processos formativos e o ensino de lÍngua: a relaÇÃo entre o sujeito e a lÍngua

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197 Linguagem e Cultura PROCESSOS FORMATIVOS E O ENSINO DE LÍNGUA: A RELAÇÃO ENTRE O SUJEITO E A LÍNGUA Albano Dalla Pria Edileusa Gimenes Moralis (Universidade do Estado de Mato Grosso) O problema sobre o qual pretendemos refletir são os mo- dos variáveis como os sujeitos, o ensino de línguas e as relações hu- manas definem sua identidade na relação com os contextos de suas ocorrências. Há vários posicionamentos teóricos sobre o conceito de linguagem, de ensino de línguas e de formação docente. Qualquer tratamento que se dê a essa questão será tributário da compreen- são que se tem da natureza da linguagem, das línguas como mani- festação dessa natureza e do modo como se configuram as relações humanas. Para tanto, reiteramos nossa opção teórico-metodológica por considerar a linguagem como constitutiva da natureza humana (PRIA, 2013, p. 51). No homem, a linguagem atua como mecanismo (cognitivo e operatório) de equilibração e de adaptação ao empírico (diversidade de experiências subjetivas e de textos orais e escritos). A linguagem assim definida é de natureza indeterminada. Todo o universo experiencial (empírico) estará por ser categorizado e or- ganizado em situações práticas de produção. Processos generalizá- veis (mecanismos e operações) de organização da matéria (sujeitos e língua) constroem e desconstroem – que também é uma forma de construção – fundamentam as identidades dos sujeitos e dos textos que esses sujeitos leem e interpretam. A articulação de meios expressivos e diversidade de expe- riências (o particular) com esses processos generalizáveis de organi- zação da matéria (o universal) será o resultado de opções feitas ao longo de um percurso original que cada sujeito terá de percorrer no intercurso de sua existência. O ensino e a pesquisa de línguas são os espaços em relação aos quais estamos construindo nossa identidade enquanto professores, pesquisadores, homem e mulher. Se, por um lado, a teorização está na dependência da nossa capacidade de per- ceber esse empírico, por outro lado, os limites e as dificuldades que esse empírico coloca para ser apreendido nos ajudam a não idealizar demasiadamente as relações que observamos.

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Linguagem e Cultura

PROCESSOS FORMATIVOS E O ENSINO DE LÍNGUA: A RELAÇÃO ENTRE O SUJEITO E A LÍNGUA

Albano Dalla PriaEdileusa Gimenes Moralis

(Universidade do Estado de Mato Grosso)

O problema sobre o qual pretendemos re!etir são os mo-dos variáveis como os sujeitos, o ensino de línguas e as relações hu-manas de'nem sua identidade na relação com os contextos de suas ocorrências.

Há vários posicionamentos teóricos sobre o conceito de linguagem, de ensino de línguas e de formação docente. Qualquer tratamento que se dê a essa questão será tributário da compreen-são que se tem da natureza da linguagem, das línguas como mani-festação dessa natureza e do modo como se con'guram as relações humanas. Para tanto, reiteramos nossa opção teórico-metodológica por considerar a linguagem como constitutiva da natureza humana (PRIA, 2013, p. 51). No homem, a linguagem atua como mecanismo (cognitivo e operatório) de equilibração e de adaptação ao empírico (diversidade de experiências subjetivas e de textos orais e escritos). A linguagem assim de'nida é de natureza indeterminada. Todo o universo experiencial (empírico) estará por ser categorizado e or-ganizado em situações práticas de produção. Processos generalizá-veis (mecanismos e operações) de organização da matéria (sujeitos e língua) constroem e desconstroem – que também é uma forma de construção – fundamentam as identidades dos sujeitos e dos textos que esses sujeitos leem e interpretam.

A articulação de meios expressivos e diversidade de expe-riências (o particular) com esses processos generalizáveis de organi-zação da matéria (o universal) será o resultado de opções feitas ao longo de um percurso original que cada sujeito terá de percorrer no intercurso de sua existência. O ensino e a pesquisa de línguas são os espaços em relação aos quais estamos construindo nossa identidade enquanto professores, pesquisadores, homem e mulher. Se, por um lado, a teorização está na dependência da nossa capacidade de per-ceber esse empírico, por outro lado, os limites e as di'culdades que esse empírico coloca para ser apreendido nos ajudam a não idealizar demasiadamente as relações que observamos.

