thais-dissertacao - biblioteca digital de teses e dissertações

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES T HAÍS DE A LMEIDA P RADO G AVA T ORÁCIO Q Q UANDO O UANDO O P P ROCESSO ROCESSO C C OLABORATIVO OLABORATIVO T T RANSBORDA NA RANSBORDA NA E E STÉTICA STÉTICA C C INEMATOGRÁFICA INEMATOGRÁFICA São Paulo 2014

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U N I V E R S I D A D E D E S Ã O P A U L O

E S C O L A D E C O M U N I C A Ç Õ E S E A R T E S

T H A Í S D E A L M E I D A P R A D O G A V A T O R Á C I O

QQ U A N D O O U A N D O O PP R O C E S S O R O C E S S O CC O L A B O R A T I V O O L A B O R A T I V O TT R A N S B O R D A N A R A N S B O R D A N A

EE S T É T I C A S T É T I C A CC I N E M A T O G R Á F I C AI N E M A T O G R Á F I C A

São Pau l o 2014

T H A Í S D E A L M E I D A P R A D O G A V A T O R Á C I O

QQ U A N D O O U A N D O O PP R O C E S S O R O C E S S O CC O L A B O R A T I V O O L A B O R A T I V O TT R A N S B O R D A N A R A N S B O R D A N A

EE S T É T I C A S T É T I C A CC I N E M A T O G R Á F I C AI N E M A T O G R Á F I C A

D i s se r t ação ap r es en tada à Es co la de Comun ica çõe s e Ar te s da Un i ve r s idade de São Pau l o , c omo r equ i s i t o p a rc i a l pa r a a ob tenção do t í tu l o de Mes t r e em Me i os e Pr oce ssos Aud i o v i s ua i s . Área de Concen t r aç ão : Me i o s e Pr oce ssos Aud i o v i s ua i s Or i en t ador : Pr o f . D r . C r i s t i an da S i l va Bo rges

São Pau l o 2014

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional oueletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação na PublicaçãoServiço de Biblioteca e Documentação

Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São PauloDados fornecidos pelo(a) autor(a)

Torácio, Thaís de Almeida Prado Gava Quando o Processo Colaborativo Transborda na EstéticaCinematográfica / Thaís de Almeida Prado Gava Torácio. --São Paulo: T. A. P. G. Torácio, 2014. 126 p.: il. + anexos, cartas e fragmentos do processo.

Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Meiose Processos Audiovisuais - Escola de Comunicações e Artes /Universidade de São Paulo.Orientador: Cristian da Silva BorgesBibliografia

1. Processo Colaborativo em Cinema 2. Redes da Criação 3. Esboços e Rascunhos na Criação 4. Literatura comoinspiração para filme 5. Gilberto Mendes; Hilda Hilst I.Borges, Cristian da Silva II. Título.

CDD 21.ed. - 791.43

F O L H A D E A P R O V A Ç Ã O

T H A Í S D E A L M E I D A P R A D O G A V A T O R Á C I O QQ U A N D O O U A N D O O PP R O C E S S O R O C E S S O CC O L A B O R A T I V O O L A B O R A T I V O TT R A N S B O R D A N A R A N S B O R D A N A

EE S T É T I C A S T É T I C A CC I N E M A T O G R Á F I C AI N E M A T O G R Á F I C A

D i s se r t ação ap r es en tada à Es co la de Comun ica çõe s e Ar te s da Un i ve r s idade de São Pau l o , c omo r equ i s i t o p a rc i a l pa r a a ob tenção do t í tu l o de Mes t r e em Me i os e Pr oce ssos Aud i o v i s ua i s . Área de Concen t r aç ão : Me i o s e Pr oce ssos Aud i o v i s ua i s Or i en t ador : Pr o f . D r . C r i s t i an da S i l va Bo rges

APROVADA EM :

B A N C A E X A M I N A D O R A

P R O F . D R . : ________________________________________ I N S T I T U I Ç Ã O : _______________________________________ A S S I N A T U R A : _______________________________________ P R O F . D R . : ________________________________________ I N S T I T U I Ç Ã O : _______________________________________ A S S I N A T U R A : _______________________________________

P R O F . D R . : ________________________________________ I N S T I T U I Ç Ã O : _______________________________________ A S S I N A T U R A : _______________________________________

Dessignificando Vou derretendo os compassos Que criei. Desapagando linhas: Círculos Que à minha volta desenhei E onde vivi Distorcido e fremente Frente à ruivez da vida. H.Hilst

AA G R A D E C I M E N T O SG R A D E C I M E N T O S

Gos tar ia de agradece r ao Prof . Dr . Cr is t ian Borges por sua aber tu ra em me de ixa r f lu i r nas aventuras e nos r iscos dos processos cr ia t i vos .

AA O S O S AA M I G O SM I G O S Agradeço à F l á v i a C o u t o por me aco lhe r e por ter

s ido a pr ime i ra at r iz , a qua l me esco lheu como di re tora , onde o colaborat i vo fo i poss í ve l . Agradeço por sua

crença em mim . À P a l o m a O l i v e i r a e à N a t h a l i a L o r d a por es tarem

sempre ao meu lado nos momentos de ascensão e quedas, a inda que eu não pu le de “pára -quedas” . . . (a inda . . . ) na v ida e na a rte e por me serv i rem de

inspi ração e incent i vo c r ia t i vo . À S e b a s t i a n M e z por me in st igar a t razer

de vo l ta o prazer v i ta l em cr ia r e me recr ia r . À R u d á K . A n d r a d e pe las in f in i t as pa rce r ias , aco lh idas e longas conve rsas sobre o sacy, o mato , a a rte , a v ida

À R u b e n s R e w a l d por ser uma in f luência e por me desor ien tar sempre que pode rumo ao or ien te . À D a n i e l M o r a F u e n t e s , por abraçar a barca

para “o não se saber onde” . Aos meus p a i sp a i s e meus i r m ã o si r m ã o s por serem meus companhe i ros e por sempre me darem base para

cont inuar , sempre .

Agradeço à G i l b e r t o M e n d e s por seus braços abertos e pe lo g rande aprend izado que tenho t ido .

À H i l d a H i l s t por sabe-se lá o que de tantas coi sas . As moças -art i s tas de Nowhere pe la sua entrega .

AA G R A D E Ç O ÀG R A D E Ç O À Cecí l ia Alme ida Sa l les por abr i r as portas às suas au las e à um novo hor izonte de pesqu i sa em a rte e processo . Jean-Claude Be rnardet pe lo “chacoa lha r” nos ú l t imos minutos do segundo tempo . Pa t r í c i a Moran e Pedr o Mac ie l pe l os con se l hos du r an t e a banca de qua l i f i ca ção . Cr i s t i a no Bur la n , Ana Car o l i na Mar in ho , Hen r i qu e Zanon i e equ ipe pe l a gener os i dade em me de i xa r acompanhar as f i lmagens de Ham le t .

QQ U A N D O O U A N D O O PP R O C E S S O R O C E S S O CC O L A B O R A T I V O O L A B O R A T I V O TT R A N S B O R D A N A R A N S B O R D A N A

EE S T É T I C A S T É T I C A CC I N E M A T O G R Á F I C AI N E M A T O G R Á F I C A

RR E S U M OE S U M O

O presente proje to v i sa a contr i bu i r com os

estudos no campo da re f lexão esté t i ca e pr inc i pa lmente

da gênese da c r ia ção do fazer c inematog rá f ico,

destacando poss í ve i s d inâmicas colaborat i vas na

produção de cinema do Bras i l , a t ravés da aná l ise de

dois f i lmes (Ex - I s to e Desassossego ) e do re la to de dois

processos cr ia t i vos (Com Meus O lhos de Cão e

Nowhere ) , com o in tu i to de ident i f icar es t ra tég ia s ,

v iab i l i za r , ampl ia r e s is temat iza r o conce i to de cr ia ção

em co laboração , atentando para o pape l do ato r , do

montador e dos própr ios d i re tores como co-auto res na

produção contemporânea do c inema .

QQ U A N D O O U A N D O O PP R O C E S S O R O C E S S O CC O L AO L A B O R A T I V O B O R A T I V O TT R A N S B O R D A N A R A N S B O R D A N A

EE S T É T I C A S T É T I C A CC I N E M A T O G R Á F I C AI N E M A T O G R Á F I C A AA B S T R A C TB S T R A C T The projec t in tends to study the aesthet i c impl i ca t ions

conce rn ing a speci f ic t ype of contemporary f i lm

product ion in Braz i l , by ana lyz ing the creat i ve process

of two recent f ic t iona l f i lms : Ex - I s to and Desassossego

and by the report ing process of two other movies unde r

const ruc t ion : Com Meus O lhos de Cão and Nowhere . I t ’ s

ma in a im is to ident i f y the i r ar t i s t ic st ra teg ies , through

a systemat i za t ion of the concept of ‘ creat ion ’ a s app l ied

to these f i lms , f ocus ing on the ways the acto r , the

ed i to r and the f i lmmake rs can co l laborate as co-authors

w i th in the i r product ion .

SS U M Á R I OU M Á R I O UU M A M A II N T R O D U Ç Ã ON T R O D U Ç Ã O ? ? C O L A B O R A T I V O O U C O L E T I V O ? - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 P A R A O S P R Ó X I M O S C A P Í T U L O S - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 4

11 DD O O L H A R P A R A E S T É T I CO O L H A R P A R A E S T É T I C A T R A N S B O R D A D AA T R A N S B O R D A D A

P R O C E S S O S C O L A B O R A T I V O S I – D I R E T O R / A T O R EE XX -- II S T O S T O - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 6 P R O C E S S O S C O L A B O R A T I V O S I I – E N T R E D I R E T O R E S D E S A S S O S S E G O D E S A S S O S S E G O –– O F I L M E D A S M A RO F I L M E D A S M A R A V I L H A S A V I L H A S - - - - - 1 9

22 DD O O OO L H A R P A R A O L H A R P A R A O PP R O C E S S O C O M O R O C E S S O C O M O EE S T É T I C AS T É T I C A O p ro ce s so c omo um re sq u í c i o do pe rc u r so da s i n t e r f e r ê nc i a s e da s co n t am i naçõ es de um a r t i s t a - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 36 P R O C E S S O S C O L A B O R A T I V O S I – D I R E T O R / A T O R CC O M O M MM E U S E U S OO L H O S D E L H O S D E CC Ã O Ã O - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 3 7 D a G ê n e s i s – B a l a d a d e H i l l é - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 38 S o b r e H i l l é - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 40 G i l b e r t o M e n d e s c o m s e u s o l h o s d e C ã o - - - - - - - - - - - - - - - 56 P r o p o s t a s p a r a u m f i l m e – p r i m e i r a s t e n t a t i v a s - - - - - 64 A p r i m e i r a V i s i t a à v e l h a s e n h o r a , M a d a m e H i l l é - - - 70 A P r i m e i r a V i s i t a a o v e l h o s e n h o r – G i l b e r t o , A m ó s ? 7 3 D o s p r e p a r a t i v o s - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 77 T r o v a s a u m i l u s t r e s e n h o r - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 88 E n q u a n t o S a n t o s n a o v e m - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 97 P R O C E S S O S C O L A B O R A T I V O S I I – E N T R E D I R E T O R E S NN O W H E R E O W H E R E - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 9 9 S o b r e a p r o p o s t a d o f i l m e - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 9 9 D a s t e m á t i c a s - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 00 U m a l e v e o b s e r v a ç ã o - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 02 C o n t r a - p r o p o s t a s - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 03 A l g u m a s d e l o n g a s a n t e s d o f i m - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 18 CC O M O M FF I M S E M F I M I M S E M F I M - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 20 B i b l i o g r a f i a - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 122 A n e x o s - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 126

1

UU M A M A II N T R O D U Ç Ã ON T R O D U Ç Ã O ?? CC O L A B O R A T I V O O U O L A B O R A T I V O O U CC O L E T I V OO L E T I V O ??

Há mais de 10 anos venho traba lhando com

processos de cr iação co laborat i vos e co le t i vos . Comece i

a ter conta to com estes t ipos de processo no teat ro e

com o tempo fu i ader indo à colaboração c r ia t i va na

dança , em t raba lhos de performance , insta lação

aud iov i sua l , chegando ao cinema através do

documentá r io e agora da f i cção. A proposta desta

pesqu isa no mest rado ve io pe la necess idade de se

d iscut i r e compreender um processo de c r iação onde a

co laboração entre os art i s tas é a chave-mestra dentro

da cr iação de uma f icção cinema tográ f i ca .

É importante esc la recer que há d i fe renças entre

t raba lhos co laborat ivos e t raba lhos cole t i vos . Traba lhos

co laborat ivos pressupõem funções def in idas (d i re to r ,

a tor , dramatu rgo etc . ) , en tão durante o processo de

cr ia ção os atores t razem cenas , tex tos , anse ios pessoa i s

e estes mater ia i s vão sendo lapidados tex tua lmente pe lo

dramaturgo e cen icamente pe lo d i re to r . Se pensa rmos

em termos de cinema , se r ia a lgo como o que acontece

no momento da montagem, quando d i re to r e montador

lapidam o mate r ia l que fo i t raz ido pe los ato res e/ou

f i lmado, ou quando o mater ia l p roven ien te de

improv i sações é reesc r i to e organ izado por um rote i r i s ta

e depo is f i lmado já com um rote i ro e laborado .

2

Tanto no teat ro como no cinema co laborat i vo , o

mater ia l é const ru ído pe los ato res jun tamente com o

d i re tor e v ice -ve rsa , havendo d iscussões sobre a

esté t ica e a temát ica , ent re out ros , mas se rá lap idado .

No teat ro , mu i tas vezes acontece de uma cena t raz ida

ser descar tada , ou então de uma cena proposta por um

ator , passa r pa ra as mãos de ou tro . Anton io Araú jo , em

seu tex to sobre o processo co laborat i vo do Teat ro da

Vert igem, exp l i ca a t rans i ção de seu t raba lho a um

esquema mai s co laborat ivo :

Não ba s ta va , por ta n to , s e rmos apena s a r t i s ta s -ex ec u tore s ou a r t i s t as -p r opos i t ore s de ma te r i a l c ên i c o b ru to . Deve r íamos assumi r também o pape l de a r t i s ta s -pen sadore s , ta n to dos camin hos me todo lóg i c os quan to do sen t ido ger a l do esp e tác u l o . Em te rmos convenc i ona i s , o drama tu rgo e o enc enador s ão “aque le s que pen sam” , enquan to os a tor es são “aque l es que fa zem” . O conce i t o da ob r a pa re ce , nes se c aso , s e r um a t r i b u to da dr ama tu r g ia ou da d i r e ção , cabendo aos a tore s , quando mu i t o , a r t i cu la r em uma v i s ão gera l de sua s per sonagens . Es t e “ a tor - l i n ha de mon tagem” , que pouca s veze s ou nunca s e re l ac i ona com o d i s cu r so a r t í s t i c o g l oba l , e sc ra vo da “pa r t e ” e a l i e nado do “ todo ” , p a r ec i a não faz e r pa r t e do nos so co l e t i v o de t raba l ho nem de nossos pos s ív e i s in t e r ess es de pa rc e r i a . Po i s , se dr ama tu r go e d i r e tor nec es s i tam sempr e t r an s i ta r do f ragmen to ao todo e do todo ao f r agmen to , por que se r i a d i f e r en te com os a tor es ? ” 1

Em processos co laborat ivos , a d i reção não se

1 Araújo, António. “O Processo Colaborativo no Teatro da Vertigem”. In: Revista Sala Preta, v. 6, n. 1, 2006, p. 128, disponível em: http://www.revistasalapreta.com.br/index.php/salapreta/article/view/174

3

encontra mai s desvenci lhada de seus atr ibu tos

convenciona i s , como ocor re nos processos cole t i vos ,

nos qua is , em um proje to sem di re to r , cada art i s ta t raz

sua propos ta , se ja cên ica ou f í lmi ca , e a dec isão do

que f icará no produto f ina l cabe a todos , ou pe lo

menos à maior ia , como é o caso dos t raba lhos do Bi ja r i

e da Casa da Lapa , ent re out ros .

Como exper iênc ia pessoa l , posso c i ta r os exemplos

da Companhia Auto-Ret ra to 2, onde há uma dinâmica de

cr ia ção co laborat i va , e todo o mater ia l propos to pe lo

grupo passa pe la f i l t ragem do d i re to r jun tamente com o

dramaturgo . No caso do Co le t i vo Cor ros ivo 3, todas as

propos tas a rt í s t ica s eram di scut idas por todos e a

decisão cab ia ao con junto, o resu l tado f ina l sendo em

gera l art i s t i camente h í br ido , pe la d ive rs idade de

l inguagem or ig inár ia dos própr ios ar t is tas ( inc lu indo

artes plá st i cas , v ídeo , perfo rmance , som) . A l iás , a lgo

mui to recorren te em t raba lhos cole t i vos é o fa to de os

art is tas v i rem de d i fe ren tes áreas art í s t i cas e

produz i rem traba lhos h íb r idos .

Será importante d i fe renc ia rmos o co laborat i vo do

co le t i vo , porque aqu i t ra tare i de t raba lhos co laborat ivos ,

se ja entre d i re to res ou entre ator e d i re tor . Ass im , os

f i lmes e as d inâmicas que abordo aqu i pa rtem de uma

2 A Companhia Auto-Retrato existe desde 2000 e propõe trabalhos no âmbito do teatro e da dança. Recentemente, passou a englobar a pesquisa de intervenção urbana abrindo ainda mais suas fronteiras artísticas. www.companhiaautoretrato.com.br 3 O Coletivo Corrosivo surgiu em 2008 com a união de artistas de várias áreas que buscavam um projeto em comum e propunham pesquisar o terreno híbrido em que as artes se encontram. O primeiro trabalho ocorreu na residência artística da Casa das Caldeiras e envolvia artes plásticas, vídeo, performance e som. www.corrosivo-coletivo.blogspot.com.br

4

re lação colaborat i va e têm uma costura f ina l que f ica a

cargo dos d i re to r (es) gera is/ montador(es) , o que não

t i ra o mér i to dos ato res e dos outros rea l i zadores como

co-c r iadores . Suas propostas in ic ia is es tão lá ,

reg is t radas , porém a ordem e o rumo que e las tomam

f ica a ca rgo da d i reção f ina l .

PP A R A O S P R Ó X I M O S C A P ÍA R A O S P R Ó X I M O S C A P Í T U L O ST U L O S

Fa la r de um processo co laborat i vo sem ter

acompanhado a fase embr ionár ia e seu prog resso é

bastante d i f í c i l e cont rove rso . No pr ime i ro capí tu lo

desta d isse rtação, busca re i , a t ravés de resqu í c ios

esté t icos captados no própr io f i lme , a lguma p ista para

compreender a c r iação em co laboração. Ana l isare i dois

f i lmes , com o aux í l io de conve rsas in forma is com os

respect i vos d i re to res , abordando em um de les (Ex - I s to ) a

re lação ent re ator , d i re tor e l i te ra tu ra , e no out ro

(Desassossego , o f i lme das marav i l has ) , a re lação entre

d i fe ren tes d i re tore s e a noção de f i lme -re spos ta .

No segundo capí tu lo , c r iando um cont raponto entre

a aná l ise esté t i ca e a aná l ise processua l , re la tare i par te

da cr ia ção de duas obras co laborat i vas const ru ídas de

modo bastante d ist in to e que d ia logam com Ex - I s to e

Desassossego , pa ra que ass im se ja poss í ve l expor

a lgumas d inâmicas de t raba lho que começam antes de

se entrar no set de f i lmagem, e vão se t ransfo rmando

pouco a pouco . Apresentare i então, no segundo

capí tu lo , deta lhamentos c r ia t i vos e colaborat i vos de dois

5

t raba lhos a inda em prog resso . São e les : Com Meus

Olhos de Cão (a re lação entre a tor , d i re to r e l i te ra tu ra )

e Nowhere (a re lação entre d i re to res , e a ide ia de

f i lme- resposta ) .

11 DD O O L H A R P A R A E S T É T I CO O L H A R P A R A E S T É T I C A T R A N S B O R D A D AA T R A N S B O R D A D A

6

1

P R O C E S S O S C O L A B O R A T I V O S I – D I R E T O R / A T O R

E XE X -- I S T O I S T O o u q u a n d o o a t o r é p a r t e e s s e n c i a l n a o u q u a n d o o a t o r é p a r t e e s s e n c i a l n a c r i a ç ã o d a o b r a .c r i a ç ã o d a o b r a .

Como tra ta r de processo de c r iação co laborat i vo

entre d i re tor e ato res de um f i lme já f ina l i zado, sem te r

presenciado a sua gênese e sem ter t ido acesso as

anotações , rascunhos , sto ryboards , ensa ios , conversas e

f i lmagens? Como encont rar p is ta s desta co laboração na

própr ia imagem f í lmi ca?

O que vem pr ime i ro à mente é o reg is t ro da

“exper iênc ia” em si , ou a tenta t i va de se reg is t ra r o

instante em que a expe r iênc ia t ransparece aos olhos de

um espectador , se ja numa improv isação ent re os ato res ,

se ja num ato so lo mais perf ormát ico para câmera , e a í

então tentar desmembrar e compreender momentos em

que a narra t i va f í lm ica pré-e laborada , ou não, tenha

ganhado forma a part i r deste reg is t ro , is to é , sendo

ader ida na montagem.

No c inema, ass im como em out ras fo rmas

art í s t i cas , o processo c r ia t i vo acontece em di fe ren tes

âmbi tos , é mai s usua l que pa rta de um ro te i ro fechado ,

como também o fo ra em outros tempos no teat ro (hoje

é mui to usua l que atores e d i re to res jun to com

dramaturgo, c r iem uma peça con j untamente ) .

Porém, para a lguns c ineas tas que vêm de uma

formação teat ra l des te gênero, o exerc í c io de t raba lhar

co laborat ivamente já faz pa rte de seu método cr ia t i vo .

7

Quando passam a fazer c inema, acabam transportando

isso para a c r iação cinematográ f i ca .

Mesmo não sendo um p r oc ed imen to padr ão na a t i v i dade aud i ov i su a l , a i de ia de p roc es so começa a con tam ina r a p rá t i ca c in ema togr á f i ca , p r i nc i pa lmen te s e fe i t o num per í odo an te r i o r à f i lmagem , como o rea l i z ado por M ik e Le ig h . Cada vez ma i s ro te i r i s t as e d i r e tor es t ra ba l ham com a noção de p r oce sso co labor a t i v o na cons t ru ção de sua s ob ras . 4

Hoje , vemos d i re tore s como Mike Le igh , And reas

Dresen , R ichard L ink la te r , Cao Gu imarães , Ma rce lo

Gomes, Kiko Goi fman , Taciano Va lér io , ent re outros ,

buscando no encont ro com seus atores o foco para a

cr ia ção do f i lme . Mas obv iamente esse movimento já

acontec ia desde as décadas de 60/70, com Cassavetes ,

R ive t te , Godard , Bressane , Sganzer la o qua l c i ta a

impor tância do ator em seu tex to “Pape l do Ator ” :

( . . . ) e toda moderna m is e -en -s cène fundamen ta - se no a tor , ún i c o con teúdo poss í ve l : o homem e suas aven tu r as v i ta i s . Ou me l hor , a i nda , o con teúdo é o p r óp r i o a tor , s ua p r es en ça d ia n te da câmer a (Godar d ) . 5

Outro mot ivo que também pode ser apl i cado à

recor rênc ia de t raba lhos co laborat ivos no cinema é a

questão orçamentá r ia . Quando se tem ba ixo orçamento ,

ou orçamento nenhum o d i re tor passa a busca r

4 Rewald, Rubens. “Caos/Dramaturgia”. Editora Perspectiva; FAPESP. São Paulo, 2005. Op. cit., p. xi. 5 Sganzerla, Rogerio. “O Papel do Ator” (1981), in Por um Cinema sem Limite. Rio de Janeiro: Azougue. 2001, p. 59.

8

parce i ros que se afe içoem com a idé ia do f i lme e se

proponham a pensar e c r ia r es t ra tég ias jun tos .

* * *

“ E x - I s t o ” (2010) , é um f i lme que parte de uma

obra l i te rár ia , “Cata tau” , de um poeta bastante po lêmico

Pau lo Leminsk i . E le é rea l i zado por Cao Gu imarães , um

cineasta que é mais conhec ido por seus t raba lhos em

documentá r io e v ideoarte , e por João M igue l , um ator

que ve io do teat ro e do traba lho de pa lhaço (onde a

re lação com a arte da presença é o ponto cruc ia l ) e

que fo i p ra t i camente “abduz ido” pe lo c inema no Bras i l

de uns tempos para cá .

O f i lme surg iu de um conv i te do Inst i tu to I taú

Cu ltu ra l , que conv idou a lguns c ineastas pa ra re t ra ta rem

de mane i ras bem pa rt icu la re s f i guras de vár ios n ichos

da cu l tu ra bras i le i ra pa ra o proj e to ICONOc láss i cos . Em

entrev i s ta à Marce lo Miranda , Cao Gu ima rães exp l ica :

“Eu av ise i que não se i fazer biogra f ia , e e les d isseram

que buscavam mesmo um olhar poét ico sobre o ar t is ta ” 6.

Para a e laboração do f i lme Cao leu tudo de

Leminsk i e c la ro “Cata tau” , lançado em 1975 e def in ido

pe lo cur i t i bano como “prosa exper imenta l” . Cao

Gu imarães , comenta em d ive rsas entrev is ta s de pré-

lançamento do f i lme que antes de começa r as gravações

de “Ex- Is to” , e le reun iu sua equ ipe (de se is in tegrantes)

6 Miranda, Marcelo. “Cao Guimarães”, in O Tempo, 29.01.2010. http://www.otempo.com.br/divers%C3%A3o/magazine/cao-guimar%C3%A3es-e-marcelo-gomes-terminam-filmagem-1.253062. Acessado em 28/09/2013.

9

para se debruçar sobre a obra comple ta de Leminsk i ,

t ransfo rmando o t raba lho em um processo a l tamente

co laborat ivo . Duas semanas antes das f i lmagens e le e

João Migue l se i sola ram num sí t io , e passa ram todo o

tempo “devorando” o Catatau - um l i v ro que propõe um

“ jor ro” de pa lav ras , um f luxo de tex to in te rmináve l com

poucas pausas pa ra a respi ração - e tex tos de René

Desca rtes , pa ra que João se apropr iasse não da

personagem Desca rtes , mas s im do un ive rso que

Gu imarães quer ia aborda r .

Nesse l i v r o , o Lemi nsk i imag in a (o f i l ó so f o ) René Desca r t e s v in do aos t r óp i c os , na época da in va são ho landesa do Mau r íc i o de Na ssau . É um l i v r o que t em o Desca r t es apar ec endo com uma l un e ta e um c iga r r o de maconha na mão , sen tado emba i x o de uma ár vor e e en l ouquecendo a men te ca r te s ia na de le 7.

Todo o tex to que aparece no f i lme é re t i rado do

l i v ro - exceto no in íc io quando aparecem t rechos da

obra de Desca rtes – e Cao se ut i l i zou de in fo rmações

sobre a v ida de Desca rtes , a lém do o lha r de João

Migue l , e mesc lou estes e lementos a cenár ios da

atua l idade , d isso lvendo as est ru tu ras tempora i s .

. . . e s ta l en t e me veda vendo me ve l a me venda me de svenda me r eve l a ( . . . ) ve r é uma fábu l a ( . . . ) é pa r a não ve r que e s tou vendo . ” 8

7 Ibid. 8 Texto contido no filme Ex-Isto, retirado de um fragmento do livro Catatau, de Paulo Leminski.

10

9

Cao Gu ima rães ve io das arte s p lást i cas , chegando

ao c inema at ravés da v ideoarte e de f i lmes

cons iderados documentár ios pe la cr í t i ca . Re f lexo d i sto , é

que e le não cos tuma ter um rote i ro fechado antes das

f i lmagens . Em “Ex - Is to” e le t raba lha pe la pr ime i ra vez

com um ator prof is s iona l , porém não d i fe renc ia seus

outros “a tores” , como os andar i lhos e o eremi ta (de

seus f i lmes documentár ios) , do a tor João Migue l . Todos

de uma certa mane i ra es tão representando a s i mesmos,

todos são “ f i lósofos” dentro de seus f i lmes , se ja em o

“Andar i lho” , em “A A lma do Osso” ou em “Ex- I s to” .

Essa d iscussão entre ato r/não-a tor não faz mui to

sent ido na obra de Cao Gu ima rães , já que para e le a

d i fe renc iação ent re documen tár io e f i cção é

des in teressante , o c ineasta indaga : “como def in i r o

aspecto rea l do f icc iona l? ( . . . ) é d i f í c i l quant i f i car

quanto há de f icção e quanto há de documentár io em 9 Frame do filme Ex-Isto referente ao texto acima citado.

