que tal um café? - scenarium livros artesanais
TRANSCRIPT
Que tal um Café?— JUNHO | 18
Todos os textos aqui publicados são de
responsabilidade de seus respectivos autores.
Participe enviando seu material,
sugestões ou criticas para
Próxima Edição
Clandestina | agosto 2018
Wislawa Szymborska
Houve marcas, sinais
que importa se ilegíveis.
Quem sabe três anos atrás
ou terça-feira passada
certa folhinha voou
de um ombro ao outro?
Algo foi perdido e recolhido
Quem saber se não foi uma bola
nos arbustos da infância?
Houve maçanetas e campainhas
onde a seu tempo
um toque se sobrepunha ao outro
As malas lado a lado no bagageiro
Quem sabe numa noite o mesmo sonho
que logo ao despertar se esvaneceu.
Tradução. Regina Przybycien
Seis horas. A cidade se agita do lado de fora. Ele-
vador sobe e desce. Os nervos se estiram: pneu,
buzina, brecada. A britadeira desorganiza o voo das
maritacas: algazarra de porta, assobio, grito, latido,
celular, whatsapp, televisão...
“Onde fica o paraíso?”
Do rádio ouço: no Oceano Pacífico descobriram u-
ma nova ilha de 1,6 milhão de quilômetros quadra-
dos. É “uma área de cerca de mais de duas vezes o
território da França”.
Penso na França. Penso no oceano. Penso na Ilha
do Pacífico... que na verdade é uma mancha de li-
xo: uma ilha formada pelo acúmulo de 80 mil tone-
ladas de detritos plásticos.
São seis da manhã e as pessoas se agitam do lado
de fora. Nos seus carros, nos seus calcanhares, na
longa fila de atividades que percorrem as artérias
do tempo: a escola, o trabalho, o curso, o médico, o
mecânico... Algazarra de porta, assobio, grito, lati-
do, celular, whatsapp, televisão... e cafés em copos
de plástico.
...
.
Vou para a cozinha. Aqueço meu tanto de água no
bule... Circulo a manivela para moer os grãos en-
quanto a água vagarosamente se aquece... O cheiro
do café moído na hora... O momento de moer, o
momento de escaldar, o cheiro do pó.
Recolho ainda mais a chama para que a água, a seu
tempo se aqueça. O vapor preguiçoso demora para
coar o café. Este, que tomo vagarosamente na xíca-
ra de porcelana enquanto a vida do lado de fora ali-
menta notícias de ilhas de plástico, o efeito bizarro
da pressa humana nas criaturas marinhas.
DO PÓ VIESTES
e ao PÓ VOLTARÁS
Do pó viestes e ao pó voltarás. Se o ciclo da vida fosse
resumido a um dia, o pó constituinte da qualidade hu-
mana seria o do café. O café que começa o dia e pro-
longa a noite, que nos permite mergulhar em instâncias
de paladar forte e que nos diz a cada manhã (apesar
dos rituais de amanhecer) que é proibido criar hábito
no sentir.
Bebemos para que a essência e cada grão de nós mes-
mos se mova, marcando a estrutura das coisas, encor-
pando-as. Bebemos para nos manter líquidos, lúcidos.
Sorvemos — especialmente deste chão — a semente
negra como exemplo de fomentos vários.
MARY PRIETO
Preciosas são as ideias produzidas junto dessa intensi-
dade, porque nem só de pão vive o homem, e muito
amido produz sedentarismo. Precisamos todos dessa
energia de ativismo que acorda os pensamentos e as
posturas a partir do âmago — e nele perdura com gos-
to de quero mais. Assim, parar para um café ganha
muitos outros sentidos além da experiência gustativa:
pode ser o costume que, em cada gole, nos faz ter
mais visão e vontade do futuro. Absorvido dessa for-
ma, é capaz até de fazer milagres e retirar o amargor
das coisas, ainda que ele mesmo não seja doce.
Um dos milagres é a integridade de natureza, que mes-
mo moída e torrada permanece aquilo que é: presente,
tocante e inconfundível. Quantos de nós, sob pressão,
podemos afirmar seremos fiéis a nós mesmos? Quiçá
inconfundíveis... o que mais se encontra, paradoxal-
mente, é quem está perdido: mergulhamos no escuro
despreparados em descobrir potências, desmotivados
de sutilezas e atenções internas, acreditando mais que
o co(r)po nos deixa presos do que alegres por poder
transmutar o pó em liquidez com facilidade.
Quantos cafés serão necessários para que, além do
gosto, sinta-se o gesto? Quanta resistência a ser filtra-
da até sentir a paixão de virar a madrugada? Quanto
verbo descafeinado e quantos sonhos derramados?
....
Quantos convites até aceitar o açúcar e esquecer o res-
to? De minha parte, o convite está feito, em palavra
quente e expressa. Por favor, sirva-se!
CAFÉ COM LEITE NA MAMADEIRA
Por Obdulio Nuñes Ortega
Tento buscar no passado a primeira vez que a SENHO-
RA serviu a bebida da minha vida. Adolescente, era sa-
grado que começasse o dia com o café com leite. Tanto
que, quando decidi me tornar vegetariano por influên-
cia de filosofias orientais que preconizavam o controle
sobre os desejos, nunca passou por minha cabeça dei-
xar de sorvê-lo. A presença do café sempre foi um elo
entre o antigo e o novo ser... um a justificar o outro. Sei
que ficou apreensiva com a mudança brusca de postura
e de corpo. Mas, optou por confiar em quem eu era,
ainda que o Obdulio não tivesse a mesma certeza de si.
Quando a encontrei da última vez, me disse que estava
em paz. O sorriso compassivo deixou o meu coração
mais leve. Porque a vejo em minha expressão de ser,
quase posso dizer não sinto tanto a sua falta. No entan-
to, há momentos que gostaria que voltasse a me fazer
um café, como nas tardes que sentia o aroma atravessar
muros e paredes, vindo da casa ao lado. Seguia ao seu
encontro para conversarmos sobre as coisas do dia —
registrar vivências, repassarmos memórias — pelo sa-
bor amargo-amado do pretinho na xícara.
Foi antes... na Cachoeirinha, quando nos acordava às
4h30 para pegar o ônibus rumo ao Parque Infantil da
Barra Funda. O café nos despertava e, o cheiro pene-
trante quase nos erguia pelos braços. Depois de fechar-
mos as camas de molas, partíamos para o ponto de ôni-
bus. Os três pequenos de mãos dadas para enfrentar-
mos a lotação da Viação Itamaraty rumo ao Centro.
Foi ainda antes, Dona Madalena? Na Penha. Nossas
mamadeiras de café com leite! Que bela invenção! Por
que será que introduziu cafeína em nossas mamadas
matutinas? Talvez porque, adepta de diversos chás tera-
pêuticos, que também tomávamos, além de outras plan-
tas medicinais que usava na comida, acreditasse que o
café fosse eficiente para nos tornar mais espertos. Ou
ainda porque fosse uma forte lembrança de sua infân-
cia junto aos irmãos. O líquido negro e oloroso, produ-
to do grão torrado, moído na hora, os ajudavam a en-
frentar a empreitada na fábrica de cimento em Perus.
O cheiro de café estará permanentemente ligado a
presença da SENHORA, assim como o do feijão jalo
recém temperado, dos perfumes Cashmere Bouquet e
talco Granado (que usava para amenizar os suores).
Por onde for, os trarei na memória. Talvez, até resis-
tam à dissolução dos meus pensamentos objetivos
para forrar a cama de molas da existência, na qual
continuo a deitar-dormir-ranger, ainda que nunca
mais a tenha visto...
Desde criança que eu virei fã e nem poderia ser dife-
rente. Me dava um calor gostoso e envolvia com abra-
ço... mesmo se fosse apenas um pouquinho dela. Me
lembro com carinho desses momentos... desde os 2,
quase 3, anos. Idade que minha memória alcança. Sem-
pre com um copo americano apenas meu e a minha co-
lher preferida. Nunca faltando algo para acompanhar o
momento. Posso ouvir todos os sons ao fechar os
olhos. De acender o fósforo com o índio desenhado na
caixa. Do clique do botão no fogão e o som da labareda
azulada. A chaleira saindo do armário e batendo do la-
do das panelas... e a água caindo lá dentro. Depois de
MEU PRIMEIRO
VÍCIO
Por Joaquim Antônio
um tempo, o som da água a borbulhar e finalmente o
derramar sobre o precioso e sagrado pó, estrategica-
mente colocado num coador de algodão. Pouco de-
pois, o som da garrafa térmica sendo preenchida. Ou-
ço também o som da colherzinha no copo e o mais
esperado de todos. O som da voz dela.
“O neguinho vai querer café?”
E eu com os olhos brilhantes e o corpo todo em mo-
vimentos quebradiços, dizendo que sim. Ela me ser-
via o primeiro gole de todos. Mas, não antes de adi-
cionar um pouquinho d'água, pois era forte demais
para a criança que eu era, tomar aquela hora da tarde.
Iria dizer que meu primeiro vício foi o café, mas es-
taria mentindo. Só agora notei que meu maior vício...
foi minha mãe. Em segundo o café, que longe dela
toma seu lugar de direito e sente-se rei. Enquanto eu
volto a ser o seu moleque de olhos brilhantes.
