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    DOSSIER

    PERTURBAÇÕES DO DESENVOLVIMENTO

    Rev Port Clin Geral 2004;20:713-30 713

    O

    saber ler é uma das apren-dizagens mais importan-tes, porque é a chave quepermite o acesso a todos

    os outros saberes. A leitura e a escrita são formas do processamento linguís-tico. Aprender a ler, embora seja uma competência complexa, é relativamentefácil para a maioria das pessoas.Contudo, um número significativo depessoas, embora possuindo um nívelde inteligência médio ou superior, mani-festa dificuldades na sua aprendizagem.

     Até há poucos anos a origem desta difi-culdade era desconhecida, era uma in-

    capacidade invisível, um mistério, quegerou mitos e preconceitos estigmati-zando as crianças, os jovens e os adul-tos que a não conseguiam ultrapassar.

    Nos últimos anos os estudos realiza-dos por neurocientistas, utilizando a Ressonância Magnética Funcional,(fMRI), permitiram observar o funciona-mento do cérebro durante as activida-des de leitura e escrita e obtiveram umconjunto bastante consistente de con-clusões sobre as seguintes questões:

    Como funciona o cérebro durante asactividades de leitura? Quais as compe-

    tências necessárias a essa aprendiza-gem? Quais os défices que a dificultam?Quais as componentes dos métodos ed-ucativos que conduzem a um maior sucesso?

    Os Estados Unidos têm sido pionei-ros na investigação científica, na legis-lação educativa, na orientação sobre osmétodos de ensino que provaram ser osmais eficientes. Na Europa não existeuma base legal comum que apoie ascrianças disléxicas. A grande maioria continua sem ser diagnosticada e sem

     beneficiar de uma intervenção especia-lizada. No nosso país o Decreto-lei 319//95, aplica-se às crianças com necessi-dades educativas especiais, mas nãofaz qualquer referência em relação à metodologia reeducativa a adoptar.

    Na grande maioria dos casos os alu-nos dependem da «benevolência» dosprofessores, desculpando a falta de cor-recção, a fluência leitora, a limitação

     vocabular, os erros ortográficos... Uma 

    situação preocupante é a deficiente for-mação não só dos professores mas, oque é ainda mais grave, a deficiente for-mação dos responsáveis pela formaçãodos professores. Um sinal muito positi-

     vo é o interesse crescente que este tema tem suscitado; nos últimos anos têmsido realizados diversos congressos,seminários, jornadas...

    Os resultados dos estudos recente-mente publicados pela OCDE, sobre onível de literacia e o sucesso escolar, co-

    locam Portugal nos últimos lugaresconstituindo mais um sinal de alerta e

    Dislexia:

    Como identificar?

    Como intervir?

    *Psicóloga Educacional,especialista em dislexia

    A dislexia é talvez a causa mais frequente de baixo rendimento e insucesso escolar. Na grande maioria dos casos não é identificada, nem correctamente tratada. O objectivo deste artigo é dar 

    a conhecer os conceitos básicos desta perturbação, de modo a permitir aos médicos de família conhe- cer e identificar, nas crianças, os sinais de risco precoces, colocar a hipótese do seu diagnóstico e encaminhá-las para uma avaliação e intervenção especializada.

    Palavras Chave: Dislexia; disortografia; perturbação da leitura e da escrita.

    PAULA TELES*

    EDITORIAISI NTRODUÇÃO 

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    PERTURBAÇÕES DO DESENVOLVIMENTO

    preocupação. Este artigo pretende ser um contributo para a sinalização eorientação das crianças em risco, oucom dificuldades, nesta aprendizagemtão determinante no percurso das suas

     vidas.Em que medida este artigo pode in-

    teressar os médicos de família? Sendoo médico de família o especialista queacompanha todos os elementos do agre-gado familiar, ao longo de toda a vida e,

    sendo a dislexia uma perturbação comincidência familiar, encontra-se numa situação privilegiada para poder inter-

     vir precocemente, logo que observe al-guns indicadores de risco na história pessoal ou familiar. Não se pretendeque o médico de família seja um «espe-cialista» nesta área, mas sim que conhe-ça os sinais de alerta, para os poder identificar o mais precocemente possí-

     vel e encaminhar para uma avaliaçãoespecializada. A intervenção é um de-safio que se coloca a todos os responsá-

     veis pela saúde e desenvolvimento in-fantil: médicos, psicólogos, investiga-dores, professores das escolas superio-res de educação, professores, pais egovernantes.

    Este artigo propõe-se sumarizar osresultados dos recentes estudos sobredislexia e a nova ciência da leitura. Oseu objectivo é contribuir para um co-nhecimento actualizado desta pertur-

     bação, alertar e sensibilizar para os si-nais indiciadores de futuras dificulda-

    des, possibilitar a avaliação e interven-ção precoce, em síntese, prevenir oinsucesso antes de acontecer.

    Em 1896, Pringle Morgan, descreveu ocaso clínico de um jovem de 14 anosque, apesar de ser inteligente, tinha uma incapacidade quase absoluta em

    relação à linguagem escrita, que desig-nou de «cegueira verbal»1. Desde então

    714 Rev Port Clin Geral 2004;20:713-30 

    esta perturbação tem recebido diversasdenominações: «cegueira verbal congé-nita», «dislexia congénita», «estrefossim-

     bolia», «alexia do desenvolvimento»,«dislexia constitucional», «parte do con-tínuo das perturbações de linguagem,caracterizada por um défice no proces-samento verbal dos sons»...