11

meus f i lmes . É tudo c inema . ”

João Migue l começou aos nove anos fazendo um

programa de ent rev i s tas na te le v isão, e em segu ida se

vo l tou ao t raba lho de pa lhaço, que e le cons idera base

de sua formação. No teat ro sua penú l t ima expe r iênc ia

t raz um e lemento especia l , a peça “O B ispo” , um so lo

cr iado pe lo própr io ato r a par t i r das hi stó r ia s e da

obra do art is ta Bispo do Rosár io , nas qua is João

mergu lhou durante bastante tempo antes da est ré ia pa ra

se contamina r des te un ive rso . A peça fo i cr iada em

duas versões : uma como espetácu lo teat ra l e a outra

como uma perf ormance fo ra do pa lco e fe i ta mu i ta s

vezes em lugares púb l icos , onde e le in te rag ia com os

espec tadores e modi f i cava suas ações a part i r desta

re lação. João Migue l , no teat ro , tem a presteza de

“present i f ica r” suas pe rsonagens , de human izá- las sem

de ixar o ator João desaparecer . Is so se re f le te em seus

t raba lhos no cinema, mas é em Ex- Is to que vemos João

Migue l pa ra a lém de René Descar tes .

Em Ex - I s to , percebemos o ator João Migue l de uma

mane i ra d ist in ta dos ato res do cinema clá ss i co . Sa ímos

da narra t i va c lá ss i ca e ps icológ ica de um Descarte s e

vemos um ator/ um performer . “ ( . . . ) o pe rformer é seu

própr io s igno ; e le não é s igno de a lguma outra co isa ,

mesmo que o possa ser em um plano secundár io . ” 10 E le

é um f i lósofo , é o própr io João Migue l jogando com

e lementos de René Desca rtes , Pau lo Leminsk i e o l i v ro

10 Glusberg, Jorge. A Arte da Performance. Ed. Perspectiva. São Paulo pag 73

12

Cata tau . Ca r los A lberto Mattos , em uma ar t igo pa ra a

rev i s ta F i lme Cu l tu ra , re la ta a lgumas expe r iênc ias onde

a perf ormance t ranspa rece no f i lme :

Tan ta r a re faç ão de in t enções e resu l ta dos p re tende , de a lg uma mane i r a , a pagar os l im i te s en t r e a r t e e v id a , i ncorpor ando e l emen tos de uma a ou t ra – a lgo a l i ás mu i t o ca r o a per fo rmance a r t . E s tamos en tão no t e r r e no da tea t ra l i z aç ão da v i da e da d i s t en são da a r t e p a ra f o ra dos l im i t es da economi a na r r a t i va . A p er f ormance se ap r ox ima do r i t ua l , em que o tempo é aque le que a ce r imôn ia requer , n ão o que l he s e r i a impos to por ou t r as ra zõe s . ( . . . ) Nos r i t ua i s da p er f ormance , a con fu são en t r e a tor es e per sonagen s é uma con s tan te . I s s o es ta na ra i z das exp er imen tações de vá r i o s f i lmes . 11

No f i lme , João mergu lha no l i v ro Catatau , ao lado

de Cao Gu imarães , e apesar de sua exper iênc ia com a

improv i sação e le re la ta que f icou apreens i vo ao faze r

seu pr ime i ro longa sem um rote i ro .

Nunca es tamos con for t áv e i s , há sempr e o r i sc o . Como o ga l ho de uma ár vore , s ob re o qua l es tou s en tado , s e queb r a r du r an te a por or oca 12.

Não in teressa a Cao , no f i lme Ex- I s to , uma

f icc iona l i zação dramat izada do l i v ro , e s im uma f r i cção

entre d i re to r , a to r , auto r/o Catatau .

11 Mattos, Carlos Alberto. Ecos das chanchadas e dos marginais na teatralização dos novos cotidianos. In: Revista Filme-Cultura, nº56, Junho de 2012. www.filmecultura.org.br_edicoes_56_pdfs_edicao56_completa.pdf 12João Miguel em entrevista ao CineEsquemaNovo. (http://cineesquemanovo.wordpress.com/2011/04/27/segundo-dia-da-mostra-de-longas-ex-isto)

13

A f i c ção é por na tu re za um documen tá r i o : on to l og i camen te a câmer a sempr e f i lma a rea l i dade que s e pas sa d i an te de l a . No ca so de um t raba l ho d i t o f i cc i ona l , es tá s endo documen tado todo aque le p r oce sso que en vo l ve a tor es , r o te i r i s t as e t écn i c os . 13

A idé ia não é envo lve r o públ ico com uma h istó r ia ,

mas de ixar as imagens e tex tos permearem este

un iverso que Pau lo Leminsk i p ropõe . Cao Gu ima rães

comenta sobre a insegurança de J .M igue l no in i c io das

f i lmagens : “E le me d iz ia : 'como vou fazer , nunca f iz um

f i lme sem ro te i ros ' . E eu respondi : 'Você é um f i lósofo .

Pense . ' E deu certo . ” 14

O jogo atempora l cr iado por Cao, ao t razer

Desca rtes pa ra o sécu lo XX I f i ca ev idente quando vemos

o própr io “Descarte s” em uma fe i ra - l i v re em Reci fe .

Estas imagens causam uma est ranheza saborosa ao

espec tador . Ocor re a l i uma espéc ie de in te rvenção

urbana , vemos João que está vest ido com roupas de

época , em meio a pessoas comuns que o obse rvam

mui tas vezes com um o lhar de est ranheza . Ou então,

Desca rtes/João que observa com o lha r de descobe rta

os a l imentos do “Novo Mundo” , os obje tos , as pessoas

que dançam no meio da praça públ ica .

13 Idem 14 Cao Guimarães em entrevista ao CineEsquemaNovo CineEsquemaNovo http://cineesquemanovo.wordpress.com/2011/04/27/segundo-dia-da-mostra-de-longas-ex-isto. Acessado em 30/09/2013

14

15

Percebemos também a “Bahian idade” deste

Desca rtes/João que dança com um g ingado bem

bras i le i ro soz inho na praça , ou em dup la num for ró

“arre tado” . Neste jogo vemos “um João Migue l ” que se

de ixa leva r pe la re lação e que nos reve la um “c inema

do presente” , onde

os a tor es faz em seu p r óp r i o pape l , e são ob r i g ados a i n t e rp r e ta r em a s i mesmos . E l im in a -s e o p er sonagem, s ub s i s t e o a tor – mu i t as v ez es consc ie n te de que e s tá rep r es en tando 16 .

I s to ocor re quando, por exemplo, o ato r sor r i

desconcertado pe la reação de uma das pessoas que

in teragem com e le . “Descor t ina-se” o humano atra vés do

que se poder ia cons idera r um “erro” de atuação, poi s

e le ta lve z tenha “perd ido a pe rsonagem”, porém, é esta

at i tude de f rag i l idade que nos aprox ima de le e do f i lme . 15 Frames do filme Ex-Isto. 16 Sganzerla, Rogério. “Cinema Impuro?”, in Textos Críticos vol. 1. Florianópolis: Ed. UFSC/ Itaú Cultural, 2010, Op. cit., p. 60

15

E le não perdeu Descarte s , porque e le é Descartes , um

ator em vias de cr ia r a própr ia f i losof ia .

Essas cenas de um cot id iano “est ranhoso” com a

presença de um homem/pe rsonagem são mescladas à

imagens bastante es t i l i zadas , mu i to próx imas a pin tu ras .

Aqu i , a re lação humano e natu reza minera l , vegeta l e

an ima l es tão em um mesmo n íve l .

17 No f i lme há também uma presença for te de

imagens aparentemente está t i cas cont raposta s à imagens

de mui to movimento e efemer idade que perdem o foco

da câmera e o re tomam, todas e las permeadas em gera l

pe la voz em of f de João Migue l/Pau lo Leminsk i ou de

Desca rtes/Catatau , que não narra necessar iamente o

que se vê . A fa la é como um f luxo de pensamento que

acontece separado da imagem, esta é por sua vez

também um f luxo de movimento imagét ico .

Leminsk i é o própr io f i lme através deste s 17 Frame do filme Ex-Isto.

16

encontros , mu i to mai s do que se fosse uma s imp les

adaptação do l i v ro Catatau , porque Leminsk i também se

apropr iava de out ras l i te ra tu ras para cr ia r sua obra , e le

cr ia va in te rtex tua l idades . O esp í r i to c r ia t i vo de Pau lo

Leminsk i perme ia o f i lme , f r i cc ionado ao espí r i t o cr ia t i vo

de Cao , João e toda equ ipe de f i lmagem .

18

João são mui tos neste f i lme – Ex- I s to - e a

presença de Cao Gu imarães é v is í ve l a todo momento ,

tan to nos momentos mais hermét icos , que são bas tante

caracte r í s t icos de seu c inema, quanto nos momentos

onde a cr iação do ator é também contaminada pe lo

espaço em que e le se insere , quando por exemp lo , João

está sol to no espaço expe r imentando reações em

re lação a um cenár io reple to de gente ou a um lugar

vaz io , como o barco perd ido no r io , ou quando e le está

de i tado na a re ia da pra ia .

Você de i xa de s e r a tor , d i r e tor , pa ra s e r um cor po só , a lgo a l i v i r a ou t r a co i sa . Eu f i qu e i mo ído depo i s das f i lmagen s , mas e s t ava v i v o 19.

18 Frames do filme Ex-Isto 19 João Miguel em entrevista ao CineEsquemaNovo http://cineesquemanovo.wordpress.com/2011/04/27/segundo-dia-da-mostra-de-longas-ex-isto. Acessado em 30/09/2013.

17

20 Em Ex- Is to , nós não nos aprofundamos nas

questões ex i s tenc ia is de Descartes , mas s im nas

re lações que se estabe lecem entre João Migue l , Cao

Gu imarães , Pau lo Leminsk i e o própr io Descar tes ; a lém

das re lações entre corpo e obj e to . Não há h ie ra rqu ias

entre homem e “co isa” .

Como a presença de João é o f i lme , mu i to do que

se vê a l i pós montagem é mutuo de J .M igue l e Cao . A

montagem rec r ia e esco lhe as sequencias que cada

imagem deverá tomar , porém a todo momento em Ex-

Is to consegu imos nos enve redar por es ta present i f i cação

de Descarte s/Leminsk i a t ra vés de João/ Cao .

A poes ia do f i lme são estas constantes f rag i l idades

de uma câmera que se perde , de João Migue l que se

percebe j ogando com Desca rtes , de a lgum t ranseunte

que o observa esqu is i to e das imagens de natureza

vegeta l , an ima l , m inera l . Estas pequenas casua l idades ,

20 Frame do filme Ex-Isto

18

re f le tem o processo c r ia t i vo e colaborat i vo dos a rt i s tas

envol v idos no f i lme . O processo t ransborda na obra e a

contamina e contamina também o púb l i co que a vê e

que monta suas re fe rência s a pa rt i r de suas

exper iênc ias .

21

21 Frame do filme Ex-Isto – Descartes chega à Recife.

19

P R O C E S S O S C O L A B O R A T I V O S I I – E N T R E D I R E T O R E S

D E S A S S O S S E G O D E S A S S O S S E G O –– O F I L M E D A S M A R A V I L HO F I L M E D A S M A R A V I L H A SA S

Em di versas ocas iões da h is tór ia do c inema,

c ineastas se un i ram para d i r ig i r o rote i ro um do outro

ou então pa ra produz i rem f i lmes em episód ios – longa

metragem composto de cu rta s com uma temá t ica

comum. Na maior ia dos casos , cada ep isód io era

d i r ig ido por um cineasta e não t inha uma g rande

re lação com o episód io ante r io r ou o segu in te , a não

ser pe la temát ica esco lh ida . Nessa l inha , há os

exemp los i ta l ianos : O Amor na Cidade (L 'Amore in Ci t tà ,

1953) , com se i s episód ios sobre cot id ianos amorosos

em Roma, d i r ig idos por Miche lange lo Anton ion i , Feder i co

Fe l l in i , Ca r lo L izzan i , A lbe rto Lat tuada , Dino R is i ,

F rancesco Mase l l i ; e Rogopag - Re lações Humanas

(Ro.Go.Pa .G , 1963) , reun indo quatro cu rtas metragens

d i r ig idos por Robe rto Rosse l l in i , Jean-Luc Godard , P ie r

Pao lo Paso l in i , Ugo Gregoret t i .

Há também f i lmes que tentam quebrar com a ide ia

de episód io ou então ao menos tentam cr ia r um diá logo

entre um curta e outro , é o caso do f i lme 8 (2008) ,

d i r ig ido e produz ido por vá r ios c ineastas , como Wim

Wenders , Mi ra Na i r , Gae l Garc ía Berna l , Jane Campion ,

Gus Van Sant , ent re out ros , sobre os Oi to Obje t i vos do

Mi lên io f i xados pe la ONU em 2000 , para me lhora r a

qua l idade de v ida da popu lação mundia l . Neste f i lme ,

cada cineasta apresenta de uma mane i ra epi sód ica uma

20

h is tó r ia que corre sponde a um des tes obje t i vos . O

ú l t imo epi sód io no entanto, d i r i g ido por Wim Wende rs ,

re toma os f ragmentos anter io res at ravés da

meta l ingu ís t i ca sa la de ed ição de uma rede de

te lev i são , onde os mic ro -cu rtas estar iam sendo ed i tados

para torna rem parte de uma mesma nar ra t i va . Neste

f i lme a tenta t i va de d iá logo ou “amalgamento” surge

através do o lha r de Wenders que parece tentar se

desvenci lha r da re lação espsód ica que o f i lme

estabe lece .

A co-d i reção é outra re lação bastante recorren te

em termos de colaboração no cinema, lembremos de

Jean-Luc Godard e Jean-P ie r re Gor in , ou o própr io

Godard com a Anne-Mar ie M iév i l l e , Jean-Mar ie St raub e

Dan iè le Hu i l le t , He l véc io Mar ins J r e Clar i ssa Campol ina ,

Rubens Rewa ld e Rossana Fog l ia , Mar ina Me l iande e

Fe l ipe Bragança , os i rmãos Joe l e Ethan Cohen , Jean-

P ie r re e Luc Dardenne , R ica rdo e Lu is Pre t t i e etc . Em

a lguns destes casos , a pa rce r ia é tão duradoura que

f ica d i f í c i l imag ina r um dos c ineastas f i lmando sem o

outro .

Por out ro lado, houve e há d i versos mov imentos

c inematog rá f icos marcados pe la co le t i v idade e por

co laborações entre c ineastas , como o Kinoks (Conse lho

dos Três de Ve rtov , Kaufman e Sv i lova ) ,

E i s porque , s em esp era r que os K in ok s comecem a t ra ba l ha r de i x ando de lado s eu p róp r i o dese jo de r ea l i z a r seus p róp r i os p ro j e tos , o Conse l ho dos Trê s ab re mão ,

21

momen taneamen te , do d i r e i t o do au to r e reso l v e p ub l i c a r imed i a tamen te , po r in t e rméd i o dos jorn a i s e pa r a uso gera l , o s p r i nc íp i os e a s pa la v r as de or dem des ta fu tu r a r evo luç ão . 22

a Nouve l le Vague , o Free C inema , o C inema Novo , o

Cinema Marg ina l , a Be la i r , o grupo Dz iga Vertov

(Godard/ Gor in ) . Hoje , no Bras i l , podemos ci ta r a Te ia ,

a Alumbramento, a Casa da Lapa , o proje to Sôn ia Si l k ,

entre outros grupos ou co le t i vos mui tas vezes cr iados

como uma resposta para contornar as d i f i cu ldades da

produção ou dos s imu lac ros esté t i cos c r iados como

base da l inguagem:

Grupos e co l e t i v os subs t i tu em as p rodu tora s h i e ra rqu i zada s , c om pouca ou nenhuma separa ção en t r e os que pensam e os que exe cu tam . O que temos v i s t o nos f i lmes re f le t e novas or gan i z ações de t r aba l ho j á d i s t an te s do mode lo i ndus t r i a l . F i lme s rea l i z ados por 4 d i r e tor es , c omo é o caso dos do i s ú l t imos l ongas r ea l i zados por Gu to Pa ren t e , Pedr o D i ógenes , R i c a r do e Lu i z Pr e t t i ( Es t r ada Par a Y thaca e Os Mon s t r os ) . F i lme s rea l i zados com um d i r e tor e ma i s 3 d i r e tor es na equ ip e t éc n i c a , c omo é o ca so de O céu sob r e os Ombros , de Sérg i o Bor ge s ou de Os Res id en te s , de T iago Ma ta Machado . Ou a in da , Desas sos sego – F i lme das Mara v i l ha s , c oordenado po r Fe l i pe Br agança e Mar ina Me l i a nde , e d i r i g i do por 14 pe ssoas de d i v e r s as pa r t es do pa ís , uma exp er i ê nc i a de p r odução co l abora t i v a . 23

22 Junior, Carlos Pernisa. Vertov – O Homem e Sua Câmera. Rio de Janeiro: Ed. Mauad X, 2009, p. 32 (extratos do manifesto Kinoks, do Conselho dos Três) . 23 Migliorin, Cesar. Por um Cinema Pós-Industrial. Revista Cinética. http://outraspalavras.net/posts/por-um-cinema-pos-industrial/ acessado em 3 de julho 2014.

22

No caso do f i lme D e s a s s o s s e g o – o f i l m e d a s

m a r a v i l h a s , e le aba rca doi s t ipos de encont ros : o

encontro entre d ive rsos d i re to res e também a co-

d i reção gera l ent re Mar ina Me l iande e Fe l ipe Bragança .

Desassossego fo i um proje to contemp lado pe lo ed i ta l

Rumos C inema e Vídeo , do I taú Cu ltu ra l 2009-2011 , e é

uma espécie de “car ta - f i lme” : “uma carta de amor e

ra iva escr i ta por Fe l ipe Bragança em 200724” , in sp i rada

em um bi lhe te que o mesmo encontrou num armár io de

uma adolescente e que gerou a propos ta f icc iona l : uma

men ina que escreve nas paredes do quarto a lgo que e la

chama de “car ta do desassossego” , contendo temas

como: amor , u topia , exp losões e apoca l i pse .

Bragança e Mel iande , idea l i zadores e d i re tore s

gera is do proje to , en v ia ram esta carta a 12 cineasta s

para que d i r ig i ssem f ragmentos f í lmi cos . O mot ivo da

esco lha especí f i ca deste s c ineastas se deu pe la

admiração que Fe l ipe e Mar ina t inham por e les e

também por ac red i ta rem que estes se r iam os

rea l i zadores mais importantes naque le momento . Foram

e les : He l véc io Mar ins J r . , C la r is sa Campo l ina , Caro l ina

Durão , Andrea Cape l la , I vo Lopes Araú jo , Ma rco Dutra ,

Ju l iana Rojas , Caetano Gotardo, Raphae l Mesqu i ta ,

Leonardo Lev i s , Gus tavo Bragança , Ka r im Ainouz e os

própr ios Mar ina Me l iande e Fe l i pe Bragança somando 14

d i re tore s) . Os f ragmentos f í lmicos dever iam ser c r iados

com base em a lgumas d i re t r i ze s : 24 Na abertura do Desassossego – filme das maravilhas, entre os créditos, aparece este texto explicando a proposta do filme.

23

1 . um b i l he t e de uma men in a de 16 anos é encon t rado em um armár i o abandonado . 2 . uma ca r ta é e sc r i t a i nsp i r a da ne ss e b i l he te . 3 . a ca r t a é env ia da a 14 c ineas t as do R i o de Jane i r o , São Pau l o , M i na s Ger a i s e Ceará . 4 . os c in ea s t as r es pondem à ca r t a com 10 f ra gmen tos de f i lme . 5 . e ss es f r agmen tos são cos tu r ados como uma ca r t a - f i lme de 55 min u tos , f a lando de amor , u top ia , exp l osões e apoca l i p s e . 6 . o f i lme -c a r ta s e rá en v i ado a 2010 pes soa s no Bra s i l e no mundo . 7 . a s pe ssoa s são con v i dada s a responder com novos f r agmen tos que podem v i r a faz e r p a r te de um novo f i lme . 25

Depo is da ca rta te r s ido postada , cada d i re tor

esco lh ido respondeu com um f ragmento de f i lme mui to

d ivers i f i cado em termos de esté t ica e de dese jos . A

propos ta não e ra a de fazer vár ios cu rtas com in i c io

meio e f im, mas ut i l i za r momen tos de cada f ragmento

na compos ição do longa , mesmo que para isso fosse

necessár io cor ta r pa rtes do mater ia l env iado pe los

outros d i re to res .

Durante o processo c r ia t i vo Fe l ipe e Mar ina se

d iv id i ram da segu in te mane i ra : e le conve rsa va com os

outros d i re to res que exp l ica vam suas respect ivas

propos tas f í lmi cas , por exemp lo , Marco Dutra e Ju l iana

Rojas mostra ram um rote i ro pronto pa ra Fe l i pe le r e

fazer comentár ios antes de env ia rem o f ragmento já

ed i tado com a duração de 40 minutos . Out ras pessoas

25 Cf. http://filmedesassossego.blogspot.com, acessado em 30.09.2011.

24

mandaram um mate r ia l bru to , como Ka r in Aïnouz , o qua l

env iou v ia in te rnet mater ia l que e le hav ia f i lmado em

Ber l im e no Ceará . Outros mandaram uma s inopse , e

outros um f ragmento pré -ed i tado, à exemplo de Ivo

Lopes Araú jo , que ut i l i zou um mater ia l de negat i vo

vencido 16mm que e le t inha e c r iou uma montagem com

esses f ragmentos .

Segundo Fe l i pe Bragança em ent rev i s ta gra vada ao

Rumos I taú Cu ltu ra l (cont ido no DVD do própr io f i lme) ,

hav ia um diá logo entre e le e os d i re to res e a idé ia era

ace i ta r e receber a d inâmica de t raba lho de cada um

sem impor reg ras , modos de fazer e etc . A ún ica regra

era esta “ca rta - f i lme -resposta ” . Fe l ipe e Mar ina também

di r ig i ram cada um o seu f ragmento . M . Me l iande porém

f icou mais a fastada durante a pr ime i ra par te do

processo pa ra te r um olha r d i stanc iado quanto

montadora .

25

D o s F r a g m e n t o s e n v i a d o s :

Fragmento 1 – Futu ro

Exp lode . D i reção e rote i ro

de Clar i sa Campo l ina e

He lvéc io Ma r ins Jr . Sér ie

de explosões , imagens

captadas de f ound

footage . Um casa l de não atores , Lec iane e Z i , lêem

uma carta . Há d inâmicas do cinema documenta l cr iando

uma f icção . Enquanto a câmera capta a pe rsonagem em

um movimento s imple s de escovar os cabe los , sua voz

of f lê a carta sobre o fu turo : “e le é bon i to ou explode

tudo?” 26

Fragmento 2 – F i car

Parado Cansa . D i reção

de Andrea Cappe la e

Caro l ina Durão . Cr iança ,

an iversá r io , b r inquedos .

O men ino br in ca com

seus bonecos d inossauros em quanto fa la : - F icar

parado cansa ! Em segu ida e le está em um br inquedo

vert ig inoso de parque de d ive rsão . Tudo g i ra . Tudo

explode .

26 Fragmento da carta (em anexos) de Felipe Bragança, lida no filme O Desassossego.

26

Fragmento 3 – Mui tos Podem Vi ver Sem Água , Mas

Ninguém Vive Sem Amor . Di reção de Ivo Lopes de Araú jo

com a colaboração de R icardo Pre t t i . F i lmado com

negat ivo 16mm vencido . Imagens f ragmentadas . Uma

moça o lha à câmera . E la procura a lgo ou a lguém . Um

moço aparece . Outra moça . Fragmentos em tom azu lado .

Imagem ofuscada pe la memória . Um be i jo .

Fragmento 4 – Nascemos

Hoje , Quando o Céu Esta va

Coberto de Fumaça e

Enxof re . Di reção de Ju l iana

Rojas e Marco Dutra .

Rote i ro de Ju l iana Rojas . “eu quer ia i r ao so l de

foguete , só isso . Tra ta-se de um proje to audacioso ” . 27

F i lmado em VHS . Um casa l re sol ve i r pa ra o espaço.

Usa seu pseudo-foguete , e seu capacete de motoci c le ta 27 Fragmento da carta (em anexos) de Felipe Bragança, lida no filme O Desassossego.

27

para en f ren tar a ga láx ia . Chove sorve te . Tudo exp lode .

E les chegam a uma nova atmosfera em uma esté t i ca

anos 80 com um f ina l musi ca l .

Fragmento 5 – Nasci Ca r ioca ,

Fu i Enganada . D i reção de

Mar ina Me l iande . R io de

Jane i ro . P ra ia , pessoas no mar ,

movimento do mar . O contempla t i vo como esté t ica para

o mov imento . A c idade vaz ia , a c idade pa ra l i sada .

Fragmento 6 – O An jo

Boxeador ten ta Desc reve r

uma Cena . Di reção de

Caetano Gotardo, a pa rt i r do

poema de Ca r l i to Azevedo .

Doi s homens lêem um poema . Um homem es tá à sacada

de sua casa . O Out ro lê ca rta . “Uma vez fu i a L isboa

contar ment i ras . ( . . . ) é noi te , tem angolanos v i vendo a l í

naque le préd io da f ren te . ( . . . ) a v ida é mui to bon i ta

quando é v i s ta de pe rto . ” 28 “o pr ime i ro tem joe lhos

ergu idos e entre os joe lhos no ar sustem as rodas

d ian te i ras de uma bic ic le ta . O outro também tem os

joe lhos ergu idos e entre os joe lhos no ar , sustem as

rodas t rase i ras de uma bi c ic le ta . ” 29

28 Ibidem. 29 Trecho do poema de Carlito Azevedo “O Anjo boxeador tenta descrever uma cena”, inspiracão para a criação deste fragmento de Caetano Gotardo.

28

Fragmento 7 – O

Descobr imento do Mundo.

Di reção e ro te i ro de

Leonardo Lev i s e Raphae l

Mesqu i ta . Men inos andam de

bic ic le ta no R io de Jane i ro em meio ao of f com

sotaque português das Naus . “Pa ís” dominado , o novo

mundo descoberto . Mapas med ieva is sobrepostos as

imagens do movimento das bi c i c le tas pe la c idade do R io

de Jane i ro .

Fragmento 8 – Exp losão .

Direção , rote i ro Gustavo

Bragança . Casa l na pra ia em

preto e branco g ranu lado .

Rememoração de imagens . A

carta está a l í .

Fragmento 9 – Um Índ io , um

Robô, um Ra io Laser . Di reção e

rote i ro de Fe l ipe Bragança . Uma

men ina índ ia apenas com sua

mochi la nas costas lu ta na f lo re sta contra um robô de

an imação e um ra io la ser . Sangue . Luta . Sangue . Cur to

c i rcu i to . “E i s a his tó r ia da monstra -moça que v ive no

fundo: e la se chama Moby D ick e tem aven idas como

arté r ia s . Ah s im, sent imos che i ro da terra onde não há

terra , só água ! ( . . . ) Na minha a lde ia , as ped ras grandes

29

cercam as ruas e as pessoas . Não de ixam a malta

caminha r . ” 30

Fragmento 10 – Be r l in com

Festa . D i reção de Kar im

Aïnouz e rote i ro de Kar im

Aïnouz , Fe l i pe Bragança e

Mar ina Me l iande . Imagens do

inverno de Be r l in em fusão ao Ceará quente à dançar .

“Vou at i ra r uma bomba ao dest i no, compre i um cd de

fado ru im. Ouv i um cearense chorando de amor . ” 31

Fragmento 0 – Las Bru jas /

Le i tu ra da Carta por F lora

Dias . Di reção e ro te i ro de

Fe l ipe Bragança . Cenas de

entremeios , t rês men inas bru jas , o imag inár io , o on í r i co

e o puer i l , o a rmá r io . O dentro do armár io . A Banhe i ra .

A moça F lora lê a carta de Lu isa . Sua voz é o l ink

maio r que perme ia todos os f ragmentos .

Imagem f ina l : Found footage do incênd io do Mor ro dos

Cabr i tos ced ida gent i lmente por Tiago L ins . O f i lme

termina exp lod ido , um mor ro pegando fogo .

* * *

30 Fragmento da carta (em anexos) de Felipe Bragança, lida no filme O Desassossego. 31 Ibidem.

30

Na segunda etapa do f i lme , Mar ina jun to com

Fe l ipe passam a escolher a ordem de cada f ragmento :

de que forma e les se re lac ionam e de que forma e les

rec r iam a sensação da ca rta des ta adole scente e etc .

* * *

um a p e q u e n a p a u s a p a r a u m a o b s e r v a ç ã o

Ti ve a oportun idade de acompanhar de perto o

processo c r ia t i vo do F ragmento 4 d i r ig ido por Ma rco

Dutra e Ju l iana Rojas em 2009. Lembro dos dois

buscando câmeras VHS ou tocando as músi cas que

far iam par te do f i lme no piano da casa do Marco e

f icava imag inando o que sa i r ia deste f ragmento .

Ass is t i ao corte f ina l de les na sa la da casa do M.

Dutra jun to com a equ ipe , a tores e amigos . Uma f i cção

cien t í f ica à la anos 80 que me lembrava o se r iado O

Mundo da Lua (que passava na TV Cu ltu ra ) , o cur ta A

Be la P, de Se rg io S i l va e João Marcos de Alme ida (do

31

F i lmes do Ca ixote ) , com di re i to a tempestade de

sorvete , músi ca cantada pe los atores , espaçonave fe i ta

de pape lão e um computador defasado, pe rmeados por

e lementos da v ideoar te . O f ragmento era longo (40

minutos) e t inha uma cena hi lá r ia com Gi lda Nomacci

fazendo o pape l da chefe da Car la Kinzo , a pe rsonagem

que t raba lha numa empresa de f i lmes pub l i c i tá r i os e

escre ve um rote i ro (cu ja a s inopse é uma “meta-c i tação”

do f i lme Traba lha r Cansa , de Du tra e Rojas - “é como

se fosse um drama di s fa rçado de f i lme de ter ro r . . . mas

tem umas par tes engraçadas também”32) o qua l é

r id i cu la r izado por sua chefe e jogado no l i xo . A moça

decide então fug i r para o espaço com seu “amigo” .