Te amo mãe!
O QUE É POESIA?
Por Marcelo Moro
Como definir o que não é conceitualmente sólido?
Sim, aplicando as rígidas regras das academias nada poéticas.
A poesia é éter, o quinto elemento algo além da com-
preensão meramente sintática ou morfológica, linhas
que vagam entre dois mundos, paradoxo absoluto.
Já ouvimos por aí todo tipo de absurdo indômito sobre
a necessidade das rimas, da régua e esquadro e vazias
conjugações para ser poesia. Papo de aranha porque a
Poesia nem é desse mundo e independe de medidas pa-
ra ser feliz.
Penso que a Poesia se divide em... boa ou ruim, necessária ou
desnecessária e essa classificação nada ortodoxa... é muito
pessoal.
Não se vende poesia, as prateleiras das livrarias quando
não estão superlotadas de poetas mortos é porque sim-
plesmente não compra mais para revenda esses livros
malditos.
De tanto cagarem regras acadêmicas a poesia ficou
com a má fama de chata — Conto é que é legal (leia is-
so com a voz do Caetano Veloso).
Hoje o mundo da comunicação... está soterrado na poe-
sia. Trasbordam “poetas” que com a ausência de bons
editores ( e podem ser eles mesmos a editar, sem a ne-
cessidade de uma terceira pessoa) ejaculam pilhas de
linhas na rede social. E a oferta bem maior que a pro-
cura faz com a que poesia seja um produto inviável,
barato e caótico.
Mas traduz sentimentos, anseios e viagens vãs, louva
musas, deuses e tramas naturais coloridas peculiarmen-
te como as flores o são.
A poesia de rede social é como todas as outras. Vez ou
outra algum poeta sobe aos patamares olímpicos das
viralizações perturbadoras... vira ícone devorador. Tan-
to na ascensão quanto na previsível e nada longeva
queda.
O mundo, para todos os lados que se olha, é um fast
food sem fim. Lê-se na velocidade da luz o que pode
ser visto na primeira passada de olho e pronto. Um
like e pronto. Nada que seja profundo prospera sem a
queixa desses atores do vespertino.
Tem razão quem diz que, por muitas vezes, a poesia
escrita no mundo eletrônico, virtual das redes quando
beija o papel não consegue passar o arrepio pleno ao
leitor mais concentrado e mais atento. E nem por isso
pode-se dizer que não é poesia.
Insisto nessa liberdade de poder dizer o que se tem
para dizer, e quem não tem, aprecie, bata palma, e fa-
ça também a crítica se a assim se souber capaz.
A poesia sempre interagiu com o meio, o tempo, a
evolução, portanto, com as coisas medianas dessa nos-
sa vida recuada.
Poeme-se!
A poesia não pede outra coisa que um poeta...
e, nesse caso, cada verso tem o melhor dos
Nortes para orientá-los.
Wislawa Szymborska (1923-2012) usa todos os
tons em sua escrita. Às vezes, nos presenteia
com uma ironia de incomparável elegância pa-
ra nos levar à profundidade moral por detrás do
nosso quotidiano e nos fazer refletir, com ela,
os comportamentos e valores nas sociedades
modernas.
Wislawa Szymborska
E isto acontece desde os primeiros aos últimos
poemas por ela, publicados, como em
“Confissões de uma máquina de leitura” na
versão inglesa “Confessions of a Reading Ma-
chine”.
Profunda, deslumbrante na simplicidade da sua
linguagem... ela nos coloca na condição de alvo
e nos atinge em cheio, sem nos deixar possibili-
dade de escape. Tudo flui... do tempo ao espa-
ço, da realidade a representação visual que seu
verso nos transmite. É seu olhar-sentir-existir,
sabemos, mas ao consumir Wislawa, é tudo tão
nosso que o passo se molda nos caminhos da
poeta... vinda do mais poético dos países onde
as consoantes mandam recados assustadores
aos ignorantes.
Em 60 anos de vida literária, Szymborska pu-
blicou apenas uns vinte livros curtos “Escrevo
os poemas à noite, mas releio-os à luz do dia, e
nem todos sobrevivem”.
Sou quem sou.
Inconcebível acaso
como todos os acasos.
Fossem outros
os meus antepassados
e de outro ninho
eu voaria
ou de sob outro tronco
coberta de escamas eu rastejaria.
No guarda-roupa da natureza
há trajes de sobra.
O traje da aranha, da gaivota,
do rato do campo.
Cada um cai como uma luva
e é usado sem reclamar
até se gastar.
T
Eu também não tive escolha
mas não me queixo.
Poderia ter sido alguém
muito menos individual.
Alguém do formigueiro, do cardume,
zunindo no enxame,
uma fatia de paisagem fustigada pelo vento.
Alguém muito menos feliz,
criado para uso da pele,
para a mesa da festa,
algo que nada debaixo da lente.
Uma árvore presa à terra
da qual se aproxima o fogo.
Uma palha esmagada
pela marcha de inconcebíveis eventos.
Um sujeito com uma negra sina
que para os outros se ilumina.
E se eu despertasse nas pessoas o medo,
ou só aversão,
ou só pena?
Se eu não tivesse nascido
na tribo adequada
e diante de mim se fechassem os caminhos?
A sorte até agora
me tem sido favorável.
Poderia não me ser dada
a lembrança dos bons momentos.
Poderia me ser tirada
a propensão para comparações.
Poderia ser eu mesma — mas sem o espanto,
e isso significaria
alguém totalmente diferente.
O terrorista… olha
A bomba vai explodir no bar às treze e vinte.
São neste momento treze e dezesseis.
Alguns conseguem ainda entrar,
alguns sair.
O terrorista passou já para o outro lado da rua.
A que distância ficará livre de perigo
e, quanto à vista, é como no cinema:
Uma mulher de casaco amarelo… entra.
Um homem de óculos… sai.
Rapazes de jeans… conversam.
Treze horas, dezessete minutos e quatro segundos.
Aquele baixinho tem sorte e senta-se na vespa,
mais um tipo alto que entra.
Treze horas, dezessete minutos e quarenta segundos.
Passa uma moça de fita verde nos cabelos.
Só que o autocarro oculta-a.
Treze e dezoito.
A rapariga desapareceu.
Se foi bastante estúpida para entrar ou não,
isso se saberá pelas notícias.
Treze e dezenove.
Parece que ninguém entra.
Há porém um careca gordo que sai.
Mas olha, parece que procura algo nos bolsos,
faltam treze segundos para as treze e vinte,
e ele volta a entrar em busca das luvas que perdeu.
São treze e vinte.
Como o tempo voa.
Deve ser agora.
Ainda não.
Sim, é agora.
A bomba… explode
Amor feliz
Amor feliz. Será normal,
será sério, será útil? —
que tem o mundo a ver com duas pessoas
que não vêem o mundo?
Erguidos ao céu sem mérito nenhum,
os melhores entre milhões e convencidos
que assim tinha que ser — a premiar o quê? Nada;
de algum ponto cai a luz —
e porquê logo sobre estes e não outros?
Ofenderá isto a justiça? Sim.
Perturbará os princípios estabelecidos com cuidado?
Derrubará do seu púlpito a moral? Perturba e derruba.
Olhem-me bem estes felizardos:
se ao menos se mascarassem um pouquinho,
fingissem melancolia dando assim algum ânimo
aos amigos!
Ouçam bem como se riem — é um insulto.
A linguagem que usam — entendível, pelos vistos.
E aquelas cerimônias, etiquetas,
obrigações rebuscadas um para o outro —
parece mesmo um acordo nas costas da humanidade.
É difícil até de prever no que daria
se um tal exemplo pudesse ser seguido.
Com que é que poderiam contar as religiões, a poesia,
de que nos recordaríamos, de que desistiríamos,
quem quereria pertencer ao círculo?
Amor feliz. Assim terá que ser?
Tacto e bom senso mandam omiti-lo
como a um escândalo nas altas esferas da Existência.
Contemporânea
É quase impossível afirmar quando se estabeleceu o
período contemporâneo. Não existe um consenso quan-
to a isso. O que se sabe ao certo é que a arte contempo-
rânea — em seus estilos, movimentos e escolas — sur-
giu como resposta à arte moderna, seguindo a corrente
de se manifestar contrária à ordem estabelecida.
A R T E
Tal movimento, no entanto, não foi organizado por gru-
pos ou escolas. Acredita-se que o pós-guerra influen-
ciou artistas no mundo inteiro, cada um à sua maneira.
O ambiente hostil, desgastado-destruído — dúvida-
medo-angústias... incertezas quanto ao futuro e total
falta de oportunidades — impôs aos artistas um novo
modelo de vida.
Um caminho encontrado foi deixar o espaço sagrado
de seus espaços às escuras. Foram às ruas. Fizeram
parte do bando... e se misturaram sem que fossem reco-
nhecidos. Ser apenas mais um na multidão e sobreviver
com as esmolas, antes oferecidas apenas aos mendi-
gos.
Mas, enquanto o corpo experimentava-gozava da liber-
dade disponível no pós-guerra... se estabelecia o confli-
to — o espírito se mantinha aprisionado na caixa cêni-
ca: o próprio corpo.
