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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
ANGELA APARECIDA TELES
CINEMA CONTRA CINEMA: Cinema Educativo em São Paulo
nas décadas de 1920/30
SÃO PAULO 1995
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
ANGELA APARECIDA TELES
CINEMA CONTRA CINEMA: Cinema Educativo em São Paulo
nas décadas de 1920/30
Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), como requisito parcial para obtenção do título de Mestre. Área de Concentração: História Social Orientadora: Profa. Dra. Maria Antonieta M. Antonacci.
SÃO PAULO 1995
ANGELA APARECIDA TELES
CINEMA CONTRA CINEMA: Cinema Educativo em São Paulo
nas décadas de 1920/30
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em História. Área de Concentração: História Social Orientadora: Profa. Dra. Maria Antonieta Martines Antonacci.
São Paulo, 05 de outubro de 1995. Banca Examinadora: _________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Antonieta Martines Antonacci (Orientadora)
_________________________________________________________ Profa. Dra. Cynthia P. de Sousa Vilhena
(Examinadora USP) _________________________________________________________
Profa. Dra. Heloísa de Faria Cruz (Examinadora PUC-SP)
AGRADECIMENTOS
Agradeço à Profa. Dra. Maria Antonieta Martinez Antonacci pela
orientação criteriosa, pela paciência e pelo incentivo.
Aos professores da PUC/SP, em especial à Profa. Dra. Déa Ribeiro
Fenelon e à Profa. Dra. Heloísa de Faria Cruz, pelas sugestões preciosas no
exame de qualificação.
Aos amigos do curso, que dividiram as experiências de pesquisa, as
dúvidas e as angústias que cercam a produção de um trabalho acadêmico. À
Geni Rosa Duarte, pelas trocas de informação e carinho; e ao Marcelo
Flório, pelos anos de pesquisa, pelas longas conversas e pela cumplicidade
partilhada.
À Marta, à Regina, ao Daniel, ao Airton, Gerson e Hideraldo, amigos
de outros estados que me apresentaram um pouco do Brasil.
Ao Júlio Maria Neres, pela assessoria técnica no microcomputador e,
principalmente, pela nossa amizade de longa duração.
À Aparecida do Prado, minha mãe, pela compreensão, admiração e
pelo respeito ao meu trabalho.
Ao Ronaldo, pelo apoio e carinho nos momentos difíceis.
Ao Humberto, ao Vanderlei Jr. e ao Kleber pela gentileza e
disponibilidade para me livrar dos apuros com o computador.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq), pelo apoio financeiro.
RESUMO
Este trabalho analisa as tensões e disputas constitutivas das relações
urbanas em São Paulo e do cinema educativo, acompanhando a intensa
injunção que se estabeleceu entre seus habitantes e o cinema, bem como o
empenho de médicos, higienistas, educadores e juristas para intervir nesse
relacionamento, moralizando esse divertimento por meio da censura, do
controle das matinês e da produção de filmes educativos. No contexto dos
anos 1920/30, o cinema educativo constituiu-se como possibilidade de
enfrentamento ao “cinema comum”, neutralizando a suposta influência
negativa dessa linguagem no comportamento dos cidadãos – mulheres e
crianças, especialmente; mas, sobretudo, foi utilizado como um precioso
instrumento de intervenção social na elaboração do “novo homem” e da
Nação homogênea, higiênica, moralizada e disciplinada. Nesse sentido, a
projetada “reconstrução social” – por meio da educação e da regeneração de
costumes – colocou a linguagem cinematográfica a serviço da construção de
uma cultura homogênea, na qual os modos de viver “atrasados”, os
processos “rotineiros” de trabalho, a fala e os costumes “estranhos” foram
sistematicamente combatidos em nome dos “interesses nacionais”.
Palavras-chave: Cinema, Educação, Censura, Sociedade, Linguagem.
