dom casmurro

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Obra de Machado de Assis

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  • Dom Casmurro

    Texto de referncia: Obras Completas de Machado de Assis, vol. I,

    Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

    Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899.

    CAPTULO PRIMEIRO DO TTULO

    Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheo de vista e de chapu. Cumprimentou-me, sentou-se ao p de mim, falou da Lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que no fossem inteiramente maus. Sucedeu, porm, que, como eu estava cansado, fechei os olhos trs ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso. Continue, disse eu acordando. J acabei, murmurou ele. So muito bonitos. Vi-lhe fazer um gesto para tir-los outra vez do bolso, mas no passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que no gostam dos meus hbitos reclusos e calados, deram curso alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graa, chamam-me assim, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, domingo vou jantar com voc. "Vou para Petrpolis, Dom Casmurro; a casa a mesma da Rennia; v se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai l passar uns quinze dias comigo. "Meu caro Dom Casmurro, no cuide que o dispenso do teatro amanh; venha e dormir aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe ch, dou-lhe cama; s no lhe dou moa. No consultes dicionrios. Casmurro no est aqui no sentido que eles lhe do, mas no que lhe ps o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Tambm no achei melhor ttulo para a minha narrao; se no tiver outro daqui at ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficar sabendo que no lhe guardo rancor. E com pequeno esforo, sendo o ttulo seu, poder cuidar que a obra sua. H livros que apenas tero isso dos seus autores; alguns nem tanto.

    CAPTULO II DO LIVRO

  • Agora que expliquei o ttulo, passo a escrever o livro. Antes disso, porm, digamos os motivos que me pem a pena na mo. Vivo s, com um criado. A casa em que moro prpria; fi-la construir de propsito, levado de um desejo to particular que me vexa imprimi-lo, mas v l. Um dia, h bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as indicaes que lhes fiz: o mesmo prdio assobradado, trs janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do teto e das paredes mais ou menos igual, umas grinaldas de flores midas e grandes pssaros que as tomam nos bicos, de espao a espao. Nos quatro cantos do teto as figuras das estaes, e ao centro das paredes os medalhes de Csar, Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... No alcano a razo de tais personagens. Quando fomos para a casa de Mata-cavalos, j ela estava assim decorada; vinha do decnio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter sabor clssico e figuras antigas em pinturas americanas. O mais tambm anlogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poo e lavadouro. Uso loua velha e moblia velha. Enfim, agora, como outrora, h aqui o mesmo contraste da vida interior, que pacata, com a exterior, que ruidosa. O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescncia. Pois, senhor, no consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto igual, a fisionomia diferente. Se s me faltassem os outros, v; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna tudo. O que aqui est , mal comparando, semelhante pintura que se pe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hbito externo, como se diz nas autpsias; o interno no agenta tinta. Uma certido que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas no a mim. Os amigos que me restam so de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto s amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas crem na mocidade. Duas ou trs fariam crer nela aos outros, mas a lngua que falam obriga muita vez a consultar os dicionrios, e tal freqncia cansativa. Entretanto, vida diferente no quer dizer vida pior; outra coisa. A certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas tambm exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memria, conservo alguma recordao doce e feiticeira. Em verdade, pouco apareo e menos falo. Distraes raras. O mais do tempo gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e no durmo mal. Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me tambm. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudncia, filosofia e poltica acudiram-me, mas no me acudiram as foras necessrias. Depois, pensei em fazer uma Histria dos Subrbios, menos seca que as memrias do padre Lus Gonalves dos Santos, relativas cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas, como preliminares, tudo rido e longo. Foi ento que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles no alcanavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narrao me desse a iluso, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, no o do trem, mas o do Fausto: A vindes outra vez, inquietas sombras?... Fiquei to alegre com esta idia, que ainda agora me treme a pena na mo. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande Csar, que me incitas a fazer os meus comentrios, agradeo-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscncias que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mo para alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos a evocao por uma clebre tarde de novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas

    hpRealce

  • aquela nunca se me apagou do esprito. o que vais entender, lendo.

    CAPTULO III A DENNCIA

    Ia a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me atrs da porta. A casa era a da rua de Mata-cavalos, o ms novembro, o ano que um tanto remoto, mas eu no hei de trocar as datas minha vida s para agradar s pessoas que no amam histrias velhas; o ano era de 1857. D. Glria, a senhora persiste na idia de meter o nosso Bentinho no seminrio? mais que tempo, e j agora pode haver uma dificuldade. Que dificuldade? Uma grande dificuldade. Minha me quis saber o que era. Jos Dias, depois de alguns instantes de concentrao, veio ver se havia algum no corredor; no deu por mim, voltou e, abafando a voz, disse que a dificuldade estava na casa ao p, a gente do Pdua. A gente do Pdua? H algum tempo estou para lhe dizer isto, mas no me atrevia. No me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora ter muito que lutar para separ-los. No acho. Metidos nos cantos? um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase no sai de l. A pequena uma desmiolada; o pai faz que no v; tomara ele que as coisas corressem de maneira que... Compreendo o seu gesto; a senhora no cr em tais clculos, parece-lhe que todos tm a alma cndida... Mas, Sr. Jos Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi nada que faa desconfiar. Basta a idade; Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorze semana passada; so dois crianolas. No se esquea que foram criados juntos, desde aquela grande enchente, h dez anos, em que a famlia Pdua perdeu tanta coisa; da vieram as nossas relaes. Pois eu hei de crer? ... Mano Cosme, voc que acha? Tio Cosme respondeu com um "Ora!" que, traduzido em vulgar, queria dizer: "So imaginaes do Jos Dias; os pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde est o gamo?" Sim, creio que o senhor est enganado. Pode ser, minha senhora. Oxal tenham razo; mas creia que no falei seno depois de muito examinar... Em todo caso, vai sendo tempo, interrompeu minha me; vou tratar de met-lo no seminrio quanto antes. Bem, uma vez que no perdeu a idia de o fazer padre, tem-se ganho o principal. Bentinho h de satisfazer os desejos de sua me. E depois a igreja brasileira tem altos destinos. No esqueamos que um bispo presidiu a Constituinte, e que o padre Feij governou o Imprio...

  • Governo como a cara dele! atalhou tio Cosme, cedendo a antigos rancores polticos. Perdo, doutor, no estou defendendo ningum, estou citando. O que eu quero dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil. Voc o que quer um capote; ande, v buscar o gamo. Quanto ao pequeno, se tem de ser padre, realmente melhor que no comece a dizer missa atrs das portas. Mas, olhe c, mana Glria, h mesmo necessidade de faz-lo padre? promessa, h de cumprir-se. Sei que voc fez promessa... mas uma promessa assim... no sei... Creio que, bem pensado... Voc que acha, prima Justina? Eu? Verdade que cada um sabe melhor de si, continuou tio Cosme; Deus que sabe de todos. Contudo, uma promessa de tantos anos... Mas, que isso, mana Glria? Est chorando? Ora esta! Pois isto coisa de lgrimas? Minha me assoou-se sem responder. Prima Justina creio que se levantou e foi ter com ela. Seguiu-se um alto silncio, durante o qual estive a pique de entrar na sala, mas outra fora maior, outra emoo... No pude ouvir as palavras que tio Cosme entrou a dizer. Prima Justina exortava: "Prima Glria! Prima Glria!" Jos Dias desculpava-se: "Se soubesse, no teria falado, mas falei pela venerao, pela estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo, um dever amarssimo...

    CAPTULO IV UM DEVER AMARSSIMO!

    Jos Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feio monumental s idias; no as havendo, servia a prolongar as frases. Levantou-se para ir buscar o gamo, que estava no interior da casa. Cosi-me muito parede, e vi-o passar com as suas calas brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos ltimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calas curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com um arco de ao por dentro, imobilizava-lhe o pescoo; era ento moda. O rodaque de chita, veste caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerimnia. Era magro, chupado, com um princpio de calva; teria os seus cinqenta e cinco anos. Levantou-se com o passo vagaroso do costume, no aquele vagar arrastado dos preguiosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da conseqncia, a conseqncia antes da concluso. Um dever amarssimo!

    CAPTULO V O AGREGADO

    Nem sempre ia naquele passo vagaroso e rgido. Tambm se descompunha em acionados, era muita vez rpido e lpido nos movimentos, to natural nesta como naquela maneira. Outrossim, ria largo, se era preciso, de um grande riso sem vontade, mas comunicativo, a tal ponto as bochechas, os dentes, os olhos, toda a cara, toda a pessoa, todo o mundo pareciam rir nele. Nos lances graves, gravssimo.

  • Era nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na antiga fazenda de Itagua, e eu acabava de nascer. Um dia apareceu ali vendendo-se por mdico homeopata; levava um Manual e uma botica. Havia ento um andao de febres; Jos Dias curou o feitor e uma escrava, e no quis receber nenhuma remunerao. Ento meu pai props-lhe ficar ali vivendo, com pequeno ordenado. Jos Dias recusou, dizendo que era justo levar a sade casa de sap do pobre. Quem lhe impede que v a outras partes? V aonde quiser, mas fique morando conosco. Voltarei daqui a trs meses. Voltou dali a duas semanas, aceitou casa e comida sem outro estipndio, salvo o que quisessem dar por festas. Quando meu pai foi eleito deputado e veio para o Rio de Janeiro com a famlia, ele veio tambm, e teve o seu quarto ao fundo da chcara. Um dia, reinando outra vez febres em Itagua, disse-lhe meu pai que fosse ver a nossa escravatura. Jos Dias deixou-se estar calado, suspirou e acabou confessando que no era mdico. Tomara este ttulo para ajudar a propaganda da nova escola, e no o fez sem estudar muito e muito; mas a conscincia no lhe permitia aceitar mais doentes. Mas, voc curou das outras vezes. Creio que sim; o mais acertado, porm, dizer que foram os remdios indicados nos livros. Eles, sim; eles, abaixo de Deus. Eu era um charlato... No negue; os motivos do meu procedimento podiam ser e eram dignos; a homeopatia a verdade, e, para servir verdade, menti; mas tempo de restabelecer tudo. No foi despedido, como pedia ento; meu pai j no podia dispens-lo. Tinha o dom de se fazer aceito e necessrio; dava-se por falta dele, como de pessoa da famlia. Quando meu pai morreu, a dor que o pungiu foi enorme, disseram-me, no me lembra. Minha me ficou-lhe muito grata, e no consentiu que ele deixasse o quarto da chcara; ao stimo dia, depois da missa, ele foi despedir-se dela. Fique, Jos Dias. Obedeo, minha senhora. Teve um pequeno legado no testamento, uma aplice e quatro palavras de louvor. Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, por cima da cama. "Esta a melhor aplice", dizia ele muita vez. Com o tempo, adquiriu certa autoridade na famlia, certa audincia, ao menos; no abusava, e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era amigo, no direi timo, mas nem tudo timo neste mundo. E no lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham antes do clculo que da ndole. A roupa durava-lhe muito; ao contrrio das pessoas que enxovalham depressa o vestido novo, ele trazia o velho escovado e liso, cerzido, abotoado, de uma elegncia pobre e modesta. Era lido, posto que de atropelo, o bastante para divertir ao sero e sobremesa, ou explicar algum fenmeno, falar dos efeitos do calor e do frio, dos plos e de Robespierre. Contava muita vez uma viagem que fizera Europa, e confessava que a no sermos ns, j teria voltado para l; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa famlia, dizia ele, abaixo de Deus, era tudo. Abaixo ou acima? perguntou-lhe tio Cosme um dia. Abaixo, repetiu Jos Dias cheio de venerao. E minha me, que era religiosa, gostou de ver que ele punha Deus no devido lugar, e sorriu aprovando. Jos Dias agradeceu de cabea. Minha me dava-lhe de

  • quando em quando alguns cobres. Tio Cosme, que era advogado, confiava-lhe a cpia de papis de autos.

