
a) a aprendizagem é fenômeno reconstrutivo; jamais pode ser reduzido a reproduzir
conhecimento, mesmo que compareçam sempre e naturalmente componentes
imitativos. Sua marca central é a dinâmica conexionista que, se, de uma parte, reduz
complexidade para analisar a realidade e lhe reconhecer padrões de estrutura e
funcionamento, de outra, a complexifica tanto mais, não permitindo mais que se
possam reduzir mecanicamente estados mentais a seus substratos físicos. Embora
o pensamento seja produto direto do cérebro — quase que sua secreção —, não é
neurônio ou massa cinzenta;
b) a aprendizagem é fenômeno político, porque é inseparável da condição de sujeito
interpretativo e interveniente, tornando-se
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a base mais efetiva da autonomia. Sua politicidade está, assim, biologicamente
fundada, tanto no sentido negativo da tentação sempre presente de reduzir a
aprendizagem a processos de domesticação, como no sentido positivo da
capacidade emancipatória de reagir. Enquanto não ocorrer a presença crítica e
criativa do sujeito, não existe aprendizagem, mas manipulação da consciência
alheia. Esta marca, por outro lado, define a necessidade de submeter toda atividade
de “ensino” à motivação da autonomia de quem aprende, apontando a este como
figura central; não se emancipa sozinho, mas precisa, em certa medida, saber
dispensar apoios externos, em particular aqueles que indicam atrelamento e
submissão.
Já não seria possível resumir a aprendizagem a procedimentos apenas técnicos e
formais, sobretudo a procedimentos instrucionais, porque, enquanto os aprendizes
se restringirem a seguir ordens, não se farão sujeitos capazes de fazer e sobretudo
fazer-se oportunidade. O esforço reconstrutivo torna-se decisivo sob a presença
maiêutica do professor. Este é parte fundamental, mas jamais pode substituir ou
lesar a participação do aluno. Ao mesmo tempo, todos os artifícios didáticos,
principalmente a aula, não podem ser mais que expedientes supletivos, que teriam
como única razão de se reforçar a autonomia do aluno. Neste sentido, pode-se fazer
ligação direta entre saber pensar e saber aprender, porque releva o sentido da
conquista da autonomia, dentro de processo permanente de inovação crítica e
criativa. Ao mesmo tempo, esta compreensão da problemática da aprendizagem
coloca o dedo na ferida mais comprometedora da sociedade, que é a pobreza
política, alimentada pela ignorância historicamente produzida. O inimigo maior da
autonomia é a inconsciência da dependência externa, que permite a condição de
massa de manobra. Esta é a indignidade histórica mais arrasadora, porque elimina o
sujeito, deixando em seu lugar objeto da manipulação alheia. O excluído precisa
saber pensar sua própria história, para refazer-se como sujeito de suas soluções
possíveis. Aprender é, no seu âmago, saber fazer-se sujeito de história própria,
individual e coletiva.
A gestação da autonomia, por sua vez, representa sempre fenômeno de extrema
complexidade dialética, exigindo capacidade entranhadamente flexível de trabalhar
bem limites e desafios. Será mister trabalhar os limites como desafios, para
buscarmos sempre
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superá-los, bem como trabalhar os desafios como limites, para termos consciência
crítica, sobretudo autocrítica, de que nenhuma autonomia é ilimitada. Se esta assim
fosse, já seria prepotência, como a liberdade que se faz às custas da liberdade
alheia. De uma parte, o ser humano não se torna autônomo sem depender dos
outros. De outra, precisa livrar-se desta dependência. Mais que problema ou
disjuntiva, está dialética aponta para a necessidade de saber negociar no contexto
da unidade de contrários. A tendência de os apoios virarem cobrança de submissão
é flagrante, eclodindo em formas de cidadania tutelada ou assistida. Por outro lado,
a autonomia duramente conquistada pode facilmente virar prepotência, quando se a
quer contra tudo e contra todos. No fundo, vibra a dinâmica contraditória do poder,
que divide facilmente os dois lados complementares e excludentes: o olhar de cima
seleciona na paisagem a necessidade de manutenção da situação, procurando
entender privilégios como mérito historicamente alcançado; já o olhar de baixo se
fixa na necessidade de mudança, interpretando todo privilégio como usurpação. Este
não se basta com autonomia concedida, dentro da tática de ceder para manter as
rédeas. Busca a autonomia radical, porque pretende autodeterminar-se. Entretanto,
se chegar um dia ao poder, facilmente envolve-se na trama do olhar de cima. Por
isto diz-se que o revolucionário de hoje será o reacionário de amanhã, desde que
chegue ao poder.
Esta dialética torna o discurso sobre solidariedade também extremamente complexo
e dúbio, a começar pelo fato de que geralmente é discurso dos dominantes.
Enquanto pregam a solidariedade para os dominados, estes querem distância.
Precisam estritamente da distância, do confronto. Os excluídos precisam ser
solidários entre si, mas agressivos com os outros. Por isso, a construção da
autonomia solidária pode ser vista como um dos desafios mais ingentes da
aprendizagem reconstrutiva política, pois precisa unir propósitos contrários, para que
a autonomia não degenere em renovada imposição, nem a solidariedade em
enganosa submissão. Trata-se, por isso mesmo, da arte fina de negociar limites e
desafios, ou das histórias possíveis dentro de estruturas dadas. Porquanto fazendo
parte do conceito de autonomia saber impor-se, facilmente se torna agressiva e
prepotente, até mesmo por temor de reincidir na situação de massa de manobra.
Todavia, também fazendo parte do conceito de solidariedade saber ceder, colocar a
harmonia comum acima dos interesses pessoais, preferir
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as convergências coletivas, pode-se muito facilmente entrar em processo de
concessões que desfiguram já a história própria.
Saber aprender apontaria precisamente para esta engenharia sutil, profunda e
comprometedora, para atinar até onde vão os limites e até onde devem prevalecer
os desafios. Saber ceder pode ser, em muitas circunstâncias, admirável sabedoria,
prova profunda de autonomia, bom senso convincente, como pode ser também
capitulação. Este senso pelo que é de menos ou demais, dentro de limites
essencialmente fluidos e emaranhados, poderia representar a qualidade mais
profunda da aprendizagem, assinalando a capacidade desafiadora de ser sujeito
com outros sujeitos, não contra necessariamente. Entretanto, ser contra também é
essencial, porque sem isto nada aprenderíamos de novo e inovador. Esta mesma
contradição aparece no movimento crítico: é essencialmente negativo,
desconstrutivo e aí está sua importância para processos de inovação e
aprendizagem. Mas facilmente ofende, desagrega, perdendo o sentido social da
crítica. O professor tem esta tarefa fina e sibilina de mostrar que a crítica é
necessária para aprender com autonomia, mas que a aprendizagem deve também
incluir a convivência comum como bem maior. Pois, mais decisivo que inovar é
humanizar a inovação. Assim, autonomia é o que enobrece o ser humano
emancipado, mas também é o início de todas as desavenças. A liberdade não pode
ser imposta, mas negociada em sociedade. Saber aprender indica esta habilidade
de rara maleabilidade, que ora precisa ser intransigente para marcar presença, ora
transigente para conviver.
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Em branco
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5
SABER CUIDAR
Desde que Boff lançou esta ideia (25), tornou-se claro que saber cuidar é parte
intrínseca do saber pensar. A muitos poderá ocorrer que saber cuidar se restrinja a
“cuidar”, sobretudo em sentido assistencial e já assistencialista. A outros, saber
cuidar revela quase que apenas o sentido ecológico do desenvolvimento. Entretanto,
creio que na “arqueologia” do saber cuidar está a visão de que o conhecimento não
implica somente a capacidade de compreender, devassar e interferir na realidade,
mas igualmente a de conviver com ela, tomá-la como parâmetro da sobrevivência,
reconhecê-la como maior que nós. Até hoje, na história do conhecimento
colonizador ocidental e em particular no contexto do capitalismo, conhecer é
sobretudo agredir, impor-se, submeter, inclusive com respeito à natureza, que está
sendo literalmente depredada. Estamos, assim, construindo um tipo de emancipação
que retira o tapete por baixo dos próprios pés, porque implica tamanha destruição —
da sociedade e da natureza — que não sobrará nada para ninguém. Trata-se
daquela vitória em que o vitorioso é o principal derrotado. Fantástica contradição
performativa, porque estamos diante de emancipação que nega aos
Início de nota de rodapé
25- BOFF, L. 1999. Saber cuidar — Ética do humano — compaixão pela terra.
Petrópolis, Vozes.
Fim de nota de rodapé
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outros o mesmo direito, ou de emancipado que precisa de subalternos para realizar
seus projetos (26).
Saber cuidar vai além de ser questão de sensibilidade o que sempre é em pleno
sentido — para atingir também o espaço epistemológico do saber pensar. Faz parte
da inteligência humana, tomando-se categoria lógica como é a própria lógica. Não
percebíamos isso porque estávamos habituados a olhar a natureza como reis ou
exploradores incontidos, tendo essa atitude se agravado muito com o progresso da
ciência de estilo ocidental, sem falar, em seguida, no envolvimento capitalista.
Sendo o mercado liberal a categoria fundamental da sociedade e o lucro privado seu
móvel central, não existem peias para tal voracidade: depreda-se tudo, sociedade e
natureza. Tal atitude não implica apenas miopia, descuido, desfaçatez, mas
igualmente falta de lógica, além de falta de ética, como bem aponta Boff Voltamos a
tema pós-modemo de rara profundidade, que assinala não ser possível tratar, em
ciência, qualquer coisa como objeto, nem mesmo a realidade material. Desde que
aceitemos a tese de que somos parte da realidade e que a realidade humana é
apenas relativamente diferente (questão de grau, não de essência), quando
estudamos a realidade, de certa maneira, estudamos a nós mesmos, como somos,
como funcionamos, nossas entranhas e desejos. Esta tese era reconhecida, pelo
menos em parte, nas ciências humanas, em que a coincidência entre sujeito e objeto
parecia mais clara. Weber inventou a “sociologia compreensiva” para sinalizar que
em sociologia seu pano de fundo hermenêutico se sobrepõe à análise fria,
provocando envolvência natural com o objeto. Mesmo assim defendeu a
neutralidade científica, por razões de método e que hoje subsiste apenas como
intento de “objetivação”, ou seja, é importante analisar a realidade de maneira
sistemática, meticulosa, metódica, para que ela possa ser apanhada da maneira
mais “objetiva possível”, embora isto nunca ocorra. Trata-se de ideal ou de utopia
científica. Durkheim, por isso, recomendava tratar os fatos sociais como “coisa”, para
que a imisção ideológica pudesse ser controlada. Permanece nestas concepções
um visível positivismo reducionista, cada vez mais criticado, entre outras
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26- ALTVATER, E. 1995. O preço da riqueza. São Paulo, Ed. UNESP. FERREERA,
L. D. & VIOLA, E. (orgs.). 1996. incertezas de Sustentabilidade na Globalização.
Campinas, Ed. Unicamp. VIOLA, E. J. et alii. 1998. Meio ambiente, desenvolvimento
e cidadania: Desafios para as ciências sociais. São Paulo, Cortez.
Fim de nota de rodapé
Página 57
coisas, porque não tem consciência da necessidade de “saber cuidar” do objeto,
que, na verdade, não é mero objeto.
Uma das críticas mais lúcidas é feita por Harding, ao mostrar o fundo cultural do
conhecimento (27) e colocar em xeque a epistemologia internalista que atribui os
êxitos da ciência à ordem da natureza e aos métodos pretensamente objetivos,
agudamente demarcados frente a outros métodos para obter conhecimento. Não se
trata, por outro lado, de incidir no extremo oposto de certo construtivismo que já
imagina “inventar” a realidade. Estudos pós-coloniais e tecnológicos mostram a
integração da ciência europeia nas relações econômicas e políticas globais da
Europa, levando em conta também outras práticas científicas não europeias.
Mostram, ademais, que apreciamos as modernas ciências por razões equivocadas:
“Não é sua habilidade de imunizar seus relatos da ordem da natureza contra todos
os elementos culturais na sua montagem e uso contínuo que foi responsável por
seus grandes êxitos, como se assumiu. Antes, é a habilidade de neutralizar alguns
desses elementos culturais, enquanto explorava outros plenamente, que foi
responsável tanto por seus sucessos, quanto por seus fracassos” (Harding, 1998: 7).
Ao final das contas, os excluídos sempre tiveram poucos benefícios e muitos
malefícios da ciência europeia. O conhecimento científico é in- separável das
tecnologias de sua produção, estas detêm precondições sociais e políticas e
oferecem esquemas para subsequentes inovações tecnológicas, dentro daquilo que
os pós-modernos chamam de “metanarrativas circulares”. Torna-se importante a
stand- point epistemology, caracterizada pela sensibilidade de colocar-se no lugar do
objeto para ver a realidade de seu ponto de vista. Porquanto olhar os marginalizados
a partir dos marginalizados é postura “mais objetiva” do que o contrário. “Para quem
já se apropriou da natureza e tem acesso a ela, para quem tem capital e
conhecimento para decidir precisamente como podem melhor acessar os recursos
naturais e como tais recursos serão usados — estas são as pessoas a quem serão
garantidos vastamente os benefícios da transformação contemporânea científica e
tecnológica. A maioria dessas pessoas, no Norte e no Sul, e especialmente as
mulheres em cada cultura pelo mundo afora, têm muito pouco
Início de nota de rodapé
27- HARDING, S. 1998. Is science multicultural? Postcolonialisms, feminisms, and
epistemologies. Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press.
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Desses recursos. Não compartem da natureza; não possuem recursos para acessar
suas energias e poderes; e sistematicamente se lhes nega acesso ao conhecimento
de como ganhar acesso a tais partes da natureza ou a recursos técnicos” (Harding,
1998: 21-22). Mais ciência e tecnologia apenas favorece só aos favorecidos.
Transformações científicas e tecnológicas desempenham papel central nos
processos de avanço e bloqueio da democratização global.
A ciência foi a vanguarda do colonialismo, e é hoje a base central, senão a mais
decisiva, da globalização discriminatória que vivemos atualmente. Como sempre
ocorreu, fazemos a destruição de outras culturas científicas concorrentes e
produzimos o “des-desenvolvimento”, podendo-se realçar pelo menos seis modos:
extração de matéria-prima, exploração de mão-de-obra, usurpação de conhecimento
científico e tecnológico local, destruição de indústria e comércio local, dizimação das
populações locais, desvalorização das culturas locais. Em vista disso, o Terceiro
Mundo apenas se moderniza, não se desenvolve. Não houve milagre europeu, mas
estratégia capitalista e científica de ocupação dos espaços e imposição de modelo
tendencialmente único civilizatório. Ao lado do conhecimento, aparece, na contraluz,
a produção de ignorância sistemática, em particular pela pregação da neutralidade
nunca neutra. Elevando o tom da voz, Harding diz que, por exemplo, a América não
foi conquistada, foi infectada, aludindo ao fato grotesco de que grande parte da
população nativa original morreu de doenças contagiosas trazidas pelos europeus.
Entretanto, a ciência europeia se impôs, a partir do século 17, embora antes, como
mostra bem Collins, tenham existido outras culturas científicas de grande porte na
Ásia, sem falar na antiga tradição grega (28). Hoje vivemos na “sociedade do
conhecimento”, tendo como motor principal um mercado liberal intensivo de
conhecimento, no qual ciência e tecnologia não são apenas importantes: são sua
dinâmica central. Estamos deixando a época da “mais-valia absoluta”, caracterizada
pela exploração extensiva da mão-de-obra, ou seja, pela espoliação sobretudo da
força física do trabalhador, visualizada em dias de trabalho extremamente longos e
cansativos. A era da “mais-valia relativa” está se
Início de nota de rodapé
28- COLLINS, R. 1998. The sociology of philosophies A global theory of intellectual
change. Cambridge, Massachusetts, The Belknap Press of Harvard University Press.
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sedimentando, marcada pela exploração da inteligência do trabalhador. Pode-se
reduzir o dia ou a semana de trabalho, sem prejuízo da produtividade. Como bem
argumenta Kurz, tais mudanças não redimem o capitalismo, porque continua, no
fundo, a mesma lógica abstrata da mercadoria, através da qual o valor de troca se
sobrepõe ao valor de uso, chegando a ponto de transformar o trabalho em
mercadoria (29). Pleno emprego, que somente existiu ou existe localizadamente,
não pode mais ser esperado, porque a introdução intensiva de conhecimento nos
processos produtivos reduz a necessidade de mão-de-obra. Abandona-se o
emprego estável e entra em seu lugar o emprego precário, reforçando a marca
perversa de sistema que tem como fulcro o lucro privatizado, não o ser humano e
muito menos a natureza como tal. Temos condições cada vez mais aprimoradas de
produzir mais e melhor, mas isto não se reverte em benefício coletivo. Ao contrário,
a globalização, em vez de acenar para uma época de encontros positivos de
culturas e civilizações, sinaliza clivagens novas e tanto mais duras, porque, no
fundo, o que se globaliza é a presença cada vez mais avassaladora dos Estados
Unidos no mundo. Este país é a imagem mais típica da sociedade do conhecimento
e talvez por isso mesmo tenha se mantido, até o momento, mais imune às crises
atuais da economia (30). Quando o conhecimento dorme na mesma cama do
capitalismo, o adultério é flagrante.
A crise do emprego tem levado a salientar o papel da educação, porque na mais-
valia relativa é fundamental saber pensar. Entretanto, este saber pensar tem uma
perna só, a formal. Espera-se do trabalhador que maneje conhecimento com perícia
para fins de produtividade, porquanto esta assim exige, sobretudo quando plantada
em processos informatizados. A qualidade total foi porta-voz fidedigna desta
unilateralidade. Enquanto falava,
Início de nota de rodapé
29- KURZ, R. 1996. O colapso da modernização — Da derrocada do socialismo de
caserna crise da economia mundial. Rio de Janeiro, Paz e Terra. KURZ, R. 1997. Os
últimos combates. Petrópolis, Vozes. DEMO, P. 1998a. Charme da exclusão social.
Campinas, Autores Associados.
30- CASTELLS, M. 1997a. The power of identity — The information age: economy,
society and culture. VoI. 2. Oxford, Blackwell. CASTELLS, M. 1997b. The Rise of the
Network Society — The information age: Economy, society and culture. VoI. 1.
Oxford, Blackwell. CASTELLS, M. 1998. End of millenium — The inforrmation age:
economy, society and culture. VoI. 3. Malden (MA), Blackwell.
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pelos cotovelos, da valorização dos “recursos humanos”, o que fez foi elevar a
produtividade em benefício dos empresários e do sistema. No neoliberalismo, a
valorização quase uníssona que se faz de educação tem como razão de ser apenas
a competitividade. Temos aqui exemplo crasso do não saber cuidar: o
conhecimento, nascido do ser humano, não se volta para ele, mas submete-se ao
mercado, e depreda, com tranquilidade cínica, o ser humano e a natureza como tal.
A cidadania representa, no fundo, a voz peregrina dos educadores e de outras
pessoas e entidades que se afinam com posturas éticas, conclamando a
necessidade de qualidade política ao lado da formal.
Como afirma Harding, epistemologia e filosofia da ciência deveriam sempre ser
reconhecidas como tendo dimensões políticas. “As velhas teorias insistiram na
possibilidade e desejabilidade de ciência culturalmente neutra, que seria garantida
pelo seu método distintivo, exercida no contexto unicamente da justificação analítica,
produziria reflexão da ordem da natureza universalmente única válida e perfeita,
descoberta por comunidades de especialistas que poderiam ser isolados em seu
trabalho científico do fluxo social corrente em sua vida pública (e ‘privada’ ). Este
sonho de modelo de conhecimento único e perfeito perdeu-se para sempre sob a
mirada rigorosa das várias escolas da ciência pós-Segunda Guerra Mundial...”
(Harding, 1998: 124). Esta observação ganha em força, porque trabalha bem o pano
de fundo epistemológico da ciência. “Como os estudos de ciência e tecnologia das
últimas cinco décadas clarificaram, as observações estão carregadas de teoria;
nossas crenças formam rede de tal sorte que ninguém está em princípio imune de
revisão; e as teorias permanecem subdeterminadas por toda coleta possível de
evidência para elas. Há sempre muitas outras hipóteses adicionais possivelmente
plausíveis sobre qualquer assunto que ainda não foi proposto, ou que foi
considerado mas talvez prematuramente descartado, e por isso fica não testado em
qualquer momento na história da ciência. Alguma parte menor delas poderia
indubitavelmente compatibìlizar-se com os dados existentes tão bem quanto outros
favorecidos no presente. Ao final das contas, as ciências produzem novas teorias
continuamente. (...) Muitas teorias científicas podem ser consistentes com a ordem
da natureza, mas nenhuma delas consegue ser unicamente congruente...” (p. 126).
Nunca os seres humanos alcançam entender completamente o que estão fazendo,
porque estão enredados de modo circular nesse processo de compreensão.
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Embora a ciência moderna tenha se constituído como autoridade máxima do
Ocidente, precisa aprender a valorizar a “standpoint epistemology”, reconhecendo
outros recursos epistemológicos culturais e políticos. Parece óbvio que o
capitalismo, por exemplo, visto pelos trabalhadores provoca outro tipo de análise,
possivelmente mais objetivo, porque proveniente de quem é vítima do sistema, mais
do que parceiro ou dono. Vale o mesmo raciocínio para a natureza: do ponto de
vista dela, se assim se pudesse dizer, a expectativa seria de que não apenas se use
e abuse, mas igualmente se cuide. O conhecimento, pela sua verve desconstrutiva e
já obsessiva no mercado liberal competitivo, gasta, consome, depreda tudo, como se
tudo fosse inesgotável e privatizável.
Surgem gritos de alerta por todos os lados, alguns mais orientados pela ética, outros
pela sustentabilidade do desenvolvi- mento. E particularmente interessante a
“ecopedagogia” ou a “pedagogia da Terra”, de sentido planetário e sustentável,
como quer Gadotti, assinalando a importância — já por razões de sobrevivência
comum sobretudo — da solidariedade coletiva, e levando-se em conta a
necessidade de reduzir as desigualdades sociais, bem como de manejar
cuidadosamente os recursos naturais. A ciência precisa compor-se com o bem
comum, tomando a este como fulcro central, não apenas seus métodos
pretensamente neutros e principalmente sua submissão ao mercado neoliberal.
Parece claro que o argumento provém da urgência em termos imediatos, porque as
condições de vida se tornam insuportáveis para as maiorias, mas, no fundo,
aparecem outras características muito importantes da discussão pós-modema, tais
como: mudanças de paradigma pedagógico, incluindo na aprendizagem a formação
ética e humanista; revisão radical da ciência positivista reducionista, em nome da
razão sensível; redimensionamento do desenvolvi- mento como direito de todos;
valorização da cidadania como centro de educação, não o mercado neoliberal;
reconstituição do reencantamento pedagógico (31), e assim por diante. Em certa
medida, busca-se alternativa para a globalização competitiva que toma a relação de
mercado ainda mais acirrada, tentando pôr em seu lugar outra capaz de ver o todo e
a parte, a cultura planetária e localizada, o direito de todos e de cada um, a
comunicação total e as identidades multiculturais, as virtualidades onipresentes
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31- ASSMANN, H. 1998. Reencantar a educação — Rumo à sociedade aprendente.
Petrópolis, Vozes.
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e a presença do toque direto e terno (32). É fundamental redirecionar o sentido das
oportunidades, hoje afuniladas violentamente para o centro capitalista, para que
possam ser patrimônio comum, não só por razão de sobrevivência, mas mormente
por razão humana.
Neste mesmo espaço, cabe ressaltar também a arte como parte do saber pensar e
cuidar, não tanto para equipar as pessoas de habilidades clássicas ou nobres, mas
principalmente para abrir o horizonte da estética da vida. Tendo em vista que a
competividade instrumentaliza tudo a seu serviço e cristaliza pirâmide ainda mais
íngreme dos povos, será fundamental mostrar outras faces da realidade, sobretudo
aquela aparentemente “sem utilidade imediata”, como é o cultivo da arte. Não é tão
importante como diversão, alternativa, lazer, quanto é essencial como parte
integrante da propedêutica básica: como iniciação a forma de vida mais completa e
humana. E preciso, pois, aninhar a arte no saber pensar para lhe fazer parte
definitiva, não eventual, ocasional ou intermitente, como é o caso geralmente dos
currículos atuais. Ao lado de saber trabalhar, competir, produzir, é fundamental para
o ser humano saber expressar-se esteticamente, comunicar-se com elegância e
graça, dar asas à imaginação e às utopias, viver fantasias e desejos, ver o lado belo
das coisas, em nome da alternativa que alimenta nossa vontade imorredoura de
mudar. Em vez de entendermos a arte como vocação particular de teor supletivo e
algumas vezes suspeito, é mister recuperar a ideia de que a vida é, em seu centro,
arte. Depois, pode também ser ciência. Coisas tão fundamentais como a felicidade
não encontram eco maior na ciência, mas podem ser realçadas e realizadas pela
sensibilidade à flor da pele, capaz de emprestar ao ser humano dimensão muito
mais ampla e solidária. Ao mesmo tempo, a arte liga-se à cultura e, como patrimônio
histórico, guarda sempre o sentido profundo do cuidar em torno das identidades. A
ciência quer futuro sem passado, porque se orienta apenas pela inovação
desconstrutiva analítica, que a tudo decompõe e substitui. Arte e cultura são, em si
mesmas, provas definitivas da mudança, da capacidade de aprender, mas não se
descolam da história, do lugar, do contexto. Mal entendidas, podem puxar para trás,
mas, bem entendidas, iluminam o futuro e o mantêm humano.
