trutas e quebradas: territorialidade e identidade nas canções dos racionais mc's
TRANSCRIPT
TRUTAS E QUEBRADAS: TERRITORIALIDADE E IDENTIDADE NAS CANÇÕES DOS RACIONAIS MC’S
Marília Gessa1 (Unicamp) [email protected]
Proex – Capes GT1 – Cultura, Identidade e Diferenças
Resumo:
As diferentes práticas do hip hop introduziram novas formas de expressão que são contextualmente ligadas a condições de vida na cidade de São Paulo, formada por uma amálgama de bairros com normas sociais particulares e nuances culturais. Este trabalho dedica-se a analisar como, através de práticas sociais e de linguagem, o discurso do rap também marca territórios e redefine parâmetros valorativos. Os territórios não são trazidos às letras somente por meio de sua nomeação, mas também pela evocação de práticas culturais correntes dentro de seus perímetros e é por isso que, mais do que uma realidade geográfica, entendemos aqui o território como uma construção simbólica.
As referências a espaços físicos, como favelas e bairros da cidade de São Paulo aparecem
recorrentemente na lírica do rap do Racionais, delineando uma vasta gama de práticas sociais,
ficcionais ou reais. A música rap faz não só das favelas, mas da cidade e seus múltiplos espaços, a
base de sua produção cultural.
Nas músicas e nas letras, a cidade é uma presença audível explicitamente citada e digitalmente
sampleada2: as texturas do ambiente urbano são reproduzidas sob o ponto de vista daqueles que
vivem dentro do mundo representado. Esta ênfase à territorialidade envolve mais do que apenas um
regionalismo de práticas culturais, ela traz à tona uma relação particular com alguns espaços
específicos que possuem suas regras, códigos, linguagens corporais e falas também específicos.
As diferentes práticas do hip hop introduziram novas formas de expressão que são
contextualmente ligadas a condições de vida em uma cidade formada por uma amálgama de bairros
com normas sociais particulares e nuances culturais. O grafite, por exemplo, inscreve e enuncia uma
presença individual e coletiva em determinado espaço (de fato, em sua origem, os grafites eram
marcas de gangues, avisos aos iniciados de que aquela área tinha “dono”). Tais práticas criam os
laços sobre os quais as afiliações são forjadas em geografias sociais específicas.
1 Marília Gessa é Mestranda em Linguística na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Realiza, há 7 anos, pesquisas a respeito do rap em São Paulo e, há 4 anos, uma etnografia sobre o grupo Racionais MC’s. Em 2011, tornou-se fellow da Brown University para aprofundar seu trabalho com o grupo. 2 A base rítmica e melódica de um rap deriva da seleção e combinação de partes de outras músicas e sons diversos. Essa combinação é executada por um DJ e esses “pedaços de música” são chamados de samples que podem provir de materiais musicais (pedaços de músicas) e não-musicais (sons de sirene, campainha, latidos de cachorro, conversas etc.).
A própria linguagem cifrada dos hip hoppers, repleta de gírias e muitas vezes em desacordo
com a norma padrão do português, configura-se não só como um dos dialetos possíveis da língua,
como apontado pela canção “Negro drama”3, mas também como uma ação afirmativa da cultura dos
territórios excluídos dos mapas do “lado bom” das cidades. As gírias, em especial, revestem-se de
outras possibilidades, já que são parte de uma formação discursivo-poética que define categorias
dificilmente decodificadas por aqueles que não fazem parte das comunidades de favelas.
“Como nova forma do dizer ou do dizer-se, o discurso do rap também marca territórios e
redefine parâmetros valorativos” (Nascimento, 2006: 7). Os territórios não são trazidos ao texto
somente por meio de sua nomeação, mas também pela evocação de práticas culturais correntes
dentro de seus perímetros e é por isso que, mais do que uma realidade geográfica, entendo aqui o
território como uma construção simbólica. Esta posição implica uma abordagem semelhante à que
Pierre Bourdieu (1989) adotou para a formalização do conceito de ‘região’: certamente que ela é um
domínio, uma zona, uma área, porém, também é o produto das condições que lhe possibilitaram ser o
que é.
Se antes, o conceito de território esteve muito vinculado ao controle do "poder estatal" e à
constituição do espaço do Estado-Nação,4 uma leitura atenta de Bourdieu permite designar o
território como uma rede de relações sociais que define, ao mesmo tempo, um limite, uma alteridade:
a diferença entre nós (o grupo, os membros da coletividade ou 'comunidade', os insiders) e os outros
(os de fora, os estranhos, os outsiders). Desse modo, pode-se considerar, a exemplo de Raffestin
(apud Silva, 2000), a territorialidade como constituída de relações mediatizadas, simétricas ou
dissimétricas com a exterioridade, incluindo elementos de identidade, exclusividade e,
importantemente, de limite que, mesmo não sendo traçado, exprime a relação que um grupo mantém
com uma porção do espaço.
A idéia de que a música permite um automapeamento frente a um território simbólico leva
alguns autores a adotarem o conceito de contemporary soundscapes (Schafer, 1991): zonas
compostas por essa multiplicidade de comunidades que permitem definir as fronteiras entre ‘os
outros’ e ’os iguais a mim’. Os espaços que a música permite criar implicam noções de diferenças
sociais, por um lado, e organizam-se segundo hierarquias de ordem moral e política que estabelecem
valores e normas, por outro (Stokes, 1997). A cidade, portanto, pode ser vista como um mosaico de
territórios estabelecidos de maneira simultânea e sobreposta, como uma teia de relações entre os
grupos e indivíduos.
Os grupos que fazem parte de uma territorialidade (entre eles, roqueiros, funkeiros, rappers)
resistem, estabelecem pactos e influenciam a formação de outros territórios. Assim, por mais que os 3 “No meio de vocês ele é o mais esperto / Ginga e fala gíria, gíria não, dialeto” 4 É claro que esta visão de território é também uma criação cultural, mas estabeleceu uma certa rigidez de suas fronteiras e uma fixidez temporal do controle do espaço físico (Bourdieu, 1989; Silverstein, 1998; Philips, 1998) .
valores de nossa sociedade pareçam homogêneos e a paisagem urbana repetitiva, pode-se desvendar
quais são as representações dos grupos, como se situam no mundo, como classificam a sociedade e
se estabelecem relações e se apropriam de determinados espaços da cidade.