    CAPTULO VI TIO COSME

    Tio Cosme vivia com minha me, desde que ela enviuvou. J ento era vivo, como prima Justina; era a casa dos trs vivos. A fortuna troca muita vez as mos natureza. Formado para as serenas funes do capitalismo, tio Cosme no enriquecia no foro: ia comendo. Tinha o escritrio na antiga rua das Violas, perto do jri, que era no extinto Aljube. Trabalhava no crime. Jos Dias no perdia as defesas orais de tio Cosme. Era quem lhe vestia e despia a toga, com muitos cumprimentos no fim. Em casa, referia os debates. Tio Cosme, por mais modesto que quisesse ser, sorria de persuaso. Era gordo e pesado, tinha a respirao curta e os olhos dorminhocos. Uma das minhas recordaes mais antigas era v-lo montar todas as manhs a besta que minha me lhe deu e que o levava ao escritrio. O preto que a tinha ido buscar cocheira, segurava o freio, enquanto ele erguia o p e pousava no estribo; a isto seguia-se um minuto de descanso ou reflexo. Depois, dava um impulso, o primeiro, o corpo ameaava subir, mas no subia; segundo impulso, igual efeito. Enfim, aps alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as foras fsicas e morais, dava o ltimo surto da terra, e desta vez caa em cima do selim. Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber o mundo. Tio Cosme acomodava as carnes, e a besta partia a trote. Tambm no me esqueceu o que ele me fez uma tarde. Posto que nascido na roa (donde vim com dois anos) e apesar dos costumes do tempo, eu no sabia montar, e tinha medo ao cavalo. Tio Cosme pegou em mim e escanchou-me em cima da besta. Quando me vi no alto (tinha nove anos), sozinho e desamparado, o cho l embaixo, entrei a gritar desesperadamente: "Mame! mame!" Ela acudiu, plida e trmula, cuidou que me estivessem matando, apeou-me, afagou-me, enquanto o irmo perguntava: Mana Glria, pois um tamanho destes tem medo de besta mansa? No est acostumado. Deve acostumar-se. Padre que seja, se for vigrio na roa, preciso que monte a cavalo; e, aqui mesmo, ainda no sendo padre, se quiser florear como os outros rapazes, e no souber, h de queixar-se de voc, mana Glria. Pois que se queixe; tenho medo. Medo! Ora, medo! A verdade que eu s vim a aprender equitao mais tarde, menos por gosto que por vergonha de dizer que no sabia montar. "Agora que ele vai namorar deveras", disseram quando eu comecei as lies. No se diria o mesmo de tio Cosme. Nele era velho costume e necessidade. J no dava para namoros. Contam que, em rapaz, foi aceito de muitas damas, alm de partidrio exaltado; mas os anos levaram-lhe o mais do ardor poltico e sexual, e a gordura acabou com o resto de idias pblicas e especficas. Agora s cumpria as obrigaes do ofcio e sem amor. Nas horas de lazer vivia olhando ou jogava. Uma ou outra vez dizia pilhrias.

    hpRealce

  • CAPTULO VII

    D. GLRIA

    Minha me era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar para Itagua. No quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns que ps ao ganho ou alugou, uma dzia de prdios, certo nmero de aplices, e deixou-se estar na casa de Mata-cavalos, onde vivera os dois ltimos anos de casada. Era filha de uma senhora mineira, descendente de outra paulista, a famlia Fernandes. Ora, pois, naquele ano da graa de 1857, D. Maria da Glria Fernandes Santiago contava quarenta e dois anos de idade. Era ainda bonita e moa, mas teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preserv-la da ao do tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos, com um xale preto, dobrado em tringulo e abrochado ao peito por um camafeu. Os cabelos, em bands, eram apanhados sobre a nuca por um velho pente de tartaruga; alguma vez trazia a touca branca de folhos. Lidava assim, com os seus sapatos de cordovo rasos e surdos, a um lado e outro, vendo e guiando os servios todos da casa inteira, desde manh at noite. Tenho ali na parede o retrato dela, ao lado do marido, tais quais na outra casa. A pintura escureceu muito, mas ainda d idia de ambos. No me lembra nada dele, a no ser vagamente que era alto e usava cabeleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos, que me acompanham para todos os lados, efeito da pintura que me assombrava em pequeno. O pescoo sai de uma gravata preta de muitas voltas, a cara toda rapada, salvo um trechozinho pegado s orelhas. O de minha me mostra que era linda. Contava ento vinte anos, e tinha uma flor entre os dedos. No painel parece oferecer a flor ao marido. O que se l na cara de ambos que, se a felicidade conjugal pode ser comparada sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de sociedade. Concluo que no se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as acusou ainda de imorais, como ningum tachou de m a boceta de Pandora, por lhe ter ficado a esperana no fundo; em alguma parte h de ela ficar. Aqui os tenho aos dois bem casados de outrora, os bem-amados, os bem-aventurados, que se foram desta para a outra vida, continuar um sonho provavelmente. Quando a loteria e Pandora me aborrecem, ergo os olhos para eles, e esqueo os bilhetes brancos e a boceta fatdica. So retratos que valem por originais. O de minha me, estendendo a flor ao marido, parece dizer: "Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!" O de meu pai, olhando para a gente, faz este comentrio: "Vejam como esta moa me quer..." Se padeceram molstias, no sei, como no sei se tiveram desgostos: era criana e comecei por no ser nascido. Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou muito; mas aqui esto os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira expresso. So como fotografias instantneas da felicidade.

    CAPTULO VIII TEMPO

    Mas tempo de tornar quela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca, sossegada como a nossa casa e o trecho da rua em que morvamos. Verdadeiramente foi o princpio da minha vida; tudo o que sucedera antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia... Agora que eu ia comear a minha pera. "A vida uma pera", dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu... E explicou-me um dia a definio, em tal maneira que me fez crer nela. Talvez valha a pena d-la; s um captulo.

  • CAPTULO IX A PERA

    J no tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. "O desuso que me faz mal", acrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da Europa, ia ao empresrio e expunha-lhe todas as injustias da Terra e do Cu; o empresrio cometia mais uma, e ele saa a bradar contra a iniqidade. Trazia ainda os bigodes dos seus papis. Quando andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa de Babilnia. s vezes, cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais idoso que ele ou tanto; vozes assim abafadas so sempre possveis. Vinha aqui jantar comigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a definio do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia ser uma pera como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabea e replicou: A vida uma pera e uma grande pera. O tenor e o bartono lutam pelo soprano, em presena do baixo e dos comprimrios, quando no so o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presena do mesmo baixo e dos mesmos comprimrios. H coros numerosos, muitos bailados, e a orquestrao excelente... Mas, meu caro Marcolini... Qu?... E, depois, de beber um gole de licor, pousou o clice, e exps-me a histria da criao, com palavras que vou resumir. Deus o poeta. A msica de Satans, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatrio do cu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, no tolerava a precedncia que eles tinham na distribuio dos prmios. Pode ser tambm que a msica em demasia doce e mstica daqueles outros condiscpulos fosse aborrecvel ao seu gnio essencialmente trgico. Tramou uma rebelio que foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatrio. Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus no houvesse escrito um libreto de pera, do qual abrira mo, por entender que tal gnero de recreio era imprprio da sua eternidade. Satans levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros, e acaso para reconciliar-se com o cu, comps a partitura, e logo que a acabou foi lev-la ao Padre Eterno. Senhor, no desaprendi as lies recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-me com ela a vossos ps... No, retorquiu o Senhor, no quero ouvir nada. Mas, Senhor... Nada! nada! Satans suplicou ainda, sem melhor fortuna, at que Deus, cansado e cheio de misericrdia, consentiu em que a pera fosse executada, mas fora do cu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primrias e comprimrias, coros e bailarinos. Ouvi agora alguns ensaios! No, no quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou

  • pronto a dividir contigo os direitos de autor. Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a audincia prvia e a colaborao amiga teriam evitado. Com efeito, h lugares em que o verso vai para a direita e a msica, para a esquerda. No falta quem diga que nisso mesmo est a beleza da composio, fugindo monotonia, e assim explicam o terceto do den, a ria de Abel, os coros da guilhotina e da escravido. No raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razo suficiente. Certos motivos cansam fora de repetio. Tambm h obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais so alis tratadas com grande percia. Tal a opinio dos imparciais. Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa acha obra to bem acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o andar da pera provvel que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aquelas desapaream inteiramente, no se negando o maestro a emendar a obra onde achar que no responde de todo ao pensamento sublime do poeta. J no dizem o mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares, e trabalhada com arte em outros, absolutamente diversa e at contrria ao drama. O grotesco, por exemplo, no est no texto do poeta; uma excrescncia para imitar as Mulheres Patuscas de Windsor. Este ponto contestado pelos satanistas com alguma aparncia de razo. Dizem eles que, ao tempo em que o jovem Satans comps a grande pera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos. Chegam a afirmar que o poeta ingls no teve outro gnio seno transcrever a letra da pera, com tal arte e fidelidade, que parece ele prprio o autor da composio; mas, evidentemente, um plagirio. Esta pea, concluiu o velho tenor, durar enquanto durar o teatro, no se podendo calcular em que tempo ser ele demolido por utilidade astronmica. O xito crescente. Poeta e msico recebem pontualmente os seus direitos autorais, que no so os mesmos, porque a regra da diviso aquilo da Escritura: "Muitos so os chamados, poucos os escolhidos". Deus recebe em ouro, Satans em papel. Tem graa... Graa? bradou ele com fria; mas aquietou-se logo, e replicou: Caro Santiago, eu no tenho graa, eu tenho horror graa. Isto que digo a verdade pura e ltima. Um dia, quando todos os livros forem queimados por inteis, h de haver algum, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo msica, meu amigo. No princpio era o d, e do d fez-se r, etc. Este clice (e enchia-o novamente), este clice um breve estribilho. No se ouve? Tambm no se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma pera...