Início de nota de rodapé
32- TORRES, C. A. 1 998. Democracy, education, and Multiculturalism —
Dilemmas (f citizenship in a global world. New York, Rowman & Littlefield
Publishers, lnc.
Fim de nota de rodapé
Página 63
6
SABER INOVAR
Saber pensar inclui certamente a capacidade de dar conta de sociedade marcada
por profundas inovações, provocadas sobretudo pela trajetória científica e
tecnológica da humanidade. Apressamos o ritmo do desenvolvimento nos últimos
tempos, chegando a tomar-se a velocidade das mudanças algo já obsessivo, como
diz Gleick (33). Esta marca mostra, de um lado, que podemos, cada vez mais,
monitorar a evolução, mas indica, de outro, que podemos ter tomado o bonde
errado, porque conhecimento sem sabedoria produz facilmente becos sem saída.
Passamos a inovar por inovar, sobretudo a inovar ao sabor do mercado competitivo.
Assim, o que nos trouxe a consciência crítica também nos embota, quando os
interesses privilegiados determinam o rumo das coisas. Não só somos candidatos
ao estresse, como sobretudo perdemos o ritmo humano de mudar, que, para ser
mais profundo, precisa ir mais devagar. Glaxton, em tom de brincadeira, chama a
atenção para o excesso de pressa na aprendizagem, e compara a lebre com a
tartaruga: esta anda devagar, faz as coisas com calma, vive muito e tem o sentido
da profundidade, enquanto a lebre anda depressa, salta por cima das coisas, em
nada se detém (34).
Início de nota de rodapé
33- GLEICK, J. 1999. Faster — The acceleration of iust about everything. New York,
Pantheon Books.
34- GLAXTON, G. 1999. Hare brain — Tortoise mind — Why intelligence increases
when you think less. N. Jersey, The Ecco Press, Hopewell.
Fim de nota de rodapé
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No subtítulo de seu livro está a ideia jocosa de que a inteligência aumenta se
pensarmos menos, para indicar que tudo tem seu ritmo próprio, não adiantando
nada imitar, por exemplo, a velocidade do computador. Nossa lentidão é o preço da
profundidade hermenêutica, da capacidade de estabelecer padrões complexos, de
errar e corrigir, de ver mais longe e fundo.
Confunde-nos a constatação constante de que instituições destinadas a promover a
inovação sejam tão reacionárias, como a escola e a universidade. Aplicam a força
desconstrutiva do conhecimento aos outros, mas jamais a si mesmas. Alimentam
contradições performativas homéricas, enquanto se vendem como reis da lógica.
Neste sentido, saber pensar significa manejar coerentemente a inovação,
começando pela capacidade própria de se inovar. Inovar implica inovar-se, por
coerência lógica mínima. Mas isto não basta, porque os meios não são os fins. E
mister sempre conclamar a ética dos fins: inovar para que e para quem? Estamos
diante de um mundo que vai mudar com velocidade cada vez maior. Basta observar
a perspectiva analisada por Kurzweil, que aponta para a época das “máquinas
espirituais”, prevendo inovações fantásticas até o término do próximo século (35). O
computador tomará conta de nossas vidas, e, tornando-se equipamento
microscópico, poderá ser implantado ou carregado conosco sem dificuldade,
resolvendo todos os problemas de in- formação, até mesmo de memória, uma vez
que consigamos “escanear” o cérebro. Esta avalanche passará sobre a escola e a
universidade e poderá mudar completamente a aprendizagem, ainda que estejamos
longe de resolver a questão da formação. De todos os modos, já estamos
convencidos de que o futuro da educação estará na teleducação, na qual a presença
virtual concorrerá com a presença física, sem que uma substitua a outra. Todos
terão o direito de aprender onde estiverem em qualquer tempo e lugar.
É interessante notar que ainda há vozes, mesmo nos Estados Unidos, contra tais
inovações, como é o caso de Stoll. Fixa-se na ingenuidade das promessas vazias do
culto da computação, também porque até hoje não teria ultrapassado a finalidade
Início de nota de rodapé
35- KURZWEIL, R. 1999. The age of spiritual machines — When computers exceed
human intelligence. New York, Viking.
Fim de nota de rodapé
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precípua de diversão para a maioria das pessoas (36). Pretende ser cético, não
cínico, pois percebe que esta inovação não tem volta. Há diferença total entre
acesso à informação e capacidade de interpretação, com base em pensamento
crítico. Ademais, computador não pode substituir bom professor, nem mesmo os
maus, porque estes deveriam ser substituídos por bons, não pelo computador. A
alegria da aprendizagem nada tem a ver com aprendizagem engraçada, como se
isto pudesse evitar a necessidade de saber pensar. O mau uso do computador leva
a ver ciência como caixa preta mágica, em vez do horizonte mais próprio do
pensamento crítico. “A tecnologia promete atalhos para graus mais elevados de
aprendizagem sem dor” (Stoll, 1999: 11). A ordem é fazer da aprendizagem coisa
divertida. Contudo, “a maior parte da aprendizagem não é divertida. Toma trabalho.
Disciplina. Engajamento, tanto do professor quanto do aluno. Responsabilidade —
tem de fazer sua tarefa de casa. Não há atalho para educação de qualidade. E a
recompensa não é surto de adrenalina, mas satisfação profunda, chegando
semanas, meses, anos depois” (p. 12). Computadores levam os jovens a distanciar-
se de ler, escrever e aprender. “Substituem reflexão e pensamento crítico por
respostas rápidas e ação instantânea. Pensar, porém, envolve originalidade,
concentração e intenção” (p. 13).
Stoll busca opor-se à ideia de transformar aprendizagem em divertimento, pois isto
denigre as coisas mais importantes que podemos fazer na vida: aprender e ensinar.
Barateia processo e produto: professores dedicados tentam divertir, estudantes
esperam aprender sem trabalhar, e a escola se torna jogo de computação.
Aprendizagem não gira em tomo de adquirir informação, maximizar eficiência,
divertimento. Gira em torno do desenvolvimento da capacidade humana. Para ele,
livros são sempre mais importantes que Internet. “Graças à eletrônica digital, os
estudantes obtêm respostas sem manipular conceitos: resolver problemas toma-se
apertar botões. Não é necessário compreender como formular quantidades
abstratas. Antes, vai-se diretamente de números para respostas. Calculadoras
oferecem respostas com mínimo de pensamento” (p. 75). Em particular, critica os
abusos da aprendizagem a distância, que tende a reduzir-se a proposta de
comercialização
Início de nota de rodapé
36- STOLL, C. 1999. High-tech heretic — Why computers don’t belong in the
classroon and other reflections by a computer contrarian. New York, Doubleday.
Fim de nota de rodapé
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da educação. Argumenta que a aprendizagem a distância é tecnologicamente
baseada, relegando a autêntica, presencial, social- mente baseada. Não é certo que
informação seja poder. Se assim fosse, o bibliotecário seria rei... Confunde-se
informação com conhecimento (que supõe estudo, ideias, experiência, maturidade,
julgamento, perspectiva e reflexão). Poder está mais ligado ao manejo de
habilidades sociais. Políticos têm poder e são conhecidos como mal informados. O
mundo da computação nas escolas nos impõe obsolescência planejada, em
particular contra o professor e em nome de sobrecarga inaudita de informação.
“Enquanto existe um golfo entre dados e informação, há vasto oceano entre
informação e conhecimento. O que abre os desejos em nossos cérebros não é
informação, mas ideias, invenções e inspiração. Conhecimento — não informação —
implica compreensão. E por trás do conhecimento está o que procuramos:
sabedoria. Triste- mente, nossa sociedade da informação valoriza dados mais que
experiência, maturidade, compaixão e esclarecimento” (StolI, 1999: 186).
“Fundamentalmente, máquinas de busca e software de indexação automatizada
procuram por palavras, não por conceitos. Não sabem nada sobre nuances da
linguagem e contexto” (p. 191). Por isso, a Internet representa “oceano de
mediocridade”.
Embora seja surpreendente ouvir crítica tão contundente a estas alturas do começo
de novo milênio, é mister não responder a extremo com extremo oposto. Na
verdade, o problema reside substancialmente no abuso da informática em educação,
donde decorrem inúmeras expectativas banalizadas, todas girando sobre o milagre
da informação multiplicada. Está certo Stoll quando vitupera esta credulidade,
porque informação não implica formação. Sacralizada abusivamente, escamoteia
formação. E o caso comum na inteligência artificial de confusão entre
processamento de dados ou manipulação mecânica de símbolos e aprendizagem. A
educação a distância facilmente confia mais na distância do que na educação,
utilizando abordagens instrucionais típicas. Entretanto, tudo isto não muda a
tendência histórica já avassaladora: o futuro da educação está na teleducação. A
virtualidade dos processos vai se impor definitivamente, também porque a presença
virtual é um tipo de presença, não de ausência. Uma não substitui a outra, nem uma
precisa ser mais ou menos emocional que a outra. Namoros virtuais podem ser tão
obsessivos como os físicos. A virtualidade facilita um tipo de presença a distância
que antes pareceria impossível. Para aprender bem não é necessário estar
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na frente do professor, porque o processo reconstrutivo carece de pesquisa e
elaboração própria, sob orientação sempre cuidadosa do professor, e isto pode ser
realizado virtualmente. Disso não resulta que a pedagogia possa prescindir da
presença física ou que esta seja necessariamente superior à virtual, e, sim, que
ambas fazem parte do mundo educativo daqui para a frente. Pensando bem, sempre
foi assim: quando nossos ancestrais deixavam nas cavernas seus desenhos, faziam
comunicação virtual e estão presentes em nós até hoje. Nova é apenas a
concorrência que a presença virtual pode fazer atualmente com a presença física.
Mas há, por outro lado, suas vantagens, a começar pela possibilidade de estudar a
distância. Não será mais o caso de exigir que as pessoas, para poderem avançar
em suas trajetórias educacionais, tenham que abandonar sua cidade, desorganizar
sua família, perder o emprego, mudar de vida. O direito de aprender será
reconhecido como direito humano fundamental, em qualquer tempo e lugar. Outra
vantagem é o acesso à informação, que parece estar já resolvido. Isto, todavia, não
pode impedir a crítica contra o excesso de informação e, sobretudo, contra a
confusão bisonha entre informação e formação. Embora a eletrônica possa esconder
uma tendência homogeneizante, exacerbada pelos monopólios do mercado, permite
também tratamentos mais individualizados, substituindo-se, entre outras coisas, as
aulas tradicionais reprodutivas. Stoll por vezes deixa transparecer atitude
tradicionalista, quando, por exemplo, valoriza mais texto que imagem ou quando
teme a substituição de professores. Esta resistência já faz pouco sentido, primeiro,
porque é possível trabalhar o pensamento crítico através da imagem, como fazem
os grandes filmes, e, segundo, será substituído o mau professor, aquele que apenas
dá aula. Com efeito, professor que apenas reproduz conhecimento disponível é peça
de museu. O outro, todavia, com a função de orientar, avaliar, motivar o aluno,
continua tão essencial quanto sempre foi. Não há computador que o possa
substituir.
Embora Stoll critique Tapscott, acusando-o de vender clichês vazios, parece que
este aponta para inovações fundamentais no campo da aprendizagem, que vão se
afastar cada vez mais do instrucionismo. A geração digital poderá ser a responsável
por mudanças centrais na escola e na universidade, porque, tendo toda a
informação já nas mãos, exige os passos seguintes mais
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substanciais da aprendizagem: pesquisa, elaboração própria, trabalho em rede,
flexibilidade de horário e lugar. Por vezes, penso que Tapscott exagera nesta
expectativa, porque não é tão comum assim que esta juventude queira tanto estudar
(37). Todavia, sinaliza tendência fundamental e que vai aparecendo também na
educação a distância em autores que percebem ser urgente ultrapassar propostas
meramente instrucionais, como é o caso de PalIoff e Pratt, com suas ideias em tomo
da construção de comunidades aprendentes (38). “Computer mediated distance
learning” (aprendizagem a distância mediada pelo computador) exige a presença do
professor orientador, supera a sala de aula (mas não para fazer a mesma coisa) e
conta com participação ativa dos alunos. Definem esta teleducação pelos seguintes
tópicos: a) separação do professor e do aluno durante pelo menos a maioria do
processo instrucional; b) uso da mídia educacional para unir professor e aluno e
para trabalhar o conteúdo do curso; c) provisão de comunicação de duplo caminho
entre professor, tutor ou agência educacional e o aluno; d) separação do professor e
do aluno no espaço e no tempo; e) controle deliberado da aprendizagem pelos
estudantes, mais do que pelo orientador a distância. Já não existe perito que
direciona o saber a partir de um lado apenas: “Ponto chave para o processo de
aprendizagem são as interações entre os próprios estudantes, as interações entre
faculdade e estudantes e a colaboração na aprendizagem que resulta de tais
interações. Em outras palavras, a formação da comunidade de aprendizagem
através da qual o conhecimento é partilhado e o significado é cocriado constitui a
base para os resultados exitosos da aprendizagem” (Palloff & Pratt, 1999: 5).
É certamente difícil evitar o fascínio do mundo tecnológico, como bem aponta
Naisbitt39, e isto é patente também em Pallof e Pratt, que, diga-se de passagem,
ainda usam, por vezes, terminologia obsoleta, ligada, por exemplo, à aquisição do
conhecimento e ao instrutor. Naisbitt reconhece a intoxicação tecnologica
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37- TAPSCOTT, D. 1998. Growing up digital — The rise of the net generation. New
York, McGraw-Hill.
38- PALLOFF, R. M. & PRATT, K. 1999. Building learning communities in
cyberspace — Effective .strategies for the online classroom. San Francisco, Jossy-
Bass Publishers.
39- NAISBITT, J. 1999. High tech, high touch — Technology an our search for
meaning. New York, Broadway Books.
Fim de nota de rodapé
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nos Estados Unidos, que leva, entre outras coisas, a deixar de lado as
consequências da tecnologia. A maioria estaria “reconhecendo e publicamente
aceitando que, no melhor dos casos, a tecnologia apoia e melhora a vida humana, e
admoestando que, no pior dos casos, aliena, isola, distorce e destrói”, dando a
entender que já não se tem alternativa. O melhor que se pode fazer é “cuidar do
poder da tecnologia do que rejeitar (como fazem os assim ditos tecnófobos), ou
cegamente abraçar (como fazem os assim ditos tecnófilos”) (Naisbitt, 1999: 4). Os
sintomas da intoxicação seriam: a) favorecemos o que é rápido, desde religião até
nutrição; b) tememos e adoramos a tecnologia; c) embaralhamos a distinção entre o
real e o imaginário; d) aceitamos a violência como normal; e) amamos a tecnologia
como brinquedo; f) vivemos nossas vidas distanciados e distraídos.
Quanto ao primeiro sintoma, nos curvamos ao que é rápido, da religião à nutrição. A
América está ficando mais religiosa e mística. “Ironicamente, a tecnologia promete
nos desintoxicar — desde as cadeiras de massagem até os sons enlatados da
natureza — enquanto intoxica; as propagandas estão abarrotadas com promessas
da tecnologia para simplificar nossas vidas complexas, aliviar o estresse e acalmar
nossos nervos” (p. 7). Com respeito ao segundo sintoma, tememos e adoramos a
tecnologia, dentro de debate fortemente polarizado e por vezes extremista, tal qual
seria a visão da Internet como salvação de tudo, segundo Negroponte, de um lado,
e, do outro, dos que são contra, aludindo que tecnologia está fazendo lavagem
cerebral nas crianças (brain training). Entre outros, Rijkin chama a atenção para não
deixar o gênio biotecnológico sair da garrafa. O terceiro sintoma indica que
embaralhamos a distinção entre o real e o imaginário: “O número um da diversão na
América é hoje a mídia, e o número um do gênero é a violência”. é certamente muito
preocupante que sobretudo crianças vivam brincando com o fogo literalmente, ao
manejarem jogos que exploram a violência, em si imaginária — como nos faroestes
onde todos atiram, se matam, ninguém morre e o galã acaba sempre vencendo —,
mas que pode facilmente passar para a vida real. Quanto ao quarto sintoma,
aceitamos a violência como normal, destacando a combinação de tecnologia militar
com brinquedos. O quinto sintoma reflete que amamos a tecnologia como brinquedo:
“A afluência financia o jogo; os americanos recentemente listaram divertir-se como
sua mais alta prioridade, seguido de perder peso e organizar-se”
Página 70
(Naisbitt, 1999: 16). Destaca-se a similaridade entre a indústria do brinquedo e a
eletrônica, um pacto que parece definitivo. O sexto sintoma anota que vivemos
nossas vidas distanciados e distraídos, aparecendo como exemplos mais nítidos a
Internet e o telefone celular. “As campainhas e assobios da tecnologia são
sedutores, mas não temos plena consciência de como nos distanciam e nos
distraem de nossas próprias vidas; poucos de nós pararam para perguntar o que os
telefones celulares, jogos eletrônicos, televisão ou câmeras acrescentam para ou
detratam a qualidade de vida de nossa experiência humana” (p. 21). Este
embevecimento tem por conseqüência nos submeter ainda mais a tais
circunstâncias.
A partir dessa análise, Naisbitt busca a alternativa do “high touch” (alto toque). “Por
causa do passo intromissor da mudança tecnológica, alta tecnologia e alto toque são
mais cruciais hoje do que no início dos 80, quando se introduziu isto nas
“Megatendências” (p. 23). Pretende captar esta evolução na própria variação na
definição de tecnologia: no fim dos 60 — tecnologia era objeto, coisa; no fim dos 80
era também algo relacionado com a vida, a sociedade e o ambiente. De um lado,
temos a “high tech”, sinalizando avanços futuros, inovações, progresso, mas
decaindo em controle. De outro, conclama o “high touch”, para recuperar o humano
da vida humana, abraçando as forças primevas da vida e da morte, reconhecendo
tudo que é maior que nós. High Tech — High Touch são tomados como “lente
humana. Abraçam a tecnologia que preserva nosso jeito de ser humano e rejeitam a
tecnologia que se intromete em nós. Reconhecem que a tecnologia é parte integral
da evolução da cultura, o produto criativo de nossa imaginação, sonhos e aspirações
— e que o desejo de criar novas tecnologias é fundamentalmente instintivo” (p. 26).
O autor atribui importância especial ao complexo militar, primeiro, porque representa
avanços tecnológicos impressionantes, e, segundo, porque normaliza a violência e a
superioridade. “Na América, as crianças estão sendo levadas para a guerra por volta
dos sete anos de idade” (p. 65). E isto permite dizer que a América está
entrincheirada em cultura da violência (p. 66). Cultura da violência significa que
“vivemos em cultura eletrônica que negamos ser real e cremos ser divertimento” (p.
83). “Se a televisão é o terceiro pai, então o computador poderá ser o quarto” (p. 88).
“Perda de senso (desensitization) pela violência e aceitação cultural do imaginário
violento está fazendo difícil para as pessoas reconhecer perigo real” (p. 90). Ocorre,
com
Página 71
isso, fenômeno sociobiológico que chama de “compassion fatigue” (fadiga da
compaixão). A mescla atordoante de guerra e televisão produz a síndrome de querer
se tornar célebre por quinze minutos, aprontando algum tiroteio mortal. A sociedade
se sobressalta perante a selvageria, e aí aparece o jogo de empurra sobre quem é
culpado. Para Clinton são os pais, sem perceber que o problema mais básico é da
própria sociedade e de suas indústrias de diversão, que teriam que ser diretamente
responsabilizadas. A Associação Médica Americana já recomenda: “a) não use TV,
rádio, jogos eletrônicos, jogos de computador e vídeos como baby-sitters; b)
mantenha longe da cama das crianças TV e jogos eletrônicos e os desligue durante
as refeições; c) ensine as crianças sobre propaganda e influência da mídia; d)
imponha diretrizes sobre o que é apropriado ver ou não; e) dê o bom exemplo
limitando seu próprio uso da mídia e advogando publicamente por programas mais
sadios para crianças” (Naisbitt, 1999: 101). Corresponde às escolas, por sua vez,
trabalhar adequadamente a alfabetização pela mídia, entendendo-se aí não só o uso
da mídia para suporte educativo, mas sobretudo a necessária educação para
manejá-la pedagogicamente.
No vasto campo das tecnologias, o Autor destaca os avanços na esfera da genética,
indicando três saltos imponentes nos últimos tempos: de Galileu para Darwin e deste
para o DNA. “O mapeamento e sequenciamento do DNA e as tecnologias que este
conhecimento propicia alterarão permanentemente nossa compreensão do próprio
homem”. De uma parte, “as tecnologias genéticas estão apresentando talvez o maior
desafio para as fés religiosas tradicionais” (p. 115), enquanto, por outra parte,
“superarão todas as outras tecnologias, incluindo tecnologias da informação, no
próximo século” (p. 1 17). Para não ficarmos apenas na defensiva ou na euforia,
urge fomentar debate público, pois a sabedoria está no diálogo aberto. As
esperanças de terapia genética podem ser suplantadas por desatinos já muito
conhecidos na história. Citam os riscos da euforia, a exemplo de um seminário
recente: “Aparecendo como painel perante auditório repleto no campus da UCLA
(40) na primavera de 1998, oito prestigiosos cientistas e dois especialistas em
bioética anunciaram ao mundo que em duas ou três décadas, a humanidade teria o
poder de dirigir sua própria
Início de nota de rodapé
40- UCLA: Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
Fim de nota de rodapé
Página 72
Evolução”. “Estamos falando de intervenção no fluxo da informação genética de uma
geração para a próxima. Estamos falando sobre a relação de seres humanos com
sua herança genética”, anunciava Gregory Stock, um dos organizadores do fórum
(p. 123). O Autor alerta, porém, que Darwin tomou a evolução das mãos de Deus,
mas não a pôs nas mãos dos humanos. Inovar já não é novidade. Saber inovar,
entretanto, continua desafio mais novo que nunca.
Página 73
7
SABER ACREDITAR
Perante o racionalismo moderno, saber acreditar soa contraditório, porquanto
ciência mostraria a direção contrária da dúvida e do questionamento. Todavia, se
Iembrarmos que conhecimento científico é apenas olhar, por mais importante e
avassalador que seja hoje, há coisas na vida que precisamos cultivar para além
daquelas que caem sob a lupa metodológica da ciência. Não se trata aqui de
sustentar esoterismos ou de buscar originalidades forçadas, mas de abrir espaço
para a autocrítica científica, por pura questão de coerência. Um dos autores que
mais se interessam por este horizonte, mesmo chamando-se abertamente de cético
ou agnóstico, é Shermer, ao buscar entender por que tantas pessoas acreditam em
Deus, dentro do contexto de sociedade marcada pela secularização e pela
intensidade do conhecimento41. Nos Estados Unidos, 40% dos cientistas acreditam
em Deus e vida após a morte, sendo que a maioria das pesquisas mostram que
mais de 90% dos americanos acreditam em Deus.
A razão principal para crer em Deus ainda é o velho argumento cosmológico ou da
engenharia perfeita: Boa engenharia, beleza natural, perfeição e complexidade do
mundo ou universo
Início de nota de rodapé
41- SHERMER, M. 1999. How we believe — The search of God in an age of science.
New York, W. H. Freeman and Company.
Fim de nota de rodapé
Página 74
nos compelem a pensar que não poderia ter aparecido sem engenheiro inteligente.
Em outras palavras, as pessoas dizem que creem em Deus porque a evidência de
seus sentidos assim mostra. Ao contrário do que a maioria das religiões prega
acerca da necessidade e importância da fé, a maioria acredita com base em razão
(Shermer, 1999: XIV). Esta é tradição tipicamente ocidental: buscar apoios racionais
para a fé, ainda que, no fundo, o crente se apegue mesmo à fé. Frequentemente,
todavia, surge a dificuldade de estudantes aceitarem que o único propósito da
educação seja desenvolver mentes questionadoras, porque esperam também
respostas, por vezes sólidas respostas, ou certo direcionamento (p. 6). Percebem
que o questionamento científico é essencial para a metodologia da ciência, mas que
não dá conta de tudo na vida. Na vida também é mister saber acreditar. Um dos
espaços mais próximos em que esta necessidade aparece é o do engajamento
político e que as pesquisas sobre emoção facilmente apontam42. A pessoa
politicamente engajada deixa-se levar pela ideologia, mais do que por argumentos
racionais, porque o sentido de pertença e envolvimento lhe parece mais essencial.
Surge o fenômeno da entrega, tipicamente emocional, quando experimenta a
intensidade do fenômeno participativo em profundidade como algo que estaria além
do controle43. Tal entrega pode sempre indicar relativa ingenuidade — já que todo
movimento político, partido ou associação possuem inúmeros defeitos —, mas, sem
isto, ficaríamos com o pé atrás e acabaríamos sem participar plenamente. A
envolvência plena tende a ceder no questionamento, compensando-se na
intensidade participativa. Tal- vez ocorra isto na felicidade: não é possível ser felìz
em meìo a tantas atribulações da vida, se não formos algo ingênuos. Quem quer ver
tudo, questionar tudo, nunca chegará a tranquilizar-se. Neste sentido, seria possível
aventar que consciência crítica é essencial para a ciência, mas problemática para a
felicidade. Ciência é arte do solúvel, enquanto religião do insolúvel, e a política do
possível.
Shermer propõe postura agnóstica, distinguindo entre afirmação acerca do universo
e afirmação acerca de crenças pessoais:
Início de nota de rodapé
42- DAMASIO, A. 1999. The feeling of what happens Body and emotion in the
making of consciousness. New York, Harcourt Brace e Company.