Neste sentido, buscarei, nesta seção, compreender como os rappers dos Racionais Mc’s
ordenam e sistematizam o seu mundo, quais são os princípios que organizam seu universo simbólico
e o tipo de poder que influencia suas ações e que marcam suas opções e comportamentos em relação
ao espaço e a constituição dos territórios urbanos. Estas análises mostram-se pertinentes ao
entendimento dos modos pelos quais muitos jovens negros urbanos imaginam a si mesmos e seus
ambientes e relacionam-se com eles e serão importantes no desenvolvimento desta dissertação para a
compreensão do meu papel nas comunidades e eventos visitados durante a pesquisa.
Territorialidade nas letras do Racionais MC’s
“Você está nas ruas de São Paulo onde vagabundo guarda o sentimento na sola do pé”: assim
inicia o disco Nada como um dia após o outro (2002) do grupo Racionais MC’s, informando o
ouvinte sobre o território geográfico que será por ele visitado no momento da audição do disco, bem
como informando a origem e localização geográfica do grupo.
O dado acima ilustra a importância das ruas, não apenas como palco para a expressão da
cultura hip hop, mas também como influência fundamental aos rappers paulistanos fornecendo a eles
a matéria prima para suas criações (Silva, 1998; Forman, 2000).
Similarmente a outros países, o rap brasileiro nasce com uma forte influência urbana e
encontra nos cenários da cidade “o contexto para o desenvolvimento criativo entre os primeiros
inovadores do hip hop” (Rose, 1994:34). Forman (2000) acrescenta a essa idéia que os membros da
cultura hip hop sujeitam a cidade a práticas de reconstrução dos seus espaços que são, portanto,
reimaginados e até remapeados.
Pela nomeação dos vários bairros que compõem a cidade de São Paulo em músicas diversas5,
podemos criar uma cartografia do alcance do rap na cidade. Os lugares de onde o hip hop emerge e
para onde ele converge compõem o que muitos membros dessa cultura nomeiam Nação Hip Hop
que, como define Forman (2000), é um território móvel definido pelas relações sociais existentes
entre os seus membros.
A importância das relações sociais na definição de um território ocupado pelo cenário hip hop
pode ser identificada abaixo no trecho recortado da música “Trutas e quebradas”, durante a qual, em
5 A referência explícita a bairros e favelas não é ação exclusiva do grupo Racionais MC’s. Grupos de rap de toda a cidade explicitamente anunciam os bairros e favelas de onde provêm em suas letras (“No Brooklin to sempre ali vou prosseguir” – Sabotage); nomes de grupos (RZO – Rapazeada da Zona Oeste -, Rosana Bronx); grifes que vestem (Fundão, 1 da Sul).
um dos trechos, Ice Blue enumera entre pessoas, grupos de rap e bairros de São Paulo aqueles que
“fortalecem” o hip hop.
“Não sei de nada, no salve eu amo quem me ama, desprezo o Zé-povinho e amo minha
quebrada. Obrigado Deus por eu poder caminhar de cabeça erguida. Aí Jaçanã ((assovio)),
Serra pelada, Jardim Ebron de fé. Firmeza, Valcinho? E aí 9 de julho? É nóis! Wellinton,
Pulguento, tá valendo. Calibre do Gueto, Raciocínio das Ruas, Relatos da Invasão. A
caminhada certa. Serrano, resistente, firmão. Ei, Valdiza, sem palavras hein? Jairão, tá no
coração irmãozão. Garotos de periferia sacode a rede que vocês são o amanhã certo? Vila
Mazzei, forte abraço Jó, Marcelo Boy, Jardim Tremembé te espera. Cachoeira... Ei Dédo,
muita fé hein! Voz Ativa, Pasto, Nova Galvão, Resgate Negro, Jova, última chance. Vila
Zilda, Piquiri, Richard, Nino, Madá, daquele jeito.... Pontales, Lackers, Zé Hamilton, Luiz
Barba, Vila Sapo, valeu. Claudinei, Sidnei, Mário, Jardim Peri, Franco da Rocha, Anderson
de Itu, Jackson - o esqueleto de Porto Alegre, muita treta. Cristiano santista, bairro do Limão,
Dona Dora e Seu Eurides - cuidando da molecada – Itaquera, Cidade Tiradentes, São Miguel,
São Mateus, Mauá, Santo André. E aí, Edson? Canão, Zona Sul - e aí Zona Sul? Zona Oeste,
firmão. Cumbica, Arujá, Cocaia, Natanael, Movimento de Rua, Miltão, Costa Norte.
Edmilson, Albertão de Guarulhos, Cidão de São Miguel, 509E e todos aqueles que
fortalecem o hip-hop. Aí, firmezão, é nóis.”6
É possível perceber no texto acima que a idéia de pertencimento à cultura hip hop, como
assegura Cutler (2003), passa pela relação do sujeito com a periferia das grandes cidades. A ênfase
dada aos laços que tanto ancoram o rapper e, portanto, seus atos locutórios, aos ambientes em que ele
vive e circula, quanto o afasta e diferencia daqueles espaços habitados pelo “Zé-Povinho”, a quem
ele não ama e por quem ele não é amado. A importância do seu local de origem é enunciada logo no
início do texto em uma declaração de amor: “amo a minha quebrada7”.
As outras diversas “quebradas” que compõem o cenário hip hop em São Paulo são trazidas ao
texto muitas vezes como interlocutoras do discurso (“E aí 9 de julho?”, “Ei, Valdiza, sem palavras
hein!”). É natural que se imagine, portanto, que ao utilizar o nome de um bairro para se referir ao seu
interlocutor, o rapper não deseje, com isso, referenciar o espaço geográfico ocupado pelo bairro, mas
sim àqueles que habitam seus perímetros. Aqueles que fortalecem o hip hop e que têm uma relação
afetiva com Ice Blue, por vezes, aparecem referenciados no texto não pelos seus nomes de batismo
ou apelidos, mas pelos bairros onde habitam, o que gera passagens nas quais nomes de pessoas,
bairros e grupos de rap são citados de forma desordenada: “Cumbica (bairro), Arujá (bairro), Cocaia
6 Racionais MC’s. Trutas e Quebradas. CD. Racionais MC’s. Nada como um dia após o outro. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica. 2002. 7 “Quebrada” é uma gíria que designa “bairro de periferia”.
(apelido), Natanael (nome de batismo), Movimento de Rua (grupo de rap), Miltão (apelido), Costa
Norte (bairro).”
O trecho da música “Trutas e Quebradas” recortado acima demonstra que existem
possibilidades de constituição de territórios fora de uma ordem planejada por quem detém poder
político ou econômico. O território pode ser visto como um conjunto de lugares, onde se
desenvolvem laços afetivos e de identidade cultural de um determinado grupo social e não precisa ser
necessariamente fechado a partir de uma delimitação rígida de fronteiras. Neste sentido, a concepção
de território delimita um ‘mundo’ pessoal ou ‘intersubjetivo’ constituído através das relações sociais
e culturais que o grupo mantém com esta trama de lugares e itinerários que constituem o seu
território (Bourdieu, 1989; Roncayolo, 1986; Silva, 2000).
No entanto, é inegável que a imagem do grupo Racionais MC’s, de uma maneira geral, esteja,
desde o seu início, muito mais atrelada à Zona Sul do que às outras periferias de São Paulo, ainda
que Edi Rock e KL Jay sejam da Zona Norte e que esta informação seja cantada invariavelmente em
suas letras.
Mais do que qualquer outro bairro, o cotidiano violento do Capão Redondo ganhou lugar na
música do grupo Racionais MC’s. “Pânico na Zona Sul”, por exemplo, foi logo uma das primeiras
músicas gravadas pelo grupo, em 1989, e falava sobre os “pés-de-pato”, policiais que formavam
grupos de chacina e atuavam no local. Outras músicas vieram mais tarde, como “Fim de Semana no
Parque”, “Homem na Estrada” e “Fórmula mágica da Paz”, anunciando que “no extremo sul da Zona
Sul tá tudo errado”.
Na capital paulista, o bairro Capão Redondo destaca-se nas análises do Ministério pelos altos
índices de assentamentos precários, de criminalidade, de mortalidade infantil e de mortes violentas
entre jovens. Quase vinte anos antes, a Folha de São Paulo cartografou o bairro como um dos
distritos mais violentos de São Paulo (1989), e como um dos dez distritos com piores condições de
vida e maiores índices de exclusão social, em 1995.
A Zona Norte, ao contrário, nas pesquisas oficiais sobre a ocupação da cidade, aparece como
uma região bem mais próspera com taxas de pobreza decrescentes, pois investimentos, especialmente
em transporte, foram feitos com maior frequência e intensidade mesmo nas áreas consideradas
periféricas desta região (como, por exemplo, a implantação do metrô até o bairro do Tucuruvi), ao
contrário do que ocorreu na Zona Sul.
Ainda havia comunidades economicamente carentes na região norte da cidade, no entanto, era
a região sul de São Paulo que carregava maiores estigmas relacionados a uma vida de pobreza e
miséria. Para poder seguir a ideia do produtor cultural e amigo Milton Salles de falar sobre e para os
invisíveis sociais e para receber a autoridade para falar a essas pessoas foi necessário que o Racionais
atrelasse a sua identidade de grupo ao pior cenário possível dentro da cidade.
“Como a gente sempre fala na letra, que a gente é a voz da favela e faz parte dela. O nosso
dia-a-dia, o nosso cotidiano, é como essas pessoas que tão aí. É violento.”
(Ice Blue para reportagem da MTV, s/d)
Conseguir criar uma ligação profunda, que não se baseasse somente nas letras, mas que
tivesse uma relação direta com o real imediato foi a estratégia seguida pelo grupo para alcançar
identificação entre um público cada vez mais em expansão no Brasil, o da favela. Em termos
numéricos, segundo o Ministério das Cidades (BRASIL, 2008), 14,3% da população brasileira habita
ainda hoje domicílios em favelas e essa proporção não era maior na década de 1990, girava em torno
de 11%. Apenas na cidade de São Paulo, estimava-se, na década de 1990, que 10% da população
estivesse alocada em favelas, hoje estima-se um número em torno de 15%, média maior que a
nacional.
Tate (1996) sugere que todo grupo de rap de sucesso é uma organização fraternal negra, uma
“posse”. Esta, por sua vez, é definida por Forman (2000) como “the fundamental social unit binding
a rap act and its production crew together, creating a collective identity that is rooted in place
within which the creative process unfolds”. Residiria aí a importância de atar a sua produção tanto a
outras pessoas como a territórios que dêem validade àquilo que é cantado, criando uma identidade
coletiva entre locutores e interlocutores.
O caráter identitário na compreensão do território é desenvolvido por Roncayolo (1986), que
considera que a territorialidade tem um sentido essencialmente coletivo, dependendo das relações
internas entre os indivíduos que pertencem a um grupo e das relações entre indivíduos de diferentes
grupos. Essa noção apresentada por Roncayolo foi muito bem condensada no verso de Mano Brown:
“Não adianta querer, tem que ser, tem que pá / O mundo é diferente da ponte pra cá / Não adianta
querer ser, tem que ter pra trocar”. Ao mesmo tempo que o território é dividido fisicamente em dois
pela ponte (referência clara aqui à Ponte João Dias que dá acesso ao bairro Capão Redondo), os dois
territórios demarcados (da ponte pra cá e da ponte pra lá) também definem diferentes tipos de
pessoas, com qualidades intrínsecas diversas.
A música Negro Drama explana de modo mais detalhado a elaboração de identidades daqueles
que os locutores consideram “iguais a mim” e “diferentes de mim”.
Edi Rock:
Negro drama
Entre o sucesso e a lama
Dinheiro, problemas, invejas, luxo, fama
Negro drama
Cabelo crespo e a pele escura
A ferida, a chaga à procura da cura
Negro drama
Tenta ver e não vê nada,
A não ser uma estrela longe meio ofuscada
Sente o drama, o preço, a cobrança
No amor, no ódio, a insana vingança
Negro drama
Eu sei quem trama e quem tá comigo,
O trauma que eu carrego
Pra não ser mais um preto fudido.
O drama da cadeia e favela
Túmulo, sangue, sirene, choros e velas
Passageiro do Brasil, São Paulo, agonia
Que sobrevive em meio às zorras e covardias
Periferias, vielas e cortiços
Você deve tá pensando o que você tem haver com isso
Desde o início por ouro e prata
Olha quem morre, então, veja você quem mata,
Recebe o mérito a farda que pratica o mal,
Me ver pobre, preso ou morto já é cultural.
Histórias, registros, escritos
Não é conto nem fábula, lenda ou mito
Não foi sempre dito que preto não tem vez, então
Olha o castelo irmão. Foi você quem fez cuzão
Eu sou irmão dos meus truta de batalha
Eu era a carne, agora sou a própria navalha
Tim tim, um brinde pra mim,
Sou exemplo, de vitórias, trajetos e glórias.
O dinheiro tira um homem da miséria
Mas não pode arrancar de dentro dele a favela
São poucos que entram em campo pra vencer
A alma guarda o que a mente tenta esquecer.
Olho pra trás, vejo a estrada que eu trilhei
Mó cota
Quem teve lado a lado e quem só fico na bota
Entre as frases, fases e várias etapas
Do quem é quem, dos mano e das mina fraca
Hum, negro drama de estilo
Pra ser e se for, tem que ser, se temer é milho
Entre o gatilho e a tempestade
Sempre a provar que sou homem e não um covarde
Que Deus me guarde, pois eu sei que ele não é neutro
Vigia os rico, mas ama os que vem do gueto
Eu visto preto por dentro e por fora
Guerreiro, Poeta, entre o tempo e a memória
Ora, nessa história, vejo o dólar e vários quilates
Falo pro mano que não morra e também não mate
O tic tac não espera, veja o ponteiro
Essa estrada é venenosa e cheia de morteiro
Pesadelo, hum, é um elogio,
Pra quem vive na guerra, a paz nunca existiu
Num clima quente a minha gente sua frio
Vi um pretinho, o seu caderno era um fuzil
Um fuzil
Negro drama
Mano Brown:
Crime, futebol
Música, caralho
Eu também não consegui fugir disso aí
Eu so mais um
Forrest Gump é mato
Eu prefiro contar uma história real
Vou contar a minha
Daria um filme,
Uma negra e uma criança nos braços,
Solitária na floresta de concreto e aço,
Veja, olha outra vez o rosto na multidão
A multidão é um monstro sem rosto e coração
Em São Paulo, terra de arranha-céu
A garoa rasga a carne, é a torre de babel
Famíla brasileira, dois contra o mundo
Mãe solteira de um promissor vagabundo
Luz, câmera e ação, gravando a cena vai
Um bastardo, mais um filho pardo sem pai
Hei, Senhor de engenho, eu sei bem quem você é
Sozinho cê num guenta, sozinho, cê num guenta a pé
Cê disse que era bom e a favela ouviu
Whisky, e Red Bull, Tênis Nike e Fuzil
Admito, seus carro é bonito, sim
E eu não sei fazer Internet, Videocassete, os carro louco
Atrasado eu to um pouco, sim, to, eu acho
Só que tem que seu jogo é sujo e eu não me encaixo
Eu sou problema de montão de carnaval a carnaval
Eu vim da selva, eu sou leão, sou demais pro seu quintal
Problema com escola eu tenho mil, mil fita
Inacreditável mas seu filho me imita
No meio de vocês ele é o mais esperto
Ginga e fala gíria – gíria não, dialeto
Esse não é mais seu, ó, ((assovio)) subiu
Entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu
Nós é isso, aquilo. Quê? Cê não dizia?
Seu filho quer ser preto. Há, que ironia
Cola o pôster do Tupac aí. Que tal? O que cê diz?
Sente o Negro Drama, vai, tenta ser feliz.
Hei, bacana, quem te fez tão bom assim?
O que cê deu, o que cê faz, o que cê fez por mim?
Eu recebi seu tic, quer dizer kit
De esgoto a céu aberto e parede madeirite
De vergonha eu não morri, to firmão
Eis me aqui. Você não.
Cê não passa quando o Mar Vermelho abrir
Eu sou o Mano “homem duro do gueto” Brown, oba
Aquele louco que não pode errar
Aquele que você odeia, mas nesse instante
Pele parda e osso funk.
E de onde vem os diamante?
Da lama
Valeu mãe, negro drama, drama, drama.
Aí, na época dos barraco de pau lá na pedreira onde cês
tavam?
O que que cês deram por mim? O que que cês fizeram por
mim?
Agora tá de olho no dinheiro que eu ganho,
Agora tá de olho no carro que eu dirijo.
Demorou, eu quero é mais, eu quero até sua alma
Aí, o rap fez eu ser o que sou:
Ice Blue, Edi Rock e KL Jay, e toda a família.
E toda geração que faz o rap, a geração que revolucionou,
a geração que vai revolucionar
Anos 90, século 21. É desse jeito.
Aí, você sai do gueto, mas o gueto nunca sai de você,
morou irmão
Você tá dirigindo um carro
O mundo todo tá de olho em você, morou
Sabe por quê?
Pela sua origem, morou irmão
É desse jeito que você vive. É o negro drama
Eu não li, eu não assisti, Eu vivo o negro drama, eu sou
negro drama, eu sou o fruto do negro drama
Aí dona Ana, sem palavra, a senhora é uma rainha, rainha
Mas aí, se tiver que voltar pra favela, eu vou voltar de
cabeça erguida
Porque assim é que é, renascendo das cinzas
Firme e forte, guerreiro de fé. Vagabundo nato.
Tendo em vista o histórico do rap no Brasil, seu papel social e sua atuação junto ao movimento
negro, o título da canção acima8, bem como o seu primeiro verso, “Negro Drama”, traz no adjetivo
“negro” uma pista ao ouvinte de que a música em questão trará à tona questões ligadas à raça negra.
De fato, este rap, em termos gerais, discorre sobre o “drama” enfrentado pelas pessoas de raça negra
no Brasil e, em especial, em São Paulo. No entanto, a atenção dos autores não é dirigida a todos os
negros paulistanos, mas àqueles destinados a viver em favelas, das quais as únicas saídas apontadas
pelos autores são o crime, a música e o futebol. Raça e territorialidade freqüentemente aparecem
interligadas aqui, evidenciando a complexa elaboração da realidade que deve ser empreendida entre
os interlocutores de uma atividade discursiva e o mundo.
Podemos identificar neste rap uma oposição entre aqueles que partilham do “Negro Drama” e
aqueles que não o fazem. Aquele que sofre o “negro drama” é progressivamente identificado como a 8 Edi Rock e Mano Brown. Negro Drama. CD. Racionais MC’s. Nada como um dia após o outro. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica. 2002.
pessoa de “cabelo crespo e a pele escura” que se esforça “pra não ser mais um preto fudido” nem
viver o “drama da cadeia e favela”. Esses dois referentes, “cadeia” e “favela” ativam no ouvinte dois
grandes frames que o fazem visualizar os motivos pelos quais seria tão dramática a vida nesses locais
no ponto de vista dos autores. Esses frames têm sua elaboração guiada por diversos referentes que
seguem à sua enunciação: “túmulo, sangue, sirene, choros e velas”.
Os espaços físicos trazidos pelo autor (cadeia, favela, periferias, vielas, cortiços) aparecem
caracterizados como locais habitados por negros. A construção desses territórios a partir dos seus
habitantes é fundamental na argumentação de que o negro vive em condições precárias e dramáticas,
pois as suas mazelas seriam fruto da falta de condições nas favelas. Os habitantes desses locais têm
suas histórias de vida descritas como muito similares: são negros e mestiços criados por mães
solteiras. Eles têm dialeto próprio, ouvem Tupac, têm vontades muito parecidas: “whisky, Red Bull,
tênis Nike e fuzil”.
Embora a favela seja definida como um território habitado por negros com poucas perspectivas
de vida, ela não foi construída pelos negros nem escolhida por eles como melhor lugar para se viver,
ela é “presente” de uma elite branca que aparece simbolizada no texto pelas figuras do “senhor de
engenho” e do “bacana”.
Essa canção dá indícios de que não só as pessoas são divididas e alocadas em categorias
diferentes, negros e brancos, mas a cidade de São Paulo é dividida em dois territórios distintos: a
favela habitada pelos negros e a não-favela habitada pelos brancos. A questão do espaço geográfico
redefinido como espaço pertencente a pessoas que são categorizadas, etiquetadas e armazenadas
representativamente a partir do local que ocupam dentro do traçado urbano é uma referência muito
presente nas letras dos Racionais MC’s. A mesma idéia é reproduzida em “Da ponte pra cá”, música
na qual o locutor põe em cheque a possibilidade do playboy conviver com o pessoal da “quebrada”:
“Ô, vem com a minha cara e o dim-dim do seu pai
Mas no rolê com nós cê não vai
Nós aqui vocês lá
Cada um no seu lugar
Entendeu?
Se a vida é assim, tem culpa eu?
Se é o crime ou o creme, se não deves não teme
As perversa se ouriça e os inimigos treme
E a neblina cobre a estrada de Itapecerica
Sai, Deus é mais, vai morrer pa lá zica
Não adianta querer, tem que ser, tem que pá
O mundo é diferente da ponte pra cá
Não adianta querer ser, tem que ter para trocar
O mundo é diferente da ponte pra cá.” 9
Ironicamente, segundo aponta Nascimento (2006), a diferença é dada como marca da
superioridade dos manos em relação aos playboys, instituindo, assim, uma prática utilitarista que visa
se aproveitar dos bens materiais e do dinheiro do “estrangeiro”, mas sem revelar as essenciais formas
de percepção da realidade que possui um Mano autêntico. Na análise do professor, “aí, o branco rico
é refeito num vilãozinho utilizado pelos que historicamente são explorados pelo poder econômico
representado pelas elites financeiras” (p. 18). Assim sendo, a inversão de valores operada funciona
ironicamente como um esboço de afirmação cultural e acatamento de uma redimensionalização do
papel da cultura hip hop no mundo da juventude.
Outro exemplo que traz à tona a percepção dos locutores em relação ao seu ambiente, e o
quanto este se diferencia de outros, pode ser encontrado em “Vida Loka II”.
“Fazer o quê se é assim Vida Loka cabulosa?
O cheiro é de pólvora e eu prefiro rosas
E eu que... e eu que... sempre quis um lugar
Gramado e limpo assim verde como o mar
cercas brancas numa seringueira com balança
Desbicando pipa cercado de criança
How Brown, acorda sangue bom
Aqui é Capão Redondo, tru, não Pokémon
Zona Sul é o invés, é o stress concentrado
Um coração ferido por metro quadrado”10
No exemplo acima, o locutor discorre sobre como seria a vida em outro lugar que não o Capão
Redondo, Zona Sul de São Paulo. A cena descrita vem a partir da constatação da realidade em
contraste com os desejos idealizados por um lugar melhor. O cheiro de pólvora – representação da
guerra constante ocorrida nas favelas – traz o desejo utópico: “Vida loka cabulosa/ O cheiro é de
pólvora/ E eu prefiro rosas”. E depois surge a idealização, a imagem de um paraíso perdido montado
a partir de imagens-clichês típicas de propagandas de TV: “E eu que...e eu que... Sempre quis um
lugar/ Gramado e limpo, assim, verde como o mar/ Cercas brancas, uma seringueira com balança/
Desbicando pipa, cercado de criança”.
Este lugar imaginário gramado e limpo, com árvores com balança onde o enunciador poderia
soltar pipa com as crianças é identificado por seu parceiro na canção pelo termo “Pokémon”, 9 Mano Brown. Da Ponte pra cá. CD. Racionais Mc’s. Nada como um dia após o outro. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica. 2002. 10 Mano Brown. Vida Loka II. CD. Racionais Mc's. Nada como um dia após o outro. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica. 2002.
enfatizando a qualidade fantasiosa do lugar descrito. Essa segunda voz, a do parceiro, traz o primeiro
personagem para a “realidade”, desperta-o, chama-o de volta para o espaço físico do real: o bairro do
Capão Redondo, berço do grupo e um dos pontos de maior violência da Grande São Paulo: “Hei, hei,
Brown, acorda sangue bom/ aqui é Capão Redondo, tru, não Pokémon/ Zona sul é o invés, é o stress
concentrado/ Um coração ferido, por metro quadrado”. Aqui aparece uma comparação de dois
termos excludentes: o desenho animado japonês que se tornou um fenômeno, tornando-se um dos
modismos provindos do mundo televisivo, e o bairro, território do real, onde há grande concentração
de pessoas no mesmo espaço. Os versos trazem o espaço físico para representar o espaço existencial,
concentração de stress, de sofrimento: a rima interna entre as palavras stress e invés e a adversativa
usada como forma substantiva dão a sonoridade desejada.
O que pudemos perceber nas análises empreendidas até então é que, se por um lado a cidade de
São Paulo é recartografada a partir das redes de relações que os locutores das canções estabelecem
com outras pessoas e outros grupos de rap espalhados pelos diversos bairros da cidade, delimitando
assim um território móvel constituído pela comunidade hip hop, por outro lado, a favela e a periferia
aparecem como referência histórica local para a população negra e pobre nas letras dos Racionais
Mc’s. Daí a busca empreendida pelos rappers do grupo por identificação e descoberta de marcas
culturais e, conseqüentemente territoriais, que definam a favela e a periferia como um espaço
produtivo de sentidos próprios, identificador de uma categoria com voz e atitudes reivindicativas: o
negro pobre favelado/periférico.
Fora do grupo, os músicos dos Racionais Mc’s também mantêm a preocupação sobre questões
ligadas à construção de uma identidade própria. Nos diversos trabalhos individuais de Edi Rock, KL
Jay, Ice Blue e Mano Brown é possível delineá-las, o que torna visível que além de comporem uma
marca forte no grupo, elas também são trazidas à tona em outros contextos e são compartilhadas por
outros grupos e autores. Exemplo desse compartilhamento é a canção que observaremos a seguir,
“Eu sô Função”, composta por Mano Brown e Dexter, ex-integrante do grupo 509-E:
Eu sô Função
Di Função: Sou função, Pra quem não tá ligado me apresento E as ruas represento. Dá licença aqui de eu chegar nesse balanço, É quente negrão a idéia que eu te lanço. Estilo original de bombeta branca e vinho. Vai, só não vai pra grupo com neguinho. Ando gingando com os braços pra trás, Só falo na gíria e pros bico é demais. Forgado, afeto os gambé, sou polêmico.
Na favela, meu diploma acadêmico, De tênis all star, de cabelo black, Meu beck, a caixa, o bumbo e o clap. Cresci ali envolvidão com a função. Na sola do pé bate o meu coração. Esse som é do bom, dá uns dois e viaja. Nós somos negros não importa o que haja. O ritmo é nosso, trazidos de lá, Das ruas de terra sem luzes e pá. O facínio não morre, ele só começou Das festa de preto que os boy não colou.
Sou o que sou, vivo aquilo que falo, Meu rap é do gueto e não é pros embalo. Vagabundo, se for pra somar, chega aí. Paguei pra entrar e nunca mais vou sair, Então, venha que venha, dinheiro eu quero, Uma linda mulher e um belo castelo. Eu sou raiz, mas cadê você? A função e o funk jamais vão morrer. Dexter: Muito amor, muito amor pelo som, pela cor. A herança tá no sangue, louvado seja meu Senhor. Que me quis descendente de raiz. Preto, função sou sim, sou feliz. Favelado legítimo, escravo do ritmo, Dos becos e vielas eu sou amigo íntimo. Dexter, o filho da música negra, Exilado sim, preso não com certeza. O rap me ensinou a ser quem eu sou E honrar minha raça pelo preço que for. Dos vida loka da história eu sou um a mais Que te faz ver a paz como soro eficaz. No gueto jaz, o inofensivo morreu, Pela magia do funk, renasceu o plebeu. Aí fudeu, o monstro cresceu, se criou, ô, Agora já era, é lamentável, doutor, A guerra já não é tão mais fria assim. Sou pelos função e a função é por mim, Até o fim, plim, nossa luz contagia, Assim como o sol que clareia o dia E aquece o pivete que dorme na rua, Que passou a madrugada em claro à luz da lua. Se situa que o que te ofereço é muito bom: Força e poder, dom através do som. Nego, vem com nós, mas vem de coração, Por paixão, por amor, não pela emoção, firmão? Pra ser função tem que ser original. Apresentando e tal mais um irmão leal. Mano Brown: Se é vida loka aqui está, então pode saber, Deixa as dama aproximar, jão, opa, tamo aê na arena. Juras de amor ao Criador que nos guia, Antes de nada mais para nós muito bom dia. Salve, só chegar meu irmão lêlê, Por que não um monstro? Viva negro Dexter. De vinte em vinte eu paguei duzentas flexão, Caçando um jeito de burlar a lei e a minha depressão. Menino bom mas, pobre, feio, fraco, infeliz, só, Se sentindo o pior, vários monstro ao meu redor.
Com um tambor de gás fiz mais cinqüenta em jejum. Ódio do mundo eu vi em tudo, filme do Platoon. No café, açúcar, com limão no abacate. Puta, aqui ó, melhor blusa suja de colgate. Se ser preto é assim, ir pra escola pra quê? Se o meu instinto é ruim e eu não consigo aprender? Esfregando calças velhas fiz as listra do tanque. Era um barraco sim, mas meu castelo era funk. Folhas seca num vendaval, um inútil, É morrer aos pouco, eu me senti assim, tio. Eis que um belo dia, alguém mostrou pra mim Uma reunião tribal, James Brown e Al Green, uau Sex Machine. O orgulho brotou, Poder Para o Povo Preto é o que estrala os tambor. Veio as camisas de ciclista, calça Lee, fivelão, Tênis Farol White, uou uou uou, ladrão. A seis mil hora até pra plantar, Os pretos dança todo mundo igual sem errar, Agradecendo aos céus pelas chuvas que cai. Santo Deus me fez funk, obrigado, meu Pai. Nem por isso eu num vou jogar filé mignon pras piranha, O pierrot contra os playboy fuma maconha. Não vejo nada, não vejo fita dominada, Eu vejo os pretos sempre triste nos canto do mundão. Então, morou jão, um dois um dois, drão, Aham aham, alma, mente sã, corpo são. Dexter tem que estar com fé no Senhor, Tem que orar, tem que brigar, tem que lutar, nego. Ah meu bom juiz, abra o seu coração, Cê ouve o que esse rap diz e aceite o perdão. Meu argumento é pobre, mas a missão nobre. Mestrão irá saber reconhecer um homem bão. Deixo aqui, desde já, promessa de voltar, Só querer, é só chamar que eu estarei lá. Eis o doce veneno, vivendo e vivão, Um dia por vez, sem pressa, Fui nessa negão. Sou função.
Esta poesia11 não traz em seu conteúdo uma intriga nuclear nem se apóia em um
conflito central, similarmente às outras letras que vimos neste trabalho. Os
enunciadores ocupam posição central em suas falas, colocam-se diante dos ouvintes e
preocupam-se mais em dar significação ao seu personagem ao invés de priorizar o
relato dos fatos, e assim, constroem uma imagem dotada de especificidades e valores
que eles atribuem a si mesmos e a uma coletividade. Essa construção da imagem do
outro concomitantemente à sua própria pode ser percebida no uso frequente da
primeira pessoa do plural (nós) em alternância com a primeira pessoa do singular
(eu). “Cresci ali envolvidão com a função.
Na sola do pé bate o meu coração.
Esse som é do bom, dá uns dois e viaja.
Nós somos negros não importa o que haja.
O ritmo é nosso, trazidos de lá,
Das ruas de terra sem luzes e pá.”
Tomando a si mesmo como referente do seu discurso, vemos aqui que o sujeito
instaurado não é apenas enunciativo, mas também criativo e social: ele instaura e diz
o mundo. Esta ação é acentuada pelo modo como o discurso é vocalizado: em toda a
primeira estrofe, quem canta é um coro. Múltiplas vozes cantando juntas um excerto
da música produz, neste caso, o efeito de que muitos indivíduos caracterizam-se como
“função” e compartilham o mesmo ponto de vista.
Um “função” é um homem ligado à cultura das ruas, tem postura, vestimenta e
dialeto próprios. Um função tem também origem própria: ele vem da favela (“Na
favela, meu diploma acadêmico”). No processo de auto-referenciação, a descrição de
si mesmo como um homem autêntico (“Estilo original, de bombeta branco e vinho”)
fornece detalhes mais específicos sobre a procedência geográfica do função: ele vem
da Zona Sul de São Paulo.
A “bombeta branco e vinho”12 é um índice de pertencimento às periferias da
Zona Sul. Existe uma infinidade de bonés com várias inscrições diferentes, parte
branco, parte vinho, muito populares entre os adeptos da cultura hip hop nesta região.
11 Dexter e Mano Brown. Eu sô Função. CD. Dexter. Exilado Sim Preso Não. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica. 2005. 12 “Bombeta” é uma gíria que designa “boné”.
Construções de mitos e mitologias, bandeiras, hinos, datas comemorativas, sinais e
emblemas agem, para Bourdieu (1989), na objetivação da realidade de um espaço, ou
ainda, na tentativa de trazer à existência a coisa nomeada. Neste sentido, as cores
branco e vinho são instrumentos que servem à delimitação e comprovação da
existência da Zona Sul como região geográfica e, portanto, categoria de objetivação e
classificação para se tornar legítimo.
À direita, vemos Mano Brown vestido inteiramente com as cores branco e vinho, mostrando que, respeitadas as cores, outras peças de roupa podem ser interpretadas como índices de pertencimento à Zona Sul de São Paulo. No meio e à esquerda, um boné nas cores branco e vinho criado pela Fundão Roupas, grife da Vila Fundão (comunidade do Capão Redondo) que veste Mano Brown. Fonte: Fundão Roupas.
Outras músicas do Mano Brown fazem alusão à “bombeta” branca e vinho:
“De lupa Baush & Lomb, bombeta branca e vinho
Champanhe para o ar que é pra abrir nossos caminho.”13
“- Um por amor, dois pelo Dinheiro
Vida loka Capão, de fé sou guerreiro
- Ih, esses manos aí de bombeta branca e vinho
Agitando as festa e chega no bolinho
- Respeita doidão, aí não fala assim
Bolinho pra você é família pra mim
Veja bem, escute a natu
O espírito, sou loko da Zona Sul”14
Neste último excerto, retirado de “1 por amor, 2 por dinheiro”, a relação entre a
bombeta branca e vinho e os moradores da Zona Sul de São Paulo, em especial do
Capão Redondo, torna-se mais explícita, mas ainda carece de dados contextuais,
13 Mano Brown. Vida Loka II. CD. Racionais Mc's. Nada como um dia após o outro. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica. 2002. 14 Mano Brown & Rosana Bronx. 1 por amor dois por dinheiro. Racionais Mc's. Nada como um dia após o outro. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica. 2002.
fornecidos apenas cinco versos mais tarde, para ser completamente decifrada pelo
ouvinte. Outro aspecto importante de ser notado nesse trecho recortado é a ênfase
dada aos amigos (“Bolinho pra você é família pra mim”), confirmando a nossa
hipótese de que as relações sociais entre os rappers e seus parceiros dão sentido às
identidades de si que são forjadas nas canções e aos territórios em que habitam.
Similarmente em “Eu sô função”, o locutor anuncia: “Sou pelos função e a função é
por mim”.
A raça é outro fator relevante no qual os locutores se apoiam para definir um
função: “Nós somos negros não importa o que haja”. Mas devemos chamar atenção
novamente à territorialização da raça, ou ainda, da racialização do território: “Eu vejo
os preto sempre triste nos canto do mundão”. Periferia e favela, aqui designadas por
“canto do mundão”, são lugares habitado por negros. Analogamente, negras são as
pessoas que habitam as favelas. E no decorrer da argumentação do autor, o rap surge
também como um gênero musical racializado e territorializado.
Nós somos negros não importa o que haja.
O ritmo é nosso, trazidos de lá,
Das ruas de terra sem luzes e pá.
O facínio não morre, ele só começou
Das festa de preto que os boy não colou.
Sou o que sou, vivo aquilo que falo,
Meu rap é do gueto e não é pros embalo.
(...)
Muito amor, muito amor pelo som, pela cor.
A herança tá no sangue, louvado seja meu Senhor.
Que me quis descendente de raiz.
Preto, função sou sim, sou feliz.
Favelado legítimo, escravo do ritmo,
Dos becos e vielas eu sou amigo íntimo.
Dexter, o filho da música negra,
Exilado sim, preso não com certeza.
O rap me ensinou a ser quem eu sou
E honrar minha raça pelo preço que for.
(...)
No gueto jaz, o inofensivo morreu,
Pela magia do funk15, renasceu o plebeu.”
A racialização e territorialização do rap é recurso argumentativo importante no
relato de como este gênero musical promove uma mudança do ponto de vista do
negro sobre si próprio, imbuindo-lhe de orgulho em relação à sua raça e às suas
origens geográfica e social:
“De vinte em vinte eu paguei duzentas flexão,
Caçando um jeito de burlar a lei e a minha depressão.
Menino bom, mas pobre, feio, fraco, infeliz, só,
Se sentindo o pior, vários monstro ao meu redor.
Com um tambor de gás fiz mais cinqüenta em jejum.
Ódio do mundo eu vi em tudo, filme do Platoon.
No café, açúcar, com limão no abacate.
Puta, aqui ó, melhor blusa suja de colgate.
Se ser preto é assim, ir pra escola pra quê?
Se o meu instinto é ruim e eu não consigo aprender?
Esfregando calças velhas fiz as listra do tanque.
Era um barraco sim, mas meu castelo era funk.
Folhas seca num vendaval, um inútil,
É morrer aos pouco, eu me sentia assim, tio.
Eis que um belo dia, alguém mostrou pra mim
Uma reunião tribal, James Brown e Al Green, uau
Sex Machine. O orgulho brotou,
Poder Para o Povo Preto é o que estrala os tambor.
Veio as camisas de ciclista, calça Lee, fivelão,
Tênis Farol White, uou uou uou, ladrão.”
Os versos recortados trazem uma reflexão sobre momentos da vida do
enunciador e suas opiniões sobre si, bem como sobre aqueles que ele reconhece como
iguais. Nos primeiros versos, o locutor nos leva à sua infância quando ele se via como
um “menino bom, mas pobre, feio, fraco, infeliz, só”, que não tinha auto-estima,
passava fome, muitas vezes não tinha roupas limpas e sentia ódio do mundo. “Se ser
15 Por funk, o autor designa o gênero musical do qual deriva o rap, e não o que popularmente conhecemos por funk carioca no Brasil. Faz-se importante citar aqui que a base musical desta música é um funk conhecido como “de raiz”.
preto é assim” é uma expressão referencial que encapsula o conteúdo desses versos,
que lhe antecedem, e ainda promove a progressão textual. Importante notar que, com
essa expressão, o enunciador deixa de falar somente de si e instaura a existência de
outros “pretos” com histórias de vida similares. Por meio dela também, o enunciador
faz a relação entre “pobreza” e “negritude”. Empregando um certo grau de inferência,
o ouvinte interpreta que a pobreza e as dificuldades advindas dela são atributos de
“pretos”. Essa espécie de naturalização da pobreza entre os negros já foi alvo de
crítica em “Negro Drama” na qual se afirma “me ver pobre, preso ou morto já é
cultural” (Nascimento, 2006).
Em “Eu sô função”, o autor, com certa ironia, põe em cheque a relação
necessária não só entre pobreza e negritude, mas também entre desempenho escolar e
raça. Ainda fazendo uso da figura do menino, o locutor se pergunta: “Se ser preto é
assim, ir pra escola pra quê? / Se o meu instinto é ruim e eu não consigo aprender?”.
Mas sinaliza, mais adiante, que a baixa estima e o sentimento de impotência ficaram
para trás: “Folhas seca num vendaval, um inútil. / É morrer aos pouco, eu me sentia
assim, tio.” O rap e a música negra emergem então no discurso como o promovedor
de uma nova consciência de si. O orgulho brota através da música fazendo surgir
ícones da negritude: “Poder Para o Povo Preto é o que estrala os tambor./ Veio as
camisas de ciclista, calça Lee, fivelão, / Tênis Farol White, uou uou uou, ladrão.”.
A intensa caracterização da favela como um ambiente povoado por negros, bem
como as relações empreendidas entre pobreza e negritude, fazem com que, por
inferência, o ouvinte interprete as palavras “negro” e “preto” numa relação de co-
referencialidade com “favelado” e “periférico” e em oposição a “playboy”. O rap
aparece, então, explícita e implicitamente, nesta música, como um gênero musical
duplamente definido: é música do gueto e é música dos negros. Esta dupla definição é
um ponto chave para a valorização do negro periférico que é empreendida nessa
canção: “favelado legítimo, escravo do ritmo, dos becos e vielas eu sou amigo
íntimo”. Forjam-se aqui identidades pessoais e uma cultura própria, delimitando um
território específico: o território hip hop.
O que as análises empreendidas até aqui permitem dizer é que o território hip
hop é mais do que um domínio geográfico, é também o produto das condições que
possibilitaram a formação intersubjetiva e identitária dos seres que o compõe. Se a
favela aparece como uma referência territorial constante nas letras dos Racionais
MC’s, é menos porque ela se constitui como um espaço “ocupado” exclusivamente
pelo rap (uma vez que outros ritmos musicais também emergem das favelas: samba,
forró, funk, samba rock...), e mais porque as condições sociais e as afiliações e os
laços forjados ali permitiram a emergência desse gênero musical que é o rap e,
portanto, da identidade rapper, da identidade hip hop.
A relação que o Racionais MC’s mantém com o Capão Redondo e com a Zona
Sul, bem como com outras comunidades e bairros que são enumeradas com menos
freqüência ao longo de suas letras, deixa clara a demarcação de elementos de
identidade, exclusividade e, também, de limite de que fala Bourdieu (1989) sobre as
questões de territorialidade: somente aqueles que nascem e se criam nas favelas e
periferias tornam-se “Função”, “Negro Drama”, “Vida Loka” e diferenciam-se do Zé-
Povinho que não habita a favela. Apesar de bairros da Zona Sul serem enunciados
com mais freqüência no movimento de afirmação de uma identidade negra e favelada,
fica claro que um “Função” e um “Negro Drama” é também aquele indivíduo
proveniente de uma comunidade carente em qualquer outra região de São Paulo (e
também do Brasil), como pudemos perceber em “Trutas e Quebradas”. E é por isso
que, anteriormente, o território foi definido como um conjunto de lugares, onde se
desenvolvem laços afetivos e de identidade cultural de um determinado grupo social e
não precisa ser necessariamente fechado a partir de uma delimitação rígida de
fronteiras.
Por meio das letras, delineiam-se quais são os espaços geográficos ocupados por
aqueles que produzem e consomem esse gênero (“Trutas e Quebradas”), bem como
definem-se as principais características desses espaços (“Negro Drama”, “Vida Loka
II”, “Da Ponte Pra Cá”). Assim, a cidade de São Paulo, berço do grupo Racionais
MC's, é sujeita a práticas de reconstrução: algumas vezes divida em duas, da ponte
para cá e da ponte para lá, e outras vezes tendo vários de seus bairros enumerados
como parte de uma “Comunidade Hip Hop”, a cidade é remapeada segundo os
interesses do locutor em conduzir o discurso.
A organização dos rappers em territórios os articula em relação a outros
territórios existentes. Independentemente da quantidade de pedaços em que a cidade é
dividida, São Paulo aparece sempre habitada por qualidades opostas de pessoas, o
“zé-povinho” e o “função”, o “negro drama” e o “senhor de engenho”. Cada uma
dessas personagens carrega consigo características de raça (o negro e o não negro) e
de ocupação em espaços distintos da cidade (a periferia e a não-periferia).
Na música dos Racionais MC's, de modo geral, os espaços geográficos são
redefinidos em relação àquelas pessoas que habitam seus perímetros, num processo de
afirmação de identidades individuais e coletivas. É nesse sentido que homens e
mulheres podem se considerar “favelados legítimos” e buscar nos espaços periféricos
de São Paulo marcas culturais que definam o mundo do “função” e do “negro drama”
como um espaço produtivo de sentidos próprios.
Bibliografia:
BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 1989.
BRASIL. Assentamentos Precários no Brasil Urbano. Brasília: Ministério das
Cidades / Secretaria Nacional de Habitação, 2008.
CUTLER, C. Keepin’ it real: White hip hoppers’ discourse on language, race, and
authenticity. In: Journal of Linguistic Anthropology 132. 2003. pp.1–23.
FORMAN, M. Represent: Race, Space and Place in Rap music. In: Popular Music,
vol.19, nº1, [Place Issue]. Jan, 2000. pp.65-90.
NASCIMENTO, J.L. Da ponte pra cá: os territórios minados dos Racionais Mc’s. In:
REEL – Revista Eletrônica de Estudos Literários. Vitória, ano 2, nº2, 2006.
RONCAYOLO, M. Território. In: Enciclopédia Einaldi: região. Porto: Imprensa
nacional- Casa da Moeda, vol.8. 1986.
ROSE, Tricia. Black Noise. Wesleyan University Press – Publish by University
Pressof New England, Hanover. 1994.
SCHAFER, M. O ouvido Pensante. São Paulo: Editora Unesp. 1991.
SILVA, J.M. Cultura E Territorialidades Urbanas - Uma Abordagem Da Pequena
Cidade. In: Revista de História Regional 5, vol. 2. Inverno 2000. pp. 9-37.
STOKES, M. Ethnicity, identity and music: the musical construction of place. New
York: Oxford Press. 1997.
TATE, G. Posses in effect: Ice-T. In: Flyboy in the buttermilk: Essays on
Contemporary America. New York: 1992.