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Tendo situado nosso problema de pesquisa dentro do po-sicionamento teórico-metodológico que assumimos, esperamos contribuir para uma discussão mais ampla sobre a construção da identidade dos sujeitos e dos textos nos processos formativos e no ensino de língua; fazer o esforço necessário, dada nossas limitações, para dialogar com outros paradigmas para os quais a identidade da língua e dos sujeitos é objeto de discussão; tornar visível a trajetória (sequência de escolhas e opções) que os sujeitos e a língua fazem para ir de uma identidade (origem) a outra (identidade visada) em intervalos espaço-temporais determinados; tornar visível a invari-ância formal (operações da linguagem) que sustenta a constituição das identidades dos sujeitos na sua relação com os outros sujeitos e com a língua em intervalos espaço-temporais sucessivos; e ques-tionar a pertinência da hierarquização de sujeitos e das línguas do ponto de vista da linguagem enquanto atividade de construção de representação, referenciação e regulação.

Do modo como de'nimos a linguagem enquanto trabalho (prática), o professor não pode ser visto como autômato passivo cuja função é a mera transferência de um conteúdo (pronto) para o alu-no através de textos de uma língua dada, assim como o aluno, seja o aluno da Educação Básica ou do Ensino Superior, também não pode ser visto como mero receptáculo (depósito) pronto para receber de modo passivo conteúdos procedentes do professor através de textos orais e escritos. O professor e o aluno devem ser sujeitos ativos nos processos formativos, no ensino e na aquisição de língua. Devem ser na leitura e na interpretação de textos, assim como na construção do conhecimento entendido como o saber que o sujeito tem de si e do outro (sujeitos e objetos físico-culturais).

Algumas perguntas são fundamentais para a trajetória que vamos percorrer neste capítulo. Esperamos que ajudem o leitor, tan-to quanto nos ajudarão a nos localizar em relação a algumas ques-tões. É pertinente a oposição entre o conhecimento de si e do outro? Quem conhece a si também conhece o outro? Conhecer a si está relacionado a conhecer o outro? É possível conhecer a si sem co-nhecer o outro? O quão e o quanto estamos dispostos a conhecer o outro e a nós mesmos? Qual a natureza da relação entre sujeitos? De que modo os processos formativos e o ensino de línguas podem nos

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ajudar a conhecer o outro e a nós mesmos?

Processos formativos e ensino de línguas. Para quem? Para que?Durante muitos anos o ensino tradicional esteve centrado

em uma identidade única, absoluta e universal. Os sujeitos eram vis-tos como réplicas (imperfeitas) dessa única e mesma identidade. A identi'cação absoluta do professor e do aluno com essa identidade era desejada pela escola, pelo Estado e pela sociedade organizada de um certo modo. Deriva dessa vertente teórica a ideia de que o bom professor é aquele que consegue transferir para o aluno e para os textos que lê e interpreta o conteúdo que aprendeu sem interferir (macular) esse tal conteúdo. Com efeito, o bom aluno será aquele que vier a reproduzir o bom professor que reproduz alguém que re-produz... Nessa esteira, a idealização da identi'cação absoluta des-ses sujeitos e dos textos que eles leem e interpretam será o tributo que os sujeitos e a língua terão de pagar a uma identidade de alhures para que se encontre neles o (bom) professor, o (bom) aluno e os (bons) textos, porquanto cada um será uma realização particular de uma mesma identidade de algum modo.

Os únicos que terão acesso à verdade das palavras (seu conteúdo inerente, único, absoluto e universal) serão aqueles que chegarem a um ponto hierarquicamente superior aos demais. Em uma sociedade organizada de um tal modo, é esperado que poucos venham a gozar de tal privilégio por razões que vão muito além da nossa capacidade de listá-las. Abusando da generalização, citamos uma posição econômica, um cargo, uma linhagem de família, mas também podemos incluir outras razões, tais como um ativismo, um posicionamento religioso. Somente essas poucas autoridades pode-rá arbitrar sobre o valor das expressões linguísticas (lexicais, grama-ticais, discursivas) e sobre a pertinência da mudança de valor. Desse modo, esses valores serão não só independentes das relações que as expressões linguísticas venham a estabelecer umas com as outras nos textos, mas também dos sujeitos que tenham produzido tais tex-tos (autonomia do objeto em relação ao sujeito).