ABSTRACT
This paper examines the constitutive tensions and disputes of the urban
relationships in the city of São Paulo and the educational cinema, following
the severe injunction that was established between its habitants and the
cinema, as well as the commitment of doctors, hygienists, educators and
lawyers to intervene in this relationship, moralizing that entertainment
through censorship, control of the matinee and the production of educational
films. In the context of the years 1920/30, the educational cinema had
established itself as a possibility to confront “the common film”, neutralizing
the supposed negative influence of that language in the behavior of citizens –
especially women and children; but it was also used as a valuable tool for
social intervention in the development of a “new man” and an homogeneous,
hygienic, motivated and disciplined Nation. Therefore, the projected “social
reconstruction” – through education and customs regeneration – set the films
language to serve the construction of a homogeneous culture, in which the
“delayed” ways of life, the “routine” work processes, the speech and “strange”
customs were systematically combated in the name of “national interests”.
Keywords: Cinema, Education, Censorship, Society, Language.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................09
CAPÍTULO I – O CINEMA NA CIDADE DE SÃO PAULO....... .........................18
CAPÍTULO II – CINEMA EDUCATIVO E MORALIZAÇÃO....... ........................48
2.1 Higienização e Moralização do Cinema..............................................48
2.2 Escolanovistas e o Cinema Educativo.................................................69
CAPÍTULOIII – CINEMA EDUCATIVO E NACIONALIZAÇÃO DA CULTURA.84
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................... ...............................................102
FONTES............................................................................................................104
REFERÊNCIAS..............................................................................................107
9
1. INTRODUÇÃO
O trabalho como professora de 1º e 2º graus colocou-me diante do
mote sobre a introdução das linguagens audiovisuais na sala de aula. As
reflexões realizadas nas reuniões pedagógicas1 e nas conversas informais
travadas com os colegas de profissão sobre a prática cotidiana de ensino
evidenciavam a angústia de vivermos num mundo marcado pela
onipresença da visualidade e sonoridade e, contraditoriamente,
privilegiarmos somente a linguagem escrita na educação formal.
Ao mesmo tempo em que sentíamos a necessidade de trazer o
audiovisual para dentro da escola – o documentário, o curta e o longa-
metragem –, esbarrávamos em nossa formação acadêmica, a qual não nos
possibilitou qualquer reflexão sobre os significados do trabalho com as
diferentes linguagens sociais. Mas o desejo de experimentar e de reinventar
nossas práticas pedagógicas fez com que enfrentássemos o desafio de
trabalhar com imagens na sala de aula. Essas experiências, por vezes muito
ricas (outras, nem tanto), despertaram meu interesse por dialogar com
sujeitos históricos que problematizaram o uso de recursos audiovisuais na
escola, mais especificamente os educadores que propuseram a instituição
do cinema educativo nas décadas de 1920/30 em São Paulo/SP2, na
perspectiva de indagar sobre os significados atribuídos a essa prática social
da linguagem constituinte das relações socioculturais do nosso século.
Concebido no limiar da modernização técnica capitalista, o cinema foi
responsável por transformações profundas na percepção humana e na
função social da arte. Como apontou Benjamin, o filme, criação coletiva feita
para a coletividade, torna as multidões um fator determinante para sua
produção, uma vez que não faz sentido filmar para poucos, interessando ao
produtor que um maior número possível de espectadores usufrua de seu 1 Um dos momentos únicos para o debate sobre as mudanças nos modos de trabalho escolar e nas formas de sistematizar as experiências sociais foi a discussão da Proposta Curricular para o Ensino de História no 1º Grau, elaborada pela coordenadora de Estudos e Normas Pedagógicas, em meados da década de 1980. 2 Entrei em contato com essa experiência graças ao trabalho realizado como bolsista de Iniciação Científica (IC) no projeto Trabalho, Cultura, Educação: dimensões dos conflitos sociais em São Paulo nas décadas de 1920/30, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e sob a orientação da Profa. Dra. Maria Antonieta M. Antonacci, de março de 1989 a fevereiro de 1992.