O primeiro movimento contemporâneo, acredita-se,
que tenha ocorrido por volta de 1945... sendo identifi-
cado e nomeado — Art brut — por Jean Dubuffet, que
travou contato com artistas livres deste tempo. Eles não
sofriam qualquer influência acadêmica. Não realiza-
vam pesquisas e não se apoiavam no que tinha existido
antes deles. Eram puros... a viver e criar nas ruas. Mais
tarde foram chamados de “artistas marginais” pelo crí-
tico Roger Cardinal —, por fazerem uso de materiais
até então impensáveis e técnicas improváveis para o
mundo da Arte, ainda acostumado aos grandes salões.
A R T E b r u t
Como dispunham de pouco para si... tomaram gosto
pelo improviso-rascunho e alcançaram imenso prazer
pela atmosfera do “inacabado”.
Nas Letras, o que se viu foi o surgimento do “não di-
zer”... o repetir-se como forma de se fazer entender.
Dizer quase nada para não cansar ainda mais as almas
gastas, quase mortas.
Abusavam de frases cada vez mais curtas, recortadas
ou simplesmente cortadas... e algumas simplesmente
esvaziadas. Rompeu-se de uma vez por todas com os
parâmetros das métricas e da gramática, estabelecendo
uma nova forma de linguagem.
Por volta de 1960... outro movimento ganhou força, se
apoiando na força das ruas e se aproveitando ainda
mais do que era contrário à sociedade. Ficou conhecido
por ‘underground’ ou street art. Arte feita à revelia...
ainda mais provocante-aguda...
O diferencial é que mesmo se revelando como
“manifesto cultural” e fugindo das escolas — o movi-
mento acabou por beber diretamente na fonte do Mo-
dernismo. Repetiu-se fórmulas conhecidas, mas sem
mencioná-las, apenas aproveitando da força-ritmo-e-
estilo.
O artista underground não quer mais se afastar de si,
quer se usar como elemento e travar contato com os
sentimentos do homem... se oferece ao personagem
que é... e cultua esta “legenda”.
No underground estão os projetos-conceitos-opiniões-e
-idéias que nunca seriam aceitas ou financiadas. O ar-
tista desiste de ser “peixe” e opta por ter controle de
suas cores-letras-estilos, sem se deixar influenciar pelo
“novo mundo” que se ergue através das moedas dos
mesmos coronéis, que anos antes financiariam a misé-
ria do velho continente.
A cultura underground em sua essência é carregada de
subversividade, visceralidade, críticas ácidas, originali-
dade, produções orgânicas, contestações, ideologias
contrárias ao imperialismo dominante e suas formas
mais comuns.
u n d e r g r o u n d R E A L I D A D E
O artista aposta no grito que sua arte exala, na contes-
tação. Não quer falar a todos, busca um grupo disposto
a ouvir e a dialogar. Ele enxerga a miséria do mundo e
dialoga com ela... e se afasta da beleza dos grandes sa-
lões, empesteados pela pior das pragas — o capitalis-
mo selvagem —, que tem por objetivo: manter as pes-
soas sob sua influência e controle.
A Cultura Pop começa a surgir como resposta, para se
opor à Arte praticada nos bastidores do mundo, no sub-
mundo das grandes cidades. E encontra boa receptivi-
dade nas massas por apresentar o que é familiar-
comum-usual. É o mundo pop com suas belezas rare-
feitas... o lugar-comum. A mecanização e artificialida-
de dos segmentos sócio-culturais.
Meia dúzia de pessoas bonitas e elegantes passa a de-
terminar o modelo a ser seguido pelos demais... rotu-
lando "o bom gosto" a partir do ponto de vista conser-
vador. Não aceitar mudanças e provar apenas do que é
belo e esteticamente aceitável é o novo-velho conceito
imposto.
E o resultado é o consumismo desenfreado por parte
das massas que aderem de forma cega às belezas ofere-
cidas, sem questiona-las. É a geração Pop... que não
pensa-reage, apenas aceita o que lhe é imposto e leva
para casa — satisfeita por poder pagar pelo produto
descartável da vez.
Neste campo de ilusões detectamos a cópia feita milha-
res de vezes, a falta de originalidade-criatividade, a ba-
nalidade, a futilidade artística, a escassez das idéias.
Exibe-se um mesmo tema com cores diferentes e todo
mundo compra como novo-moderno-elegante-belo. A
arte volta à condição de produto... se esvazia, se torna
passageira, quase líquida e se vê parte do elemento de
alienação-estética, limitada a um mesmo conceito.
Ocorre gradativamente a falência do intelecto e
a rendição ao capital... que arrasta com ele as suas mul-
tidões, tornando quase impossível existir fora do radar
do Capitalismo.
M U N D O p o p
O foco do artista Pop passa a ser: fazer barulho e viver
de seu novo ideal... ser seguido e perseguido por multi-
dões, que o veneram e o repetem em estilo. A arte, no
entanto, passa a depender de “manual de instru-
ções”. Um ponto no meio da parede pode ter muitos
significados e, para sabê-los ou entendê-los, é preciso
ouvir o seu Criador que, do centro de seu picadeiro, se
recusa a explicar-se... e passa a repetir frases de efeito,
sem sentido, tão curtas quanto o seu pensamento —
“tudo já foi feito antes de mim, resta-me refazer”.
Aplica-se uma nova camada de tinta e pronto... oferece
-se como novo-moderno-inédito. É, Arte está à venda
e, o mais importante: existe quem compre.
Não podemos, contudo, culpar o “movimento contem-
porâneo” pelo atual momento... somos responsáveis
pelo que consumimos diariamente. Existe Arte sendo
feita por artistas que sabem que talento sozinho é coisa
vazia. É necessário estudo-pesquisa-exercício-dedica-
ção-pensamento-ruptura.
Repetir-se — independentemente do movimento que
nos alcança em tempo-espaço-lugar — ainda é o me-
lhor dos caminhos do artista que não pode acusar
exaustão, nem se render às normas e regras. É preciso
manter o espírito contestador e não se render aos parâ-
metros alicerçados pelo sistema.
Não é errado se vender — como afirmam os mais radi-
cais. Errado é perder-se de si e se render ao mundo das
coisas superficiais. Não ser capaz de contestar e apenas
repetir velhas fórmulas à exaustão. Ainda há muito a
ser feito-refeito...
A Arte sempre foi oferecida como moeda de troca por-
que é matéria-corpo-alma do artista que precisa existir
e sobreviver no mundo das coisas. Mas é preciso cui-
dado-atenção para não perder a pureza e se deixar vio-
lentar pelo comum-igual, tornando-se apenas mais um
na multidão de ninguéns.
O verdadeiro artista — contemporâneo... de vanguarda,
underground — não quer apenas transitar em mei-
o às multidões, ele quer marcar o passo e deixar o seu
rastro para que outros saibam que é possível caminhar
e apreciar as coisas de vários ângulos.
Edhson J. Brandão
Quase vazia, quase sem água
O sono da tarde a fez devagar. Foi até a cozinha apa-
nhou uma panela, encheu de água. Pôs no fogo, tirou
os ovos da geladeira e conferiu de novo as horas.
“Meu Deus!”
Mesmo com a cabeça latejando saiu. O vento feio fez
tornar. Necessária uma blusa. Duas.
A rua avigorou o atraso: o mulheril e as crias, todos já
retornavam. Apertou o passo meio que de cabeça bai-
xa. A franja quase a lhe cobrir os olhos, o restante dos
cabelos entre preso e alguns fios soltos acentuando o
vento. Segurava as pontas do casaco perto da barriga
com o menor apertado entre o braço e corpo.
“Meu bem, o perfume chegou, vem pegar.”
A voz da mulher na janela bateu como um susto.
“Depois pego, Dona Carmelinda” dizia andando.
“Atrasada para buscar Lucinha.”
“E ela, está bem?”
Balançou a cabeça afirmando e desviou de outra mu-
lher que passava. “Desculpe!” se ouviu. Um andar dis-
traído, lerdo.
Por toda parte gente. Em lojinhas, descendo de ônibus,
frente aos portões, nas mesas dos botecos. Adiante a
padaria fervilhava. O padeiro virava a bandeja sobre
um cesto. Passou olhando, tinha fila. Das almas conhe-
cidas nenhuma querida. A escola ficava ainda a algu-
mas quadras. O céu estava roxo e nestas pessoas caras
de regressos, fim de dia. Ela seguia a contramão.
“Tia, a Lucinha está doente?”
O menino de cabelos escorridos a surpreendeu. Vinha
acompanhado de uma mulher, devia ser a mãe porque
carregava sua mochila, tinha os cabelos bem presos,
sem fios soltos. As unhas lustrosas adornavam a mão
que levava o garoto, todo limpinho. Modos de cuidado.
Ana Célia apertou os lábios e negou com a cabeça,
quase mentindo, enquanto a mãe do menino sorria, mas
longe da conversa.
“Ela faltou hoje? Não vi ela.”
“Não viu?”
Ana Célia entonteceu. Da espinha lhe subiu uma fria-
gem e de leve as mãos suaram. Olhou bem o garoto,
procurava alguma perversão. Era só um rosto pequeno
que pelos rebentos escapavam curiosidade. Coisa me-
nina. Pura desatenção, desleixo de moleque. Certo é se-
guir, Maria Lúcia a espera.