Os processos formativos de docentes são abastecidos com resultados de pesquisas linguísticas que se dão em tempos e espaços distantes da sala de aula. Isso é o que se chama “aprender teoria” no Ensino Superior. Para o ensino de línguas, na Educação Básica,

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sobram fórmulas, expressões padronizadas e modelos de escrita em uma língua dada. Essas con'gurações estereotipadas de língua sus-tentam escolas, professores, editoras e cursos. Qual a contribuição que trazem aos alunos para a construção da identidade e autonomia desses sujeitos? Arrumar um emprego e tão apenas isso? Os cami-nhos pelos quais tais con'gurações se con'guraram ou não são ex-plorados ou, como somos muito otimistas, são pouco explorados. Se o são, há pouca ou nenhuma consciência disso. Para o ensino tradicional, não é relevante como se aprende, mas aquilo que se aprende. A decadência do trabalho criativo e original de constru-ção de textos se traduz pelo distanciamento da leitura da literatura e pela di'culdade com a escrita para além dos “textos formulários” que a escola oferece.

O con!ito de identidades que é próprio do trabalho criativo 'ca anulado pelo ensino tradicional que o faz de modo explícito ao de'nir a priori as autoridades que devem ser reproduzidas. Não só na educação, mas também em outros domínios da vida humana, há um outro segmento político-ideológico que assume inicialmente o con!ito das identidades diversi'cadas, mas o nega in !ne. Nesse momento, uma identidade se coloca em um plano hierarquicamente superior em rela-ção às demais identidades, não se comprometendo com a totalidade da diversidade das identidades. Essa identidade, como não está de'nida a priori, poderá ser assumida pelo professor, pelo aluno ou pelos dois, nos casos de consenso ou da superação do con!ito, enquanto participantes de um mesmo espaço de interlocução, ou por outros sujeitos externos a esse espaço, que poderão ser, dentre vários, o Estado, um político, um ativista, um artista da televisão ou um religioso. En'm, será um sujeito ausente da situação de interlocução que tiver feito a opção por se colo-car como autoridade aos demais. Esse sujeito intervém, dentre tantos modos, através de políticas de inclusão, de democratização, de atenção aos Direitos Humanos, mas também através de políticas de mérito, de internacionalização e de livre iniciativa. Ainda que com alguma relativi-zação (ceticismo), ainda é a concepção estável e individualista de sujeito e de língua que está sustentando esse projeto de educação, de socieda-de e de política. Para esse ensino, não é relevante como se aprende ou aquilo que se aprende, mas que se aprenda alguma coisa.

Relações humanas. A política de poucos para muitos

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O autoritarismo legitima apenas que os poucos exerçam autoridade sobre os muitos, nunca o contrário. As ações dos pou-cos podem conduzir os muitos à mudança e à transformação, nunca o contrário. Os poucos serão autoridades para os muitos, mas não para si; os muitos não serão autoridades para os poucos, mas tam-bém não o serão para si, porque os poucos o serão. Os muitos não serão autoridades para ninguém. Não ser autoridade para ninguém é um modo de ser autoridade pra alguma coisa. Esse projeto polí-tico (e nesse caso já não cabe a distinção autoritário ou populista) de tirar dos muitos o potencial de construir a sua identidade, ne-gando a existência de autoridades entre muitos (ainda um modo de hierarquizar), determina a identidade (indeterminada) dos muitos sujeitos, mas também determina (indeterminando) a identidade dos poucos sujeitos que estão na sua origem.

O posicionamento político e ideológico do discurso popu-lista, embora atenue o discurso autoritário que determina o que é bom e deve permanecer e o que não é bom e não deve permanecer, traz no seu bojo um autoritarismo pujante. O populismo não só é ávido por hierarquias, mas dela se bene'cia sorrateiramente. Al-guém se desdiz se disser que não há ou que não deve haver algum su-jeito que exerça autoridade sobre os demais. Tal a'rmação será uma contradição. Há uma exceção subjacente à a'rmação que desmente sua universalidade. Será o sujeito que estiver fazendo tal a'rmação. Portanto, se deve ou não existir autoridades é uma falsa-questão. A questão de fato está no modo de existir da autoridade e de como ela vier a se relacionar com os sujeitos. Se o sujeito for autoridade para o outro, mas também for autoridade para si, o outro também será au-toridade para esse sujeito. A essa altura a distinção entre autoridade para si e autoridade para o outro perde a relevância. Assim como a oposição entre poucos e muitos. Aquele que exercer autoridade para si (que é a autoridade para o outro) e para o outro (que é a autorida-de para si), não terá necessidade de existir dentro de uma estrutura de poder voluntariamente submetido por almejar dominá-la (voltar à distinção entre poucos e muitos; entre autoridade para si e para o outro) em algum ponto espaço-temporal determinado.