43- KATZ, J. 1999. How emotions work. Chicago, The University of Chicago
Fim de nota de rodapé
Página 75
“Como afirmação acerca do universo, o agnosticismo pareceria ser a posição mais
racional a tomar por conta dos critérios da ciência e da razão, pelas quais Deus é
conceito incognoscível. Não podemos provar ou desaprovar a existência de Deus
através de evidência empírica ou prova dedutiva. Por isso, a partir de posição
científica ou filosófica, teísmo ou ateísmo são, ambos, posições indefensáveis como
afirmações acerca do universo” (Shermer, 1999: 8). Entretanto, agnosticismo é
apenas método, orientado por princípio racionalista: segue a razão e não aceita
nada como finalmente certo. “Não há nenhum experimento concebível que poderia
confirmar ou desconfirmar a existência de Deus”, pois “Deus é insolúvel” (p. 10). A
previsão feita no início do século 20 pelos cientistas sociais de que, com o advento
da educação pública universal e o surgimento da ciência e da tecnologia, a cultura
se tomaria secularizada e a religiosidade decairia dramaticamente, foi refutada
completamente, já que a religiosidade continua a aumentar no fim deste e para
dentro do próximo século. No mercado aberto de religiões, retorna sempre o papel
importante de suporte ou de seu lado compensatório. “A humanidade foi nascida
com duas doenças incuráveis: a vida que inevitavelmente morre, e a esperança que
sugere não poder ser a morte o fim” (p. 23). Por outro lado, a defesa intransigente da
ciência moderna — o cientificismo — não passa de espécie de fé secular ou religião
às avessas. “De fato, ciência é tipo de mito, se virmos mitos como estórias sobre nós
mesmos e nossas origens” (p. 29).
O Autor tenta buscar resposta biológica e evolucionária para o que chama de
“máquina de crer”. O ser humano é visto como “animal que cata padrões” na
natureza, como estratégia de controle de fenômenos dinâmicos que facilmente nos
escapam ao controle. Vamos atrás de regularidades do acontecer, das recorrências
que sempre voltam, daquilo que pode ser esperado, em nome da segurança que
pretendemos para nossas vidas. E descobrimos padrões que existem e outros que
não existem. Estes passam a fazer parte do pensamento mágico. Segundo o Autor,
metade dos americanos acredita em astrologia. Parece que, geneticamente falando,
“somos montados (hardwired) para pensar magicamente” (p. 35). Aproxima-se dos
psicólogos evolucionários: “A psicologia evolucionária está baseada no
reconhecimento de que o cérebro humano consiste de vasta coleção de
equipamentos computacionais funcionalmente especializados, que evoluiu para
resolver problemas
Página 76
adaptativos regularmente encontrados pelos nossos ancestrais
caçadores/coletadores. Porque os humanos compartilham arquitetura evoluída
universal, todos os indivíduos comuns desenvolvem conjunto distintivamente
humano de preferências, motivos, quadros conceituais referenciais participados,
programas de emoção, procedimentos raciocinantes voltados para conteúdos
específicos, e sistemas de interpretação especializada — programas que operam
por baixo da superfície da variabilidade cultural expressa, e cujos propósitos
constituem definição precisa da natureza humana (Shermer, 1999: 36). Segundo
Mithen, “o passo crítico na evolução da mente moderna foi a passagem de mente
projetada como canivete do exército suíço para outra dotada de fluidez cognitiva, de
tipo de mentalidade especializada para generalizada. Isto possibilitou às pessoas
projetar ferramentas complexas, criar arte e acreditar em ideologias religiosas.
Sobretudo, o potencial para outros tipos de pensamento que são críticos para o
mundo modemo pode ser depositado à porta da fluidez cognitiva”. Todavia, esta
máquina de crer tem dupla face: “sob certas condições leva ao pensamento mágico,
enquanto sob outras circunstâncias leva ao pensamento científico” (p. 37).
“Os humanos evoluíram para tomar-se criaturas treinadas em catar padrões.
Aqueles que foram os melhores em achar padrões deixaram para trás maior prole.
Somos seus descendentes. O problema de catar e achar padrões é conhecer quais
são significativos e quais não. Infelizmente, nossos cérebros não são sempre bons
para determinar a diferença. A razão é que descobrir padrão não significativo
usualmente não traz nenhum mal e pode até fazer algum bem reduzindo a
ansiedade em certos ambientes. Assim, fomos deixados com o legado de dois tipos
de pensar erros: Erro Tipo 1: acreditar em falsidade, e Erro Tipo 2: rejeitar verdade.
Em alguns casos, nenhum desses erros nos leva automaticamente a sermos mortos,
de modo que podemos viver com eles. E assim o fazemos, na base diária
testemunhada pelas pesquisas sobre estatísticas do pensamento mágico. A
máquina de crer é mecanismo evoluído para ajudar-nos a sobreviver, pois em
adição aos erros de Tipo 1 e 2, cometemos também o que poderíamos chamar
Lance Tipo 1- não acreditar em falsidade, e Lance Tipo 2: acreditar em verdade.
Parece razoável argumentar que o cérebro consiste de módulos, ao mesmo tempo,
específicos e genéricos, e que a máquina de crer é processador de domínio geral.
Com efeito, é dos mais gerais de todos os módulos, já
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que seu cerne é a base de toda aprendizagem. Afinal das contas, temos de acreditar
em algo sobre nosso ambiente, e tais crenças são aprendidas pela experiência. Mas
o processo de formar crenças é montado genericamente” (Shermer, 1999: 38).
Neste sentido, “se minha hipótese for correta — que os humanos desenvolveram
máquina de crer, cuja função é catar padrões e encontrar relações causais, e no
processo fazem erros no pensamento — então poderíamos encontrar evidência para
tal máquina em nossos antepassados, bem como em nós mesmos” (p. 39). Desde
logo, é importante para reduzir e controlar a ansiedade, bem como para a
necessidade de compreender e monitorar os ambientes físicos e sociais, ainda que
o pensamento use chão mágico e causal. “Catamos e achamos padrões porque
preferimos ver o mundo como ordenado, em vez de caótico, e é ordenado o
suficiente para que tal estratégia funcione. Ironicamente, pareceria que fomos
montados pela natureza para ver na natureza padrões de nossa montagem” (p.62).
Em pesquisas empíricas recentes sobre crença em Deus nos Estados Unidos,
Shermer visualiza alguns traços característicos, entre eles:
a) educação tem papel crucial na religiosidade (44) comparando duas
pesquisas, uma entre membros de sociedade de céticos, e outra mais geral, aparece
que no primeiro grupo só 18% acre- ditavam em Deus, enquanto no segundo, 64%;
neste a descrença caía de 70% para 25%;
b) a razão mais dada para a crença em Deus é sempre o argumento racional da
boa engenharia do universo; entretanto, quando se pergunta pelo motivo pelo qual
as outras pessoas acreditam em Deus, este argumento vai para último lugar e ocupa
o primeiro a alusão emocional do conforto espiritual;
c) tratando-se de meras tendências, pode-se dizer que os três preditores mais
fortes da religiosidade e crença em Deus seriam: estar sendo criado religiosamente,
gênero (mulher) e religiosidade dos pais; por outro lado, os três mais fortes
preditores de menor religiosidade e descrença em Deus seriam: educação, idade,
conflito com os pais;
d) em termos de personalidade, a crença em Deus se correlaciona mais
facilmente com postura convencional, conservadora,
44- Distingue entre religião — expressão institucional — e religiosidade —
necessidade básica humana.
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de tal sorte que seria possível notar correlação inversa entre personalidade aberta e
maior religiosidade;
e)analisando os dados, aparecem dois grupos de influência: racionais (engenharia
inteligente do universo, sem Deus não haveria moralidade, existência do mal e do
sofrimento, e explicações científicas) e emocionais (conforto, fé e busca de
significado para a vida); há forte correlação com gênero: “os homens tenderam a
justificar sua crença com razões racionais; mulheres tenderam a justificar sua crença
com razões emocionais” (Shermer, 1999: 83);
f)para o fato da inversão de atribuições, recorre a explicações psicológicas baseadas
no “viés nas atribuições” (p. 85): tratando com outras pessoas, por exemplo,
poderíamos atribuir nosso bom êxito ao trabalho duro e à inteligência, enquanto que
a fortuna de outra pessoa é atribuída à sorte ou circunstância (p. 85); “como animais
que catam padrões, o assunto da aparente boa engenharia do universo e a
percebida ação de inteligência superior nas contingências do dia-a-dia, é justificação
intelectual poderosa para a crença. Mas atribuímos as crenças religiosas de outras
pessoas a necessidades emocionais” (p. 86);
g) tendemos a procurar bases racionais para a fé: “por sermos seres racionais,
pensantes, a fé nunca parece suficiente para a maioria de nós. Queremos saber que
estamos certos e no mundo ocidental saber que algo é verdadeiro, é prová-lo
através da razão e da ciência, Iógica e empirismo. Assirn, os argumentos em favor
da existência de Deus e da origem e autoridade divina na religião judaico-cristã são
fundados na linguagem da ciência e da razão, e tem havido literalrnente dezenas de
milhares de livros escritos com esta verve” (p. 91).
Shermer rejeita todos os argumentos já anotados em favor da existência de Deus,
com base em sua postura cética: não é possível nem provar, nem desaprovar esta
alegação, porque foge aos instrumentos metodológicos da ciência. Por isso, admite
que “ciência e religião são, até ao presente, esferas vastamente separadas de
conhecimento, divididas por, antes de mais nada, diferença nas metodologias.
Ciência é processo de pesquisa voltado para construir corpo testável de
conhecimento constantemente aberto à rejeição ou confirmação; suas verdades são
provisórias, fluidas e mutantes. Religião é a afirmação de conjunto de crenças
voltado para providenciar moral e significado; suas verdades são finais, confirmadas
pela fé” (p. 123). Isto, entretanto, não pode ocultar a importância da religião na vida
das pessoas, sobretudo como
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recurso humanista e ético. Ademais, o ser humano é animal contador de histórias,
como traço genético. Tomamos os fatos da vida cotidiana e os tecemos como
narrativa, sobretudo para fazermos boa figura diante dos outros e interpretarmos a
realidade. A capacidade de interpretar é “provavelmente o mecanismo mais
surpreendente do ser humano” (Shermer, 1999: 143). Com isto buscamos a
“consiliência das induções” ou da “convergência da evidência”, como diria Wilson, ao
apontar as regras epigenéticas, que nada mais são que os algoritmos do
crescimento e diferenciação em termos evolucionários (45). “Religião é instituição
social que evoluiu como mecanismo integral da cultura humana para criar e
promover mitos, encorajar o altruísmo e o altruísmo recíproco, e para revelar o nível
de comprometimento para cooperar e manter relações recíprocas entre os membros
da comunidade” (p. 162). O ser humano tem propensões beligerantes
evolucionariamente claras, codificadas geralmente na ideia do “gene egoísta”, e a
religiosidade traria outras dimensões fundamentais da vida, que incluem também dar
conta de nossa contingência.
A visão da religiosidade por um cético será certamente cética. Mas é interessante o
senso de limite, o que mostra ceticismo equilibrado. Na década de 70, causou
grande impressão no mundo acadêmico a reação de Horkheimer, que, no fim da
vida, voltando ao judaísmo após uma vida toda descrente na Escola de Frankfurt,
proclamava que “política, sem teologia, seria puro negócio”. Seria impossível
discriminar em favor da ética apenas com base científica. Hoje isto parece mais
visível e mesmo cogente, diante dos riscos que a sociedade do conhecimento traz, a
par do progresso (46). Essa mesma ideia está contida na busca de Varela, por
exemplo, de combinar a ciência europeia com fundamentos da filosofia budista, com
o objetivo de alcançarmos visão mais integral da realidade e da vida (47). Ao mesmo
tempo, saber acreditar não precisa implicar
Início de nota de rodapé
45- WILSON, E. O. 1998. Consilience — The unity of knowledge. New York, Alfred
A. Knopf.
46- HORKHEIMER, M. 1971. Die Sehnsucht nach dem ganz Anderen. (Entrevista
com comentário de H. Gumnior). Stuttgar, Furche Verlag.
47- VARELA, F. J. et alii. 1997. The embodied mind — Cognitive science and human
experience. Massachusetts, The MIT Press, Cambridge. VARELA, F. (ed. e
narrador). 1999. Dormir, soñar, morir — Nuevas conversaciones con el Dalai Lama.
Santiago, Dolmen. VARELA, F. J. & HAYWARD, J. W. (ed.). 1999. Un puente para
dos Miradas — Conversaciones con el Dalai Lama sobre las ciencias de la mente.
Santiago, Dolmen.
Fim de nota de rodapé
Página 80
ignorância científica, porque, sendo o ser humano fenômeno marcado pela unidade
de contrários, não pode produzir visão linearmente lógica das coisas. Alguns
sentem-se mais próximos da religiosidade, como é o caso das mulheres, sempre
mais sensíveis, outros não, mas, no fundo, todos produzem algum “pensamento
mítico” ou coisa que o valha, para dar conta do que não podemos dar conta.
O mínimo que está consideração recomendaria é que saber questionar precisa
implicar o limite do questionamento. Quando se trata de ciência, questionamento
será a regra de ouro. Implacável. Toda crítica é negativa e vale exatamente por isso.
Não deixa pedra sobre pedra. Começa tudo de novo, e para derrubar de novo. Esta
é a sina das teorias e dos paradigmas. Na universidade, vivemos disso. Falando de
saber pensar, vem à mente sobretudo tal habilidade, geralmente muito ausente.
Mas, quando se trata da vida em sociedade, saber acreditar é componente não
menos essencial, porque faz parte do tecido social de confiança e solidariedade,
inclusive da própria linguagem que funciona sem suspeitas. Se fôssemos suspeitar
de tudo e de todos, buscando sempre segundas intenções, jamais teríamos as
primeiras. Viraria fofoca interminável. A contraprova parece clara: em ciência
também existem os paradigmas. Que são eles? Cristalizações sociais de teorias,
que passam a valer mais pela crença dos adeptos do que pelo questionamento.
Chegamos a novos paradigmas derrubando os velhos. Mas os novos, à medida que
valem certo tempo, pedem fidelidade, por vezes mais que competência. Este
percalço funciona também na religiosidade, quando crentes exigem liberdade
religiosa para defender que sua crença é a única verdadeira!
Nem com ciência resolvemos tudo, nem com religião. Ainda que seja muito difícil
compatibilizá-las, é prudente ficar com ambas. Cum grano salis (48). Como diz
Fernández—Armesto, temos, na era pós-modema, de conviver com incerteza e
pagar o preço por isso (49). A razão pode matar, mas, ocupando lugar intermédio
entre ceticismo e entusiasmo, ela mesma pode refazer os erros
Início de nota de rodapé
48- SHERMER, M. 1997, Why people believe weird things — Pseudoscience,
superstition, and other confusions of our time. New York, W. H. Freeman and
Company.
49- FERNÁNDEZ-ARMESTO, F. 1999. Truth — A history and a guide for the
perplexed. New York, St. Martins Press.
Fim de nota de rodapé
Página 81
que comete, se souber pensar. A convicção, de certa maneira, desapareceu. “A
retirada da verdade é uma das estórias altamente dramáticas, incontadas da
história” (p. 165). “No século 20 ocidental, a verdade foi exumada naquilo que chamo
de cemitério da certeza — uma civilização de confiança quebradiça, na qual foi difícil
assegurar-se de qualquer coisa. Incerteza foi parte de vasta contra-revolução
científica, que suplantou a imagem ordenada do universo herdada do passado e
substituída pela imagem com que vivemos hoje: caótica, contraditória, cheia de
eventos não observáveis, partículas intratáveis, causas intraçáveis e efeitos
imprevisíveis” (p. 181). Temos de conviver com certo relativismo, sem perder de
vista o que temos de universalmente comum e o que temos de particular. Aponta
para a grandeza de Habermas: “A busca da verdade é tarefa coletiva, que
aprendemos uns dos outros. Como estratégia para descobrir a verdade, é
questionável por ser vaga e lenta; como prescrição política, pode ser criticada por
endossar comunidades políticas bem intencionadas. Mas tem seus méritos que até
ao momento foram pouco apreciados: é humana, não dogmática, solidamente
enraizada na tradição, otimista e, com efeito, boa para o indivíduo que a pratica e a
sociedade que se beneficia dela” (p. 222). A razão falha, mas a própria razão,
sabendo pensar, pode redimir-se.
Na visão de Lear, a ciência se inclinaria a sobreviver melhor em ambiente de mente
aberta (open-minded), por conta também de sua tendência a dissolver as certezas e
limites (50). Chega a afirmar que o lado profissional das ciências as leva a construir
estrutura defensiva, porque demarca espaços e os protege, enquanto — no caso da
psicanálise e da filosofia — o espírito científico se orientaria pela ideia de desfazer
as defesas (51). A grande dúvida é se a ciência pode compreender seus limites, a
exemplo do próprio projeto emancipatório: “Quanto à autonomia, qualquer
Início de nota de rodapé
50- LEAR, J. 1998. Open minded — Working out the logic of the soul. Cambridge,
Massachusets, Harvard University Press.
51- “A psicanálise, dizia Freud, é profissão impossível. Também filosofia. Não é
metáfora ou tira da frase poeticamente paradoxal. E Literalmente verdadeira. E a
impossibilidade é finalmente questão de lógica. Pois, a própria ideia de profissão é a
de uma estrutura defensiva, e é parte da própria ideia de filosofia ou psicanálise de
serem atividades que desfazem tais defesas. E parte da lógica da psicanálise e da
filosofia que são formas de vida comprometidas em viver livremente — com verdade,
beleza, inveja e ódio, admiração, respeito e temor. A ideia de profissão da
psicanálise ou de profissão da filosofia é, assim, contradição nos termos” (p. 5).
Fim de nota de rodapé
Página 82
sistema ético que a valoriza colocará restrições em quem é permitido exercê-la.
Haverá sempre a questão se tais restrições seriam legítimas” (p. 189). O
conhecimento não reconhece limites, mas é tipicamente atividade limitada. Esta
própria postura indica que também a ciência “acredita” em si mesma, por vezes
demais (52).
Início de nota de rodapé
52- SHATTUCK, R. 1 996. Forbidden knowledge — From Prometeus to
pornography. New York, St. Martins Press. RESCHER, N. 1984. Die Grenzen der
Wissenschaft. Ditzingen, Reclaim
Fim de nota de rodapé
Página 83
SEGUNDA PARTE
RECONSTRUIR CIÊNCIA
Página 84
Esta segunda parte foi pensada como oferta mais operativa, sem ser receituário.
Imagino que seja útil discutir estratégias mais fundamentais de construir/reconstruir
conhecimento, em nível de iniciação preliminar. Tenho na cabeça que todos os
cursos, antes de pretenderem oferecer especialização profissional, deveriam
trabalhar com o aluno as bases do saber pensar, incluindo fazer ciência. Embora no
nível universitário já se possa ou deva esperar pesquisa como princípio científico,
vou acentuar aqui a ideia da pesquisa como princípio educativo, porquanto não
buscamos gestar pesquisadores profissionais, mas profissionais pesquisadores (53).
E essencial que os profissionais hoje, no mercado e sobretudo para a cidadania,
saibam manejar conhecimento com qualidade formal e política, peIa razão central de
que se trata da vantagem comparativa mais decisiva. É urgente superar nossas
tradições muito arraigadas da aula meramente expositiva, do estudo como simples
cópia de aulas e fichamento de textos, das provas como reprodução da reprodução.
O aluno precisa plantar sua autonomia ao sair para o mundo, tornando-se capaz de
proposta e história próprias. Em termos de mercado, isto parece urgente mais que
nunca: faltando emprego, é mister saber oferecer trabalho. Esta habilidade depende,
em primeiro Iugar, da propedêutica básica (54), além do domínio profissional. Mas,
enquanto este envelhece rapidamente, aquela se apresenta como procedimento de
renovação permanente. Entretanto, não será este o primeiro argumento, mas o da
cidadania: para dar conta da sociedade que temos, inventamos e por vezes
tememos, será de todo decisivo usar e produzir conhecimento que nos permita
permanecer sujeitos de nossos destinos e nos leve a arranjos mais solidários e
suportáveis, coletivamente falando.
Início de nota de rodapé
53- DEMO, P. 1999. Educar pela pesquisa. 4 ed. Campinas, Autores Associados.
54- DEMO, P. 1999. ABC — Iniciação à competência reconstrutiva do professor
disco. 2° ed. Campinas, Papirus.
Fim de nota de rodapé
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1
APRENDER
Apesar de todos os avanços teóricos e metodológicos no campo da aprendizagem,
estamos cercados, sobretudo em nossos ambientes latino-americanos, de propostas
tipicamente instrucionistas, nas quais cabe ao professor ensinar, dar aula, e ao
aluno escutar, tomar nota e fazer prova. A primeira grande batalha a ser vencida é
esta dicotomia artificial e no fundo prepotente entre professor e aluno, não porque
não exista diferença social entre eles, mas porque, em termos de aprendizagem,
ambos estão exatamente no mesmo barco. A diferença, neste caso, é que o
professor já é figura experimentada, muitas vezes avaliada e reconhecida em termos
de credenciamento, enquanto o aluno está começando sua caminhada. Mas,
estritamente falando, fazem a mesma coisa: aprender. O instrucionismo nega este
horizonte, porque, primeiro, inventar hierarquia distorcida num plano em que existem
apenas diferenças de estágio, e, segundo, porque condena o aluno a processo
flagrante de domesticação subaltema.
Torna-se premente assumir, definitivamente, que a melhor maneira de aprender não
é escutar aula, mas pesquisar e elaborar com mão própria, sob orientação do
professor. Não é mister combater a aula, mas esta mantém apenas a função de
promover pesquisa e elaboração própria. Mesmo em se tratando de alunos que
fazem curso à noite e já chegam cansados, aproveitam muito melhor seu tempo se
não permanecerem apenas receptivos tomando
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nota e fazendo prova. A maior parte de seu tempo teria de ser utilizada para
atividades tipicamente reconstrutivas, nas quais, sob orientação do professor,
constroem sua autonomia, manejam os métodos científicos e passam a lidar com
conteúdos com criatividade. Existe aqui um considerável imbróglio, composto de
muitas contradições e autodefesas, entre elas:
a)para quem não tem tempo para estudar ou não consegue comprar livros, a aula
não é substitutivo, de modo algum; tende a ser capitulação diante de severas
dificuldades, sempre em prejuízo para o aluno;
b)a aula como é usualmente entendida não passa de café requentado, sobretudo em
Iugares onde os “professores”, menos por falta de títulos do que por não saberem
estudar e aprender, repassam conhecimento já ultrapassado; acresce a isto que as
instituições, em particular as privadas, não se interessam em proporcionar condições
mínimas de aprendizagem, usando tais aulas como expediente de barateamento dos
cursos;
c) o professor aprecia a aula porque, como regra, não sabe fazer outra coisa no
curso; recorre a racionalizações homéricas para as salvar, procurando até mesmo
fundamento bíblico (professor viria de “professar”, como se fosse função profética),
escondendo gesto ordinário de autodefesa; a isto acresce o pacto de mediocridade
com os alunos que, por sua vez, preferem curso em que não tenham que esforçar-
se por aprender;
d)muitas instituições já percebem que são obsoletas em termos de aprendizagem,
até mesmo porque o mercado exige mais que reproduzir conhecimento
ultrapassado; disto, todavia, não retiram a conclusão em favor da inovação mais
profunda, preferindo “enfeitar” a aula;
e) a aula é expediente de informação, não propriamente de formação, sobretudo em
auditórios numerosos; há diferença total entre informar e formar, sem falar que
repassar informação ultrapassada sequer atende ao requisito de informar.
É interessante notar que as tentativas mais comuns de “inovar” a didática em sala de
aula vão até certo ponto, que é ponto certo: não mexer no formato instrucional. Por
exemplo, alguns professores percebem que é mister ler; mandam, então, os alunos
“ficharem” livros, reduzindo-se isto, quase sempre, a reproduzir pedaços
desconexos. Outros imaginam que é mister
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melhorar a aula: apelam para subterfúgios variados, eletrônicos, elétricos, sem
perceber que estão incensando defunto. Há quem também valorize o trabalho de
grupo, porque é importante saber trabalhar em equipe. Por conta disso, já fazem
tudo em grupo, até mesmo avaliação, evitando que os alunos leiam e elaborem
individualmente, como se o “coletivo” detivesse algum poder mágico de
aprendizagem em si.
Na verdade, evita-se “estudar”. Estudar significa dedicar-se a atividade sistemática
de estilo reconstrutivo, com base em constante elaboração própria, lendo autores
para nos tornarmos autores. No é absorver passivamente conhecimento alheio,
muito menos “colar”. Estudar para a prova é o que há de menos importante na sala
de aula, porque retrata artificialidade total perante as situações concretas da vida.
Nem adianta inventar prova com consulta, porque ainda é prova. Faz-se necessário
afastar a prova e avaliar de outros modos, sobretudo acompanhando a produção
constante de conhecimento, com devida orientação e tendo o aluno sempre o direito
de refazer enquanto houver tempo hábil. Ao mesmo tempo, estudar implica outra
forma de “ler”. Trata-se de “contra ler”, no sentido de saber questionar o autor,
interpretar seus argumentos centrais e refazê-los com mão própria, compreender
seu contexto e suas bases teóricas e metodológicas, passar por dentro do livro e
não pelas orelhas. Não se faz isso com todo livro, mas com aqueles que são
centrais para nossa aprendizagem. Ao ler um Iivro, é fundamental fazer-se sujeito,
porque lemos autores para nos tornarmos autores.