Ao ass i s t i r ao Desassossego , e ra c la ramente

percept í ve l que fa l tavam pa rtes do Fragmento 4 e que

esta cena entre Gi lda e Car la hav ia s ido cortada .

Confesso que na hora deu “um aperto no coração” não

ver o f ragmento como um todo , e le já era um cur ta por

s i só . Porém, se e le fosse usado in te i ro , não pode r ia

fazer par te do longa pois o seu todo não far ia sent ido

dentro do f i lme em re lação aos outros f ragmentos . De

toda mane i ra este f ragmento fo i “ rec i c lado” e acabou se

tornando um cu rta -metragem que est reou em 2013 no

Fest i va l de Cur tas de São Pau lo .

* * *

32 frase contida no curta-metragem Nascemos Hoje, Quando o Céu Estava Coberto de Fumaça e Enxofre (2013). Direção de Juliana Rojas e Marco Dutra.

32

Vo l tando ao processo de Desassossego, a

montagem tenta se r uma costu ra destes f ragmentos sem

que e les se tornem ep isód icos , em uma busca por um

“não se saber onde começa e onde termina cada um” .

Fe l ipe ao ass is t i r a todos os mater ia is env iados e

sent indo a necess idade de a lgo que cr ia sse uma

conexão imagét i ca , f i lmou d ive rsas cenas de ent remeios ,

as chamadas Las Bru jas , que serv i ram como um

amálgama . Ma r ina e Fe l ipe propuseram uma a rt i cu lação

de todas essas d i fe ren tes tex tu ras e narra t i vas pa ra a

composi ção de um só f i lme .

D i f e r en temen te de um f i lme de ep i s ód i o s , De sa ssos s ego r eúne f r agmen tos de f i lme s dos c in ea s tas que f oram mon tados jun tos , t r a ns f ormando - se em um f i lme ún i co sob re u top ia , amor e ex p l o são . 33

Apesa r d i sto cada f ragmento , mesmo que cortado e

ed i tado ent ra em uma ordem de d i re tor pa ra d i re tor ,

is to é , permanece pa rte de um “so lo” no meio de um

todo . Estas “cenas” env iadas pe los d i re to res não se

mistu ram entre s i no decor rer da narra t i va do f i lme ,

e las ex i s tem por s i só e uma de cada vez . Cr iando uma

metá fora com a ide ia de “co lcha de re ta lhos” , aqu i os

re ta lhos são formados por cada d i re to r , e não

exatamente por cada f ragmento de imagem enviado .

Desassossego só não entra no ques i to “ f i lme

episód i co” , porque estes acabam sendo uma compi lação

33 Felipe Bragança em entrevista ao CineEsquemaNovo - http://cineesquemanovo.org/2012/entrevista-felipe-braganca-realizador-do-filme-desassossego/, acessado em 30.09.2011

33

de curtas met ragens sobre uma temát ica especí f ica ,

enquanto aqu i , mesmo tendo um di re to r na seqüência

de outro , os “micro- f i lmes” vão sendo sut i lmente

costurados pe la car ta da men ina chamada Lu isa , na voz

de F lo ra Dias , pe lo t raba lho sonoro (o qua l teve uma

maio r l ibe rdade de “ invad i r ” um f i lme no out ro) e por

f ragmentos das Bru jas , de Fe l i pe Bragança que d ia loga

este t icamente com os outros f ragmentos . É at ravés de

perguntas que estas “bru jas ” de ixam no a r , que

adentramos o un ive rso do outro d i re tor .

Todos os f i lme s d ia l ogam com a ca r t a esc r i t a que f o i o pon to de pa r t i da , e o l on ga me t r agem tem uma un i dade mesmo d ia l ogando com vá r i os gêner os c in ema togr á f i c os e e s t é t i c as d i fe r en te s . 34

Di fe ren temente também dos f i lmes episód i cos , há

em Desassossego uma grande in ter fe rênc ia por pa rte da

montagem vu lgo “d i reção gera l” (que embora e les não

usem este nome para se def in i rem, Ma r ina e Fe l i pe

acabam s im assumindo esta função) , poi s coube a esta

montagem def in i r o que de cada f ragmento entrar ia , o

que ser ia cortado e qua l se r ia a ordem idea l para que

se fosse poss í ve l const ru i r uma narra t i va UNA.

Mar ina e Fe l ipe já t inham uma parcer ia de co-

d i reção anter io r que se tornou mais conhec ida pe los

f i lmes A Aleg r ia , A fuga da Mu lher Gor i la que fo rmam

34 Marina Meliande em entrevista ao Blog do Polvo - http://blogpolvo.blogspot.com.br/2010/11/festival-de-brasilia-alegria-de-felipe.html, acessado em: data 29.09.2011.

34

uma tr i log ia eng lobando Desassossego – o f i lme das

Marav i lhas . Sobre a re lação de co-d i reção Fe l ipe

comenta :

Temos um d i á l ogo l on go . Ac ho que uma das co i sa s que temos como e s t ra té g ia p as sa pe l o fa to de eu se r também o r ot e i r i s ta dos f i lmes e e l a s e r a mon tadora . A í j á tem uma cer ta p i s ta sob re o j e i t o que a gen te t ra ba l ha . Eu tenho a tendên c ia a se r ma i s exc es s i v o e a Mar in a é ma i s organ i zada e o nosso p r oc es so de t r aba l ho passa por a í em todos os sen t idos , s e ja no desen vo lv imen to do r ot e i r o , no momento de p r opo r o je i t o de f i lmar ou na hor a da mon tagem. Func i onou desde os p r ime i r os cu r ta s a ss im . 35

Deste re la to podemos compreender um pouco a

organ ização que se deu em Desassossego , com Fe l i pe

f icando mais a cargo da pr ime i ra etapa (ao conve rsar

com os out ros c ineastas e cr ia r uma compreensão do

que poder ia v i r a ser o rote i ro) e Mar ina , na segunda

etapa , especi f icadamente colocando o rote i ro em prat i ca

na montagem.

Ambos def inem O Desassossego como um f i lme

co le t i vo , porém a deci são f ina l f icou a cargo dos doi s ,

o que s ign i f i ca que houve um f i l t ro e a lapidação por

parte de d i re tor/montador . A recepção dos out ros

d i re tore s part ic i pantes do proje to fo i de “surpresa ” .

A lguns se sent i ram “doídos” pe los cor tes e

t ransfo rmações que ocorre ram em seus f ragmentos , po is 35 Felipe Bragança em entrevista a Lucas Salgado, no site Adoro Cinema – http://mail.adorocine.com/cinenews /desassossego-abre-ii-semana-dos-realizadores-5041, acessado em 30.09.2011.

35

ta lvez esperassem pe lo f i lme epi sód ico ou então

espera vam part i c i par das etapas de ed ição ; out ros

ace i ta ram es tes cor tes como parte do processo . De

todo modo não houve uma comun icação com todos os

d i re tore s durante o proced imento da montagem. A

decisão coube apenas à Mar ina e Fe l i pe , o que faz

deste f i lme , um f i lme colaborat i vo e não co le t i vo .

Ao ass i s t i rmos o f i lme percebemos a “mão” de

Mel iande e Bragança fortemente colocada , a inda que

contaminada da propos ição esté t ica dos outros

d i re tore s . No entanto é esta mão fortemente co locada

que nos funde ao f i lme ao passarmos de f ragmento à

f ragmento . A sensação de corte de um di re tor para o

outro é apaz iguada pe la sonor idade e por esta costura

imagét ica que a d i reção gera l propõe .

22 DD O O OO L H A R P A R A O L H A R P A R A O PP R O C E S S O C O M O R O C E S S O C O M O EE S T É T I C AS T É T I C A

36

C a p i t u l o 2

O p r o c e s s o c om o um r e s q u í c i o d o p e r c u r s o d a s

i n t e r f e r ê n c i a s e d a s c o n t a m i n a ç õ e s d e u m a r t i s t a .

Como pa rte da proposta desta pesqu isa , aqu i serão

re la tados f ragmentos , ou gestos inacabados 36 de doi s

processos de cr iação art í s t ica onde possamos v i sua l i za r

a t ransformação de uma idé ia sol i tá r ia em a lgo

con junto, u t i l i zando para tanto: rascunhos de cadernos ,

conve rsas v ia e-ma i l , t ransfo rmações do rote i ro imagens

e etc .

São dois os t raba lhos : Com Meus Olhos de Cão ,

f i lme de colaboração ent re ator/perf ormer/in terp re te e

d i re tor ; e Nowhe re , f i lme c r iado a part i r de mater ia l

env iado por art is ta s conv idados . O pr ime i ro segue uma

l inha próx ima ao Ex - I s to e o segundo ao Desassossego .

36 Referência ao título do livro Gesto Inacabado de Cecília Almeida Salles.

37

C om M e u s O l h o s d e C ã o “O p r o c e s s o d e c r i a ç ã o é o l e n t o c l a r e a r

d a t e n d ê n c i a q u e , p o r s u a v a g u e z a , e s t á

a b e r t a a a l t e r a ç õ e s . O f i n a l p o d e s e r q u e

n a d a t e n h a a v e r c o m a ‘ m a q u e t e i n i c i a l ’ ,

p o i s o p l a n o n ã o t e m n a d a d a e x p e r i ê n c i a

q u e s e a d q u i r e n a m ed i d a em q u e v a i s e

e s c r e v e n d o a h i s t ó r i a . ” 37

Com Meus Olhos de Cão é um f i lme a inda em

desenvo lv imento que usa o l i v ro de mesmo nome, da

escr i to ra H i lda H i l s t , como es t ímu lo pa ra c r ia r uma

narra t i va de re lações entre as memórias e à obra do

composi to r erud i to Gi lberto Mendes . No l i v ro , o

personagem Amós Ké res , um matemát i co , desco la-se

pouco a pouco da sua rea l i dade como professor ,

mar ido e pa i e passa a v i ver cada vez mais em suas

memórias e em suas cr ia ções e quest ionamentos

meta f í s icos .

Na proposta deste f i lme , Gi lber to Mendes

person i f i ca Amós Kéres at ra vés de sua música nova 38 e

as suas memór ias pessoa i s se confundem com as

memórias do pe rsonagem Amós. Deste encont ro e

f r icção entre as exper iênc ias cr ia t i vas de Gi lberto

Mendes , o l i v ro de H i lda H i l s t e a d i reção, nasce o

f i lme que segue numa l inha mu i to próx ima ao do já

c i tado Ex - I s to , que também par te de uma l i te ra tu ra .

37 Bioy Casares, 1988 In: Salles, Cecília Almeida. Gesto Inacabado. FAPESP: Annablume. São Paulo. 1998. Pg. 31. 38 Manifesto Música Nova: http://www.latinoamerica-musica.net/historia/manifestos/3-po.html acessado em 03/07/2014. Publicado em: Invenção. Revista de Arte de Vanguarda, ano 2, Nº 3, junho 1963.

38

* * *

Para se aborda r este pro je to será necessár io

re la ta r um pouco a gênes is da gênes is a f im de

compreender o porquê da esco lha deste f i lme ter em

sua confo rmação o l i v ro Com Meus Olhos de Cão , de

H i lda H i ls t como um in te r locutor d i re to da presença

desta esc r i to ra e o composi to r Gi lber to Mendes como

ator -auto r-perf ormer . O encont ro aparentemente casua l

ocor re quase que num processo “míst i co” que me

conecta a este s do is a rt i s tas e va i ganhando

s imbo log ias durante o percurso e c la r i f icando a

temát ica e a rea l metá fo ra que o f i lme vem a propic ia r .

O pr oc es so que va i se dando ao l ongo do tempo, c am in ha de uma nebu lo sa fé r t i l em d i r e ção a a l guma forma de organ i zaç ão . A ob r a em c r i ação é um s i s tema em formação que va i ganhando le i s p r óp r i a s . ( . . . ) Mu i t o s a r t i s ta s de sc r ev em a c r i a ção como um perc u r so do caos ao cosmos . Um acumu lo de id é ia s , p l anos , pos s ib i l i dades que vão sendo se l ec i onados e comb i nados . As comb in ações são por sua vez , t e s t adas e ass im opções são fe i t as e um ob je to com or gan i z ação p r óp r i a va i su r g in do . O ob je to a r t í s t i c o é cons t r u í do por ess e anse i o por uma forma de organ i za ção . 39

D a G ê n e s e – B a l a d a d e H i l l é

Meu pr ime i ro encontro l i te rár io com H i lda H i l s t

(H i l lé ) , aconteceu em Cur i t iba no ano de 1999 , aos 18

anos, quando l i pe la pr ime i ra vez a sua peça O

Verdugo . Foi a pr ime i ra peça de dramatu rg ia femin ina

39 SALLES, Cecília Almeida. Gesto Inacabado – processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 1998. Pg. 33.

39

que v i (nes te tempo eu andava indagando jun to às au las

teór icas da Profª Drª Margar ida Rauen , onde estar iam

as grandes pensadoras do teat ro : d i re to ras , d ramaturgas

e etc) , e sem dúv ida , o fa to de eu ter me depa rado

com Hi lda nesta época expl ica , de uma ce rta mane i ra , o

meu percurso ar t í s t i co . Não que eu houvesse gos tado

da peça em pr inc íp io , mas a lgo, ou melhor d izendo

a lguma “co isa ” 40 de “s ign i f icado incomensu ráve l 41” me

chamou a atenção a l i , ao “encont rar ” esta mulher e

a inda me chama até hoje .

Desde esta época comece i a propor pro je tos que

houvessem a obra de H i lda H i l s t in tegrada , como uma

obsessão ou uma g rande tenta t i va de “parcer ia” . Em

2002 , mude i -me para São Pau lo e comece i então a

fazer uma pesqu i sa de in ic ia ção c ien t í f ica dent ro do

Arqu i vo M iroe l Si lve i ra 42, subvencionada pe la FAPESP,

sobre a dramaturg ia femin ina que passara pe la censu ra

entre as décadas de 30 à 7043, me aprox imando de

outras d ramatu rgas mas me encontrando a inda mais

com o t raba lho de H i lda , com quem comece i a

estabe lecer conta to v ia e-ma i l . O poeta José Lu is Mora

Fuentes , que morava em sua casa , era nosso

40 Hilda utiliza inúmeras vezes a palavra “coisa” em seu texto, e cria um significado quase próprio à ela, em Tu Não Te Moves de Ti, no conto Tadeu “a coisa” tem significado religioso/metafísico: “o que faz com que a coisa seja a coisa?”. 41 A frase, “invadido de significado incomensurável” faz parte do livro Com Meus Olhos de Cão quando Amós Kéres tem seu insight metafísico. Pg. 22. 42 O Arquivo Miroel Silveira está localizado na biblioteca da ECA / USP e tem como acervo milhares de peças de teatro que passaram pela censura durante as décadas de 30 à 70. O nome do Arquivo se deve ao doutoramento do teatrólogo e Profº Miroel Silveira, o primeiro a utilizar este material como base de pesquisa. http://www.eca.usp.br/ams 43 Almeida Prado, Thaís de. A presença feminina no teatro paulista - 1930-1970. um estudo a partir do Arquivo Miroel Silveira. Iniciação científica 2003-2004.

40

“mensage i ro” v i r tua l à época , po is H i lda já estava bem

doente , e como numa br in cade i ra de sobrenomes e le

d iz ia que eu deve r ia i r logo v i s i ta r “minha pr ima mai s

ve lha” .

* * *

S o b r e H i l l éS o b r e H i l l é

“ É u ma c o i s a d a v i d a i n t e i r a . E u f i z m i n h a

o b r a p o r c a u s a d o m eu p a i . E u q u e r i a

a g r a d a r o m e u p a i . Qu e r i a q u e um d i a e l e

d i s s e s s e q u e e u e r a a l g u ém . É i s s o ” . !!

H i l d a H i l s t , nasceu em Jaú , aos 21 de Abr i l de

1930 . Nasceu como Hi lda de A lme ida Prado H i ls t . Seu

pa i , Apo lôn io de Alme ida Prado H i ls t era também poeta

e a lgumas vezes ass inava como Lu ís Bruma 45 em seus

art igos para os j orna i s . Casou-se com Bedeci lda Vaz de

Cardoso , a contra gos to da famí l ia como conta H i lda :

Meu pa i e mi n ha mãe t i ve r am uma pa i x ão daque l as de per de r mesmo o senso . Meu pa i e ra um homem br i l han t e , esc r e veu mu i ta s co i sa s , pub l i ca va t ex tos em jorn a i s (à s v ez es ass ina va Apo lôn i o e ou t r as Lu ís Br uma ) . O Mar i o de Andrade e sc r ev ia pa r a e le , mas de sde o i n íc i o a min ha mãe t i n ha p rob l emas com a fam í l i a de l e ; n aque la época um A lme i da Prado só s e casava com um A lme ida Pr ado para não d i v i d i r a her ança . E l es

44 Diniz, Cristiano (org). Das Sombras, entrevista, 1999. In: Fico Besta quando me entendem – entrevistas com Hilda Hilst. Editora Azul. São Paulo. 2013 Pg. 191. 45 Textos e cartas de Luis Bruma: http://www.angelfire.com/ri/casadosol/apoltext.html acessado em 27 de junho de 2014.

41

acabar am se sepa rando quando eu era bem pequena . !"

Com a separação de seus pa is , H i lda se mudou

com a mãe para Santos (na rua Vicente de Carva lho

nº32) em 1932 onde f icou até 1937 . Neste mesmo ano ,

Bedeci lda resol ve fazer um mapa ast ra l da f i lha e o

ast ró logo a le rta :

Possu i e sp í r i t o rebe ld e , obs t i nado , n ão admi t e conse l ho , é a r r ogan te e de d i f í c i l ace sso , amando a lu ta a t é o pon to de p ro vocá - l a só pa r a t e r o p ra ze r de venc er . Demor ada em exc i t a r -s e , c omo em apaz ig ua r - se , gua rda por mu i t o t empo rancor es , e é de d i f í c i l r econ c i l i a ção . !"

H i lda conta em entre v i s ta a Ca io Fernando Abreu ,

que sua mãe f icou mui to aba lada com as pa lav ras do

ast ró logo , mas de uma ce rta mane i ra esta H i lda é uma

das facetas da mulhe r que conhecemos at ravés de seus

l i v ros .

Em 1937 e la se muda para São Pau lo para estudar

no in ternato de Santa Marce l ina de onde a inda quando

cr iança ge rmina duas das temát icas pr inc ipa i s que

levará por toda a sua obra , “o sagrado” e “Deus” . Em

1948 , ent rou para a Facu ldade de Di re i to da

Un ivers idade de São Pau lo (Largo São Francisco) ,

formando-se em 1952 .

46 Diniz, Cristiano (org). Das Sombras, entrevista, 1999. In: Fico Besta quando me entendem – entrevistas com Hilda Hilst. Editora Azul. São Paulo. 2013i Pg. 189. 47 Ao perguntar quem é Hilda Hilst ela lembra deste mapa astrológico feito pela mãe. Diniz, Cristiano (org). Deus pode ser um flamejante sorvete de Cereja, conversa com Caio Fernando Abreu, 1987. In: Fico Besta quando me entendem – entrevistas com Hilda Hilst. Editora Azul. São Paulo. 2013 Pg. 95

42

H i lda c resceu sem a imagem do pa i por pe rto , sua

const rução pate rna acontec ia a part i r de memórias que

Bedeci lda conta va e da lembrança de a lguns poucos

encontros seus com o pa i . Apolôn io fo i d iagnost icado

aos 38 anos com esqu izof ren ia sendo in ternado em

segu ida . A esqu izof ren ia do pa i fo i um fa to que levou

H i lda a tentar compreender a loucura (out ra se suas

temát icas importantes) . E la passou a esc rever poes ia

na tenta t i va de d ia logar com e le .

Meu pa i Apo lôn i o de A lme i da Pr ado H i l s t , e ra poe ta e en sa ís t a . A ss i na va com o pseudôn imo de Lu i s Br uma e f o i uma da s p r ime i r as pe ssoas a f a l a r de coopera t i v i smo no Br as i l . E r a f i l ho de um f ra nc ês de L i l l e que s e casou com uma f az ende i r a pau l i s ta da fam í l i a A lme ida Pr ado . Nos es c r i t o s que mi n ha mãe guar dou de l e e me deu para l e r , se in te r r ogou sob re o que acon te ce r i a à a lma na l oucu r a . Tra g i c amen te , ma i s t a rde , submerg iu a l oucu ra . E sc r ev e r é en tão pa ra mim sen t i r meu pa i den t r o de mim , em meu cor ação , me en s in ando a p en sa r com o cor ação como e l e fa z ia , ou a te r emoções com l uc i de z . 48

En t re 1950 e 1955 seus pr ime i ros poemas são

pub l icados , e em 1956 va i para a França onde f ica

durante 6 meses . Uma de suas histór ia s mais “h i lá r ias ”

é sua tenta t i va de encontro com o ator Mar lon Brando.

E la conta que começou a namorar Dean Mar t in , para

conhecer Brando. Um dia resol ve bate r na porta do

quarto de hote l em que o as t ro esta va hospedado

48 Diniz, Cristiano (org). Hilda, estrela Aldebarã, 1978. In: Fico Besta quando me entendem – entrevistas com Hilda Hilst. Editora Azul. São Paulo. 2013 Pg. 53.

43

a legando se r uma jorna l is ta . Quem atendeu a por ta fo i

o ato r f rancês Chr is t ian Marquand (seu af fa i re à época)

que em segu ida sa i pa ra chamar Brando. Quando

Mar lon Brando chega , de robe de seda , e la ins is te em

entrar no quarto pa ra “conve rsar” , ao que Brando

responde “só porque você é bon i ta você acha que pode

acordar um homem a esta hora da noi te? 49” .

Quando Hi lda vo l ta ao Bras i l , músi cos como

Adon i ran Barbosa , José Anton io Resende de Alme ida

Prado (pr imo de H i lda ) e G i l b e r t o M e n d e s musicam

a lgumas de suas poes ias . Neste momento se dá o

p r i m e i r o e n c o n t r o a r t í s t i c o e n t r e “ n o s s o s ”

G i l b e r t o e H i l d a . E le compõe Trova I e Trova XV , em

1961 a pa rt i r do poema Trovas de mui to amor para

uma amado senhor , de H i l s t .

H i lda , depoi s de v i ver in tensamen te “os homens” , as

festas da a l ta sociedade pau l is tana e ter suas

aventuras na Europa , decide-se em 1966 (ano em que

seu pa i mor re ) , mudar para a Casa do So l 50, para f i car

rec lusa e focar em sua l i te ra tu ra , como e la mesma

re la ta :

Quando eu e s ta va com 33 anos , um quer ido am igo que mor r eu , Car l os Ma r ia de Ara ú jo , poe ta po r t uguê s me deu um l i v r o do Kazan t i z ák i s : “Ca r t a p a ra E l Gr eco ” . Eu o l i e f i q ue i des lumbrada . Er a um homem que f i ca va lu t ando a v i d a toda a t é t e rm i na r de

49 Diniz, Cristiano (org). Hilda, estrela Aldebarã, 1978. In: Fico Besta quando me entendem – entrevistas com Hilda Hilst. Editora Azul. São Paulo. 2013. Pg. 148. 50 Sitio que Hilda morou desde seus 33 anos até o fim de sua vida, próximo à Campinas e que hoje é o Instituto Cultural Hilda Hilst.

44

uma mane i r a mar av i l hosa , esc r e v endo um poema de 33 mi l ve r s os , “ A Nova Od i s sé ia ” , onde lu t ava com a ca rn e e com o esp í r i t o o tempo todo . E l e des e ja va ao mesmo tempo ess e t rân s i t o daqu i p ra l á . Er a o que eu quer ia : o t râ ns i t o com o d i v i n o . E também o t ra ns i t o com o homem e toda s as suas mar av i l has , o gozo f í s i c o , a b e l ez a f í s i ca do ou t r o . Era um con sumi smo meu abso lu t amen te te r r í ve l , p or que of end ia mu i t o as p es soa s . Eu me impre ss i one i tan to com a camin hada des se homem admi rá ve l , qu e reso l v i i r mor a r num s i t i o . Ac he i que , l on ge e de c er ta f orma me en f i a ndo também (por que eu e ra uma mu l he r mu i t o in t e r es san t e ) , du ran t e um cer to tempo bem longo eu pude ss e t r aba l ha r , es c re ve r . E f o i mar av i l hoso . Fo i j us tamen te n es se lu ga r , nes se s i t i o , que eu , l on ge de toda s aque las in vasões e das min has p r óp r ia s von tades e da m in ha gu l a d ia n te da v id a , pude es c re ve r o que esc re v i . #$

Lá , ent re 1967 e 1968 escre ve se is de suas peças

de teat ro enquanto const ró i a Casa da Lua52, onde

passa a lgumas temporadas e f ina l i za a peça As Aves

da Noi te . Em 1970 pub l ica o seu pr ime i ro l i v ro de

f icção F luxo-F loema , um di v iso r de águas em sua

l i te ra tu ra .

* * *

Foi F luxo-F loema então que , na minha pr ime i ra

d i reção teat ra l , . . . E o Meu Secador de Cabe los me

Comeu Nesta Madrugada (2003) , t rouxe para ser

t raba lhado em cena cr iando uma dramatu rg ia 51 Diniz, Cristiano (org). Um dialogo com Hilda Hilst, 1989. In: Fico Besta quando me entendem – entrevistas com Hilda Hilst. Editora Azul. São Paulo. 2013 52 Casa que Hilda Construiu no litoral paulista, em Massaguaçu, próximo a Caraguatatuba. Ainda em vida Hilda acabou vendendo a casa quando passou dificuldades financeiras.

45

in te rtex tua l 53 que mesc lava f ragmentos da peça Do

Gabinete de Joana , de Rubens Rewa ld ; ao conto A

Quin ta H istór ia , do l i v ro Fe l i c i dade Clandest ina , de

Clar ice L i specto r e a depoimentos de neuró t icos

anôn imos . E ram quatro at r izes em cena , cada uma com

seu monó logo ag indo s imu ltaneamente , suas vozes se

sobrepunham, hora cr iando sent idos lóg icos , hora

cr iando sent idos sonoros/sensór ios . As sonor idades que

eram produz idas a part i r das vozes ecoadas ao mesmo

tempo, e ram ma is essencia i s do que a compreensão do

tex to em s i (note que nesta época eu a inda não hav ia

adentrado à obra de Gi lberto Mendes , mas conhecia

mu i to do t raba lho de John Cage e d isc í pu los e

compreend ia a músi ca como a lgo que pudesse abarcar

o som que nasce de um movimento no espaço , de um

susp i ro , o som das pa la vra s em si , de obje tos em

funcionamento , ru ídos : l iqu id i f i cadores – hav ia um na

peça - e etc) . A tenta t i va era a de estabe lece r uma

musica l idade , a inda que não fosse melód i ca . I s to de

uma certa mane i ra , se aprox ima da proposta de

l i te ra tu ra de H i lda H i l s t , que cla ramente br inca com a

sonor idade , com os r i tmos e com o própr io sent ido das

pa lav ras . Em seus tex tos , pe rdemos a noção de

narrador ún ico, poi s e le se mistu ra com os outros

personagens . Como em um sistema esqu izof rên i co , as

vár ia s vozes s imu ltaneamente aparecem durante o f luxo 53 O termo foi trazido por Julia Kristeva ao falar da obra de Bakhtin. De uma maneira resumida, podemos dizer que intertextualidade é uma combinação de fragmentos textuais que formam um outro texto. In Kristeva, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo. Ed. Perspectiva. 1974

46

da escr i ta , a qua l não possu i pontuação clá ss i ca ,

cr iando um cer to caos, se nos apegarmos apenas a

histó r ia nar rada .

Quando me per gun tam por que e sc r evo de ssa f orma que a s p es soa s não en tendem, e por que é tão comp lex o tudo en tão eu d igo , mas , meu Deus , é o p r oce sso da v i da que é tão comp lex o ! Eu não saber i a s imp l i f i ca r ess e p r oce sso par a s e r ma i s comp reens í ve l , é o meu p r óp r i o p r oc es so d i f i c u l t oso de ex i s t i r que f az com que venha e ssa ava l anc he de pa la v ra s , umas as s im bar r oc as dema i s , e que tudo s e ja mis t u rado . Porque eu acho que a v id a t r an sbor da , n ão ex i s te uma x íc a ra a r r umada par a con te r a v i da ! 54

Na peça , a lém da pa la vra , a dança , a músi ca e a

i luminação e ram bastante presen tes e faz iam par te da

composi ção cên i ca , como a ta l “ x ícara que t ransborda”

a qua l H i lda usa como metá fora . Em a lguns momentos ,

enquanto duas atr izes conta vam suas nar ra t i vas

s imu ltaneamente , outras duas ou dançavam, ou

cantavam, ou faz iam a lguma ação que era própr ia de

sua personagem, mas que não condiz ia necessa r iamente

com a fa la das out ras duas . O jogo e ra a poss ib i l idade

do púb l i co poder esco lhe r acompanhar a nar ra t i va de

uma ou de outra at r iz , ou então o lhar a composição

cên ica como um todo e absorver como lhe aprouvesse .