Se alguém disser que todos os sujeitos estão com a verdade (equalização) ou que nenhum sujeito está com a verdade (negação da

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existência de autoridades), estará dizendo que o sujeito que enuncia tal a'rmação é a autoridade (verdade) que prevalece em relação a qualquer outra que existe (mas está sendo obliterada) ou que não existe (porque não deve existir). A equalização e a negação (o caos) das hierarquias (e nesse caso já não cabe falar em autoridades) serão apenas (estraté-gias de) determinações super'ciais de identidade. Tendo produzido o resultado visado (caos ou inexistência de autoridades), tal discurso terá garantido a manutenção (permanência) de um modo de existir de uma identidade dentro de uma estrutura de poder à qual o sujeito estava vo-luntariamente submetido desde a origem por almejar dominá-la em al-gum ponto espaço-temporal determinado.

Posto isso, a não existência de autoridades entre muitos será um modo de existência de autoridades entre poucos. A não existência de autoridades entre muitos será, ainda, um modo de não determinar a identidade de outros sujeitos para além daqueles pou-cos que se localizam sobre (não em relação) a diversidade (indeter-minação) de muitos sujeitos; será um modo de não dar espaço para que os muitos se desenvolvam. Preventivamente, esses muitos não existirão dentro de uma estrutura de poder de um certo tipo, mas marginalmente a ela. Se, por um lado, será um modo de impedir que as mudanças e as transformações caminhem para o outro (o desconhecido), por outro lado, será um modo de favorecer a mu-dança para o mesmo (permanência). Está ausente desse projeto po-lítico-educacional e formativo a mudança para o diferente, para o imprevisível, para o incerto, para o desconhecido.

A formação docente e o ensino de línguas: o diálogo ausente Os projetos de formação docente e de ensino de línguas re-

produzem esse projeto político-ideológico que temos observado nas relações humanas. Ambos os projetos de poder partem de um estado origem – determinado para o autoritarismo e indeterminado para o populismo – e caminham em direção a um estado visado coincidente com o estado origem (Figura 1). Os muitos são apenas instrumentos (mão-de-obra) dos processos que visam ao bom êxito de um projeto político de manutenção de poucos no poder e não encontram espaço para construir a sua identidade dentro desse projeto.

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Figura 1: O estado origem (x) e o estado visado (x) remontados.

O diálogo está ausente desse projeto político-ideológico as-sente sobre uma pseudodemocracia. Os remontamentos reiterados do estado origem (indeterminação e potencial para todos os pos-síveis) com o estado visado (resultado de uma trajetória de deter-minação de identidade) e a reiterada ausência ou parcialidade de re!exividade (autoridade para o outro sem autoridade para si) pro-movem a manutenção do desequilíbrio (ausência de diálogo entre estabilidade e instabilidade; entre determinação e indeterminação; entre os muitos e os poucos; entre ensino e pesquisa; entre ensino superior e ensino básico). Enquanto houver o desequilíbrio, haverá o vazio (o tédio, a monotonia, a ansiedade, a tristeza, a violência) à espera do complementar (o outro que está ausente) para que cada um brilhe na magnitude que lhe é própria. Reiteramos o que temos a'rmado em outros momentos: “no homem, a linguagem atua como mecanismo de equilibração e de adaptação ao empírico (diversidade de experiências e de meios expressivos)” (PRIA, 2013, p. 51).

O formal e o empírico. A articulação do formal com o empíricoHá um estado original de indeterminação (a linguagem)

no desenvolvimento dos sujeitos tanto do ponto de vista da 'logê-nese quanto da ontogênese35. Esse formal (operações da linguagem) não se confunde com um estado original subjetivo ou com um su-jeito primitivo mais indeterminado ao qual se soma a historicida-

35 Todo indivíduo nasce com o potencial (bio-psico-social) de desenvolvimento que todos os exemplares da espécie trazem consigo ('logênese). Esse potencial vai ganhando determinação (ontogênese) na trajetória de cada sujeito dentro da historicidade das escolhas feitas pelo sujeito frente ao universo físico-cultural com o qual se relaciona.