Na leitura detida de um livro é possível observar a teoria da aprendizagem baseada
na busca de padrões e suas conexões:
não guardamos em mente todo o livro, mas aquilo que detectamos ter coerência
recorrente, mantém significado abrangente, indica relevância cada vez mais
consolidada. Podemos fazer a experiência: ao terminar de ler um livro, o fechamos e
tentamos escrever algo sobre o que lemos; muitas vezes, não somos capazes de
dizer nada de pertinente; é que não “lemos” de verdade, passamos pelo livro, por
cima do livro. Será necessário reler com outros olhos: tomando nota, riscando,
reclamando, aplaudindo, reconstruindo. Este fenômeno indica também que é
impossível o professor ler pelo aluno, como se a aula substituísse o estudo do aluno.
Acontece que o professor já reduz, em seu nível, o autor aos algoritmos seletivos
dentro de sua busca de padrões. Se o aluno
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ficar com a redução do professor, terá para si acesso duas vezes reduzido. E
fundamental, pois, habituar o aluno a passar por dentro do autor, desconstruindo sua
argumentação e logo reconstruindo com suas palavras. Quem não sabe estudar,
não sabe ler e não é capaz de aprender. Terá de recorrer à decoreba e à cola.
Podemos visualizar esta expectativa no trabalho de grupo. Certamente, não fora já
por razões pedagógicas, ele é fundamental. Mas, para ser efetivo, precisa ser
acompanhado dos passos imprescindíveis para a devida aprendizagem, entre eles:
a)cada membro do grupo deve preparar-se devidamente, trazendo colaborações por
escrito, adequadamente elaboradas; conversar juntos não é trabalho de grupo e
pode não ir além da fofoca; não se trata, ademais, de apenas jogar no ar opiniões
soltas, ao bel-prazer, mas de aportar argumentações da melhor qualidade;
b)o trabalho precisa ser disciplinado, de tal sorte que exista coordenador e escriba,
tendo em vista permitir fluxo produtivo comprovado; todos precisam poder falar, ou
seja, apresentar suas argumentações, e, ao mesmo tempo, escutar os colegas
atentamente; trata-se de tecer texto ou produto final conjunto que represente a
contribuição de todos;
c)sendo o consenso de grupo tendencialmente medíocre, porque reflete a média das
argumentações, é sempre o caso sopesar o que se ganha e perde com tal
empreitada; o brilho individual ofusca-se diante do grupo, bem como todo carisma
tem que adaptar-se ao coletivo; como é difícil elaborar a muitas mãos, alguém
escreve por todos, desde que o escrito represente todos;
d)pode-se aprimorar a capacidade de contra-argumentar, desde que se trate de
“argumento”, não de “sacações” diletantes e dispersas; a arte do consenso pode
representar caminho árduo de reconstrução, tendo sempre em mente o que se
perde e ganha no percurso;
e)podem-se valorizar as diferenças de argumentação, tentando fazer delas a riqueza
do grupo, como é o caso da democracia; com isto, podemos ressaltar valores
pedagógicos da solidariedade e generosidade, necessários para a vida em comum.
Em nossa legislação, está consagrado o instrucionismo, sobretudo pela ideia caduca
de aumento de dias de aula durante o
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ano Ietivo (55). Ainda mantemos a expectativa totalmente obsoleta de que
aprendemos melhor se temos mais aulas. Esta mesma ideia aparece na gratificação
concedida aos docentes universitários públicos: depende, em primeiro lugar, de dar
mais aulas. Pode-se apreciar a preocupação de motivar os professores mais
titulados a darem aula, porque, no fundo, somente estes poderiam dar aula e a isto
por vezes se negam, por má interpretação da atividade de pesquisa. Entende-se
pesquisa como tarefa elitista, reservada a peritos mais avançados e que tendem a
dedicar-se ela com exclusividade. No entanto, quando se alimenta programa de
bolsas para estudantes que pesquisam, comparece contradição notável: de um lado,
o Ministério da Educação propende para instrucionismo, de outro, o da Ciência e
Tecnologia já reconhece que, para aprender bem, é mister começar a pesquisar na
graduação. Na prática, sabemos já: o aluno que aprende a pesquisar, aprende a
aprender, e pode ter peso na sociedade futuramente; os outros ficarão à deriva,
esperando oportunidade que eles mesmos não saberiam criar. Ainda hoje é comum
em certas universidades considerar pesquisa como atividade especial de gente
especial, enquanto deveria ser a atividade mais comum de todos, professores e
alunos, ora mais sofisticada no professor, ora mais pedagógica no aluno. O
programa de bolsas para alunos pesquisarem, se bem observado, escancara esta
contradição: é preciso pagar para aluno pesquisar, porque o normal é apenas
assistir a aulas, assim como professor que pesquisa normalmente é bolsista do
CNPq. A mediocridade de nossas instituições de “ensino” jaz sobretudo nisto.
Não percebemos ainda que, na sociedade do conhecimento, aprender vai se
tornando direito humano fundamental, quase no mesmo nível que o direito à vida.
Como diz Tapscott growing up is about learning (crescer é aprender) (56). Trata-se
do melhor que temos em resposta à hereditariedade, sendo a história do
conhecimento, em particular a ocidental, saga impressionante de conquista de
história própria. Esta história está marcada pela prepotência ostensiva, mas não
deixa de mostrar que, mesmo sendo seres condicionados, sabemos buscar nosso
espaço. Como
Início de nota de rodapé
55- DEMO, P. 1999a. A nova LLB — Raços e avanços. 8° ed. Campinas, Papirus.
56- TAPSCOTT, D. 1998. Growing up digital — The rise of the net generation. New
York, McGraw-HiII, p. 127.
Fim de nota de rodapé
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reconhecem Böhme & Stehr, o que “distingue a sociedade do conhecimento acima
de tudo do ponto de vista de suas precursoras históricas é que se trata de sociedade
que é, a um nível sem precedentes, o produto de sua própria ação. A balança entre
natureza e sociedade, ou entre fatos além do controle dos humanos e aqueles
submetidos a seu controle, elevou-se de modo impressionante. Elevou-se mais e
mais para as capacidades que são construídas socialmente e permitem que a
sociedade opere por si mesma” (57). Neste sentido, aprender deixará de ser atributo
escolar, em determinada idade, para erigir-se em direito permanente, tanto para
inserção mais favorável no mercado, quanto sobretudo para o exercício mais pleno
da cidadania.
No mercado — assim se espera — será reconhecida a necessidade de todo
trabalhador continuar estudando, certamente não com base na cidadania, mas na
competitividade. Esta é fundada, na prática, no manejo do conhecimento, puxado
severamente pelo mercado. A qualidade total já prenunciou esta marca: enquanto
falava de valorização dos recursos humanos, abria caminho para a competitividade
(58). Mesmo assim, pode significar o reconhecimento do direito de todos de
desvendar horizontes para além da educação formal. Para tanto, a teleducação
comparece como via principal de acesso, desde que não se reduza a simples
instrução. Para professores, este mandato se tornará fatal, porque no fundo exercem
a profissão de aprender. A equação parece cogente: o aluno só aprende bem, se
tiver professor que também aprende bem. Esta é a condição mais decisiva, entre
outras tantas que também participam do processo. Donde decorre que a formação
dos professores precisa ser radicalmente revista e que esta pedagogia que aí está
não serve para nada. Pois é todo o contrário da aprendizagem reconstrutiva. Não se
trata, porém, de combater a pedagogia, mas de inventar outra, na convicção de que
é o estudo mais estratégico da universidade. Seu “negócio”, todavia, não é dar aula,
mas garantir a aprendizagem do aluno, formulando, ao mesmo tempo, a
necessidade de aprendizagem escolar aqui e agora, e sobretudo a aprendizagem
para a vida, permanentemente.
Início de nota de rodapé
57- BÖHME, G. & STEHR, N. 1986. The knowledge society — The growing impact of
scientific knowledge on social relations. Boston, D. Reidel Publishing
Company, p. 19.
58- AEC. Revista de Educação. 1994. “Qualidade total na educação — A rnudança
conservadora”. Ano 23, n° 92, jul./set. Brasília, AEC do Brasil.
Fim de nota de rodapé
Página 91
Por conta disso, imagina-se que todos os cursos, antes de pretenderem se
especializar profissionalmente, precisam dedicar um ou dois semestres à
propedêutica básica, que alguns resumiriam em filosofia, linguagem e matemática,
como metáfora simplificada do saber pensar. Este saber pensar é o cerne
profissional, mais até que os conteúdos, ainda que estes, por isso, não se tomem
secundários. Como todos os conteúdos envelhecem cada vez mais rapidamente, ser
profissional é, sobretudo, saber renovar a profissão, e isto advém das habilidades
básicas, de teor processual metodológico. E isto principalmente que temos de
aprender nas instituições educacionais. Nesta trilogia estão incluídos todos os
fundamentos da aprendizagem reconstrutiva, também os metodológicos, que nos
levam a saber questionar a ciência, a argumentar com propriedade, a manusear
dados com capacidade interpretativa, e assim por diante. Esta atividade
metodológica não poderia ficar para depois ou para o fim do curso, porque é
propriamente a porta de entrada.
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Em branco
Página 93
2
PESQUISAR E ELABORAR
Tomo como definição mínima de pesquisa questionamento reconstrutivo. Quero
dizer pelo menos duas coisas: é mister haver questionamento atitude crítica diante
da realidade, de tendência desconstrutiva e analítica, preocupada com desvendar os
fenômenos para além da superfície; e é mister haver reconstrução — elaboração
própria, individual e/ou coletiva, proposta dotada de alguma autonomia. Estou
realçando prerrogativas metodológicas, ainda sem me referir a conteúdos. Desde já,
muitas atividades que se querem pesquisa não o são porque permanecem ainda em
simples considerações gerais, “reflexões mais ou menos dispersas”, descrições
externas dos fenômenos e problemas, fichamento estereotipado de livros ou textos,
amontoado de dados e assim por diante. Toda pesquisa implica atividade
sistemática e é, 110 fundo, sempre exercício acurado de argumentação própria.
Podemos, para ordenar o espaço, distinguir pelo menos quatro gêneros de
pesquisa: teórica, quando nos propomos a tratar assunto teórico, como seria
desvendar conceito, quadro de referência de autor, polêmica acadêmica;
metodológica, quando que- remos estudar métodos, sua tessitura procedimental,
estrutura operativa, ou questões de metodologia, como aferir postura metodológica
de certo autor, ou a da1ética que seria própria de Marx; empírica, quando a intenção
é também levantar dados empíricos ou factuais, para dar suporte relativo a
proposição
Página 94
hipotética; prática, quando existe compromisso político de usar a ciência para fins de
intervenção direta na realidade, como é a pesquisa participante (59). Escusado dizer
que tais gêneros se interconectam naturalmente, sendo difícil exercitarmos um deles
puramente. Com isto digo também que nem toda pesquisa precisa Ievantar dados
empíricos, embora jamais façam mal, desde que se evite o empirismo. E de todo
prudente promover pesquisas que exijam mais que dedicação teórica, também para
cultivar a capacidade de agir, não só de pensar. Tática útil é partir das práticas,
levando-as à teorização e imprimindo-lhes, a seguir, inovação pertinente.
Importante é distinguir entre pesquisa como princípio cientifico e como princípio
educativo. Estou trabalhando aqui sobretudo o segundo sentido, porque se trata de
propedêutica básica, não de atividade profissional da pesquisa. Quer dizer, estou
propondo pesquisa como estratégia fundamental de aprendizagem reconstrutiva e
de gestação da autonomia do sujeito, para que possa produzir conhecimento do qual
seja a referência central. Podemos sempre banalizar a pesquisa, aceitando qualquer
coisa. Entretanto, tomando um mínimo de cuidado metodológico, parece claro que
somente podemos aceitar como pesquisa o que for dotado de algum nível de
questionamento reconstrutivo, evitando-se a tendência reprodutiva. No início, todo
aluno “cópia”, porque é modo de iniciar. Em seguida, sob orientação do professor,
passa a ver que reproduzir nada acrescenta. Põe-se, então, a buscar elaboração
própria, que vai aprimorando, à medida que pesquisa sistematicamente. E neste
sentido que proponho ser a pesquisa o modo de vida das instituições educacionais.
Não pode ser vista como atividade especial de gente especial, mas como ambiente
mais natural de aprendizagem.
Falta-nos, como regra, ambiente acadêmico adequado, através do qual se
estabelecem expectativas consolidadas e comuns de como se entende e pratica a
aprendizagem no professor e no aluno. Quando tal ambiente é viciado pela aula
apenas expositiva, reprodutiva, decorre que pesquisa e elaboração própria passam
a ser vistas como atividades raras, para não dizer exóticas. No fundo, ninguém
estuda de verdade, e, por isso, ninguém aprende
Início de nota de rodapé
59- DEMO, P. 1985. Investigación participante Mito y realidad. Buenos Aires,
Kapelusz.
Fim de nota de rodapé
Página 95
de verdade. Passa-se o tempo vendo conteúdos alheios, repassados de modo
reducionista,e treinando o aluno a reproduzir posicionamentos obsoletos. E preciso,
pois, dizer com todas as letras que o ambiente acadêmico adequado começa pelo
professor, pois aluno adequado é também função do professor adequado. O
professor certamente não faz milagres, mas é a peça central da aprendizagem. Para
não incidir em contradição performativa clássica, precisa saber aprender mais que
ninguém. Diante de professor que aprende bem, estuda dedicadamente, produz
conhecimento sistematicamente, traz para os alunos textos seus, o aluno tem pelo
menos exemplo edificante do que é aprender. Em contra- partida, diante de
professores que apenas reproduzem aulas, dificilmente o aluno chega à ideia de que
educação tem como objetivo fundamental gestar a autonomia.
A elaboração própria torna-se, então, atividade estratégica, em primeiro lugar porque
reflete a capacidade reconstrutiva, de onde surge o impulso para a autonomia. O
que não se elabora, fica ainda fora, adere por imitação, ou seja, não entra. Neste
sentido, elaboração própria é a base da aprendizagem ativa, através da qual o aluno
tenta, sob orientação do professor, fazer-se autor, ter ideias próprias, argumentar
com autonomia, entrar em polêmicas com capacidade de argumentar, propor
projetos próprios. De quebra, aprende a língua, já que escrever bem advém
sobretudo de fazer isto sistematicamente. Muitas vezes, em matérias mais
tecnológicas ou similares, os alunos dificilmente sabem se expressar por escrito de
modo adequado, porque, embora possam fazer cálculos magistralmente, não
aprendem a verbalizar, argumentar e contra-argumentar, tecer textos. Esta atividade
tem sido valorizada tanto mais por imposição do mercado, que, tornando-se cada
vez mais restritivo em termos de emprego, exige que os profissionais saibam trazer
propostas de trabalho, mais do que esperar na fila. Mas este não pode ser o
argumento decisivo. A ideia mais essencial é a gestação da autonomia, parte central
da cidadania. A elaboração própria precisa ser o indicador inequívoco de que
sabemos elaborar nossa história própria.
Para tanto, convém sempre combinar elaboração individual e coletiva. Uma não
substitui a outra, pois cada qual tem seu lugar. A elaboração individual é importante
porque aprimora a capacidade própria de propor e traduz o talento de cada um. A
coletiva também é importante, porque, em sociedade, é preciso
Página 96
saber trabalhar em equipe. Somos mais facilmente brilhantes na elaboração
individual, também porque temos liberdade plena. Na coletiva, o consenso é a
grande meta, o que implica dúbia postura: de uma parte, significa maneira decisiva
de praticar a democracia, e, de outra, acarreta concessões tendencialmente
medíocres. Como, porém, na vida o que vale são acordos mais ou menos comuns, o
trabalho em equipe precisa ser valorizado, desde que não substitua o individual e
seja realmente produtivo. Em grupo, tendemos a produzir menos, porque o ritmo é
naturalmente mais lento, até porque todos precisam ter o direito de se expressar.
Todavia, regra fatal do trabalho em grupo é que cada membro precisa elaborar
individualmente para poder manifestar-se produtivamente. E comum em certos
contextos valorizar a tarefa coletiva por motivos escusos: não exigir nada de cada
qual, passar o tempo conversando à solta, impor o esforço a alguém que faz pelos
outros, auto-avaliar-se complacentemente etc. Trabalhar em grupo deve ser
claramente um modo fundamental de estudar e aprender, não de estabelecer pactos
da mediocridade.
Importante seria pensar em “laboratório de aprendizagem”, geralmente localizado na
pedagogia, em que se poderia ver, com os próprios olhos, o que é aprender na
teoria e na prática, para professores e alunos. Permanecemos em táticas
reprodutivas também porque não somos levados a perceber alternativas, sobretudo
alternativas concretas. Nesse laboratório deveria existir repositório sempre renovado
de experiências (boas e más), vídeos disponíveis, materiais didáticos com signo
alternativo, documentação sobre experiências diferenciadas, modos de usar
didáticas menos ordinárias, bem como ser lugar onde se possa discutir a
aprendizagem. Desconhecemos, quase sempre, a discussão em torno da
aprendizagem, deixando-a para pedagogos que, por sua vez, ainda entendem
pedagogia como “dar aula”. Na prática, esta seria a grande transformação esperada:
toda entidade educacional é, em primeiro lugar, local primoroso de aprendizagem
reconstrutiva política. Frequentamo-las com o propósito declarado de aprender,
sobretudo de aprender a aprender e sempre de modo permanente.
É irônico e no fundo ridículo que as inovações nos sejam trazidas pelo mercado,
que, finalmente, também descobriu que é fundamental, na vida, manejar
conhecimento com autonomia. É triste ver a universidade a reboque das inovações
capitaneadas pelo mercado, correndo atrás de causa perdida. Precisamos
definitivamente
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entender que é fundamental aprender para a vida individual e sobretudo coletiva,
não para apenas competir. Trata-se, em primeiro lugar, de gestar aquela cidadania
que sabe manejar conhecimento com qualidade formal e política, diferente, por isso,
de outras cidadanias que a sociedade propicia e motiva. Usa vantagem comparativa
mais decisiva dos tempos atuais, no sentido mais preciso de saber fazer história
própria, sem esquecer que o saber pensar inclui saber cuidar e acreditar. A
pretensão de autonomia implica escrutínio crítico de todas as dependências,
também perante o mercado, que pode tornar-se problema cada vez mais
angustiante no futuro, à revelia da produtividade crescente. Saber pesquisar deve
ajudar também a inserir-se no mercado, mas sobretudo a saber confrontar-se com
ele, para que o bem comum seja referência principal.
Página 98
Em branco
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3
TRABALHO CIENTÍFICO
Quando pesquisamos, pretendemos fazer trabalho com marca científica. Fazer
ciência implica procedimentos estereotipados que podem tornar a tarefa uma rotina
repetitiva, mas, mantendo em mente o compromisso com o saber pensar, expressa
caminho sempre possível de criatividade e crítica. Sem pretender apresentar
receitas, porque criatividade é seu contrário, podemos sistematizar trabalho
científico em alguns passos logicamente ordenados:
a)começamos por conceber terna, que é diferente de temática; tema indica problema
circunscrito, do qual se vê o começo e o fim, sobretudo do tamanho de quem o quer
tratar; não se pode assumir qualquer tema, por mais atraente que possa ser, porque
sua viabilidade vem em primeiro lugar; tema mais bonito é o mais viável, sobretudo
para iniciantes; usando exemplo, tema é a árvore e temática o bosque: é
fundamental encontrar a árvore, de preferência aquela árvore que posso tratar
melhor, seja porque já li alguma coisa a respeito, já discuti algo em torno dela, tenho
dados a respeito, sinto-me mais familiar; tema confuso Ieva a tratamento confuso e é
perda de tempo e falta de lógica descobrir depois que é melhor abandonar o tema;
b) ao tema acrescenta-se hipótese de trabalho, que significa apontar para problema
ou questão que queremos resolver ao tratar o tema; diz aonde queremos chegar, o
que pretendemos mostrar, descobrir, testar. Trata-se de pergunta aberta, feita como
subterfúgio
Página 100
de orientação durante o percurso. Não precisa ser procedimento reducionista, de
teor positivista, como se fosse o caso “verificar hipóteses” e manejar dados como
base inquestionável; ao contrário, acena com suspeita aberta para dar conta de
certo fenômeno, podendo, no percurso, ser confirmada a suspeita ou negada. A
hipótese, com isso, define ainda melhor o tema, porque o prende a certa pergunta,
permitindo, por exemplo, decidir o que ler, que dados buscar ou fazer, que teoria
pode ser pertinente etc. Quando nos perdemos no trabalho, o problema geralmente
é da hipótese malfeita ou mal definida, permitindo caminhos variados e mesmo
contraditórios. Por exemplo, se é o caso ou não ler certo autor, podemos facilmente
decidir se a hipótese for cristalina, bem como se já dei conta do tema ou não
também pode ser visualizado à luz da hipótese; assim, hipótese é inventada para
sugerir caminho e lançar luz sobre ele;
b) formulando alguns exemplos, podemos apresentar a ideia de estudar a pobreza
da maioria da população. Logo se vê que não é tema, mas típica temática. Pergunta-
se que pobreza, em que nível, que faceta, não toda e qualquer pobreza. Daí pode
surgir a suspeita de que parte fundamental da pobreza é a dificuldade de inserir-se
no mercado. Com isto estamos indo para certa direção que primazia a relação
material da pobreza e, dentro desta relação material, a ligação com o mercado.
Podemos lançar a hipótese de que o fator fundamental da pobreza é o desemprego
e tentamos, então, construir um caminho de pesquisa que nos leve até lá: mostrar
que os pobres são tendencialmente mais desempregados, que ocupam empregos
precários ou subempregos, que não possuem condições de pleitear bom emprego;
todavia, esta direção já parece grande demais para trabalho de semestre, em que
temos apenas três a quatro meses para pesquisar. De repente, reduzimos nossa
hipótese a estudar apenas o desemprego aberto, tentando mostrar que os pobres
são as vítimas mais comuns dele. Fazendo isto, porém, podemos descobrir outros
horizontes também interessantes do problema, por exemplo, que a pobreza política
é mais fatal que a pobreza material, porque o que faz do pobre alguém realmente
excluído é, sobretudo, a incapacidade de lutar pela sua causa; espera a solução dos
outros e jamais supera a dependência. Esta ideia poderia levar a outra hipótese,
abandonando a primeira ou redefinindo-a, desde que também fosse afunilada para
caminho operativo viável. Quero com isto dizer que é importante saber formular a
hipótese,
Página 101
sobretudo que precisa significar problema interessante, atraente, intrigante, que me
mova a pesquisar também com algum entusiasmo. Outro exemplo pode ser a ideia
de estudar o fracasso escolar dos alunos no ensino fundamental: lanço como
hipótese que se deve sobretudo à pobreza das famílias dos alunos, em particular à
fome; não vou estudar qualquer fracasso — há infinidade deles — mas algo
específico, para ver se de fato a fome tem esta influência e até que ponto. Posso
descobrir, entre outras coisas, que tem influência, mas nem tanto, e que a
aprendizagem precária dos alunos se deve também e talvez sobretudo a outros
fatores; já seria resultado interessante descobrir que fome é fator importante, mas
nunca único e por vezes nem o mais decisivo. Posso deixar para próxima pesquisa ir
atrás dos outros fatores que suspeito serem ainda mais fatais;
d) recomenda-se sempre que tema e respectiva hipótese de trabalho sejam
elaborados por escrito, com algum detalhe, para que o professor possa ter uma ideia
mais nítida da clareza da proposta e, sobretudo, de sua viabilidade. A orientação do
professor é essencial, em particular com alunos iniciantes, que facilmente embarcam
em canoa furada, ou por excesso de entusiasmo, ou por desinteresse. De modo
geral, os alunos ainda não têm ideia do montante de leitura ou dados que respectivo
tema implica, deixando-se levar pela fascinação imediata; embora toda hipótese
possa ser burilada no meio do caminho, não deveria inventar outro caminho, porque,
na maioria das vezes, implica começar de novo e causa desestímulo. A proposta de
manejar criativamente hipóteses de trabalho é consonante, ademais, com questão
Iógica do saber pensar: não colocamos pergunta inteligente, se não temos nenhuma
ideia da resposta; pergunta que nada sabe da resposta sequer aparece no contexto
científico. Assim, é essa hermenêutica que está em jogo e que o aluno precisa, com
o tempo, aprender a manusear para poder “dar conta de tema”. Não se trata mais de
apenas “dar uma olhada” no tema. passar ao largo, fazer considerações gerais e
reflexões dispersas, mas “matar” o tema, ir ao ponto, resolver a hipótese, sem
colocar nisto qualquer ansiedade, porque sabemos que a ciência não produz
verdades, apenas hipóteses instigantes. E aí temos outra face fundamental da
formulação de hipóteses: sua abertura infinita a novos questionamentos; significa o
convite concreto a desbravar caminhos ainda não andados, deixando em aberto
tudo que descobre; é exercício de abertura, não aposta fatal;
Página 102
e) a seguinte fase do trabalho científico pode ser visualizada na necessidade de
arranjar argumentação adequada para sustentar a promessa da hipótese. Trata-se,
pois, de estudar fundamentos teóricos disponíveis, para podermos atingir nível
explicativo, para além de meras descrições, acúmulo de autores e dados,
arrolamento de idéias vindas de fora. Num primeiro momento, trata-se de estudar a
bibliografia considerada pertinente, de modo sistemático e reconstrutivo, de tal sorte
que o aluno possa se confrontar com os autores e discutir suas argumentações. Não
basta apenas repassar autores para dizer o que se viu em cada qual, mas é
fundamental construir base teórica de caráter explicativo. Teoria é necessária para
oferecer condições explicativas do fenômeno, trabalhando as razões de ser assim e
não de outra maneira; porque não podemos, a rigor, verificar as hipóteses toma-se
tanto mais necessário fundamentar o que se pretende dizer, primeiro, buscando
apoio na literatura disponível e, num segundo momento, tecendo montagem própria
da argumentação. Assim, podemos fazer aí divisão de trabalho sucessiva: primeiro,
vemos autores com profundidade; depois, fazemos nosso texto teórico próprio, em
que buscamos argumentar com alguma autonomia. Ciência não se basta com
simples descrições (como as coisas são), mas busca suas razões (por que são).