    CAPTULO X ACEITO A TEORIA

    Que demasiada metafsica para um s tenor, no h dvida; mas a perda da voz explica tudo, e h filsofos que so, em resumo, tenores desempregados. Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, no s pela verossimilhana, que muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem definio. Cantei um duo ternssimo, depois um trio, depois um quatuor... Mas no adiantemos; vamos primeira parte, em que eu vim a saber que j cantava, porque a denncia de Jos Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim que ele me denunciou.

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  • CAPTULO XI A PROMESSA

    To depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o esconderijo, e corri varanda do fundo. No quis saber de lgrimas nem da causa que as fazia verter a minha me. A causa eram provavelmente os seus projetos eclesisticos, e a ocasio destes a que vou dizer, por ser j ento histria velha; datava de dezesseis anos. Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido morto o primeiro filho, minha me pegou-se com Deus para que o segundo vingasse, prometendo, se fosse varo, met-lo na igreja. Talvez esperasse uma menina. No disse nada a meu pai, nem antes, nem depois de me dar luz; contava faz-lo quando eu entrasse para a escola, mas enviuvou antes disso. Viva, sentiu o terror de separar-se de mim; mas era to devota, to temente a Deus, que buscou testemunhas da obrigao, confiando a promessa a parentes e familiares. Unicamente, para que nos separssemos o mais tarde possvel, fez-me aprender em casa primeiras letras, latim e doutrina, por aquele padre Cabral, velho amigo do tio Cosme, que ia l jogar s noites. Prazos largos so fceis de subscrever; a imaginao os faz infinitos. Minha me esperou que os anos viessem vindo. Entretanto, ia-me afeioando idia da igreja; brincos de criana, livros devotos, imagens de santos, conversaes de casa, tudo convergia para o altar. Quando amos missa, dizia-me sempre que era para aprender a ser padre, e que reparasse no padre, no tirasse os olhos do padre. Em casa, brincava de missa, um tanto s escondidas, porque minha me dizia que missa no era coisa de brincadeira. Arranjvamos um altar, Capitu e eu. Ela servia de sacristo, e altervamos o ritual, no sentido de dividirmos a hstia entre ns; a hstia era sempre um doce. No tempo em que brincvamos assim, era muito comum ouvir minha vizinha: "Hoje h missa?" Eu j sabia o que isto queria dizer, respondia afirmativamente, e ia pedir hstia por outro nome. Voltava com ela, arranjvamos o altar, engrolvamos o latim e precipitvamos as cerimnias. Dominus, non sum dignus... Isto, que eu devia dizer trs vezes, penso que s dizia uma, tal era a gulodice do padre e do sacristo. No bebamos vinho nem gua; no tnhamos o primeiro, e a segunda viria tirar-nos o gosto do sacrifcio. Ultimamente no me falavam j do seminrio, a tal ponto que eu supunha ser negcio findo. Quinze anos, no havendo vocao, pediam antes o seminrio do mundo que o de So Jos. Minha me ficava muita vez a olhar para mim, como alma perdida, ou pegava-me na mo, a pretexto de nada, para apert-la muito.

    CAPTULO XII NA VARANDA

    Parei na varanda; ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o corao parecendo querer sair-me pela boca fora. No me atrevia a descer chcara, e passar ao quintal vizinho. Comecei a andar de um lado para outro, estacando para amparar-me, e andava outra vez e estacava. Vozes confusas repetiam o discurso do Jos Dias: "Sempre juntos..." "Em segredinhos..."

  • "Se eles pegam de namoro..." Tijolos que pisei e repisei naquela tarde, colunas amareladas que me passastes direita ou esquerda, segundo eu ia ou vinha, em vs me ficou a melhor parte da crise, a sensao de um gozo novo, que me envolvia em mim mesmo, e logo me dispersava, e me trazia arrepios, e me derramava no sei que blsamo interior. s vezes dava por mim, sorrindo, um ar de riso de satisfao, que desmentia a abominao do meu pecado. E as vozes repetiam-se confusas: "Em segredinhos..." "Sempre juntos..." "Se eles pegam de namoro..." Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de cima de si que no era feio que os meninos de quinze anos andassem nos cantos com as meninas de quatorze; ao contrrio, os adolescentes daquela idade no tinham outro ofcio, nem os cantos outra utilidade. Era um coqueiro velho, e eu cria nos coqueiros velhos, mais ainda que nos velhos livros. Pssaros, borboletas, uma cigarra que ensaiava o estio, toda a gente viva do ar era da mesma opinio. Com que ento eu amava Capitu, e Capitu a mim? Realmente, andava cosido s saias dela, mas no me ocorria nada entre ns que fosse deveras secreto. Antes dela ir para o colgio, eram tudo travessuras de criana; depois que saiu do colgio, certo que no restabelecemos logo a antiga intimidade, mas esta voltou pouco a pouco, e no ltimo ano era completa. Entretanto, a matria das nossas conversaes era a de sempre. Capitu chamava-me s vezes bonito, moceto, uma flor; outras pegava-me nas mos para contar-me os dedos. E comecei a recordar esses e outros gestos e palavras, o prazer que sentia quando ela me passava a mo pelos cabelos, dizendo que os achava lindssimos. Eu, sem fazer o mesmo aos dela, dizia que os dela eram muito mais lindos que os meus. Ento Capitu abanava a cabea com uma grande expresso de desengano e melancolia, tanto mais de espantar quanto que tinha os cabelos realmente admirveis; mas eu retorquia chamando-lhe maluca. Quando me perguntava se sonhara com ela na vspera, e eu dizia que no, ouvia-lhe contar que sonhara comigo, e eram aventuras extraordinrias, que subamos ao Corcovado pelo ar, que danvamos na Lua, ou ento que os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar a outros anjos que acabavam de nascer. Em todos esses sonhos andvamos unidinhos. Os que eu tinha com ela no eram assim, apenas reproduziam a nossa familiaridade, e muita vez no passavam da simples repetio do dia, alguma frase, algum gesto. Tambm eu os contava. Capitu um dia notou a diferena, dizendo que os dela eram mais bonitos que os meus; eu, depois de certa hesitao, disse-lhe que eram como a pessoa que sonhava... Fez-se cor de pitanga. Pois, francamente, s agora entendia a comoo que me davam essas e outras confidncias. A emoo era doce e nova, mas a causa dela fugia-me, sem que eu a buscasse nem suspeitasse. Os silncios dos ltimos dias, que me no descobriam nada, agora os sentia como sinais de alguma coisa, e assim as meias palavras, as perguntas curiosas, as respostas vagas, os cuidados, o gosto de recordar a infncia. Tambm adverti que era fenmeno recente acordar com o pensamento em Capitu, e escut-la de memria, e estremecer quando lhe ouvia os passos. Se se falava nela, em minha casa, prestava mais ateno que dantes, e, segundo era louvor ou crtica, assim me trazia gosto ou desgosto mais intensos que outrora, quando ramos somente companheiros de travessuras. Cheguei a pensar nela durante as missas daquele ms, com intervalos, verdade, mas com exclusivismo tambm. Tudo isto me era agora apresentado pela boca de Jos Dias, que me denunciara a

  • mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o que pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, a eterna Verdade no valeria mais que ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava Capitu! Capitu amava-me! E as minhas pernas andavam, desandavam, estacavam, trmulas e crentes de abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa revelao da conscincia a si prpria, nunca mais me esqueceu, nem achei que lhe fosse comparvel qualquer outra sensao da mesma espcie. Naturalmente por ser minha. Naturalmente tambm por ser a primeira.

    CAPTULO XIII CAPITU

    De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao p: Capitu! E no quintal: Mame! E outra vez na casa: Vem c! No me pude ter. As pernas desceram-me os trs degraus que davam para a chcara, e caminharam para o quintal vizinho. Era costume delas, s tardes, e s manhs tambm. Que as pernas tambm so pessoas, apenas inferiores aos braos, e valem de si mesmas, quando a cabea no as rege por meio de idias. As minhas chegaram ao p do muro. Havia ali uma porta de comunicao mandada rasgar por minha me, quando Capitu e eu ramos pequenos. A porta no tinha chave nem taramela; abria-se empurrando de um lado ou puxando de outro, e fechava-se ao peso de uma pedra pendente de uma corda. Era quase que exclusivamente nossa. Em crianas, fazamos visita batendo de um lado, e sendo recebidos do outro com muitas mesuras. Quando as bonecas de Capitu adoeciam, o mdico era eu. Entrava no quintal dela com um pau debaixo do brao, para imitar o bengalo do doutor Joo da Costa; tomava o pulso doente, e pedia-lhe que mostrasse a lngua. " surda, coitada!", exclamava Capitu. Ento eu coava o queixo, como o doutor, e acabava mandando aplicar-lhe umas sanguessugas ou dar-lhe um vomitrio: era a teraputica habitual do mdico. Capitu! Mame! Deixa de estar esburacando o muro; vem c. A voz da me era agora mais perto, como se viesse j da porta dos fundos. Quis passar ao quintal, mas as pernas, h pouco to andarilhas, pareciam agora presas ao cho. Afinal fiz um esforo, empurrei a porta, e entrei. Capitu estava ao p do muro fronteiro, voltada para ele, riscando com um prego. O rumor da porta f-la olhar para trs; ao dar comigo, encostou-se ao muro, como se quisesse esconder alguma coisa. Caminhei para ela; naturalmente levava o gesto mudado, porque ela veio a mim, e perguntou-me inquieta: Que que voc tem? Eu? Nada.

  • Nada, no; voc tem alguma coisa. Quis insistir que nada, mas no achei lngua. Todo eu era olhos e corao, um corao que desta vez ia sair, com certeza, pela boca fora. No podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranas, com as pontas atadas uma outra, moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mos, a despeito de alguns ofcios rudes, eram curadas com amor; no cheiravam a sabes finos nem guas de toucador, mas com gua do poo e sabo comum trazia-as sem mcula. Calava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos. Que que voc tem? repetiu. No nada, balbuciei finalmente. E emendei logo: uma notcia. Notcia de qu? Pensei em dizer-lhe que ia entrar para o seminrio e espreitar a impresso que lhe faria. Se a consternasse que realmente gostava de mim; se no, que no gostava. Mas todo esse clculo foi obscuro e rpido; senti que no poderia falar claramente, tinha agora a vista no sei como... Ento? Voc sabe... Nisto olhei para o muro, o lugar em que ela estivera riscando, escrevendo ou esburacando, como dissera a me. Vi uns riscos abertos, e lembrou-me o gesto que ela fizera para cobri-los. Ento quis v-los de perto, e dei um passo. Capitu agarrou-me, mas, ou por temer que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adiante e apagou o escrito. Foi o mesmo que acender em mim o desejo de ler o que era.