Atarracou a cara. Abandonou menino e mãe sem res-
posta, dona de sua pressa. Lucinha devia estar na esco-
la como todos os dias. O pai a levou. Ela usava uma
touca rosa com laçarote azul. Ou a tiara de elástico? A-
na Célia se lembra de colocar os brincos dourados na
filha. Disso lembra! Apesar de sonolenta e cansada, ela
mesma levou Lucinha até o carro, apertou o cinto, a
beijou e ficou segura. Depois dormiu, sabia, não acor-
dou para nada. Ninguém da escola ligou, nem o mari-
do. Hoje seria apenas um atraso, por hora. Ela nunca
atrasa para buscar a filha. Mas, o menino não viu Luci-
nha. O que era? Sim, ele é de sua classe, se não, do
mesmo ano. E ele não a notou? Ou realmente a menina
não foi para a escola? Que dia era aquele? Segunda,
quarta? Lucinha se falta é nesses dias, dificilmente sur-
gia algo entre eles. Saiu de mochila, sim, como todas
às vezes... Uh! Em um cambaleio Ana Célia viu, de no-
vo, a esquina da padaria; dela serpenteando a fila ter-
minada na calçada curva, o asfalto ondulado, a outra
calçada; e casas, e portões, e postes; a rua outra vez;
por fim a murada sinuosa e cinza que a acompanhava
lhe serviu de apoio. Tomou algum fôlego, o cérebro
espirava. Quatro, cinco segundos e pareceu no lugar.
Continuou o rumo. As dores não sumiam.
A escola estava quase toda vazia. O inspetor, duas ou
três crianças, poucas luzes.
“Boa tarde, seu Heitor”. Caçava Lucinha nas faces dos
meninos. “Eu vim buscar a Maria Lúcia”, se escorava
no portão.
“Boa tarde, Ana” o homem a olhava com aperto.
“Lucinha não está por aqui.”
“Não?”
“Não. Também não me lembro de ter visto ela no re-
creio.” ele hesitou. “Ninguém veio busca-la mais ce-
do?”
Os olhos de Ana Célia arderam. A respiração pesou até
sua resposta.
“Acredito que sim”, passou a língua entre os lábios.
“Coisa do pai. Obrigada” disse avoada.
Agradeceu o homem mesmo detestando o que ele lhe
disse, deu as costas, pareceu ir. Ficou no outro portão
da escola estudando a armadilha daquela tarde. Como
se burra e desajeitada mordiscava as unhas enquanto
olhava o casaco no braço. Na rua ainda passava gente,
ainda passava carro, ainda passava o dia. As luzes ama-
relas dos postes já estavam ligadas autorizando o co-
meço da noite. Lucinha não veio à escola. Saiu com o
pai. O pai sempre chegava as sete, a janta sempre pron-
ta. A janta!
Ana Célia lembrou-se da panela no fogo e dos ovos.
Pegou o caminho de volta. Andava com os braços cru-
zados abaixo dos seios. O vento ainda eriçava os pelos
da perna, a culpa então apertava e o leve enjoo dava lu-
gar à fome. Frio, culpa e fome: é assim a beirada do in-
ferno.
Perto da padaria decidiu encarar a fila. Três ou quatro
pessoas até sua vez. Dava para esperar. O pão estava
bonito: redondo e dourado. Concluiu que estava tudo
bem. Levou cinco. A filha com o pai, pronto, coisa de-
le. Também pegou leite e queijo. Se ele a levou, ele a
traria de volta. Pagou com uma nota só. Simples assim.
Contou o troco, saiu. Sentiu a liberdade, inda que gela-
da. Riu. Retornou ao caminho, deixou o agasalho da
menina em uma dessas lixeiras de calçada. Noite.
A casa de Carmelinda a convidava. Por que não? Ago-
ra estava tudo bem. Com a mente abrandada, deixou-se
entrar, o dia já se fora. Pagou o perfume com o troco
que tinha e escolheu novos cremes. Aceitou o café. Na-
da de preocupações. Ofereceu pão, dividiu o leite, par-
tiu o queijo. Saudaram a felicidade do lar, saladas que
já vêm picadas, a nova marca de amaciante. Falaram
mal dos maridos, dos desejos encobertos, jeitos de se
estimular sozinha. Gargalharam. Foi um tempo. Estava
tudo bem, as dores até sumiam.
Saiu de Carmelinda porque se lembrou dos ovos. A á-
gua devia ebulir com fúrias. Eles já estourados com ge-
mas secas em cascas trincadas. Que distraída, pensou.
Seguiu, seguiu, seguiu, chegou.
Encostou o portão de casa certa de que o marido já teri-
a chegado com Lucinha. Diria que foi até Carmelinda e
se perdeu na hora do café, mas os ovos já estariam co-
zidos. Tinha arroz e feijão prontos para esquentar, as
saladas para temperar. Entenderia, por fim, o que hou-
ve naquela tarde. Porém viu todas as janelas trancadas
da forma como as deixou mais cedo.
Nenhum sinal de alguém.
Gritou pelo marido, pela filha. Eco. Entrou em casa. A
aflição confundiu-lhe as chaves, derrubou coisas. Pas-
sou à porta, acendeu luzes, chamou, gritou. Calou.
Diante do nada conseguiu se perder.
Deu passos em volta para certificar a solidão até as
pernas vacilarem. Então despencou com as coisas no
piso. O choro minou livre e voraz pela lerdeza, descui-
do, covardia que se figuraram ante a visão do desampa-
ro. Também chegaram a bagunça, a falha e a sujeira
que a fizeram dormir por toda a tarde. O seu relaxo to-
mou a mente: ele vive amontoado pelos cantos dos cô-
modos, escondido atrás das cortinas, casa dos demô-
nios. Entre as roupas perfeitamente dobradas de Maria
Lúcia, seus livros organizadamente empilhados, len-
çóis todos esticados, brinquedos totalmente categoriza-
dos sobre prateleiras, dentro de baús. Lembrou também
as semanas em loucura vindas entupindo ralos, perden-
do-se em sonos, ingerindo comprimidos atrás de com-
primidos. E a lembrança de cada mancha esquecida em
cada pano de cada estante daquela casa por fim alimen-
tou o soluço. Tudo isso junto como se exposto à mesa
com pratos e sem toalha. Vergonha! Correu tonta por
estas ruas enquanto não sabia de Maria Lúcia. Andou
por nada. Desviou-se de tudo por nada. Agora se en-
contra com o quê? Lhufas. Se chega o marido não há
janta. Se vem visita servirá o caos. De que serve o pão,
o perfume e os cremes? Cadê o agasalho da filha? Pre-
cisará ela também de tratamento? Transplante de hábi-
tos, quimioterapia doméstica, soro na memória, consci-
ência de erro. Pela Virgem, quanta desonra para uma
mulher! Então não aprendeu? Assim é que se perde u-
ma filha, perde um marido e toda uma vida! Para que,
então, ser? Melhor é a santa esquecida na caixa de vi-
dro ladeada de nuvens e anjos como aquela disposta
sobre o altar próximo à porta. Insólita e livre. Aliás,
melhores mesmo são os anjos cujo único dever é sus-
tentar a sagrada mulher longe do peso do útero, do ven-
tre, seio, cabelo, casa, enquanto a virtuosa segue osten-
tando apenas a nulidade que existe entre a espera e a
ascensão. Deve ser bom perecer no vazio e Ana Célia
implorava por alguma partida, ainda que sem cortejos.
Apenas uma glória para o seu fim mesmo que seja des-
ta forma: dispersa em sua sala.
“Mãe?”
Lucinha surgiu da porta com o pai atrás. Ana Célia er-
gueu-se. Limpou as lágrimas e o nariz. A menina a a-
braçou. Mostrou um pirulito entre os dedos.
“Disseram que eu estou bem melhor!” Olhou bem a
mãe. “Você estava chorando?”
Ana Célia apreciou a filha sorrindo enquanto dizia que
não, era sono. O marido lhe parecia encabulado. Nas
mãos a mochila de Lucinha e sacolas de farmácia. Per-
guntou o que ela fazia ali sentada no chão entre coisas.
O que fazia?
A mulher encarou o homem, depois reparou a menina,
de cabeça pálida e nua envolvida pela tiara de elástico,
a medindo curiosa. Os brincos dourados nas orelhas.
Ana Célia nada respondeu, mas lembrou dos ovos ou-
tra vez. Assim deixou a família para desligar o fogão.
Na cozinha empalideceu porque nenhum ovo boiava na
panela quase vazia, quase sem água. Era quarta-feira,
viu no calendário, o meio da semana. Nem para frente,
nem para trás.
Caetano Lagrasta
sanatórios
Eu o conheci no sanatório, onde me recuperava do es-
vaziamento do pulmão esquerdo, ao segurar um espirro
— por mais ridículo que isso possa parecer:
“pneumotórax espontâneo”, sentenciou o médico. Era a
primeira vez que me internava. Ele já era conhecido de
médicos e enfermeiras. Excêntrico, fumava às escondi-
das, esplêndidos cigarros negros. Conhecia música e às
vezes se arriscava ao piano; a mulherada o rodeava e
ele nunca chegava sozinho ao refeitório. Pedia vinho
nas refeições, enquanto eu ocupava a outra ala do refei-
tório e dos quartos: quem pagava minha internação era
um instituto qualquer. Enxergava-o através de uma
porta de vidro.