10
trabalho; essa especificidade do cinema possibilita às multidões controlar
essa linguagem.3
Nos seus primórdios, o cinema era acessível àqueles que desejavam
usufruir das imagens produzidas ou reproduzir imagens de si mesmos e do
mundo que os cercavam. Na fase do cinema mudo e início dos anos 1930,
foram intensas as experiências com imagens na cidade de São Paulo,
incluindo a produção/exibição e o intenso movimento de
construção/reconstrução das salas de cinema provocados pelo crescente
número dos admiradores da “sétima arte” e pelas inovações técnicas na
produção fílmica.
Esse movimento intenso em torno da linguagem cinematográfica foi
decisivo para a constituição do viver na cidade de São Paulo, que passava
por transformações radicais nas primeiras décadas do século XX. Tais
práticas passaram a influenciar o comportamento do paulistano, a ponto de
um cronista, em 1919, afirmar que:
Se fosse possível indicar, pelos traços de um diagrama, tudo quanto veio influindo sobre os rapazes e as moças de hoje, o “football” e o “cinematographo” é que teriam, provavelmente, os pontos mais culminantes da curva.4
O cinema fascinava, principalmente, as crianças atraídas para os
espetáculos empolgantes das matinês infantis que, além do preço reduzido,
podiam contar com a distribuição de balas e doces5. As mulheres, também
frequentadoras assíduas do cinema, juntamente com as crianças, tornaram-
se alvo da preocupação daqueles que viam as salas de cinema como
ambiente promíscuo e imoral. A difusão crescente do cinema era um fato
que se impunha “ao educador, ao moralista, ao sociólogo, a quantos podem
influir no ambiente social”, argumentavam os educadores Serrano e
3 BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. Magia e Técnica . Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1987. 4 Cinematographo. O Estado de São Paulo , 25 mar. 1919, p. 6. 5 Eram comuns os anúncios deste tipo: “Matinée de 1 às 5 horas às quintas e domingos, com distribuição de chocolate às crianças. Aparelho sem trepidação. Salão ventilado, boa sala de espera e terraço.” O Estado de São Paulo , 1º dez. 1908, p. 6.
11
Venâncio Filho6. Em 1912, o jornal O Comércio de São Paulo assinalava que
na capital paulista os cinemas eram muito procurados por famílias de todas
as classes, principalmente crianças e senhoritas, denunciando os cinemas
que se diziam familiares e exibiam “fitas simplesmente indecorosas”. Ainda
informava que essa situação resultara na organização de uma Liga, contra
os cinemas pornográficos, pelas senhoras da “melhor sociedade”.7
Para aqueles que observavam as matinês infantis com “olhos de
psiquiatra”, “a gritaria ensurdecedora da sala, a exaltação desvairada dos
garotos, presos de intensa emoção”, juntamente com os “dramas
aterrorizantes de casas misteriosas ou subterrâneos mal assombrados, com
monstros de capuz e typos de Ku-Klux-Klan”, constituíam-se em fatores de
“desequilíbrio para sistemas nervosos já perturbados pela febre dos grandes
centros urbanos”.8
Se o cinema criou uma legião de fãs incondicionais, ele também criou
inimigos. Estes condicionaram os problemas urbanos à influência negativa
do cinema no comportamento dos moradores da cidade. A criminalidade, os
vícios, os jogos, o alcoolismo, os menores abandonados, o desejo por
divertimentos e prazer, a vadiagem, foram relacionados diretamente ao
cinema. E a primeira atitude desses avaliadores do cinema foi exigir limites e
controle aos espetáculos cinematográficos através da censura.
Entre os críticos mais eloquentes do cinema estavam educadores e
higienistas envolvidos com a formação “das futuras gerações” e com a
“preservação da raça”, sujeitos que esquadrinhavam a cidade inquirindo e
registrando os modos de viver urbanos, propondo reformas e legitimando
formas de intervenção nesse espaço.