    Nos anos 60, sob a influência dascorrentes psicodinâmicas, foram mini-mizados os aspectos biológicos da dis-

    lexia, atribuindo as dificuldades leitorasa problemas emocionais, afectivos e«imaturidade»2. Em 1968, a FederaçãoMundial de Neurologia utilizou pela pri-meira vez a expressão «dislexia do de-senvolvimento», definindo-a como «umtranstorno que se manifesta por dificul-dades na aprendizagem da leitura, ape-sar das crianças serem ensinadas commétodos de ensino convencionais,terem inteligência normal e oportunida-des socioculturais adequadas»3. Em1994, O Manual de Diagnóstico e Es-tatística de Doenças Mentais, DSM IV,inclui a dislexia nas perturbações deaprendizagem, utiliza a denominação«perturbação da leitura e da escrita» eestabelece os seguintes critérios dediagnóstico4:

     A. O rendimento na leitura/escrita,medido através de provas normali-zadas, situa-se substancialmenteabaixo do nível esperado para a ida-de do sujeito, quociente de inteli-gência e escolaridade própria para a 

    sua idade;B. A perturbação interfere signifi-

    cativamente com o rendimento esco-lar, ou actividades da vida quotidi-ana que requerem aptidões de leitu-ra/escrita;

    C. Se existe um défice sensorial, as di-ficuldades são excessivas em relaçãoàs que lhe estariam habitualmenteassociadas.Em 2003, a Associação Internacional

    de Dislexia adoptou a seguinte defi-

    nição: «Dislexia é uma incapacidade es-pecífica de aprendizagem, de origem

    E VOLUÇÃO DO C ONCEITO DE D ISLEXIA ,D EFINIÇÕES E C RITÉRIOS DE D IAGNÓSTICO 

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    PERTURBAÇÕES DO DESENVOLVIMENTO

    neurobiológica. É caracterizada por difi-culdades na correcção e/ou fluência na leitura de palavras e por baixa com-petência leitora e ortográfica. Estas difi-culdades resultam de um défice fono-lógico, inesperado, em relação às outrascapacidades cognitivas e às condiçõeseducativas. Secundariamente podemsurgir dificuldades de compreensãoleitora, experiência de leitura reduzida que pode impedir o desenvolvimento do

     vocabulário e dos conhecimentosgerais»5. Esta definição de dislexia é a actualmente aceite pela grande maioria da comunidade científica.

    Durante muitos anos a causa da disle- xia permaneceu um mistério. Os estu-dos recentes têm sido convergentes, quer em relação à sua origem genética e neu-robiológica, quer em relação aos proces-sos cognitivos que lhe estão subjacentes.

     Têm sido formuladas diversas teoriasem relação aos processos cognitivos res-ponsáveis por estas dificuldades.

    1. Teoria do défice fonológicoNos estudos sobre as causas das difi-culdades leitoras a hipótese aceite pela grande maioria dos investigadores é a hipótese do défice fonológico6. De acor-do com esta hipótese, a dislexia é causa-da por um défice no sistema de proces-

    samento fonológico motivado por a uma «disrupção» no sistema neurológico ce-rebral, ao nível do processamentofonológico7. Este défice fonológico difi-culta a discriminação e processamentodos sons da linguagem, a consciência de que a linguagem é formada por pala-

     vras, as palavras por sílabas, as sílabaspor fonemas e o conhecimento de queos caracteres do alfabeto são a repre-sentação gráfica desses fonemas8.

     A leitura integra dois processos

    cognitivos distintos e indissociáveis: a descodificação (a correspondência gra-

    fofonémica) e a compreensão da mensa-gem escrita. Para que um texto escritoseja compreendido tem que ser lido pri-meiro, isto é, descodificado. O défice fo-nológico dificulta apenas a descodifica-ção. Todas as competências cognitivassuperiores, necessárias à compreensão,estão intactas: a inteligência geral, o vo-cabulário, a sintaxe, o discurso, oraciocínio e a formação de conceitos.

    COMO FUNCIONA O CÉREBRODURANTE A LEITURA ?Sally Shaywitz e colaborabores (1998)utilizaram a fMRI para estudar o fun-cionamento do cérebro, durante as tare-fas de leitura e identificaram três áreas,no hemisfério esquerdo, que desem-penham funções chave no processo deleitura: o girus inferior frontal, a área parietal-temporal e a área occipital-tem-poral (Fig. 1)8,9:• A região inferior-frontal é a área da linguagem oral. É a zona onde se pro-cessa a vocalização e articulação daspalavras, onde se inicia a análise dos fo-nemas. A subvocalização ajuda a leitu-ra fornecendo um modelo oral das pa-lavras. Esta zona está particularmen-te activa nos leitores iniciantes e dis-léxicos.• A região parietal-temporal é a área onde é feita a análise das palavras.Realiza o processamento visual da for-ma das letras, a correspondência grafo-fonémica, a segmentação e a fusão

    silábica e fonémica. Esta leitura analíti-ca processa-se lentamente, é a via uti-lizada pelos leitores iniciantes e dislé-

     xicos.• A região occipital-temporal é a área onde se processa o reconhecimento vi-sual das palavras, onde se realiza a leitura rápida e automática. É a zona para onde convergem todas as infor-mações dos diferentes sistemas sen-soriais, onde se encontra armazenadoo «modelo neurológico da palavra». Este

    modelo contem a informação relevantesobre cada palavra, integra a ortografia 

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    EDITORIAIST EORIAS E XPLICATIVAS 

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    «como parece», a pronúncia «como soa»,o significado «o que quer dizer». Quan-to mais automaticamente for feita a activação desta área, mais eficiente é oprocesso leitor.