O som não sub l i n ha , nada t em a ve r com o sen t i do do t ex to ; gua rda s eu p róp r i o sen t i do . Da í poder á r esu l ta r , p e l o con t ra r i o ,

54 Diniz, Cristiano (org). Hilda Hilst, uma conversa emocionada sobre a vida, a morte, o amor e o ato de escrever, 1986. In: Fico Besta quando me entendem – entrevistas com Hilda Hilst. Editora Azul. São Paulo. 2013 Pg. 88

47

o r ea lc e de um te rc e i r o sen t ido . À mane i r a do c in ema do Godar d , do su r rea l i smo, nada tem a ve r com nada . Porém tudo de ve r á conc r e t i za r -s e na ma i or un idade na cabeça do esp ec tador . 55

Para este t raba lho eu hav ia me baseado quanto

pesqu isa esté t ica , na Teor ia do Caos , ma is prec i samente

na questão da “s imu ltane idade” , mu i to in f luenciada pe lo

pe lo l i v ro Caos / Dramatu rg ia de Rubens Rewa ld . Ma l

sabia eu que a questão do Caos, esta r ia também

presente nas par t i tu ra s musi ca i s de a leato r iedade e

casua l idade de G i lber to Mendes .

. . . E o m e u s e c a d o r d e c a b e l o s m e c o m e u . . . E o m e u s e c a d o r d e c a b e l o s m e c o m e u

n e s t a m a d r u g a d an e s t a m a d r u g a d a , e ra o t raba lho f ina l de uma

disc ip l ina , d i reção I I , o r ien tada por Anton io Araú jo e

pe lo própr io Rewa ld que t raz ia entre suas d inâmicas o

processo co laborat i vo entre d i re tor e ato res . Este

pr ime i ro t raba lho como d i re tora fo i bastante importante ,

poi s lá comece i a cr ia r a lgumas est ra tég ias pessoa is

para t raba lha r em colaboração com as atr izes – as

cenas , imagens e tex tos t raz idos , sa l vo F luxo-F loema ,

foram propostos por e la s a part i r de pe rguntas e

est ímu los que eu jogava à cada uma . F lav ia Couto ,

inc lus ive , que era at r iz desta peça é a proponente e

co-d i re to ra do proje to Nowhere , que será t ra tado no

próx imo capí tu lo .

55 Mendes, Gilberto. Uma Odisséia Musical: dos mares do sul expressionista à elegância pop/arte déco. Editora EDUSP, São Paulo. 1994. Pg. 154

48

É in t e re ss an t e no ta r que cer ca de ses sen ta a s e ten ta por c en to dos d i á l ogos da p eça f oram c r ia dos pe l os p r óp r i os a tor es ( . . . ) . Ness e sen t ido , o t ra ba l ho do au to r - esc r i t o r f o i ma i s de comp i l aç ão e amar ra ção dramá t i ca do que p r op r i amen te de c r i aç ão . 56

* * * No traba lho segu in te em que exerc i a função da

d i reção, a ins ta lação . . .Mas Não , de ixe i H i lda H i ls t

“descansando” um pouco para , ao lado da at r iz Mar ia

He lena Chi ra me vol ta r a questão do Caos nos

baseando no pr inc í p io de a leator iedade e causa l i dade .

Ut i l i zamos como sta rt poin t c r ia t i vo a peça Am I to go

or I w i l l say so , de Gert rude Ste in , e sc r i tora e

dramaturga cu jos tex tos buscam mais a sonor idade do

que os s ign i f i cados das pa lav ras , fazendo uma

corre lação de pa lav ras que , combinadas sonoramente ,

cr iam sent idos que se t ransformam. Pensávamos

prat icamente tudo jun tas , o espaço, os e lementos do

espaço insta la t i vo , as fo rmas de in teração do públ ico e

etc . . . .Mas Não fo i então um traba lho ext remamente

co laborat ivo que pre v ia uma mudança da insta lação e

da perf ormance a cada lugar que fossemos .

* * *

Vo ltando à re lação com Hi lda H i l s t , desde que

estabe lec i conta to com Mora Fuentes f ique i sempre na

promessa de i r v i s i tá - la na famosa Casa do Sol . No ano

segu in te porém, em 2004 H i lda fa lece . F ique i mu i to 56 Rewald, Rubens. Caos/Dramaturgia. Editora Perspectiva; FAPESP. São Paulo, 2005. Pg 42

49

decepc ionada comigo mesma na época . Esta va em

Cur i t i ba e por inc r í ve l que pareça hav ia sonhado com H .

H i ls t na no i te anter ior , um sonho es t ranho onde e la ,

que se d iz ia minha t ia avó, v i v ia no ú l t imo andar de um

préd io pequeno sem e levador na rua Vesúv io (não se i se

ex is te essa rua) , no ba i r ro do Para íso . O préd io t inha

cachor ros por todos os lados , e inc lus i ve a lguns dos

andares parec iam fe i tos para e les , porque eram a

metade do tamanho normal . Ao chegar na porta do

apartamento de H i lda , que t inha um portãoz inho ba ixo ,

e la d iz “aqu i é melhor você não passa r” . Ao acordar

hav ia um e -mai l de Mora Fuentes que d iz ia “Nossa

quer ida amiga acaba de fa lecer ” . Pe las teor ias e

crenças de H i lda eu deve r ia acred i ta r que naque le

sonho e la ter ia rea lmente me fe i to uma v is i ta , onde e la

era esco l tada por seus cães : os cães na mito log ia

grega eram cons iderados an ima i s ps icopompos , ou se ja

condutores das a lmas depo i s da morte 57. H i lda

acred i ta va em vida após a mor te :

Eu r ev i o Ca i o (F e rn ando Ab reu ) no d ia da mor te de le . E l e mor r eu à uma e ve i o s e de sped i r às dez da no i t e . A gen t e t i n ha comb in ado i s s o . E l e v e i o com um cacheco l que t i n ha uma f i ta v e rme l ha . A gen te t i n ha comb in ado : o ve rme l ho ia s i gn i f i ca r que es ta va tudo bem. Eu ab r ac e i o Ca i o mu i t o e d i s se : ‘ Nossa , c omo você e s tá bon i t o ! Es t á j o vem ! ’ Ma s n i nguém ac r ed i t a . Fa l am : A H i l da é uma bêbada , uma a lc oó la t ra , e s t á s empre

57 Diniz, Cristiano (org). Das Sombras – entrevista 1999. In: Fico Besta quando me entendem – entrevistas com Hilda Hilst. Editora Azul. São Paulo. 2013 Pg. 203

50

l ouc a . É ass im que f a l am . 58 Então em 2006 le io pe la pr ime i ra vez Com Meus

Olhos de Cão , e eu começo a entender esta H i lda que

quest iona a morte , a v ida post -mortem , ressa l ta a v i são

dos outros sobre a loucu ra e re toma seu pa i que “se

in te rrogou sobre o que acontece r ia à a lma na loucura . ”

Este l i v ro me marca de a lgum modo. Ta lvez pe la idé ia

do Cão que olha tudo de uma mane i ra “apa le rmada” ,

como Hi lda mesmo expl ica (aba ixo) ; ta lvez pe lo l i v ro

começar com uma f ra se que desmis t i f ica Deus; ta lvez

por se t ra tar da loucura . O fa to é que o l i v ro f i ca

“enta lado na minha ga rganta” desde então .

Deus . Eu desa f i e i -O mu i ta s ve ze s em meus l i v r os como uma b l as fêm ia p a ra ve r se de repen te da va um fu r or Ne le e E l e d i z i a ; Es t á bem, e s tou por aqu i . ( . . . ) Por i s so mi n ha ú l t ima nove l a c hama -se Com Meu s O lhos de Cão , por que no f undo , por ma i s que você le i a , es tude , p en se , c r i e e t enha luc i d ez , voc ê o l ha o mundo com os o l hos de um cão , com o mesmo o l ha r a ss im apa l e rmado , me i o aguado , como os an ima i s t e o l ham . 59

No mesmo ano de 2006 fu i conv idada à d i r ig i r uma

sér ie de pe rfo rmances pa ra o proje to Homolog ia s : a

in te r- re lação das arte s no nasc imento da

mode rn idade" 60, no Cent ro Cu ltu ra l CPFL de Camp inas ,

sob a cu rador ia de Henr ique L ian . Em uma destas

58 Ibidem. Pg. 204 59 Diniz, Cristiano (org). Hilda Hilst, uma conversa emocionada sobre a vida, a morte, o amor e o ato de escrever, 1986. In: Fico Besta quando me entendem – entrevistas com Hilda Hilst. Editora Azul. São Paulo. 2013 Pg. 91 60 Projeto com coordenação de Henrique Lian, que acontecia em módulos mensais no Espaço Cultura CPFL de Campinas.

51

perfo rmances , cu ja temát ica era a Pop-Arte , L ian rege a

composi ção Motet em Ré Menor ou Beba Coca -Cola

(1967) , de n inguém menos que G i l b e r t o M e n d e sG i l b e r t o M e n d e s , a

part i r do tex to de Décio Pignata r i . “Es tava então EU, em

Camp inas , pe rto da Casa do So l , Com Meus O lhos de

Cão apa le rmada ao som de um arroto em Beba Coca-

Co la” . Fo i a pr ime i ra vez que reg is t re i G . Mendes em

minha memória e f ique i des lumbrada .

* * *

No ano que se segue (2007) part ic i pe i de do is

pro je tos que cont inham a lgum texto ou re fe rência à

obra de H i ls t , um era O Expe r imento do Acordo61, um

proje to a l tamente co le t i vo , i s to é , não hav ia uma

di reção para as expe r iênc ia s que i r iam ocorre r , e todas

as art is tas envo l v idas propunham mater ia l art í s t ico a

cada d ia e randomicamente . O traba lho t inha uma

espéc ie de coordenação , fe i ta por Dedé Pacheco e lá

fu i conv idada a escre ver uma carta ao púb l i co .

Usávamos mui to a pa lav ra “encontro” e também

“exper iênc ia " Escre vo então um i n te rtex to ent re o conto

O Unicórn io , de H i l s t (onde uma mulhe r começa a se

t ransfo rma r em um un icórn io , pouco a pouco) , e a peça

Peça d idá t ica de Baden Baden Sobre o Acordo, de

Berto ld Brecth . Sobre a expe r iênc ia De i se Pacheco

descre ve : 61 Experimento do Acordo – escritura sobre o aprendizado na tempestade, foi um projeto de mestrado realizado por Deise (Dedé) Abreu Pacheco, baseado em experimentos sobre a peça didática de Brecht O Acordo.

52

Se “o modo per f ormá t i c o da ex p er i ê nc i a ” , pa ra Tha ís , t omou a f orma da queda no cor po no espaço t r i d imens i ona l do Exp er imen to , sua queda no corpo , no espaço b id imen s i ona l do t ex to l i t e rá r i o , p or sua vez , le vou -a a “ sa cud i r ” o s i gno da i n t r ans ig en te a f i rmação da i den t id ade (o s u je i t o re i f i cado por s eu “pape l soc ia l ” ) . (… ) Tha í s “sa cud iu ” o s i gno ao imp lemen ta r - l he o vôo p raz en te i r o , que gos ta de voar “ t odas a s no i t e s por a í ” e depo i s pousa r na “ á r vore ma i s bon i ta da p ra c in ha ” 62. É a r edução do p róp r i o vôo a sua menor g randeza : não é o vôo sob r e o A t lâ n t i c o , n ão é o vôo de um fogue te pa r a Lua , não é o vôo do p rogr esso te cno lóg i c o , n ão é o vôo do sonho revo lu c i oná r i o em massa ; é o vôo s em pagamen to nem fun ção merc an t e , é qu iç á o vôo do p en samen to do f l an êu r ( ! ) , qu e perc ebe sob r e a á r vo re da p ra c in ha “a re l ação dos homens en t r e os homens ” e ten ta de scob r i r “a qu i l o que os move . 63

O outro t raba lho, era A Adormecida que mordeu a

maçã ve rde e não co locou o dedo na roca 64, uma

perfo rmance dentro da in s ta lação Tu lse Luper

Su i tcases 65, de Peter Greenaway onde propunha um l i v ro -

d iá r io f icc iona l em processo abe rto ao públ i co e t inha

como ponto de par t ida Com Meus Olhos de Cão , O

Un icórn io , e car tas de minha avó materna , Esthe r

62 O trecho faz citação ao conto Unicórnio de Hilda Hilst. 63 Pacheco, Deise Abreu. Experimento do Acordo – escritura sobre o aprendizado na tempestade Volume 1 e 2. Tese de Mestrado. Pg. 286 V.2 64 O diário da Adormecida que… pode ser encontrados no blog http://aadormecidaque.blogspot.com e o Texto sobre o processo de criação encontra-se na sessão de anexos. 65 Tulse Luper Suitcases é um projeto multidisciplinar de Peter Greenaway que continha três longas metragens, a exposição 92 Maletas e uma VJing performance. É possível encontrar mais informações no site www.tulselupernetwork.com. Em As tramas do cinema de Peter Greenaway - processos de criação em The Tulse Luper Suitcases, dissertação de mestrado de Eduardo Cunha Bonini ele revela o processo criativo de Greenaway para Tulse Luper.

53

Pacheco de A lme ida Prado.

Obviamente que por se t ra tar de uma escr i ta

perfo rmát ica acabe i desenvo lvendo uma esc r i tu ra própr ia

que d ia logava com a temát i ca da expos ição (um s i te

spec i fc 66) , e com o l i v ro Com Meus Olhos de Cão e

Unicórn io de H i lda que me contaminaram de a lgum je i to ,

fazendo ass im re ferênc ias e c i tações desmembradas

como o exemplo a segu i r onde há uma ci tação ao Com

Meus Olhos de Cão ; segu ido de uma re ferencia do

espaço expos i t i vo de Pe ter Greenaway, onde eu in terag ia

perfo rmat icamente e por f im uma a lusão ao f i lme A

Bar r iga do Arqu i te to , também de Greenaway.

“A lg uém uma vez fa l ou dos o l hos do cão .

Mas já não me l embr o o que fa l a ram .

Acho que era sob re um homem que não s e s en t i a ma i s em

seu p r óp r i o cor po . Como se o que o corpo f i z es se não

t i ve ss e ma i s sen t ido . Mu l he r , f i l ho s . . .

e l e gos ta va de f i c a r no p r os t í bu l o l endo . O luga r ma i s

t ra nqü i l o p a ra l e r n a par te da manhã . Acho que e l e também

t in ha um am igo que amava uma por ca .

Er a c asado com e l a .

A por ca o compr eend ia e e le compr eend i a a por ca .

Ambos er am po l íg onos .

Acho que t i n ha uma ár vor e na h i s t ó r i a . Uma ár vore v e l ha

ta l v ez . Não me lembr o ao cer to o que acon tec i a e nem a

re l ação do cão com tudo aqu i l o . ou se r i a uma cade la ?

66 O termo site specific (sítio específico) faz menção a obras criadas de acordo com o ambiente e com um espaço determinado. Trata-se, em geral, de trabalhos planejados em local certo, em que os elementos dialogam com o meio circundante, para o qual a obra é elaborada.

54

Aqu i a por ca e o cão dormem .

As maçãs apodre cem e os f i g os apodre cem .

E a l gu ém um d ia mor r eu envenenado por f i g os . Ou e le

ac hou que es t ava sendo en venenado e mor r eu ” . "%

* * *

Após o proje to A Adormecida que . . . , pe rmaneci com

“O Cão” , remoendo em minha cabeça e em minhas

anotações , sempre pensando em como transpor para o

cinema um l i v ro como este . “Amós Kéres , 48 anos ,

matemát i co , não fo i v i s to em lugar a lgum” . "&

69

Ent re 2008 e 2009 de ixe i guardado o proje to de

f i lme na gaveta e pa rt i c i pe i de t rês res idências

art í s t i cas com o Cole t i vo Cor ros ivo : uma na Casa das

Ca lde i ras , onde abordava a ancest ra l idade e a

imigração dos ant igos t raba lhadores das Indust r ias

Matarazzo ; outra na Sa l ine Roya le d ’A rc e t Senans , na

67 Almeida Prado, Thaís de. A Adormecida que Mordeu a Maçã Verde e Não colocou o dedo na Roca. (2007) Fragmento 41. In http://aadormecidaque.blogspot.com texto também anexado aqui à esta dissertação. 68 Trecho do texto: Hilst, Hilda. Com Meus Olhos de Cão. Editora Globo, São Paulo. SP. 2001. Pg. 66 69 “O Homem debaixo da árvore”, referência direta à Com Meus Olhos de Cão, e “a mulher unicórnio” referência ao conto Unicórnio. Fragmento do caderno de anotação pessoal de Thais de Almeida Prado, fevereiro de 2010.

55

França onde desenvo lvemos um proje to sobre r i tua is de

sa l ; e a terce i ra no Hangar .ORG, na Espanha onde

desenvo lvemos um workshop e cr iamos co le t i vamente

uma sér ie de in te rvenções urbanas .

Vo ltando ao Bras i l e meio pe rd ida e sem rumo,

encontro com Rudá K . Andrade ( f i lho de do c ineasta

Rudá Andrade) que me conv ida para a judá- lo em uma

insta lação sobre a Pat r í c ia Ga lvão (Pagu) , sua avó , e

dar um workshop no lugar de le em Santos . Cr io então

uma proposta de of i c ina de v ídeo-perfo rmance onde

desenvo lvemos um vídeo colaborat i vo com os

part ic i pantes , que se baseava em pontos hi stó r i cos da

v ida de Pagu , na f ra se “a musa medusa” , e em pontos

esté t icos propostos por Maya De ren . O proje to envo l v ia

este workshop; uma in sta lação na expos ição Vi va Pagu70;

e entrev i s tas com pessoas que conv i veram com Patr í c ia ;

o que me fez f reqüentar Santos por mai s de um mês e

me reaprox imou da cidade que eu ia apenas quando

cr iança . Em uma desta s entre v is tas , fomos conversar

com nada menos que G i l b e r t o M e n d e sG i l b e r t o M e n d e s e é a í que C om C om

M e u s O l h o s d e C ã o , f i l m e M e u s O l h o s d e C ã o , f i l m e começa a sa i r novamente

de seu proced imento de engavetamento .

* * *

70 Projeto Viva PAGU http://www.pagu.com.br/blog/palavra-de-pagu acessado em 27/06/2014.

56

G i l b e r t o M e n d e s c o m s e u s o l h o s d e C ã o “ A s v e z e s e u e n t r a v a em c r i s e . J á e s t a v a

f i c a n d o v e l h o , c o m ma i s d e t r i n t a a n o s , e n a d a

h a v i a a c o n t e c i d o a i n d a p a r a m im , n a m ú s i c a .

C o n t i n u a v a u m i l u s t r e d e s c o n h e c i d o . P e n s a v a , p o r

a l g u n s m om en t o s , em d e s i s t i r d a q u e l a i d é i a d e

s e r c o mp o s i t o r . P r a q u e , s e n i n g u ém o u v i a o q u e

e u c omp u n h a ? M a s n ã o c o n s e g u i a , n ã o d e v i a

d e s i s t i r . ” 71

Gi lber to Mendes , nasceu “quando a inda nem mesmo

rád io hav ia ” 72, na cidade de Santos no d ia 13 de

outubro de 1922, ano da Semana de Arte Mode rna de

São Pau lo , que o in f luencia r ia – “eu também era um

entus iasta da arte moderna (a f ina l nasc i em 1922) ” 73 – e

ano em que anarqu istas , fu tu r is tas , comun i stas ,

mi l i ta re s , can iba is , dada ístas , todos jun tos i r iam mudar

o pa ís . 74 Seu pa i era méd ico, e f a leceu em 1928 o que

fez com que Gi lbe rto se mudasse com sua mãe e os

i rmãos pa ra São Pau lo . São Pau lo era então uma

pequena cidade indust r ia l , e fo i ne la que os ouv idos de

G. Mendes se aguçaram pa ra a música erud i ta . Pa ra se

consola r da morte do pa i , G i lbe rto ia com sua mãe à

casa de uma amiga de la , no Al to da Lapa , cu ja a f i lha ,

Mar ia do Ca rmo Campos Ma ia es tudava piano.

F i c a ram em meus ou v idos como a s p r ime i r as mús i c as que t i v e consc iên c ia , as sona tas

71 Mendes, Gilberto. Uma Odisséia Musical: dos mares do sul expressionista à elegância pop/arte déco. Editora EDUSP, São Paulo. 1994. Pg. 59 72 Mendes, Gilberto. Uma Odisséia Musical: dos mares do sul expressionista à elegância pop/arte déco. Editora EDUSP, São Paulo. 1994. Pg. 7 73 Ibidem. Pg. 31 74 Eduardo, Antonio. O Musico Gilberto Mendes. In: Sibila. http://sibila.com.br/novos-e-criticos/o-musico-gilberto-mendes/3516 acessado em 4 de junho de 2014.

57

‘ Pa té t i ca s ’ e ‘ Ao Luar ’ de Bee thoven , e o ‘ v e l ho so l a r ’ , d e Schuber t . E la s me en t r i s t ec i am, fa z iam -me pen sa r no meu pa i mor to , mas me davam enorme p raz e r , sempr e que Mar i a do Carmo toca va . 75

Nesta mesma época se dá o conta to e a pa ixão de

Gi lber to Mendes pe lo c inema , um de seus formadores

musica i s , acompanhando ent re 1929 e 1930 a t rans i ção

do cinema mudo para o cinema sonoro .

Ouv i dos e rud i t os p a ra a mús i c a popu l a r . Ho je em d i a reconheço que s empr e f o i c om ess es ou v idos que en tend i a mús i ca de um Jer ôme Ker n , de um I v i n g Ber l i n , R i c ha r d Rodger s , Co le Por t e r , Ger s hw in , Har r y War ren (n a ve r dade Sa lv a tore Gua ra gna , f i l ho de i t a l i anos ) Har o l d Ar l en ( qu e compôs Over t he Ranbow) e o ex t r aord in á r i o Freder i c k Ho l l ander . 76

* * *

É cur ioso re la tar que Freder ick Hol lander (quando

já em Hol lywood) ou Fr iedr i ch Hol laender (quando a inda

v iv ia na Alemanha) é uma das re fe rências que Gi lbe rto

Mendes mais c i ta nosta lg icamen te , se ja em conversas

in forma i s como as mais fo rma i s , ( “Hol laender fo i o re i

das Kaba ret t Me lod ien , na Ber l in Fr iedr i chst rasse dos

anos 20 . ” 77) . Não houve uma entre v is ta ou f i lmagem que

t ivéssemos sem que Gi lbe rto c i tasse Ho l laender e

cantaro lasse uma de suas melod ias , mesmo em seu l i v ro

75 Mendes, Gilberto. Uma Odisséia Musical: dos mares do sul expressionista à elegância pop/arte déco. Editora EDUSP, São Paulo. 1994. Pg. 8 76 Mendes, Gilberto. Uma Odisséia Musical: dos mares do sul expressionista à elegância pop/arte déco. Editora EDUSP, São Paulo. 1994. Pg. 13 77 Ibidem Pg. 14.

58

Uma Odi ssé ia Musi ca l , G . Mendes “cantaro la” Ich bin

von Kopf bis fuß auf L iebe e ingeste l l t , composi ção

in terp re tada por Ma r lene Die t r ich em An jo Azu l .

* * *

Em 1940 , Gi lberto , que ass im como Hi lda H i l s t ,

estudou d i re i to na Un i vers idade de São Pau lo (São

Francisco) decide la rgar a facu ldade para f ina lmente se

ded icar a mus ica por indução de seu então cunhado

Miroe l Si lve i ra (o mesmo dos Arqu ivos M iroe l S i l ve i ra ) .

Este o convenceu de que G. Mendes era músi co nato de

grande acu idade musi ca l 78 e que prec isa va aprove i ta r

suas qua l idades .

Gi lber to vol ta a mora r em Santos na casa de sua

i rmã Mi r ian e de Miroe l Si lve i ra in ic iando então seus

estudos no Conse rvatór io Musi ca l de Santos . Estudou

piano com Anton ie ta Rudge e harmon ia com Savino de

Bened ict is , começou também com e le estudos de

composi ção que não deram certo , porque Sav ino

corr ig ia todas as propos tas composi c iona is de Gi lberto :

. . . l impava todas as b l ue no tes que me er am tão ca r as , t en ta va des v ia r pa ra o tona l a mi n ha na tu rez a mus i ca l a tona l . Dec id i en tão es tudar soz in ho , as sumi r meu au tod i t a t i smo . 79

Ent re 1945 1958 G i lber to , autod idata , in ic ia uma

78 Mendes, Gilberto. Uma Odisséia Musical: dos mares do sul expressionista à elegância pop/arte déco. Editora EDUSP, São Paulo. 1994. Pg. 36 79 Ibidem Pg. 43

59

sér ie de composições para piano e , canto e piano que

e le mesmo cons ide ra sua pr ime i ra fase como

composi to r , baseando-se em estudos que fez de a lguns

poucos compassos de Arnold Schönberg “agradava-me

mui to a não-d i rec iona l idade , a harmon ia não-func iona l ,

que comece i a pra t i car inst in t i vamente ( . . . ) ” 80

Em 1961 como já v imos , G . Mendes musi cou os

poemas de H i lda H i ls t , época que a conheceu durante o

própr io rec i ta l .

Seu conta to com a mus ica de Pie rre Schaef fe r e as

part i tu ras de Pie r re Bou lez e Kar lhe inz Stockhausen ,

f i ze ram com que G i lber to se vol tasse pa ra a músi ca de

vanguarda – ser ia l i smo in teg ra l , mús ica concre ta e

música e le t rôn ica - tendo f reqüentado os cursos de

verão de Da rmstadt , A lemanha , nos anos de 1962 e

depoi s novamente em 1968.

A inda em 1962 , en t r e j u l ho e agos to , f i z m i n ha p r ime i ra per eg r i n ação em Darms tad t , a seus f amosos c u r sos de fé r i a s des t i n ados a d i vu lg a r a neue Mus i k da s egunda me tade do s écu l o . Es ta va comb i nado que nos encon t ra r íamos lá , eu , Wi l l y Cor r ea de O l i ve i r a e Rogér i o Dup ra t , t odos nós compos i t or es á v idos de beber , na f on te or i g i na l , o s en s in amen tos p r ec i osos de Bou l ez , S tock hau sen , Pou ss e r , L i g e t i , Be r i o e Nono . 81

Em 1962 fundou ou Fest i va l de Música Nova , em

Santos (hoje o Fest i va l a inda ocorre na c idade de

80 Mendes, Gilberto. Uma Odisséia Musical: dos mares do sul expressionista à elegância pop/arte déco. Editora EDUSP, São Paulo. 1994. Pg. 45 81 Ibidem Pg. 69.

60

R ibe i rão Pre to) ; em 1963 fo i um dos s ignatár ios do

Man i festo Música Nova , publ icado na Rev is ta de Artes

Invenção , que propunha uma nova Músi ca Bras i le i ra .

Nesta mesma época compõe nascemor re , baseada em

poema de Haroldo de Campos - para cora l , pe rcussão ,

f i ta magnét ica e duas máqu inas de escre ver , onde são

usados microtons e est ru tu ras a leatór ia s .

O tra ba l ho , de c e r to modo es tocás t i c o , j oga com as p r obab i l i d ades e i nc l u i a pa r t i c i paç ão rea l do i n t é rp r e t e na compos i ção -mon tagem de um PROC ESSO -d i r e ção mus ic a l cu jo desen vo l v imen to é p re v i s í ve l ; por ém em suas pa r t i cu la r i dades , dep ende de sua cau sa l i d ade . 82

83 Gi lber to fo i um dos p ione i ros no Bras i l a mergu lhar

no campo da a leator iedade , da música mic rotona l e

82 Ibidem Pg 78. 83 Partitura nascemorre, de Gilberto Mendes, no livro Mendes, Gilberto. Uma Odisséia Musical: dos mares do sul expressionista à elegância pop/arte déco. Editora EDUSP, São Paulo. 1994. Pg. 79

61

concre ta , va lendo-se de novas notações musica i s ,

v isua i s e teat ra is (mu i ta s de suas par t i tu ra s musi ca is

partem do movimento do a rt i s ta no pa lco , como é o

caso de Ópera Abe rta – ação teat ra l oper í s t ica ,

ha l te rof i l i s ta e t rês ou mai s pessoas aplaud indo ; Der

Kuss – Be i j os amp l i f i cados ent re um homem e uma

mulhe r , com ação teat ra l ; Pausa e Menopausa – pa ra 3

in térp re tes , x ícaras de café , pro jeção de s l ides ; O

Obje to Musica l – homenagem a Marce l Duchamp , pa ra o

vent i lador , barbeador e lé t r ico , com ação teat ra l .