    CAPTULO XIV A INSCRIO

    Tudo o que contei no fim do outro captulo foi obra de um instante. O que se lhe seguiu foi ainda mais rpido. Dei um pulo, e antes que ela raspasse o muro, li estes dois nomes, abertos ao prego, e assim dispostos: BENTO CAPITOLINA Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no cho. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para o outro... Confisso de crianas, tu valias bem duas ou trs pginas, mas quero ser poupado. Em verdade, no falamos nada; o muro falou por ns. No nos movemos, as mos que se estenderam pouco a pouco, todas quatro, pegando-se, apertando-se, fundindo-se. No marquei a hora exata daquele gesto. Devia t-la marcado; sinto a falta de uma nota escrita naquela mesma noite, e que eu poria aqui com os erros de ortografia que trouxesse, mas no traria nenhum, tal era a diferena entre o estudante e o adolescente.

  • Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem de mulheres. No soltamos as mos, nem elas se deixaram cair de cansadas ou de esquecidas. Os olhos fitavam-se e desfitavam-se, e depois de vagarem ao perto, tornavam a meter-se uns pelos outros... Padre futuro, estava assim diante dela como de um altar, sendo uma das faces a Epstola e a outra o Evangelho. A boca podia ser o clice, os lbios a patena. Faltava dizer a missa nova, por um latim que ningum aprende, e a lngua catlica dos homens. No me tenhas por sacrlego, leitora minha devota; a limpeza da inteno lava o que puder haver menos curial no estilo. Estvamos ali com o cu em ns. As mos, unindo os nervos, faziam das duas criaturas uma s, mas uma s criatura serfica. Os olhos continuaram a dizer coisas infinitas, as palavras de boca que nem tentavam sair, tornavam ao corao caladas como vinham...

    CAPTULO XV OUTRA VOZ REPENTINA

    Outra voz repentina, mas desta vez uma voz de homem: Vocs esto jogando o siso? Era o pai de Capitu, que estava porta dos fundos, ao p da mulher. Soltamos as mos depressa, e ficamos atrapalhados. Capitu foi ao muro, e, com o prego, disfaradamente, apagou os nossos nomes escritos. Capitu! Papai! No me estragues o reboco do muro. Capitu riscava sobre o riscado, para apagar bem o escrito. Pdua saiu ao quintal, a ver o que era, mas j a filha tinha comeado outra coisa, um perfil, que disse ser o retrato dele, e tanto podia ser dele como da me; f-lo rir, era o essencial. De resto, ele chegou sem clera, todo meigo, apesar do gesto duvidoso ou menos que duvidoso em que nos apanhou. Era um homem baixo e grosso, pernas e braos curtos, costas abauladas, donde lhe veio a alcunha de Tartaruga, que Jos Dias lhe ps. Ningum lhe chamava assim l em casa; era s o agregado. Vocs estavam jogando o siso? perguntou. Olhei para um p de sabugueiro que ficava perto; Capitu respondeu por ambos. Estvamos, sim, senhor; mas Bentinho ri logo, no agenta. Quando eu cheguei porta, no ria. J tinha rido das outras vezes; no pode. Papai quer ver? E sria, fitou em mim os olhos, convidando-me ao jogo. O susto naturalmente srio; eu estava ainda sob a ao do que trouxe a entrada de Pdua, e no fui capaz de rir, por mais que devesse faz-lo, para legitimar a resposta de Capitu. Esta, cansada de esperar, desviou o rosto, dizendo que eu no ria daquela vez por estar ao p do pai. E nem assim ri. H coisas que s se aprendem tarde; mister nascer com elas para faz-las cedo. E melhor naturalmente cedo que artificialmente tarde. Capitu, aps duas voltas, foi ter com a me, que continuava

  • porta da casa, deixando-nos a mim e ao pai encantados dela; o pai, olhando para ela e para mim, dizia-me, cheio de ternura: Quem dir que esta pequena tem quatorze anos? Parece dezessete. Mame est boa? continuou voltando-se inteiramente para mim. Est. H muitos dias que no a vejo. Estou com vontade de dar um capote ao doutor, mas no tenho podido, ando com trabalhos da repartio em casa; escrevo todas as noites que um desespero; negcio de relatrio. Voc j viu o meu gaturamo? Est ali no fundo. Ia agora mesmo buscar a gaiola; ande ver. Que o meu desejo era nenhum, cr-se facilmente, sem ser preciso jurar pelo Cu nem pela Terra. Meu desejo era ir atrs de Capitu e falar-lhe agora do mal que nos esperava; mas o pai era o pai, e demais amava particularmente os passarinhos. Tinha-os de vria espcie, cor e tamanho. A rea que havia no centro da casa era cercada de gaiolas de canrios, que faziam cantando um barulho de todos os diabos. Trocava pssaros com outros amadores, comprava-os, apanhava alguns, no prprio quintal, armando alapes. Tambm, se adoeciam, tratava deles como se fossem gente.

    CAPTULO XVI O ADMINISTRADOR INTERINO

    Pdua era empregado em repartio dependente do ministrio da guerra. No ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata. Demais, a casa em que morava, assobradada como a nossa, posto que menor, era propriedade dele. Comprou-a com a sorte grande que lhe saiu num meio bilhete de loteria, dez contos de ris. A primeira idia do Pdua, quando lhe saiu o prmio, foi comprar um cavalo do Cabo, um adereo de brilhantes para a mulher, uma sepultura perptua de famlia, mandar vir da Europa alguns pssaros, etc.; mas a mulher, esta D. Fortunata que ali est porta dos fundos da casa, em p, falando filha, alta, forte, cheia, como a filha, a mesma cabea, os mesmos olhos claros, a mulher que lhe disse que o melhor era comprar a casa, e guardar o que sobrasse para acudir s molstias grandes. Pdua hesitou muito; afinal, teve de ceder aos conselhos de minha me, a quem D. Fortunata pediu auxlio. Nem foi s nessa ocasio que minha me lhes valeu; um dia chegou a salvar a vida do Pdua. Escutai; a anedota curta. O administrador da repartio em que Pdua trabalhava teve de ir ao Norte, em comisso. Pdua, ou por ordem regulamentar, ou por especial designao, ficou substituindo o administrador com os respectivos honorrios. Esta mudana de fortuna trouxe-lhe certa vertigem; era antes dos dez contos. No se contentou de reformar a roupa e a copa, atirou-se s despesas suprfluas, deu jias mulher, nos dias de festa matava um leito, era visto em teatros, chegou aos sapatos de verniz. Viveu assim vinte e dois meses na suposio de uma eterna interinidade. Uma tarde entrou em nossa casa, aflito e desvairado, ia perder o lugar, porque chegara o efetivo naquela manh. Pediu minha me que velasse pelas infelizes que deixava; no podia sofrer a desgraa, matava-se. Minha me falou-lhe com bondade, mas ele no atendia a coisa nenhuma. No, minha senhora, no consentirei em tal vergonha! Fazer descer a famlia, tornar atrs... J disse, mato-me! No hei de confessar minha gente esta misria. E os outros? Que diro os vizinhos? E os amigos? E o pblico? Que pblico, Sr. Pdua? Deixe-se disso; seja homem. Lembre-se que sua mulher no tem outra pessoa... e que h de fazer? Pois um homem... Seja

  • homem, ande. Pdua enxugou os olhos e foi para casa, onde viveu prostrado alguns dias, mudo, fechado na alcova, ou ento no quintal, ao p do poo, como se a idia da morte teimasse nele. D. Fortunata ralhava: Joozinho, voc criana? Mas, tanto lhe ouviu falar em morte que teve medo, e um dia correu a pedir minha me que lhe fizesse o favor de ver se lhe salvava o marido que se queria matar. Minha me foi ach-lo beira do poo, e intimou-lhe que vivesse. Que maluquice era aquela de parecer que ia ficar desgraado, por causa de uma gratificao menos, e perder um emprego interino? No, senhor, devia ser homem, pai de famlia, imitar a mulher e a filha... Pdua obedeceu; confessou que acharia foras para cumprir a vontade de minha me. Vontade minha, no; obrigao sua. Pois seja obrigao; no desconheo que assim mesmo. Nos dias seguintes, continuou a entrar e sair de casa, cosido parede, cara no cho. No era o mesmo homem que estragava o chapu em cortejar a vizinhana, risonho, olhos no ar, antes mesmo da administrao interina. Vieram as semanas, a ferida foi sarando. Pdua comeou a interessar-se pelos negcios domsticos, a cuidar dos passarinhos, a dormir tranqilo as noites e as tardes, a conversar e dar notcias da rua. A serenidade regressou; atrs dela veio a alegria, um domingo, na figura de dois amigos, que iam jogar o solo, a tentos. J ele ria, j brincava, tinha o ar do costume; a ferida sarou de todo. Com o tempo veio um fenmeno interessante. Pdua comeou a falar da administrao interina, no somente sem as saudades dos honorrios, nem o vexame da perda, mas at com desvanecimento e orgulho. A administrao ficou sendo a hgira, donde ele contava para diante e para trs. No tempo em que eu era administrador... Ou ento: Ah! sim, lembra-me, foi antes da minha administrao, um ou dois meses antes... Ora espere; a minha administrao comeou... isto, ms e meio antes; foi ms e meio antes, no foi mais. Ou ainda: Justamente; havia j seis meses que eu administrava... Tal o sabor pstumo das glrias interinas. Jos Dias bradava que era a vaidade sobrevivente; mas o padre Cabral, que levava tudo para a Escritura, dizia que com o vizinho Pdua se dava a lio de Elifs a J: "No desprezes a correo do Senhor; Ele fere e cura".

    CAPTULO XVII OS VERMES

    "Ele fere e cura!". Quando, mais tarde, vim a saber que a lana de Aquiles tambm curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever uma dissertao a este propsito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, a compar-los, catando o texto e o sentido, para

  • achar a origem comum do orculo pago e do pensamento israelita. Catei os prprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos rodos por eles. Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, ns no sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; ns roemos. No lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silncio sobre os textos rodos fosse ainda um modo de roer o rodo.