    Os leitores eficientes utilizam estepercurso rápido e automático para ler as palavras. Activam intensamente ossistemas neurológicos que envolvem a região parietal-temporal e a occipital--temporal e conseguem ler as palavrasinstantaneamente (em menos de 150

    milésimos de segundo).Os leitores disléxicos utilizam um

    percurso lento e analítico para descodi-ficar as palavras. Activam intensamenteo girus inferior frontal, onde vocalizamas palavras, e a zona parietal-temporal,onde segmentam as palavras emsílabas e em fonemas, fazem a traduçãografo-fonémica, a fusão fonémica e asfusões silábicas até aceder ao seu signi-ficado.

    Os diferentes sub-sistemas desem-

    penham diferentes funções na leitura.O modo como são activados depende

    das necessidades funcionais dosleitores ao longo do seu processo evo-lutivo.

     As crianças com dislexia apresentamuma «disrupção» no sistema neurológi-co que dificulta o processamento fono-lógico e o consequente acesso ao siste-ma de análise das palavras e ao siste-ma de leitura automática. Para com-pensar esta dificuldade utilizam maisintensamente a área da linguagem oral,região inferior-frontal, e as áreas do

    hemisfério direito que fornecem pistas visuais.

    2. Teoria do défice de automatização A teoria do défice de automatização refe-re que a dislexia é caracterizada por umdéfice generalizado na capacidade deautomatização10.Os disléxicos manifes-tam evidentes dificuldades em automa-tizar a descodificação das palavras, emrealizar uma leitura fluente, correcta ecompreensiva.

     As implicações educacionais desta teoria propõem a realização de várias ta-

    Região Inferior Frontal

     Articulação dos Fonemas

    Região Parietal Temporal

     Análise das Palavras

    Região Occipital Temporal

    Leitura Automática

    Figura 1. Áreas cerebrais envolvidas no processo de leitura.

    Adaptado de Sally Shaywitz8

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    refas para automatizar a descodificaçãodas palavras: treino da correspondên-cia grafo-fonémica, da fusão fonémica,da fusão silábica, leitura repetida de co-lunas de palavras, de frases, de textos,exercícios de leitura de palavras apre-sentadas durante breves instantes11.

    3. Teoria magnocelular A teoria magnocelular atribui a dislexia a um défice específico na transferência 

    das informações sensoriais dos olhospara as áreas primárias do córtex 12. As pessoas com dislexia têm, de acor-do com esta teoria, baixa sensibilidadeface a estímulos com pouco contraste,com baixas frequências espaciais ou al-tas-frequências temporais. Esta teoria não identifica, nem faz quaisquer refe-rências, a défices de convergência bino-cular. O processo de descodificaçãopoderia ser facilitado se o contraste en-tre as letras e a folha de papel fosse re-duzido utilizando uma transparência azul, ou cinzenta, por cima da página 13.Esta teoria tem sido muito contestada porque os resultados não são repro-duzíveis10.

    B ASES NEUROBIOLÓGICAS DA DISLEXIA  Até há poucos anos pensava-se que a dislexia era uma perturbação compor-tamental que primariamente afectava a leitura. Actualmente sabe-se que a dis-lexia é uma perturbação parcialmenteherdada, com manifestações clínicas

    complexas, incluindo défices na leitu-ra, no processamento fonológico, na memória de trabalho, na capacidade denomeação rápida, na coordenação sen-soriomotora, na automatização10, e noprocessamento sensorial precoce15,16.

     Vários estudos têm procurado en-contrar no genoma humano a localiza-ção dos genes responsáveis pela disle-

     xia. Diversos estudos têm demonstra-do a hereditariedade da dislexia 17. Asmais recentes pesquisas sobre genéti-

    ca e dislexia referem que existem, pre-sentemente, cinco localizações para ale-

    los de risco, com influência na dislexia. As cinco localizações foram encontra-das nos cromossomas 2p, 3p-q, 6p, 15q e 18p18. Os resultados de estudos post- -mortem, realizados em cérebros de dis-léxicos, mostraram diferenças micros-cópicas e macroscópicas importan-tes19,20.

    Os resultados de estudos, realizadosem cérebros vivos, evidenciam diferen-ças semelhantes21.

     A dislexia é provavelmente a pertur- bação mais frequente entre a populaçãoescolar, sendo referida uma prevalência entre 5 a 17,5 %22. A prevalência é,contudo, variável dependendo do graude dificuldade dos diferentes idiomas.No nosso país não existem estudos so-

     bre a prevalência.Em relação à distribuição por sexos

    tem-se verificado uma evolução ao lon-go dos tempos. Inicialmente era referi-da uma maior prevalência no sexo mas-culino, nos últimos anos passou a ser referida uma distribuição igual em am-

     bos os sexos23. 23 Um estudo publicadoem Abril deste ano volta a referir que onúmero de rapazes com dislexia é, pelomenos, duas vezes superior ao das ra-parigas24.

     Tem sido considerado que o défice

    cognitivo que está na origem da dislexia persiste ao longo da vida, ainda que assuas consequências e expressão variemsensivelmente. Recentemente foram re-alizados estudos, com o objectivo de ava-liar as modificações operadas nos sis-temas neurológicos cerebrais, após a in-tervenção utilizando programas multis-senssoriais, estruturados e cumulati-

     vos. As imagens obtidas através da fMRImostraram que os circuitos neurológi-cos automáticos do hemisfério esquer-

    do tinham sido activados e o funciona-mento cerebral tinha «normalizado»25.