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de (determinação) empírica com a qual esse sujeito se relaciona no intercurso de sua existência. É o formal que organiza (porque dá contornos – mais ou menos determinados) e sustenta o movimento (a passagem) de um contorno a outro.

A indeterminação empírica é um modo de determinação porquanto uma identidade está con'gurada de um certo modo. Esse estado, no entanto, é apenas um ponto que podemos observar em um contínuo. Se o processo (movimento) se inicia e se determina (mas não termina) em algum ponto no tempo e no espaço em que origem (causa) e o estado visado (provisório) estejam remontados, caberá dizer que houve diálogo (Figura 1)? Sustentando toda a tra-jetória entre dois pontos de determinação no empírico e tudo aquilo que está entre eles (indeterminação), está a energia criativa e origi-nal que a linguagem é. O sujeito poderá retornar a um estado origi-nal no empírico – que não se confunde com o estado original formal –, refazer (que ainda é um modo de fazer) as escolhas que possa ter feito em um ponto espaço-temporal anterior e reorientar suas escolhas em favor da sua manutenção ou do diferente. Como essa origem formal estará presente em toda e qualquer origem empírica, ainda caberá tal distinção? Se formal e empírico estiverem articula-dos, a distinção perde a relevância.

A de'nição de linguagem enquanto atividade de represen-tação, referenciação e regulação, tal como Culioli (1990) a concei-tua, não se detém ao sujeito apenas enquanto um objeto da cultura cuja identidade se constrói apenas na relação com outros sujeitos. O sujeito não se de'ne apenas pelo social e pela cultura. Entidade criada pela natureza, o sujeito traz consigo uma dimensão psicológi-ca autoreguladora (um aperfeiçoamento biológico de defesa voltado à perpetuação da existência da espécie) que lhe permite construir sua identidade na relação consigo mesmo enquanto outro (espelha-mento psicológico) e na relação com o outro social. Falaremos da dimensão psicossocial do sujeito, e não apenas do social ou do psi-cológico desarticulados.

A tese da indeterminação da linguagem que assumimos não presume o modo como uma identidade deve se con'gurar. Se alguma identidade ganha contornos, isso é resultado da atividade (trabalho) cognitiva (mecanismos) dos sujeitos. Não há uma ou

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mesmo várias identidades prescritas por uma autoridade para o su-jeito encenar (Figura 2). As línguas e os sujeitos são sistemas em movimento (Figura 3) que se estabiliza e desestabiliza em diferen-tes pontos no tempo e no espaço. Ainda que esses pontos não este-jam totalmente identi'cados, e provavelmente não o estarão, haverá uma diferença, ainda que mínima, de um ponto a outro.Figura 2: O sujeito e a língua são sistemas estáveis e fechados.

Fonte: Elaboração própria.Figura 3: O sujeito e a língua são sistemas abertos, relativamente estáveis e em constante evolução.

Fonte: Elaboração própria.

Nas Figuras 2 e 3, P0, P

1, P

2 e P

n representam pontos cen-

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tralizados (um único ponto de vista subjetivo). Na Figura 2, o seg-mento de seta representa um salto de P

0 para P

1, de P

1 para P

2, de P

2

para Pn

e assim sucessivamente. Na Figura 3, o segmento de círculo representa descentração de pontos de vista (con!ito entre pontos de vista), doravante representado por P/P’.

Na Figura 2, os pontos P0, P

1, P

2 e P

n não se alteram uns

em relação aos outros ou em relação a si. O salto de um ponto a ou-tro se deve à alteridade (P’) – e o con!ito (P/P’) que lhe é próprio – terem sido excluídos para fora da identidade a ser construída. Como resultando, os pontos se distinguem apenas super'cialmente como arremedos de identidade. O sujeito não se hierarquiza em relação ao outro, mas também não se hierarquiza em relação a si. Rati'camos a a'rmação que 'zemos acima de que “os muitos não serão autori-dades para os poucos, mas também não o serão para si, porque os poucos o serão” autoridades para os muitos.