Esses inquiridores estavam alertas para a suposta influência
“negativa” dessa nova linguagem sobre a formação moral das crianças, e
levantaram a seguinte questão: como evitar (ou minimizar) essa influência
sobre meninos e meninas?
6 SERRANO, Jonathas; VENÂNCIO FILHO, Francisco. Cinema e Educação . São Paulo: Cia. Melhoramentos, 1931 (?), p. 86. 7 Vida Social. In: O Comércio de São Paulo, 15 jan. 1912, p. 3 apud ARAÚJO, Vicente de Paula. Salões, Circos e Cinemas de São Paulo . São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 205-206. 8 SERRANO; VENÂNCIO FILHO, op. cit., p. 92.
12
A Revista Escolar9 demonstrou essa preocupação ao publicar notícias
sobre a ação da Liga das Nações, que em 1925 enviou documentos aos
governos que aderiram a ela sobre a frequência de menores nos cinemas,
teatros e outras casas de diversão, no sentido de restringir-lhes a
participação nesses locais10.
Com vistas a quantificar e objetivar “cientificamente” o espaço
ocupado pelo cinema na vida dos alunos da Escola Normal da Praça, o
professor de Psicologia Lourenço Filho realizou, em 1920, um inquérito com
crianças entre 10 e 15 anos, em que “verificou” a importância do cinema na
vida da criança, bem como a “má influência” sobre elas.11 Também o jornal
O Estado de São Paulo esteve atento para a frequência indiscriminada das
crianças nas salas de cinema durante a década de 1920, apelando para a
censura às matinês infantis. Todos esses registros mostraram a
perplexidade de determinados sujeitos frente às transformações provocadas
por essa nova linguagem social.
O cinema, uma forma particular do desenvolvimento social da
linguagem12, participou ativamente da construção da vida sociocultural das
metrópoles modernas. Essa linguagem e os primeiros sujeitos com elas
identificados – as multidões pobres que ocupavam as cidades,
especialmente mulheres e crianças –, justamente por se constituírem numa
presença nova, tornaram-se problema a demandar soluções.
Desenvolvendo-se como o principal divertimento popular nas
primeiras décadas do século XX, o cinema chamou a atenção daqueles que
se propuseram a estudar o comportamento dos diferentes sujeitos sociais
formadores da população urbana no mundo inteiro. Abrindo novas maneiras
de sociabilidade a todos os segmentos sociais – letrados e iletrados –, o 9 A Revista Escolar, publicação mensal e oficial da Diretoria-Geral da Instrução Pública de São Paulo, teve seu primeiro número editado em janeiro de 1925 e o último, em setembro de 1927, quando se transformou na Revista Educação. As seções “Lições Práticas”, “Pedologia”, “Lições de Coisas”, “Literatura Infantil”, “Escotismo” etc. evidenciam a preocupação com aulas práticas quando no ensino público lecionavam inúmeros professores leigos. 10 A Criança e o Cinema. Revista Escolar , São Paulo, Órgão da Diretoria-Geral da Instrução Pública de São Paulo, ano 1, n. 8, p. 72, ago. 1925. 11 Lourenço Filho referiu-se a esse inquérito na Revista Educação, vol. 2, n. 3, 1928; e no jornal O Estado de São Paulo do dia 9 mar. 1931, p. 5. 12 Para a reflexão do cinema como uma linguagem social, foram fundamentais as proposições de Raymond Williams, na obra Marxismo e Literatura.
13
cinema instituiu hábitos, comportamentos, ideias e valores; constituiu novas
formas de percepção visual e auditiva, além de noções de tempo/espaço.
Diferentemente das técnicas de impressão e como outra forma particular do
desenvolvimento social da linguagem, o cinema circulou em diferentes
setores sociais, sendo comparado apenas aos “folhetins baratos” com ampla
circulação e constantes reedições.
As críticas e denúncias feitas sobre a má influência do cinema não
afastaram os espectadores das salas, e aos poucos foram surgindo vozes
empenhadas em convencer autoridades, professores e todos os
“adversários do filme” sobre as possibilidades pedagógicas do cinema.