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    P REVALÊNCIA , D ISTRIBUIÇÃO POR S EXOS  , P ERSISTÊNCIA

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    uma surda e outra sonora) e não de ori-gem visual30-32.

    8. A dislexia é causada porproblemas de orientação espacial?

     A dislexia é uma perturbação da lin-guagem que tem na sua génese um défi-ce fonológico. As dificuldades de orien-tação espacial, lateralidade, identifica-ção direita e esquerda, psicomotoras egrafomotoras são independentes da 

    dislexia. Podem existir subgrupos que,em comorbilidade, apresentem essasperturbações33.

    9. A dislexia está relacionada coma inteligência?Dislexia é uma dificuldade específica deaprendizagem. Os critérios de diagnós-tico do D.S.M-IV, referem explicitamen-te «O rendimento na leitura/escrita situa-se substancialmente abaixo donível esperado para o seu quociente deinteligência...»

    10. A dislexia existe apenas emalgumas línguas?Existe uma base neurocognitiva univer-sal para a dislexia. Sendo o défice pri-mário da dislexia um défice nas repre-sentações fonológicas manifesta-se emtodas as línguas. As diferenças de com-petência leitora entre os disléxicos de-

     vem-se em parte, às diferentes ortogra-fias... Nas línguas mais transparentes,em que a correspondência grafema-fo-

    nema é mais regular, como o italiano eo finlandês, são cometidos menos erros.Nas línguas opacas, em que existemmuitas irregularidades na correspon-dência grafema-fonema, como a língua inglesa, são cometidos mais erros. A lín-gua portuguesa é uma língua semi--transparente34.

    O desconhecimento, até datas recentes,das causas e do tipo de défices subja-

    cente à dislexia contribuiriam para osurgimento de teorias explicativas econsequentes intervenções terapêuti-cas sem qualquer validação científica.

    1. Terapias baseadas eminterpretações psicológicasEm 1895, Sigmund Freud afirmava:«Os mecanismos cognitivos dos fenóme-nos mentais, normais e anormais, po-dem ser explicados mediante o estudo

    rigoroso dos sistemas cerebrais»35

    . Ape-sar de os seus estudos sobre neuroana-tomia, não conseguiu obter respostasque lhe permitissem compreender emprofundidade os fenómenos psíquicos.Perante a inexistência de meios com-preende-se que tenha recorrido a expli-cações puramente psicológicas, desvin-culadas da actividade biológica cere-

     bral. Interrogamo-nos sobre o modo co-mo teria evoluído o seu pensamento setivesse tido acesso à neuroimagem, à genética molecular e aos actuais conhe-cimentos sobre neurotransmissores.

     A última década, a denominada dé-cada do cérebro, trouxe-nos uma imen-sidade de conhecimentos sobre os fenó-menos e transtornos psíquicos de cuja interpretação se tinha apropriado a psi-canálise.

     Actualmente, perante a esmagadora evidência dos aspectos biológicos da actividade cerebral e dos estudos do ge-noma humano é impensável dar crédi-to às interpretações psicodinâmicas so-

     bre as perturbações de leitura e escrita.

    2. Terapias Baseadas em déficesperceptivosDurante as décadas de 50 e 60 os estu-dos sobre as perturbações de aprendi-zagem procuraram encontrar explica-ções a partir das perturbações percepti-

     vas, visuais e auditivas. Com base nes-tes pressupostos surgiram diversosprogramas educativos. Treino da per-cepção visual de Frostig; treino da audi-

    ção dicotómica de Tomátis; treino de de-senvolvimento motor de Delacato36,37...

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    EDITORIAIST ERAPIAS C ONTROVERSAS 

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    3. Terapias baseadas em défices visuais, psicomotores e problemasposturaisDiversos estudos referem que as crian-ças com dislexia têm os mesmos proble-mas visuais das outras crianças38-40. AsSociedades Americanas de Pediatria e deOftalmologia referem a independência entre a dislexia e problemas de visão ealertam para a ineficácia do uso de lentesprismáticas e do treino de visão, como

    tratamento para dislexia 31,32

    . A dislexia não tem na sua origem um défice visual,pelo que não existe qualquer indicaçãopara a utilização de lentes prismáticas41.Em complementaridade com a prescri-ção de lentes prismáticas, e estabelecen-do uma relação de causalidade entre dis-lexia e problemas psicomotores e postu-rais, são propostos programas de treinopsicomotor, prescrita a utilização de lei-toris, apoios para os pés, palmilhas, sa-patos e colchões ortopédicos. Estas inter-

     venções proporcionam tratamentos pla-cebos extremamente gravosos, não sóporque obrigam ao dispêndio de tempoe dinheiro, mas principalmente porqueadiam a recuperação e impedem uma in-tervenção educativa especializada.

    Não existe nenhum marcador bioló-gico que, na prática clínica, se possa uti-lizar para estabelecer, ou confirmar, odiagnóstico de dislexia. O diagnósticoda dislexia é feito com base na história familiar e clínica, em testes psicométri-cos, em testes de consciência fonológi-

    ca, de linguagem, de leitura e da orto-grafia. A realização de exames médicos,electroencefalogramas, potenciais au-ditivos e visuais evocados, não temqualquer justificação, nem utilidade,para o diagnóstico e consequente inter-

     venção na dislexia. Os exames de fMRI,actualmente, ainda não são utilizadoscomo meio de diagnóstico.