Distraía-me na sacada, olhando o jardim de flores e
araucárias, enquanto via subir o vapor do orvalho
quando ele se aproximou e sentou-se ao meu lado. Em
outros encontros já mencionara que fora educado no
exterior, na Suíça ou na França, não lembro. Seus mé-
dicos o obrigaram a seis meses de internação e ainda
faltavam três. Lastimou, mas logo recuperou a expres-
são jovial, enquanto fumava mais um “negro”.
A minha única preocupação era o artigo semanal que
enviava para o jornal e que ele sempre pedia para dar
uma olhadela. A situação do país permanecia instável e
naquele isolamento forçado sentia-me à margem de
qualquer realidade. Nossa conversa era difícil e discutí-
amos, vendo-nos envolvidos por uma espécie de náu-
sea suarenta. Enquanto lia para ele o próximo artigo,
enxergamos a aproximação da nova interna, atraves-
sando o jardim. Percebi que ele ouvia a leitura a duras
penas, sua atenção se desviara para a jovem e a discus-
são era arrebatada pelo desinteresse e para encerra-la.
Aos gritos ele mantinha posições extremadas: violência
e morte para a efetiva tomada do poder. Não sem antes
me confessar que enviava colaborações em dinheiro
para movimentos guerrilheiros e partidos na ilegalida-
de, mostrando desprezo por meu posicionamento diri-
gido à conscientização, aos modos pacíficos e à cons-
tante mobilização.
Seus olhos acompanhavam, através de movimentos li-
geiros o caminhar ondulante da jovem e movimentava-
se inquieto, dançando como ave que corteja a fêmea.
Com a mesma violência que pregara a nova ordem, ati-
rou-se à conquista e lá se foi ao encalço de mais esta
ave. Continuei a ler e a corrigir o artigo, seguindo-o
com o canto dos olhos, na circunavegação pelos cantei-
ros, até a investida final.
No dia seguinte, cruzei com ambos, ele a apresentou e
seguiram. Percebi seus gestos cavalheirescos: a mão
roçando ligeiramente o cotovelo, amparando-a.
Mantinha-me distante de compromisso com mulheres,
abrigava-me nos livros, onde escondia minhas manei-
ras toscas de triste figura; só de pensar em intrometer-
me nos amores alheios envergonhava. Também nesse
dia, avistei-o conversando animadamente com um ser-
vente. Esperei ele se afastar para sondar o rapaz:
— Ah, ele só queria o endereço do puteiro e a que ho-
ras abre.
Lembrei-me que não tinha contato com mulher há pe-
los menos uns cinco meses; talvez consequência de um
medievalismo religioso, atávico: besteira. Ele saiu do
refeitório, durante o lanche da tarde, e disse que à noite
gostaria de ir junto, esboçando um sorriso conivente.
Ele deu de ombros e respondeu para estar na portaria,
lá pelas nove.
Quando chegamos à casa, tremia sem saber se de frio
ou medo: um burburinho nos saudou. Ele foi entrando
e escolheu uma mesa de canto, pediu vinho e tangos; a
mocinha loira, sem esconder intimidades e esperanças,
abraçou-o. Ele a beijou, mandando a cafetina providen-
ciar o resto. Sentei-me junto a ambos: a loirinha era só
alegria, enquanto mantinha os copos cheios.
Espiava a todas distraído. Era um mulherio de roupas
berrantes, espalhadas pelo salão, algumas sentadas em
almofadas, de pernas abertas, outras de pé com os seios
a lhes escapar pelo decote; gargalhavam e falavam aos
cochichos, apontando na nossa direção. Fixei a morena
baixinha, de coque e nádegas arrebitadas. Convidei-a
com um gesto sem graça. Caminhou até a mesa de mo-
do displicente. Sem saber o que dizer, a conversa se ar-
rastou trôpega, indiferente. Por fim, nos enfiamos pelo
corredor de portas e tapetes manchados, ouvindo sus-
surros enervantes. Ela não era bonita, falava pouco e
manso; transmitia carinho das entranhas.
Dirigi um último pensamento para o homem que ficara
à mesa, enfadado e para a loirinha a ronronar e se jo-
gando em afagos não correspondidos, indiferentes, en-
tre baforadas de “negro”, lastimei por ela. Deitamo-nos
depois do desconjuntado abraço, do mau jeito de puxar,
com dedos ásperos, a calcinha de renda barata. Enxer-
gando o púbis rapado, esborrachei meus lábios no ba-
tom ordinário e durante meses fiquei a me amofinar,
arrastando aquela paixão.
Ruídos, murmúrios, silêncios; habitantes que nunca se
importaram com os sons de todas as noites. Uma trava
do teto estalou. Dormi.
O dia amanheceu com zumbido de colmeia, abrir e ba-
ter de portas, choro sufocado. Aprontei-me, sem ganas,
imaginava outros encontros com a moça de olhos mío-
pes e tristes, que roncava ao meu lado. Vesti-me e lar-
guei umas notas na cômoda, quando ouvi baterem leve-
mente à porta. Era a cafetina ruiva e seu rosto estava
lambuzado de cosméticos escorridos. Balbuciava, ten-
tando dizer alguma coisa que não entendi. Apontou-me
uma porta ao fim do corredor. Brincadeira de mau gos-
to, pensei; num lugar destes nunca se sabe.... Caminhei
vagarosamente pelo corredor, a garota se levantara e
me seguia: roupão surrado entreaberto mostrando a ca-
da passada, as pernas finas e os seios arriados.
A porta permanecia semiaberta, meus olhos percorre-
ram o chão do quarto, os pés da cama; um lenço de
mulher pendia de lugar indeterminado; maço de cigar-
ros amassado no tapete puído; as meias vestidas e um
cheiro estranho de saliva. Imóvel, o corpo pendia da vi-
ga que já não estalava; a língua despudoradamente para
fora, como se alguém a tivesse puxado.
cafeinômano
Sempre lidei mal com a modernidade abrupta. Os meus
gostos peculiares vão, com o passar dos dias, ficando
impraticáveis. Agulha sulcando o vinil, quase impossí-
vel, sentir o som escolhendo os canais, estourando na
direita... e um arranjo no contratempo na esquerda. O
sax nascendo ali para morrer acolá nas notas mais agu-
das, crossover das batidas da minha alma.
As lojinhas de disco... pequeninas caixas de joias en-
cravadas nos centros das cidades fecharam suas portas
para abrirem todos os dias — pontualmente as oito —
numa paralela do tempo. Dentro de mim.
Me sirvo de um café coado-forte-e-puro. Copo ameri-
cano na risca... e cagando para os artigos que dizem
que o café faz bem ou mal. Pouco me importa. O im-
portante é que serve de aconchego para minhas melho-
res memórias, ou como diz Maria... “meus causos”.
Tenho precisamente na memória todos os cheiros do
Marcelo Moro
meu velho quarto. A cera parquetina. A madeira do ar-
mário. O perfume da roupa lavada e o aroma que exa-
lava o couro da velha jaqueta nos zíperes no qual eu di-
vidia e fracionava meu dinheiro.
Aqui sempre fez poucas semanas de frio intenso. Pou-
cos dias de frio devorador. A jaqueta era mais uma cai-
xa forte guardada no armário que um objeto aquecedor
de minha tumultuada estrutura física.
O caso era que eu me levava muito a sério... pegava u-
mas notas trocadas e descia para o Bar do Boxa onde
me encontrava com a gloriosa Cowboy Eight Ball.
Pensa na menina mais gostosa do colégio. Essa não ti-
nha chance naqueles dias frente a máquina.
Eu trabalhava depois das treze horas, enrolando moto-
res elétricos. Era um trabalho deveras sério para um
garoto. Por isso, talvez, eu pudesse me levar como le-
vava.
Estudava pela manhã... mas era férias. As nove em
ponto — chovendo ou com neblina — eu pedia para o
Corruíra um café e duas fichas. Era mais sagrado que
igreja. As dez e meia eu parava e deixava para a mole-
cada umas dez fichas registradas de crédito. Quem ti-
nha dinheiro me pagava meia ficha. Quem não tinha...
jogava também. O Corruíra queria morrer. Mas vendia
coca cola e paçoquinha ao invés de fichas. E dava em-
pate.
Doido foi quando eu comecei a ensinar os punheteiros
a ganhar as próprias fichas. Fazer a sequência da má-
quina. Matar as bandeirinhas na ordem. Dar o tranco
certo para não perder a bola e evitar o Tilt.
O Corruíra cresceu seus negócios... instalou mais u-
mas 4 máquinas. Dois-três andares. Fantásticas em luz
e som. Mas eu ia na Cowboy que era minha.
Ganhou dinheiro com o jogo mas, nunca aprendeu a fa-
zer café. E naquelas máquinas horrendas de botequim...
em meia hora começava a ferver “ad infinitum” lá den-
tro e virava uma merda licorosa. Mas café, bicho —
mesmo o ruim... é bom.