Outra carac ter í s t ica importante no t raba lho de

Gi lber to é que mui tas de suas composi ções dependem

da le i tu ra que o in té rp re te faz de sua peça . É o caso

de Bl i r ium ( 1965) , uma músi ca a leatór ia levada às

u l t imas conseqüências , fe i ta somente das ins t ruções de

como rea l i zá- la . “Quando B l i r i um é magn i f icamente

rea l i zada , não posso d izer : que be la obra compus ! Na

verdade o autor é o in té rp re te . ” 84

A fo rma propos ta em Bl i r ium se aprox ima mui to

das cr iações em co laboração . No teat ro , mu i ta s vezes o

d i re tor propõe um tema, ou uma imagem para que se

ocor ra uma improv isação que poderá ser f ru to da

dramaturg ia ou não . Na Pe rfo rmance o ar t is ta c r ia

regras pa ra fazer sua ação, em gera l não ex is te um

ensa io pré v io , pois a busca pe la indeterminação e a

exper iênc ia em si se to rnam mai s forte s . O que Gi lberto

propõe em Bl i r ium é a co-autor i a , o in té rp re te tem que

84 Ibidem Pg. 85

62

se co locar conce i tua lmente para não ser engo l ido pe la

obra e por sua causa l idade .

85

Na década de 80 G. Mendes começa a redescobr i r

a t ravés da nosta lg ia de seus mestre s do passado como

Webe rn e St rav in sk i , passando por sua pa ixão pe la

música popu lar da pr ime i ra metade do sécu lo (em

espec ia l o jazz ) e pe los ve lhos musica i s da A lemanha e

de Hol lywood (como Ho l laender ) e cr ia obras como

Saudades do Pa rque Ba lneár io Hote l (1980) , pa ra piano

e saxofone a l to , e Ulysses in Copacabana surf ing w i th

James Joyce e Dorothy Lamou r (1988) , pa ra orquest ra

de câmara .

No começo , eu fa z ia uma mús ic a ma is l i g ada ao s e r i a l i smo i n te g ra l , mas eu nunca qu i s se r um ser i a l i s t a , m i n ha mús i c a incorpor a ou t r o s e l emen tos . Por causa d i sso , n a Eu r opa e le s d i zem que sou pós -moder no .

85 Partitura Blirium, de Gilberto Mendes, no livro Mendes, Gilberto. Uma Odisséia Musical: dos mares do sul expressionista à elegância pop/arte déco. Editora EDUSP, São Paulo. 1994. Pg. 86

63

Mas eu mesmo p r e f i r o que me chamem de t ra nsmoder no , que é como me de f i n o . I s s o quer d i ze r que eu t r an s i te i pe l o moder no e sua s va r i ações . 86

Como já es tava mu i to fami l ia r i zada com o un iverso

de H i lda , quando comece i a en tender o pe rcu rso de

Gi lber to entend i o porquê e ra tão impor tante se r G .

Mendes nosso Amós Ké res - “H i l s t ” . Compreend i que as

obras de Mendes e H i l s t têm um enorme d iá logo :

ambos têm um g rande humor e um certo sa rcasmo , ao

mesmo tempo em que se ut i l i zam de arte fa tos erud i tos ,

l í r i cos e popu la res . Ambos se sent iam incompreend idos

pe lo públ ico e t i ve ram um reconhecimento maio r

tard iamente . Lembrando uma fa la já c i tada no in íc io do

tex to , de G i lber to : “Já estava f i cando ve lho , com mais

de t r in ta anos , e nada hav ia acontec ido a inda pa ra

mim , na música” . H i lda aos 50 busca na pornog ra f ia

uma mane i ra de se tornar mais l ida . E la em Campinas ,

para f icar longe da bada lação de São Pau lo , e le em

Santos pa ra se proteger da bronqu i te e se enamora r

do mar . Br in cando de segu i r a mão e a cont ra-mão,

e les , em seus caminhos são capazes de f lanar pe los

gêneros sem rea lmente estarem f ixados a a lgum . Um

tango e um arroto, uma pornog ra f ia e uma poes ia .

. . . o pe rc u r so c r i ador ao ger a r compr eensão ma i or do p r o j e to , l ev a o a r t i s t a a um conhec imen to de s i mesmo . Des s e modo, o perc u r so c r i ador é pa ra e l e , t ambém, um

86 Farinaci, Antonio. “Sou transmoderno", diz Gilberto Mendes; filme sobre o músico abre o Festival Música Nova. http://musica.uol.com.br/ultnot/2006/08/09/ult89u6808.jhtm acessado em 01/07/2014.

64

p roce sso de au to -c onhec imen to . O ar t i s ta se conhece d i an te de um espe l ho con s t ru í do por e l e mesmo . Ra su r a r a poss í ve l conc r e t i za ção de s eu grande p ro j e to é , ass im , r as u ra r a s im mesmo . 87

* * *

P r o p o s t a s p a r a u m f i l m e – p r i m e i r a s t e n t a t i v a s d e

p r o d u ç ã o o u c om o a p r e n d e r a p r o d u z i r “ n a

m a r r a ” o u c o m o um a p e s s o a s e m n e n h um t a l e n t o

p a r a p r o d u z i r f a z u m f i l m e ? o u S ã o P a u l o , a

c i d a d e q u e d i s p e r s a , a t r a v e s s a e e n g o l e a s

p e s s o a s .

Graças ao proje to V iva Pagu , Rudá K. Andrade e eu

f izemos uma v i s i ta a G i lber to . Du rante a pr ime i ra

entrev i s ta , em ju lho de 2010 e le so l tou a f rase : “eu sou

músico por uma ocas ião meu sonho mesmo era te r s ido

art is ta de c inema, fazer pape l de professor . . . ” 88, d i to

isso, a pr ime i ra coi sa que ve io à cabeça fo i Com Meus

Olhos de Cão – “ f i lme” . O pe rsonagem Amós Kéres , é

um profe ssor , um poeta matemát ico e a música de

Gi lber to Mendes faz lembra r a poes ia concre ta , o

ser ia l i smo , a a leator iedade , e por f im a matemát ica .

Porque não conv ida- lo para faze r o f i lme como ator?

87 SALLES, Cecília Almeida. Gesto Inacabado – processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 1998. Pg. 131 88 Depoimento de Gilberto Mendes em entrevista sobre Patrícia Galvão feitas por Rudá k Andrade e Thaís de Almeida Prado em 8 de maio de 2010.

65

Vértice Aresta e Face Vi o suspiro da ave.

Tetraedro: vértice quatro Aresta seis, faces quatro Mergulho Vívido nu no teu quarto. Hexaedro: vértice oito Aresta doze, face seis Meu bico apodrece Sobre a página breve. Octaedro: vértice seis Aresta doze, faces oito Balanço do galo Na rama da noite. Icosaedro, vértice doze Aresta trinta, faces vinte Suores e tintas Rondando o limite.

Monstruosidade: vértice vinte e um Aresta quarenta e cinco, faces vinte e seis,

Muro de avencas caindo em pencas matando o rei.

Empalideço, Atlanta. Um Vivien vento Varrendo a anca.

Amós Kéres Amor Kéres?

Trembla de viño Mi cuerpo de destemor.89

F iz o conv i te e e le ace i tou sem levar mu i to a sér io

“eu não sou ator , se rá que cons igo? ” . Em segu ida

comece i a procura r pessoas e produtores que pudessem

a judar a desenvo l ver o proje to . Uma das pr ime i ras

pessoas a qua l ent re i em contato fo i F la v io Amore i ra

Viegas , por se r a lguém mui to próx imo a Gi lbe rto e um

89 Hilst, Hilda. Com Meus Olhos de Cão. Editora Globo, São Paulo. SP. 2001. Pg. 44

66

adorador dos t raba lhos de H i lda H i ls t . Em Agosto de

2010 e le v i r ia para São Pau lo acompanhar G. Mendes

em uma g ravação de estúd io então escre vo :

Ser ia a chance de encontrá - los em São Pau lo e

tentar apresenta r o proje to . G i lberto no entanto cance la

a v iagem e a proposta acaba não sendo fe i ta . Na

mesma semana , ma rco então uma reun ião com Rune

Tavares , da Acere 90, parce i ro de produção em out ros

proje tos . Lá conve rsamos sobre formas de produção e

apresento um pr ime i ro esboço do rote i ro escr i to 91, com

mui tas propostas de locações e pe rsonagens . Rune

sugere que eu me inscreva em a lgum edi ta l , porém meu

trauma com os “nãos” de ed i ta is e a necess idade de

espera r um dia a lgum “s im” pa ra fazer o proje to me

causavam af l ição, pr inc i pa lmente por se t ra tar de um

f i lme com Gi lbe rto Mendes aos seus 88 anos de idade

90 Durante a faze de trabalhos com o Coletivo Corrosivo, criamos uma parceria com a Acere, que tentava nos ajudar a viabilizar nossos projetos. www.acere.com.br 91 Primeiro tratamento do roteiro em Anexos.

67

na época . Rune suge re então que eu reescre va o rote i ro

pre vendo menos locações ou então que esco lha apenas

uma locação (o caba ret / borde l ) onde todas as cenas

pode r iam se passar como num t rave l l ing . Montamos um

esboço de esca le ta (que e le f i ca de me env ia r por e-

ma i l ) pensando nesta s cenas e na poss ib i l idade de

t ransfo rma r o f i lme num grande t rave l l ing .

Em 28 de outubro de 2010 Gi lberto Mendes lança

seu CD Cava lo Azu l 92. Pós conce r to , eu o procu ro para

conve rsa r e o re lembrar de quem eu era e do f i lme que

“ i r íamos fazer jun tos” . G i lber to sempre bem-humorado

respondia que não sabia se ser ia um bom ator , mas que

gosta r ia de tentar .

En t re a l tos e ba ixos e sem sabe r mu i to bem como

cr ia r me ios de desenvo lve r o f i lme passo por fases de

“engavetamentos” e por momen tos onde acordava de

madrugada querendo l iga r para todos que pudessem me

a judar a produz i r o f i lme . Os ed i ta is iam chegando e eu

nunca me inscrev ia porque acred i tava que este pro je to

não dever ia espe rar ed i ta i s ao passo que o tempo ia

passando e Gi lbe rto fazendo ma is an ive rsá r ios . Durante

o ano de 2011 passe i ten tando marca r reun iões que iam

por água aba ixo, por cance lamentos recor ren tes f ru tos

dessa c idade imprev i s í ve l que é São Pau lo e etc . Em

outubro de 2011 Rune me manda o esboço de esca le ta

que hav íamos cr iado um ano antes .

92 http://cultura.estadao.com.br/noticias/musica,gilberto-mendes-lanca-novo-cd-em-sao-paulo,630706 acessado em 03/07/2014

68

93

Ao olhar a esca le ta e la me monta um quebra

cabeça de imagens do l i v ro que me f icavam mui to

fortes ; ao mesmo tempo eu sabia que eram mui tas , e o

f i lme deve r ia se r um cur ta , em pr in c íp io . O tempo fo i

correndo mais rápido que pudéssemos pe rceber e

quando nos demos conta era 2012 e eu hav ia começado

o mest rado e estava ensa iando como at r iz uma peça ,

de processo co laborat ivo , baseada em textos de H i lda

H i ls t com a d i reção de Rafae l Tru f fau t e com Maur ic io

Coronado também no e lenco. Foi neste momento em

que conheci Dan ie l Mora Fuentes (herde i ro do

93 Escaleta feita por Rune Tavares em nossa reunião para o Com Meus Olhos de Cão em 16/10/2010

69

pat r imôn io e da obra de H i lda H i l s t ) e em ju lho

apresente i o proje to do Com Meus Olhos de Cão pa ra

e le . Dan ie l se entus iasmou e suger iu que eu procurasse

encora jadamente G i lber to Mendes , o que pe la t im idez de

não ser uma d i re tora conhecida , por não te r um proje to

subs tancia l , por não ter ve rba e est ru tu ra para f i lma r se

pror rogava mai s e mai s .

Eu e Dan ie l Mora Fuentes nos j un tamos com Rudá

K. Andrade (quem me apresentou o Gi lberto Mendes

pessoa lmente em 2010) e passamos a tentar manter o

proje to v ivo . Mu i tas vezes acordava de madrugada

pensando no G i lbe rto e pensando no f i lme .

Em meio à escr i ta da qua l i f icação (que não

abordava o f i lme na época) e aos pr ime i ros cor tes de

Nowhere ( f i lme do próx imo capi tu lo) , Com Meus Olhos

de Cão ia f i cando de lado. Fo i então que prat i camente

um ano depois , no d ia 8 de agosto de 2013, fu i à Casa

das Rosas pa ra o lançamento do l i v ro Musica C inema do

Som94, de G . Mendes e lá of ic ia lmente me reapresento

para e le , fa lo do f i lme mai s uma vez e marco

f i n a l m e n t ef i n a l m e n t e uma v is i ta em sua casa em Santos .

Pra t i camente um mês depois , no d ia 15 de

setembro Dan ie l , Rudá e eu nos organ izamos para i r à

Santos , para uma conversa/ent rev i s ta com Gi lberto e

para apresentar o proje to Com Meus Olhos de Cão j un to

ao l i v ro da H i lda .

Um dia antes da ida à Santos , Dan ie l me conv ida

94 Mendes, Gilberto. Música, Cinema do Som. Editora Perspectiva. São Paulo 2013

70

para passar por Campinas e ass is t i r a peça A Obscena

Senhora D com Susan Damasceno , na Casa do So l , onde

eu pode r ia me hospedar em um dos quartos vaz ios

reservados aos res identes a rt í s t i cos . Me prepa ro e s igo

rumo a Campinas , a mesma cidade que por coinc idência

ou não, me apresentou para o un ive rso mus ica l de

Gi lber to Mendes (no Homolog ias ) , e f ina lmente pa ra a

v is i ta tão espe rada e ad iada àque la famosa C a s a d o

S o l .

* * *

A p r i m e i r a V i s i t a à v e l h a s e n h o r a , M a d am e H i l l é

Ao chegar à C a s a d o S o l somos recebidos por

vár ios cachorros , todos adotados pe la H i lda quando

a inda v iva . A casa com seus obje tos , suas re l íqu ias e

seus cães já começa a c r ia r um sent ido por s i só para

o f i lme . H i lda é aque la casa ! Começamos a imag inar

Gi lber to Mendes sendo f i lmado e in terag indo com todo

esse ento rno , e por consegu in te in te rag indo com a

própr ia H i lda a l i mate r ia l i zada . Sou receb ida como um

ente da famí l ia por Olga B i lenky uma das fundadoras do

Inst i tu to H i lda H i l s t 95 e mãe de Dan ie l e por Ju randy

Va lença , d i re tor de proje tos das res idências art í s t i cas

a l i .

Ao chegar , Susan , a at r iz , está se concentrando

para o in ic io da peça fe i ta na sa la de estar da casa ,

com toda a mobí l ia do lugar . A peça era uma

adaptação de A Obscena Senhora D , um l i v ro que tem 95 http://www.hildahilst.com.br/site/

71

mu i tas a f in idades com Com Meus Olhos de Cão : ambos

os personagens ques t ionam Deus, se pe rguntam da

morte e são levados como loucos pe la s pessoas à sua

vo l ta . H i l lé , de A Senhora D , de tanto querer entender

os porquês acaba perdendo a noção de rea l idade . E la

desaf ia Deus , ass im como H i lda sempre desaf iou

inc lus ive a t ravés de Amós Ké res .

Em Com Meus O lhos de Cão , o personagem Amós

Kéres , um professor de matemát ica , “ v ive uma

exper iênc ia t ranscendenta l onde recebe um impacto de

cores , sem l inhas ou contornos , uma espécie de So l

meta f í s ico” 96.

97

96 Pécora, Alcir. Nota do Organizador. In:. Com Meus Olhos de Cão. Hilst, Hilda. Editora Globo. 2001. Pg. 8 97 Desenho feito por Hilda Hilst, com assinatura ficcional de Amós Kéres.

72

Depo is dessa exper iênc ia ou in tu ição inesquecí ve l ,

a fasta-se e se a l iena cada vez mais dos seus deveres ,

mergu lhando no que é in te rp re tado pub l icamente como

loucu ra .

A re lação de H i lda com a loucura , como já fo i d i to

é bas tante fo rte sendo in t r in secamente l igada a seu pa i

e abordada em mui tas de suas obras ass im como sua a

tenta t i va de compreende r a morte e seu conf ronto com

Deus . Com Meus O lhos de Cão é um dos l i v ros em que

H i ls t consegue t raze r a tona estes t rê s quest ionamentos

s imu ltaneamente . Amós l ida com a sensação da morte , a

tenta t i va de compreender e desaf ia r Deus e se

enveredar pe los caminhos da loucu ra . H i lda quando

perguntada por Ca io Fernando Abreu sobre Deus ,

responde :

Na Min ha nove la Com Meu s O lhos de Cão , o per sonagem Amós , um ma temá t i c o , c omeça com uma f ra se que a l gumas pe ssoas acham esqu i z o f r ên i ca : ‘D eu s , uma super f íc i e de ge l o ancor ada no r i s o . ’ E ss a nove la c hega ao f im como uma compos iç ão ma temá t i c a , um con jun to vaz i o , um c í r c u l o . Mas um vaz i o v i v o também , como o vaz i o v i v o do Zen , ou da l i te r a tu ra de Samue l Beck e t t . En tão me ve i o as s im : Deu s é quase s empr e e ssa no i te esc u ra in f i n i t a . Mas e l e pode s e r t ambém um f l ame ja n te sor ve t e de ce r e j as . É uma escu r i dão abso lu ta , mas de rep en te tem uma vo l úp i a doce lá den t r o . Como se f os s e es se so r v e te de c e re j as . Te vem o gos to de um d i v i n o que voc ê não sabe nomear . 98

98 Diniz, Cristiano (org). Deus pode ser um flamejante sorvete de Cereja, conversa com Caio Fernando Abreu, 1987. In: Fico Besta quando me entendem – entrevistas com Hilda Hilst. Editora Azul. São Paulo. 2013 Pg. 99

73

Chegando a l i na Casa do So l e ra eu , quem mais

uma vez t inha aque le o lha r “apa le rmando do cão” .

Tentando entender uma sensação mui to for te de estar

num lugar que me parec ia tão fami l ia r .

Junto com Dan ie l começamos a v is lumbra r imagens

e cenas pa ra inc lus i ve propor a Gi lber to no d ia segu in te

em Santos . Na mesma noi te eu sonho com H i lda . No

sonho e ra como se o G i lber to fosse uma pe rson i f icação

de la mesma . E la me d iz ia para f i lmar de ta l je i to ou de

outro . Di z ia : - “Aqu i eu quero f icar che ia de papé is ,

de i ta r sobre papé is , me esconde r sob os papé i s , mas eu

não posso faze r , então peça pa ra o Gi lbe rto fazer no

meu lugar . ” Acorde i com um f i lme em minha cabeça

“d i r ig i do” pe la própr ia H i lda H i ls t . Pode r ia br inca r de ter

um “ f i lme ps icogra fado” e ta l vez d ia logar com as

crenças que H i lda t inha na ex is tênc ia do “out ro lado” .

No d ia segu in te acordamos cedo e nos prepa ramos

para a t ra vess ia até Santos .

* * *

A P r i m e i r a V i s i t a a o v e l h o s e n h o r – G i l b e r t o ,

Am ó s ?

Ao chegarmos em Santos , Rudá , Dan ie l e eu somos

recebidos por E l iane , art i s ta plá st i ca e mulher de

Gi lber to Mendes o qua l chega em segu ida . Na casa ,

obje tos de cu l tu ra mate r ia l de vár ia s soc iedades que

fazem parte da coleção de E l iane e vár ios quadros

74

p in tados por e la com o re t ra to de Gi lbe rto . Aque la casa

toda branca , sem musgos, sem fungos e bo lo r não nos

parec ia se r a casa de Com Meus Olhos de Cão .

Ped imos pe rmi ssão para f i lmar e começamos uma

longa conve rsa onde G . Mendes nos conta sobre sua

in fânc ia , sua asma , sua estad ia na A lemanha antes e

depoi s da ex is tênc ia do muro de Ber l in , sua fuga da

Po lôn ia . Aos poucos tentamos in t roduz i r a proposta do

f i lme pa ra e le . En t rego pr ime i ramente o l i v ro da H i lda

H i ls t , ( o própr io Com Meus O lhos de Cão) e conto que

queremos par t i r deste l i v ro para cr ia r um f i lme . E le nos

pergunta se não haver ia um ro te i ro , exp l i co que este

estava sendo ext ingu ido porque gosta r íamos de fazer um

f i lme onde a dramaturg ia par t is se e pertencesse a nós .

O f i lme se r ia uma mesc la de cada um de nós com o

l i v ro de H i ls t .

G i lber to fa la então de H i lda , de como e la era uma

mulhe r bon i ta e de como se conhece ram rap idamente

em um rec i ta l onde e le apresentava uma de suas

composi ções baseadas em poema de la Trovas de mui to

amor pa ra uma amado senhor : Trova I e Trova XV. E le

contou também da época em que H i lda f reqüentava

Santos e namorava um moço “barra pesada” da cidade .

E com mui to orgu lho d iz ia ter recebido um ca rtão de

nata l 99 de H i ls t , com uma de suas gravuras , agradecendo

pe la compos ição.

As tenta t i va s de apresentar a ide ia pa ra Gi lberto

99 Gilberto guarda o cartão de Hilda até hoje em sua casa, na biblioteca da Casa.

75

eram sempre bastante devoradas pe las h is tó r ias e

memórias pessoa i s que e le gostar ia de nos ofe rta r .

Gi lber to sempre achava um je i to para fa la r de s i

durante a entrev is ta e fomos percebendo que sua

persona l idade fo rte ser ia essenc ia l pa ra que e le não se

tornasse um ator representando o pe rsonagem Amós em

si , mas ass im como João Migue l em Ex- Is to , que

Gi lber to e Amós pudessem coex i s t i r jun tos na c r ia ção ,

como se os e lementos da v ida de um pudessem se

confund i r com a v ida do out ro . Ao mesmo tempo

dever íamos tomar cu idado pa ra não sermos engo l idos

pe lo des lumbre que era escutar suas hi stór ia s , porque a

propos ta f í lmi ca era uma f icção, ou me lhor d izendo ,

“uma f r i cção” .

No meio da entre v is ta Gi lberto cantaro la d i versas

músicas uma de las I ch bin von Kopf bi s Fuß auf L iebe

e ingeste l l t e e le pe rgunta se pode r ia cantar essa e

outras no f i lme . Ao que a resposta sempre era S IM .

“Mas minha voz é asmát i ca . . . ” di z ia e le .

Nosso compos i to r também repet ia vár ias vezes a

pergunta : “passe i no te ste? Estou demit ido? ” E le ten tava

entender se aque la conversa era um teste para que e le

pudesse fazer o f i lme . No entanto não hav ia dúv idas

para nenhum de nós t rê s que Gi lber to , Amós Kéres e

por consegu in te H i lda t inham que se jun tar nesta

empre i tada f í lmica .

Gi lber to e H i lda sempre souberam que t inham

apreço ao e rud i to , ao mesmo tempo nunca

76

compreenderam por que não eram tão escutados , l idos

e/ou in te rp re tados no Bras i l . Essa grande f rust ração em

Hi lda fez com que e la buscasse em e lementos

pornog rá f icos uma espécie de chamar i z pa ra sua

l i te ra tu ra , como o fo ra com O Caderno Rosa de Lor i

Lamby (1990) . Já Gi lberto ta lve z despre tens iosamente ,

cr ia duas de suas mús icas mai s conhecidas Motet em Ré

Menor ou Beba Coca -Cola (1967) e Santos Futbo l l Music

(1969) que se tornam conhecidas mundia lmente . A

questão é que ambos sempre c r i a ram obras à seu modo ,

passando por fo rmas e movimentos art í s t i cos sem se

f i xa rem a nenhum . O que os leva va à uma grande

l i berdade cr ia t i va .

Sempr e d i go que sou , no m ín imo, t r ês compos i t or es d i f e ren te s : o d e v a n g u a r d a do San tos Foo tba l l Mus i c , Beba Coca -Co l a , Na sc emor re e Ashma tou r , o c l á s s i c o m o d e r n o de Pour E l i a ne e Tr o va I e o c l á s s i c o p o p u l a r que compôs Sa lada de Fru t as e A Fe s t a . Ma s , c omo es tou v i v endo mu i t o , vou in do para o quar to compos i t or , que é uma soma de todos e le s – o t r a n s m o d e r n o . 100

* * *

100 Kiyomura, Leila. Gilberto Mendes chega aos 90 anos com ares de quem atravessa os 20. http://www5.usp.br/28808/gilberto-mendes-chega-aos-90-anos-com-ares-de-quem-atravessa-os-20. Acessado em 01/07/2014

77

D o s p r e p a r a t i v o s p a r a “ e s t a r s e n d o t e r s i d o 101”

Am ó s K é r e s .

Alguns prob lemas de produção surg i ram: o pr ime i ro ,

Gi lber to tem uma idade mui to avançada (91 anos) e

a lguns problemas de saúde , como a Bronqu i te (a le rg ia

que fez par te de sua v ida toda , ass im como de sua

música , à exemplo de Asthmatour , e mot i vo pe lo qua l

e le optou em vive r em Santos) e um recente t ropeço no

sofá de sua sa la que hav ia lhe f ra tu rado o fêmu r .

Prec isa r íamos então se r mu i to cu idadosos com e le ,

porém sem verba , como fazer para de i xa- lo o mai s

confo rtáve l poss í ve l? . O segundo problema , Gi lber to não

gosta mui to de sa i r de Santos , justamente por seus

prob lemas com a Bronqu i te , en tão como levá - lo para

Camp inas e para São Pau lo? Dever íamos te r a lguém que

o acompanhasse?

Estas prob lemát icas aca rre ta r iam também em um

desapego ao rote i ro esc r i to in ic i a lmente ao que Rudá se

co locava menos a favor . Para e le o rote i ro propunha

imagens mui to in te ressantes que não dever íamos

descar ta r e nos a judar ia a se rmos cu idadosos em como

l idar com o G i lber to . Rudá suger ia que t ivéssemos um

segundo ator que f i zesse Amós Kéres j ovem .

Eu não era tão favoráve l à ide ia . Me apetec ia

v isua l i za r Gi lbe rto como Amós em todas as suas fa ixas

etár ias , mesmo como a cr iança Amós, pa ra ass im cr ia r

um distanc iamento de um certo “ rea l i smo” que pudesse 101 Estar Sendo Ter Sido, é o ultimo livro publicado por Hilda Hilst onde há uma homenagem clar ao pai, além de citações de seus poemas.

78

ocor rer . E no caso de ser mu i to imposs í ve l te rmos

Gi lber to em a lgumas cenas eu pre fer i r ia então que Amós

jovem fosse fe i to por uma mu lher , ou então por vár ios

atores e atr izes sem um apego a um ca ráter apenas ,

para causar uma f r icção entre a H i lda que esc reve e a

H i lda que é person i f i cada por um personagem mascu l ino .

No ano anter io r , pós conversa com Rune Tava res ,

as opções de locações já estavam se tornando apenas

um sa lão de Caba ré o qua l depois da v is i ta à Casa do

So l pode r ia ser fe i to lá . Mas se rá que Gi lbe rto topa r ia

uma cena de cabaré? Ao coloca r a questão e le abre um

sorr i so e passa a re la ta r as famosas mus icas de caba ré

na Alemanha , compostas pe lo já c i tado repet idas vezes

Freder i ck Hol lander , que chegaram ao cinema de

Hol lywood . Um prost í bu lo a la Cabaré a lemão da década

de 20 rea lmente era a cara de H i lda e Gi lberto (H i lda ,

ta lvez pe lo som de seu sobrenome, H i l s t , ou por a lguns

de seus pe rsonagens que nos remetem

inconsc ien temente à A lemanha) .

No entanto a questão ca ia no mesmo tópi co ; como

produz i r? Sem dinhe i ro , sem car ro para leva r e t raze r

Gi lber to , sem parcer ias , sem equ ipamentos e etc . . .

No d ia segu in te , 16 de setembro de 2013 , no meio

do ensa io de uma peça , recebo t rês l igações segu idas

do número de te le f one do G. Mendes . Começo a f icar

preocupada : - “Gi lbe rto , 91 anos ! ! ! ” , sa io pa ra atender .

Gi lber to l igava porque quer ia d izer que hav ia l ido o

l i v ro “em uma sentada só” . Tinha adorado a mane i ra

79

como H i lda esc rev ia e quer ia fa zer o f i lme . “Por fa vor ,

não me abandonem! ” , d i z ia e le do out ro lado da l inha .

E uma questão sua f icou no ar : “ - esse l i v ro é um f luxo

de pensamento, como você va i f azer i sso v i ra r c inema?”

Eu já não sabia mais e o desaf io deste f i lme ser ia de

descobr i r “o como” jun to com Gi lberto .

* * *

Conto para Rudá e Dan ie l sobre o te le fonema e

marcamos de fazer uma reun ião de produção para

rea l i za r o f i lme . Nossa reun ião acaba f icando focada

“em como se consegu i r verba para fazer” . A questão

ed i ta is era co locada à mesa novamente , ao que eu me

opunha , já que hav íamos dado uma pontapé in ic ia l no

f i lme , não dever íamos de ixa r esf r ia r o processo . De todo

modo Dan ie l se pront i f ica em tentar a lgo por Campinas

e eu em esc reve r um texto para apresentação do

proje to .