     A leitura é uma competência cultural

    específica que se baseia no conheci-mento da linguagem oral, é contudouma competência com um grau de di-ficuldade muito superior à da lingua-gem oral. A linguagem existe há cerca de 100 mil anos, faz parte do nosso pa-trimónio genético. Aprende-se a falar naturalmente, sem necessidade de en-sino explícito.

    Os sistemas de escrita, sendo pro-dutos da evolução histórica e cultural,

    são relativamente recentes na história da humanidade, existindo apenas há cerca de 5 mil anos. A escrita utiliza umcódigo gráfico que necessita de ser en-sinado explicitamente. Para decifrar ocódigo escrito, é necessário tornar cons-ciente e explícito, o que na linguagemoral era um processo mental implícito.

    Os processos cognitivos envolvidosna produção e compreensão da lingua-gem falada diferem significativamentedos processos cognitivos envolvidos na leitura e na escrita.

     A procura de uma explicação neuro-científica cognitiva, para a leitura, temsido objecto de uma imensa quantidadede estudos. Os resultados têm sido con-

     vergentes apresentando um conjunto bastante consistente de conclusões42:

    1. Quais as competências necessáriasà aprendizagem da leitura?

     Aprender a ler não é um processo natu-ral. Contrariamente à linguagem oral a leitura não emerge naturalmente da in-

    teracção com os pais e os outros adul-tos, por mais estimulante que seja omeio a nível cultural. Para aprender a ler é necessário ter uma boa consciên-cia fonológica, isto é, o conhecimentoconsciente de que a linguagem é forma-da por palavras, as palavras por sílabas,as sílabas por fonemas e que os carac-teres do alfabeto representam essesfonemas. A consciência fonológica éuma competência difícil de adquirir,porque na linguagem oral não é per-

    ceptível a audição separada dos dife-rentes fonemas. Quando ouvimos a 

    720 Rev Port Clin Geral 2004;20:713-30 

    EDITORIAISL INGUAGEM E L EITURA

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    PERTURBAÇÕES DO DESENVOLVIMENTO

    palavra «pai» ouvimos os três sons con- juntamente e não três sons individuali-zados.

    Para ler é necessário conhecer o prin-cípio alfabético, saber que as letras doalfabeto têm um nome e representamum som da linguagem, saber encontrar as correspondências grafo-fonémicas,saber analisar e segmentar as palavrasem sílabas e fonemas, saber realizar asfusões fonémicas e silábicas e encontrar 

    a pronúncia correcta para aceder aosignificado das palavras. Para realizar uma leitura fluente e compreensiva éainda necessário realizar automatica-mente estas operações, isto é, sem aten-ção consciente e sem esforço. A capaci-dade de compreensão leitora está forte-mente relacionada com a compreensãoda linguagem oral, com o possuir um

     vocabulário oral rico e com a fluência ecorrecção leitora. Todas as competên-cias têm que ser integradas através doensino e da prática.

    2. Porque é que tantas criançastêm dificuldades em aprender a ler? Quais os défices que dificultamesta aprendizagem?

     As dificuldades na aprendizagem da leitura têm origem na existência de umdéfice fonológico. As crianças com dis-lexia, embora falem utilizando palavras,sílabas e fonemas, não têm um conhe-cimento consciente destas unidades lin-guísticas, apresentando um défice a ní-

     vel da consciência dos segmentos fono-lógicos da linguagem, um défice fono-lógico.

     As crianças que apresentam maioresriscos de futuras dificuldades na apren-dizagem da leitura são as que no jar-dim-de-infância, na pré-primária e noinício da escolaridade apresentam difi-culdades a nível da consciência silábi-ca e fonémica, da identificação das le-tras e dos sons que lhes correspondem,do objectivo da leitura e que têm uma 

    linguagem oral e um vocabulário po- bres.

    Os factores motivacionais são muitoimportantes no desenvolvimento da ca-pacidade leitora dado que a melhoria desta competência está altamente rela-cionada com o querer, com a vontadede persistir, pese embora as dificul-dades sentidas e a não obtenção de re-sultados imediatos.

    Sendo a dislexia como uma perturbaçãoda linguagem, que tem na sua origemdificuldades a nível do processamentofonológico, podem observar-se algumasmanifestações antes do início da apren-dizagem da leitura. A linguagem e ascompetências leitoras emergentes sãoos sinais preditores mais relevantes defuturas dificuldades para a aprendiza-gem da leitura; as competências per-ceptivas e motoras não são preditoressignificativos.

    Existem alguns sinais que podem in-diciar dificuldades futuras. Se esses si-nais forem observados e se persistiremao longo de vários meses os pais devemprocurar uma avaliação especializada.Não se pretende ser alarmista mas simestar consciente de que, se uma criança mais tarde tiver problemas, os anos per-didos não podem ser recuperados. A in-tervenção precoce é provavelmente ofactor mais importante na recuperaçãodos leitores disléxicos. Sally Shaywitz

    refere alguns sinais de alerta 43 a queacrescentámos outros recolhidos da nossa experiência.

    1. Na primeira infância • Os primeiros sinais indicadores depossíveis dificuldades na linguagem es-crita surgem a nível da linguagem oral.O atraso na aquisição da linguagempode ser um primeiro sinal de alerta para possíveis problemas de linguageme de leitura.

    • As crianças começam a dizer as pri-meiras palavras com cerca de um ano

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    EDITORIAISS INAIS DE ALERTA

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    DOSSIER

    PERTURBAÇÕES DO DESENVOLVIMENTO

    de idade e a formar frases entre os 18meses e os dois anos. As crianças emsituação de risco podem só dizer asprimeiras palavras depois dos 15 mesese dizer frases só depois dos dois anos.Este ligeiro atraso é frequentementereferido pelos pais como uma caracte-rística familiar. Os atrasos de linguagempodem acontecer e acontecem emfamílias, a dislexia também é uma per-turbação familiar.