    CAPTULO XVIII UM PLANO

    Pai nem me foram ter conosco, quando Capitu e eu, na sala de visitas, falvamos do seminrio. Com os olhos em mim, Capitu queria saber que notcia era a que me afligia tanto. Quando lhe disse o que era, fez-se cor de cera. Mas eu no quero, acudi logo, no quero entrar em seminrios; no entro, escusado teimarem comigo; no entro. Capitu, a princpio, no disse nada. Recolheu os olhos, meteu-os em si e deixou-se estar com as pupilas vagas e surdas, a boca entreaberta, toda parada. Ento eu, para dar fora s afirmaes, comecei a jurar que no seria padre. Naquele tempo jurava muito e rijo, pela vida e pela morte. Jurei pela hora da morte. Que a luz me faltasse na hora da morte se fosse para o seminrio. Capitu no parecia crer nem descrer, no parecia sequer ouvir; era uma figura de pau. Quis cham-la, sacudi-la, mas faltou-me nimo. Essa criatura que brincara comigo, que pulara, danara, creio at que dormira comigo, deixava-me agora com os braos atados e medrosos. Enfim, tornou a si, mas tinha a cara lvida, e rompeu nestas palavras furiosas: Beata! carola! papa-missas! Fiquei aturdido. Capitu gostava tanto de minha me, e minha me dela, que eu no podia entender tamanha exploso. verdade que tambm gostava de mim, e naturalmente mais, ou melhor, ou de outra maneira, coisa bastante a explicar o despeito que lhe trazia a ameaa da separao; mas os improprios, como entender que lhe chamasse nomes to feios, e principalmente para deprimir costumes religiosos, que eram os seus? Que ela tambm ia missa, e trs ou quatro vezes minha me que a levou, na nossa velha sege. Tambm lhe dera um rosrio, uma cruz de ouro e um livro de Horas... Quis defend-la, mas Capitu no me deixou, continuou a chamar-lhe beata e carola, em voz to alta que tive medo fosse ouvida dos pais. Nunca a vi to irritada como ento; parecia disposta a dizer tudo a todos. Cerrava os dentes, abanava a cabea... Eu, assustado, no sabia que fizesse; repetia os juramentos, prometia ir naquela mesma noite declarar em casa que, por nada neste mundo, entraria no seminrio. Voc? Voc entra. No entro. Voc ver se entra ou no. Calou-se outra vez. Quando tornou a falar, tinha mudado; no era ainda a Capitu do costume, mas quase. Estava sria, sem aflio, falava baixo. Quis saber a conversao da minha casa; eu contei-lha toda, menos a parte que lhe dizia

  • respeito. E que interesse tem Jos Dias em lembrar isto? perguntou-me no fim. Acho que nenhum; foi s para fazer mal. um sujeito muito ruim; mas, deixe estar que me h de pagar. Quando eu for dono da casa, quem vai para a rua ele, voc ver; no me fica um instante. Mame boa demais; d-lhe ateno demais. Parece at que chorou. Jos Dias? No, mame. Chorou por qu? No sei; ouvi s dizer que ela no chorasse, que no era coisa de choro... Ele chegou a mostrar-se arrependido, e saiu; eu ento, para no ser apanhado, deixei o canto e corri para a varanda. Mas, deixe estar, que ele me paga! Disse isto fechando o punho, e proferi outras ameaas. Ao relembr-las, no me acho ridculo; a adolescncia e a infncia no so, neste ponto, ridculas; um dos seus privilgios. Este mal ou este perigo comea na mocidade, cresce na madureza e atinge o maior grau na velhice. Aos quinze anos, h at certa graa em ameaar muito e no executar nada. Capitu refletia. A reflexo no era coisa rara nela, e conheciam-se as ocasies pelo apertado dos olhos. Pediu-me algumas circunstncias mais, as prprias palavras de uns e de outros, e o tom delas. Como eu no queria dizer o ponto inicial da conversa, que era ela mesma, no lhe pude dar toda a significao. A ateno de Capitu estava agora particularmente nas lgrimas de minha me; no acabava de entend-las. Em meio disto, confessou que certamente no era por mal que minha me me queria fazer padre; era a promessa antiga, que ela, temente a Deus, no podia deixar de cumprir. Fiquei to satisfeito de ver que assim espontaneamente reparava as injrias que lhe saram do peito, pouco antes, que peguei da mo dela e apertei-a muito. Capitu deixou-se ir, rindo; depois a conversa entrou a cochilar e dormir. Tnhamos chegado janela; um preto, que, desde algum tempo, vinha apregoando cocadas, parou em frente e perguntou: Sinhazinha, qu cocada hoje? No, respondeu Capitu. Cocadinha t boa. V-se embora, replicou ela sem rispidez. D c! disse eu descendo o brao para receber duas. Comprei-as, mas tive de as comer sozinho; Capitu recusou. Vi que, em meio da crise, eu conservava um canto para as cocadas, o que tanto pode ser perfeio como imperfeio, mas o momento no para definies tais; fiquemos em que a minha amiga, apesar de equilibrada e lcida, no quis saber de doce, e gostava muito de doce. Ao contrrio, o prego que o preto foi cantando, o prego das velhas tardes, to sabido do bairro e da nossa infncia:

    Chora, menina, chora, Chora, porque no tem Vintm,

    a modo que lhe deixara uma impresso aborrecida. Da toada no era; ela a sabia

  • de cor e de longe, usava repeti-la nos nossos jogos da puercia, rindo, saltando, trocando os papis comigo, ora vendendo, ora comprando um doce ausente. Creio que a letra, destinada a picar a vaidade das crianas, foi que a enojou agora, porque logo depois me disse: Se eu fosse rica, voc fugia, metia-se no paquete e ia para a Europa. Dito isto, espreitou-me os olhos, mas creio que eles no lhe disseram nada, ou s agradeceram a boa inteno. Com efeito, o sentimento era to amigo que eu podia escusar o extraordinrio da aventura. Como vs, Capitu, aos quatorze anos, tinha j idias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram s atrevidas em si, na prtica faziam-se hbeis, sinuosas, surdas, e alcanavam o fim proposto, no de salto, mas aos saltinhos. No sei se me explico bem. Suponde uma concepo grande executada por meios pequenos. Assim, para no sair do desejo vago e hipottico de me mandar para a Europa, Capitu, se pudesse cumpri-lo, no me faria embarcar no paquete e fugir; estenderia uma fila de canoas daqui at l, por onde eu, parecendo ir fortaleza da Laje em ponte movedia, iria realmente at Bordus, deixando minha me na praia, espera. Tal era a feio particular do carter da minha amiga; pelo que, no admira que, combatendo os meus projetos de resistncia franca, fosse antes pelos meios brandos, pela ao do empenho, da palavra, da persuaso lenta e diuturna, e examinasse antes as pessoas com quem podamos contar. Rejeitou tio Cosme; era um "boa-vida"; se no aprovava a minha ordenao, no era capaz de dar um passo para suspend-la. Prima Justina era melhor que ele, e melhor que os dois seria o Padre Cabral, pela autoridade, mas o padre no havia de trabalhar contra a igreja; s se eu lhe confessasse que no tinha vocao... Posso confessar? Pois, sim, mas seria aparecer francamente, e o melhor outra coisa. Jos Dias... Que tem Jos Dias? Pode ser um bom empenho. Mas se foi ele mesmo que falou... No importa, continuou Capitu; dir agora outra coisa. Ele gosta muito de voc. No lhe fale acanhado. Tudo que voc no tenha medo, mostre que h de vir a ser dono da casa, mostre que quer e que pode. D-lhe bem a entender que no favor. Faa-lhe tambm elogios; ele gosta muito de ser elogiado. D. Glria presta-lhe ateno; mas o principal no isso; que ele, tendo de servir a voc, falar com muito mais calor que outra pessoa. No acho, no, Capitu. Ento v para o seminrio. Isso no. Mas que se perde em experimentar? Experimentemos; faa o que lhe digo. Dona Glria pode ser que mude de resoluo; se no mudar, faz-se outra coisa, mete-se ento o Padre Cabral. Voc no se lembra como que foi ao teatro pela primeira vez, h dois meses? D. Glria no queria, e bastava isso para que Jos Dias no teimasse; mas ele queria ir, e fez um discurso, lembra-se? Lembra-me; disse que o teatro era uma escola de costumes.

  • Justo; tanto falou que sua me acabou consentindo, e pagou a entrada aos dois... Ande, pea, mande. Olhe; diga-lhe que est pronto a ir estudar leis em So Paulo. Estremeci de prazer. So Paulo era um frgil biombo, destinado a ser arredado um dia, em vez da grossa parede espiritual e eterna. Prometi falar a Jos Dias nos termos propostos. Capitu repetiu-os, acentuando alguns, como principais; e inquiria-me depois sobre eles, a ver se entendera bem, se no trocara uns por outros. E insistia em que pedisse com boa cara, mas assim como quem pede um copo de gua a pessoa que tem obrigao de o trazer. Conto estas mincias para que melhor se entenda aquela manh da minha amiga; logo vir a tarde, e da manh e da tarde se far o primeiro dia, como no Gnesis, onde se fizeram sucessivamente sete.

    CAPTULO XIX SEM FALTA

    Quando voltei a casa era noite. Vim depressa, no tanto, porm, que no pensasse nos termos em que falaria ao agregado. Formulei o pedido de cabea, escolhendo as palavras que diria e o tom delas, entre seco e benvolo. Na chcara, antes de entrar em casa, repeti-as comigo, depois em voz alta, para ver se eram adequadas e se obedeciam s recomendaes de Capitu: "Preciso falar-lhe, sem falta, amanh; escolha o lugar e diga-me". Proferi-as lentamente, e mais lentamente ainda as palavras sem falta, como para sublinh-las. Repeti-as ainda, e ento achei-as secas demais, quase rspidas, e, francamente, imprprias de um crianola para um homem maduro. Cuidei de escolher outras, e parei. Afinal disse comigo que as palavras podiam servir, tudo era diz-las em tom que no ofendesse. E a prova que, repetindo-as novamente, saram-me quase splices. Bastava no carregar tanto, nem adoar muito, um meio-termo. "E Capitu tem razo, pensei, a casa minha, ele um simples agregado... Jeitoso , pode muito bem trabalhar por mim, e desfazer o plano de mame."

    CAPTULO XX MIL PADRE-NOSSOS E MIL AVE-MARIAS

    Levantei os olhos ao cu, que comeava a embruscar-se, mas no foi para v-lo coberto ou descoberto. Era ao outro Cu que eu erguia a minha alma; era ao meu refgio, ao meu amigo. E ento disse de mim para mim: "Prometo rezar mil padre-nossos e mil ave-marias, se Jos Dias arranjar que eu no v para o seminrio". A soma era enorme. A razo que eu andava carregado de promessas no cumpridas. A ltima foi de duzentos padre-nossos e duzentas ave-marias, se no chovesse em certa tarde de passeio a Santa Teresa. No choveu, mas eu no rezei as oraes. Desde pequenino acostumara-me a pedir ao Cu os seus favores, mediante oraes que diria, se eles viessem. Disse as primeiras, as outras foram adiadas, e medida que se amontoavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei aos nmeros vinte, trinta, cinqenta. Entrei nas centenas e agora no milhar. Era um modo de peitar a vontade divina pela quantia das oraes; alm disso, cada promessa nova era feita e jurada no sentido de pagar a dvida antiga. Mas vo l matar a preguia de uma alma que a trazia do bero e no a sentia atenuada pela vida! O Cu fazia-me o favor, eu adiava a paga. Afinal perdi-me nas contas. Mil, mil, repeti comigo.