Para exercer autoridade em relação ao – e não sobre o – outro, o sujeito terá de conhecer do outro. Assim, para exercer auto-ridade em relação si, o sujeito terá de conhecer a si (acessar o auto-conhecimento). Se, por um lado, o autoritarismo exclui a alteridade de princípio, por outro lado, o populismo carrega a identidade e a alteridade juntas (P/P’) de P

0 até P

1, para excluir a alteridade do pro-

cesso quando da chegada em P1. O autoritarismo – que é o excesso

de autoridade – se aplica antes que o processo se inicie. O populis-mo – que é ausência de autoridade no processo – aplica o excesso próximo do 'nal do processo. Nos dois modelos, que acabam sendo o mesmo por vias diferentes, P

0 e P

1 remontam uma mesma identi-

dade.Na Figura 2, ou o sujeito é a réplica de uma mesma identi-

dade (P) ou é a réplica de uma mesma alteridade (P’), o que vem a ser a réplica de uma mesma identidade. O movimento gira em falso (Figura 1) em cada um e em todos os pontos (P

0, P

1, P

2 e P

n). A uni-

dade (P) desconhece a diversidade (P’), assim como a diversidade (P) desconhece a unidade (P’) ou porque a diversidade é excluída antes (autoritarismo) ou no 'nal do processo (populismo que tam-bém é autoritarismo).

Na Figura 3, o ponto P1 superou o con!ito (P/P’) da traje-

tória (objetiva) de diálogo com a alteridade (P’) em relação a P0. A

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identidade de P0 passou por outras identidades (indeterminação) e

determinou uma identidade em outro ponto P1, no qual está reorga-

nizada a experiência que o sujeito tem de si (identidade) e do outro (alteridade).

Como o conhecimento se organiza e como o ensino organiza o conhecimento

O conhecimento está na dependência da organização da experiência que os sujeitos têm de si e do outro (outros sujeitos e ob-jetos físico-culturais). E o outro é experienciado de um certo modo pelo sujeito. O modo que o sujeito tem de experienciar o outro e de ser experienciado pelo outro pode criar obstáculos (fronteira) para que o sujeito e o outro construam cada um a sua identidade. Obs-táculos que o sujeito coloca para si e que o outro pode colocar para o sujeito e vice-versa. A oposição entre o conhecimento de si e o conhecimento do outro deixa de ser relevante, porque quem conhe-ce a si e ao outro se conhece ainda mais. O conhecimento do outro é constitutivo do conhecimento de si. A di'culdade (mas também a facilidade) para se chegar ao autoconhecimento será muito mais uma questão de grau – o quão e o quanto estamos dispostos a co-nhecer o outro e a nós mesmos – do que da natureza (o tipo) da relação.

O ensino é uma forma de autoridade que determina o que o aluno deve saber e como deve chegar a esse saber; mas também indetermina o que o aluno deve saber e o como deve chegar a esse saber. Em ambos os casos há um modo de determinar o que e o como. No ensino, se deve ou não haver uma autoridade é uma falsa-questão. O que está em questão é o modo de ser dessa autoridade. Autoridade em excesso ou em falta? Em uma sociedade organizada de um certo modo, é esperado que um valor seja atribuído ao sujeito que passou pelo processo formativo. Esse valor pode ser danoso tan-to para o aluno quanto para o professor. Só não o será para o sujeito que atribui tal valor, porque está ausente e distante da relação.

Do ponto de vista da linguagem entendida como trabalho, esse valor será o resultado do modo como o ensino exercerá autori-dade na formação docente e no ensino de línguas. O professor po-derá optar por exercer autoridade:

em relação ao outro, buscando conhecer do outro e, do

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mesmo modo, optar por exercer autoridade em relação si, buscando conhecer a si;sobre o outro, mas não sobre si, deixando de conhecer o outro e a si (individualismo).

Os argumentos que se constroem em favor do populismo, assim como aqueles em favor do autoritarismo, não estão regula-dos pelo diálogo, mas pelo individualismo. No populismo, pela falta de individualismo, com a consequente massi'cação e, o que é pior, com a desnaturação das individualidades; no autoritarismo, pelo ex-cesso de individualismo, com a consequente exacerbação da inicia-tiva individual e seus méritos e deméritos, assinalada, em seu ponto de culminância, pela total indiferença ao outro. Estando o diálogo ausente do ensino, a identidade do professor e do aluno será advin-da de uma autoridade externa, segundo critérios obscuros.