Como tudo na minha vida, menos o café, nada era
compulsivo. Acabava as férias e eu voltava a estudar
pelas manhãs... enrolar motores elétricos à tarde e jogar
uma outra partida apenas aos sábados ou na boquinha
da noite. O que era raro porque o Corruíra a noite temi-
a o juizado.
Mas o tempo é voraz e a modernidade foi destruindo os
sonhos... e em alguns casos as delicias. Eu fui me le-
vando mais a sério e o mundo cagando para mim.
Fato que o álcool é bom... o sexo, a literatura madura e
outras visões de mundo. E, mesmo o mais tacanho dos
homens grandes se curva a um ou dois prazeres obsole-
tos.
Depois de todos esses anos de evolução parecia que me
era proibido voltar a fazer os caminhos que fiz tantas
vezes em cima do meu Bamba Maioral.
Tolice, meus amigos. Tolice.
O que me faz agora botar outro café no copo e abrir as
linhas para vocês... é de modo tão fantástico que até
demorei a voltar daquela paralela no tempo onde as lo-
jinhas — minhas preferidas —, ainda abrem suas por-
tas.
Num sábado pela manhã resolvi ir ao centro da cidade
pelo velho caminho... calçadas e aromas diferentes pa-
ra tantas lembranças iguais. O Bar do Boxa agora são
dois salões. Um mausoléu fechado “in memorian”. Eis
que de dentro de uma porta semicerrada saiu uma voz
conhecida.
— Hey garoto Moro, vai um café?
Olhei de soslaio e desconfiado de algum maldito fan-
tasma... topei com o Corruíra — mais gordo, como eu,
e mais velho. Sinal de que estava vivo.
Peguei aquele velho café, como quem agarra a esperan-
ça e ele me chama a ver algo. Puxa uma lona... e lá es-
tava... totalmente intacta, a Cowboy Eigth Ball — ve-
lha máquina de pinball mais foda desse universo em
colapso.
Botei o pino da extensão na tomada e ela acendeu a se-
quência. Puta que o pariu!
Não fui mais ao centro. Não comprei minhas coisas.
Fiquei por ali exatamente uma e meia como nos meus
velhos anos. A surpresa ainda não estava completa. De-
pois do sexto ou sétimo café... um pouco melhor que
aqueles de outrora. Mas a mesma merda modorrenta.
Quando enfim ia saindo... o Corruíra — com lágrimas
nos olhos me disse —, Carinha, é sua! As lágrimas
agora eram minhas. Não é todo dia que se revê um
grande amor. Me senti triste quando soube da morte do
Corruíra meses depois. Não pude me despedir. Nem to-
mar um último café... a vida devora.
Agora de café novo na mão e toda essa lembrança órfã
singrando minhas veias... coloquei uma ficha e acendi
a sequência. Será minha uma hora e meia de vício mo-
derado e de saudade aguda.
Fal Vitiello de Azevedo
Pedro Tolosa Vitiello
uma explicação
Era uma vez um pastor etíope chamado Kaldi que, em
meados do século VIII ou IX (depende da versão), no-
tou que suas cabras ficavam agitadas ao comer os fru-
tos vermelhos dos arbustos selvagens. Kaldi provou
dos tais frutos. Notou que o efeito não era nada mau. E
a novidade se espalhou.
A lenda do pastor Kaldi sobreviveu e é uma delícia
contá-la. Desde de que viajou da Etiópia ao Iêmen, no
século IX, o café foi consumido como alimento cru e
plantado em grande quantidade. Uma das formas de
consumi-lo é macerar as frutinhas cruas e misturá-las à
banha. E era isso mesmo que a turma fazia, amado lei-
tor, pode acreditar. Mas faltava, faltava... faltava um
“tchans”, entende? Então, lá pelo ano 1000, uma alma
elevada inventou de mergulhar as tais frutinhas em
água fervendo.
Amamos café porque ele tem cafeína. A cafeína nada
mais é que um composto orgânico pertencente ao gru-
po dos alcaloides e é ela quem dá o sabor amargo ao
café. A cafeína mexe numa porção de baratos muito
loucos da pesada em seu cérebro, o que faz com que a
adrenalina seja liberada em seu corpo, estimulando seu
sistema nervoso e sua circulação, fazendo com que vo-
cê fique mais alerta, mais espertinho e mais corajoso
para enfrentar o trabalho, a discussão, a leitura do rela-
tório, a vida, a vida, a vida.
Cafeína é extremamente solúvel em água quente — e é
por isso devemos tanto a quem inventou de botar as
frutinhas dentro da água fervendo. Ah, sim, verdade,
tem cafeína no chocolate, no chá, nos refrigerantes,
sim. Mas no café — arrá! — tem mais.
Devotos de uma religião que não permite o álcool, os
muçulmanos abraçaram o café com entusiasmo — ah,
os encantos de um estimulante não alcoólico. Desde o
século X, os muçulmanos bebem café, o que os redime,
em parte (pelo menos aos nossos olhos), do desenvol-
vimento da matemática e da, urgh, geometria.
No fim do século XVI, Prospero Alpini, um botânico
italiano, visitou o Egito e voltou para casa extasiado
com suas descobertas sobre o café. E ativo. Muito ati-
vo. Em 1591, publicou De Medicina Egyptiorum, um
artigo que apresentou o café para os europeus.
A primeira cafeteria londrina foi aberta em 1652. Em
1700, eram mais de duas mil. Eram chamadas de uni-
versidades do centavo — por um centavo, você com-
prava uma xícara de café e passava horas falando sobre
a vida e acertando o prumo da civilização ocidental. As
discussões eram sérias e profundas — afinal, estáva-
mos todos sóbrios — mas nunca, ou quase nunca, cha-
tas: a poesia, as artes, as conquistas, a política, todo
nosso universo circulava pelas cafeterias. A urna que
conhecemos e usamos até hoje, quando as maquininhas
de votação dão pau, nasceu numa cafeteria londrina. O
jornal? Inventado numa cafeteria. O iluminismo? Tam-
bém.
O período que compreende o fim do século XVII e o
começo do século XVIII baseou-se no café, girou em
torno do café, foi movido a café. Que os anjos dos céus
digam amém. As cafeterias eram ninhos de mafagafos,
cheios de intelectuais, professores, homens de negócios
e inventores, todos se embebedando de cafeína.
O trabalho e o café se tornaram parceiros chegados na
época da Revolução Industrial por um motivo óbvio:
não dá para operar maquinário pesado, nem dá para fa-
zer contas, planejar uma escala de serviço, fazer todas
as dezenas de coisinhas e coisonas absolutamente fun-
damentais quando se está tentando criar um mundo ca-
pitalista, se você está bêbado durante a maior parte do
dia. Fora com a cerveja, o vinho e o hidromel. O con-
sumo do álcool ficava cada vez mais confinado ao ho-
rário de lazer e aos dias em que não trabalhávamos. Fi-
car doidão o tempo todo não dá lucro — nem mesmo
para quem está em uma banda de rock. A cafeína foi
parte integrante, fundamental e decisiva da Revolução
Industrial. O café passou a ser a bebida eleita daquele
mundo viciado em trabalho. A recatada era vitoriana
nasceu ali na xicrinha de café.
Ah, e por que é que contamos tudo isto? Para explicar
aos nossos amigos e familiares que se depois de horas
e horas em cafeterias por este mundo de meu Deus, os
irmãos Vitiello não reinventaram a roda, não salvaram
as baleias e não formularam uma teoria boa de verdade
sobre o que quer que fosse, a culpa é nossa, não do ca-
fé. O café fez a parte dele.
______________________________________
Leitura recomendada:
De caçador a gourmet, de Ariovaldo Franco, editora
Senac
C O R R E S P O N D E N C I A
— Mariana Gouveia —
Meu cafezal em flor, quanta flor meu cafezal
Ai menina, meu amor, minha flor do cafezal
Ai menina, meu amor, branca flor do cafezal
Era florada, lindo véu de branca renda
Se estendeu sobre a fazenda,
igual a um manto nupcial
E de mãos dadas fomos juntos pela estrada
Toda branca e perfumada, pela flor do cafezal
Meu cafezal em flor, quanta flor do cafezal
(Cascatinha e Inhana)
Bambina mia,
Desde que chegou até a mim sua pergunta as lem-
branças vieram desfilar em minha mente. Primeiro,
me lembro das flores brancas a enfeitarem os pés de
café e em noite de lua cheia, da janela com as corti-
nas esvoaçantes. Era a coisa mais linda de se ver. De-
pois, a memória me leva para a tua cidade e capto
ali, o que o sabor busca dentro de gente: alma. A fa-
zenda ficava ao pé de uma colina e havia dois tipos de
roça — a de toco (feita depois de uma queimada pro-
gramada, em uma parte do terreno, onde plantávamos
milho, feijão, quiabo, abóboras e legumes variados) e
a do terreno preparado para a plantação de café.
Quando a florada acontecia, meu pai suspirava e dizi-
a que aquilo parecia um buquê de noiva com cheiro e
tudo. Os olhos dele refletiam a singeleza e a magnitu-
de da beleza que a gente via.
Era um dia comum e em uma noite qualquer. E
como mágica, a flor acontecia e o café era abençoado
por ele, que tirava o chapéu da cabeça e em reverên-
cia ao céu curvava à terra. Dias depois, o fruto verde
começava a se desenhar... para em seguida o verme-
lho tomar conta de tudo.
Na frente da casa... o terreiro era preparado para
a acolhida e a secagem. Passávamos horas a rastelar
os grãos para a secagem completa.
— Agora vamos embalar, acolher os grãos para
seu destino. — dizia ele, feliz com a cor esparramada
no quintal —, e com isso, o saco de aniagem era o ni-
nho dos grãos separados por grupos.
Dentro da simplicidade dele, sabia e conhecia a
especificidade de cada grão e em seu toque de mão
acariciava o café, levava ao nariz, aspirava o cheiro, e
com um gesto de separação costurava o saco. Os espe-
ciais eram escolhidos para as sementes de futuras
plantações. Os outros saiam dali direto para o torra-
dor e depois disso, o moinho... e finalmente o cheiro
exalava por toda a casa.
Hoje, as lembranças me abraçam dentro da pala-
vra amor. Era isso que meu pai gostava de fazer. As
canções que falavam de café cabiam em sua boca co-
mo declaração de amor genuíno. Muitas vezes, repetia
que os pés plantados ali em 10 hectares era o ouro ve-
rde/vermelho e negro e que a simbologia daquilo tudo
era nossa vida.
Tudo era parte de um ritual que começou lá, numa
fazenda do interior de Goiás... na escolha da semente
até chegar ao líquido fumegante na xícara esmaltada
verde com florzinhas vermelhas. O bule fazia parte do
jogo que pertencia à mãe de alguém desde não sei
quantas gerações.
Talvez, essa mesma lembrança se junta às que eu
vivi em tua casa. O ristreto exalando corredores intei-
ros, o barulho da cafeteira e a xícara servida a mim
para dividir algo tão teu e de tuo menino: seu lugar. A
mesa na cozinha, o cão a rodear minhas pernas e o
aconchego de colo que parecia que eu já tinha vivido
tudo isso antes.
A cidade ainda dormia — ou estava mais acordada
do que nunca — e os títulos dos teus livros me levaram
para a fazenda de meu pai e o cheiro do café a evocar
lembranças.
Tudo isso se mistura em mim como um gole sabo-
roso de café, servido na cozinha da casa de pau a pi-
que, na fazenda ao pé da colina e o sabor do café feito
por você e entregue em mãos com olho de acolhida.
Grazie por tantas lembranças!
Grazie por existir em minha vida.
Bacio,
'Belas Artes'
(?)
Estávamos ali...
Entre cachepôs, papos corriqueiros
e a desatenção nos moldes e tratos.
Conversa fiada, guimbas e mesa etílica.
Algumas garrafas vazias embasando
nossa oralidade...uma afasia lírica.
Um teor a estampar os rótulos
'Trinta-e-oito-por-centro à dentro'.
( 'De nada' — A corar as faces )
Bebericávamos palavras, passos...
Degustávamos gestos alheios.
Fracassos e algum contentamento.
Um sabor nostálgico de mentes puídas.
Dessas, vividas em linhas intrínsecas
Um volume coloquial de notas esquecidas.
Uma bela criatura passou ao nosso lado
Vestia-se de coisas soturnas, incisivas...
Lânguida e perspicaz, sabia roubar a cena.
Parou diante a ausência de nossos freios.
E fome vorazes...
(Notas mentais: dúbias-mútuas)
'Ahhh caralho!
Mas que belos braços, lábios, bunda... peitos!'
Possuíam a triangulação perfeita!'
Desses paradigmas irracionais.
'J. H. Lambert' — com olhos vis de purgatório.
Remédio para as mãos carnais e ambidestras... de
Noites à fora de expurgos líquidos.
para a dormência de almas...
que já não mais sonham.
Por fim...
Voltamos as tais falácias e shot's
como saideiras.
Sabíamos sorver os dias em
Des'vantagens-natas,
debulhadas em pranchetas e papéis.
Nódoas — talhos...de escritas.
Deixados aquém de pretéritos feridos.
Em ondas curtas...
O ressoar de 'Oh! Darling-Beatles'.
Paradisíaca, a inflamar ilusões:
“...Quando você me falou
Que não precisava mais de mim
Bem, você sabe, eu quase...
Entrei em colapso e chorei.
...desabei e quase morri.”
Ahhh... Darling!
Acostumei-me a sorrir
mudas cruezas
Cafeinadas e 'seletivas'
Em xícaras alvas todas as manhãs.
Ler entranhas efervescidas e filamentosas.
O pendor castanho amargo sublimado.
Dessas peças-humanas naturais...
Refilo o que seja de ti, caricata.
Um sabor expresso para recordar-me.
Xícaras salgadas... em cima de pires
de louça fina
MARIA VITORIA
As quinze em ponto. Pão com manteiga. Frango cozido as
dezoito. Pizza aos sábados. Escadas longas. Portões de
ferro. Cigarros paraguaios e tesouras de cabeleireiro.
Tarde. Pouco sol. Suplicy. Cabelos brancos. Instrumentos
musicais diferentes. Ensaio da banda. Namorado. Vinte re-
ais dois cafés.
Revistas. Novidades. Em frente ao shopping Frei Caneca.
Catuaba. Carnaval. Carolina.
A rua dos “gays”. Expresso. Transação não aceita. Livro so-
bre a mesa. Garoa fina lá fora. Empadas. 51 e banco Itaú.
E o gosto amargo gruda no céu da boca, depois gotas pingam
calçando um estômago cheio de gastrite. Boto três saches
inteiros de açúcar para garantir um pouco de mel na próxi-
ma degustada. Os grãos se assam e se esfarelam enquanto
eu tento não pensar no processo da individualização. Res-
gato um bocado de memórias que cultivei por alguns anos
em minha mente desgovernada. Num gole rapidíssimo,
volto a uma relação de olhares por cima dos pires enquan-
to colheres eram empunhadas em guardanapos descartá-
veis.
O café me lembra uma via láctea de coisas... E esta me joga
no balanço do tempo e me suspende bem lá no alto, mes-
mo sabendo que eu morro de medo de altura.
Gosto de botar as xícaras em cima do mármore frio, só pra
ver se o café é capaz de mudar minhas fragmentadas me-
mórias.
Fim.
!!!
das arábias
sopram ventos
que me alentam
a levantar
co'a fé
granulada
refinada
forte ou fraca
em quantos
algarismos
precisar
Café
— virginia finzetto
—ñ
—
Eu sou o centro do Universo, ainda que sinta a pre-
sença de uma força fantasma a me assombrar. Comungo
a crença, totalmente sem provas, que passeio por vidas
e mortes sucessivas. Águas passadas que movem moi-
nhos, para desaguarem em um presente de futuro aberto
-certo de incertezas. Já coloquei Deus no corpo de um
marimbondo. Eu, mesmo, como um mouro ciumento.
Lembranças ou imaginação…
Contemplo o planeta como palco de meus persona-
gens. Seus habitantes, de todas as espécies e formas,
participam de meu mundo pela escrita. São especial-
mente para os animais da minha espécie para os quais
dirijo o meu olhar e a minha fala. É entre as pessoas que
carrego o meu sorriso desconfiado. Eu me reconheço
cada vez mais inconfidente da história do Homo sapiens
como ser superior às outras espécies. Os humanos vi-
vem a tentar extinguir outros humanos baseado em de-
talhes como diferenças de cor, religião ou time de fute-
bol…
R E S P I R A Ç Ã O
Na busca da emancipação de minha consciência,
me apoio sobre os escombros de uma sociedade doente.
Adoeço, igualmente, para entendê-la. Testifico-
pronuncio-expurgo. Eu me inspiro em mim. Transito,
com todo o conhecimento de causa, na zona cinzenta,
ao me perceber um homem. Das minhas contradições
como cidadão da polis, retiro subsídios para me expres-
sar. Me utilizo de portas e janelas. Adentro por elas por
passos e olhares. Vivo disso. Por isso, quase morro. Não
que estimule minha precariedade. Apenas a constato.
Tento decifrá-la em palavras. Provavelmente, falhe…
— o que me inspira?
—Ó
—
Álcool. Maconha e mulheres.
Gosto dos pés em formato de nuvens quando cami-
nho por ruas esguias. Sinto sempre minha mente des-
plugar da extensão de meu corpo. Aprecio com os
olhos, com o tato e com a boca, corpos femininos e os
uso em meus poemas e crônicas. Deixo que o tripé me
enlace de uma forma sutil ao mesmo tempo em que me
faz caminhar sobre abismos. Quando acordo bebo.
Quando entristeço bebo. Quando comemoro bebo.
Quando não existo, bebo bem. Às vezes, tomo o ar sal-
gado de plantas e flores verdes e engulo tudo para den-
tro de meus poros e pulmões. Isso me faz chorar obser-
vando a vida das janelas. Isso me faz levitar sobre os
céus que homem nenhum pode pisar. Sinto o perfume
de uma fêmea no cio. A sigo com meu olfato de perdi-
gueiro. As memórias vem e um passado-futuro se lan-
çam sobre meus poucos ouvidos e peito frágil.