A sensação era que estas reun iões de produção

nos faz iam na rea l idade “des-p roduz i r” o f i lme e eu a

espera r tensa .

As r e l ações tenc i ona i s , que man têm a v i ta l i dade do p r oce sso de cons t rução da ob r a , a pa r ecem também na s emoções do c r i a dor . A s mar ca s ps i c o l óg i ca s do ges to c r i a dor c a r re gam sen t imen tos que , n a med i da em que a tu am um sob re o ou t r o , t orn am poss í ve l a c r i aç ão . 102

102 SALLES, Cecília Almeida. Gesto Inacabado – processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 1998. Pg 81.

80

Para não de ixar a “água esf r i a r” , passo a l igar

para o Gi lbe rto toda semana para conve rsarmos sobre o

f i lme e sobre a v ida . A lgumas perguntas de le são

sempre recor ren tes :

- Você acha que eu posso fazer esse f i lme como

ator? Se qu iser des is t i r de mim eu entendere i .

- Você tem um ro te i ro do f i lme?

- Como você va i faze r esse l i v ro se torna r um

f i lme?

- É um documentár io sobre mim?

- Posso canta ro la r uma canção?

Não, não hav ia dúv idas de que Gi lber to dever ia

“br incar de se r ” Amós neste f i lme . Ex is t ia s im um

rote i ro , que estava por ser descartado se não fosse a

ins is tênc ia de Rudá , ao mesmo tempo não t inha ce rteza

se deve r ia mostra r para Gi lbe r to , poi s era a lgo não

“ f ina l i zado” . Sobre como i r íamos fazer para aque le l i v ro

se torna r um f i lme? Na rea l idade não consegu ia não ver

este l i v ro senão como um f i lme . Para mim era c la ro que

aque la f icção era c inematog rá f ica . E era mui to c la ro em

minha cabeça que este não era um documentár io sobre

Gi lber to Mendes , mas s im uma f r icção de e lementos de

suas memórias com a f icção e h i stó r ias de H i lda .

Setembro se passou rapidamente e em outubro e

novembro o proje to f i cou adormecido ( fo ra as minhas

l igações pa ra Gi lbe rto , a pa r te de produção e a

tenta t i va de encont ros em s i não reag ia ) . M inha âns ia

81

pe lo f i lme perdu rava , já hav ia conversado com Odor i co

Mendes , um dos f i l hos do G i lberto , ped indo a lguma

espéc ie de apoio , fosse de equ ipamentos ou mesmo no

caso de te r que acompanhar o pa i em a lgum dia de

f i lmagem, ao que e le se colocou ao nosso d i spor .

Também com a a juda de Rubens Rewa ld , ped i

emprést imo de equ ipamentos e o uso da i lha de ed ição

do depa rtamento do audiov i sua l (CTR) na USP , os qua i s

pode r íamos ut i l i za r caso os a lunos da graduação não

est i ve ssem prec isando .

Na época da Mostra de C inema de São Pau lo o

cineasta a lemão Sebast ian Mez , com quem eu esta va

fazendo outro f i lme e já estava in te i rado des te , vem ao

Bras i l e sugere que eu faça OFFs com o Gi lbe rto lendo

parte s do l i v ro , ass im qua lquer fosse a cena que

decid í ssemos f i lmar , te r íamos uma base de dados

sonora do G .Mendes à d i spos ição para a lguma

eventua l idade . Acato à ide ia e monto um novo p lano de

t raba lho, onde a proposta se r ia desapegar -se do rote i ro ,

mantendo o l i v ro Com Meus O lhos de Cão como um

Star t Poin t à mane i ra de Cao Gu imarães e João M igue l

ao c r ia rem Ex- Is to a pa rt i r de Ca tatau .

82

103

Depo is de vár ios encont ros e desencont ros cons igo

marca r uma gravação no estúd io da ACERE (a mesma de

Rune Tavares) com um grande parce i ro meu Edson

Secco , des igner sonoro, com quem eu já hav ia fe i to

vár ios processos co le t i vos .

103 Mensagem de Facebook em 07/11/2013 de Thais para Rudá K. Andrade, Edson Secco e Daniel Mora Fuentes

83

104

Tudo ce rto e marcado com o G i lberto para o d ia

11 de dezembro no estúd io da ACERE . P róx imo a data

de gravação, no entanto, F lav io Amore i ra Viegas , que

acompanhar ia Gi lber to de Santos à São Pau lo l iga

av isando que não poder ia v i r . A lugamos então um ca rro

para t raze r G i lber to , e le te r ia que v i r soz inho com o

motor is ta mas de todo modo depois es tar íamos com e le

quando chegasse em São Pau lo .

Dia 10 de dezembro , Gi lberto l iga d izendo que

estava meio receoso em vi r para São Pau lo . “estou

mui to ve lho, f ico com medo de morre r” d i sse e le . A

104 Mensagem de Facebook em 25/11/2013 de Thais para Rudá K. Andrade, Edson Secco e Daniel Mora Fuentes

84

Gravação na ACERE é cance lada .

Na tenta t i va de un i r as pessoas começo a perceber

como a cidade de São Pau lo inv iabi l i za “ foco” . Todos

estão sempre envo lv idos em vá r ios pro je tos ao mesmo

tempo, mu i ta s vezes pa ra sobre v ive r , e não conseguem

se envo lve r em um traba lho com in tens idade , a menos

que se ja seu própr io pro je to , e mesmo ass im leva rá

mui to tempo por suas in te rrupções . Entendo a ida de

H i lda aos 33 anos pa ra Camp inas , e a escolha de

Gi lber to em cr ia r um reduto mus ica l ex t remamente fo rte

e exper imenta l em Santos , pa ra não prec isa r conv i ver na

c idade de São Pau lo . “A asma de Gi lber to v inha a

ca lha r” .

Eu , aos 30 e poucos anos, sent indo a vontade de

também sa i r de São Pau lo , e a inda mais , a necess idade

de que Com Meus Olhos de Cão fosse este encontro

entre H i lda e G i lbe rto , resol vo então f i lma r tudo em

Santos , do je i to que pudesse ser . A Casa do So l

pode r ia estar presente como pe rsonagem em si , sem a

necessár ia presença de G. Mendes .

Tento combinar com a equ ipe outras idas pa ra

Santos a inda em dezembro em vão. As festas de f im de

ano passam. Em jane i ro tentamos conversar novamente ,

mas tudo f icava sempre no “ i remos fazer” . Rudá

prec ionava para c r ia r um rote i ro , ou para eu ter

propos tas ma is fechadas para fazer com Gi lbe rto .

Quanto ao rote i ro , este e ra co i sa que Dan ie l e eu já

não v íamos mai s sent ido , ha ja v is ta a t ransfo rmação

85

que ocor r ia ao lado de Gi lberto . O que se mant inha

eram a lgumas locações e ações que da í então poder iam

susc i ta r jun to com G . Mendes o f i lme . Hav ia a lgumas

regras esté t icas que eu gostar i a de segu i r , como por

exemp lo na fotogra f ia , buscava a câmera está t ica ou em

movimentos mui to prec i sos que fosse se

desestabi l i zando com o percurso do f i lme .

Subje t i vamente buscava a lgo “matemat i camente

ca lcu lado” . Rudá pre fe r ia a câmera na mão para dar

l i berdade as ações . S im , se pa rt íamos do pressuposto

que não hav ia um rote i ro prév io e etc , como então

ca lcu la rmos o movimento da câmera? No entanto , ta l vez

fosse este o g rande jogo do improv iso com Gi lbe rto :

cr ia r pequenas regras , das qua i s mesmo que bur ladas

t i vessem um pr inc íp io em comum para a equ ipe .

Rudá também prec ionava pa ra tentarmos apoio e

patroc ín io , coi sa que não sab ia como fazer e que mai s

parec ia empata r o proje to do que a judar , já que todos

que se propunham a buscar apoio sumiam. Ao mesmo

tempo compreend ia e acata va a necess idade de Rudá

em ter um mín imo de verba pa ra poder t raba lhar . E le

t inha os equ ipamentos , poder ia f i lmar mas não pod ia

t i ra r d inhe i ro do bo lso a todo momento para i r pa ra

Santos e outros t raba lhos começavam a chamá- lo .

Dan ie l esta va en louquecido com O Ins t i tu to H i lda H i l s t e

não consegu ia esta r mu i to presen te .

Com as d i f icu ldades em se encontrar uma data em

comum à todos e com a fa l ta de um orçamento justo ,

86

reso l vo então fazer o f i lme sem equ ipe . A proposta

pode r ia se tornar uma conve rsa mui to in te ressante no

fa to de eu estar com a câmera na mão jun to com as

ações de Gi lberto . A sensação ser ia de que nós dois ,

estar íamos “perf ormando” , “dançando” , “orquest rando”

jun tos num mesmo ba i le . Sobre a d i reção, ped i pa ra G .

Mendes a lgumas propostas de lugares que e le gostasse

de f reqüentar em Santos e que susc i tassem suas

memórias , ped i também peças musica i s suas que

pudéssemos encenar de a lgum modo (mesmo que isso já

houvesse s ido fe i to no documentár io A Odissé ia Musi ca l

de Gi lbe rto Mendes , de Car los de Moura R ibe i ro Mendes)

e pense i em t raze r da minha exper iênc ia de d i reção no

teat ro , temas , imagens , obje tos baseados no l i v ro , em

Hi lda e em minha própr ia i n tu ição que pudessem

desenvo lve r uma ação dentro do improv i so .

O não sabe r , e o não entender começava a se

torna r o t ra je to do f i lme , ass im como o de Amós Kéres

do l i v ro de H i lda .

* * *

Por conta do percurso que meu mest rado tomava

na época , eu estava acompanhando o processo de

f i lmagem de Cr i s t iano Bu r lan , o qua l fo i mu i to generoso

ao abr i r seu t raba lho cr ia t i vo . E le f i lmar ia nas duas

semanas próx imas do Carnava l e ser iam estas as

mesmas semanas as qua is poder i a v is i ta r o Gi lbe rto em

Santos . Ti ve que optar pe lo Bu r lan com um cer to pesar

87

e a f i lmagem de Com Meus Olhos de Cão se rest r ing iu

a dois d ias , sendo que no pr ime i ro com a a juda de

Sebast ian Mez (que estava no Bras i l novamente )

gravamos os OFFs de G. Mendes (os mesmos que

dever iam te r s ido fe i tos em dezembro) ; e no segundo

d ia propus cenas improv i sadas com Gi lbe rto , enquanto

t inha a câmera na mão .

105

105 Imagens do caderno pessoal de anotação de direção. 17/03/2014

88

T r o v a s a u m i l u s t r e s e n h o r

O t r a b a l h o Re pe t i r duas ve ze s um mesmo f r a gme n to

não é um e f e i t o s o no r o , é mus i c a . ” 106

Chegamos à casa de Gi lbe rto e sabíamos que

dever íamos f i lmar e gra var o áud io lá . No entanto

Gi lber to v i ve com a mu lhe r , E l iane , e com a sog ra , um

ano mais nova que e le , numa casa onde o som vaza e

entra por todos os lados . Fomos à sacada , onde f i ca a

pisc ina e onde vez ou outra Gi lberto recebe a v i s i ta dos

urubus (sobre os qua is e le compôs Seu l un urubu

so l i ta i re ) para nos d is tanc ia r do som de TV l igada que

v inha de dent ro da casa . Eu es tava com a câmera na

mão, mas neste pr ime i ro d ia nos preocupamos mais em

gravar o áud io , que f i cou sob incumbência de Sebas t ian .

Gi lber to se i luminou ao estar em presença de um

jovem a lemão. Não pe lo jovem em s i , mas pe la s

exper iênc ias e memória s que e le o susc i tava . E le

desatou a fa la r da Alemanha e de Fr iedr i ch Ho l laender .

À cada take de t recho do OFF l ido, Gi lberto conta va

a lguma lembrança ou memória sua . Nesse momento

comece i a percebe r , que as pa lavras do l i v ro de H i lda

se esva iam, mas se r ia poss í ve l manter o espí r i t o do

f i lme at ravés das pa lav ras de G i lberto .

A Presença de Sebas t ian fo i de g rande va lor nes tes

dois d ias de f i lmagem, G i lber to sent ia praze r em repet i r

as mesmas h istór ias que já hav ia contado na pr ime i ra

106 Schaeffer, Pierre. Die Reihe. Pg. 12 In: Mendes, Gilberto. Música, Cinema do Som. Editora Perspectiva. São Paulo 2013

89

ent rev i s ta e também em a lgumas conve rsas por te le fone .

Percebi que a repet i ção e o min ima l i smo presentes em

sua obra mais vanguard i sta re tornavam de uma certa

mane i ra na repet i ção de suas histó r ias . “A part i r de

Nascemor re esse gosto meu pe la repet ição i r ia se fazer

sent i r em quase toda a minha obra . ” 107 Era como se o

mesmo tema de uma peça vol tasse novamente em a lgum

momento . Mas como t ranspor i sso para um f i lme?

Amós Kéres en louquece na obra , mas será que ao

mistu rar as memória s de Gi lberto eu não poder ia cor rer

o r i sco de fazer parecer , que do nosso ponto de v is ta

Gi lber to e ra louco? Não, def in i t i vamente não era i sso

que quer íamos ! G i lber to é um ar t is ta mu i to lúc ido , ass im

como Hi lda o e ra e Amós dever i a estar lúc ido em suas

e lucubrações . Reg is t re i esta questão que me foi

co locada por Sebast ian pa ra me preocupa r durante as

próx imas propostas e durante a montagem.

Para o segundo d ia , hav íamos pre v is to f i lmar na

Ponta da Pra ia 108 imagens contempla t i vas do Gi lbe rto e

termina r a lguns OFFs que f ica ram por fazer , a lém das

improv i sações cu rtas prog ramadas . Ao chegarmos em

sua casa descobr imos que era d ia de fax ina , t inham

esquecido de nos av isa r e a programação começou a i r

por água aba ixo .

107 Mendes, Gilberto. Uma Odisséia Musical: dos mares do sul expressionista à elegância pop/arte déco. Editora EDUSP, São Paulo. 1994. Pg. 78 108 A Ponta da Praia é um dos lugares que Gilberto mais gosta de ir. Principalmente para ver o pôr-do-sol, este foi um dos lugares que ele havia me recomendado para filmar.

90

Ace i ta r a i n t e r venção do imp re v i s t o imp l i c a comp reender que o a r t i s ta poder ia t e r fe i t o aque la ob r a de modo d i f e re n te daque l e que fez . Ace i t a -s e a s conc r e t i z ações a l te r na t i va s – admi t e -s e que ou t ra s ob ra s t e r i am s i do poss í ve i s . 109

En t re brechas de s i lênc io do baru lho de

maqu inar ias ou de a lguém passando, gravamos ma is

a lguns t rechos de tex to OFF e propus , ante s de sa i rmos

para o a lmoço e para Ponta da Pra ia , t rês

improv i sações para Gi lbe rto : a pr ime i ra , u t i l i zando um

apare lho de rad iestes ia , chamado dua l road 110 e tendo

como ponto de part i da uma hi stór ia que f i cou bastante

famosa de H i lda H i ls t , quando começou a pesqu isa r ,

in f luenciada pe lo t raba lho do sueco Fr ied r i ch Jüngerson ,

exper iênc ias de gravação em f i t as magnét icas que ao

serem reproduz idas t recho por t recho , rebobinando

dezenas de vezes com um cer to r i tmo , re ve la vam vozes

que supostamente ser iam “de out ra d imensão” .

109 Salles, Cecília Almeida. Gesto Inacabado – processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 1998. Pg. 34 110 Instrumento formado por dois arames montados sobre duas bases que permitem a livre movimentação dos mesmos, garantindo, desta forma, sensibilidade às influencias externas. Este instrumento usado em radiestesia serve para detectar e determinar fluxos de energia. No que se refere à energia da terra, Dual Road determina com precisão o ponto geopata, se este ponto se tratar das conhecidas Redes Hartmann e Curry, ou mesmo de água subterrânea.

91

111

Como não t inha um gravador de f i tas magnét icas à

mão e pe la pra t i c idade deste est ranho apare lho que

lembra f i lmes fantasmagór icos , p ropus então a Gi lberto

que br incasse com a idé ia de que e le estar ia captando

v ibrações do ambiente e que a part i r do movimento do

Dua l Road e le c r iasse uma nova composição sonora .

Para i sso e le pode r ia usar a própr ia voz e o corpo. 112

Gi lber to , que a inda usa uma benga la (por conta da

f ra tu ra no fêmu r) se d ispôs a fazer o exerc íc io sem

ut i l i zá - la e c r iou uma par t i tu ra de movimento e voz com

estas duas “va re tas ” na mão que permeavam o l í r i co e

o paté t ico, a lgo mui to próx imo do que H i lda propunha

111 Hilda fazendo seus experimentos. 112 Imagem do Dual Road.

92

em Com Meus O lhos de Cão e do que G. Mendes

propunha em a lgumas de suas peças . Du rante este s dois

d ias eu e Gi lber to es tabe lecemos uma espécie de dança ,

eu com a câmera na mão deambu lando at rá s de G.

Mendes e e le F lanando pe lo espaço e por suas

memórias . A cada ponto de part ida que propunha

Gi lber to t ransformava em a lgo a inda maio r .

O Mesmo aconteceu com a segunda proposta de

improv i sação uma “sé r ie encenada” para câmera/

espe lho . Insp i rada por um trecho do l i v ro , peço para

que o Gi lbe rto o lhe para a câmera e t ransforme esse

sorr i so c i tado pe lo personagem em uma sé r ie de

care tas . G . Mendes c r ia uma seqüência que por horas

lembrava uma br incade i ra de c r iança . Aque la c r iança

como a que ci tada por Oswa ld de Andrade , a que “vê

com o lhos l i v res ” .

Há d ia s a t r ás Amanda me d i ss e ra que

eu sor r i a de um j e i t o novo . Novo? pergun te i . É , e squ i s i t o , voc ê não sor r i a as s im . Mas eu es ta va sor r i n do? C la r o que e s ta va sor r i ndo , Amós , pe l o menos a boca f i c ou es t i cada , o l ha , você e s tá sor r i ndo quase s empre , e mos t r ou , a ss im . A boca f ez um imperc ep t í v e l mov imen to pa r a a d i r e i ta , um pequeno v in co de ss e l ado do r os to . É , p a re ce um so r r i s o s im . Mas por que so r r i a eu ?

Fe i t o de gosma e r i s o Jogador de m i tos Equac i ono qu imer as Sou começo e r o l i ç o E vou des cendo o ab i smo Do teu te r ç o . 113

113 Hilst, Hilda. Com Meus Olhos de Cão. Editora Globo. São Paulo. 2001. Pg 27

93

A câmera na mão acabou acontecendo, ao

cont rár io do que propunha como reg ra anter iormente ,

pe la d i f i cu ldade em se f i lmar no pequeno espaço da

sa la de sua casa e consegu i r capta r Gi lberto em sua

“dança v ibrac iona l” . No entanto, Sebast ian e eu f icamos

de fazer a mesma cena na Ponta da Pra ia com a

câmera f i xa .

114

Gi lber to em segu ida , nos conv ida para a lmoça r no

restaurante A lme ida , no cent ro de Santos conhecido por

seu famosos pe ixe Meca . Este restau rante era

f reqüentado por operá r ios que t raba lhavam na

maqu inar ia do bonde . Refeste lados de tanto comer nos

114 Frames feitos com a experiência do Dual Road.

94

preparamos para i r à Ponta da Pra ia . Sebast ian , a le rta

que Gi lberto poder ia estar cansado, mas G. Mendes não

se cansa nunca , aos seus 91 anos e le t inha mui to mais

carga de energ ia do que nos doi s na casa dos 30 anos .

No caminho para a Ponta da Pra ia começa uma

indecisão de Gi lbe rto em i r ou não. F ico sem sabe r o

que def in i r , po is o l imi te de le rea lmente nos era caro .

Ao chegarmos no meio do caminho começa uma chuva

f ina o que nos faz des is t i r de f i lmar na pra ia , não por

nós , mas por nosso ator .

Ao ass i s t i r o mater ia l b ru to , sent i que a emoção

de segurar a câmera e dançar jun tamente com Gi lbe rto

era forte no momento do efêmero , mas o reg i s t ro

de ixava a dese ja r , entend i que prec i sar ia de a lguém

com a câmera , pa ra que ass im pudesse f ica r l i v re em

observar e in te rv i r . Rudá não pode r ia a judar , então

pense i em Sebast ian Mez , que inc lus i ve é d i re to r de

fotog ra f ia . Achava que por Mez ter um traba lho mui to

ca lcu l i s ta em seus f i lmes c r ia r í amos uma boa f r i cção

com o meu je i to “nada ca lcu l i s ta” . Sebas t ian vol ta para

a Alemanha mas marcamos seu re torno pa ra o Bras i l

meados de junho .

Ent re f im de Ma rço e in ic io de Junho acabo tendo

que me vol ta r para a pesqu isa de mestrado que a inda

envol v ia na época o t raba lho de Cr is t iano Bu r lan

apenas . Por mot ivos da f i lmagem de Bur lan não conter

t raços de um processo co labora t ivo e ser uma ve rsão

de Hamlet acabo por optar , jun to com Cr is t ian Borges ,

95

em assumi r o Com Meus Olhos de Cão como pa rte da

d isse rtação jun to com Nowhe re ( também poster io rmente

acrescentado) , Desassossego e Ex - I s to .

Sebast ian Mez que vol ta r ia ao Bras i l em junho teve

que cance la r sua v iagem . Pensando em out ras pessoas

que pudessem pe lo menos me acompanhar em Santos ,

encontro He lo i sa Uru rahy, d i re tora de fotog ra f ia , com

quem já v inha conve rsando sobre out ros t raba lhos e

proponho uma v iagem no mês de Ju lho pa ra f i lma rmos .

E já pensando no fu tu ro momento da ed ição, conv ido

Alexandre (Leco) Wahrhaf t ig pa ra monta r o t raba lho .

Conheci A lexandre durante um grupo de estudos da Pós-

Graduação , or ien tado por Cr is t ian Borges . Em uma das

reun iões comente i sobre Com Meus Olhos de Cão e

Gi lber to Mendes e e le f icou surp reso , adorava o l i v ro e

gosta va de Gi lberto . Sim dar ia um grande samba essa

mistu ra H i l s t Mendes . F izemos uma reun ião em Maio e

mos tre i o mater ia l bru to e a lgo pré -montado que estava

t raba lhando para tentar const ru i r um rote i ro , mesmo

com a ausênc ia a inda de a lgumas imagens eu ut i l i zava

carte la de tex to exp l i cando o que ser ia aque la cena e o

que v i r ia depo is . Ao ve r o mate r ia l Alexand re comenta :

“é , va i dar t raba lho” . Não entend i se era um “s im” ou

um “não” , mas de toda mane i ra e le estar ia dentro do

proje to .

96

115

Novamente sobre a fotogra f ia , começo a v i sua l i za r

um tra tamento de imagem que pudesse rememorar a

co lo ração da v isão de um cão, com ausência de a lguns

tons e etc , como se passo a passo o f i lme pudesse i r

ganhando essa d i fe renc iação da cor . Escre vo :

116

115 Imagens do caderno pessoal de anotação de direção. 17/03/2014

97

E n q u a n t o S a n t o s n ã o v e m o u o u t r a s f o r m a s d e

c r i a r m a t e r i a l p a r a o f i l m e

No d ia 21 de Junho, Gi lbe rto Mendes vem à São

Pau lo mai s uma vez , pa ra apresentar uma perf ormance

no Museu do Futebol . O traba lho e ra d i r ig ido por

Gregór io Ganan ian e Dan ie l Kai rós 117, o qua l conhec i

pe los percursos expe r imenta is da arte e de “H i l s t ” e

re tomei conta to em uma au la da pós-g raduação na PUC

e depo is na USP. Ka i rós hav ia d i r ig ido um t raba lho

l ind íss imo baseado em Rút i lo Nada , de H i lda H i ls t , com

Don ize t i Mazonas e We l l ing ton Duarte .

Conv ido então para o evento He lo i sa e Alexand re

para ve rmos jun tos Gi lberto f i lmarmos , se nos fosse

poss í ve l , “a moda de guer r i lha” . Ao chegarmos na

perfo rmance encont ramos com Ka i rós que nos l ibe ra

para a f i lmagem.

He lo i sa f ica com uma câmera f i xa , e expe r imenta

tex tu ras com obje tos em f ren te à câmera , A lexandre f i ca

com câmera na mão, porém f i xo nos movimentos de

Gi lber to Mendes , eu gravo o som e f i lmo coisas mui to

exper imenta is do espaço . Meus d i rec ionamentos no d ia

ocor reram antes da perf ormance , quando conve rsamos

sobre o conce i to do f i lme , como pode r íamos faze r , o

que achávamos impresc ind í ve l ex is t i r e etc . Ambos

entram no proje to como se já t i vessem sido pa rte desde

o in íc io , sem problemas em propor idé ia s e etc , ao 116 Imagens do caderno pessoal de anotação de direção. 10/09/2013 (houve uma confusão na data descrita. Setembro de 2014 ainda não ocorreu.) 117 Daniel Kairós assina também como Daniel Fagundes em alguns dos seus Trabalhos, é o caso de Rutilo Nada.

98

cont rár io de Sebast ian , o qua l acred i tava que opinar

demais pode r ia in f luencia r e de um ce rto modo

atrapa lhar um di re to r . O caso é que aqu i o todo ia

sendo cons t ru ído em con junto, não hav ia nada fechado .

* * *

P a r a m o s p o r a q u i . . .P a r a m o s p o r a q u i . . .

A proposta pa ra a nova fase é fazer uma imersão

e passa r duas semanas em Santos , no mín imo ,

v ivenc iando e propondo coi sas com G i lber to e com

quem puder estar presente : He lo i sa , A lexandre , Rudá ,

Sebast ian , Dan ie l e etc .

Na data da defesa provave lmente este t raba lho já

terá mai s deta lhes que poderão se r in ser idos

poster io rmente . Ou quem sabe um pr ime i ro corte .

118

118 Desenho feito por Hilda Hilst, com assinatura ficcional de Amós Kéres.

99

PROCESSOS COLABORAT I VOS I I (PRÁT IC AS ) – ENTR E D I R ETOR ES

NN O W H E R E O W H E R E

Nowhere é um f i lme COLABORAT IVO, que vem sendo

cr iado em uma mesma di reção de Desassossego – f i lme

das marav i lhas . Neste f i lme houve uma propos ição

temát ica que fo i d i rec ionada a a lguns art i s tas os qua i s

dever iam também responder com f ragmentos f í lm icos que

far iam parte de um f i lme UNO.

S o b r e a p r o p o s t a d o f i l m e

Nowhere se in i c iou em Dezembro de 2011 com uma

propos ição da atr iz e também c ineasta F láv ia Couto a

vár ios art i s tas de out ras par tes do mundo. Se r ia uma

forma de d iá logo para l ida r com a idé ia de

“est range i ro” . O Proje to propunha como mote in ic ia l um

f i lme cole t i vo , onde cada um pudesse abordar a sua

v isão sobre este “ ser est range i ro” e ass im env ia r

reg is t ros de v ídeo pa ra compor a t rama . A pr inc ip io os

reg is t ros te r iam um teor autobiog rá f ico e documenta l .

Nowhere , su r g i u a p r i o r i c omo p ro je to ‘C i dades ’ em um momen to de t ra ns i ção pes soa l . Eu es ta va mu i t o i ns a t i s fe i t a com a s cond iç ões de t r aba l ho de uma a t r i z e com a qua l i dade de v id a e or gan i za ção ger a l da c idade de São Pau lo , Br as i l . Es t a ins a t i s faç ão ger ou min ha dec i são de mudança par a Pa r i s . Es te momen to de grande des i lu são com o s i s t ema da c idade em que eu mora va t r oux e a enorme sen sa ção de ‘d esp er te nc imen to ’ e de sab r oc hou a concep ção/ a r gumen to de

100

“Nowher e ” . 119

No d ia 2 de Jane i ro de 2012 F láv ia env ia por e-

ma i l o conv i te of ic ia lmente aos art i s tas e encaminha um

argumento e uma sér ie de “provocações” c r ia t i vas pa ra

que ass im os co laboradores movessem a cr ia ção de

seus respect i vos “ f i lmes-depoimen to” ou “ f i lmes -d iá r io ” .

D a s t e m á t i c a s

Como uma tenta t i va de cr ia r uma un idade para os

f ragmentos F láv ia estabe leceu a lgumas temát icas que

permeavam seus 9 meses de morada em Par is , fo ram

e las :

R o t i n a : Reve la r pequenos espaços do cot id iano , como

por exemp lo : os pe rcursos mais ut i l i zados , o meio de

t ransporte , a casa , o lugar onde se come , os horár ios

estabe lec idos por sua rot ina . Como se organ iza o d ia a

d ia e qua is s i s temát icas sempre se repetem .

R i t u a i s : Os pequenos in stantes de fuga do cot id iano,

que não se repetem, mas que acontecem em a lguns

momentos especia is quando cr iamos rea lmente uma

re lação de subje t i v idade dentro da cidade em que o

espaço pessoa l se reve la . Nesses momentos podemos

reve la r o “eu ” d i ssociado de contex tos e como e le se

re lac iona com o ambiente onde habi ta e qua is lugares 119 Depoimentos de Flávia Couto, escrito em Abril de 2014 e postado no BLOG do projeto http://cities-movieproject.blogspot.com.br/2013/04/sobre-o-processo-nowhere.html acessado em 22 de julho 2014.

101

da c idade potencia l i zam nossos r i tua is part icu la res .

P e r t e n c i m e n t o : Os espaços que se cr iam na cidade a

part i r da nossa in te r fe rênc ia e que nos geram a

sensação de pe rtenc imento . Os lugares , pessoas ,

re lações onde cons t ru ímos nossa ident idade , ambiente s

onde nos sent imos pa rte in teg rante de a lgo . É poss í ve l

também explo rar a re lação contrá r ia : o não

pertenc imento, onde nos sent imos expu lsos da cidade ,

os lugares que nos repe lem, as re lações , as

organ izações e os contex tos que nos d istanc iam e nos

fazem sent i r um se r a parte e d i ssociado do ambiente .

O l h a r d a c i d a d e : Os espaços e sonor idades que são

reve lados a part i r do nosso o lha r , os planos subje t i vos

de pequenos deta lhes que nos in teressam most rar da

nossa c idade . As co isas que nos chamam atenção .

A r q u i t e t u r a / u r b a n i s m o : A mane i ra como a cidade se

organ iza em sua est ru tu ra urbana e como os ed i f í c ios ,

suas regu la r i dades ou i r regu la r idades que in f luenciam no

comportamento dos ind i v íduos que a habi tam .

Foi cr iado um blog 120 para o proj e to , onde os art is ta s

ter iam a l i berdade de posta r f ragmentos de v ídeo,

imagens e tex tos que os t i vesse inspi rando. Di versos

obstácu los foram acontecendo dentro deste t ra je to : a

120 http://cities-movieproject.blogspot.com.br

102

fa l ta de verba , a fa l ta de tempo , a não respos ta de

a lgumas pessoas , a d i stânc ia , as d i f icu ldades de F láv ia

em Par is e etc . O b log acabou f icando pe rd ido e não

fo i mu i to usado, apenas a lguns esparsos mov imentos

que f icaram parados no tempo. A lguns art is tas se

des l iga ram do proje to e f ica ram apenas 8 mulhe res de

d i fe ren tes nac iona l idades , em uma s i tuação prov i só r ia ,

de adaptação em um outro pa ís .

* * *

Um a l e v e o b s e r v a ç ã o

Algo de mui to est ranho sempre acontece em

minhas parcer ias com F láv ia Couto . Na peça que d i r ig i

com e la atuando, a já c i tada . . .E o Meu Secador de

Cabe los me Comeu Nesta Madrugada , o conv i te hav ia

s ido fe i to pa ra homens e mulheres , dentro de uma

temát ica que abordar ia a so l idão urbana onde também

ut i l i zá vamos provocações temas como: a rot ina , a

masturbação, a obsessão etc . O cu r ioso d i sto tudo é

que tanto em Nowhere como em . . .E o Meu Secador . . .

(onde as temát i cas inc lus i ve d ia logam mui to , sendo

quase que uma extensão da peça pa ra o c inema) , os

art is tas que decid i ram par t ic ipa r e f icar até o f im do

proje to foram mu lhe res . O que faz de um olhar de fo ra

acred i ta r que estes acabem sendo proje tos de gênero

quando na rea l idade e les part i ram de um desconfo rto

humano e uma temát ica mais un i versa l .

103

* * *

Vo ltando à Nowhe re , à part i r dos e ixos temát icos

env iados por F láv ia e por seu t raba lho de condução

dramatúrg i ca fo ram se desenvo lvendo f ragmentos

const ru ídos em cada cidade e as 8 art is tas env ia ram

suas c o n t r a - p r o p o s t a s já f i lmadas:

A r g é l i a . Au r è l i e R a u z i e r e C l émen ce Zamo r a – Um co n v i t e (ma t e r i a l b r u t o )

Aurè l ie conv ida sua amiga Clémence para uma v iagem

rumo a Argé l ia , loca l donde seus ancest ra is v ie ram. Em

meio ao Ramada , cobe rtas com os véus t rad ic iona is ,

numa soc iedade onde o homem domina e a mulhe r

busca o seu espaço, as duas amigas redescobrem sua

sexua l idade e uma nova re lação surge entre e las .

B e r l i m e K ö l n . B i a n c a Z an ch e t t a - E x p r e s s õe s / I mp r e s s õe s (ma t e r i a l b r u t o )

Uma jovem est range i ra chega em Ber l im a f im de

rea l i za r o seu sonho de torna r- se ba i la r ina . Focado no

un iverso in terno da personagem, o f ragmento t ra ta da

re lação sensor ia l e pessoa l de la com esse novo

un iverso ao seu redor . A incomun icab i l i dade e a

d i f icu ldade de expressão em uma l íngua desconhec ida

são os temas pr inc i pa is que fazem do f i lme uma v iagem

sensor ia l à pe rspect iva do mundo in terno de uma jovem

que tem no corpo a pr in c i pa l f orma de expressar -se .

104

H o n g -K o n g . Ma n Wa i F o k - P r o c u r a nd o o c é u (ma t e r i a l j á e d i t a d o )

Hong-Kong , uma grande c idade do mundo mode rno com

mi lhares e mi lhares de ar ranha-céus . Aba ixo dos préd ios

g igantescos as ruas são est re i t as e compr imidas e as

pessoas condensadas são como formigas . E onde se vê

o céu? Quantas vezes o lhamos para o céu? A tra vés de

f ragmentos de imagem Man Wai reve la v i s tas de grandes

arranha céus e a man i festação de pessoas nas ruas ,

in te rca ladas com as f resta s do esquecido céu de Hong-

Kong , em meio a seus imensos ed i f í c ios .

L o n d r e s . Cam i l a Gan c - A l i b e r d a de em uma s o c i e da de de c on t r o l e (ma t e r i a l b r u t o )

Este f ragmento expr ime a poss ib i l idade da rot ina de um

ind iv íduo est range i ro em Lond res , a sol idão , a osc i lação

do r i tmo da cidade durante o d ia e as bruscas

mudanças cl imát i cas , a lém de explora r at ravés de uma

l inguagem corpora l , a busca da l i berdade de expressão

do corpo em lugares públ icos .

P a r i s . F l a v i a C ou t o – I mp e rma nên c i a s (ma t e r i a l

b r u t o )

O f ragmento conta at ravés da passagem das estações

do ano a pe rmanência de um ano de F lav ia , uma

bras i le i ra em Par is . São re ve lados f ragmentos de uma

busca de um reencont ro com si mesma, em uma cidade

ext remamente impermanente e contras tante pe lo g rande

af luxo de tur i s tas e imig rantes . Os pa rques de Pa r is no

pr ime i ro sol do ve rão, os metros aba rrotados no

105

inverno , os ba i r ros dos im igran tes , o verão che io de

tur is tas , a so l idão e vaz io das re lações das pessoas

na cidade luz .

S ão Pau l o . T ha í s A lme i d a P r a do - O r i g em/De s t i n o

(ma t e r i a l b r u t o )

O f ragmento aborda a c idade de São Pau lo a par t i r da

cr ia ção do espetácu lo da Cia . Auto -Ret ra to

Origem/Dest ino , um proje to de in tervenção teat ra l que

se des loca pe las ruas da cidade de São Pau lo . A

cr ia ção do espetácu lo t raz a tona à Cia . a d i f i cu ldade

de se des loca r e de coab i ta r as ruas de uma c idade

que se perdeu em seu plane jamento urbano e que tem

sido a lvo de d ive rsas proib i ções , inc lu s i ve art í s t icas . A

t ra je tó r ia da peça va i da Sé à Santo Amaro, e durante

o pe rcu rso de c r iação os ar t is tas esco lhem os melhores

t ra je tos que pe rm i tam deslocar o o lha r de um

transeunte comum. Ent re cr ises de processo entre a

própr ia Cia . ou a c r ise com a cidade os ar t is ta s se

deparam com memórias pessoa is re lac ionadas a lugares

e a his tó r ia rapidamente esquec ida de uma São Pau lo

em constante t ransfo rmação .

W a sh i n g t on . Emma Ja s t e r – I mp u l s o s (ma t e r i a l j á

e d i t a d o )

O impu lso c r ia t i vo de Emma a leva pe lo d ist r i t o de

Co lumb ia . Sua b ic i c le ta a impu ls iona no movimento da

cidade e e la descobre inspi ração in f in i ta . o f ragmento

106

explora os espaços cr ia t i vos que encontramos em

nossas c idades e em nós mesmos ."

Em meados de ju lho de 2012, para que o proje to

f icasse mai s concent rado , as art i s tas optaram por haver

duas d i re to ras ge ra is e esco lhe ram F la v ia Couto e Tha ís

de Alme ida Prado como esta s representantes , por

estarem morando novamente na mesma c idade (F láv ia

hav ia vol tado a morar em São Pau lo) . Os reg is t ros

aud iov i sua is fo ram chegando aos poucos e no f im de

2012 t ínhamos um mater ia l que não fa lava tanto do

“ser est range i ro” mas que d ia logava mui to ent re s i por

outras abordagens . E ra um olhar de in tervenção a rt í s t ica

no espaço. Esta s mu lhe res present i f icavam seus o lha res

at ravés da c r ia ção de arte , e ra mais que um reg ist ro

documenta l , era um reg i st ro pe rformát ico no espaço.

Foram r ea l i zados vá r i os en con t r os en t r e eu e Tha í s de A lme ida Prado e 2 meses ( Jane i r o e Fe ve re i r o de 2013 ) de comp le ta imer s ão na ed iç ão da p r ime i ra v e r s ão do f i lme . A ssum imos e s ta “ d i r eç ão ger a l ” ao in i c i a r a mon tagem, sob r e a p er sp ec t i va de un i r e ssa s h i s t ór i as , sem que se tor na ss e uma ed iç ão em “b l ocos ” mas s im que in t e r l i gas se c ada f r agmen to , c omo se toda s es ta s mu l he r es espa l hadas por es t a s c id ades f oss em uma só . 121

Durante a montagem do pr ime i ro corte , F lá v ia e eu

estabe lecemos como l inha norteadora as estações do

121 Depoimentos de Flávia Couto, escrito em Abril de 2014 e postado no BLOG do projeto http://cities-movieproject.blogspot.com.br/2013/04/sobre-o-processo-nowhere.html acessado em 22 de julho 2014.

107

ano, ass im, cada f ragmento i r i a se ama lgamando de

acordo com o que estas estações nos imp l ica vam, tanto

em termos de temát ica quanto em sensações , com a

l i berdade de não nos prender à uma pe rsonagem ou

outra podendo mixá - la s , já neste momento as s inopses

pré -env iadas por cada a rt i s ta começa a pe rder o

sent ido .

Com a pr ime i ra montagem “ f ina l i zada” descobr imos

que a ide ia de estações do ano não funcionava , e que

o e ixo temát ico era permeado pe la busca incessante de

um lugar onde estas mulheres pudessem se aqu ie tar , e

que este lugar aqu ie tador não estava lá : a busca e ra

por um não- lugar .

Toda s es t ávamos em um momen to de pas sagem , de bu sca , de encon t r o s , o lu ga r e ra ap enas uma ex tensão dess e s cor pos . Cada in d i v í duo as sumi u um pape l ma i or no f i lme , e ra c ada um em seu vaz i o , em seu lu ga r n enhum . A c i dade e ra uma con t in u idade des se corpo , do cor po no espaço . 122

Outro deta lhe des te pr ime i ro corte : fa l tava a lguma

espéc ie de humor, um “ r i r - se de s i ” , fa l tava a lgum

sarcasmo, e ac red i távamos que este ta l humor v i r ia com

a lap idação da ed i ção e com o t raba lho sonoro .

A medida que o f i lme fo i tomando corpo , fomos

resgatando mater ia i s guardados e cr iando novas cenas ,

a part i r do nosso olhar de d i reção. Percebemos l inhas

122 Depoimentos de Flávia Couto, escrito em Abril de 2014 e postado no BLOG do projeto http://cities-movieproject.blogspot.com.br/2013/04/sobre-o-processo-nowhere.html acessado em 22 de julho 2014.

108

de conexão entre todas as a rt i s tas : esta s mu lhe res

v ideo makers que se co locam f ren te à câmera gerando

uma espécie câmera-voye r de s i mesmas - uma

autobiogra f ia aud iov isua l ; a re lação com a dança ; com

a sol i tude ; e também l inhas de oposi ção : a c idade

movimentada e opressora de São Pau lo , as

man i festações nas ruas de Hong-Kong , a harmon ia , a

qu ie tude e as cores de Wash ington .

Com este s e lementos fomos e laborando r i tmos que

amalgamar iam cada f ragmento por s i só, ou me lhor

d izendo cada anagrama f í lmico, como Maya Deren def ine

para seu t raba lho c inematog rá f ico:

Em um anagr ama todos os e l emen tos ex i s t em em uma r e l aç ão s imu l tâ nea . Con sequen temen te , c om i s t o , n ada é an tes e nada é depo i s , nada é fu tu r o e nada é pas sado , n ada é ve l ho e nada é novo . . . Cada e lemen to de um anagr ama es tá t ão re l ac i onado com o todo que nenhum de l es pode s e a l t e r a r sem a fe ta r s ua sé r i e e ass im a f e t a r o todo . E , i n v e r s amen te , o todo é tão re la c i onado a toda s as pa r t es que se lê na hor i z on ta l , v e r t i ca l , d ia gona l ou a té mesmo no sen t ido in ve r s o , a l óg i c a do todo não é in te r r omp ida , mas p ermanece in t ac ta . 123

Foram gerados então novos capí tu los- temas , os

qua is ser iam nossa nova l i nha norteadora : Das

Chegadas ; Das pe rmanência s ; Das desped idas ; e

inc lu ímos depois Das explosões/ ebu l i ções .

123 Bill Nichols (ed.), Maya Deren and the American Avant-Garde, Berkeley: University of California Press, 2001, pag 6.

109

124

Hav ia uma discussão ent re F láv i a e eu sobre c r ia r

carte las com este s t í tu los ou não. Eu acred i tava que

estas carte las fechar iam mui to um o lha r do espec tador ,

já F láv ia achava que os t í tu los poder iam serv i r como um

norte a quem ass i s t ia . Nunca batemos o marte lo em

uma das opções , a té o momento .

Durante a ed ição fomos sent indo fa l ta de mais

mater ia i s que compusessem o corpus do f i lme . Aurè l ie e

Clémence já não estavam mais na Argé l ia (e ambas já

t inham mandado bastante mater ia l ) , Man Wai hav ia

acabado de se casa r e “desapa rec ido do mapa” , Emma

hav ia de i xado Washington e vol tando pa ra a França e

Cami la , em Londres , não t inha mais câmera . Dec id imos

124 Caderno de anotações de Flávia Couto, 01.02.2013

110

então f i lmar novas cenas minhas em São Pau lo , agora

com a a juda de F láv ia e re tomamos um mate r ia l fe i to

em Be r l im com Bianca Zanchet ta e que eu hav ia

abandonado desde 2010 (um exper imento de v ídeo-

dança para uma perf ormance de la ) . A lém disso

“rec i c lamos” v ídeos meus fe i tos na França que poder iam

se conecta r com a es tad ia de F láv ia (no f i lme) por lá .

Nesse momen to , de ed iç ão imer s i va , f or am inc lus i v e g ra vada s nova s c enas e f o ram res ga tados mate r i a i s de Ber l im que Tha í s hav i a f i lmado com B ian ca Zan che t t a em 2010 ( f r a gmen tos es t es que es ta vam enga ve tados pa ra um t r aba l ho de v i deodança das duas a r t i s t as ) e ou t r os p roce ssos c r i a t i v os que eu , Tha ís e B i anca v i v emos ju n tas em nosso co l e t i v o de pe squ i s a C i a . ÔCA . 125

Fechamos então um segundo corte 126 de 66 minutos ,

em meados de Março de 2013 . O corpus do f i lme se

pautava pe lo movimento . O f i lme ser ia uma grande

coreog ra f ia onde ebu l ições , ca lmar ias , movimentos de

chegadas e par t idas c r ia r iam a narra t i va r í tmica desta s

mulhe res que representavam um ser só : o mesmo que

v iv ia em sua ete rna busca de um lugar , o seu luga r ,

seu não- lugar .

125 Depoimentos de Flávia Couto, escrito em Abril de 2014 e postado no BLOG do projeto http://cities-movieproject.blogspot.com.br/2013/04/sobre-o-processo-nowhere.html acessado em 22 de julho 2014. 126 DVD do segundo corte acompanha a dissertação.

111

127

Ass im como nos f i lmes de Maya Deren

pre tend íamos uma nar ra t i va que fosse estabe lec ida pe la

ide ia de r i tmo, F lá v ia Couto em sua d isse rtação de

mest rado ci ta Meshes of Af te rnoon como um exemp lo

d isto :

127 Caderno de anotações de Flávia Couto.

112

Meshes o f A f te r noon é um f i lme s i l e nc i o so , sem d i a logos , c omun ic ação en t r e seus per sonagens ou som d i r e to . Te i j i I t o fe z a t r i l ha do f i lme após a mor t e de Deren . Os sons dos pas sos de De ren são me ton im ic amen te acompanhados pe l a perc ussão de Te i j i I t o . A t r i l ha f o i i n s p i r a da na noção de E i s en s te i n de mon tagem r í tm ic a . Em Der en , o r i tmo su r ge da r epe t i ção e va r i aç ão de s eus exp er imen tos na r ra t i v os . ‘Meshes of A f t e rnoon ’ i n s t a l a um es t i l o in ovador por cor t a r a ação quando os pa ssos da p r o ta gon i s ta pa ssam por t e r r e nos de s ig ua i s como a p ra ia , a te r r a , a g rama e o conc r e to . O r i tmo do a tabaque ma rca a de scon t i nu i dade espac i a l , a la cuna de t empo . ‘Meshes ’ é como a enc enação de um sonho , uma t r a je tór i a na r r a t i v a i l óg i ca , em que o f lu x o de mov imen to e a a tmos fe r a conv idam à con temp la ção e a t ran sc endênc i a , en vo l vendo o espec tador . 128

Deste corte , chegamos a um l imbo. Ex is t ia uma

“bar r iga” em determ inada parte do f i lme e fa l ta va

a lguma coisa para have r a sensação de que es távamos

caminhando pa ra um f ina l . O traba lho sonoro , que se r ia

const ru ído como uma segunda l inha narra t i va e

“coreog rá f ica” do f i lme a inda não hav ia s ido fe i to , mas

já ex is t iam esboços que faz iam parte des te cor te .

Env iamos este corte pa ra nossas out ras pa rce i ras ,

todas deram um feedback e suger iam cenas , fa lavam

sobre o que sent iam fa l ta e como se ident i f ica vam com

o traba lho . 129 Estes comentá r ios nos f ize ram reve r

e lementos no f i lme e rea f i rmar outros .

128 Couto, Flávia. Mitopoéticas do Corpo. Dissertação de mestrado para o Programa de Artes Cénicas da Escola de Comunicações e Artes da USP. 2008. Pg. 28 129 Em anexos é possível ter acesso ao feedback enviado pelas outras artistas.

113

130

130 Cadernos de notas de Thaís de Almeida Prado.

114

Na próx ima etapa então , começamos a mos tra r a

pessoas d i stanc iadas do proje to . F izemos um jantar em

minha casa e apresentamos Nowhere para amigos bem

próx imos . A lguns de les se desprenderam do f i lme sa í ram

para conve rsa r e faze r out ras co isas , outros f icaram

bem atentos . Na conversa , a maior ia apontou que em

determinada par te do f i lme a lgo se perd ia da

const rução. “MAS O QUE?”

* * *

I n t e r r u p ç õ e s d o mod u s o p e r a n d i s – m a i s u m a v e z

S ã o P a u l o n o s a t r o p e l a .

Eu t ive que parar . . . escre v ia minha qua l i f icação .

Nowhere não era parte . F láv i a prec i sava t raba lha r .

Ti vemos que dar um tempo ao f i lme . Tempo es te que

para nós se rv i r ia de respi ro . Respi ro para vo l ta rmos ao

f i lme com um novo o lhar , aque le do “ve r com o lhos

l i v res ” 131 . Antes da pausa no entanto, ma i s uma chance :

mos tra r para t rês pessoas : Rudá K . And rade , Rubens

Rewa ld , Sebas t ian Mez .

* * *

131 Frase de Oswald Andrade em Manifesto da Poesia Pau-Brasil, 1924.

115

132

Ao ve rem o f i lme , Rudá e Rubens concordavam em

vár ios aspec tos , se por um lado Hong-kong para

Sebast ian parec ia pe rd ido no espaço, para Rubens e

Rudá faz ia sent indo na t rans i ção que cr iamos - a sa ída

132 Caderno de anotações de Flávia Couto sobre reunião com Rubens Rewald e Rudá K. Andrade, meados de Maio e Junho de 2013.

116

de Tha ís da “ba lada Netão” , em São Pau lo , pa ra a

man i festação che ia de fogos de art i f í c i o de Man Wai em

Hong-Kong . Para e le s não era o s ign i f icado da cidade

em si , po is Hong-Kong quase não ex i s te no f i lme (Man

Wai mandou um f ragmento ed i tado de 3 minutos

apenas) , mas a ide ia dramatú rg i ca como um todo. Esse

anagrama que cr ia um sent ido própr io ao se conecta r

com out ro . Sebas t ian suger ia que a cena do e levador

fosse o in ic io do f i lme , por ser est ranha , te r um ce rto

humor e dar uma sensação claust rofóbi ca , a lgo que se

repet ia na tenta t i va das pessoas de sa í rem do e levador

que e nunca acontec ia pois sempre chegavam ao andar

errado, pa ra e le com esta cena no in íc io dar íamos

margem à temát ica do f i lme em si . O começo pa ra

todos deve r ia dar ind í c ios do que ser ia o f i lme . O

contemp la t i vo do começo e ra in te ressante pa ra Rubens

e Rudá , mas prec isa r íamos repensar tudo pa ra não

perde rmos o f io da meada no meio do f i lme , como já

estava ocor rendo .

Fa l tava um ponto de v i rada no f i lme , a lgo que

chacoa lhasse tudo e não recomeçasse o r i tmo que hav ia

s ido imposto no começo . Fa l tava a lguma re v i ravol ta .

Todos concordavam que as cenas in t imi stas em

certos momentos do f i lme , p r in c ipa lmente entre Au ré l ie

e Clémence eram mui to boas e t raz iam o espectador

para o lado c ru destas mu lheres . Sebast ian sent ia

necess idade de ve r mai s d is to no f i lme , por exemp lo :

menos Tha í s t raba lhando na peça e nas man i festações e

117

ma is Tha ís em seu ín t imo . Em F láv ia e le sent ia a

necess idade de ver mais co isas , parec ia que e la ia

sumindo no decor rer do f i lme . Porém se a ide ia do

f i lme e ra cr ia r ju stamente uma un idade onde todas

estas mu lheres s ign i f i cassem a mesma mu lhe r , então

mos tra r momentos in t im ista s de todas ou tenta r mantê-

las presentes a todo momento , t ra r ia a ide ia de sé r ie ,

mesmo que f ragmentada , como se prec i sássemos ve r a

histó r ia de uma e depois de outra . I s to era a lgo que

F láv ia , eu e as outras art is ta s não quer íamos mai s . Nós

nos afe içoávamos à ide ia de nos to rnarmos un íssonas e

não t ínhamos prob lemas em desapegar do nosso

mater ia l env iado in ic ia lmente .

Rubens Rewa ld perguntou : porque um longa?

In ic ia lmente o f i lme nasceu como um longa , e estava se

tornando longo dada a quant idade de mater ia l b ru to

que t ínhamos . Mas ao ed i ta r , e ao ass i s t i r d ive rsas

vezes percebemos que longa , média ou cu rta não

impor tava . O f i lme dever ia te r o seu tempo, o tempo

que fosse necessár io pa ra e le ex is t i r , podendo ou não

se tornar um curta -met ragem.

* * *

118

A l g u m a s d e l o n g a s a n t e s d o f i m . . .

Nowhere é um proje to “p rovocado” por F lav ia Couto,

que conv idou a lguns d i re to res de d i fe ren tes pa íses a

env ia rem o lha res sobre a c idade em que v ivem , sem um

rote i ro prév io , o foco c r ia t i vo ganhou forma rea lmente

na montagem.

A co-d i reção do proje to então se deu pe lo mate r ia l

que fo i recebido dos out ros a rt i s tas , sem se ter a

mín ima ide ia do que se r ia env iado . Foi na sa la de

ed ição que o d i rec ionamento do f i lme como um produto

f ina l se deu , na escolha das imagens do a rqu ivo bru to ,

na escolha das sequências de re lação ou oposi ção ,

como se fosse a c r iação de uma par t i tu ra musi ca l ou

uma coreogra f ia de dança . Di fe ren temente do f i lme O

Desassossego – o f i lme das marav i l has , onde um di re to r

vem em seqüência de out ro , aqu i optou-se por mesc la r

todas as art is ta s em uma só como se fossem todas uma

ún ica personagem, um anagrama de idé ias que const i tu i

um macro , como reta lhos que montam uma co lcha .

Cada art is ta c r iou o seu rote i ro pré v io , porém a

dramaturg ia do f i lme como um todo fo i e tem s ido

descobe rta durante a montagem, nascendo uma out ra

temát ica que ext rapo la o que hav ia s ido in ic ia lmente

pensado . Conversamos com as ou tras ar t is tas que deram

suas op in iões ; opin iões es tas que poder iam s im

in f luencia r e contaminar decisões , porém a inda ass im a

decisão cabia e a inda cabe (porque o proje to a inda não

está f ina l i zado) à mim e à F láv ia que assumimos a

119

d i reção gera l . O que nos leva a um f i lme cons ide rado

co laborat ivo e não cole t i vo , porque aqu i há uma

lapidação por pa rte da d i reção/montagem, ass im como

ocor re em Desassossego .

Descobr imos que es te f i lme nos leva por uma l inha

coreog rá f ica e sonora , não pe la a dança que

conhecemos em si , mas pe lo s imp les fa to de que

cinema é imagem em movimento, e este mov imento nos

leva de uma imagem à out ra c r i ando laços de h istór ias

s ingu la re s que se t ransformam em uma . Nossas

personagens tem em sua busca o mesmo e lemento : um

eterno buscar do que não é , não está e não se tem .

133

133 Cadernos de notas de Thaís de Almeida Prado.

120

SS E M F I M C O M E M F I M C O M FF I MI M

Neste ponto da esc r i ta , me despeço. Dois processos

de cr iação colaborat i va a inda estão em fase de se

descobr i rem como um resu l tado. Se levantarmos a

questão de que certos t i pos de obras de ar te se dão

justamente por seu processo de fe i t io , ao re la tar este s

proced imentos podemos ter noção de uma ínf ima parte

do modo de c r iação de seus ar t is tas . Ao ve rmos este s

quatro f i lmes , dois f ina l i zados entre 2010 e 2011 e

outros doi s a inda buscando seu percurso f ina l , podemos

percebe r ce rta s imi la r idades em suas respect i vas

const ruções . Ex - I s to e Desassossego – f i lme das

marav i l has t i ve ram apo io f inance i ro do Inst i tu to I taú

Cu ltu ra l , mas a inda ass im não chegaram a ter uma

verba de grande porte , qu içá médio . Traba lha ram com

equ ipe reduz ida e consegu i ram move r um núcleo de

d i re tore s que se d ispôs a fazer f ragmentos f í lmi cos mai s

pe la vontade de fazer c inema que pe lo d inhe i ro em si .

Em Com Meus Olhos de Cão e Nowhere , os a rt i s tas

partem sem nenhuma base f inance i ra , mas pe la

ins is ten te vontade de se fazer c inema . As pessoas que

se un i ram a estes pro je tos encaram is to como uma

necess idade de se expressar , e unem forças para que

as “dores ” do faze r se jam min imi zadas . Sim , este s novos

modos de produção ocorrem como uma fo rma de

guerr i lha na tenta t i va de não nos de ixar se rmos

121

engol idos por g randes produtoras ou então pe la espera

de ed i ta is que poucos são , para os mui tos que somos.

E ass im , sem f im, cont inuamos .

122

B i b l i o g r a f i aB i b l i o g r a f i a

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A n e x o sA n e x o s

CC A R T A D O A R T A D O DD E S A S S O S S E G OE S A S S O S S E G O

EE S B O Ç O D E R O T E I R O P A RS B O Ç O D E R O T E I R O P A R A S E A B A N D O N A RA S E A B A N D O N A R :: CC O MO M MM E U S E U S OO L H O S D E L H O S D E CC Ã OÃ O

COM MEUS OLHOS DE CÃO Para Gilberto Mendes 1 – IMAGENS AO VENTO INT. - CANTO ENTRE PAREDE E TETO (CASA DO SOL) – DIA

NARRADOR / Gilberto Mendes Deus? Uma superficie de gelo ancorada no riso. Isso era Deus. Ainda assim tentava agarrar-se àquele nada, deslizava

geladas cambalhotas até encontrar o cordame grosso da âncora e descia descia em direção àquele riso.

INT. - UMA CADEIRA DE BALANÇO (CASA DO SOL) – DIA

NARRADOR / Gilberto Mendes Tocou-se. Estava vivo sim. Quando menino perguntou à mãe: e o cachorro?

INT. - – INT. - PAREDE COM MOLDURA DE QUADRO ANTGO DE MULHER NO CANTO (CASA DO SOL) – DIA

NARRADOR / Gilberto Mendes

A mãe: o cachorro morreu. Então atirou-se à terra coalhada de abóboras, colou-se a uma toda torta

INT – IMAGENS DE TERRA E DE PLANTAS (CASA DO SOL)

NARRADOR / Gilberto Mendes cilindro e cabeça ocre, e esgoelou: como morreu? Como morreu? O pai: mulher esse menino é idiota.

AUSÊNCIA DE IMAGENS

PAI (VOZ OFF)

Tira ele de cima dessa abóbora! Morreu. Fodeu-se

2 – INSERT – MÃO GESTICULA “FODER” PAI

(VOZ OFF) FODEU-SE.

3 – INT. - ESPELHO E REFLEXO DE UM HOMEM (CASA DO SOL) – D IA AMOS KÉRES / GILBERTO MENDES de frente para o espelho.

AMOS KÉRES/ GILBERTO MENDES (olhando sua imagem no espelho)

Assim é que soube da morte. Amos Kéres, quarenta e oito anos, matemático, parou o carro no topo da pequena colina, abriu o carro e desceu.

4 – EXT. MONTE SERRAT (ou PRAIA) – D IA AMOS KÉRES / GILBERTO MENDES e REITOR estão na colina e olham o horizonte. Muita ventania. Do topo da colina avista-se UNIVERSIDADE, PROSTIBULOS, IGREJA, ESTADO, UNIVERSIDADE.

AMOS KÉRES

Todos se pareciam. Cochichos, confissões, vaidade discursos, paramentos, obscenidades, confraria.

REITOR Professor Amos Kéres, certos rumores chegaram ao meu conhecimento.

AMOS KÉRES

Pois não. Quer um café?

REITOR Não.

(o reitor tira os óculos e mastiga suavemente uma das hastes)

AMOS KÉRES Não quer mesmo um café?

REITOR

Obrigado. Não. (pausa) Bem, vejamos, eu compreendo que a matemática pura evite as evidencias, gosta de Bertrand Russel, professor Amós?

AMOS KÉRES

Sim.

REITOR Bem, saiba que jamais me esqueci de uma certa frase em algum de seus magníficos livros.

AMOS KÉRES Dos meus?

REITOR

O senhor escreveu algum livro professor?

AMOS KÉRES Não.

Sim! Memórias...

REITOR Falo dos livros de Bertrand Russel;

5 - INSERT – EXT. IMAGENS DA V ISTA DA COLINA COLINA

AMOS KÉRES

ah!

REITOR E a frase é a seguinte:

“a evidência é sempre inimiga da exatidão”.

AMOS KÉRES Claro.

Amós começa a andar contra o vento e a câmera o segue.

REITOR (OFF som contra o vento)

Pois bem, o que sei sobre suas aulas é que não só elas não são nada evidentes como... (TOQUE DE TELEFONE) Perdão. (O REITOR ATENDE O TELEFONE) alô, alô, claro minha querida, é evidente que sou eu, agora estou ocupado, claro meu

bem, então vá levá-lo ao dentista, sei sei...

AMOS KÉRES (passa a l íngua sobre as gengivas)

Também deveria ir ao dentista.

6 - ISERT – DETALHE DE UMA BOCA ABERTA. VEMOS APENAS OS DENTES.

REITOR / DENTISTA (OFF)

Claro que ele tem que ir, com a idade tudo vai piorando ele chegou a me dizer da última vez, quando foi mesmo?

7- INT. - ESPELHO E REFLEXO DE AMOS KERES (CASA DO SOL) – D IA Amós está sentado em frente para o espelho e olha seus dentes. O diálogo é como ele com a própria imagem.

REITOR (OFF)

Não importa, mas disse senhor Amós, há uma tensão em toda a sua mandíbula, tensão de um executivo falindo, é fantástico, o senhor não acorda com dores nos maxilares?

AMÓS KÉRES

Acordo

REITOR (OFF)

Então é isso. Temos que acertar a sua arcada.

AMÓS KÉRES Quanto?

REITOR (OFF)

Ah, é um trabalho difícil.

AMÓS KÉRES Mas quanto?

REITOR (OFF)

Ah, dispendioso, veja, temos que acertar todos os dentes de cima e quase todos os de baixo, os de baixo são importantíssimos, nunca se deve perder um dente de baixo, são suportes para futuras pontes, o seu aqui de baixo tá todo

roído.

BARULHO DE UMA MAQUININHA DE OBTURAR.

REITOR (OFF)

Bem onde é que estávamos professor Amós?

AMÓS KÉRES (olhando para o espelho e fazendo caretas para si mesmo)

Nas evidencias.

REITOR (OFF)

Ah Sim. ( baixa o óculos de dentista) O senhor parece não me levar a sério.

AMÓS KÉRES (Com a boca aberta tentando sorri e dificuldade de falar)

Como assim?

REITOR (OFF)

Notei que sorriu de um jeito um pouco, digamos, professor, um jeito condescendente, assim como se eu fosse... tolo?

AMÓS KÉRES (ainda tentando fazer caretas)

Impressão sua. Apenas também me lembrei de uma frase.

REITOR (OFF)

Diga professor

AMÓS KÉRES Então eu digo a frase: “inventar um simbolismo novo e difícil no qual nada pareça evidente”, ele achava isso bom.

REITOR (OFF) Quem?

AMÓS KÉRES

O Bertrand Russel.

REITOR (OFF) AH.

Continuemos, professor (barulho da maquininha de dentista novamente). Não posso me demorar muito mas por favor tire férias, vinte dias, descanse.

AMÓS KÉRES

Mas o senhor não me falou claramente dos rumores.

REITOR

(OFF) Como queira: há evidentes sinas de vaguidão.

AMÓS KÉRES

Como?

REITOR (OFF)

de alheamento, se quiser sim, de alheamento de sua parte durante as aulas.

8- EXT. MONTE SERRAT (ou PRAIA) – DIA – SOL QUEIMANDO vemos Amos Kéres com um olhar longe, fora daquele lugar.

REITOR / DENTISTA (OFF)

frases que se interrompem e que só continuam quinze minutos depois, professor Amós, quinze minutos é demais, consta que o senhor simplesmente desliga.

AMÓS KÉRES Desligo?

Que frases eram?

REITOR / DENTISTA Não importa, por favor descanse, tome vitaminas, calmantes.

(Tira novamente seus óculos, cobre os lábio superior com o de baixo, suspira, sorri) Vamos vamos, não se aborreça, o senhor tem sido sempre escorreito, excelente mesmo, mas cá entre nós... ( O reitor

segura Amós pelos pulsos) cá entre nós, eles não estão entendendo mais nada.

9 – INSERT – UMA GAIOLA COM UM PÁSSARO DE BRINQUEDO DENTRO, NA QUINA DE UMA JANELA ENTREABERTA - D IA

NARRADOR / Gilberto Mendes (OFF)

Estranho... na última aula repensamos fraldas, inícios... a raiz quadrada de um número negativo. Citei um matemático do século doze, Bramine Bascara: “o quadrado de um número positivo, tal como o de um numero negativo é posittivo.

10 - INT. QUARTO DE PROSTÍBULO (CASA DO SOL) ARRUMADO, ONDE ESTÁ A GAIOLA. Vemos detalhes de roupas de mulher, a cama, abajur, pedaços da cortina. A câmera percorre o quarto enquanto há a voz off.

NARRADOR / Gilberto Mendes (OFF)

Portanto a raiz quadrada de um número positivo é dupla, ao mesmo tempo positiva e negativa. Não há raiz quadrada de um número negativo, pois o número negativo não é um quadrado”, no entanto Cardan, no século dezesseis...

LIBITINA / Flavia arruma o quarto. Amós Keres/ Gilberto Mendes lê um livro de Calculo INFINITESIMAL.

NARRADOR / Gilberto Mendes (OFF)

Na adolescência a professora de redação pedira três contos breves. Short stories, meninos, sabem o que são short stories? Alguns babacas levantaram a mão. Muito bem, quem não souber pergunta aos outros, muito bem. Dois de meus colegas mostraram-me continhos imbecis, farfalhar de folhas passarelhos nos ramos brisas na cara etc. Aí escrevi: Primeiro conto (vulgo short stories) - Mãezinha, ando farto das tuas besteiras sobre moralidade e família à hora do jantar. Já te vi várias vezes chupando o pau de papai. Me deixa em paz. Assinado, Júnior. Segundo conto (vulgo short stories) - Vidinha, pensa bem, tu tem cinquenta e eu vinte e cinco. Tu diz que é o espírito que conta. Eu compreendo Vidinha, mas tô me mandando. Não deprime. A gente se cruza, tá? Assinado, Laércio. Toda essa fala eu ouvi tomando guaraná no balcão de um armazém. Ele era um garotão, ela uma gordota de olho pretinho. Terceiro conto (vulgo short stories) - O nome dele é Sol e Adultério. O do meu marido é Elias. Meus filhos se chamam Ednilson e Joaquim. Tenho vontade que todos morram. Menos ele. (Aquele primeiro, luz e cama.) Sinto muito meu Deus, mas é assim. Assinado: Lazinha.

Deste eu gosto muito. Adultério me parecia na adolescência uma palavra belíssima. Agora também. Luz e cama foi um achado. A professora esbofeteou-me a cara. O pessoal do farfalhar de folhas passarelhos nos ramos brisas na cara teve como prêmio um piquenique. As notas mais altas de redação praqueles bobocas. Fui expulso. Perdi o ano. Peguei pneumonia. Os coleguinhas mandaram-me um poema breve: Bancou o sabido, o espertinho, o vivo/ e só se fodeu/ Amós, o inventivo.

LIBITINA / FLAVIA Pode ficá meu lindo, fica fica, fica estudando, só que depois tu dá uma mãozinha praquele meu contador que é uma

besta.

AMÓS KÉRES (OFF)

Libitina. Teu nome é Libitina mesmo?

LIBITINA / FLAVIA É sim, confundiram com outro. Um primo da minha mãe disse pro suposto meu pai que Libitina tinha qualquer coisa a ver

com a palavra paixão. A mãe achou bonito.

AMÓS KÉRES Paixão? Não era libido não?

LIBITINA / FLAVIA

O que? e eu sei, Amós? Só sei que depois disseram que tava tudo errado. Um primo desse meu outro primo procurou saber nos livros e descobriu que Libitina era uma velha que tomava conta dos presentes que a gente faz pros mortos. Micologia.

AMÓS KÉRES Que? Não é mitologia não?

LIBITINA / FLAVIA E eu sei, Amós? Escuta, tu fala tão pouco. Tu vem aqui, traz os livros, e nem tem letra nesses livros, que jeito besta de ficá aqui. Sabe que tu tem um apelido? Brocha-Mula.

AMÓS KÉRES Por que?

LIBITINA / FLAVIA

Porque de tão serioso que tu é, tão fechadão, tu é capaz de brochá uma mula toda prontinha na beira do barranco. Fala um pouquinho com a sua Libitina, fala benzinho. Era toda dura. Como se você pegasse em borracha, aquelas retangulares, branconas. Os pés infimos, quadradinhos, fofudos. As pernas um tronco só, do tornozelo ao joelho. As coxas melancias estufadas. O púbis saltado como se de espanto te visse pela primeira vez, e estava ali saltando. Rija Libitina, os peitinhos dos vinte. Arfava fingindo, expulsava ós ais benzinho tu me mata me corta de gilete me põe o armário em cima e outras idiotias, os dentes de criança, a gengiva larga, põe no meio das minhas coxas teus livrinhos, ela pediu uma vez como se suspeitasse de alguma tara minha, não quer? não quer gozar pertinho do que você mais gosta, desses teus livros hen, não quer benzinho? 11 – INT. PROSTÍBULO - CENA DO CABARET Um salão grande com um palco, e uma cama redonda ao centro. Na cama uma prostituta / cantora lírica canta um poema de HILDA HILST. AMOS KERES está no meio de suas penas e diz fragmentos de texto sobre a existência...

AMOS KERES (OFF)

Palavras. Essas eram as teias finíssimas que jamais conseguira arrancar perfeitas inteiriças da massa da terra dura e informe onde jaziam. Não queria efeitos enganosos, nem sonoridades vazias.

NO CABARET, ESTÃO ALGUNS PERSONAGENS COMO HILDE (A PORCA), SEU MARIDO ISAIAH, PESSOAS DANÇANDO.

AMOS KERES (OFF)

Isaiah. A gente se entende. Eu entendo Isaiah. Isaiah vive com uma porca dentro de casa.

ISAIAH Peguei um afeto, Amós, por esse animalzinho, ela se chama Hilde e apareceu sem mais nem menos lá em casa, é afável,

boníssima, me faz grande companhia.

AMOS KERES E a matemática?

ISAIAH

Ah, me ajuda muito ter a Hilde lá em casa, não aborrece, não loqueia, é branda paciente silenciosa. Uns fungados às vezes, mas isso só me esquenta, por dentro, sabe?

AMOS KERES

Sei.

OUTRAS PROSTITUTAS DEITAM NA CAMA E AMOS KERES COMEÇA A LER UM LIVRO DE CALCULO INFINITESIMAL 12- INT. - ESPELHO E REFLEXO DE UM HOMEM (CASA DO SOL) – D IA AMOS KÉRES / GILBERTO MENDES de frente para o espelho.

NARRADOR / Gilberto Mendes (OFF)

Música, poesia e matemática. Rompe-se a negra estrutura de pedra e te vês num molhado de luzes, um nítido inesperado. Um nítido inesperado foi o que sentiu e compreendeu no topo daquela pequena colina. Mas não viu formas nem linhas, não viu contornos nem luzes, foi invadido de cores, vida, um fulgor sem clarão, espesso, formoso, um sol-origem sem ser fogo. Foi invadido de significado incomensurável. Podia dizer apenas isso. Invadido de significado incomensurável. E como foi a noite anterior? 13 - INT. SALA COM PIANO – DIA AMOS KÉRES / GILBERTO MENDES toca o piano obsessivamente. Música, Poesia e Matemática. partitura aritmética

Um caminho sem passos. A asa da ave toca Essa virgindade.

Duração. Duradouro. O ouro do teu nome Na água que escorre.

Debaixo das romãs Toquei teu rosto

Dormiste? Uma mulher, AMANDA anda pela sala de um canto a outro, seus braços morenosos alçavam-se e despencavam agitados. A camisola é verde-pálido, de jérsei, esse que fica colado nas tetas, na barriga

AMANDA Amós, número é bom quando se tem conta no banco tá?,

Amos continua tocando (ele pensa eu não podia ter casado nem ter tido fi lho algum) o FILHO entra no quarto.

FILHO (OFF)

mãe, o pai que é bom de aritmética, diz pra ele fazer esse problema aqui.

AMANDA De jeito nenhum.

AMOS KÉRES / GILBERTO MENDES para de tocar o piano e se olha, a cor de seu pijama também verde-clarinho como a de AMANDA. Olha ao seu redor e tudo parece estar verde-clarinho. AMOS Sente um pouco de enjôo. Olha o dorso das mãos, as veias parecem mais saltadas

AMOS Estas mão poderiam ter feito carpintaria. Teria sido bom.

Mesas cadeiras, oratórios por que não? Estaria ajoelhado agora?

Catres. Uma só pessoa é que cabe num catre. Esses estreitos.

FILHO (OFF)\

O menino começa a chorar.

AMOS Dá logo isso.

AMANDA

coisa nenhuma, faz o problema sozinho e quer saber? Tá na hora de deitar.

O menino continua chorando. Amanda continua galopando eternamente com sua camisola verde-clarinho, suas tetas, suas coxas.

AMOS Que engodo tudo isso de filhos e casamento, penso um tiro no peito. Um tiro no peito. É preciso amar, Amós, afinal é

tua mulher, é teu filho.

AMOS Vai deitar, filho, faz sozinho que é melhor pra você.

O menino sai.

AMOS

Vem cá, Amanda. (Ela não vai).

Amanda começa a tagarelar. O discurso é extenso. Ficam alguns trechos: jantar, casa de amigos, restorantes, dançar às vezes por que não. Amanda entediada. Os braços continuam sua batalha aérea. Dançar. O CENÁRIO VAI MUDANDO AOS OLHOS DA CÂMERA E SE TRANSFORMA EM QUARTO. Amos tenta fazer com que Amanda se deite. Ela quer continuar discursando e galopando.

AMOS OFF

Um tiro no meu peito ou no dela?

AMOS Discurse deitada.

Amanda enfim se deita.

Amos deitado na cama olaha para a câmera.

AMOS Entre eu e Amanda o que? O que são sentimentos afinal? Como é que vão-se embora assim sem um fio de vestígios?

Alguma vez estiveram ali? Afinal tudo deixa um certo rasto. Na morte ossos, depois cinzas. Vestígios na urna. O passo de alguém. Aquele estava de tênis. Aquele, de botas. Olha a marca do taco aí. Fios de cabelo que ficam por toda parte. Dentes guardados. Não acabam nunca se guardados. Na boca apodrecem. Na caixinha de metal aquele dente lá, para

sempre. Teu dentinho de leite, vê, filhinho. E o marmanjo com cinquenta. Aquele dente ali. Forever. In aeternum.

Amos se levanta da cama.

AMANDA Onde é que você vai, Amós?

AMOS

Vou pegar aquele meu dente na gaveta.

AMANDA Agora?

AMOS

Agora sim Amanda. (ele Abre a gaveta e espia. O dente está ali.) Pois não vai estar mais. Vou até a privada. Puxo a descarga. Vai indo pelos canos, presumo, vai indo, depois na fossa? Para sempre na fossa? Ou fica roído como se ficasse

na boca? Fossa-boca.

(Amos se levanta e sai do quarto. Ela fica ali na cama esperando sem entender)

AMANDA O que você fez, Amós?

AMOS

Boca-fossa. Cossa. Responder aos demais. A alguns. Esquecer os “consideremos” “por conseguinte” “suponhamos” “daí que se deduz” e tentar a incoerência de muitas palavras, de início soletrar algumas sigilosamente junto ao coração, por

exemplo Vida, Entendimento, e se a pergunta vier, despejar o tambor de latão em cima daquele que pergunta, morreu é? morreu de letras. Como assim? Ora, perguntou algo a alguém matemático e o cara que não falava há anos só número,

sabe, verbalizou hemorragicamente.

AMANDA Quê?

AMOS

Isso mesmo, golfadas de palavras. O outro não aguentou. O cadáver mais letrado que já vi, uma beleza, cara, escurinho de letras. Vamos indo....

_________________________________________________________

14 - INT. - ESPELHO E REFLEXO DE UM HOMEM (CASA DO SOL) – DIA AMOS KÉRES / GILBERTO MENDES de frente para o espelho.

Proposta de texto para criação de imagens Olhava números fórmulas equações teoremas e aquilo era um gozo, um gelado fogoso, uma vigília-dorso por onde eu

sozinho podia ir caminhando sem a fala-ruptura dos outros, logicidade e razão e no entanto a possibilidade da surpresa como se desdobrássemos uma peça de seda, triângulos azuis na superfície fresca e derepente o fosco de umas grades, linhas que podemos separar e recompor em triângulos novamente, sim, isto podíamos, mas onde aquele azul, onde?

14 – EXT PONTA DA PRAIA – DIA Imagens da vista

NARRADOR / Gilberto Mendes (OFF)

fragmento separado para sugestão de imagens: Compreendera apenas naquele instante. E agora não mais? Lembrava-se perfeitamente de tudo. Fora como sempre até o topo daquela pequena colina. Gostava de estar lá pois ainda se viam uns verdes pardacentos, um lagarto apressado atravessando um atalho, e se voltava as costas para o edifício da Universidade via lavouras de algodão e de café. AMOS NA COLINA OBSERVA. Ali ficava apenas olhando. Esvaziado. Algumas vezes pensava no seu modesto destino. Tivera ilusões? Jovem, desejou uma não evidência demonstrada, uma breve e harmoniosa equação que cintilasse o ainda não explicado. Palavras. Essas eram as teias finíssimas que jamais conseguira arrancar perfeitas inteiriças da massa da terra dura e informe onde jaziam. Não queria efeitos enganosos, nem sonoridades vazias. Criança, nunca soube explicar-se. Um furacão de perguntas quando o passeio tinha sido um nada, até ali mais adiante pra ver o cachorro do sítio vizinho ou o bando de periquitos voltando naquele resto de tarde, fui até ali mais adiante, só isso. Diziam: por que? Pra que? Que cachorro? A esta hora? Ver o que no cachorro, que periquito? Eu respondia: Ali mais adiante porque são bonitos. Ficava todo vermelho repetindo as palavras ali mais adiante porque são bonitos. Depois, furioso, quando lhe perguntavam sobre sentimentos. Como formular as palavras exatas, vária letras unidas, encadeadas, pequenas ou extensas palavras, arrancar de dentro de si mesmo as teias finíssimas, inteiriças que ali repousavam? Estavam ali, sabia, mas como arrancá-las? Tudo se desmancharia. Gostava de ler poetas japoneses. Um deles, Buson tem um poema assim:

Olhai a boca de Emma O! Parece que vai cuspir

Uma peônia!

Proposta de texto para criação de imagens Poesia e matemática. Rompe-se a negra estrutura de pedra e te vês num molhado de luzes, um nítido inesperado. Um nítido inesperado foi o que sentiu e compreendeu no topo daquela pequena colina. Mas não viu formas nem linhas, não viu contornos nem luzes, foi invadido de cores, vida, um fulgor sem clarão, espesso, formoso, um sol-origem sem ser fogo. Foi invadido de significado incomensurável. Podia dizer apenas isso. Invadido de significado incomensurável. E como foi a noite anterior? Sua mulher, a singular.

É verão. A pequena abelha

Pousa. Falarei sobre Zenão?

Extratos Me dou conta que a sala está vazia. Acendo um cigarro. Alguém abre a porta, pede desculpas, fecha-a novamente. Volto-me para o quadro-negro. Há ali um recado. Um poema: “esperamos sua volta/ cuide-se/ antes que se feche a porta”. Levanto-me e é como se estivesse um pouco embriagado. As carteiras dispostas em semi-círculo. É, falta a outra metade. Também uma metade de mim sabe que Amós está aqui e que a esta hora deveria estar composto, perfeitamente recortado diante do olhar de todos, de costas, frente ao quadro-negro: tomemos por exemplo, usando tal fórmula encontramos, consideremos, suponhamos, imaginemos agora, segundo nossa regra, esperemos um momento, mas isto é apenas uma impressão etc. Extratos Eu mesmo mostrando os meus papéis a um outro alguém e assim em desespero? Minhas equações. Esperanças: Amós Kéres, matemático, expôs hoje aos meios científicos a sua concepção de um universo unívoco. Físicos e matemáticos cumprimentam-no, logo mais no jornal das onze. Quase atropelo um cachorro. Enfim Isaiah. As calças surradas, o pulôver preto. hilde vem logo atrás. Vários pares de olhos sobre nós. Os vizinhos. Os olhos de hilde sobre mim. Isaiah: entra meu amigo, entra. hilde entra também. Você se lembra dela, não? hilde roça minhas pernas. Igual aos gatos. Digo extraordinária e sempre muito graciosa assim? Oh sempre assim diz Isaiah. Triângulos de acrílico suspensos do teto. Uma grande mesa e muitos papéis preenchidos com tinta roxa. Não te perturbo? Amós há vinte anos que ninguém me perturba, há vinte anos estas roxas esperanças e a única surpresa resolvida foi a chegada de hilde. Um lindo não evidente. Em seguida: o que há com sua cabeça, é torcicolo? vem, te senta, toma vinho, quer? Digo que sim e conto-lhe tudo: a colina, a ponta dos sapatos, as formigas, o pensamentear sobre os sons e aquilo de significado incomensurável Tive uma vez algo parecido. Mas vi formas. Quais? Poliedros. Resplandeciam. E então? Então compreendi que só existem poliedros. Eu mesmo não existia. Até hoje tenho certeza disso. De que? Certeza que não existo. Foi um alívio. Por isso posso viver com hilde. Ela, bem vês, também é um poliedro. Não existimos, compreende? Estamos muito felizes. Beba, Amós. Esperança. Não arranque os frutos verdes. Beba. É importado esse aí. Kadek me deu toda adega, não se lembra? Pobre amigo, almejava parecença. Dizia que o exato era ser pinguço como todos nós aqui onde vivemos. Só cachaça. Lucrei. Mesmo não existindo me deleito. Beba. Amanhã vens buscar o carro. Bebo. No quinto copo tento uns poemas. No décimo termino-os. Então leio em voz alta: GILBERTO CANTA Um pé de porco e papos De anjo sobre a mesa. Há sobras e rosmaninhos Na calvície emperucada dos velhos. Amós: peagadê de números Mas faminto de letras. Há dobras hiatos molhos Na memória. E sons finos na víscera. Há convivas Taciturnos. Meu pai hirsuto Num canto Abraçado a um passarinho. The little boy: it was God that makes this sally

world, daddy? Yes, benzinho. He was also a Nobel Prize? Yes, benzinho. How ddodered What? How go, daddy. Extratos Meus assépticos papéis. Que belíssima escultura gráfica. Que limpeza. Podes lamber a página. Fazer o mesmo na superfície de gelo do Infundado. Amós vai ao banheiro. O pijama continua verde-clarinho. De onde vejo Amós parece-me um elegante pijama. Iniciais na lapela AK, entrelaçadas. Confuso como monograma. Muitas hastes espetadas. Coisa de Amanda, certamente. Titubeia no batente da porta. Tranca-se. Um instante de vertigem e coloca as mãos sobre a parede ladrilhada, encosta a testa no frio. Ouve o que Amanda diz à Míriam, aquela que ele nomeou a bunda quente. Extratos Do outro lado do espelho: Eu sentia muito sono mas de qualquer forma tinha que andar porque a forca estava a uns trezentos metros e os caras que me acompanhavam pareciam ter pressa. Não é possível dar uma dormidinha? Vê se pode, o homem vai ser enforcado mas antes qué puxá um ronco. Tu vai dormí pra toda eternidade. Eu sei, mas será que vou saber que estou dormindo? E dormindo agora, sei que fui eu que escolhi este sono, ou melhor, querem saber, tenho precisão dele. Mais um pouco e tu dorme. Extratos As armadilhas. Como se um morto Acreditasse o girassol da vida A crescer sobre o peito. Amós Kéres, 48 anos, matemático, não foi visto em lugar algum. No caramanchão, a cadela olhava os ares, farejando. A mãe encontrou a frase no papel: Deus? uma Superfície de Gelo Ancorada no Riso. E mais abaixo: Amós = ! SGAR = " = Ø ...Amós Kéres.

Extratos retirados de Com Meus Olhos de Cão de Hilda Hilst

G I L B E R TO M E ND E S C OM S EU S OL H OS D E C Ã O ( a no t a çõe s f e i t a s no l i v ro )

Exce r t o de im agem 1 (p g 5 5 )

Cade l a ao lo ng e . O f u sc ada . Memó r i a . P a i s agem .

Ex ce r t o de im agem 2 (p g 5 6 )

Se o l h a no e s pe lh o .

Ex c e r t o de im agem 3 (p g 5 6 )

G i l be r t o do o ut ro l ado do e sp e l h o c am i nh a em so l q ue n te .

E x c e r t o de im agem ( pg 58 )

Es pe l ho , e l e e n fo rc ado .

Ex ce r t o de im agem ( pg 59 )

O ve n to ba t e em G i l b e r t o e s e us a companhan te s “ daq u i

o nde e s t o u po ss o o u v i - l o s p e ns ando”

Ex ce r t o de im agem ( pg 60 )

Ve n t an i a ba te ndo em t o dos .

E x c e r t o de im agem ( pg 61 )

Vo l t a do e s pe l h o

Exce r t o de im agem ( pg 61 )

P i a no e G i l be r t o :

Pe n s ar o g r ande desc o n f o r to . . . ( pg 6 1 )

Ex ce r t o de im agem ( pg 62 )

G i l be r to o lh a o es pe l ho . L uz f o r t e a t r a ve s s a o es p e l ho .

Ex c e r t o de im agem ( pg 62 )

Vemos G i l be r t o c am i nh ando em d i r e ç ão a uma f i g ue i r a

(C a s a do So l ) . T rê s homens e s t ão s en t ado s s o b a f i g u e i r a e

ob se r v am G i l be r t o .

E l e começ o u a co r r e r e ch eg o u a té a co l i n a ma i s a l t a da c i dade . J á e r a no i t e . E l e de i t o u - s e so b re a t e r r a , r e s p i r o u , r e s p i ro u e de manhã e nc o n t r a r am o co r po e v ár i o s c ães ao r e do r . O s c ãe s e s t a v am comendo o co r po? Não , os c ãe s não e n te nd i am como e r a po ss í ve l q ue um c ão não t i v e s se pê lo s , nem co r po de c ão . D epo i s os c ães de i t a r am em c im a de l e e f i c a r am a té q ue o co r po apod rec e s se . (O Un i có r n i o , H . H i l s t , pg . 12 2 ) .

FF E E D B A C KE E D B A C K D A S A R T I S T A S D E D A S A R T I S T A S D E NN O W H E R EO W H E R E