Algumas opções de caricatura têm sido oferecidas ao pro-fessor, tais como a de tutor (populismo) ou de algoz (autoritarismo) dos alunos, mas ambos os papéis imputam alguma consequência ao professor. No primeiro caso, terá de responder pelo aluno enquanto fracasso social (por não ser útil para a sociedade) e pro'ssional (por não ser conhecedor de técnicas). Em uma sociedade que organizou um modelo econômico e social tal, todo recurso terá de se reverter em mais recurso, e a educação não 'ca isenta desse ideal. O profes-sor terá de responde por esse ônus. No segundo caso, o professor terá a obrigação de executar a determinação de motivar o aluno que ainda não tenha o sentimento de necessidade para o estudo e para o trabalho a ser responsável com a manutenção dos valores construí-dos pelo outro e dedicado (disciplinado) no aprendizado de valores construídos que a escola e uma sociedade tal valorizam. Trata-se de valores aos quais ambos o professor e o aluno devem se adequar, tal como se insere uma roda dentada em uma engrenagem destinada a transmitir movimento moto-contínuo. Se houver ônus, será com-partilhado pelo professor e pelo aluno. O primeiro porque não foi o professor que deveria ser, porque não alcançou o resultado que se espera de um professor; o segundo porque não se adequou a um certo modo de viver que uma sociedade assim o tenha organizado. Professor e aluno são cada um individualmente e os dois juntos os únicos penalizados. A escola, os políticos, a sociedade e o Estado

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permanecerão todos isentos de ônus.Para além da opção pelo individualismo, há ainda outros

caminhos. O que estamos percorrendo nos trouxe a grata satisfação de observar um episódio no 'nal de 2013 um diálogo em relação ao qual desenvolvemos o nosso diálogo que agora compartilhamos com o leitor deste capítulo.

O sujeito (cognoscente), o objeto cognoscível (a língua) e a linguagem (autocognição)

Recordamos uma ocasião em que pudemos observar um garoto de sete anos de idade que quebrou um brinquedo logo após tê-lo recebido do pai no Natal. Ao ver o que ocorrera ao brinquedo, a avó do garoto indagou a criança: “O que aconteceu com o brin-quedo?”. Teve como resposta: “Ele quebrou”. Imediatamente, a avó retrucou: “Quem quebrou o brinquedo?”. Após a pergunta, o garoto olhou 'xamente para a avó e, então, passou a balançar a cabeça ne-gativamente, sem responder verbalmente à pergunta.

Para que a criança respondesse “Ele quebrou”, ou seja, para chegar a esse enunciado, teve de passar por um conjunto de enun-ciados próximos (uma família parafrástica). Embora não tenham alçado ao estatuto de enunciado, foram considerados inconsciente-mente pela criança e relegados ao inconsciente. A existência desses enunciados é atestada pela reação da criança à pergunta da avó so-bre “Quem quebrou o brinquedo?”. A pergunta lhe ofereceu a opor-tunidade de que a reversibilidade se colocasse para sua inteligência. Essa operação da linguagem (mas também da inteligência) ampliou a consciência de sua ação em relação ao brinquedo e à avó. Podemos glosar esse caminho como “Eu quebrei o brinquedo do qual você está falando, mas não quero ou não posso assumir para você, aqui e agora a minha ação sobre o brinquedo, porque o resultado da minha ação sobre você, que é enunciar “Eu quebrei o brinquedo” pode ser o excesso da sua autoridade”. O aceno da cabeça da criança é uma marca de asserção36. Uma marca de que a criança voltou (reversi-bilidade) a um ponto origem espaço-temporal não muito distante

36 A cabeça balançando é marca de asserção. “A asserção pode cair no verbo mas pode também cair na composição interna de um enunciado, assim como na pronún-cia recortada ou soletrada de um léxico, uma tosse, um gesto, um engolir a seco, um erro de pronúncia, etc.” (REZENDE, 2000, p. 202).

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daquele da situação de diálogo com a avó, no qual os indivíduos (criança e brinquedo) existiam de um certo modo que, em relação ao ponto visado, que é a situação de diálogo com a avó, foi enuncia-do de um certo modo.37

Na retomada, que é dada pela situação de diálogo com a avó, a criança não nega a existência de uma ocorrência de “O brin-quedo ter sido quebrado por Yago” que já estava construída em “Ele quebrou”. A criança nega a existência de uma ocorrência de “Um ato de quebrar o brinquedo para Yago (por alguém)”. Essa negação de um ato potencial pode ser glosada como “Alguém disse que al-guém quebrou o brinquedo, mas eu nego que eu tenha dito isso”. Na retomada do pré-constructo, a criança percorre o circuito de causa-lidade que resultou no brinquedo quebrado e nega não a existência de brinquedo quebrado, mas o ato de dizer de alguém sobre alguém que tenha levado o brinquedo a esse estado.