Um tripé firme. Estático. Sólido. Inspira em mim
essências que por anos perdi em meio ao caos de mi-
nhas bugiganga emocionais. Deixei sete vidas passar
VOMITANDO DESEJOS
pela fresta de uma apenas e não consegui dar liberdade
para o menor dos meus singelos cortejos. Agora isso
rasga em mim, me abre, arreganha, me faz vomitar…
Em mesas de mármore jogo em cima de pedras frias
minhas inspirações em formato de paralelepípedos sem
cores. E então tudo escorre pelo meu peito. Me semeio
em meio um vômito calejado. Fico incolor. Não me lim-
po. Deixo apenas que o tempo seque os dejetos que mi-
nhas palavras proporcionam.
Misturo álcool. Maconha e mulheres de uma forma
que desgasta o mais forte dos touros. Posso sentir meu
lombo trovejar por falta de resistência. Toco meu útero
e posso sentir meus próprios galhos se quebrarem ocos
e velhos.
Tomo álcool para produzir. Fumo maconha para
produzir. Como mulheres para produzir.
Uns me nomeiam poeta. Outros alegam que sou es-
critora. Eu mesma, me sinto exilada dentro das parábo-
las que eu nunca conto.
E isso me inspira. Isso me castiga. Faz com que eu
vomite um pouco do que eu sou…
— o que me inspira?
——
O que me inspira? Ou me ampara, conspira, compa-
ra? Eu mesma me pergunto porque enquanto procuro
respostas, o próprio ar que me comporta a um só tempo
também me conforta e me reporta… a emoções e sensa-
ções de tempos outros, em que tudo era razão para o re-
volver da paixão. Sou aquela de tantos verbos soltos,
que me atrevo a encilhar silêncios no galope da gargan-
ta emudecida, na tentativa quase insana de buscar com-
preender esse deslizar de tantas conjugações nervosas
que me perpassam palavras à beira de serem ditas.
Ainda antes do verbo inspirar colocar-se perfeito na
pronúncia dos seus tempos, a própria ação ou efeito de
inserir ar pelos pulmões já era ato conjugado por nossos
corpos em seus movimentos de mundo. Quando esse
ato exalado, exaltado, quase enamorado, estica-se todo
além desse horizonte premeditado, incita-se — excita-
se — a capacidade de criação. Ou seja, o tempo todo e
todo o tempo estamos a nos inspirar, seja de ar, seja de
estímulos para a criação, para uma ideia original, uma
O QUE ME INSPIRA?
espécie de iluminação dos sentidos. Não é maravilhoso
que assim seja? Ou seja, a inspiração nos avizinha mi-
nuto a minuto!
Outro dia já me perguntaram. O que pode estar a me
inspirar? Eu inspiro ar e, ele mesmo, a seu tempo, me
está a inspirar, no seu vento, no seu tempo, na folha que
faz cair do galho. Tudo me inspira. Ou nada. Avessos de
fora ou de dentro. Recomeços, tropeços, lembranças
momentâneas, esquecimentos duradouros, pensamentos
perdidos e jamais recuperados. “Uma página em branco
dá o direito de sonhar”, como dizia outrora Gaston Ba-
chelard. Sendo assim, a inspiração mora mesmo no va-
zio de um silêncio nunca dito. Porque “o ser torna-se
palavra”, mas antes disso, para imaginar, ausenta-se de-
la. Em mim, é bem certo, a inspiração é habitante de um
quarto escuro à luz de velas, lampião ou vaga-lume. Um
quarto quase escrito — no vazio dos meus silêncios —
neste instante faço-me em palavras — e eis que existo.
— o que me inspira?
——
Cotidiano! Ele me inspira no mesmo ritmo e tempo
em que acontece. Sou mais dos links que dos versos,
frases sintéticas que contém os comprimidos para todas
as horas, isso é o que deixa suspenso e sem ar.
O soco, na boca do estomago nunca vem de grandes
conspirações, mas de curtos e inspirados segundos que
podem ou não se abrir em leques, vórtices perenes e
eternas, dízimas.
Os espaços dispares entres os passos, o bambolear
torto dos quadris, o desconforme das cores nas roupas,
tudo isso me é lúdico. Aromas ao lusco fusco de praças
verdes cinzentas e o concreto armado são amados aqui
dentro como entes que contracenam com as pessoas. A
chuva fina sobre pano branco, suas reações e as espera-
das críticas vertiginosas a quem observa tudo são acú-
mulos que dissipar-se-ão sobre o papel virgem.
Caos, fumaça e as explosões siderais dão hipérbole
ao que eu preciso dizer sem a grosseira visão carnal dos
fatos, transpirando sempre todos os desabafos. Seu per-
fume me inspira, os jardins de flores ou porcelanas bro-
tam em minhas linhas voluntários e senis, são sorrisos
TRANS (IN) PIRAÇÃO
de quem me inspira a rasgar a carne.
Esse meu condenável gosto pela agitação dos dias,
pelo ir e vir frenético dão rumo aos pensamentos quan-
do esses se solidificam em tinta e papiro…é uma rela-
ção nervosa, literalmente, comigo mesmo senhor e juiz
do que escrevo, nunca do que você lê.
— o que me inspira?
——
O que me inspira é a manhã preguiçosa, é a tarde
longa, a noite corrida. Pode ser um filtro de barro, uma
chaleira velha ou uma corrente enferrujada. O que me
inspira são as sensações da poeira das ruas da minha ci-
dade, do sol queimando meu rosto, da noite surgindo se-
rena. Qualquer coisa inspira uma escritora treinada a
ver poesia em tudo. A própria inspiração é inspiradora.
Mas o que mais me inspira são as emoções, os senti-
mentos escondidos que gritam para se libertar. Aqueles
sentimentos que fazem arder as veias e não se manifes-
tam de forma clara, mesmo que postos em palavras ex-
traídas da tinta de uma caneta em um papel muitas ve-
zes amassado, nem sempre em branco.
O QUE ME INSPIRA?
95
não é no caminho, o silêncio.
não é na verdade, o silencio.
não é na escuta, o silêncio
o silêncio é na dobradiça da porta
na boca que cala a vida
na palavra arremessada na cabeça
no abraço repartido
uma ternura recosturada
na trama espinhosa dos teus lábios
na promessa mal feita do teu olhar
você absorveu o erro
nocauteou a fidelidade
avançou sozinho
nas pétalas azuis
regrediu
96
abri a luz
fechei o engasgo
remexi o acaso
engoli o choro
sorvi o desejo
arremessei o desejo
quebrei a janela
lancei palavrões
guardei segredos
contei mentiras
chorei na chuva
dormi cedo
revelei as fotos
limpei o baú
rasguei as cartas
97
gritei muito
assumi dívidas
atrasei o aluguel
perdi as chaves
refiz o relatório
queimei o arroz
arranjei emprego
morri de novo
nasci de novo
escovei os cabelos
arranquei o dente
vivi
revi
sofri
silêncio
98
eu girava inefável por
uma terra de homens sem nome
atravessei colônias buscando
uma mensagem
interrompi lutas
arrasei castelos
de memórias, apenas
por uma mensagem
reverti o ciclo da lua e das águas
abortei meu rio interior
sacudi a rosa dos ventos,
e o centro da terra
afunilou no umbigo
perdi o olhar, na sutura
daquele silêncio
e removi a montanha
dos gauleses
99
desdobrei a colcha da noite passada
vi teu silêncio escorregar
pela manhã
pelas minhas coxas
o sal que ofereci no jantar
estendeu nos pratos e cabelos vermelhos
da outra
teu silêncio oferece dúvidas
teu silêncio angustia
o futuro,
o futuro que comporia sorrisos
e talvez uma felicidade
o teu silêncio agride os cautos
e arranha a fidelidade
bati na vidraça outra vez
o teu silêncio não me socorreu
100
a mão manchada de sangue
verte em gritos
teu silêncio nunca me responde
a criança sussurra na porta o segredo
o teu silêncio se cala mais uma vez
a mãe odoya esbraveja no mar
ouço o chamado
o teu silêncio ignora a realidade
o continente acena
mares, embarcações e um desejo
aprumei o xale
ajeitei aquele chapéu cinza
li as cartas
o mar, outro continente
cortei o cadeado
no final, no fundo do copo
você responde?
101
o que precede o silêncio
de tuas mãos
senão a gota da pergunta
que cala
e aponta um rumo na neblina
sobrevém uma chuva fina
cobrindo a muralha das certezas
passos e pernas
bailam aos olhos
mais passos e entro
no aquário de aspirações
e imperfeições
não conjugadas
sorrio uma página
de tristezas
viro o inverso
das calêndulas
e trago uma begônia vermelha
102
na vagareza dos dedos, pus a xícara
nos lábios, café sem açúcar
meditei sobre o tempo inafiançável
que liga a todo momento
o cobrador bateu
ouvi seus passos miúdos, e a respiração
encadeada, cansaço e sede
silenciei as dúvidas
descansei as suas mentiras
no repositório aqui dentro
o aqui fora partiu,
da xícara da realidade
sobrou uma borra de café
103
ele segurava a máquina com zelo
fotografava as variações e tons,
da objetiva, os beijos saiam instantâneos
o negativo preenchia o todo
e formava tons em preto, cinza e branco
as mãos ricas em detalhes
os abraços no cinema despertavam saudades
a textura das palavras jogadas na jarra
diluíam no silêncio
numa ternura
que se foi