Voltando a um dos exemplos: não basta descrever crianças com fome e que
aprendem mal, pois é mister estabelecer, se possível, a relação entre os dois
fenômenos para saber se passar fome “explica” a má aprendizagem. A necessidade
de fundamentação teórica vai, por certo, até a algum ponto, geralmente determinado
pela premência do tempo: podemos Ier, no extremo menor, apenas um ou outro
autor, e no extremo maior, todos os que julgamos importantes, cabendo aí também a
intervenção do professor para orientar o aluno a tirar o maior proveito possível
dentro do realismo de um semestre, por exemplo. O correto, entretanto, seria dar
conta do tema, ou seja, trabalhar o suficiente para que o tratamento do tema tenha
corpo científico satisfatório. Os limites serão sempre imprecisos, embora seja a
qualidade do tratamento mais importante do que a sua quantidade. Não é
recomendável estatuir número de páginas previamente a serem escritas, porque
conduz à acomodação ou à redução, sendo importante o aluno aprender, com o
tempo, a dizer com razão adequada se o tema está sendo tratado de modo
suficiente ou não;
Página 103
f) dependendo do tema, a fase seguinte seria coleta e produção de dados, voltados
para secundar a hipótese. No espaço de um semestre é sempre difícil assumir este
tipo de compromisso, sobretudo o de produzir dados primários. Como regra,
preferem-se dados secundários, ou seja, aqueles já existentes e disponíveis. Os
dados empíricos não resolvem a hipótese, porque a indução não é capaz de tal
façanha, mas a corroboram, trazendo-lhe ademais o sabor de coisa concreta. E
importante levar em conta que o dado é, ele mesmo, já produto teórico, porque,
sendo indicador da realidade, indica a parte da realidade considerada importante em
sua coleta e tratamento. Será mister evitar dois extremos: credulidade sobre o dado
e fuga obsessiva, como se o dado já fosse recaída no empirismo. Tratando-se de
dados qualitativos, será tanto mais cuidadosa sua devida formalização de teor não
linear, permitindo a necessária abertura crítica para quem duvide deles ou os quiser
refazer;
g) por fim, a fase final pode ser vista na realização da hipótese, fechando o percurso.
Tendo definido tema e hipótese, montado base teórica explicativa e cercado de
dados indicativos, podemos agora dizer se a promessa da hipótese se sustenta ou
não. No exemplo do fracasso escolar, é possível descobrir que a hipótese é apenas
em parte correta, porque haveria outros fatores que tolhem a aprendizagem mais
que a fome, com exceção, é claro, dos casos extremos. Não se trata da conclusão
do trabalho, que seria apenas o lugar, sempre breve, para arrematar o esforço
dispendido, ressaltando sobretudo o achado mais fundamental; trata-se de mostrar,
com detalhe adequado, se o problema assumido no início pode ser resolvido e o
tema considerado suficientemente tratado, o que se conseguiu mostrar e o que ficou
ainda não solucionado, bem como outras pistas, se for o caso, que poderiam, em
esforço ulterior, ter até melhor sucesso. Não buscamos, pois, resultados definitivos,
demonstrações peremptórias, mas argumentações inteligentes que revelem
capacidade explicativa, habilidade de tecer texto com profundidade, competência
metodológica para ordenar tema e lhe oferecer corpo elaborado.
Não se diz aqui, por outro lado, que cada pedaço seja capítulo, porque, em
determinadas circunstâncias, cada parte pode ser desdobrada em vários capítulos.
Diz-se, entretanto, que todo trabalho científico precisa ser ordenado em capítulos,
não sendo adequado fazer texto corrido ininterrupto, porque revela, ao lado
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de não saber ordenar texto, que não se apontam momentos mais e menos
relevantes da discussão. Podemos desenhar, então, as seguintes partes
logicamente concatenadas e que podem ser tantos ou mais capítulos:
Introdução:
tema e hipótese.
Base explicativa:
a) teórica: estudo
bibliografia e
elaboração teórica
própria;
b)empírica:
produção coleta
de dados e de
vida interpretação.
Realização da
Hipótese:
Realizar a
promessa da
hipótese,
mostrando se o
caminho
hipotético pode
ou não ser
mantido.
Conclusão:
Achado central.
Sugere-se que a introdução conste apenas do enunciado do tema e da hipótese,
com breve justificativa, tendo esta a finalidade de mostrar que se tem devida clareza
da tarefa a ser feita. Pode caber numa página só, evitando-se fazer introduções que
já são, no fundo, capítulo, ou que perambulam perdidamente para lá e para cá, ou
que expressam reflexões metidas a “filosofia” barata. Serve apenas para dizer o que
o texto quer resolver, com a maior clareza possível. A base explicativa pode conter
vários capítulos. Não necessita, obrigatoriamente, de tratamento empírico, embora
este possa sempre ser útil e indicativo. A realização da hipótese também pode
abrigar mais de um capítulo e serve para mostrar que o aluno se instrumentou
adequadamente para dar conta do tema, estabelecendo as devidas relações e
chegando aos resultados cabíveis no contexto de sua argumentação. A conclusão
não deve ultrapassar uma página e mostra sobretudo o achado mais central do
trabalho.
Esta estruturação obedece a certa lógica da reconstrução científica, mas pode ser
implantada de maneiras muito diversas, dependendo também da tessitura de cada
matéria ou curso. Tratando-se de um semestre, pode-se supor que se ordene o
trabalho em quatro etapas sucessivas, seguindo os meses. No primeiro mês,
geralmente mais curto, faz-se a parte introdutória: definir tema e hipótese de
trabalho. A orientação do professor é crucial nesta fase, porque os alunos podem
mostrar grandes dificuldades de acertar o tema, sobretudo quando a matéria Ihes é
muito nova ou complexa. Seria o caso, antes de mais nada, de realizar algumas
leituras conjuntas e proferir uma ou outra aula de caráter introdutório, para que o
aluno tenha idéia preliminar
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da abrangência da discussão pretendida. Quem 1ê certamente tem mais e melhores
idéias. No segundo mês, pode-se passar para o estudo bibliográfico, cabendo tratar
autores dentro do método da “contraleitura” desconstrutiva, seguindo-se, no terceiro
mês, a reconstrução teórica própria do aluno. No quarto mês deve ocorrer a
realização da hipótese e o arremate do trabalho, compondo as partes anteriores. A
avaliação do aluno já estaria implicitamente resolvida, porque oferece pelo menos
quatro elaborações cumulativas, sendo estas a base avaliativa, não provas, a esta
altura, totalmente desnecessárias e artificiais.
Este ordenamento semestral pode ser muito melhorado, introduzindo ainda, de
acordo com cada professor, momentos de exposição individual ou em grupo do
andamento dos trabalhos. Pode-se também aceitar trabalho feito em grupo, desde
que, nas fases segunda e terceira, apareça tratamento individualizado. Por exemplo,
cada aluno assume certa vertente, teórica ou grupo de autores, e elabora também
individualmente. É claro que a primeira e a quarta fases precisam ser feitas, neste
caso, coletivamente. Enfim, estou defendendo aqui apenas metodologia correta de
aprendizagem, não modelo acabado ou único de ordenamento de partes e fases, ou
de conteúdos. Sequer existe aqui preocupação em coibir as aulas, que podem
continuar, desde que não atrapalhem a aprendizagem dos alunos. Ao mesmo
tempo, será sempre o caso respeitar preferências e experiências pessoais dos
professores, com a ressalva de que só fazem sentido se favorecerem a
aprendizagem dos alunos. Os trabalhos científicos iniciais serão naturalmente
preliminares, mas podem aprimorar-se com o tempo, dando oportunidade de
aparecerem desempenhos cada vez mais primorosos.
Esta metodologia conflita, quase sempre, com o currículo extensivo, que exige o
tratamento de matérias excessivas por semestre, com base na expectativa obsoleta
de que o profissional se faz pelo repasse de conteúdos e sua absorção. Muitos
professores, se pudessem, dariam ainda mais aulas, porque teria ficado algo de fora
durante o semestre. Esta maneira de ver precisa ser substituída pelo currículo
intensivo, que prefere o tratamento verticalizado de temas a tratamentos superficiais
horizontalizados de estilo reprodutivo. O aluno deveria pesquisar, por semestre, não
mais que quatro temas, imprimindo a cada um deles tratamento verticalizado pelo
trabalho de pesquisa sistemática. Com isto não
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aprende apenas conteúdos, mas sobretudo como renová-los permanentemente. Não
estou, por outra, dizendo que toda matéria cabe neste figurino, sem mais. Mas digo
que todas deveriam buscar modos didáticos que garantam a aprendizagem do
aluno, mais do que a aula do professor. Nesta perspectiva, já não caberia reprovar
em assa, porque revelaria que reprovado foi o professor, bem como não cabe
inventar promoção continuada, como se desempenho já não fosse importante. Sem
entrar a fundo na questão da avaliação aqui, parece hoje clarividente que sua
finalidade única é garantir a aprendizagem dos alunos. Para isto classifica, escalona,
mensura, e, não por último, incomoda60. O professor não sabe se o aluno está
aprendendo adequadamente, se não avaliar. Esta avaliação diretamente colada na
aprendizagem faz parte essencial da tarefa do professor.
Início de nota de rodapé
60-DEMO, P. 1999c. Avaliação — Sob o olhar propedêutico- 2° ed. Campinas,
Papirus. DEMO, P. 1999g- Mitologias da avaliação. Campinas, Autores Associados.
Fim de nota de rodapé
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4
ARGUMENTAR E CONTRA-ARGUMENTAR
A arte mais refinada da ciência é saber argumentar, utilizando, para tanto, todas as
instrumentações metodologicamente consideradas válidas. Como nenhuma
fundamentação toca o fundo da questão, seja por conta da circularidade
hermenêutica, ou porque o intento científico é metodologicamente circunscrito àquilo
que pode captar na realidade, ou porque a lógica implica universais assumidos e
não comprováveis pela própria lógica, ou porque a realidade é sempre maior e mais
complexa que qualquer teoria, argumentar torna-se tanto mais necessário. A grande
questão está em que a argumentação bem-feita é aquela que se abre à contra-
argumentação, não a que a evita. O olhar honesto não ofusca outros olhares, mas
os conclama, para, juntos, poderem ver um pouco melhor. Esta transparência é tão
necessária, quanto difícil, levando-se em conta que os cientistas são, como toda
gente, de carne e osso. Em muitas argumentações as manobras de convencimento
prevalecem sobre aquelas destinadas a fundamentar. Tais manobras começam
geralmente com o recurso a clássicos e a autores em geral, cuja autoridade
pareceria reconhecida. Este apelo mostra, desde logo, que a ciência é constituída de
paradigmas vigentes, cuja validade pode expressar-se mais pela fidelidade do que
pela competência. Embora todo argumento de autoridade não possa ser aceito,
porque vem de fora e é
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estranho à capacidade de se fundamentar com os próprios meios, tem enorme força
no meio científico. Basta ver o processo de elaboração de tese de mestrado ou
doutorado. De uma parte, vale como rito acadêmico de credenciamento e muitos
alunos já demonstram aí do quanto são capazes, inclusive em termos de autonomia.
De outra, costuma prevalecer a submissão ao orientador, ao grupo do qual faz parte
o orientador, à tradição dominante na respectiva universidade, aos autores
considerados centrais para o desenvolvimento do tema, e assim por diante. É neste
sentido que se diz ser a tese rito de passagem. Depois de feita, melhor é jogá-la fora
e começar de novo, com a devida autonomia.
Neste último caso, argumentar pode seguir outro caminho: colocar no papel o que os
examinadores gostariam de escutar, citar o que se imagina obrigatório, ventilar as
idéias consideradas vigentes no momento. O questionamento cede lugar à
vassalagem. Mesmo assim, no sentido correto argumentar é sobretudo questionar,
seguindo dois passos decisivos: num primeiro momento é mister aprender os
argumentos disponíveis nas teorias pertinentes; num segundo momento, transformar
tais argumentos em argumentos próprios. Com isto digo que o primeiro momento
precisa revestir-se principalmente da habilidade desconstrutiva: contra ler o
argumento alheio, decompô-lo, decifrá-lo, descobrir sua tessitura mais íntima, para,
em seguida, elaborá-lo com mão própria, assumindo feição alternativa. Chamamos a
este segundo momento de reconstrução, porque partimos do que já existe,
aprendemos do que já está aprendido, conhecemos do que está disponível. A
argumentação dificilmente é construtiva, porque isto implicaria extrema originalidade.
O comum dos mortais reconstrói as argumentações, e nisto se torna sujeito do
próprio discurso.
Dentro desta perspectiva, argumentar significa devassar o conhecimento disponível
da maneira mais completa possível. Um dos caminhos é dominar a literatura
pertinente. Alguns chamam a isto de “revisão da literatura”, embora muitas vezes se
restrinja a arrolar os autores. Se bem-feìta, porém, em sentido tìpicamente
desconstrutivo, permite transitar pelas teorias e polêmicas, categorias e conceitos,
escolas e dissidências, de tal sorte que o conhecimento disponível esteja à mão. A
partir daí, torna-se mais fácil contrapor-se em sentido reconstrutivo, buscando
formulação própria. Argumentar, assim, não pode ser o gesto simplório de quem
pede arrimo à autoridade alheia, escondendo-se atrás dos
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outros, mas de quem se apresenta como sujeito capaz de ocupar espaço próprio.
Tal ocupação de espaço próprio admite, por certo, tonalidades específicas, de
acordo também com a personalidade de cada um, havendo estilos mais secos, mais
herméticos, mais metafóricos, mais complexos, mais soltos, e assim por diante, mas
que não podem ocultar a intenção primeira de aduzir fundamentação ao que se diz.
Exemplo refinado desta trajetória é Habermas. Levando em conta sua obra
monumental em torno do agir comunicativo, faz o percurso de revisão de todos os
grandes clássicos, tomando-os todos a sério (61). Seu gesto inicial é sempre de
análise simpática, embora profundamente desconstrutiva. Discute, questiona todas
as idéias, aceitando as que lhe parecem pertinentes, e reconstruindo teoria própria,
marcantemente original, embora também sempre polêmica, como é de seu feitio.
Suas propostas nunca endossam a perspectiva de aceitação tranquila. Ao contrário,
colocam “lenha na fogueira”, porque assim entende ciência: o lugar privilegiado do
discurso questionador. Pois somente é científico o que for discutível (62).
Todo processo de argumentação tem, por isso mesmo, suas artimanhas. Como não
produzimos nada definitivo ou inconcusso, tomamos providências também para
encobrir os vazios. Podemos, por exemplo, ajeitar os dados para que a hipótese saia
mais facilmente corroborada, ou fazer autor importante dizer o que pretendemos
para podermos melhor andar em sua sombra, ou desqualificar posicionamentos que
nos incomodam alegando sua pequena receptividade no meio acadêmico, ou fixar-
se no que o grupo gosta de ouvir. Em parte, trata-se de fenômeno absolutamente
normal, tanto em sentido hermenêutico — não escapamos de interpretar a realidade
e autores — como em sentido social — a afinação com o paradigma dominante
pode ser mais decisiva que a lógica. Collins mostra em sua obra sobre sociologia
das filosofias que o motor principal dos avanços científicos é o conflito, não somente
aquele das polêmicas acadêmicas seriamente conduzidas, mas igualmente a intriga.
Neste caso, a contra-argurmentação toma o rumo do argumento ad hominem,
atacando a pessoa, e não mais a idéia. Dependendo do ambiente cultural, a
Início de nota de rodapé
61- HABERMAS, J. 1982. Theorie des Kommunikativen Handelns. 2 vols. Frankfurt,
Suhrkamp.
62- DEMO, P. 1999i. Pesquisa e construção do conhecimento — Metodologia
cientifica no caminho de Habermas. 2º ed. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.
Fim de nota de rodapé
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crítica serena é fenômeno peregrino, porque se confunde com ofensa. Em certos
círculos, como a pedagogia comum, a crítica é obsessivamente empurrada para a
“crítica positiva”, apelando-se, neste caso, para compromisso educativo do dever de
elogiar e sustentar a auto-estima. Perde-se de vista que o sentido central da crítica é
tipicamente desconstrutivo e que é disto que advém a aprendizagem, não do elogio.
Por certo, existe o lugar pedagógico do elogio, mas não substitui a função crítica da
argumentação. Esta, por sua vez, não precisa ser desabrida. Mas, mesmo devendo
ser sempre elegante, não pode fugir de desconstruir o conhecimento disponível,
mostrando erros e impropriedades. Daí provém a inovação.
Torna-se, por isso, muito importante exercitar a capacidade de argumentar, em
particular de comparar argumentações dispo- níveis para tentar decidir qual e por
que seria melhor. Alguns critérios, do ponto de vista metodológico, poderiam ser,
referindo-se a textos pretensamente científicos:
a) discurso lógico, com começo, meio e fim, sistematicamente desenvolvido,
destituído de contradições, de tal sorte que uma idéia segue da outra, até o final, de
modo natural; não pode, ao terminar o texto, aparecer idéia sem precedente ou
contrária ao que se dizia; não vale o discurso frouxo, ao estilo de palavreado solto,
que diz por dizer, ou para encher papel;
b) tratamento aprofundado das idéias, para além de meras descrições,
considerações gerais, reflexões dispersas, acúmulo de conceitos desconexos; é
sempre preferível qualidade à quantidade:
uma idéia bem trabalhada é melhor que muitas superficiais; pesa muito a definição
acurada dos termos, seu uso meticuloso e sistemático, o senso por distinções finas
e bem moduladas;
c) busca ostensiva de fundamentar o que se diz, em duplo sentido principal: apoio
em teorias vigentes, serenamente desconstruídas, e proposta de elaboração própria
a partir das idéias dos outros; aparece isto, por exemplo, na habilidade de
reconstruir polêmica, na qual, ao lado de mostrar que se sabe das coisas, também
se é capaz de apontar saídas, alternativas, outros olhares;
d) apuro metodológico, em particular no que se refere à estruturação do trabalho, ao
manejo conceitual e dos dados, à concepção e condução da hipótese, ao sentido de
cientificidade; embora esta perspectiva possa decair para ritualismos vazios,
valorizando mais modos de fazer do que o fazer, considera-se
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critério central da cientificidade, já que, para fazer ciência, é essencial saber o que é,
suas potencialidades e limites;
e)originalidade, não em sentido obsessivo, mas dentro do espaço reconstrutivo, que
sempre procura ultrapassar a reprodução; é fundamental que o texto represente
capacidade do autor de lidar com alternativas.
Com tais critérios, ainda que sempre complexos ao extremo, pode-se, por exemplo,
avaliar a qualidade dos textos e dizer que um é melhor que outro. Quando o
professor avalia os trabalhos dos alunos, segue, mais ou menos, algo similar. Como
regra, apreciamos um autor, não só pelas idéias interessantes, mas sobretudo pela
sua solidez de argumentação. Fica ainda melhor quando as duas coisas se casam:
originalidade e boa fundamentação. E neste contexto que várias polêmicas
metodológicas surgem sempre, como a disputa entre metodologias quantitativas e
qualitativas. Esta polêmica reflete modos alternativos de argumentar, postando-se,
de um lado, os que tendem a insistir em métodos objetivos de análise da realidade,
sobretudo em mensurações e experimentos controlados, e, de outro, os que
pretendem flexibilizar o manuseio da realidade, partindo do ponto de vista que
realidade tão flexível só pode ser bem tratada flexivelmente. Principalmente no
campo das ciências humanas, fatores subjetivos são por vezes os mais relevantes e
nem sempre a frequência quantitativa indica a pertinência dos dados. De todo o
modo, qualquer que seja o tipo de argumentação, todos se inclinam ao propósito de
formalização, ou seja, à cata de padrões recorrentes à luz de alguma hipótese
sugestiva. Também quando realizamos pesquisa qualitativa, por exemplo, usando
observação participante, pesquisa-ação, questionários abertos, entrevistas
livremente gravadas, histórias de vida, o material coletado precisa ser ordenado,
codificado, sistematizado, ou seja, vamos atrás de seus algoritmos, aquelas partes
menores que fazem sentido e mais se repetem. Podemos descobrir que este
caminho não foi muito proveitoso, mas geralmente é o primeiro passo. Na prática
usamos três passos mais recorrentes:
a) levantamos a frequência de dados, termos, fatos, supondo que o mais frequente
pode ser o mais importante;
b)dentro da hipótese de trabalho, podemos então perguntar o que seria importante
para além ou à revelia da frequência, do ponto de vista da fonte de dados; coisas
que aparecem pouco
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podem ser, por vezes, as mais importantes, sobretudo em ambientes mais
hermenêuticos;
c) por fim, caberia ainda perguntar o que nós mesmos consideramos importante,
perante a massa de dados, ou seja, do ponto de vista do intérprete; o olhar arguto
pode descobrir, na greta das coisas, componentes ilustrativos e por vezes até mais
explicativos, dependendo, é claro, muito da experiência com pesquisa.
A massa de dados, em si, não é aproveitável em estado bruto, porque assemelha-se
a quarto desarrumado onde queremos procurar alguma coisa específica. Para
encontrar esta coisa, podemos aplicar as três táticas: primeiro, tento observar se
existe alguma lógica na desarrumação, de tal sorte que seja possível indicar lugares
preferenciais por similitude (se estou procurando um botão da camisa, não vou
procurar no meio dos livros, ou se estou procurando uma caneta, vou procurar onde
estão livros e cadernos); segundo, depois de mapear o quarto, posso perguntar o
que o mapa poderia estar escondendo; terceiro, posso partir de minha capacidade
de interpretação e aí, por exemplo, Iembrar que deixei a caneta perto do telefone na
sala. Todas as três táticas são procedimentos formalizantes, que buscam reduzir
complexidade a esquemas mais simples, através dos quais a realidade poderia ser
melhor visível. São também reducionistas, porque a complexidade do fenômeno é
diminuída, sem falar que os próprios métodos selecionam o que neles cabe.
Vale, pois, dizer que toda pesquisa, por mais crítica e autocrítica que seja, descobre
e encobre a realidade, por várias razões: porque é olhar seletivo, conforme seus
métodos; porque a hipótese de trabalho privilegia caminhos em detrimento de
outros; porque todo dado é teoricamente predeterminado; porque a presença do
sujeito nunca pode ser gratuita. Esta é a sina da ciência: para ver melhor alguma
coisa, a tem de isolar, controlar, medir, que são procedimentos metodológicos de
enfoque especializado. Por isso, seu método principal é a análise, porque imagina
ver melhor pelas partes, não pelo todo. Produzir dados é sempre, ao mesmo tempo,
maneira de revelar e mentir, não por má vontade, mas por limite científico natural no
contexto da base empírica.
Página 113
5
QUESTÕES DA BASE EMPÍRICA
Tomemos o exemplo da inflação, medida por algum indicador qualquer. Aparecem
na imprensa números que assinalam a dinâmica do fenômeno: estaria subindo,
estável, ou caindo. É forte a tendência a acreditar nos dados, principalmente quando
acompanhados de parafernália técnica que não entendemos ou manipulados pelas
autoridades. Aqui vale sobretudo o princípio científico de desacreditar, porque,
primeiro, todo dado não fala por si, mas no contexto da teoria que o concebeu,
produz e interpreta. Segundo, para termos dados de inflação, é preciso definirmos o
que entendemos por inflação, para além da obviedade dos preços que sobem.
Qualquer subida de preço seria inflação? Ou, qual a subida de preço que interessa
medir, porque indicaria melhor o processo inflacionário? Estamos, pois, diante de
questão tipicamente teórica (além de ideológica), anterior a qualquer mensuração
empírica. Buscamos acordo sobre que preços vamos acompanhar mensalmente, e
aí, neste processo seletivo, pode entrar muita malandragem, deixando de fora, por
exemplo, preços que poderiam indicar velocidade maior da inflação, como o da
gasolina. Podemos inventar “cesta básica” de preços pretensamente mais próxima
dos interesses populares, mas igualmente menos sensível a movimentos
inflacionários. Por isso mesmo, a inflação que o governo mede tem certo perfil,
enquanto a dos trabalhadores — levantada no Brasil pelo DIEESE — tem outro: é
sempre bem maior.
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o governo, dentro da lógica do poder, depura dados de inflação, com o objetivo de
mostrar capacidade de controle.
Ademais, os limites conceituais são sempre naturalmente vagos. Trata-se mais de
decisão política do que técnica acordar sobre quantos itens entram no cálculo, sem
falar que expressando conceito por indicadores mensuráveis já provoca efeito de
enfocamento reducionista. Neste sentido, os dados sobre inflação permitem apenas
vislumbre sempre muito problemático do fenômeno e dentro de polêmicas
interpretativas intermináveis. Mesmo assim é de grande utilidade teórica e prática,
desde que não se olvidem os limites naturais da empreitada científica. É difícil saber
se, diante de certos dados, estamos na iminência de surto inflacionário ou em
período “normal”. Se o índice de inflação sobe, em certo mês, 5%, seria entendido
como total descontrole na Europa, mas talvez como normal no Brasil. Neste caso, a
interpretação estaria também vinculada a história passada de hiperinflação, coisa
que a Europa não conhece mais há muito tempo. A questão metodológica mais
árdua na produção e coleta de dados é que a relevância da realidade não é evidente
em si. Precisa ser interpretada, com apoio de teorias explicativas, que já determinam
posicionamentos prévios, mesmo que chamemos de “hipóteses”. O sujeito não se
aproxima da realidade desarmado, mas como sujeito interpretante, sob certas
expectativas de relevância. Um bom pesquisador, diante dos dados do IBGE, toma
um ou dois números e escreve um livro. O outro — sobretudo o iniciante — olha
para a montanha de dados e não consegue ver nada digno de nota.