  • Realmente, a matria do benefcio era agora imensa, no menos que a salvao ou o naufrgio da minha existncia inteira. Mil, mil, mil. Era preciso uma soma que pagasse os atrasados todos. Deus podia muito bem, irritado com os esquecimentos, negar-se a ouvir-me sem muito dinheiro... Homem grave, possvel que estas agitaes de menino te enfadem, se que no as achas ridculas. Sublimes no eram. Cogitei muito no modo de resgatar a dvida espiritual. No achava outra espcie em que, mediante a inteno, tudo se cumprisse, fechando a escriturao da minha conscincia moral sem deficit. Mandar dizer cem missas, ou subir de joelhos a ladeira da Glria para ouvir uma, ir Terra Santa, tudo o que as velhas escravas me contavam de promessas clebres, tudo me acudia sem se fixar de vez no esprito. Era muito duro subir uma ladeira de joelhos; devia feri-los por fora. A Terra Santa ficava muito longe. As missas eram numerosas, podiam empenhar-me outra vez a alma...

    CAPTULO XXI PRIMA JUSTINA

    Na varanda achei prima Justina, passeando de um lado para outro. Veio ao patamar e perguntou-me onde estivera. Estive aqui ao p, conversando com D. Fortunata, e distra-me. tarde, no ? Mame perguntou por mim? Perguntou, mas eu disse que voc j tinha vindo. A mentira espantou-me, no menos que a franqueza da notcia. No que prima Justina fosse de biocos, dizia francamente a Pedro o mal que pensava de Paulo, e a Paulo o que pensava de Pedro; mas, confessar que mentira que me pareceu novidade. Era quadragenria, magra e plida, boca fina e olhos curiosos. Vivia conosco por favor de minha me, e tambm por interesse; minha me queria ter uma senhora ntima ao p de si, e antes parenta que estranha. Passeamos alguns minutos na varanda, alumiada por um lampio. Quis saber se eu no esquecera os projetos eclesisticos de minha me, e dizendo-lhe eu que no, inquiriu-me sobre o gosto que eu tinha vida de padre. Respondi esquivo: Vida de padre muito bonita. Sim, bonita; mas o que pergunto se voc gostaria de ser padre, explicou rindo. Eu gosto do que mame quiser. Prima Glria deseja muito que voc se ordene, mas ainda que no desejasse, h c em casa quem lhe meta isso na cabea. Quem ? Ora, quem! Quem que h de ser? Primo Cosme no , que no se importa com isso; eu tambm no. Jos Dias? conclu. Naturalmente. Enruguei a testa interrogativamente, como se no soubesse nada. Prima Justina completou a notcia dizendo que ainda naquela tarde Jos Dias lembrara a minha

  • me a promessa antiga. Prima Glria pode ser que, em passando os dias, v esquecendo a promessa; mas como h de esquecer se uma pessoa estiver sempre, nos ouvidos, zs que dars, falando do seminrio? E os discursos que ele faz, os elogios da igreja, e que a vida de padre isto e aquilo, tudo com aquelas palavras que s ele conhece, e aquela afetao... Note que s para fazer mal, porque ele to religioso como este lampio. Pois verdade, ainda hoje. Voc no se d por achado... Hoje de tarde falou como voc no imagina... Mas falou toa? perguntei, a ver se ela contava a denncia do meu namoro com a vizinha. No contou; fez apenas um gesto como indicando que havia outra coisa que no podia dizer. Novamente me recomendou que no me desse por achado, e recapitulou todo o mal que pensava de Jos Dias, e no era pouco, um intrigante, um bajulador, um especulador, e, apesar da casca de polidez, um grosseiro. Eu, passados alguns instantes, disse: Prima Justina, a senhora era capaz de uma coisa? De qu? Era capaz de... Suponha que eu no gostasse de ser padre... a senhora podia pedir a mame... Isso no, atalhou prontamente; prima Glria tem este negcio firme na cabea, e no h nada no mundo que a faa mudar de resoluo; s o tempo. Voc ainda era pequenino, j ela contava isto a todas as pessoas da nossa amizade, ou s conhecidas. L avivar-lhe a memria, no, que eu no trabalho para a desgraa dos outros; mas tambm, pedir outra coisa, no peo. Se ela me consultasse, bem; se ela me dissesse: "Prima Justina, voc que acha?", a minha resposta era: "Prima Glria, eu penso que, se ele gosta de ser padre, pode ir; mas, se no gosta, o melhor ficar". o que eu diria e direi se ela me consultar algum dia. Agora, ir falar-lhe sem ser chamada, no fao.

    CAPTULO XXII SENSAES ALHEIAS

    No alcancei mais nada, e para o fim arrependi-me do pedido: devia ter seguido o conselho de Capitu. Ento, como eu quisesse ir para dentro, prima Justina reteve-me alguns minutos, falando do calor e da prxima festa da Conceio, dos meus velhos oratrios, e finalmente de Capitu. No disse mal dela; ao contrrio, insinuou-me que podia vir a ser uma moa bonita. Eu, que j a achava lindssima, bradaria que era a mais bela criatura do mundo, se o receio me no fizesse discreto. Entretanto, como prima Justina se metesse a elogiar-lhe os modos, a gravidade, os costumes, o trabalhar para os seus, o amor que tinha a minha me, tudo isto me acendeu a ponto de elogi-la tambm. Quando no era com palavras, era com o gesto de aprovao que dava a cada uma das asseres da outra, e certamente com a felicidade que devia iluminar-me a cara. No adverti que assim confirmava a denncia de Jos Dias, ouvida por ela, tarde, na sala de visitas, se que tambm ela no desconfiava j. S pensei nisso na cama. S ento senti que os olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me, cheirar-me, gostar-me, fazer o ofcio de todos os sentidos. Cimes no podiam ser; entre um pirralho da minha idade e uma viva quarentona no havia lugar para cimes. certo que, aps algum tempo, modificou os elogios a Capitu, e at lhe fez algumas crticas, disse-me que era um pouco trfega e olhava por baixo; mas ainda assim, no creio que fossem cimes. Creio antes... sim... sim, creio

  • isto. Creio que prima Justina achou no espetculo das sensaes alheias uma ressurreio vaga das prprias. Tambm se goza por influio dos lbios que narram.

    CAPTULO XXIII PRAZO DADO

    Preciso falar-lhe amanh, sem falta; escolha o lugar e diga-me. Creio que Jos Dias achou desusado este meu falar. O tom no me sara to imperativo como eu receava, mas as palavras o eram, e o no interrogar, no pedir, no hesitar, como era prprio da criana e do meu estilo habitual, certamente lhe deu idia de uma pessoa nova e de uma nova situao. Foi no corredor, quando amos para o ch; Jos Dias vinha andando cheio da leitura de Walter Scott que fizera a minha me e a prima Justina. Lia cantado e compassado. Os castelos e os parques saam maiores da boca dele, os lagos tinham mais gua e a "abbada celeste" contava alguns milhares mais de estrelas cintilantes. Nos dilogos, alternava o som das vozes, que eram levemente grossas ou finas, conforme o sexo dos interlocutores, e reproduziam com moderao a ternura e a clera. Ao despedir-se de mim, na varanda, disse-me ele: Amanh, na rua. Tenho umas compras que fazer, voc pode ir comigo, pedirei a mame. dia de lio? A lio foi hoje. Perfeitamente. No lhe pergunto o que ; afirmo desde j que matria grave e pura. Sim, senhor. At amanh. Fez-se tudo o melhor possvel. Houve s uma alterao; minha me achou o dia quente e no consentiu que eu fosse a p; entramos no nibus, porta de casa. No importa, disse-me Jos Dias; podemos apear-nos porta do Passeio Pblico.

    CAPTULO XXIV DE ME E DE SERVO

    Jos Dias tratava-me com extremos de me e atenes de servo. A primeira coisa que conseguiu logo que comecei a andar fora, foi dispensar-me o pajem; fez-se pajem, ia comigo rua. Cuidava dos meus arranjos em casa, dos meus livros, dos meus sapatos, da minha higiene e da minha prosdia. Aos oito anos os meus plurais careciam, alguma vez, da desinncia exata, ele a corrigia, meio srio para dar autoridade lio, meio risonho para obter o perdo da emenda. Ajudava assim o mestre de primeiras letras. Mais tarde, quando o Padre Cabral me ensinava latim, doutrina e histria sagrada, ele assistia s lies, fazia reflexes eclesisticas, e, no fim, perguntava ao padre: "No verdade que o nosso jovem amigo caminha depressa?" Chamava-me "um prodgio"; dizia a minha me ter conhecido outrora meninos muito inteligentes, mas que eu excedia a todos esses, sem contar que, para a minha idade, possua j certo nmero de qualidades

  • morais slidas. Eu, posto no avaliasse todo o valor deste outro elogio, gostava do elogio; era um elogio.

    CAPTULO XXV NO PASSEIO PBLICO

    Entramos no Passeio Pblico. Algumas caras velhas, outras doentes ou s vadias espalhavam-se melancolicamente no caminho que vai da porta ao terrao. Seguimos para o terrao. Andando, para me dar nimo, falei do jardim: H muito tempo que no venho aqui, talvez um ano. Perdoe-me, atalhou ele, no h trs meses que esteve aqui com o nosso vizinho Pdua; no se lembra? verdade, mas foi to de passagem. . . Ele pediu a sua me que o deixasse trazer consigo, e ela, que boa como a me de Deus, consentiu; mas oua-me, j que falamos nisto, no bonito que voc ande com o Pdua na rua. Mas eu andei algumas vezes... Quando era mais jovem; era criana, era natural, ele podia passar por criado. Mas voc est ficando moo e ele vai tomando confiana. D. Glria, afinal, no pode gostar disso. A gente Pdua no de todo m. Capitu, apesar daqueles olhos que o Diabo lhe deu... Voc j reparou nos olhos dela? So assim de cigana oblqua e dissimulada. Pois, apesar deles, poderia passar, se no fosse a vaidade e a adulao. Oh! a adulao! D. Fortunata merece estima, e ele no nego que seja honesto, tem um bom emprego, possui a casa em que mora, mas honestidade e estima no bastam, e as outras qualidades perdem muito de valor com as ms companhias em que ele anda. Pdua tem uma tendncia para gente reles. Em lhe cheirando a homem chulo com ele. No digo isto por dio, nem porque ele fale mal de mim e se ria, como se riu, h dias, dos meus sapatos acalcanhados... Perdo, interrompi suspendendo o passo, nunca ouvi que falasse mal do senhor; pelo contrrio, um dia, no h muito tempo, disse ele a um sujeito, em minha presena, que o senhor era "um homem de capacidade e sabia falar como um deputado nas cmaras." Jos Dias sorriu deliciosamente, mas fez um esforo grande e fechou outra vez o rosto; depois replicou: No lhe agradeo nada. Outros, de melhor sangue, me tm feito o favor de juzos altos. E nada disso impede que ele seja o que lhe digo. Tnhamos outra vez andado, subimos ao terrao, e olhamos para o mar. Vejo que o senhor no quer seno o meu benefcio, disse eu depois de alguns instantes. Pois que outra coisa, Bentinho? Neste caso, peo-lhe um favor. Um favor? Mande, ordene, que ? Mame...