    • Depois das crianças começarem a falar surgem dificuldades de pronún-cia, algumas referidas como «lingua-gem bebé», que continuam para alémdo tempo normal. Pelos cinco anosde idade as crianças devem pronun-ciar correctamente a maioria das pa-lavras.• A dificuldade em pronunciar uma pa-lavra pela primeira vez, ou em pronun-ciar correctamente palavras complexas,pode ser apenas um problema dearticulação. As incorrecções típicas da dislexia são a omissão e a inversão desons em palavras (fósforos/fosfos, pi-pocas/popicas...).

    2. No jardim de infância e pré-primária • Linguagem «bebé» persistente.• Frases curtas, palavras mal pronun-ciadas, com omissões e substituições desílabas e fonemas.• Dificuldade em aprender: nomes decores (verde, vermelho), de pessoas, deobjectos, de lugares...

    • Dificuldade em memorizar canções elengalengas.• Dificuldade na aquisição dos con-ceitos temporais e espaciais básicos:ontem/amanhã; manhã/a manhã; di-reita/esquerda; depois/antes...• Dificuldade em aperceber-se de queas frases são formadas por palavras eque as palavras se podem segmentar em sílabas.• Não saber as letras do seu nome pró-prio.

    • Dificuldade em aprender e recordar os nomes e os sons das letras.

    3. No primeiro ano de escolaridade• Dificuldade em compreender que aspalavras se podem segmentar emsílabas e fonemas.• Dificuldade em associar as letras aosseus sons, em associar a letra «éfe» como som [f].• Erros de leitura por desconhecimen-to das regras de correspondência grafo-fonémica: vaca/faca; janela/chanela;calo/galo...

    • Dificuldade em ler monossílabos eem soletrar palavras simples: ao, os,pai, bola, rato...• Maior dificuldade na leitura de pa-lavras isoladas e de pseudopalavras«modigo».• Recusa ou insistência em adiar astarefas de leitura e escrita.• Necessidade de acompanhamentoindividual do professor para prosseguir e concluir os trabalhos.• Relutância, lentidão e necessidadede apoio dos pais na realização dos tra-

     balhos de casa.• Queixas dos pais e dos professoresem relação às dificuldades de leitura eescrita.• História familiar de dificuldades deleitura e ortografia noutros membrosda família.

    4. A partir do segundo ano deescolaridadea) Problemas de leitura 

    • Progresso muito lento na aquisição

    da leitura e ortografia.• Dificuldade, necessitando de recorrer à soletração, quando tem que ler palavras desconhecidas, irregulares ecom fonemas e sílabas semelhantes.• Insucesso na leitura de palavrasmultissilábicas. Quando está quase a concluir a leitura da palavra, omitefonemas e sílabas ficando um «buraco»no meio da palavra: biblioteca/biote-ca...• Substituição de palavras de pronún-

    cia difícil por outras com o mesmo signi-ficado: carro/automóvel...

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    PERTURBAÇÕES DO DESENVOLVIMENTO

    • Tendência para adivinhar as pa-lavras, apoiando-se no desenho e nocontexto, em vez de as descodificar.• Melhor capacidade para ler palavrasem contexto do que para ler palavrasisoladas.• Dificuldade em ler pequenaspalavras funcionais como «aí, ia, ao, ou,em, de...».• Dificuldades na leitura e interpre-tação de problemas matemáticos.

    • Desagrado e tensão durante a leitu-ra oral, leitura sincopada, trabalhosa esem fluência.• Dificuldade em terminar os testes notempo previsto.• Erros ortográficos frequentes nas pa-lavras com correspondências grafo-fonémicas irregulares.• Caligrafia imperfeita.• Os trabalhos de casa parecem não ter fim, ou com os pais recrutados comoleitores.• Falta de prazer na leitura, evitandoler livros ou sequer pequenas frases.• A correcção leitora melhora com otempo, mantém a falta de fluência e a leitura trabalhosa.• Baixa autoestima, com sofrimento,que nem sempre é evidentes para aosoutros.

    b) Problemas de linguagem 

    • Discurso pouco fluente com pausas,hesitações, um’s...• Pronúncia incorrecta de palavras

    longas, não familiares e complexas.• Uso de palavras imprecisas em subs-tituição do nome exacto: a coisa, aqui-lo, aquela cena...• Dificuldade em encontrar a palavra exacta, humidade/humanidade...• Dificuldade em recordar informações

     verbais, problemas de memória a cur-to termo: datas, nomes, números de te-lefone, sequências temporais, algorit-mos da multiplicação…• Dificuldades de discriminação e

    segmentação silábica e fonémica.• Omissão, adição e substituição de

    fonemas e sílabas.• Alterações na sequência fonémica esilábica.• Necessidade de tempo extra, dificul-dade em dar respostas orais rápidas.

    c) Evidência de áreas fortes nos

     processos cognitivos superiores 

    • Boa capacidade de raciocínio lógico,conceptualização, abstracção e imagi-nação.

    • Maior facilidade de aprendizagemdos conteúdos compreendidos de quememorizados sem integração numa es-trutura lógica.• Melhor compreensão do vocabulárioapresentado oralmente, do que do vo-cabulário escrito.• Boa compreensão dos conteúdosquando lhe são lidos.• Capacidade para ler e compreender melhor as palavras das suas áreas deinteresse, que já leu, praticou, muitas

     vezes.• Melhores resultados nas áreas quetêm menor dependência da leitura:matemática, informática, artes vi-suais...

    5. Sinais de alerta em jovens e adultosa) Problemas na leitura 

    • História pessoal de dificuldades na leitura e escrita.• Dificuldades de leitura persistentes.

     A correcção leitora melhora ao longodos anos, mas a leitura continua a ser 

    lenta, esforçada e cansativa.• Dificuldades em ler e pronunciar pa-lavras pouco comuns, estranhas, ouúnicas, como nomes de pessoas, deruas, de lugar es, dos pratos, na lista dorestaurante...• Não reconhecer palavras que leu ououviu quando as lê ou ouve no dia se-guinte.• Preferência por livros com poucaspalavras por página e com muitos es-paços em branco.

    • Longas horas na realização dos tra- balhos escolares.

    Rev Port Clin Geral 2004;20:713-30 725

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    PERTURBAÇÕES DO DESENVOLVIMENTO

    • Penalização nos testes de escolha múltipla.• A ortografia mantém-se desastrosa preferindo utilizar palavras menos com-plexas, mais fáceis de escrever.• Falta de apetência para a leitura recreativa.• Sacrifício frequente da vida socialpara estudar as matérias curriculares.• Sentimentos de embaraço e des-conforto quando tem que ler algo oral-

    mente com tendência a evitar essassituações.

    b) Problemas de linguagem 

    • Persistência das dificuldades na lin-guagem oral.• Pronúncia incorrecta de nomes depessoas e lugares, saltar por cima departes de palavras.• Dificuldade em recordar datas, nú-meros de telefone, nomes de pessoas,de lugares...• Confusão de palavras com pronún-cias semelhantes.• Dificuldade em recordar as palavras,«está mesmo na ponta da língua».• Vocabulário expressivo inferior ao vo-cabulário compreensivo.• Evita utilizar palavras que teme pro-nunciar mal.

    c) Evidência de áreas fortes nos

     processos cognitivos superiores 

    • A manutenção das áreas fortes evi-denciadas durante a escolaridade.

    • Melhoria muito significativa quandolhe é facultado tempo suplementar nosexames.• Boa capacidade de aprendizagem,talento especial para níveis elevados deconceptualização.• Ideias criativas com muita originali-dade.• Sucesso profissional em áreas alta-mente especializadas como a medicina,direito, ciências políticas, finanças, ar-quitectura...

    • Boas capacidades de empatia, resi-liência e de adaptação.

    É possível identificar a dislexia emcrianças antes de iniciarem a aprendi-zagem da leitura, se estes sinais foremobservados atentamente, bem como em

     jovens e adultos que atingiram umdeterminado nível de eficiência, masque continuam a ler lentamente, comesforço e com persistentes dificuldadesortográficas. Se apenas alguns destessinais forem identificados, não é moti-

     vo para alarme: todas as pessoas se en-

    ganam às vezes; há sim que estar aten-to à existência de um padrão persis-tente ao longo de um longo período.

    Se existe suspeita da existência de dé-fices fonológicos e ou de dificuldades deleitura e escrita, deve ser realizada uma avaliação. É importante avaliar para di-agnosticar, para delinear as dificul-dades específicas, as áreas fortes e para intervir. A avaliação pode ser feita emqualquer idade; os testes são seleccio-nados de acordo com a idade.

    Não existe um teste único que possa ser usado para avaliar a dislexia, de-

     vendo ser realizados testes que avaliemas competências fonológicas, a lingua-gem compreensiva e expressiva (a níveloral e escrito), o funcionamento inte-lectual, o processamento cognitivo e asaquisições escolares. Os modelos deavaliação que se revelam mais eficientes

    são os que conduzem directamente à implementação de estratégias de inter-

     venção que tenham em conta os dadosobtidos na avaliação44-49.

     Avaliar sem intervir não faz sentido,porque não permite ultrapassar as di-ficuldades. Após a avaliação e com

     bases nos resultados obtidos são im-

    plementadas as medidas de intervençãoadequadas a cada caso.

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    EDITORIAISAVALIAÇÃO 

    EDITORIAISI NTERVENÇÃO 

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    PERTURBAÇÕES DO DESENVOLVIMENTO

    1. A importância da intervençãoprecoce

     A identificação e intervenção precocesão o segredo do sucesso na apren-dizagem da leitura. A identificação deum problema é a chave que permite a sua resolução. Quanto mais cedo umproblema for identificado mais rapida-mente se pode obter ajuda. A iden-tificação, sinalização e avaliação dascrianças que evidenciam sinais de fu-

    turas dificuldades antes do início daescolaridade permite a implementaçãode programas de intervenção precoceque irão prevenir ou minimizar o in-sucesso.

    Na geração passada pensava-se queo processo de aprender a ler e escrever não começava, e não devia começar,antes das crianças iniciarem a escolari-dade formal. O processo de aprendiza-gem da leitura começa bastante cedo,em muitos casos antes da pré-primária.Estudos recentes comprovam que ascrianças que apresentam dificuldadesno início da aprendizagem da leitura eescrita dificilmente recuperam se não ti-

     verem uma intervenção precoce e espe-cializada. Os maus leitores no primeiroano continuam invariavelmente sendomaus leitores, e as dificuldades acu-mulam-se ao longo dos anos. Após osnove anos de idade, o tempo e o esforçodispendidos na reeducação aumentamexponencialmente42.