Mesmo assim, a fabricação de dados é sempre proposta pertinente, desde que se
evite o empirismo. Este significa reduzir a realidade a seus indicadores empíricos,
mensuráveis, recaindo, como se diz, na ditadura do método. Quantificar a realidade
é sempre possível, porque manifesta, também quando a vemos como especialmente
qualitativa, traços recorrentes. Quando buscamos respeitar sua não linearidade, não
deixamos de estudá-la sob o foco da formalização. No fundo, buscamos levantar na
dinâmica não linear o que pareceria linear (algoritmos). Neste sentido, dados sempre
cristalizam o fenômeno e é mister saber o que se ganha e perde. Saber produzir e
usar dados é arte fundamental, sobretudo quando se sabe postá-Ios como indicação
criativa, muito restritos, mas capazes de mostrar facetas também pertinentes.
Página 115
É incorreto imaginar que toda quantificação seja recaída no positivismo. Seu abuso
sim, mas não seu uso. A guisa de exemplo: num dos últimos relatórios do Banco
Interamericano de Desenvolvimento sobre concentração de renda na América
Latina, ficou de novo patente que este fenômeno é inacreditavelmente exasperado,
mostrado pelo índice de Gini. Dividindo a população por decis (cada vez 10% dela),
vê-se que os decis inferiores se apropriam de parcelas ínfimas da renda, enquanto
os decis superiores fazem o inverso, com tendência crescente. Até aí nada de novo.
Entretanto, comparando-se o nono e o décimo decis superiores, nota-se que a
distância entre os dois é enorme, desproporcional ao ritmo de concentração dos
decis anteriores. Enquanto nos Estados Unidos esta diferença seria de 60%, na
Escandinávia de 30%, na América Latina seria de 160% e no Brasil por volta de
200%. Este dado indicaria que a renda, além de extremamente concentrada, está
cada vez mais nas mãos de apenas 10%. Um país dos 10%, coisa que também já
vimos muitas vezes... Tem mais: olhando dentro do décimo decil superior, podemos
observar que somente 15% são empresários, enquanto 85% são autônomos e
empregados, sinalizando que o processo de concentração da renda está se
complexificando: haveria muitos empregados e autônomos ganhando rendas muito
elevadas, denotando que a classe trabalhadora já seria cada vez menos
homogênea. Ao analisar tais dados, o que estou fazendo? Pro- curando na
quantificação, insinuações interessantes de facetas qualitativas do fenômeno. Donde
se pode concluir que a qualidade pode também ser estudada na contraluz da
quantidade (63).
Com efeito, o debate sobre pesquisa qualitativa muitas vezes tem se perdido em
polêmicas estéreis, embora tenha surgido claramente como reação à ditadura do
método. De uma parte, parece claro que a pesquisa de orientação positivista
privilegia, unilateraliza ou exclusiviza a face mensurável da realidade, pela simples e
limitada razão que cabe melhor em seus métodos. De outra parte, pode interessar a
pesquisadores as faces menos mensuráveis da realidade, o que os motivou a
buscar métodos alternativos, não no sentido Iógico, pois todos são minimamente
Início de nota de rodapé
63- Exemplo deste tipo de esforço pode ser encontrado em: DEMO, P. 1992.
Cidadania menor — Algumas indicações quantitativas de nossa pobreza política.
Petrópolis, Vozes.
Fim de nota de rodapé
Página 116
vezes representam disjuntiva, que, na prática, deveriam ser um todo: quantidade a
serviço da qualidade, ou como condição de qualidade. A sabedoria da felicidade
está em transformar o passamento extenso em passagem intensa. Pois nenhuma
solução é total, e o homem como problema não tem solução, pois não é defeito, mas
modo de ser. Nisto precisamente é desafio, pretensão, ânsia, afã. A história é
passageira, mas em cada fase não acaba; ao contrário, continua. Continua sempre,
não porém como continuidade contínua, mas como eterno recomeço. No plano
formal, algo contraditório. Na história real, apenas contrário. Toda superação é
também recomeço. Não há solução final e definitiva, como não há felicidade eterna,
que já seria extensão da monotonia.
Ao se vencer um desafio, vem o próximo; ao se realizar um ideal, surgem outros.
Continuidade extensa é a morte. A morte é a extensão mais monótona que a história
conhece. Se toda revolução, de um lado, envelhece, a partir de dentro, como regra
da vida, por outro, aí mesmo elabora seu recomeço. Pois todo clímax é passageiro,
por mais que o desejemos eterno. Eternidade não poderia ser compreendida como
continuidade da mesmice, na horizontalidade estável, mas como auge da
intensidade. Verticalmente eterno é o momento total, não por durar sempre, mas por
buscar esgotar a profundeza da intensidade no momento da passagem. É o
momento que vale tudo, tão intenso que é possível “morrer de felicidade”. A vida
toda vale este “instante total”. Na história, não interessa a eternidade como linha
reta, sempre a mesma, formal e fria, mas a curva dinâmica em busca do ápex. Este
é apenas o momento mais alto — um só —, mas define seu alcance. A felicidade
realiza os dois momentos marcantes de sua intensidade: a passagem pelo clímax
intenso e efêmero — e a seguir o recomeço da nova fase. Por isso o momento
profundo é o autêntico processo, processo de recomeço, em que a passagem não
se pulveriza na insignificância, mas se eterniza na violência da intensidade.
Qualidade não é sólida; é frágil. Não tem resistência dura daquilo que se petrifica
(64). É passageira, para retornar. Recriar é seu signo. Só se recria o que passa. O
melhor é sempre mais passageiro.
Início de nota de rodapé
64- BERMAN, M. 1986. Tudo que é sólido desmancha no ar — A aventura da
modernidade. São Paulo, Companhia das Letras.
Fim de nota de rodapé
Página 118
A vida tem sua sabedoria no equilíbrio contrário entre desejos infinitos e realizações
parciais. O prazer sexual é exemplo: por mais forte que seja o desejo, também
satura. Mesmo divertir-se pode ser cansativo. É fundamental variar. Todavia, a
surpresa não pode ser diária, pois já não surpreenderia. O orgasmo é por definição
passageiro, pois é gesto fisicamente Iimitado. Na sua passagem pode ser intenso,
profundo, totalizante. Mas não é factível sua continuidade extensa, tanto por
impossibilidade física, como sobretudo porque quebraria seu encanto. E lei da vida:
após o clímax vem inevitavelmente a calma. Esta é que dura, o outro passa. E
possível inventar modos e jeitos para prolongar o prazer, mas é especialmente
importante poder recriá-lo. Passagem criativa, que passa, não para desaparecer,
mas para reviver. Esta é a eternidade que interessa; a outra aborrece.
Diante dos desejos infinitos, não há solução cabal. Há propriamente pactos, porque,
no fundo, mais do que solucionar nossos problemas, mudamos de problemas. Pois
toda solução reencontra novos problemas e toda fase propicia a seguinte. Esta cisão
é fundamental para se compreender o ser dialético. Tem a constituição de problema
estrutural, para ser histórico. Assim, em parte não é problema, pois, sendo problema
na estrutura, não é problema histórico, mas condição dada. A limitação histórica não
limite, porque tal incompleição não é falta, mas marca. A unidade de contrários está
na sua alma. Não é acidente, descuido, nem degeneração, mas modo de ser.
Portanto, não pode haver receita definitiva da felicidade, por mais que nela se
reconheçam lógicas. Felicidade é arte, criatividade. É sabedoria, que provém
sobretudo da prática irreptível. Se é variação, passagem, seria contraditório querer
receita da qualidade, porque teríamos que inventar a receita da não-receita. Como
garantir a continuidade invariante do que é essencialmente provisório? Não se pode,
a rigor, programar o improviso. Intensidade também é surpresa.
A felicidade tem a lógica e a consistência da flor: não há como separar sua beleza
da fragilidade e do fenecimento. O fenecimento não é apenas a destruição de sua
beleza, mas condição de recomeço. Deve-se aceitar que a flor é bonita porque
fenece. Flor que fica sempre é de papel, artificial. Cópia. A flor viva vive a
contrariedade da vida: desgasta-se, passa. A seguir, brota de novo. A felicidade
possui o frenesi do desejo eterno na sua estrutura, mas realiza-se na passagem
intensa de um momento
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na sua história. Ser feliz é multiplicar momentos felizes. Ou: saber deglutir a
infelicidade, que é diária, para saborear melhor a felicidade, sempre que for possível.
Felicidade, não se passa por ela. É ela na passagem. A maior infelicidade é querer a
felicidade total, toda hora. Todo amor acaba traído. Dói. Mas recomeça. Olhar a
qualidade a partir da ótica da felicidade pode induzir a restringir o desafio ao plano
pessoal ou psicossocial. Para nossos fins aqui, o realce maior estará ligado ao
horizonte político do ser humano, no qual o repto central não é ter mais, mas ser
melhor. Trata-se de visualizar a história como obra coletiva, na qual, principalmente
sob o horizonte da cultura e da identidade cultural, o ser humano comprova que é
capaz de fazê-la, ou seja, de fazer e fazer-se oportunidade. Certamente, não
podemos destruir o contexto dialético da história, quer dizer, qualidade política não
expressa apenas o lado bom, não só porque este não está sozinho, mas sobretudo
porque tende a ser minoritário. A história conhecida propende muito mais a ser um
ato de afirmação excludente, do que de solidariedade ilimitada. Assim, na cultura de
cada povo não está escrito apenas a comprovação histórica de sua competência em
identificar-se, sobreviver e fazer uma sociedade comum, mas igualmente de
conquistar espaço próprio e de se impor. Por isso, quando falamos de competência
histórica, a tendência é interpretá-la como conquista que se impõe. Ao dizermos,
entretanto, “competência humana”, buscamos res- saltar a história solidária (65).
Tudo isto, porém, é interessante de se dizer, mas dificílimo de pesquisar. Tomemos
como exemplo a proposta de pesquisar o engajamento político em fenômenos
associativos. Podemos ir mais pelo lado quantitativo, contando o número de
membros, quantas vezes se reúnem, atendimento interno e externo. Entretanto,
pode ser indicação enganosa, se estivermos interessados na intensidade. A
associação reúne-se toda semana, mas não aparece quase ninguém. Pode ter
muitos sócios, mas fictícios. A mera soma de sócios não produz a qualidade da
associação, e haveria mesmo cientistas dispostos a mostrar que a associação
menor, onde os sócios ainda se conhecem face a face, tem chances melhores de
engajamento do que as maiores, irremediavelmente
Início de nota de rodapé
65- Sobre esta discussão em torno da qualidade, veja capítulo específico em:
DEMO, P. 1998d. Questões para a teleducação. Petrópolis, Vozes.
Fim de nota de rodapé
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burocratizadas. Por outro lado, podemos ter assembléia cheia, mas ninguém fala,
porque o Iíder fala sozinho e todos obedecem. Com isto, parece claro que o caminho
quantitativo ajuda em certa medida, mas nem de longe resolve a questão da
qualidade. Mas, como consigo saber se existe engajamento político? Mesmo sendo
qualquer proposta extremamente frágil, posso aventar alguns vislumbres:
a) é viável colher a opinião dos sócios que se dizem engajados, para averiguar como
definem seu engajamento; esta informação pode ser incompleta ou mesmo
enganosa, porque todo sócio tende a fazer boa figura, verbalizando engajamento
que, na prática, não cumpre; mas podemos também encontrar casos de genuíno
engajamento, que diálogo aberto e controlado pode minimamente codificar;
b) é viável observar a prática dos sócios que se dizem engajados, e averiguar o que
sucede de concreto; será possível ver gama muito variada de comportamentos, mais
ou menos convergentes, o que permitiria alguma análise da intensidade;
c) é viável também observar a atuação da associação conforme seus objetivos
sociais, para além de suas verbalizações, e chegar a notar se faz o que diz ou
apenas diz que faz;
d) é viável, ademais, colher informação na sociedade que é alvo das ações da
associação, para averiguar até que ponto se reconhece o engajamento político e
como se define concretamente.
Em qualquer caso, trabalho dimensões etéreas, que facilmente escapam à
formalização. Reconhecer isto, porém, não impede de reconhecer que é possível
pesquisar, com as devidas cautelas. Entre estas, está a regra de que a metodologia
usada deve poder ser refeita por todos que dela duvidarem. Num primeiro plano,
esta regra rejeita que pesquisa qualitativa admita qualquer procedimento,
acobertando banalidades insustentáveis. Num segundo plano, recomenda postura
metódica, cientificamente controlada, para permitir discussão crítica e autocrítica. Ao
mesmo tempo, a questão da intensidade e da emergência não cabe adequadamente
nos quadros da representatividade estatisticamente controlada, por- que não é, a
rigor, mensurável. O que se perde em representatividade pode ganhar-se em
profundidade, desde que esta seja minimamente formalizada. É comum o uso de
“depoimentos”, sobretudo quando pesquisamos populações excluídas. Toma-se logo
importante anotar que o depoimento em si não se Constitui
Página 121
em argumento, porque lhe falta a ambiência científica que o senso comum, como
regra, não tem. Mas o pesquisador pode lhe atribuir valor científico, dependendo do
tratamento metodológico aplicado. Por exemplo, em vez de esperar de depoimentos
qualquer valor “demonstrativo”, pode-se valorizar seu caráter “ilustrativo” ou
“exemplar”. Encher páginas e páginas de depoimentos pode apenas expressar que
estamos substituindo as vacas sagradas da academia por outras ainda mais frágeis.
Mesmo em nível inicial, será sempre fundamental motivar os alunos a pesquisarem,
também em áreas qualitativas. Não se tratará tanto de resolver problemas — que a
ciência sequer resolve — como para aprender a problematizar, sobretudo os
próprios dados. Produzir e analisar dados é tão importante quanto desconfiar deles.
Seu bom uso depende, mais que tudo, de saber de seus limites. Exemplo
interessante disso é o livro sobre as “mentiras mensuradas”, mostrando que a curva
de Gauss é mais abusada em análises estatisticamente controladas, do que bem
usada (66).
Início de nota de rodapé
66- KINCHELOE, J. L. et alii (ed.). 1997. Measured lies — The bell curve examined.
New York, St. Martins’s Press.
Fim de nota de rodapé
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Em branco
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6
OBTER E PRODUZIR INFORMAÇÃO
Antes de inventar dados, é mister trabalhar a informação já disponível. Digamos, se
quero estudar o fracasso escolar, em vez de logo meter-me a fabricar questionários,
aplicar e analisar, posso descobrir que em algum lugar existem dados importantes a
respeito, por exemplo, no INEP (órgão de pesquisa e avaliação do Ministério da
Educação). Lá se fazem avaliações recorrentes sobre o desempenho escolar dos
alunos, além de censos sobre professor, escola, livro didático etc. De repente,
encontro tudo já mais ou menos pronto e estatisticamente controlado. Quer dizer, é
fundamental saber encontrar informação, mantendo-se a par de todos os modos
possíveis e imagináveis. Hoje temos via sugestiva à mão: a Internet. Entrando no
site do INEP, será possível ter idéia do que se pode obter pela via eletrônica e que,
para trabalho de semestre, pode fartamente bastar. O manuseio de dados será
facilitado sobretudo pelo interesse do Departamento em promover tais atividades,
seja cultivando acessos eletrônicos a bancos importantes de dados, fazendo
convênios com entidades que produzem dados, seja armazenando dados
diretamente, sobretudo os de interesse mais imediato, bem como produzindo dados
próprios. Existem temas recorrentes que será o caso sempre acompanhar: por
exemplo, dados sobre criminalidade urbana, principais indicadores do desempenho
econômico do país, índices educacionais básicos, e assim por diante.
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Existe a regra segundo a qual o dado melhora, se usado e criticado. Por exemplo,
na década de 60 e 70, usávamos o conceito de renda per capita como indicador de
renda individual das pessoas, sabendo, entretanto, que seu poder indicativo era
muito limitado, por várias razões: as pessoas não gostam de dizer sua renda, tanto
quando ganham pouco, como quando ganham muito; tendem a revelar apenas a
“renda forma”, ou seja, aquela de fonte legal e de preferência fixa, como é o salário;
escondem fontes eventuais, sobretudo escusas. O enfoque individual também
obscurece a realidade familiar, onde as rendas precisam ser divididas.
Imaginávamos que a informação contida na “renda individual per capita” abrangeria
talvez por volta de apenas 50% do montante geral da renda. As estatísticas
apontavam tal incongruência no fato de que uma percentagem elevada — digamos
30% das pessoas — não tinha qualquer fonte de renda (apareciam na estatística
como “sem rendimentos”). Dificilmente é aceitável que tanta gente viva do nada.
Provavelmente fazem parte de orçamentos domésticos em que recebem apoio
coletivo de sobre- vivência, ou possuem fontes eventuais de renda não declarada,
ou sobrevivem de auxílios de outros ou da rua... Com isto, desenvolveu-se a idéia da
“renda familiar per capita”, que ainda não consegue captar toda a renda — é claro —
mas é bem mais abrangente e indicativa. Esta melhora do dado proveio sobretudo
de seu uso e crítica.
Algo similar se pode dizer do velho indicador da renda per capita dos países e que
um dia valia como indicador de desenvolvimento. Com efeito, este indicador diz
apenas a relação entre população e renda, não sua distribuição. Desde logo,
esperávamos do dado algo que sequer poderia dar, estando o erro muito mais nos
intérpretes do que nele mesmo. Refletindo melhor sobre o conceito de
desenvolvimento, fomos descobrindo que o desempenho econômico é fundamental,
mas jamais o único e fator, e hoje possivelmente nem mesmo a relação mais central.
A ONU, através do Programa da Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD),
publica todo ano Relatório do Desenvolvimento Humano, ranqueando os países de
acordo com três indicadores: educação, expectativa de vida e poder de compra. O
fator econômico aparece, obviamente, mas em terceiro Iugar. Em primeiro, está
educação. Por quê? Porque na definição de desenvolvimento privilegia-se o conceito
de “oportunidade”. Ora, que fatores estão mais próximos de proporcionar
oportunidades? O que dá mais
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oportunidade às pessoas, sobretudo que fator favorece às pessoas “fazerem-se
oportunidade”? Possivelmente, em primeiro lugar, a educação, e, em segundo lugar,
a longevidade. Até chegar aí, muita água correu por debaixo da ponte, e, sem que a
polêmica tenha terminado, conseguimos discussão pelo menos mais rica e dados
mais pertinentes. Na prática, há países com altíssima renda per capita e população
geral muito pobre, bem como há outros com renda per capita modesta, mas melhor
distribuída.
Ademais, é necessário sempre observar criticamente a consistência de tais dados,
porque, tratando-se de realidades nacionais, seu poder indicativo é muito
problemático, a começar pela facilidade de manipulação. Caracteristicamente, na
primeira versão do Relatório do Desenvolvimento Humano em 1990, os Estados
Unidos apareceram ranqueados por volta do 20° lugar, o que lhes pareceu muito
desagradável. Alguns anos depois, postavam-se nos primeiros Iugares, sob efeito de
clara manipulação dos dados, já que, em termos de qualidade de vida (não apenas
de quantidade), há muitos países à frente, como a Escandinávia em peso e vários
países da Europa. No caso do Brasil, tem se saído muito mal, porque, sendo
educação um dos fatores mais precários de nossa realidade, nunca conseguiu
postar-se abaixo do 50° lugar, que obteve em 1990. Continua incômodo que, sendo
mais ou menos a 10a economia mundial, em qualidade de vida esteja mais de cinco
vezes atrás. Esta análise mostra, de todos os modos, que o dado não é primeiro.
Depende da referência teórica e indica o que esta referência o faz indicar. E
construto, não representação direta da realidade. No IBGE não está o Brasil real,
mas possivelmente o oficial. Mesmo assim, é de suma importância produzir os
dados do IBGE, não só para fins oficiais, muitas vezes suspeitos, mas sobretudo
para acesso público em termos de informação disponível e recorrente.
Todavia, não havendo informação disponível, é mister inventar. “Inventar” não deixa
de ser termo correto, porque, ao fazermos informação nova, sendo construto, não
podemos deixar de reconhecer que não só indicamos, como também manipulamos a
realidade. Em ciências sociais, usa-se muito a aplicação de questionários e os
distinguimos entre fechados e abertos. Os questionários fechados buscam
informação previamente formalizada, encaixando as respostas em formatos já
definidos: “sim”, “mais ou menos”, “não”. Digamos a pergunta: aprova o atual
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desempenho do presidente da República? Podemos simplificar as respostas em
apenas sim e não, bem como podemos nuançar dentro de escala mais ampla, o que
certamente será preferível. O respondente, mesmo que queira nuançar ainda mais,
terá de encaixar-se nas gavetas previstas. No caso de questionário aberto, a
resposta pode ser gravada ou será anotada em detalhe, deixando-os o respondente
falar à vontade. Pode ser muito mais realista, mas, metodologicamente falando,
coloca inúmeros problemas, tais como:
a) a abertura é, em grande parte, ilusória, porque, depois, o pesquisador precisa
formalizar as respostas, encaixando-as em categorias analíticas. A conversa, como
aparece gravada, mesmo muito interessante e viva, não serve para fins analíticos,
porque precisa ser “reduzida” a padrões recorrentes, conforme alguma hipótese de
trabalho que lhe traça a relevância. A abertura é importante para que a informação
flua melhor e expresse de maneira mais palpável a qualidade do dado, mas não
evita a necessidade de formalizar; antes, é outra maneira, menos linear, de
formalizar;
b) a abertura não pode ser total, porque, se não houver pelo menos roteiro prévio, as
informações, depois, não somam. E fundamental, metodologicamente falando, que
cada nova entrevista replique os mesmos contextos analíticos, para que sejam
comparáveis. Se, por um lado, a conversa, quanto mais solta, mais pode ser
qualitativa, por outro, mais complicada para ser formalizada;
c) as entrevistas precisam ser feitas de tal modo que possam ser refeitas, para fins
de teste ou de superação de dúvidas. Se a conversa for fortemente “particular”,
deixa o esquema de análise e torna-se impraticável a busca de alguma
universalização do dado, algo inerente à pretensão científica de expressar faces
recorrentes da realidade, não surtos individuais irrepetíveis. Para tanto, é
fundamental o roteiro, bem como a maneira de “conduzir” por parte do entrevistador,
para não perder o fio da meada;
d)em entrevistas mais profundas, que implicam “arrancar” do entrevistado posições
mais sensíveis, escusas, pudicas, a questão se complica ainda mais. Por vezes, o
entrevistador faz bem em dar a entender que o entrevistado pode falar o que quiser,
para deixá-lo à vontade, desde que isto seja a estratégia de falar o que o roteiro
prevê, porque, no fundo, só será aproveitado o que
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couber no roteiro. Isto mostra que a abertura esconde tática manipulativa evidente,
embora defensável neste caso;
e)a entrevista pode ser feita também em tom de diálogo crítico, no qual o
entrevistador tenta, quando necessário, encurralar o entrevistado, para evitar
evasivas ou mesmo inverdades. Neste caso, entretanto, talvez nunca saberemos se
a informação finalmente obtida é mentira por parte do entrevistado ou o que se
queria ouvir por parte do entrevistador. Quando a entrevista vira “interrogatório”,
corre o risco de descobrir “verdade” mais profunda, escondida, bem como de obrigar
o interrogado a assumir a culpa, mesmo que seja inocente.
Esta visão crítica, todavia, mostra não só o lado precário do dado, mas igualmente
sua beleza. Dado quadrado, toscamente linear, bruto, não indica nada, porque, mais
que tudo, “amarrota” a realidade. Para indicar algo e sempre fragilmente, precisa ser
elegante, bem trabalhado, fino, refinado, tendo como virtude principal abertura
irrestrita ao questionamento. Isto é tanto mais relevante quanto mais nos
interessamos por “dados qualitativos”, a começar pela dubiedade do termo: dados
qualitativos são algo em si contraditório, porque expressam, se tanto, as facetas
mensuráveis da qualidade. Estas sempre existem, porque nada é tão qualitativo que
não possa, de alguma forma, ser “mensurado”, ainda que muito grosseiramente. Por
exemplo, o Quociente de Inteligência (QI) representa a tentativa de mensurar algo
intensamente qualitativo, em particular quando definimos inteligência pela habilidade
de saber pensar. Os testes podem ser facilmente ridicularizados, porque tendem a
aprisionar facetas quantificáveis, e facilmente desandam em mera memorização, por
exemplo. Decorar datas históricas está longe da capacidade de sua interpretação
crítica. Memorizar fórmulas matemáticas não indica, necessariamente, que se sabe
matemática. Mesmo assim, pode-se usar o QI como primeira aproximação, com
todas as cautelas, como podemos usar a “renda per capita” para comparar países,
mas sabendo que este indicador não indica desenvolvimento e, sim, apenas a
relação estatística entre população e renda.
Alguns pesquisadores mesclam perguntas fechadas e abertas, servindo ambas de
teste mútuo e complementação. Seja como for, é preciso sempre ter em mente
propriedades e impropriedades dos procedimentos. Digamos que estou estudando a
capacidade de aprender de professores básicos, algo que tem faces qualitativas
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claras. Posso começar por quantificações aproximativas: quantos livros técnico-
científicos leu no último ano? Como resposta, formalizo previamente três saídas:
nenhum, até dois, mais de dois. Tais delimitações refletem tessitura teórica implícita,
como seria a expectativa de que ler dois livros num ano já seria algo considerável.
Na Alemanha, certamente espera-se muito mais. Está implícito também que para
aprender é mister ler, ou que seria fundamental para o professor participar do mundo
cultural dos livros técnico-científicos. Analisando melhor, porém, esta informação
pode ser muito tosca, porque não discrimina entre leitura que aprende e outra que
não aprende. Com efeito, o professor pode ter folheado dois livros, ou lido sem ter
entendido. Em vista disso, posso acrescentar outra pergunta mais aberta: diga até
três conceitos básicos de cada livro que leu! Por certo, esta indicação ainda é
magra, tanto porque pode inventar, quanto porque três conceitos podem ser tidos
como relação insatisfatória. Posso, por isso, abrir mais ainda a pergunta: diga, com
palavras próprias, qual o conteúdo de cada livro! Aí corro outros riscos: falar muito
sem dizer nada, inventar história para impressionar, apontar conteúdo de livro que
Ieu em outra época como se fosse de agora... Não encontro solução final, pois não
existe. De todos os modos, a informação proferida por outrem será aceita por mim
como se fosse verdadeira, e nem sempre tenho condições de desvendar isso, sem
falar que, no fundo, não se pode desvendar. Mesmo assim, posso colher dados
muito importantes, apesar da extrema fragilidade, por exemplo, que a maioria dos
professores não lê mais que dois livros por ano.
Tudo se complica ainda mais quando se trata de universo dito qualitativo,
significando por isso quase sempre entrevistar poucas pessoas. Foge-se de fazer
entrevista representativa estatisticamente falando, para nos compensarmos com
escavação pro- funda de realidades mais complexas e delicadas. Tomemos como
exemplo: estou pesquisando como as pessoas definem felicidade, algo, desde logo,
difícil de definir. Por hipótese, fixo-me em frequentadores da Igreja Universal do
Reino de Deus, supondo que felicidade facilmente se relaciona com religiosidade e
ultimamente esta Igreja tem sido muito procurada. Como se vê, já tomamos grandes
decisões teóricas prévias, mesmo que sejam descritas como hipóteses. Surge,
então, a pergunta: quantas pessoas vamos entrevistar? Dez, cinquenta, cem? No
fundo, não há maior diferença, já que não se busca representatividade. Podemos, no
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máximo, dizer que é prudente não ficar com apenas algumas pessoas, porque o
risco de idiossincrasia é grande demais. Mas o tamanho desta prudência é, de novo,
insolúvel. De minha parte, faria cem entrevistas, apenas por razões externas de bom
senso: é fácil fazer percentuações, é número “razoável”, permite espaço
comparativo mais tranquilo... Melhorou as coisas se “estratifico” a amostra,
delimitando por alguns critérios como “frequentadores semanais”, “adeptos de mais
de um ano”, para garantir melhor que as respostas tenham relação mais visível com
religiosidade. Depois, vêm outros problemas: as pessoas não falam facilmente sobre
felicidade, desconfiam que estejam sendo estereotipadas porque a imprensa tem
criticado está Igreja, querem antes pedir licença para o pastor, sem falar que
respostas altissonantes sobre felicidade tendem a indicar o contrário, pois quem é
feliz não “toca trombeta na esquina”. Por fim, se conseguir obter tais dados, posso
ter em mãos, ao mesmo tempo, algo muito interessante e precário, e que, no
máximo, clarifica, ilustra, delineia a questão da relação entre felicidade e
religiosidade.
Com efeito, é possível afirmar que a pesquisa qualitativa tem sido abusada a torto e
a direito nas ciências humanas, servindo a manipulações sonsas de toda ordem.
Nem sempre a intenção em si profundamente correta de obter informação mais
qualitativa se realiza, porque os dados obtidos são sobretudo aleatórios, feitos sem
roteiro adequado, afoitos em termos de ecoar informações indicativas mais comuns,
perdidos em depoimentos descompromissados metodologicamente falando.
Esquecemos os limites da própria ciência e de todos os métodos, também dos
qualitativos, e respondemos a erro com erro oposto. Se a pesquisa empírica
clássica, mesmo evitando o empirismo, não satisfaz para fenômenos mais
qualitativos, a pesquisa dita qualitativa também não resolve todos os problemas, já
que, por definição epistemológica, é impraticável devassar a realidade por completo.
O que a pesquisa qualitativa pode fazer, e tem nisto todo seu direito, é realçar
horizontes alternativos, apontar dimensões esquecidas ou reprimidas, chamar a
atenção para o que se esconde à sombra, clarificar os silêncios, as reticências.
A sociedade já está habituada à enxurrada de informações que aparecem
publicamente na imprensa e na televisão. Torna-se mais visível em tempos
eleitorais, quando os índices de aprovação e voto passam a ser críticos das chances
de cada candidato.
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De uma parte, impressiona que os Institutos de Pesquisa obtenham indicações tão
potentes de amostras tão miseráveis. Embora tenham caminho bem andado de
estratificação da amostra, porque já sabem o peso relativo de cada componente (por
gênero, idade, renda, domicílio, anos de estudo etc.), tais pesquisas parecem-me
muito insatisfatórias para produzir a segurança que os candidatos esperam. De
outra, esperamos delas o que nunca podem dar: certeza. Primeiro, são cálculos
probabilísticos, com margem de erro implícita e normal. Segundo, refletem tendência
tipicamente não linear, o que leva a equívocos constantes, como dormir vitorioso e
acordar derrotado.
Pesquisa qualitativa é muito mais severa e complexa. Ao contrário da expectativa
comum, sobretudo em ciências humanas. A fineza de dados mais sensíveis só pode
aparecer no decurso de trabalho beneditino, obsessivamente cauteloso e crítico.
Todo questionário, antes de ir a campo, precisa ser submetido a pré-teste, porque
mesmo pesquisadores experimentados cometem seus percalços. Arte essencial é
saber fazer perguntas claras, bem discriminadas, que evitam duplo sentido ou
sentido esparramado, conduzindo a respostas precisas. Existem instituições que
“vendem” perguntas já prontas, porque foram submetidas a testes estatísticos e
podem ser utilizadas com relativa tranquilidade.
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7
TEORIZAR E PRATICAR
Forma interessante de pesquisar é partir da prática, submetendo-a a nova
teorização. Dizemos que toda teoria precisa confrontar-se com a prática, porque, isto
fazendo, tem que mudar, pois é impossível coincidência completa entre ambas. Vale
o reverso: toda prática precisa voltar para a teoria, para poder ser revista e por
vezes superada. A prática tem suas virtudes, a começar por ser concreta, fazer parte
da realidade, acontecer de verdade. Mas tem suas Iimitações: tende a converter-se
em rotina, girando em torno de si mesma. Para evitar isso, é necessário propor,
permanentemente, um banho de teoria crítica. Por exemplo, se os professores
básicos teorizassem sua prática de modo crítico, poderiam descobrir, entre outras
coisas, que os alunos aprendem pouco e que parte deste problema pode provir dos
próprios professores pouco interessados na aprendizagem do aluno. Isto posto,
segue o passo seguinte que é propor soluções à luz de novos estudos que possam
trazer idéias renovadas (67).
A sociologia mostra facilmente que a sociedade se agarra a normas e valores,
constituindo sistema tendencialmente repetitivo
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67- Veja interessante estudo de práticas didáticas comparadas em educação básica,
mostrando a superioridade da japonesa por saber, mais que as outras, teorizar suas
práticas: STIGLER, J. W. & HIEBERT, J. 1999. The teaching gap — Best ideas from
the worlds teachers for improving education in the classroom. New York, The Free
Press.
Fim de nota de rodapé
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de comportamento. Mais ou menos, fazemos todos os dias a mesma coisa. Em
aulas de introdução à sociologia, sempre propus que os alunos pesquisassem o
seguinte tema: “Sou medíocre”. A princípio, levavam susto. Depois, pensando bem,
percebiam que a tendência à mediocridade é avassaladora em nossa vida. A família
vive rotineiramente, o casamento vira reprodução enfadonha, as amizades mofam
porque são sempre as mesmas, trabalhamos, por vezes trinta anos, no mesmo lugar
e do mesmo jeito, mantemos comportamento similar a vida toda. A mudança só
pode provir do contrário, ou seja, de sacudir a rotina. Primeiro, há que detectar a
rotina, desconstruindo-a. Segundo, há que contrapropor, para sair da rotina. Assim,
é imaginável renovar nossas pretensões profissionais, rever a educação de nossos
filhos, voltar a estudar para aprender melhor, e assim por diante. O espírito crítico é
alimentado tanto pela teoria como pela prática. A prática comparece como outra
oportunidade de fazer boa teoria e a teoria boa oportunidade para encontrar prática
renovada. Quando falamos de paradigma científico, no fundo estamos apontando
sobretudo para seu lado rotineiro. Forma-se escola de pensamento e pesquisa,
geralmente sob a batuta de um ou mais líderes, à medida que as idéias se
sedimentam e, com isso, também se cristalizam. Observando bem, a reprodução de
idéias predomina sobre sua renovação. Os “donos” do paradigma cuidam que idéias
novas sejam filtradas ou afastadas. E difícil que o paradigma seja abalado de dentro.
O confronto mais propriamente vem de fora, de outra posição que se dispõe a
questionar e apresentar alternativas.
Método interessante de observar práticas é a observação. Para tomar-se
cientificamente adequada, precisa de procedimentos metódicos específicos.
Observar inclui plano de pesquisa, com tema e hipótese, levantamento teórico
pertinente e trabalho explicativo bem argumentado, além da coleta de dados
sistemáticos que permitam mapear o terreno e nele intervir de modo alternativo.
Muitas observações não incluem a intervenção direta, como seria, por exemplo,
observar o comportamento dos jovens em bailes violentos, com a intenção de
conhecer suas características principais, deixando-se para os políticos a
intervenção. Esta distinção, entretanto, está caindo em desuso, porque é
sumamente artificial. Mesmo que se tratasse de tese de doutorado, interessada
apenas em desenhar compreensão de traços centrais do fenômeno, a própria
presença do observador, de certo modo, influi no fenômeno,
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sobretudo quando existe consciência disso por parte do observado. Esta questão é
hoje reconhecida até mesmo em física, em particular na física quântica, na qual o
estudo de partículas nelas influi, mudando-lhes a trajetória, dinâmica ou outras
marcas possíveis (68). A par disso, sobretudo tratando-se de fenômenos sociais, é
impraticável a isenção, primeiro porque não podemos abdicar da condição de sujeito
interpretativo — não é viável vermo-nos de fora, saindo da própria pele — e segundo
porque os contextos sociais nos evolvem naturalmente pela própria pertença cultural
ou similitudes comportamentais.
Chamamos de observação participante aquela em que deliberadamente tomamos
parte do fenômeno observado, como é o caso do antropólogo que vive na aldeia
pesquisada. Entretanto, este nível não implica que o pesquisador intervenha na
aldeia, razão pela qual o adjetivo “participante” é um pouco forçado. Realmente
participante seria aquela observação que implica inserção no projeto político do
grupo observado, como é o caso dos intelectuais orgânicos de movimento
associativo de luta. Algumas vezes, chamamos a isto de “pesquisa participante”,
incluindo duplo intento: pesquisar e intervir (69). Trata-se de “pesquisa prática”,
direcionada a alimentar a contra-ideologia do grupo. Podemos ver este tipo de
pesquisa no DIEESE, por ser órgão de pesquisa dos Sindicatos, com a finalidade de
alimentar a Iuta sindical. Nem por isso confunde-se ciência e ideologia, por mais que
andem juntas. Quando se trata de levantar a inflação, usam-se os melhores métodos
e teorias disponíveis em ciência. Entretanto, não se basta com levantar, teorizar. O
objetivo declarado é participar de modo cientificamente melhor plantado na luta
sindical. Os pesquisadores, por sua vez, como regra, fazem parte do movimento de
luta como militantes ostensivos, desempenhando duplo papel: como cientistas,
estudam da maneira melhor argumentada possível a inflação; como militantes, usam
este conhecimento para proporcionar ao movimento condições aprimoradas de luta.
Com isso não estamos dizendo que toda pesquisa deva ser participante. E sempre
possível estudar um tema teoricamente
Início de nota de rodapé
68- CASTI, J. L. 1998. The Cambridge Quintet — A work of scientific speculation.
Reading, Massachusetts, Perseus Books.
69- DEMO, P. 1985. Investigación participante — Mito y realidad. Buenos Aires,
Kapelusz.
Fim de nota de rodapé
Página 134
para fins de sua categorização renovada ou alternativa. Sobretudo nos cursos
universitários, as pesquisas propendem a permanecer neste limite, como são as
teses de mestrado e doutorado. Não é mister ver nada de errado em grupo de
alunos que pretende entender o fenômeno da pobreza política sem estar ainda
preocupado em combater. É claro que o mero estudo cheira a alienação e é por isso
que facilmente tachamos a formação universitária de alienada, porque vive no
mundo da teoria ou no mundo da lua (70). Quando deixamos a universidade, nada
sabemos de prático. Neste sentido, seria de todo oportuno introduzir a teorização
das práticas, porque, sem qualquer prejuízo da teoria, acrescenta o contato com
realidades concretas, muito além dos estágios caricaturais. Em certo sentido, o
aluno nunca deveria sair da prática, como se, para estudar, fosse necessário
suspender a vida concreta. Toda reforma curricular deveria prever esta parte,
introduzindo matérias que pudessem ser pesquisadas a partir da prática, com-
binando elegantemente habilidade teórica com capacidade de intervenção.
O enfoque da prática, devidamente teorizada, possibilita a descoberta de desacertos
arraigados encobertos pela rotina. Tomando-se o exemplo da escola básica, uma
observação atenta poderia perceber:
a)que o projeto pedagógico tão decantado não existe; é apenas discurso vazio;
b)que as promessas de planejamento participativo são tendencialmente farsantes; a
comunidade é chamada para convalidar o que já está decidido;
c) que a eleição de diretor, menos que conquista democrática, é tática de autodefesa
da escola para proteger espaço intocável do professor;
d)que os alunos aprendem muito mal e os professores sequer se preocupam com
isso;
e)que os professores mandam os alunos estudar, mas eles mesmos não estudam.
Este é o lado negativo. Poderíamos também encontrar como certa prática de
avaliação totalmente comprometida com a aprendizagem
Início de nota de rodapé
70-BOTOMÉ, S. P. 1 996. Pesquisa alienada e ensino alienante — O equívoco da
extensão universitária. Petrópolìs, Vozes.
Fim de nota de rodapé
Página 135
do aluno estaria surtindo bons efeitos, ou que a eleição de diretor ocasionou
redobrado ânimo nos professores. O problema da teorização das práticas é que
demanda algum tempo, porque precisa ser vista, experimentada, codificada, para
ser estudada. Supõe, pois, para além de todo cuidado teórico, a dedicação a coletar
e produzir dados, para, em seguida, interpretar e contra- propor. Deve-se distinguir
prática de ativismo ou de intervenção atabalhoada, já que estamos falando de
prática cientificamente orientada. A prática se prestaria bem a trabalho de equipe,
permitindo dividir tarefas práticas e teóricas, somando-as tanto melhor. Facilitaria a
interdisciplinaridade também, embora esta seja por vezes mal interpretada. Primeiro,
há que distinguir entre trabalho de grupo e trabalho interdisciplinar. Naquele, trata-se
de ajuntar forças, neste, de ajuntar disciplinas. Embora um grupo homogêneo —
digamos de pedagogos — possa fazer até certo ponto trabalho interdisciplinar — por
exemplo, cada um aportando enfoque diverso ao problema da aprendizagem:
biológico, linguístico, cibernético, psicológico etc. —, o mais comum é que a
interdisciplinaridade vinga melhor em grupo heterogêneo. Uma coisa é cinco
pedagogos aportarem sugestões de disciplinas diversas, outra é tais sugestões
provirem de profissionais das próprias disciplinas. Não se pode pretender que
interdisciplinaridade conjugue a superficialidade do conhecimento, porquanto
conhecimento mais profundo é sempre especializado. Combatemos o excesso de
“disciplinarização”, porque estreita por demais o olhar ao aprofundá-lo apenas
verticalmente. Mas mantém-se a necessidade de especialização, porque é o preço
da profundidade. Neste sentido, a interdisciplinaridade não quer prejudicar a
verticalização do conhecimento e, sim, mas alargar até onde possível sua
horizontalização. É por isso que trabalho interdisciplinar é, mais propriamente, coisa
de grupo.
A interdisciplinaridade posta em grupo destaca, de imediato, do que se trata. Não
interessa somar saberes similares, mas díspares, capazes de ver o que outros não
vêem. Interessa, ao mesmo tempo, o olhar profundo, de quem vê bem. Trata-se,
pois, de somar profundidades, que poderiam iluminar a questão tanto mais. Dentro
do grupo, espera-se que cada membro cumpra seu papel, ou seja, dê conta de sua
especialização. O matemático espera que o sociólogo lhe traga o que a melhor
sociologia possível teria a dizer e vice-versa. Faz pouco sentido um se meter a
substituir o outro. Pois serão todos superficiais e banais.
Página 136
Em branco
Página 137
8
MEIOS CIBERNÉTICOS
Na sociedade do conhecimento, a teleducação comparecerá provavelmente em
todos os espaços educacionais, para melhor e por vezes para pior. Seu maior
problema é que propende para o instrucionismo, porquanto prefere restringir-se a
processar in- formação e repassá-la para frente. Apesar de sua extraordinária
potencialidade, tem permanecido como “telensino”, muitas vezes apenas
interessado em enfeitar a aula. Seu grande desafio é descobrir a aprendizagem de
teor reconstrutivo político, fazendo aparecer em seu espaço formação, para além da
informação. Em alguma medida, a tendência instrucionista provém da discussão em
torno da inteligência artificial, centrada no processamento de dados e tendo como
pano de fundo a teoria representacionista da realidade. A biologia, em particular as
neurociências, estão solapando esta pretensão, porque o próprio cérebro, em sua
tessitura conexionista, não é claramente equipamento reprodutivo. Da parte da física
apareceu a teoria da emergência, que tem procurado mostrar dinâmica reconstrutiva
típica de toda realidade. Penrose postula que o cérebro deverá ser explicado
possivelmente por outras teorias ainda não disponíveis, provavelmente quânticas.
Rejeita que o computador possa aprender, porque não está, pelo menos até o
momento, dotado da capacidade interpretativa emergencial
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(71). É o que também assevera Dreyfits, apesar do fogo cruzado desta polêmica já
azeda (72). O computador é ainda máquina excessivamente Iinear, muito longe de
poder “imitar” o funcionamento do cérebro, embora, dados os avanços persistentes,
um dia se possa imaginar computador que saiba pensar. Já o cérebro — chamado
por alguns de meatware para jocosamente indicar que pedaço tão simples e
especial de came pode, sendo em si mera matéria orgânica, produzir coisas tão
diferentes de sua base, como consciência, esperança, amor — contém
complexidade inaudita de componentes — 100 bilhões de neurônios, multiplicados
por todas as conexões imagináveis entre eles, onde claramente se nota o que
Norretranders supõe: o mais é diferente. Não se pode, a rigor, crer que esta
máquina tão fantástica não possa, um dia, ser desmontada e remontada pelo ser
humano, como aponta Kurzweil, falando das “máquinas espirituais”. Os
computadores do futuro trarão inovações surpreendentes, desde seu tamanho
microscópico até sua necessidade de corpo e espírito (73).
Seja como for, a pesquisa, tanto em sua versão de princípio científico quanto na de
princípio educativo, não prescindirá dos meios cibernéticos. Tendência relevante e já
em marcha é apontada por Tapscott, ao estudar a geração digital e seu gosto pela
aprendizagem em rede. Embora os críticos questionem este entusiasmo, porque o
computador serve, para a juventude, mais de entretenimento do que de ferramenta
de estudo, é possível vislumbrar que a aprendizagem em rede poderá explodir as
salas de aula. Não vai eliminar as escolas, mas as vai transformar em laboratórios
de aprendizagem, com duas inovações mais cruciais: quanto ao professor, passará
a orientador, já que a missão de reproduzir conhecimento será assumida pela
instrumentação eletrônica; quanto ao aluno, rejeitará o instrucionismo, exigindo
condições efetivas de aprendizagem autêntica, voltada para a habilidade inequívoca
de reconstruir conhecimento. A partir daí, outras inovações ocorrerão, entre elas:
Início de nota de rodapé
71- PENROSE, R. 1994. Shadows of the mind — A search for the missing science of
consciousness. New York, Oxford Univ. Press.
72- DREYFUS, H. L. 1997. What computers still cant’ do — A critique of artificial
reason. Cambridge, Massachusetts, The MIT Press.
73- KURZWEIL, R. 1999. The age of spiritual machines — When computers exceed
numan intelligence. New York, Viking.
Fim de nota de rodapé
Página 139
a) a aprendizagem virtual se tornará normal e talvez predominante. Sem substituir a
presença física, torna-se obsoleto admitir que se possa aprender apenas sentado
numa carteira escutando a aula do professor. A orientação do professor toma-se
tanto mais necessária, mas também pode ser feita a distância;
b) a aprendizagem reconstrutiva politica se imporá como exigência fundamental do
direito de aprender, já que “growing up is about learning” (crescer é aprender), na
linguagem de Tapscott. Propostas reprodutivas, professores que apenas dão aulas,
cursos noturnos montados apenas sobre exposições requentadas, currículos
dedicados apenas a transmitir conteúdos em massa tornar-se-ão relíquias de
passado subdesenvolvido;
c) sobretudo as pós-graduações serão organizadas sob a forma de teleducação,
admitindo-se aos poucos o uso da imagem como forma de argumentar. Será
possível compor tese de mestrado e doutorado em vídeo, filme, CD-ROM, ou
qualquer outro veículo eletrônico, sem prejuízo dos rigores acadêmicos usuais,
sobretudo da necessária argumentação teórica e arrumação metodológica;
d) tornar-se-á natural o trabalho em equipe, com tendência interdisciplinar, qual
empreitada coletiva, sobretudo em rede, de reconstrução sistemática de
conhecimento, acrescentando-se principalmente a idéia de aprendizagem
permanente. Todos poderão participar, fundar, propor grupos virtuais de estudo, com
a vantagem de atender a gostos individuais também. O direito de estudar se imporá
como fundamento do direito à oportunidade, e sua organização será cada vez mais
virtual;
e) os abusos da teleducação, aos poucos, serão questionados e, pelo rnenos em
parte, superados, porque, tratando-se de sociedade do conhecimento, expedientes
reprodutivos serão vistos como espoliação indevida. O próprio mercado tenderá,
dentro da Iógica da competitividade, a expelir propostas imbecilizantes, ainda que
mantenha sua imbecilização própria capitalista;
f) o acesso à informação estará resolvido, pelo menos como disponibilidade. O
problema será a sobrecarga de informação, sua baixa qualidade informativa,
sobretudo formativa, abusos do sistema em termos de filtragem e tendenciosidade;
g) a globalização chegará em cheio à aprendizagem, com seus lados pertinentes e
perversos: de um lado, a luta por monopólios de software e hardware será de vida e
morte, tornando
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letra morta a expectativa de democratização fácil da informação; de outro, a
comunicação correrá, mais ou menos sem peias, solta pelo mundo, em redes como
a Internet.
Os meios cibernéticos não substituem a geração direta de dados pelos
pesquisadores, claramente, mas acrescentam campo inigualável de oportunidades,
à medida que praticamente todos os temas possíveis e imagináveis obtiverem algum
tratamento. Pode-se ter influência negativa no sentido do abandono dos clássicos,
das discussões mais complexas e detidas, das simplificações crescentes enlatadas,
mas isto é do negócio. Sabendo usar, o acesso ao mundo das informações estará
mais ou menos aberto, dependendo ainda — sempre — das condições financeiras
de cada um e de cada instituição. Em termos concretos, são dois os horizontes mais
fundamentais:
a)teremos acesso ao mundo da informação e do conheci- mento, como usuários,
podendo participar relativamente de seus avanços e disponibilidade, em sentido
global. O que se faz de novo, imediatamente pode ser visto e acompanhado, não em
toda extensão, porque os “donos” não abrem sua “caixa preta”, mas pelo menos em
alguma extensão. Basta olhar para a maior livraria virtual do mundo —
“AMAZON.COM” —, onde podemos acompanhar a dinâmica das publicações muito
de perto, já selecionada por best-sellers, para cada área, incluindo-se ainda
resenhas de toda sorte sobre todo autor importante; embora os custos de comprar
tais livros sejam elevados, é possível afirmar que aí podemos seguir os passos das
inovações com grande detalhe. Esta é, entretanto, a perspectiva de como somos
influenciados, de como recebemos a informação, de como podemos socializar
conhecimento. Muito mais decisivo é o próximo horizonte:
b)trata-se de participar da dinâmica de gestação do conhecimento e da informação,
para que nos seja possível manter a condição de sujeito. O que discrimina os povos
entre desenvolvidos e subdesenvolvidos é sobretudo esta relação muito desigual:
uns poucos são os “donos” do conhecimento, outros tantos — a grande maioria — o
reproduzem. Para aproximar-se desta oportunidade, o primeiro requisito é poder
participar dos circuitos cibernéticos, em particular usar a Internet; o segundo é
pleitear inserir-se em grupos virtuais de estudo, nos quais se torna possível
intercambiar informação e conheci mento, mas sobretudo participar de ambiente
produtivo de informação e conhecimento. Trata-se,
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na verdade, de grupos de pesquisa que buscam ostensivamente aprendizagem
reconstrutiva. Não só é possível participar de tais grupos, como é possível também
— pelo menos em tese — inventar grupos novos, abrindo novos sites na Internet,
por exemplo.
Dois são, portanto, os desafios maiores: como não sucumbir ao entupimento da
informação, em particular daquela feita para desinformar; e como aprender de
verdade, sem ser o joguete de esquemas alheios que nos reduzem à reprodução.
Diante disso, o currículo atual se tomará cada vez mais caduco, em particular sob
seu aspecto reprodutivo. Em vez de ficar escutando professor facilmente
desatualiza&, é preferível navegar na Internet à procura de novidades, desde que
não fiquemos na postura de telespectador. Como o mundo cibemético é marcado
pela velocidade, tende à superficialidade. Teremos cada vez mais produtos
facilitados — por exemplo, os clássicos em cinco páginas para cada um a cores—,
banalizações primárias de polêmicas extremamente árduas, truncamento de
trajetórias argumentativas. Aí mora o perigo. Não podemos aceitar que a
aprendizagem reconstrutiva política possa se tornar procedimento fútil, encontrada
em doses de todo calibre na Internet. Em vez de sólida cultura científica,
conquistada com duro trabalho reconstrutivo profundo, podemos nos contentar com
camada superficial de tinta, borboleteando por todos os autores, tendo deles no
máximo informação preliminar. Em certa medida, esta é a idéia de “fichar livro”. Bem
entendida, é pertinente. Como é feita, trata-se de reprodução deslavada, quando
não de deturpação pura e simples do autor.
A teleducação, entretanto, tomará conta de outros espaços, em particular da
educação profissional, tornada já educação per- manente, no contexto também do
direito de estudar sempre. À medida que os conteúdos profissionais envelhecem —
em certos espaços com incrível velocidade — é preciso recuperar a flexhilidade,
acompanhar novos passos, vislumbrar as tendências, e isto se faz melhor pela
teleducação, única via de acesso mais universal, em qualquer tempo e Iugar.
Possivelmente, os próprios consumidores da televisão e de outros cantos
cibernéticos tomarão suas providências, coibindo os desmandos do mercado, para
abrir espaços às expectativas de informação e conhecimento necessários para a
aprendizagem permanente. Todavia, este movimento também mostrará a verdadeira
arqueologia do saber, que esconde, no
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fundo de suas entranhas, o eterno tema do conhecimento proibido74. Somente algo
tão importante para o ser humano poderia ter tão ostensiva dupla face: serve para
desmascarar a realidade, ao mesmo tempo que a máscara. A velocidade com que
os avanços ocorrem, em áreas de extrema sensibilidade como é a biologia, trará,
mais que nunca, a sensação dúbia de oportunidade inigualável e risco iminente, em
particular porque o conhecimento é menos filho da inteligência do que da inteligência
do poder. Sua força está na competitividade. Quando falamos de oportunidade,
fazemos na verdade discurso ingênuo, porque está em jogo a capacidade de
competir, em particular no mercado capitalista. Grande miséria é constatar que a
verve inovadora do conhecimento foi aprisionada pelo mercado e é lá que melhor se
realiza hoje. Pois Iá não há peias de qualquer espécie na direção do lucro e da
submissão dos outros. Basta observar que a concentração do conhecimento tende a
ser maior que a concentração da renda.
Por isso, o discurso cibernético da equalização de oportunidades precisa ser tomado
com extrema cautela crítica. É certo que tudo fica mais barato, mais acessível e que
um dia computador será eletrodoméstico comum, presente em qualquer casa e
qualquer canto. Mas é mister observar que esta abertura é direcionada pelo
mercado, não pela cidadania. O que é mais acessível não é o que mais interessa à
cidadania, mas o que interessa consumir. Barateia-se sobretudo o lado fútil da
cibernética, que tem como intenção primeira nos avassalar. O discurso cibemético
da democracia facilmente propaga o mesmo engodo da globalização, quando, sob a
cantilena de chances globalizadas, melhor repartidas, sem fronteiras, esconde-se
outra forma, tanto mais severa, de discriminação. Na realidade, somente os Estados
Unidos são globalizados, porque globalizantes, enquanto os outros países estão
mais propriamente acuados. E baile onde se pode entrar, desde que seja no espaço
determinado e se dance a música prescrita. O preço da entrada é a subalternidade
(75).
Esta crítica, todavia, não pode obnubilar o fato de que se trata também de campo de
oportunidades, mesmo para países
Início de nota de rodapé
74- SHATTUCK, R. 1996. Forbidden knowledge — From Prometeus 10
pornography. New York, St. Martins Press.
75- LÉVY, P. 1999. Cibercultura. São Paulo, Editora 34.
Fim de nota de rodapé
Página 143
mais atrasados. Em vez de olhar apenas de longe e se contentar com os restos,
cabe ocupar os espaços possíveis, primeiro como “carona”, e depois tomando o
volante, onde for viável. Para humanizar o mundo cibemético, é preciso ocupá-lo.
Vale aí lembrar que o conhecimento é “limite aberto”, pois, se não pode devassar
tudo, precisa transformar tais limites em desafios abertos. Alguma esperança
sempre se pode depositar em sua capacidade de autocorreção: comete erros, mas,
questionando-os, pode refazer.
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Conclusão
A CONSTRUÇÃO SOCIAL
DA AUTONOMIA
Sendo central ao saber pensar a gestação da autonomia, sobretudo solidária, cabe
estabelecer brevemente sua relação com política social. Não se trata, pois, apenas
de aprendizagem escolar, mas de aprendizagem para a vida. De certa maneira, o
centro da cidadania é saber pensar. É claro que, para a cidadania, o aspecto
associativo é preponderante, porque significa, em primeiro lugar, a capacidade
coletivamente organizada de conquistar a autonomia. Saber pensar comparece
como estratégia metodológica, habilidade de aprender, gestação da consciência
crítica, e nisto faz parte do centro da cidadania. Pondo assim, também digo que
saber pensar não pode resolver, por si só, os problemas sociais. Mas pode colocar
as coisas em direções mais efetivas e traduzir para os excluídos oportunidades mais
palpáveis. Retoma-se o papel fundamental da educação para a cidadania, acrescido
pela orquestração da habilidade reconstrutiva com a habilidade política.
Pobreza política
O enfoque da pobreza política tem ressaltado sobremaneira a importância do saber
pensar, à medida que se firmou a idéia de que o centro da pobreza é menos a
destituição material, do
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que a ignorância. A discussão surgiu no contexto da política social (76), em
particular do combate à pobreza, e hoje é também vastamente usado nos Relatórios
do Desenvolvimento Humano da ONU/PNUD, sobretudo após 1997. Pretende
assinalar que pobreza não pode ser reduzida à carência material, por mais
importante que esta sempre seja, porque significa fundamentalmente fenômeno de
exclusão política. Ser pobre é menos não ter do que não ser. Passar fome é grande
miséria, mas é miséria ainda maior não saber que, primeiro, fome é inventada e
imposta, e, segundo, que para superar a fome não basta receber comida, mas é
essencial ter condições de prover o próprio sustento. Com isto, passou-se a
considerar ignorância como centro da pobreza: pobre é sobretudo quem não sabe
ou é coibido de saber que é pobre. Não se permite que se constitua sujeito capaz de
história própria. Assim, pobreza não implica apenas estar privado de bens materiais,
mas sobretudo estar privado de construir suas próprias oportunidades. Quando se
fala de ignorância, entretanto, não estamos indicando aquela que todo educador
sabe que não existe, já que todo ser humano está hermenêutica e culturalmente
plantado, desenvolve cultura própria, saberes compartidos, mantém patrimônios
históricos, identidades múltiplas, mas aquela historicamente produzida, cultivada e
reproduzida.
Quanto aos Relatórios do Desenvolvimento Humano, publicados todo ano desde
1990, apesar de seu fulcro neoliberal óbvio, possuem o mérito de, definindo
desenvolvimento como oportunidade, acentuar principalmente sua face política (77).
Critérios econômicos continuam importantes, mas passam a ser considerados
dentro de um conjunto em que já não aparecem como os principais. O critério
principal de desenvolvimento é educação, porque está mais próxima da capacidade
de construir oportunidades. A qualidade educativa popular poderia ser considerada a
vantagem comparativa mais decisiva. No contexto do capitalismo neoliberal esta
proposta soa irônica e contraditória, mormente quando aplicada para a América
Latina, como é o caso da CEPAL, ao falar de “educação e conhecimento” como eixo
da transformação produtiva
Início de nota de rodapé
76- DEMO, P. 1998c. Pobreza política. 7 ed. Campinas, Autores Associados.
77- PNUD. 1990-1998. Human Development Report. New York, ONU. Veja
sobretudo Relatório de 1997. DEMO, P. 1997. Combate à pobreza —
Desenvolvimento como oportunidade. Campinas, Autores Associados.
Fim de nota de rodapé
Página 147
com equidade (78). Embora a ONU, como entidade tipicamente neoliberal, esteja
comprometida ideologicamente com a economia capitalista de mercado, isto não
impede de reconhecer que alguns de seus técnicos e expertos produzem conceitos
e idéias interessantes e pertinentes.
O processo de produção da ignorância foi retomado academicamente pelas teorias
pós-modernas e pós-colonialistas, algumas de cariz feminista, como é o caso de
Sandra Harding (79), que apontam, como eco também das propostas de Foucault80,
que a relação principal que o conhecimento mantém é com o poder, não com a
verdade. Certamente, a busca da verdade é central para a pesquisa, mas, sendo o
conhecimento fenômeno também multicultural, socialmente plantado, não pode ser
visualizado como neutro ou socialmente desencamado. Habermas (81), dentro de
suas propostas ligadas ao agir comunicativo, cunhou a definição de verdade como
pretensão de validade, para sinalizar a dialética entre facticidade e validade,
admitindo que a cientificidade não pode prescindir de critérios políticos, e que por
vezes dominam o cenário. Não por outra razão, ocorreu ultimamente recuperação
visível da “retórica”, como faz Perelman (82), no sentido de conjugar habilmente
argumento com convencimento. Parece claro que é próprio de todo processo de
convencimento não só iluminar, mas igualmente ofuscar, como reconheceria
qualquer teoria mais crítica do mundo das comunicações (83).
Irremediavelmente pobre é quem sequer consegue saber que é pobre. Falta-lhe
consciência crítica para, primeiro, ler sua
78- CEPAL. 1992. Equidad y transformación productiva — Um efoque integrado.
Santiago, CEP L. CEPAL/ORELAC. 1 992. Educacion y conocimiento — Eje de 1ª
transformación productiva con equidad. Santiago, CEPAL.
79- HARDING, S. 1998. Is science multicultural? Postcolonialisms, .feminisms, and
epistemologies. Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press.
80- FOUCAULT, M. 1979. Microfísica do poder. Rio de Janeito, Gtaal. FOUCAULT,
M. 1971. A arqueologia do saber. Petrópolis, Vozes.
81-HABERMAS, J. 1989. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro.
82.-PERELMAN, C. 1997. Retóricas. São Paulo, Martins Fontes. PERELMAN, C. &
OLBRECHTS-TYTECA, L. 1996. Tratado da argumentação —A nova retórica. São
Paulo, Martins Fontes.
83- SFEZ, L. 1994. Crítica da comunicação. São Paulo, Loyola. FERRÉS, J.
1 998. Televisão subliminar — Socializando através de comunicações
despercebidas. Porto Alegre, ARTMED. RUSHKOFF, D. 1999. Coercion — Why we
listen to what they say. New York, Riverhead Books.
Página 148
realidade, como diria Paulo Freire, e, depois, para enfrentá-la dentro de projeto
político alternativo. Faltando-lhe esta consciência crítica, não consegue fazer-se
sujeito capaz de história própria, esperando, pois, a solução dos outros. O sistema
se aproveita desta circunstância para mantê-lo como “massa de manobra”,
incluindo-o como beneficiário, não como cidadão. Embora o Welfare State tenha
sido grande invenção, sobretudo porque pretendeu — nos gloriosos trinta,
principalmente na Europa Central — impor os direitos da cidadania acima do
mercado, não conseguiu ultrapassar a barreira do mercado capitalista, ou da lógica
abstrata da mercadoria, na interpretação atual de Kurz84. Entre outras coisas,
perdeu-se visivelmente a politicidade da educação, à medida que é vista como via
principal de inserção no mercado, não como condição fundamental da criação e
exercício dos direitos85. A valorização da sociedade do conhecimento também é
dúbia, porque aprecia a qualidade formal (manejo do conhecimento), não a
qualidade política.
Este tipo de visão poderia oferecer outras estratégias de combate à pobreza, muito
diferentes das neoliberais, que apostam apenas na capacidade do mercado —
nunca demonstrada em âmbito mundial — de distribuir renda. O último Relatório do
B1D86 é exemplar neste sentido: reconhece que a pobreza sobretudo na América
Latina persiste e aumenta — o índice de Gini em países como o Brasil está por volta
de 0.60 (a média mundial é metade disso); mais ainda: a diferença entre o decil
superior (dos 10% mais ricos) e o nono, que nos Estados Unidos seria por volta de
60%, na Escandinávia de 30%, na América Latina atingiria 160%, e no caso do
Brasil mais ou menos 200%; mais:
nesse decil superior, apenas 15% seriam empresários, o que denunciaria processo
de concentração de renda também promovido por autônomos e assalariados
extremamente privilegiados. Entretanto, o Relatório mantém a expectativa de mera
distribuição de renda, enquanto, na verdade, trata-se de “redistribuição”,
entendendo-se
Início de nota de rodapé
84- KURZ, R. 1996. O colapso da modernização — Da derrocada do socialismo de
caserna à crise da economia mundial. Rio de Janeiro, Paz e Terra. KURZ, R.1997.
Os últimos combates. Petrópolis, Vozes.
85- DEMO, P. 1998a. Charme da exclusão social. Campinas, Autores Associados.
86- BANCO INTERAMERICANO DE DESARROLLO. 1998. América Latina Frente a
la Desigualdad — Progreso Económico v Social en Arnerica Latina— Informe 1998-
1999. Washington, Banco Interamericano de Desarrollo.
Fim de nota de rodapé
Página 149
por isso a necessidade política, mais que econômica, de retirar de quem tem demais
e transferir para quem tem de menos. Esta reestruturação das relações de poder
não provem do mercado, mas sobretudo da cidadania. Política social não pode ser
feita com as sobras do sistema. Neste sentido, o combate à pobreza precisa,
primeiro, da consciência crítica do pobre, de preferência politicamente organizado,
ou seja, começa com a cidadania. A seguir, implica inserção no mercado, e, por fim,
assistência social. Daí seguiria a necessidade de política social do conhecimento,
tipicamente emancipatória e pós-moderna, na qual educação deteria a posição-
chave, ainda que jamais exclusiva ou setorialista.
Pobreza política não é outra pobreza, mas a mesma, vista politicamente. Tem como
marca que o combate à pobreza não pode ser beneficência, concessão. doação.
Precisa ser conquista coletivamente organizada, com base em cidadania reflexiva e
combativa. Porquanto o sistema não teme o pobre com fome; teme o pobre que
sabe pensar. Tarefa principal da educação seria, pois, confrontar-se com a pobreza
política, desfazendo o véu de ignorância historicamente produzido sobre as
camadas populares, que os impede de tomar em suas mãos o rumo de sua história.
Esta tarefa lhe é própria, por conta de sua politicidade, em todos os casos mais
decisiva que a inserção no mercado de trabalho. Em primeiro lugar vem o cidadão,
depois o consumidor e o beneficiário (87).
Construção social da autonomia
Para a construção social da autonomia, a superação da pobreza política é questão-
chave. Questiona modos correntes de fazer política social, porque não Ievam a sério
que a figura central para combater a pobreza só pode ser o pobre. Autonomia não
pode ser fabricada de fora, imposta, concedida, mas conquistada. o modelo da
comuna de Paris é particularmente adequado, porque aposta no associativisrno
Iaboral, definindo o estado corno
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87- DEMO, P. 1998a. Charme da exclusão social. Campinas, Autores Associados.
DEMO, P. 1997. Combate à pobreza — Desenvolvimento como oportunidade.
Campinas, Autores Associados. DEMO, P. 2000. Política social do conhecimento.
Petrópolis, Vozes (no prelo).
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Página 150
instância delegada de serviço público (88). O combate à pobreza precisa, por
conseguinte, orquestrar três níveis de compromisso:
a)assistência, para as populações que não conseguem sobreviver com meios
próprios, em particular crianças, idosos e portadores de necessidades especiais;
trata-se de direito radical de sobrevivência, porque sem este os outros não se
efetivam;
b) inserção no mercado, por motivos de auto sustentação econômica, levando-se em
conta a relevância de obter fonte estrutural de renda;
c)cidadania, através da qual se consuma o projeto de autonomia, fazendo do pobre
o artífice de suas próprias soluções.
Entre os três níveis há visível hierarquia, dentro da necessidade de compor a todos.
Cidadania é o componente mais central. Tomados isoladamente, nada funciona.
Assistência é importante, mas não gesta autonomia. Se malfeita, contribui
fortemente para produzir dependência irreversível nos pobres. Torna-se
assistencialismo, quando o pobre é levado a vender sua alma em troca de comida e
favores. A inserção no mercado representa condição fundamental, desde que não se
assuma o mercado como palavra final. O neoliberalismo, entretanto, tem como
mensagem explícita recuperar a centralidade do mercado, ou seja, sua
competitividade. As necessidades dos trabalhadores serão satisfeitas no contexto da
competitividade, o que tem gerado fortes desigualdades, além de processo
crescente de concentração da renda e redução do emprego. A cidadania indica a
essencialidade da competência humana para compreender seus problemas e gerar
soluções, sempre na condição de sujeito. Nos dois níveis anteriores, o ser humano
aparece como objeto tendencialmente. Chamamos de cidadania tutelada aquela que
se orienta exclusivamente pelo mercado, produzindo atrelamento severo e
apostando na ignorância das pessoas. Chamamos de cidadania assistida aquela
que já tem noção de direito, mas o entrega nas mãos do Estado e de seus agentes,
revidando outra forma de dependência, por vezes não menos severa. Pode cultivar a
ignorância, à medida que os benefícios estejam condicionados à subserviência.
Entretanto, a construção social da autonomia não pode ser discurso teórico, mas
caminho concreto de ocupação dos espaços,
Início de nota de rodapé
88- DEMO, P. 1999h. Participação é conquista — Noções de política social
participativa. 4 ed. São Paulo, Cortez.
Fim de nota de rodapé
Página 151
inclusive do mercado. Não se basta com a distribuição da renda. Quer sua
redistribuição, ou seja, o reordenamento das clivagens sociais. Para tanto, a ação
política é a mais relevante, sem com isto desprestigiar as outras (econômicas,
assistenciais etc.). A maior indignidade histórica do ser humano é a ignorância, a
situação de massa de manobra, o extermínio do sujeito. Precisa primeiro libertar-se
disso, para ter noção de libertação. Precisa saber pensar para questionar sua
condição histórica e imaginar caminho próprio de solução. Não dispensa apoios
externos, mas os considera complementares. Carece de assistência, mas precisa
libertar-se desta restrição. Carece do Estado, mas deve controlá-lo estritamente,
para que sirva aos interesses dos excluídos. Saber pensar surge, então, como fulcro
central da política social, porque sinaliza o caminho das soluções próprias, em três
níveis mais ostensivos:
a) inclui, num primeiro momento, superar a ignorância, elaborar consciência crítica,
“Ier” a realidade, chegar a perceber onde estamos metidos, o que estão fazendo
conosco, que tipos de limitações nos estão sendo impostas. Esta é a grande
abertura que a educação pode oferecer: saber questionar, desconstruir a pobreza
como condição fatal para atinar que é possível alternativa, desde que a saibamos
inventar. Ignorância não é apenas não saber das coisas, é principalmente aceitar
que só resolvemos nossos problemas com a ajuda dos outros, sobretudo pelos
outros, como se estes fossem a peça-chave da questão. Ignorância mesmo é deixar
de ser sujeito de sua própria cabeça; é literalmente não saber pensar;
b) inclui, num segundo momento, saber organizar-se, porque importante de verdade
é a cidadania coletivamente organizada, que pode colocar em marcha os achados
obtidos pelo questiona- mento. Uma vez compreendidos criticamente os problemas,
podemos buscar meios de confronto e, entre eles, sobressai a capacidade
organizativa, que potência infinitamente a cidadania individual. Começa, então, o
processo mais concreto de gestação da autonomia, quando se tenta fazer história
própria, ao fazermos e sobretudo nos fazermos oportunidade;
c) inclui, num terceiro momento, inventar projeto alternativo, desenhado pelo saber
pensar e implantado pelo saber organizar-se. Pode-se lutar concretamente por
ocupar espaços políticos (formar partidos, eleger representantes, chegar a postos-
chaves de governo),
Página 152
espaços econômicos (reforma agrária, processos de redistribuição de renda,
chances para pequenos empreendimentos), espaços culturais (direitos de
identidade, de minorias, de comunicação), e assim por diante.
Neste sentido, política social do conhecimento tem como fulcro mais saliente o saber
pensar. Projeto inadiável toma-se, então, garantir a universalização qualitativa da
educação básica, pela razão essencial de que a população precisa saber pensar.
Com efeito, o sistema não teme pobre com fome — é fácil tapar a boca com prato de
comida —, mas teme pobre que sabe pensar
— e difícil fugir ao questionamento de alguém que sabe ler a realidade. E
precisamente neste contexto que a aprendizagem reconstrutiva política ganha seu
maior significado, porque está direcionada frontalmente para a gestação do sujeito
capaz de história própria. Esta maneira de ver repele, em primeiro lugar, as
propostas neoliberais, porque implicam a ignorância do pobre, à medida que se
pretende tutelá-lo por completo. A ignorância mais comprometedora da sociedade
do conhecimento é vender a proposta de que mercado é intocável e que Iiberdade e
felicidade das pessoas e sociedades se decidem aí, pretendendo transformar a
competitividade em princípio básico da cidadania. A liberdade que o mercado
garante é aquela privada, apropriada, privilegiada, supondo sempre que as maiorias
tenham como sina sustentar, com sua exclusão, o bem-estar da elite. Em segundo
lugar, esta maneira de ver questiona, em parte, o Welfare State, porque fez da
assistência seu princípio central da política social, perdendo de vista que é mister
redistribuir renda e poder. A transformação do excluído em beneficiário tem como
consequência mantê-lo atrelado ao Estado, como se este fosse o garante da
cidadania. Abafa-se o princípio central da autonomia, à medida que se implanta a
expectativa de que é feita, dada, concedida pelo Estado. Na verdade, o garante real
da cidadania é a sociedade consciente e organizada. O Estado somente se dedica
às causas populares quando devidamente controlado, como se diz taxativamente na
Comuna de Paris.
A manipulação comandada pelo Estado pode ser menos comprometedora que a
outra do mercado, mas ambas são, no fundo, “manipulativas”. Prejudicam a
gestação do sujeito capaz de saber pensar e de se saber pensar. A emancipação é,
por isso mesmo, fenômeno complexo e arriscado, porque não pode prescindir
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de “intelectuais orgânicos”, como em todo processo educativo e de gestação da
autonomia, mas pode aí mesmo inverter-se. Com efeito, teoria da pobreza jamais
será produzida pelo pobre. Entretanto, o pobre precisa elaborar certo nível de
consciência crítica da pobreza, sem o que não alcança o patamar de sujeito. Não
pode apenas ser pensado pelos outros. Precisa saber pensar-se a si mesmo. Saber
pensar-se a si mesmo é um dos traços mais profundos do saber pensar. Condição
central de libertação.
O “saber” do saber pensar
A ambigüidade do conhecimento é sua força e fraqueza. O “saber” do saber pensar
pode tomar o rumo do “sabido” ou da “sabedoria”. A produção da ignorância também
é “arte”, quando feita com toda fineza de procedimentos que a ciência faculta. Trata-
se da racionalidade da irracionalidade, porque, assim como a falta de lógica é outra
lógica, a irracionalidade tem sua racionalidade. Conhecimento não se opõe à
ignorância, porque, em termos dialéticos, é apenas seu contrário. Contrário, em
dialética, significa forma excludente de incluir. Faz parte intrínseca. Pois não há
como iluminar sem produzir sombra. Manipular a consciência alheia ainda é o
produto mais sofisticado e procurado do conhecimento.
Saber pensar pode ter muitas caras:
a) pode aludir a saber não pensar, descartando a autocrítica, para que não nos
incomode e deixe o caminho aberto para manipular;
b) pode aludir a “não saber”, cultivando o lado útil da ignorância esperta;
c) pode indicar o saber pensar como esperteza, manobra, vantagem, para impedir
que outros pensem, ou que pensem o que Ihes é imposto pensar, ou que deixem de
se preocupar em pensar, porque são “pensados” pelos espertos;
d) pode acenar para a inovação pela inovação, perdendo todo sentido ético
e) pode ser atrelado ao mercado, interpretando o “saber” como encampação do
mercado, inserção subalterna.
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Mas há sempre o outro lado também. O da sabedoria, na dialética do “limite aberto”,
na luta contra o dogma, na desparadigmatização dos paradigmas, na discutibilidade
das propostas, no discurso cuidadoso metodologicamente e capaz de entender, na
capacidade de reinventar também a si mesmo, autocorrigindo-se
hermeneuticamente, no “saber” que sabe sobretudo que pouco sabe. Sendo
ignorância produzida a situação mais indigna do ser humano, porque lhe rouba a
oportunidade de fazer-se sujeito, o conhecimento é seu horizonte mais precioso e
arriscado. Aprender pode ser visto como saber viver perigosamente. Quem foge de
todo perigo, não vive, porque vive acuado. Quem ama o perigo nele pode sucumbir.
Viver perigosamente é buscar compor-se com tal ambigüidade, sem perder a
habilidade de evitar riscos, mas igualmente sem perder a sabedoria de os cultivar.
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