  • Durante algum tempo no pude dizer o resto, que era pouco, e vinha de cor. Jos Dias tornou a perguntar o que era, sacudia-me com brandura, levantava-me o queixo e espetava os olhos em mim, ansioso tambm, como a prima Justina na vspera. Mame qu? Que que tem mame? Mame quer que eu seja padre, mas eu no posso ser padre, disse finalmente. Jos Dias endireitou-se pasmado. No posso, continuei eu, no menos pasmado que ele, no tenho jeito, no gosto da vida de padre. Estou por tudo o que ela quiser; mame sabe que eu fao tudo o que ela manda; estou pronto a ser o que for do seu agrado, at cocheiro de nibus. Padre, no; no posso ser padre. A carreira bonita, mas no para mim. Todo esse discurso no me saiu assim, de vez, enfiado naturalmente, peremptrio, como pode parecer do texto, mas aos pedaos, mastigado, em voz um pouco surda e tmida. No obstante, Jos Dias ouvira-o espantado. No contava certamente com a resistncia, por mais acanhada que fosse; mas o que ainda mais o assombrou foi esta concluso: Conto com o senhor para salvar-me. Os olhos do agregado escancararam-se, as sobrancelhas arquearam-se, e o prazer que eu contava dar-lhe com a escolha da proteo no se mostrou em nenhum dos msculos. Toda a cara dele era pouca para a estupefao. Realmente, a matria do discurso revelara em mim uma alma nova; eu prprio no me conhecia. Mas a palavra final que trouxe um vigor nico. Jos Dias ficou aturdido. Quando os olhos tornaram s dimenses ordinrias: Mas que posso eu fazer? perguntou. Pode muito. O senhor sabe que, em nossa casa, todos o apreciam. Mame pede muita vez os seus conselhos, no ? Tio Cosme diz que o senhor pessoa de talento... So bondades, retorquiu lisonjeado. So favores de pessoas dignas, que merecem tudo... A est! nunca ningum me h de ouvir dizer nada de pessoas tais; por qu? porque so ilustres e virtuosas. Sua me uma santa, seu tio um cavalheiro perfeitssimo. Tenho conhecido famlias distintas; nenhuma poder vencer a sua em nobreza de sentimentos. O talento que seu tio acha em mim confesso que o tenho, mas s um, o talento de saber o que bom e digno de admirao e de apreo. H de ter tambm o de proteger os amigos, como eu. Em que lhe posso valer, anjo do cu? No hei de dissuadir sua me de um projeto que , alm de promessa, a ambio e o sonho de longos anos. Quando pudesse, tarde. Ainda ontem fez-me o favor de dizer: "Jos Dias, preciso meter Bentinho no seminrio". Timidez no to ruim moeda, como parece. Se eu fosse destemido, provvel que, com a indignao que experimentei, rompesse a chamar-lhe mentiroso, mas ento seria preciso confessar-lhe que estivera escuta, atrs da porta, e uma ao valia outra. Contentei-me de responder que no era tarde. No tarde, ainda tempo, se o senhor quiser.

  • Se eu quiser? Mas que outra coisa quero eu, seno servi-lo. Que desejo, seno que seja feliz, como merece? Pois ainda tempo. Olhe, no por vadiao. Estou pronto para tudo; se ela quiser que eu estude leis, vou para So Paulo...

    CAPTULO XXVI AS LEIS SO BELAS

    Pela cara de Jos Dias passou algo parecido com o reflexo de uma idia, uma idia que o alegrou extraordinariamente. Calou-se alguns instantes; eu tinha os olhos nele, ele voltara os seus para o lado da barra. Como insistisse: tarde, disse ele; mas, para lhe provar que no h falta de vontade, irei falar a sua me. No prometo vencer, mas lutar; trabalharei com alma. Deveras, no quer ser padre? As leis so belas, meu querido... Pode ir a So Paulo, a Pernambuco, ou ainda mais longe. H boas universidades por esse mundo fora. V para as leis, se tal a sua vocao. Vou falar a Dona Glria, mas no conte s comigo; fale tambm a seu tio. Hei de falar. Pegue-se tambm com Deus, com Deus e a Virgem Santssima, concluiu apontando para o cu. O cu estava meio enfarruscado. No ar, perto da praia, grandes pssaros negros faziam giros, avanando ou pairando, e desciam a roar os ps na gua, e tornavam a erguer-se para descer novamente. Mas nem as sombras do cu, nem as danas fantsticas dos pssaros me desviavam o esprito do meu interlocutor. Depois de lhe responder que sim, emendei-me: Deus far o que o senhor quiser. No blasfeme. Deus dono de tudo; ele , s por si, a Terra e o Cu, o passado, o presente e o futuro. Pea-lhe a sua felicidade, que eu no fao outra coisa... Uma vez que voc no pode ser padre, e prefere as leis... As leis so belas, sem desfazer na teologia, que melhor que tudo, como a vida eclesistica a mais santa. Por que no h de ir estudar leis fora daqui? Melhor ir logo para alguma universidade, e ao mesmo tempo que estuda, viaja. Podemos ir juntos; veremos as terras estrangeiras, ouviremos ingls, francs, italiano, espanhol, russo e at sueco. Dona Glria provavelmente no poder acompanh-lo; ainda que possa e v, no querer guiar os negcios, papis, matrculas, e cuidar de hospedarias, e andar com voc de um lado para outro... Oh! as leis so belssimas! Est dito, pede a mame que me no meta no seminrio? Pedir, peo, mas pedir no alcanar. Anjo do meu corao, se vontade de servir poder de mandar, estamos aqui, estamos a bordo. Ah! voc no imagina o que a Europa; oh! a Europa... Levantou a perna e fez uma pirueta. Uma das suas ambies era tornar Europa, falava dela muitas vezes, sem acabar de tentar minha me nem tio Cosme, por mais que louvasse os ares e as belezas... No contava com esta possibilidade de ir comigo, e l ficar durante a eternidade dos meus estudos. Estamos a bordo, Bentinho, estamos a bordo!

  • CAPTULO XXVII AO PORTO

    No porto do Passeio, um mendigo estendeu-nos a mo. Jos Dias passou adiante, mas eu pensei em Capitu e no seminrio, tirei dois vintns do bolso e dei-os ao mendigo. Este beijou a moeda; eu pedi-lhe que rogasse a Deus por mim, a fim de que eu pudesse satisfazer todos os meus desejos. Sim, meu devoto! Chamo-me Bento, acrescentei para esclarec-lo.

    CAPTULO XXVIII NA RUA

    Jos Dias ia to contente que trocou o homem dos momentos graves, como era na rua, pelo homem dobradio e inquieto. Mexia-se todo, falava de tudo, fazia-me parar a cada passo diante de um mostrador ou de um cartaz de teatro. Contava-me o enredo de algumas peas, recitava monlogos em verso. Fez os recados todos, pagou contas, recebeu aluguis de casa; para si comprou um vigsimo de loteria. Afinal, o homem teso rendeu o flexvel, e passou a falar pausado, com superlativos. No vi que a mudana era natural; temi que houvesse mudado a resoluo assentada, e entrei a trat-lo com palavras e gestos carinhosos, at entrarmos no nibus.

    CAPTULO XXIX O IMPERADOR

    Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de Medicina. O nibus em que amos parou, como todos os veculos; os passageiros desceram rua e tiraram o chapu, at que o coche imperial passasse. Quando tornei ao meu lugar, trazia uma idia fantstica, a idia de ir ter com o Imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a interveno. No confiaria esta idia a Capitu. "Sua Majestade pedindo, mame cede", pensei comigo. Vi ento o Imperador escutando-me, refletindo e acabando por dizer que sim, que iria falar a minha me; eu beijava-lhe a mo, com lgrimas. E logo me achei em casa, esperar, at que ouvi os batedores e o piquete de cavalaria; o Imperador! o Imperador! toda a gente chegava s janelas para v-lo passar, mas no passava, o coche parava nossa porta, o Imperador apeava-se e entrava. Grande alvoroo na vizinhana: "O Imperador entrou em casa de D. Glria! Que ser? Que no ser?" A nossa famlia saa a receb-lo; minha me era a primeira que lhe beijava a mo. Ento o Imperador, todo risonho, sem entrar na sala ou entrando, no me lembra bem, os sonhos so muita vez confusos, pedia a minha me que me no fizesse padre, e ela, lisonjeada e obediente, prometia que no. A Medicina, por que lhe no manda ensinar Medicina? Uma vez que do agrado de Vossa Majestade... Mande ensinar-lhe Medicina; uma bonita carreira, e ns temos aqui bons professores. Nunca foi nossa Escola? uma bela Escola. J temos mdicos de primeira ordem, que podem ombrear com os melhores de outras terras. A

  • Medicina uma grande cincia; basta s isto de dar a sade aos outros, conhecer as molstias, combat-las, venc-1as... A senhora mesma h de ter visto milagres. Seu marido morreu, mas a doena era fatal, e ele no tinha cuidado em si... uma bonita carreira; mande-o para a nossa Escola. Faa isso por mim, sim? Voc quer, Bentinho? Mame querendo... Quero, meu filho. Sua Majestade manda. Ento o Imperador dava outra vez a mo a beijar, e saa, acompanhado de todos ns, a rua cheia de gente, as janelas atopetadas, um silncio de assombro; o Imperador entrava no coche, inclinava-se e fazia um gesto de adeus, dizendo ainda: "A Medicina, a nossa Escola." E o coche partia entre invejas e agradecimentos. Tudo isso vi e ouvi. No, a imaginao de Ariosto no mais frtil que a das crianas e dos namorados, nem a viso do impossvel precisa mais que de um recanto de nibus. Consolei-me por instantes, digamos minutos, at destruir-se o plano e voltar-me para as caras sem sonhos dos meus companheiros.