    Stanovich refere no seu conhecido

    artigo sobre o «Efeito de Mateus» que osricos ficam cada vez mais ricos e ospobres cada vez mais pobres, asso-ciando-o com as dificuldades emadquirir as competências leitoras pre-coces50. Estas consequências são múlti-plas: atitudes negativas em relação àsactividades de leitura, desvalorizaçãodo autoconceito escolar e pessoal, baixorendimento escolar, baixo nível de

     vocabulário, diminuição de actividadesde leitura, perda de oportunidades

    de desenvolver estratégias de com-preensão...

    2. É possível melhorar ascompetências leitoras?Sendo a dislexia uma perturbação deorigem neurobiológica e genética, sendoas diferenças cerebrais e os processoscognitivos «herdados» pode inferir-seque as dificuldades das crianças comdislexia são permanentes e imutáveis?Pensamos que não; acreditamos que épossível introduzir melhorias através deuma intervenção especializada. Como já 

    referimos, os resultados dos estudos deSally Shaywitz provam que é possível«reorganizar» os circuitos neurológicosse for implementado um programa reeducativo concebido com base nosnovos conhecimentos neurocientíficos.

    Os novos conhecimentos sobre o mo-do como os leitores iniciantes apren-dem a ler e sobre os défices que impe-dem o sucesso nesta aprendizagem ti-

     veram implicações importantes naspráticas educativas. Actualmente verifi-ca-se um grande consenso, quer emrelação aos princípios orientadores, es-tratégias educativas, quer em relaçãoaos conteúdos, o que ensinar.

    3. Quais os princípios orientadorescomponentes dos métodos educativosque conduzem a um maior sucesso?Estudos realizados por diversos investi-gadores mostraram que os métodosmultissensoriais, estruturados e cumu-lativos, são a intervenção mais eficien-te47,48,51-54. As crianças disléxicas, para 

    além do défice fonológico, apresentamdificuldades na memória auditiva e vi-sual, bem como dificuldade de automa-tização Os métodos de ensino multis-sensoriais ajudam as crianças a apren-der utilizando mais do que um sentido,enfatizando os aspectos cinestésicos da aprendizagem e integrando o ouvir e o ver com o dizer e o escrever .

     A Associação Internacional de Disle- xia promove activamente a utilizaçãodos métodos multissensoriais, indica 

    os princípios e os conteúdos educativosa ensinar:

    Rev Port Clin Geral 2004;20:713-30 727

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    PERTURBAÇÕES DO DESENVOLVIMENTO

     Aprendizagem multissensorial : A leitu-ra e a escrita são actividades multis-sensoriais. As crianças têm que olhar para as letras impressas, dizer, ou sub-

     vocalizar, os sons, fazer os movimentosnecessários à escrita e usar os conheci-mentos linguísticos para aceder ao sen-tido das palavras. São utilizadas em si-multâneo as diferentes vias de acessoao cérebro; os neurónios estabeleceminterligações entre si facilitando a 

    aprendizagem e a memorização.

    Estruturado e cumulativo: A organizaçãodos conteúdos a aprender segue a se-quência do desenvolvimento linguísticoe fonológico. Inicia-se com os elemen-tos mais fáceis e básicos e progridegradualmente para os mais difíceis. Osconceitos ensinados devem ser revistossistematicamente para manter e re-forçar a sua memorização.

    Ensino directo, explícito: Os diferentesconceitos devem ser ensinados directa,explícita e conscientemente, nunca por dedução.

    Ensino diagnóstico: Deve ser realizada uma avaliação diagnóstica das com-petências adquiridas e a adquirir.

    Ensino sintético e analítico: Devem ser realizados exercícios de ensino explíci-to da «fusão fonémica», «fusão silábica»,«segmentação silábica» e «segmentação

    fonémica».

     Automatização das competências apren- 

    didas: As competências aprendidas de- vem ser treinadas até à sua automati-zação, isto é, até à sua realização, sematenção consciente e com o mínimo deesforço e de tempo. A automatização irá disponibilizar a atenção para aceder à compreensão do texto.

     Agradecimentos

     À Revista Portuguesa de Clínica Geral,por me ter convidado a escrever este ar-

    tigo, facultando-me a possibilidade departilhar com os seus leitores os co-nhecimentos e experiência que ao lon-go dos anos tenho construído.

     À minha colega Dr.a  Leonor Macha-do, minha «parceira» de estudo e traba-lho, pelos comentários pertinentes.

     À Dr.a Luísa Carvalho, pela disponibi-lidade e empenhamento na revisãodeste artigo.

     A todos os profissionais que comigo

    têm colaborado, às crianças disléxicase às suas famílias, pelo apoio, colabo-ração e estímulo.

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    EDITORIAISR EFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS 

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    PERTURBAÇÕES DO DESENVOLVIMENTO

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    Bibliografia Recomendada 

    Morais, J. A arte de ler, psicologia cognitiva da leitura. Lisboa: Edições Cosmos; 1997.

    Shaywitz S. Overcoming Dyslexia. New York: Alfred A. Knopf; 2003.

     Teles P, Machado L. Dislexia - Da teoria à prática. Lisboa: Distema® Editora (no prelo).

    Recursos

    • Consultório de Psicologia Educacional -Método DistemaRua República da Bolívia n.º 22 - Dto.1500 - 547 Lisboa

     Tel. 21 715 12 60,E-mail: [email protected] 

    • Centro de Desenvolvimento InfantilDiferenças - Tel. 21 837 16 99

    • Consulta de DesenvolvimentoClínica Gerações Tel. 21 358 39 10

    • Equipas de Apoio EducativoMinistério da Educação

    Endereço para correspondência: 

    E-mail: [email protected]