No enunciado “Ele quebrou”, observamos centralização. O sujeito que faz alguma coisa e o objeto resultante desse fazer (ação do objeto sobre o sujeito) coincidem na representação que o sujeito constrói do fazer (ação do sujeito sobre o objeto) de alguém. Para o sujeito enunciador, sujeito e objeto não se distinguem na represen-tação que constrói da relação; do mesmo modo que, para o sujeito enunciador, a representação que ele constrói da relação sujeito-ob-jeto não se distingue da representação que outros sujeitos venham a

37 Outros discursos que alicerçam o diálogo dos sujeitos no tempo e no espaço da enunciação. (CULIOLI, 1990, 1999a e b)

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construir sobre tal relação. A pergunta “Quem quebrou o brinquedo” descentraliza o

que estava centralizado em “Ele quebrou”. Questiona a coincidência da relação sujeito-objeto representada pelo garoto em “Ele quebrou”, passando pela possibilidade de que outros sujeitos, possíveis que-bradores de brinquedo, sejam considerados pelo garoto, incluindo o próprio garoto; questiona também o modo como a representação (enunciada) foi construída pelo garoto, passando pela possibilidade de que outros sujeitos, possíveis enunciadores, sejam considerados pelo garoto, incluindo o próprio garoto em outro tempo e espaço, podem representar a relação de outro modo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A linguagem, enquanto trabalho nos coloca diante de nós

mesmos, das nossas escolhas e dos sistemas de referência que esta-mos construindo. Assim foi com o garoto de nosso exercício. Se o professor busca acessar esse sistema de referência para, através de um processo de projeção ou de espelhamento desse empírico, ajudar o aluno a observar conscientemente as escolhas que faz, esse profes-sor, mas também o pesquisador, terá aperfeiçoado a sua habilidade em mostrar como os valores chegam a ser o que são, mas também como, sem deixar de ser o que são, transformam-se em outros valo-res e como esses valores todos estão interligados (a linguagem).

REFERÊNCIASCULIOLI, A. Pour une linguistique de l’énonciation: domaine no-tionnel. Paris: Ophrys, 1999b. v. 3.

CULIOLI, A. Pour une linguistique de l’énonciation: formalisation et opérations de repérage. Paris: Ophrys, 1999a. v. 2.

CULIOLI, A. Pour une linguistique de l’énonciation: opérations et représentations. Paris: Ophrys, 1990. v. 1.

PRIA, A. D. A especi'cidade linguística e não-linguística em arti-culação com a atividade de linguagem. Signo, v. 38, n. 64, p. 50-65, 2013.

REZENDE, L. M. Léxico e gramática: aproximação de problemas lin-guísticos com educacionais. Tese (Livre docência) – Faculdade de Ci-ências e Letras da Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2000.

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO-NA-PUBLICAÇÃO (CIP)

E59 Linguagem e cultura : viagem pela literatura, arte e discurso / Agnaldo Rodrigues da Silva ... [et al.], organizadores. – 1. ed. – Porto Alegre : Instituto de Letras - UFRGS, 2014. 365 p. ; 23 cm. ISBN 978-85-64522-14-5 1. Literatura. 2. Linguística. 3. Artes. I. Silva, Agnaldo Rodrigues da.

CDD 801

Catalogação na publicação: Setor de Referência/BSCSH

Revisores: Taisir Mahmudo Karim/ Silvia Regina NunesDiagramação: Ricelli Justino dos ReisCapa: Aroldo José Abreu Pinto

Jane Fraga Tutikian (UFRGS)Benjamin Abdala Junior (USP)Agnaldo Rodrigues da Silva (UNEMAT)Inocência Mata (Universidade de Lisboa)Pires Laranjeira (Universidade de Coimbra)Águeda Aparecida da Cruz Borges ( UFMT)Maria Luceli Faria Batistote (UFMS)Ludimila Machado Marques (UEM)Taisir Mahmudo Karim (UNEMAT)

Conselho Cientí#co:

Proibida a reprodução de partes ou do todo desta obra sem autorização expressa dos (as) autores (as). (art.184 do Código Penal e Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 do Código Civil Brasileiro de 2002).

Reitor

Carlos Alexandre Neto

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