    CAPTULO XXX O SANTSSIMO

    Ters entendido que aquela lembrana do Imperador acerca da Medicina no era mais que a sugesto da minha pouca vontade de sair do Rio de Janeiro. Os sonhos do acordado so como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas inclinaes e das nossas recordaes. V que fosse para So Paulo, mas a Europa... Era muito longe, muito mar e muito tempo. Viva a Medicina! Iria contar estas esperanas a Capitu. Parece que vai sair o Santssimo, disse algum no nibus. Ouo um sino; , creio que em Santo Antnio dos Pobres. Pare, Sr. recebedor! O recebedor das passagens puxou a correia que ia ter ao brao do cocheiro, o nibus parou, e o homem desceu. Jos Dias deu duas voltas rpidas cabea, pegou-me no brao e fez-me descer consigo. Iramos tambm acompanhar o Santssimo. Efetivamente, o sino chamava os fiis quele servio da ltima hora. J havia algumas pessoas na sacristia. Era a primeira vez que me achava em momento to grave; obedeci, a princpio constrangido, mas logo depois satisfeito, menos pela caridade do servio que por me dar um ofcio de homem. Quando o sacristo comeou a distribuir as opas, entrou um sujeito esbaforido; era o meu vizinho Pdua, que tambm ia acompanhar o Santssimo. Deu conosco, veio cumprimentar-nos. Jos Dias fez um gesto de aborrecido, e apenas lhe respondeu com uma palavra seca, olhando para o padre, que lavava as mos. Depois, como Pdua falasse ao sacristo, baixinho, aproximou-se deles; eu fiz a mesma coisa. Pdua solicitava ao sacristo uma das varas do plio. Jos Dias pediu uma para si. H s uma disponvel, disse o sacristo. Pois essa, disse Jos Dias. Mas eu tinha pedido primeiro, aventurou Pdua. Pediu primeiro, mas entrou tarde, retorquiu Jos Dias; eu j c estava. Leve uma tocha. Pdua, apesar do medo que tinha ao outro, teimava em querer a vara, tudo isto

  • em voz baixa e surda. O sacristo achou meio de conciliar a rivalidade, tomando a si obter de um dos outros seguradores do plio que cedesse a vara ao Pdua, conhecido na parquia, como Jos Dias. Assim fez; mas Jos Dias transtornou ainda esta combinao. No, uma vez que tnhamos outra vara disponvel, pedia-a para mim, "jovem seminarista", a quem esta distino cabia mais diretamente. Pdua ficou plido, como as tochas. Era pr prova o corao de um pai. O sacristo, que me conhecia de me ver ali com minha me, aos domingos, perguntou de curioso se eu era deveras seminarista. Ainda no, mais vai s-lo, respondeu Jos Dias, piscando o olho esquerdo para mim, que, apesar do aviso, fiquei zangado. Bem, cedo ao nosso Bentinho, suspirou o pai de Capitu. Pela minha parte, quis ceder-lhe a vara; lembrou-me que ele costumava acompanhar o Santssimo Sacramento aos moribundos, levando uma tocha, mas que a ltima vez conseguira uma vara do plio. A distino especial do plio vinha de cobrir o vigrio e o sacramento; para tocha qualquer pessoa servia. Foi ele mesmo que me contou e explicou isto, cheio de uma glria pia e risonha. Assim fica entendido o alvoroo com que entrara na igreja; era a segunda vez do plio, tanto que cuidou logo de ir pedi-lo. E nada! E tornava tocha comum, outra vez a interinidade interrompida; o administrador regressava ao antigo cargo... Quis ceder-lhe a vara; o agregado tolheu-me esse ato de generosidade, e pediu ao sacristo que nos pusesse, a ele e a mim, com as duas varas da frente, rompendo a marcha do plio. Opas enfiadas, tochas distribudas e acesas, padre e cibrio prontos, o sacristo de hissope e campainha nas mos, saiu o prstito rua. Quando me vi com uma das varas, passando pelos fiis, que se ajoelhavam, fiquei comovido. Pdua roa a tocha amargamente. uma metfora, no acho outra forma mais viva de dizer a dor e a humilhao do meu vizinho. De resto, no pude mir-lo por muito tempo, nem ao agregado, que, paralelamente a mim, erguia a cabea com o ar de ser ele prprio o Deus dos exrcitos. Com pouco, senti-me me cansado; os braos caam-me, felizmente a casa era perto, na Rua do Senado. A enferma era uma senhora viva, tsica, tinha uma filha de quinze ou dezesseis anos, que estava chorando porta do quarto. A moa no era formosa, talvez nem tivesse graa; os cabelos caam despenteados, e as lgrimas faziam-lhe encarquilhar os olhos. No obstante, o total falava e cativava o corao. O vigrio confessou a doente, deu-lhe a comunho e os santos leos. O pranto da moa redobrou tanto que senti os meus olhos molhados e fugi. Vim para perto de uma janela. Pobre criatura! A dor era comunicativa em si mesma; complicada da lembrana de minha me, doeu-me mais, e, quando enfim pensei em Capitu, senti um mpeto de soluar tambm, enfiei pelo corredor, e ouvi algum dizer-me: No chore assim! A imagem de Capitu ia comigo, e a minha imaginao, assim como lhe atribura lgrimas, h pouco, assim lhe encheu a boca de riso agora; vi-a escrever no muro, falar-me, andar volta, com os braos no ar; ouvi distintamente o meu nome, de uma doura que me embriagou, e a voz era dela. As tochas acesas, to lgubres na ocasio, tinham-me ares de um lustre nupcial... Que era lustre nupcial? No sei; era alguma coisa contrria morte, e no vejo outra mais que bodas. Esta nova sensao me dominou tanto que Jos Dias veio a mim, e me disse ao ouvido, em voz baixa: No ria assim! Fiquei srio depressa. Era o momento da sada. Peguei da minha vara; e, como j conhecia a distncia, e agora voltvamos para a igreja, o que fazia a distncia

  • menor, o peso da vara era muito pequeno. Demais, o sol c fora, a animao da rua, os rapazes da minha idade que me fitavam cheios de inveja, as devotas que chegavam s janelas ou entravam nos corredores e se ajoelhavam nossa passagem, tudo me enchia a alma de lepidez nova. Pdua, ao contrrio, ia mais humilhado. Apesar de substitudo por mim, no acabava de se consolar da tocha, da miservel tocha. E contudo havia outros que tambm traziam tocha, e apenas mostravam a compostura do ato; no iam garridos, mas tambm no iam tristes. Via-se que caminhavam com honra.

    CAPTULO XXXI AS CURIOSIDADES DE CAPITU

    Capitu preferia tudo ao seminrio. Em vez de ficar abatida com a ameaa da larga separao, se vingasse a idia da Europa, mostrou-se satisfeita. E quando eu lhe contei o meu sonho imperial: No, Bentinho, deixemos o Imperador sossegado, replicou; fiquemos por ora com a promessa de Jos Dias. Quando que ele disse que falaria a sua me? No marcou dia; prometeu que ia ver, que falaria logo que pudesse, e que me pegasse com Deus. Capitu quis que lhe repetisse as respostas todas do agregado, as alteraes do gesto e at a pirueta, que apenas lhe contara. Pedia o som das palavras. Era minuciosa e atenta; a narrao e o dilogo, tudo parecia remoer consigo. Tambm se pode dizer que conferia, rotulava e pregava na memria a minha exposio. Esta imagem porventura melhor que a outra, mas a tima delas nenhuma. Capitu era Capitu, isto , uma criatura muito particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o no disse, a fica. Se disse, fica tambm. H conceitos que se devem incutir na alma do leitor, fora de repetio. Era tambm mais curiosa. As curiosidades de Capitu do para um captulo. Eram de vria espcie, explicveis e inexplicveis, assim teis como inteis, umas graves, outras frvolas; gostava de saber tudo. No colgio onde, desde os sete anos, aprendera a ler, escrever e contar, francs, doutrina e obras de agulha, no aprendeu, por exemplo, a fazer renda; por isso mesmo, quis que prima Justina lhe ensinasse. Se no estudou latim com o Padre Cabral foi porque o padre, depois de lhe propor gracejando, acabou dizendo que latim no era lngua de meninas. Capitu confessou-me um dia que esta razo acendeu nela o desejo de o saber. Em compensao, quis aprender ingls com um velho professor amigo do pai e parceiro deste ao solo, mas no foi adiante. Tio Cosme ensinou-lhe gamo. Anda apanhar um capotinho, Capitu, dizia-lhe ele. Capitu obedecia e jogava com facilidade, com ateno, no sei se diga com amor. Um dia fui ach-la desenhando a lpis um retrato; dava os ltimos rasgos, e pediu-me que esperasse para ver se estava parecido. Era o de meu pai, copiado da tela que minha me tinha na sala e que ainda agora est comigo. Perfeio no era; ao contrrio, os olhos saram esbugalhados, e os cabelos eram pequenos crculos uns sobre outros. Mas, no tendo ela rudimento algum de arte, e havendo feito aquilo de memria em poucos minutos, achei que era obra de muito merecimento; descontai-me a idade e a simpatia. Ainda assim, estou que aprenderia facilmente pintura, como aprendeu msica mais tarde. J ento namorava o piano da nossa casa, velho traste intil, apenas de estimao. Lia os nossos romances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo saber das runas, das pessoas, das campanhas, o nome, a histria, o lugar. Jos Dias dava-lhe essas notcias com certo orgulho de erudito. A erudio deste no avultava

  • muito mais que a sua homeopatia de Cantagalo. Um dia, Capitu quis saber o que eram as figuras da sala de visitas. O agregado disse-lho sumariamente, demorando-se um pouco mais em Csar, com exclamaes e latins: Csar! Jlio Csar! Grande homem! Tu quoque, Brute? Capitu no achava bonito o perfil de Csar, mas as aes citadas por Jos Dias davam-lhe gestos de admirao. Ficou muito tempo com a cara virada para ele. Um homem que podia tudo! que fazia tudo! Um homem que dava a uma senhora uma prola do valor de seis milhes de sestrcios! E quanto valia cada sestrcio? Jos Dias, no tendo presente o valor do sestrcio, respondeu entusiasmado: o maior homem da histria! A prola de Csar acendia os olhos de Capitu. Foi nessa ocasio que ela perguntou a minha me por que que j no usava as jias do retrato; referia-se ao que estava na sala, com o de meu pai; tinha um grande colar, um diadema e brincos. So jias vivas, como eu, Capitu. Quando que botou estas? Foi pelas festas da Coroao. Oh! conte-me as festas da Coroao! Sabia j o que os pais lhe haviam dito, mas naturalmente tinha para si que eles pouco mais conheceriam do que o que se passou nas ruas. Queria a notcia das tribunas da Capela Imperial e dos sales dos bailes. Nascera muito depois daquelas festas clebres. Ouvindo falar vrias vezes da Maioridade, teimou um dia em saber o que fora este acontecimento; disseram-lho, e achou que o Imperador fizera muito bem em querer subir ao trono aos quinze anos. Tudo era matria s curiosidades de Capitu, moblias antigas, alfaias velhas, costumes, notcias de Itagua, a infncia e a mocidade de minha me, um dito daqui, uma lembrana dali, um adgio dacol...

    CAPTULO XXXII OLHOS DE RESSACA

    Tudo era matria s curiosidades de Capitu. Caso houve, porm, no qual no sei se aprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as coisas, como eu. o que contarei no outro captulo. Neste direi somente que, passados alguns dias do ajuste com o agregado, fui ver a minha amiga; eram dez horas da manh. D. Fortunata, que estava no quintal, nem esperou que eu lhe perguntasse pela filha. Est na sala, penteando o cabelo, disse-me; v devagarzinho para lhe pregar um susto. Fui devagar, mas ou o p ou o espelho traiu-me. Este pode ser que no fosse; era um espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano,