trutas e quebradas: territorialidade e identidade nas canções dos racionais mc's

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TRUTAS E QUEBRADAS: TERRITORIALIDADE E IDENTIDADE NAS CANÇÕES DOS RACIONAIS MC’S Marília Gessa 1 (Unicamp) [email protected] Proex – Capes GT1 – Cultura, Identidade e Diferenças Resumo: As diferentes práticas do hip hop introduziram novas formas de expressão que são contextualmente ligadas a condições de vida na cidade de São Paulo, formada por uma amálgama de bairros com normas sociais particulares e nuances culturais. Este trabalho dedica-se a analisar como, através de práticas sociais e de linguagem, o discurso do rap também marca territórios e redefine parâmetros valorativos. Os territórios não são trazidos às letras somente por meio de sua nomeação, mas também pela evocação de práticas culturais correntes dentro de seus perímetros e é por isso que, mais do que uma realidade geográfica, entendemos aqui o território como uma construção simbólica. As referências a espaços físicos, como favelas e bairros da cidade de São Paulo aparecem recorrentemente na lírica do rap do Racionais, delineando uma vasta gama de práticas sociais, ficcionais ou reais. A música rap faz não só das favelas, mas da cidade e seus múltiplos espaços, a base de sua produção cultural. Nas músicas e nas letras, a cidade é uma presença audível explicitamente citada e digitalmente sampleada 2 : as texturas do ambiente urbano são reproduzidas sob o ponto de vista daqueles que vivem dentro do mundo representado. Esta ênfase à territorialidade envolve mais do que apenas um regionalismo de práticas culturais, ela traz à tona uma relação particular com alguns espaços específicos que possuem suas regras, códigos, linguagens corporais e falas também específicos. As diferentes práticas do hip hop introduziram novas formas de expressão que são contextualmente ligadas a condições de vida em uma cidade formada por uma amálgama de bairros com normas sociais particulares e nuances culturais. O grafite, por exemplo, inscreve e enuncia uma presença individual e coletiva em determinado espaço (de fato, em sua origem, os grafites eram marcas de gangues, avisos aos iniciados de que aquela área tinha “dono”). Tais práticas criam os laços sobre os quais as afiliações são forjadas em geografias sociais específicas. 1 Marília Gessa é Mestranda em Linguística na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Realiza, há 7 anos, pesquisas a respeito do rap em São Paulo e, há 4 anos, uma etnografia sobre o grupo Racionais MC’s. Em 2011, tornou- se fellow da Brown University para aprofundar seu trabalho com o grupo. 2 A base rítmica e melódica de um rap deriva da seleção e combinação de partes de outras músicas e sons diversos. Essa combinação é executada por um DJ e esses “pedaços de música” são chamados de samples que podem provir de materiais musicais (pedaços de músicas) e não-musicais (sons de sirene, campainha, latidos de cachorro, conversas etc.).

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TRUTAS  E  QUEBRADAS:  TERRITORIALIDADE  E  IDENTIDADE  NAS  CANÇÕES  DOS  RACIONAIS  MC’S  

 Marília Gessa1 (Unicamp) [email protected]

Proex – Capes GT1 – Cultura, Identidade e Diferenças

Resumo:

As diferentes práticas do hip hop introduziram novas formas de expressão que são contextualmente ligadas a condições de vida na cidade de São Paulo, formada por uma amálgama de bairros com normas sociais particulares e nuances culturais. Este trabalho dedica-se a analisar como, através de práticas sociais e de linguagem, o discurso do rap também marca territórios e redefine parâmetros valorativos. Os territórios não são trazidos às letras somente por meio de sua nomeação, mas também pela evocação de práticas culturais correntes dentro de seus perímetros e é por isso que, mais do que uma realidade geográfica, entendemos aqui o território como uma construção simbólica.

As referências a espaços físicos, como favelas e bairros da cidade de São Paulo aparecem

recorrentemente na lírica do rap do Racionais, delineando uma vasta gama de práticas sociais,

ficcionais ou reais. A música rap faz não só das favelas, mas da cidade e seus múltiplos espaços, a

base de sua produção cultural.

Nas músicas e nas letras, a cidade é uma presença audível explicitamente citada e digitalmente

sampleada2: as texturas do ambiente urbano são reproduzidas sob o ponto de vista daqueles que

vivem dentro do mundo representado. Esta ênfase à territorialidade envolve mais do que apenas um

regionalismo de práticas culturais, ela traz à tona uma relação particular com alguns espaços

específicos que possuem suas regras, códigos, linguagens corporais e falas também específicos.

As diferentes práticas do hip hop introduziram novas formas de expressão que são

contextualmente ligadas a condições de vida em uma cidade formada por uma amálgama de bairros

com normas sociais particulares e nuances culturais. O grafite, por exemplo, inscreve e enuncia uma

presença individual e coletiva em determinado espaço (de fato, em sua origem, os grafites eram

marcas de gangues, avisos aos iniciados de que aquela área tinha “dono”). Tais práticas criam os

laços sobre os quais as afiliações são forjadas em geografias sociais específicas.

                                                                                                               1 Marília Gessa é Mestranda em Linguística na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Realiza, há 7 anos, pesquisas a respeito do rap em São Paulo e, há 4 anos, uma etnografia sobre o grupo Racionais MC’s. Em 2011, tornou-se fellow da Brown University para aprofundar seu trabalho com o grupo. 2 A base rítmica e melódica de um rap deriva da seleção e combinação de partes de outras músicas e sons diversos. Essa combinação é executada por um DJ e esses “pedaços de música” são chamados de samples que podem provir de materiais musicais (pedaços de músicas) e não-musicais (sons de sirene, campainha, latidos de cachorro, conversas etc.).

A própria linguagem cifrada dos hip hoppers, repleta de gírias e muitas vezes em desacordo

com a norma padrão do português, configura-se não só como um dos dialetos possíveis da língua,

como apontado pela canção “Negro drama”3, mas também como uma ação afirmativa da cultura dos

territórios excluídos dos mapas do “lado bom” das cidades. As gírias, em especial, revestem-se de

outras possibilidades, já que são parte de uma formação discursivo-poética que define categorias

dificilmente decodificadas por aqueles que não fazem parte das comunidades de favelas.

“Como nova forma do dizer ou do dizer-se, o discurso do rap também marca territórios e

redefine parâmetros valorativos” (Nascimento, 2006: 7). Os territórios não são trazidos ao texto

somente por meio de sua nomeação, mas também pela evocação de práticas culturais correntes

dentro de seus perímetros e é por isso que, mais do que uma realidade geográfica, entendo aqui o

território como uma construção simbólica. Esta posição implica uma abordagem semelhante à que

Pierre Bourdieu (1989) adotou para a formalização do conceito de ‘região’: certamente que ela é um

domínio, uma zona, uma área, porém, também é o produto das condições que lhe possibilitaram ser o

que é.

Se antes, o conceito de território esteve muito vinculado ao controle do "poder estatal" e à

constituição do espaço do Estado-Nação,4 uma leitura atenta de Bourdieu permite designar o

território como uma rede de relações sociais que define, ao mesmo tempo, um limite, uma alteridade:

a diferença entre nós (o grupo, os membros da coletividade ou 'comunidade', os insiders) e os outros

(os de fora, os estranhos, os outsiders). Desse modo, pode-se considerar, a exemplo de Raffestin

(apud Silva, 2000), a territorialidade como constituída de relações mediatizadas, simétricas ou

dissimétricas com a exterioridade, incluindo elementos de identidade, exclusividade e,

importantemente, de limite que, mesmo não sendo traçado, exprime a relação que um grupo mantém

com uma porção do espaço.

A idéia de que a música permite um automapeamento frente a um território simbólico leva

alguns autores a adotarem o conceito de contemporary soundscapes (Schafer, 1991): zonas

compostas por essa multiplicidade de comunidades que permitem definir as fronteiras entre ‘os

outros’ e ’os iguais a mim’. Os espaços que a música permite criar implicam noções de diferenças

sociais, por um lado, e organizam-se segundo hierarquias de ordem moral e política que estabelecem

valores e normas, por outro (Stokes, 1997). A cidade, portanto, pode ser vista como um mosaico de

territórios estabelecidos de maneira simultânea e sobreposta, como uma teia de relações entre os

grupos e indivíduos.

Os grupos que fazem parte de uma territorialidade (entre eles, roqueiros, funkeiros, rappers)

resistem, estabelecem pactos e influenciam a formação de outros territórios. Assim, por mais que os                                                                                                                3 “No meio de vocês ele é o mais esperto / Ginga e fala gíria, gíria não, dialeto” 4 É claro que esta visão de território é também uma criação cultural, mas estabeleceu uma certa rigidez de suas fronteiras e uma fixidez temporal do controle do espaço físico (Bourdieu, 1989; Silverstein, 1998; Philips, 1998) .

valores de nossa sociedade pareçam homogêneos e a paisagem urbana repetitiva, pode-se desvendar

quais são as representações dos grupos, como se situam no mundo, como classificam a sociedade e

se estabelecem relações e se apropriam de determinados espaços da cidade.

Neste sentido, buscarei, nesta seção, compreender como os rappers dos Racionais Mc’s

ordenam e sistematizam o seu mundo, quais são os princípios que organizam seu universo simbólico

e o tipo de poder que influencia suas ações e que marcam suas opções e comportamentos em relação

ao espaço e a constituição dos territórios urbanos. Estas análises mostram-se pertinentes ao

entendimento dos modos pelos quais muitos jovens negros urbanos imaginam a si mesmos e seus

ambientes e relacionam-se com eles e serão importantes no desenvolvimento desta dissertação para a

compreensão do meu papel nas comunidades e eventos visitados durante a pesquisa.

Territorialidade nas letras do Racionais MC’s

“Você está nas ruas de São Paulo onde vagabundo guarda o sentimento na sola do pé”: assim

inicia o disco Nada como um dia após o outro (2002) do grupo Racionais MC’s, informando o

ouvinte sobre o território geográfico que será por ele visitado no momento da audição do disco, bem

como informando a origem e localização geográfica do grupo.

O dado acima ilustra a importância das ruas, não apenas como palco para a expressão da

cultura hip hop, mas também como influência fundamental aos rappers paulistanos fornecendo a eles

a matéria prima para suas criações (Silva, 1998; Forman, 2000).

Similarmente a outros países, o rap brasileiro nasce com uma forte influência urbana e

encontra nos cenários da cidade “o contexto para o desenvolvimento criativo entre os primeiros

inovadores do hip hop” (Rose, 1994:34). Forman (2000) acrescenta a essa idéia que os membros da

cultura hip hop sujeitam a cidade a práticas de reconstrução dos seus espaços que são, portanto,

reimaginados e até remapeados.

Pela nomeação dos vários bairros que compõem a cidade de São Paulo em músicas diversas5,

podemos criar uma cartografia do alcance do rap na cidade. Os lugares de onde o hip hop emerge e

para onde ele converge compõem o que muitos membros dessa cultura nomeiam Nação Hip Hop

que, como define Forman (2000), é um território móvel definido pelas relações sociais existentes

entre os seus membros.

A importância das relações sociais na definição de um território ocupado pelo cenário hip hop

pode ser identificada abaixo no trecho recortado da música “Trutas e quebradas”, durante a qual, em

                                                                                                               5 A referência explícita a bairros e favelas não é ação exclusiva do grupo Racionais MC’s. Grupos de rap de toda a cidade explicitamente anunciam os bairros e favelas de onde provêm em suas letras (“No Brooklin to sempre ali vou prosseguir” – Sabotage); nomes de grupos (RZO – Rapazeada da Zona Oeste -, Rosana Bronx); grifes que vestem (Fundão, 1 da Sul).

um dos trechos, Ice Blue enumera entre pessoas, grupos de rap e bairros de São Paulo aqueles que

“fortalecem” o hip hop.

“Não sei de nada, no salve eu amo quem me ama, desprezo o Zé-povinho e amo minha

quebrada. Obrigado Deus por eu poder caminhar de cabeça erguida. Aí Jaçanã ((assovio)),

Serra pelada, Jardim Ebron de fé. Firmeza, Valcinho? E aí 9 de julho? É nóis! Wellinton,

Pulguento, tá valendo. Calibre do Gueto, Raciocínio das Ruas, Relatos da Invasão. A

caminhada certa. Serrano, resistente, firmão. Ei, Valdiza, sem palavras hein? Jairão, tá no

coração irmãozão. Garotos de periferia sacode a rede que vocês são o amanhã certo? Vila

Mazzei, forte abraço Jó, Marcelo Boy, Jardim Tremembé te espera. Cachoeira... Ei Dédo,

muita fé hein! Voz Ativa, Pasto, Nova Galvão, Resgate Negro, Jova, última chance. Vila

Zilda, Piquiri, Richard, Nino, Madá, daquele jeito.... Pontales, Lackers, Zé Hamilton, Luiz

Barba, Vila Sapo, valeu. Claudinei, Sidnei, Mário, Jardim Peri, Franco da Rocha, Anderson

de Itu, Jackson - o esqueleto de Porto Alegre, muita treta. Cristiano santista, bairro do Limão,

Dona Dora e Seu Eurides - cuidando da molecada – Itaquera, Cidade Tiradentes, São Miguel,

São Mateus, Mauá, Santo André. E aí, Edson? Canão, Zona Sul - e aí Zona Sul? Zona Oeste,

firmão. Cumbica, Arujá, Cocaia, Natanael, Movimento de Rua, Miltão, Costa Norte.

Edmilson, Albertão de Guarulhos, Cidão de São Miguel, 509E e todos aqueles que

fortalecem o hip-hop. Aí, firmezão, é nóis.”6

É possível perceber no texto acima que a idéia de pertencimento à cultura hip hop, como

assegura Cutler (2003), passa pela relação do sujeito com a periferia das grandes cidades. A ênfase

dada aos laços que tanto ancoram o rapper e, portanto, seus atos locutórios, aos ambientes em que ele

vive e circula, quanto o afasta e diferencia daqueles espaços habitados pelo “Zé-Povinho”, a quem

ele não ama e por quem ele não é amado. A importância do seu local de origem é enunciada logo no

início do texto em uma declaração de amor: “amo a minha quebrada7”.

As outras diversas “quebradas” que compõem o cenário hip hop em São Paulo são trazidas ao

texto muitas vezes como interlocutoras do discurso (“E aí 9 de julho?”, “Ei, Valdiza, sem palavras

hein!”). É natural que se imagine, portanto, que ao utilizar o nome de um bairro para se referir ao seu

interlocutor, o rapper não deseje, com isso, referenciar o espaço geográfico ocupado pelo bairro, mas

sim àqueles que habitam seus perímetros. Aqueles que fortalecem o hip hop e que têm uma relação

afetiva com Ice Blue, por vezes, aparecem referenciados no texto não pelos seus nomes de batismo

ou apelidos, mas pelos bairros onde habitam, o que gera passagens nas quais nomes de pessoas,

bairros e grupos de rap são citados de forma desordenada: “Cumbica (bairro), Arujá (bairro), Cocaia

                                                                                                               6  Racionais MC’s. Trutas e Quebradas. CD. Racionais MC’s. Nada como um dia após o outro. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica. 2002.  7 “Quebrada” é uma gíria que designa “bairro de periferia”.

(apelido), Natanael (nome de batismo), Movimento de Rua (grupo de rap), Miltão (apelido), Costa

Norte (bairro).”

O trecho da música “Trutas e Quebradas” recortado acima demonstra que existem

possibilidades de constituição de territórios fora de uma ordem planejada por quem detém poder

político ou econômico. O território pode ser visto como um conjunto de lugares, onde se

desenvolvem laços afetivos e de identidade cultural de um determinado grupo social e não precisa ser

necessariamente fechado a partir de uma delimitação rígida de fronteiras. Neste sentido, a concepção

de território delimita um ‘mundo’ pessoal ou ‘intersubjetivo’ constituído através das relações sociais

e culturais que o grupo mantém com esta trama de lugares e itinerários que constituem o seu

território (Bourdieu, 1989; Roncayolo, 1986; Silva, 2000).

No entanto, é inegável que a imagem do grupo Racionais MC’s, de uma maneira geral, esteja,

desde o seu início, muito mais atrelada à Zona Sul do que às outras periferias de São Paulo, ainda

que Edi Rock e KL Jay sejam da Zona Norte e que esta informação seja cantada invariavelmente em

suas letras.

Mais do que qualquer outro bairro, o cotidiano violento do Capão Redondo ganhou lugar na

música do grupo Racionais MC’s. “Pânico na Zona Sul”, por exemplo, foi logo uma das primeiras

músicas gravadas pelo grupo, em 1989, e falava sobre os “pés-de-pato”, policiais que formavam

grupos de chacina e atuavam no local. Outras músicas vieram mais tarde, como “Fim de Semana no

Parque”, “Homem na Estrada” e “Fórmula mágica da Paz”, anunciando que “no extremo sul da Zona

Sul tá tudo errado”.

Na capital paulista, o bairro Capão Redondo destaca-se nas análises do Ministério pelos altos

índices de assentamentos precários, de criminalidade, de mortalidade infantil e de mortes violentas

entre jovens. Quase vinte anos antes, a Folha de São Paulo cartografou o bairro como um dos

distritos mais violentos de São Paulo (1989), e como um dos dez distritos com piores condições de

vida e maiores índices de exclusão social, em 1995.

A Zona Norte, ao contrário, nas pesquisas oficiais sobre a ocupação da cidade, aparece como

uma região bem mais próspera com taxas de pobreza decrescentes, pois investimentos, especialmente

em transporte, foram feitos com maior frequência e intensidade mesmo nas áreas consideradas

periféricas desta região (como, por exemplo, a implantação do metrô até o bairro do Tucuruvi), ao

contrário do que ocorreu na Zona Sul.

Ainda havia comunidades economicamente carentes na região norte da cidade, no entanto, era

a região sul de São Paulo que carregava maiores estigmas relacionados a uma vida de pobreza e

miséria. Para poder seguir a ideia do produtor cultural e amigo Milton Salles de falar sobre e para os

invisíveis sociais e para receber a autoridade para falar a essas pessoas foi necessário que o Racionais

atrelasse a sua identidade de grupo ao pior cenário possível dentro da cidade.

“Como a gente sempre fala na letra, que a gente é a voz da favela e faz parte dela. O nosso

dia-a-dia, o nosso cotidiano, é como essas pessoas que tão aí. É violento.”

(Ice Blue para reportagem da MTV, s/d)

Conseguir criar uma ligação profunda, que não se baseasse somente nas letras, mas que

tivesse uma relação direta com o real imediato foi a estratégia seguida pelo grupo para alcançar

identificação entre um público cada vez mais em expansão no Brasil, o da favela. Em termos

numéricos, segundo o Ministério das Cidades (BRASIL, 2008), 14,3% da população brasileira habita

ainda hoje domicílios em favelas e essa proporção não era maior na década de 1990, girava em torno

de 11%. Apenas na cidade de São Paulo, estimava-se, na década de 1990, que 10% da população

estivesse alocada em favelas, hoje estima-se um número em torno de 15%, média maior que a

nacional.

Tate (1996) sugere que todo grupo de rap de sucesso é uma organização fraternal negra, uma

“posse”. Esta, por sua vez, é definida por Forman (2000) como “the fundamental social unit binding

a rap act and its production crew together, creating a collective identity that is rooted in place

within which the creative process unfolds”. Residiria aí a importância de atar a sua produção tanto a

outras pessoas como a territórios que dêem validade àquilo que é cantado, criando uma identidade

coletiva entre locutores e interlocutores.

O caráter identitário na compreensão do território é desenvolvido por Roncayolo (1986), que

considera que a territorialidade tem um sentido essencialmente coletivo, dependendo das relações

internas entre os indivíduos que pertencem a um grupo e das relações entre indivíduos de diferentes

grupos. Essa noção apresentada por Roncayolo foi muito bem condensada no verso de Mano Brown:

“Não adianta querer, tem que ser, tem que pá / O mundo é diferente da ponte pra cá / Não adianta

querer ser, tem que ter pra trocar”. Ao mesmo tempo que o território é dividido fisicamente em dois

pela ponte (referência clara aqui à Ponte João Dias que dá acesso ao bairro Capão Redondo), os dois

territórios demarcados (da ponte pra cá e da ponte pra lá) também definem diferentes tipos de

pessoas, com qualidades intrínsecas diversas.

A música Negro Drama explana de modo mais detalhado a elaboração de identidades daqueles

que os locutores consideram “iguais a mim” e “diferentes de mim”.

Edi Rock:

Negro drama

Entre o sucesso e a lama

Dinheiro, problemas, invejas, luxo, fama

Negro drama

Cabelo crespo e a pele escura

A ferida, a chaga à procura da cura

Negro drama

Tenta ver e não vê nada,

A não ser uma estrela longe meio ofuscada

Sente o drama, o preço, a cobrança

No amor, no ódio, a insana vingança

Negro drama

Eu sei quem trama e quem tá comigo,

O trauma que eu carrego

Pra não ser mais um preto fudido.

O drama da cadeia e favela

Túmulo, sangue, sirene, choros e velas

Passageiro do Brasil, São Paulo, agonia

Que sobrevive em meio às zorras e covardias

Periferias, vielas e cortiços

Você deve tá pensando o que você tem haver com isso

Desde o início por ouro e prata

Olha quem morre, então, veja você quem mata,

Recebe o mérito a farda que pratica o mal,

Me ver pobre, preso ou morto já é cultural.

Histórias, registros, escritos

Não é conto nem fábula, lenda ou mito

Não foi sempre dito que preto não tem vez, então

Olha o castelo irmão. Foi você quem fez cuzão

Eu sou irmão dos meus truta de batalha

Eu era a carne, agora sou a própria navalha

Tim tim, um brinde pra mim,

Sou exemplo, de vitórias, trajetos e glórias.

O dinheiro tira um homem da miséria

Mas não pode arrancar de dentro dele a favela

São poucos que entram em campo pra vencer

A alma guarda o que a mente tenta esquecer.

Olho pra trás, vejo a estrada que eu trilhei

Mó cota

Quem teve lado a lado e quem só fico na bota

Entre as frases, fases e várias etapas

Do quem é quem, dos mano e das mina fraca

Hum, negro drama de estilo

Pra ser e se for, tem que ser, se temer é milho

Entre o gatilho e a tempestade

Sempre a provar que sou homem e não um covarde

Que Deus me guarde, pois eu sei que ele não é neutro

Vigia os rico, mas ama os que vem do gueto

Eu visto preto por dentro e por fora

Guerreiro, Poeta, entre o tempo e a memória

Ora, nessa história, vejo o dólar e vários quilates

Falo pro mano que não morra e também não mate

O tic tac não espera, veja o ponteiro

Essa estrada é venenosa e cheia de morteiro

Pesadelo, hum, é um elogio,

Pra quem vive na guerra, a paz nunca existiu

Num clima quente a minha gente sua frio

Vi um pretinho, o seu caderno era um fuzil

Um fuzil

Negro drama

Mano Brown:

Crime, futebol

Música, caralho

Eu também não consegui fugir disso aí

Eu so mais um

Forrest Gump é mato

Eu prefiro contar uma história real

Vou contar a minha

Daria um filme,

Uma negra e uma criança nos braços,

Solitária na floresta de concreto e aço,

Veja, olha outra vez o rosto na multidão

A multidão é um monstro sem rosto e coração

Em São Paulo, terra de arranha-céu

A garoa rasga a carne, é a torre de babel

Famíla brasileira, dois contra o mundo

Mãe solteira de um promissor vagabundo

Luz, câmera e ação, gravando a cena vai

Um bastardo, mais um filho pardo sem pai

Hei, Senhor de engenho, eu sei bem quem você é

Sozinho cê num guenta, sozinho, cê num guenta a pé

Cê disse que era bom e a favela ouviu

Whisky, e Red Bull, Tênis Nike e Fuzil

Admito, seus carro é bonito, sim

E eu não sei fazer Internet, Videocassete, os carro louco

Atrasado eu to um pouco, sim, to, eu acho

Só que tem que seu jogo é sujo e eu não me encaixo

Eu sou problema de montão de carnaval a carnaval

Eu vim da selva, eu sou leão, sou demais pro seu quintal

Problema com escola eu tenho mil, mil fita

Inacreditável mas seu filho me imita

No meio de vocês ele é o mais esperto

Ginga e fala gíria – gíria não, dialeto

Esse não é mais seu, ó, ((assovio)) subiu

Entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu

Nós é isso, aquilo. Quê? Cê não dizia?

Seu filho quer ser preto. Há, que ironia

Cola o pôster do Tupac aí. Que tal? O que cê diz?

Sente o Negro Drama, vai, tenta ser feliz.

Hei, bacana, quem te fez tão bom assim?

O que cê deu, o que cê faz, o que cê fez por mim?

Eu recebi seu tic, quer dizer kit

De esgoto a céu aberto e parede madeirite

De vergonha eu não morri, to firmão

Eis me aqui. Você não.

Cê não passa quando o Mar Vermelho abrir

Eu sou o Mano “homem duro do gueto” Brown, oba

Aquele louco que não pode errar

Aquele que você odeia, mas nesse instante

Pele parda e osso funk.

E de onde vem os diamante?

Da lama

Valeu mãe, negro drama, drama, drama.

Aí, na época dos barraco de pau lá na pedreira onde cês

tavam?

O que que cês deram por mim? O que que cês fizeram por

mim?

Agora tá de olho no dinheiro que eu ganho,

Agora tá de olho no carro que eu dirijo.

Demorou, eu quero é mais, eu quero até sua alma

Aí, o rap fez eu ser o que sou:

Ice Blue, Edi Rock e KL Jay, e toda a família.

E toda geração que faz o rap, a geração que revolucionou,

a geração que vai revolucionar

Anos 90, século 21. É desse jeito.

Aí, você sai do gueto, mas o gueto nunca sai de você,

morou irmão

Você tá dirigindo um carro

O mundo todo tá de olho em você, morou

Sabe por quê?

Pela sua origem, morou irmão

É desse jeito que você vive. É o negro drama

Eu não li, eu não assisti, Eu vivo o negro drama, eu sou

negro drama, eu sou o fruto do negro drama

Aí dona Ana, sem palavra, a senhora é uma rainha, rainha

Mas aí, se tiver que voltar pra favela, eu vou voltar de

cabeça erguida

Porque assim é que é, renascendo das cinzas

Firme e forte, guerreiro de fé. Vagabundo nato.

Tendo em vista o histórico do rap no Brasil, seu papel social e sua atuação junto ao movimento

negro, o título da canção acima8, bem como o seu primeiro verso, “Negro Drama”, traz no adjetivo

“negro” uma pista ao ouvinte de que a música em questão trará à tona questões ligadas à raça negra.

De fato, este rap, em termos gerais, discorre sobre o “drama” enfrentado pelas pessoas de raça negra

no Brasil e, em especial, em São Paulo. No entanto, a atenção dos autores não é dirigida a todos os

negros paulistanos, mas àqueles destinados a viver em favelas, das quais as únicas saídas apontadas

pelos autores são o crime, a música e o futebol. Raça e territorialidade freqüentemente aparecem

interligadas aqui, evidenciando a complexa elaboração da realidade que deve ser empreendida entre

os interlocutores de uma atividade discursiva e o mundo.

Podemos identificar neste rap uma oposição entre aqueles que partilham do “Negro Drama” e

aqueles que não o fazem. Aquele que sofre o “negro drama” é progressivamente identificado como a                                                                                                                8 Edi Rock e Mano Brown. Negro Drama. CD. Racionais MC’s. Nada como um dia após o outro. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica. 2002.

pessoa de “cabelo crespo e a pele escura” que se esforça “pra não ser mais um preto fudido” nem

viver o “drama da cadeia e favela”. Esses dois referentes, “cadeia” e “favela” ativam no ouvinte dois

grandes frames que o fazem visualizar os motivos pelos quais seria tão dramática a vida nesses locais

no ponto de vista dos autores. Esses frames têm sua elaboração guiada por diversos referentes que

seguem à sua enunciação: “túmulo, sangue, sirene, choros e velas”.

Os espaços físicos trazidos pelo autor (cadeia, favela, periferias, vielas, cortiços) aparecem

caracterizados como locais habitados por negros. A construção desses territórios a partir dos seus

habitantes é fundamental na argumentação de que o negro vive em condições precárias e dramáticas,

pois as suas mazelas seriam fruto da falta de condições nas favelas. Os habitantes desses locais têm

suas histórias de vida descritas como muito similares: são negros e mestiços criados por mães

solteiras. Eles têm dialeto próprio, ouvem Tupac, têm vontades muito parecidas: “whisky, Red Bull,

tênis Nike e fuzil”.

Embora a favela seja definida como um território habitado por negros com poucas perspectivas

de vida, ela não foi construída pelos negros nem escolhida por eles como melhor lugar para se viver,

ela é “presente” de uma elite branca que aparece simbolizada no texto pelas figuras do “senhor de

engenho” e do “bacana”.

Essa canção dá indícios de que não só as pessoas são divididas e alocadas em categorias

diferentes, negros e brancos, mas a cidade de São Paulo é dividida em dois territórios distintos: a

favela habitada pelos negros e a não-favela habitada pelos brancos. A questão do espaço geográfico

redefinido como espaço pertencente a pessoas que são categorizadas, etiquetadas e armazenadas

representativamente a partir do local que ocupam dentro do traçado urbano é uma referência muito

presente nas letras dos Racionais MC’s. A mesma idéia é reproduzida em “Da ponte pra cá”, música

na qual o locutor põe em cheque a possibilidade do playboy conviver com o pessoal da “quebrada”:

“Ô, vem com a minha cara e o dim-dim do seu pai

Mas no rolê com nós cê não vai

Nós aqui vocês lá

Cada um no seu lugar

Entendeu?

Se a vida é assim, tem culpa eu?

Se é o crime ou o creme, se não deves não teme

As perversa se ouriça e os inimigos treme

E a neblina cobre a estrada de Itapecerica

Sai, Deus é mais, vai morrer pa lá zica

Não adianta querer, tem que ser, tem que pá

O mundo é diferente da ponte pra cá

Não adianta querer ser, tem que ter para trocar

O mundo é diferente da ponte pra cá.” 9

Ironicamente, segundo aponta Nascimento (2006), a diferença é dada como marca da

superioridade dos manos em relação aos playboys, instituindo, assim, uma prática utilitarista que visa

se aproveitar dos bens materiais e do dinheiro do “estrangeiro”, mas sem revelar as essenciais formas

de percepção da realidade que possui um Mano autêntico. Na análise do professor, “aí, o branco rico

é refeito num vilãozinho utilizado pelos que historicamente são explorados pelo poder econômico

representado pelas elites financeiras” (p. 18). Assim sendo, a inversão de valores operada funciona

ironicamente como um esboço de afirmação cultural e acatamento de uma redimensionalização do

papel da cultura hip hop no mundo da juventude.

Outro exemplo que traz à tona a percepção dos locutores em relação ao seu ambiente, e o

quanto este se diferencia de outros, pode ser encontrado em “Vida Loka II”.

“Fazer o quê se é assim Vida Loka cabulosa?

O cheiro é de pólvora e eu prefiro rosas

E eu que... e eu que... sempre quis um lugar

Gramado e limpo assim verde como o mar

cercas brancas numa seringueira com balança

Desbicando pipa cercado de criança

How Brown, acorda sangue bom

Aqui é Capão Redondo, tru, não Pokémon

Zona Sul é o invés, é o stress concentrado

Um coração ferido por metro quadrado”10

No exemplo acima, o locutor discorre sobre como seria a vida em outro lugar que não o Capão

Redondo, Zona Sul de São Paulo. A cena descrita vem a partir da constatação da realidade em

contraste com os desejos idealizados por um lugar melhor. O cheiro de pólvora – representação da

guerra constante ocorrida nas favelas – traz o desejo utópico: “Vida loka cabulosa/ O cheiro é de

pólvora/ E eu prefiro rosas”. E depois surge a idealização, a imagem de um paraíso perdido montado

a partir de imagens-clichês típicas de propagandas de TV: “E eu que...e eu que... Sempre quis um

lugar/ Gramado e limpo, assim, verde como o mar/ Cercas brancas, uma seringueira com balança/

Desbicando pipa, cercado de criança”.

Este lugar imaginário gramado e limpo, com árvores com balança onde o enunciador poderia

soltar pipa com as crianças é identificado por seu parceiro na canção pelo termo “Pokémon”,                                                                                                                9 Mano Brown. Da Ponte pra cá. CD. Racionais Mc’s. Nada como um dia após o outro. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica. 2002. 10 Mano Brown. Vida Loka II. CD. Racionais Mc's. Nada como um dia após o outro. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica. 2002.

enfatizando a qualidade fantasiosa do lugar descrito. Essa segunda voz, a do parceiro, traz o primeiro

personagem para a “realidade”, desperta-o, chama-o de volta para o espaço físico do real: o bairro do

Capão Redondo, berço do grupo e um dos pontos de maior violência da Grande São Paulo: “Hei, hei,

Brown, acorda sangue bom/ aqui é Capão Redondo, tru, não Pokémon/ Zona sul é o invés, é o stress

concentrado/ Um coração ferido, por metro quadrado”. Aqui aparece uma comparação de dois

termos excludentes: o desenho animado japonês que se tornou um fenômeno, tornando-se um dos

modismos provindos do mundo televisivo, e o bairro, território do real, onde há grande concentração

de pessoas no mesmo espaço. Os versos trazem o espaço físico para representar o espaço existencial,

concentração de stress, de sofrimento: a rima interna entre as palavras stress e invés e a adversativa

usada como forma substantiva dão a sonoridade desejada.

O que pudemos perceber nas análises empreendidas até então é que, se por um lado a cidade de

São Paulo é recartografada a partir das redes de relações que os locutores das canções estabelecem

com outras pessoas e outros grupos de rap espalhados pelos diversos bairros da cidade, delimitando

assim um território móvel constituído pela comunidade hip hop, por outro lado, a favela e a periferia

aparecem como referência histórica local para a população negra e pobre nas letras dos Racionais

Mc’s. Daí a busca empreendida pelos rappers do grupo por identificação e descoberta de marcas

culturais e, conseqüentemente territoriais, que definam a favela e a periferia como um espaço

produtivo de sentidos próprios, identificador de uma categoria com voz e atitudes reivindicativas: o

negro pobre favelado/periférico.

Fora do grupo, os músicos dos Racionais Mc’s também mantêm a preocupação sobre questões

ligadas à construção de uma identidade própria. Nos diversos trabalhos individuais de Edi Rock, KL

Jay, Ice Blue e Mano Brown é possível delineá-las, o que torna visível que além de comporem uma

marca forte no grupo, elas também são trazidas à tona em outros contextos e são compartilhadas por

outros grupos e autores. Exemplo desse compartilhamento é a canção que observaremos a seguir,

“Eu sô Função”, composta por Mano Brown e Dexter, ex-integrante do grupo 509-E:

Eu sô Função

Di Função: Sou função, Pra quem não tá ligado me apresento E as ruas represento. Dá licença aqui de eu chegar nesse balanço, É quente negrão a idéia que eu te lanço. Estilo original de bombeta branca e vinho. Vai, só não vai pra grupo com neguinho. Ando gingando com os braços pra trás, Só falo na gíria e pros bico é demais. Forgado, afeto os gambé, sou polêmico.

Na favela, meu diploma acadêmico, De tênis all star, de cabelo black, Meu beck, a caixa, o bumbo e o clap. Cresci ali envolvidão com a função. Na sola do pé bate o meu coração. Esse som é do bom, dá uns dois e viaja. Nós somos negros não importa o que haja. O ritmo é nosso, trazidos de lá, Das ruas de terra sem luzes e pá. O facínio não morre, ele só começou Das festa de preto que os boy não colou.

Sou o que sou, vivo aquilo que falo, Meu rap é do gueto e não é pros embalo. Vagabundo, se for pra somar, chega aí. Paguei pra entrar e nunca mais vou sair, Então, venha que venha, dinheiro eu quero, Uma linda mulher e um belo castelo. Eu sou raiz, mas cadê você? A função e o funk jamais vão morrer. Dexter: Muito amor, muito amor pelo som, pela cor. A herança tá no sangue, louvado seja meu Senhor. Que me quis descendente de raiz. Preto, função sou sim, sou feliz. Favelado legítimo, escravo do ritmo, Dos becos e vielas eu sou amigo íntimo. Dexter, o filho da música negra, Exilado sim, preso não com certeza. O rap me ensinou a ser quem eu sou E honrar minha raça pelo preço que for. Dos vida loka da história eu sou um a mais Que te faz ver a paz como soro eficaz. No gueto jaz, o inofensivo morreu, Pela magia do funk, renasceu o plebeu. Aí fudeu, o monstro cresceu, se criou, ô, Agora já era, é lamentável, doutor, A guerra já não é tão mais fria assim. Sou pelos função e a função é por mim, Até o fim, plim, nossa luz contagia, Assim como o sol que clareia o dia E aquece o pivete que dorme na rua, Que passou a madrugada em claro à luz da lua. Se situa que o que te ofereço é muito bom: Força e poder, dom através do som. Nego, vem com nós, mas vem de coração, Por paixão, por amor, não pela emoção, firmão? Pra ser função tem que ser original. Apresentando e tal mais um irmão leal. Mano Brown: Se é vida loka aqui está, então pode saber, Deixa as dama aproximar, jão, opa, tamo aê na arena. Juras de amor ao Criador que nos guia, Antes de nada mais para nós muito bom dia. Salve, só chegar meu irmão lêlê, Por que não um monstro? Viva negro Dexter. De vinte em vinte eu paguei duzentas flexão, Caçando um jeito de burlar a lei e a minha depressão. Menino bom mas, pobre, feio, fraco, infeliz, só, Se sentindo o pior, vários monstro ao meu redor.

Com um tambor de gás fiz mais cinqüenta em jejum. Ódio do mundo eu vi em tudo, filme do Platoon. No café, açúcar, com limão no abacate. Puta, aqui ó, melhor blusa suja de colgate. Se ser preto é assim, ir pra escola pra quê? Se o meu instinto é ruim e eu não consigo aprender? Esfregando calças velhas fiz as listra do tanque. Era um barraco sim, mas meu castelo era funk. Folhas seca num vendaval, um inútil, É morrer aos pouco, eu me senti assim, tio. Eis que um belo dia, alguém mostrou pra mim Uma reunião tribal, James Brown e Al Green, uau Sex Machine. O orgulho brotou, Poder Para o Povo Preto é o que estrala os tambor. Veio as camisas de ciclista, calça Lee, fivelão, Tênis Farol White, uou uou uou, ladrão. A seis mil hora até pra plantar, Os pretos dança todo mundo igual sem errar, Agradecendo aos céus pelas chuvas que cai. Santo Deus me fez funk, obrigado, meu Pai. Nem por isso eu num vou jogar filé mignon pras piranha, O pierrot contra os playboy fuma maconha. Não vejo nada, não vejo fita dominada, Eu vejo os pretos sempre triste nos canto do mundão. Então, morou jão, um dois um dois, drão, Aham aham, alma, mente sã, corpo são. Dexter tem que estar com fé no Senhor, Tem que orar, tem que brigar, tem que lutar, nego. Ah meu bom juiz, abra o seu coração, Cê ouve o que esse rap diz e aceite o perdão. Meu argumento é pobre, mas a missão nobre. Mestrão irá saber reconhecer um homem bão. Deixo aqui, desde já, promessa de voltar, Só querer, é só chamar que eu estarei lá. Eis o doce veneno, vivendo e vivão, Um dia por vez, sem pressa, Fui nessa negão. Sou função.

Esta poesia11 não traz em seu conteúdo uma intriga nuclear nem se apóia em um

conflito central, similarmente às outras letras que vimos neste trabalho. Os

enunciadores ocupam posição central em suas falas, colocam-se diante dos ouvintes e

preocupam-se mais em dar significação ao seu personagem ao invés de priorizar o

relato dos fatos, e assim, constroem uma imagem dotada de especificidades e valores

que eles atribuem a si mesmos e a uma coletividade. Essa construção da imagem do

outro concomitantemente à sua própria pode ser percebida no uso frequente da

primeira pessoa do plural (nós) em alternância com a primeira pessoa do singular

(eu). “Cresci ali envolvidão com a função.

Na sola do pé bate o meu coração.

Esse som é do bom, dá uns dois e viaja.

Nós somos negros não importa o que haja.

O ritmo é nosso, trazidos de lá,

Das ruas de terra sem luzes e pá.”

Tomando a si mesmo como referente do seu discurso, vemos aqui que o sujeito

instaurado não é apenas enunciativo, mas também criativo e social: ele instaura e diz

o mundo. Esta ação é acentuada pelo modo como o discurso é vocalizado: em toda a

primeira estrofe, quem canta é um coro. Múltiplas vozes cantando juntas um excerto

da música produz, neste caso, o efeito de que muitos indivíduos caracterizam-se como

“função” e compartilham o mesmo ponto de vista.

Um “função” é um homem ligado à cultura das ruas, tem postura, vestimenta e

dialeto próprios. Um função tem também origem própria: ele vem da favela (“Na

favela, meu diploma acadêmico”). No processo de auto-referenciação, a descrição de

si mesmo como um homem autêntico (“Estilo original, de bombeta branco e vinho”)

fornece detalhes mais específicos sobre a procedência geográfica do função: ele vem

da Zona Sul de São Paulo.

A “bombeta branco e vinho”12 é um índice de pertencimento às periferias da

Zona Sul. Existe uma infinidade de bonés com várias inscrições diferentes, parte

branco, parte vinho, muito populares entre os adeptos da cultura hip hop nesta região.

                                                                                                               11 Dexter e Mano Brown. Eu sô Função. CD. Dexter. Exilado Sim Preso Não. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica. 2005. 12 “Bombeta” é uma gíria que designa “boné”.

Construções de mitos e mitologias, bandeiras, hinos, datas comemorativas, sinais e

emblemas agem, para Bourdieu (1989), na objetivação da realidade de um espaço, ou

ainda, na tentativa de trazer à existência a coisa nomeada. Neste sentido, as cores

branco e vinho são instrumentos que servem à delimitação e comprovação da

existência da Zona Sul como região geográfica e, portanto, categoria de objetivação e

classificação para se tornar legítimo.

À direita, vemos Mano Brown vestido inteiramente com as cores branco e vinho, mostrando que, respeitadas as cores, outras peças de roupa podem ser interpretadas como índices de pertencimento à Zona Sul de São Paulo. No meio e à esquerda, um boné nas cores branco e vinho criado pela Fundão Roupas, grife da Vila Fundão (comunidade do Capão Redondo) que veste Mano Brown. Fonte: Fundão Roupas.

Outras músicas do Mano Brown fazem alusão à “bombeta” branca e vinho:

“De lupa Baush & Lomb, bombeta branca e vinho

Champanhe para o ar que é pra abrir nossos caminho.”13

“- Um por amor, dois pelo Dinheiro

Vida loka Capão, de fé sou guerreiro

- Ih, esses manos aí de bombeta branca e vinho

Agitando as festa e chega no bolinho

- Respeita doidão, aí não fala assim

Bolinho pra você é família pra mim

Veja bem, escute a natu

O espírito, sou loko da Zona Sul”14

Neste último excerto, retirado de “1 por amor, 2 por dinheiro”, a relação entre a

bombeta branca e vinho e os moradores da Zona Sul de São Paulo, em especial do

Capão Redondo, torna-se mais explícita, mas ainda carece de dados contextuais,

                                                                                                               13 Mano Brown. Vida Loka II. CD. Racionais Mc's. Nada como um dia após o outro. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica. 2002. 14 Mano Brown & Rosana Bronx. 1 por amor dois por dinheiro. Racionais Mc's. Nada como um dia após o outro. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica. 2002.

fornecidos apenas cinco versos mais tarde, para ser completamente decifrada pelo

ouvinte. Outro aspecto importante de ser notado nesse trecho recortado é a ênfase

dada aos amigos (“Bolinho pra você é família pra mim”), confirmando a nossa

hipótese de que as relações sociais entre os rappers e seus parceiros dão sentido às

identidades de si que são forjadas nas canções e aos territórios em que habitam.

Similarmente em “Eu sô função”, o locutor anuncia: “Sou pelos função e a função é

por mim”.

A raça é outro fator relevante no qual os locutores se apoiam para definir um

função: “Nós somos negros não importa o que haja”. Mas devemos chamar atenção

novamente à territorialização da raça, ou ainda, da racialização do território: “Eu vejo

os preto sempre triste nos canto do mundão”. Periferia e favela, aqui designadas por

“canto do mundão”, são lugares habitado por negros. Analogamente, negras são as

pessoas que habitam as favelas. E no decorrer da argumentação do autor, o rap surge

também como um gênero musical racializado e territorializado.

Nós somos negros não importa o que haja.

O ritmo é nosso, trazidos de lá,

Das ruas de terra sem luzes e pá.

O facínio não morre, ele só começou

Das festa de preto que os boy não colou.

Sou o que sou, vivo aquilo que falo,

Meu rap é do gueto e não é pros embalo.

(...)

Muito amor, muito amor pelo som, pela cor.

A herança tá no sangue, louvado seja meu Senhor.

Que me quis descendente de raiz.

Preto, função sou sim, sou feliz.

Favelado legítimo, escravo do ritmo,

Dos becos e vielas eu sou amigo íntimo.

Dexter, o filho da música negra,

Exilado sim, preso não com certeza.

O rap me ensinou a ser quem eu sou

E honrar minha raça pelo preço que for.

(...)

No gueto jaz, o inofensivo morreu,

Pela magia do funk15, renasceu o plebeu.”

A racialização e territorialização do rap é recurso argumentativo importante no

relato de como este gênero musical promove uma mudança do ponto de vista do

negro sobre si próprio, imbuindo-lhe de orgulho em relação à sua raça e às suas

origens geográfica e social:

“De vinte em vinte eu paguei duzentas flexão,

Caçando um jeito de burlar a lei e a minha depressão.

Menino bom, mas pobre, feio, fraco, infeliz, só,

Se sentindo o pior, vários monstro ao meu redor.

Com um tambor de gás fiz mais cinqüenta em jejum.

Ódio do mundo eu vi em tudo, filme do Platoon.

No café, açúcar, com limão no abacate.

Puta, aqui ó, melhor blusa suja de colgate.

Se ser preto é assim, ir pra escola pra quê?

Se o meu instinto é ruim e eu não consigo aprender?

Esfregando calças velhas fiz as listra do tanque.

Era um barraco sim, mas meu castelo era funk.

Folhas seca num vendaval, um inútil,

É morrer aos pouco, eu me sentia assim, tio.

Eis que um belo dia, alguém mostrou pra mim

Uma reunião tribal, James Brown e Al Green, uau

Sex Machine. O orgulho brotou,

Poder Para o Povo Preto é o que estrala os tambor.

Veio as camisas de ciclista, calça Lee, fivelão,

Tênis Farol White, uou uou uou, ladrão.”

Os versos recortados trazem uma reflexão sobre momentos da vida do

enunciador e suas opiniões sobre si, bem como sobre aqueles que ele reconhece como

iguais. Nos primeiros versos, o locutor nos leva à sua infância quando ele se via como

um “menino bom, mas pobre, feio, fraco, infeliz, só”, que não tinha auto-estima,

passava fome, muitas vezes não tinha roupas limpas e sentia ódio do mundo. “Se ser

                                                                                                               15 Por funk, o autor designa o gênero musical do qual deriva o rap, e não o que popularmente conhecemos por funk carioca no Brasil. Faz-se importante citar aqui que a base musical desta música é um funk conhecido como “de raiz”.

preto é assim” é uma expressão referencial que encapsula o conteúdo desses versos,

que lhe antecedem, e ainda promove a progressão textual. Importante notar que, com

essa expressão, o enunciador deixa de falar somente de si e instaura a existência de

outros “pretos” com histórias de vida similares. Por meio dela também, o enunciador

faz a relação entre “pobreza” e “negritude”. Empregando um certo grau de inferência,

o ouvinte interpreta que a pobreza e as dificuldades advindas dela são atributos de

“pretos”. Essa espécie de naturalização da pobreza entre os negros já foi alvo de

crítica em “Negro Drama” na qual se afirma “me ver pobre, preso ou morto já é

cultural” (Nascimento, 2006).

Em “Eu sô função”, o autor, com certa ironia, põe em cheque a relação

necessária não só entre pobreza e negritude, mas também entre desempenho escolar e

raça. Ainda fazendo uso da figura do menino, o locutor se pergunta: “Se ser preto é

assim, ir pra escola pra quê? / Se o meu instinto é ruim e eu não consigo aprender?”.

Mas sinaliza, mais adiante, que a baixa estima e o sentimento de impotência ficaram

para trás: “Folhas seca num vendaval, um inútil. / É morrer aos pouco, eu me sentia

assim, tio.” O rap e a música negra emergem então no discurso como o promovedor

de uma nova consciência de si. O orgulho brota através da música fazendo surgir

ícones da negritude: “Poder Para o Povo Preto é o que estrala os tambor./ Veio as

camisas de ciclista, calça Lee, fivelão, / Tênis Farol White, uou uou uou, ladrão.”.

A intensa caracterização da favela como um ambiente povoado por negros, bem

como as relações empreendidas entre pobreza e negritude, fazem com que, por

inferência, o ouvinte interprete as palavras “negro” e “preto” numa relação de co-

referencialidade com “favelado” e “periférico” e em oposição a “playboy”. O rap

aparece, então, explícita e implicitamente, nesta música, como um gênero musical

duplamente definido: é música do gueto e é música dos negros. Esta dupla definição é

um ponto chave para a valorização do negro periférico que é empreendida nessa

canção: “favelado legítimo, escravo do ritmo, dos becos e vielas eu sou amigo

íntimo”. Forjam-se aqui identidades pessoais e uma cultura própria, delimitando um

território específico: o território hip hop.

O que as análises empreendidas até aqui permitem dizer é que o território hip

hop é mais do que um domínio geográfico, é também o produto das condições que

possibilitaram a formação intersubjetiva e identitária dos seres que o compõe. Se a

favela aparece como uma referência territorial constante nas letras dos Racionais

MC’s, é menos porque ela se constitui como um espaço “ocupado” exclusivamente

pelo rap (uma vez que outros ritmos musicais também emergem das favelas: samba,

forró, funk, samba rock...), e mais porque as condições sociais e as afiliações e os

laços forjados ali permitiram a emergência desse gênero musical que é o rap e,

portanto, da identidade rapper, da identidade hip hop.

A relação que o Racionais MC’s mantém com o Capão Redondo e com a Zona

Sul, bem como com outras comunidades e bairros que são enumeradas com menos

freqüência ao longo de suas letras, deixa clara a demarcação de elementos de

identidade, exclusividade e, também, de limite de que fala Bourdieu (1989) sobre as

questões de territorialidade: somente aqueles que nascem e se criam nas favelas e

periferias tornam-se “Função”, “Negro Drama”, “Vida Loka” e diferenciam-se do Zé-

Povinho que não habita a favela. Apesar de bairros da Zona Sul serem enunciados

com mais freqüência no movimento de afirmação de uma identidade negra e favelada,

fica claro que um “Função” e um “Negro Drama” é também aquele indivíduo

proveniente de uma comunidade carente em qualquer outra região de São Paulo (e

também do Brasil), como pudemos perceber em “Trutas e Quebradas”. E é por isso

que, anteriormente, o território foi definido como um conjunto de lugares, onde se

desenvolvem laços afetivos e de identidade cultural de um determinado grupo social e

não precisa ser necessariamente fechado a partir de uma delimitação rígida de

fronteiras.

Por meio das letras, delineiam-se quais são os espaços geográficos ocupados por

aqueles que produzem e consomem esse gênero (“Trutas e Quebradas”), bem como

definem-se as principais características desses espaços (“Negro Drama”, “Vida Loka

II”, “Da Ponte Pra Cá”). Assim, a cidade de São Paulo, berço do grupo Racionais

MC's, é sujeita a práticas de reconstrução: algumas vezes divida em duas, da ponte

para cá e da ponte para lá, e outras vezes tendo vários de seus bairros enumerados

como parte de uma “Comunidade Hip Hop”, a cidade é remapeada segundo os

interesses do locutor em conduzir o discurso.

A organização dos rappers em territórios os articula em relação a outros

territórios existentes. Independentemente da quantidade de pedaços em que a cidade é

dividida, São Paulo aparece sempre habitada por qualidades opostas de pessoas, o

“zé-povinho” e o “função”, o “negro drama” e o “senhor de engenho”. Cada uma

dessas personagens carrega consigo características de raça (o negro e o não negro) e

de ocupação em espaços distintos da cidade (a periferia e a não-periferia).

Na música dos Racionais MC's, de modo geral, os espaços geográficos são

redefinidos em relação àquelas pessoas que habitam seus perímetros, num processo de

afirmação de identidades individuais e coletivas. É nesse sentido que homens e

mulheres podem se considerar “favelados legítimos” e buscar nos espaços periféricos

de São Paulo marcas culturais que definam o mundo do “função” e do “negro drama”

como um espaço produtivo de sentidos próprios.

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