Nesse sentido, a proposta do cinema educativo surgiu como tentativa de
minimizar, ou mesmo anular, o espaço ocupado pelo “outro cinema”,
chamado cinema comercial, principalmente como precioso colaborador no
ambicioso projeto de regeneração dos costumes, idealizado por educadores
e por intelectuais convencidos de que as transformações sociais seriam
alcançadas pela educação13. Esses educadores perguntavam: “Como
desconhecer, afinal, a formidável potência que o cinema representa?”. As
noções elementares da psicologia experimental ensinavam:
A força suggestiva das imagens, e principalmente das imagens animadas, como que vivas [...] –, esta força deveras temível, que não fará, se a utilizarmos para impressionar público em geral, quasi sempre alheio á crítica especializada e mais levado pelo sentimento do que pelo raciocínio frio e abstracto?”.14
Lembravam que Mussolini já sublinhara a grande vantagem do
cinema em relação ao livro e ao jornal: falar uma língua compreensível a
todos os povos da terra, pois fala aos olhos e daí seu caráter universal15.
Essa possibilidade de falar diretamente aos olhos e ao coração despertou,
simultaneamente, nos dirigentes de países e regimes políticos diferentes, o
13 “O máximo problema nacional é a educação [...]. Crise econômica, crise política, crise social, são lógico corollario de profunda debilidade physica, intellectual e moral de nossa gente, devidas, em traços geraes, á inneficiencia dos parcos e, ás vezes, nullos recursos e meios de aperfeiçoamento de que dispõe nosso povo”. ALMEIDA, J. C. M. de. O Cinema na Educação. Revista Escola Nova , São Paulo, Órgão da Diretoria-Geral da Instrução Pública de São Paulo, vol. 3, n. 3, p. 198, jul. 1931. 14 SERRANO; VENÂNCIO FILHO, op. cit., p. 89. 15 Idem, p. 31.
14
interesse de controlar e pôr essa nova linguagem social a seu serviço. De
outra parte, Marc Ferro analisou como os dirigentes soviéticos desejavam
tornar submisso o cinema, “apoderar-se do cinema”, “controlá-lo”, conforme
expressões encontradas constantemente nos escritos de Trotski e Lênin. Os
cinemas educativo, científico e de animação ocuparam um lugar privilegiado
no programa cultural posto em prática após a nacionalização da URSS16,
dentro da perspectiva do cinema a serviço do Estado.
Com o mesmo interesse em subordinar a linguagem cinematográfica,
o cinema educativo foi projetado sob os princípios da chamada “Escola
Nova”, com os quais um grupo de educadores planejou a Reconstrução
Educacional do país. O professor Orlandi esclareceu esse ponto em artigo
publicado na Revista Escola Nova, avaliando as potencialidades do cinema
como “novo poder da pedagogia moderna”:
Está fora de dúvida de que o cinema é hoje uma força na formação mental do indivíduo e por isso influindo nos movimentos sociaes [...]. Esta virtude ou defeito pode ser instrumento útil e prejudicial subordinado á vontade do homem. Reconhecendo-lhe o perigo, de lamina bigúmea, a escola tomou o cinema para si afim de o aproveitar no esforço de reconstrução e da consolidação da cultura.17
Dentro da perspectiva de reconstrução social, o livro Cinema Contra
Cinema, de Canuto Mendes de Almeida, foi esclarecedor quanto aos
objetivos dos educadores que propuseram o cinema educativo. Como
contraponto ao cinema comercial, ele foi planejado para, a partir dos
princípios da pedagogia, da psicologia e da higiene mental, combater a
influência daquele tipo de cinema.
A questão posta a esses sujeitos não foi a simples utilização do
cinema na educação, mas a produção de uma linguagem cinematográfica
adequada perfeitamente aos ideais de construção do “novo homem”
almejado, funcionando como um “instrumento” poderoso de educação dos
costumes. Muitos desses sujeitos não ignoravam que todo filme, mesmo as
ditas “películas comerciais”, possuía elementos educativos. Mas alertavam
16 FERRO, Marc. Cinema e História . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 23-27. 17 ORLANDI, J. O. O cinema na escola. Revista Escola Nova , op. cit., p. 145-146.
15
que tudo aquilo que a criança via e aprendia, nos filmes comuns, constituía
um “amontoado de impressões que precisam ser ordenadas, classificadas,
para que se lhe tornem egualmente, elementos de cultura. Esse trabalho de
seriação, constitue o principal papel do cinema educativo.”18
Essa luta pelo controle e pela definição da linguagem cinematográfica
não foi empreendida apenas pelos educadores. Os “homens de cinema” –
jornalistas que escreviam e produziam cinema, mais especificamente os
redatores da revista Cinearte: Ademar Gonzaga, Pedro Lima, Mário Behring
e Otávio Gabus Mendes; Guilherme de Almeida e J. Canuto Mendes de
Almeida, cronistas do jornal O Estado de São Paulo –, travaram lutas pela
“elevação do espetáculo cinematográfico” que significaram combates
sistemáticos à produção fílmica não identificada com a concepção norte-
americana do “fazer fílmico”.
Os modos de organizar o espetáculo cinematográfico, as salas de
projeção e a produção fílmica sofreram ataques constantes dos sujeitos que
buscavam legitimar seus projetos e ideais de civilização identificados com a
estética hollywoodiana. A produção paulistana estava nas mãos de
pequenos produtores, geralmente trabalhadores imigrantes pobres, que
viviam da exploração de documentários – prática que denominavam
“cavação” –, os quais financiavam a produção de filmes de enredo. Essa
prática, considerada indigna, foi combatida sistematicamente em nome da
organização da Indústria Nacional do Cinema.
Além disso, os defensores do cinema dos grandes estúdios também
lutaram contra os “adversários do filme”, os quais chamavam genericamente
de “moralistas e pedagogistas”, apontando o cinema educativo como prova
dos benefícios que “esse maravilhoso invento” podia proporcionar:
Por várias vezes destas colunas nos temos ocupado de uma das modalidades do cinema, daquela que pode ser considerada a mais útil, tão útil que todos os defeitos porventura atribuídos a essa estupenda invenção do espírito humano seriam excusados a vista dessa utilidade.19
18 ORLANDI, J. O. Idem, p. 147. 19 Para Todos . Rio de Janeiro, ano 3, n. 107, 1º jan. 1921.
16
Mais uma vez, temos a defesa do cinema educativo como
neutralizador da influência do “mau cinema”. O cinema defendido por esses
cronistas tinha o objetivo de “civilizar” o Brasil, mudar os modos de viver
identificados com o atraso. As pequenas salas de projeção e a
representação que os pequenos produtores pobres faziam da realidade que
os cercavam, confrontavam com o ideal de viver urbano moderno e higiênico
almejado. O cinema educativo teria papel fundamental para a realização
desse projeto.
Essas tensões entre diferentes propostas de cinema, além do
empenho na direção da subordinação das imagens a uma determinada
concepção de educação foram problematizadas a partir do trabalho com a
Revista Escolar, Educação e Escola Nova, entre 1925 e 1940, publicadas
pela Diretoria-Geral de Instrução Pública. Além do número específico sobre
cinema educativo da Revista Escola Nova, as discussões na imprensa
acerca dos divertimentos infantis na seção “Através de Revistas e Jornais”,
os artigos sobre educação higiênica, ensino rural e a seção de legislação
escolar permitiram acompanhar os debates pedagógicos, a política de
educação e os sentidos atribuídos ao cinema educativo nesse contexto.
Com o intuito de ampliar a discussão e diversificar os interlocutores
que polemizaram a linguagem cinematográfica, ainda foram trabalhados o
jornal O Estado de São Paulo, mais especificamente a seção
“Cinematógrafos”, e as crônicas de Guilherme de Almeida, além das revistas
Para Todos e Cinearte, publicadas no Rio de Janeiro. Esse corpus
documental permitiu perceber que outros sujeitos discutiram a questão do
cinema educativo, mesmo aqueles voltados para o filme de ficção, além de
apontar disputas entre concepções diferentes na produção fílmica comercial
e de possibilitar a visualização da intensa relação entre habitantes da cidade
e o cinema.
O trabalho minucioso de Vicente de Paula Araújo sobre os
divertimentos na cidade de São Paulo entre o final do século XIX até 1914
foi de grande valia, uma vez que é quase impossível consultar os jornais
daquele período. Também o levantamento sobre a exibição de filmes
nacionais feitos por Jean Claude Bernadet foi precioso, e os documentos
17
encontrados no Arquivo Gustavo Capanema e Arquivo Lourenço Filho, no
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea (CPDOC)
do Rio de Janeiro, forneceram relatos interessantes sobre as atividades do
Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE).
Gostaria de assinalar minha grande frustração em refletir sobre o
cinema sem ter podido ver nenhum filme educativo, ou os raros filmes de
ficção sobreviventes daquele período. Não tive acesso à produção do INCE
e muito menos aos filmes produzidos pela Diretoria-Geral de Instrução de
São Paulo.
O trabalho com essa documentação a que tive acesso está
sistematizado em três capítulos, estruturados em torno das tensões e
disputas que constituíram a cidade de São Paulo e o cinema educativo, sem
deixar de observar esse movimento noutras capitais brasileiras e em outros
países. No primeiro capítulo acompanha-se como “a febre cinematográfica”
tomou conta da cidade supracitada, através da intensa frequência às
sessões cinematográficas, da construção/reconstrução das salas de cinema,
bem como da intensa produção fílmica do cinema mudo paulistano.
No segundo capítulo, discute-se o empenho de diferentes sujeitos
pela moralização do cinema e da vida urbana por meio do cinema educativo:
os educadores e intelectuais identificados com os princípios da Escola Nova,
atuantes nas diversas Ligas e Associações Civis daquele período:
Associação Brasileira de Educação (ABE), Associação Brasileira de Cultura
(ABC), Centro do Professorado Paulista (CPP), Sociedade de Educação e
Liga Paulista de Higiene Mental.
No terceiro capítulo, analisa-se como o cinema educativo foi utilizado
no processo de Nacionalização da Cultura, assumindo a conotação de
cinema de propaganda. Nesse processo observado em São Paulo e em todo
o país, principalmente a partir da década de 1930, a luta pela construção de
um “novo homem” passava pela criação de sujeitos e espaços idealizados,
onde modos de viver e de falar diferentes foram combatidos em nome da
construção da “Nação” homogênea, higiênica e disciplinada.
18
CAPÍTULO I – O CINEMA NA CIDADE DE SÃO PAULO Desde as primeiras décadas do século XX, a influência do cinema
sobre as populações urbanas preocupou autoridades e intelectuais no
mundo inteiro. Em 1910, no Congresso Internacional de Bruxelas, foi
analisado o “problema cinematográfico do ponto de vista da moral”.20
Percebido como uma presença perturbadora, o cinema demandava esforços
no sentido de limitar e controlar sua ação sobre frequentadores assíduos,
especialmente as crianças.
Também preocupada com o poder de sugestão do cinema, a Igreja
Católica realizou, em 1921, o I Congresso Católico de Cinematografia, na
cidade de Paris.21 O cinema e as multidões que frequentavam milhares de
salas de espetáculo no mundo todo se constituíram numa incógnita a ser
decifrada.
O comportamento e a presença desconcertante das populações
urbanas que ocuparam diferentes espaços na cidade e adquiriram
visibilidade nova, foram problematizados a partir de meados do século XIX,
com a intensificação do processo de industrialização e crescimento urbano.
Os observadores do período, literatos, sociólogos, médicos e
administradores, surpresos e atônitos diante da pobreza e da desordem que
os novos personagens urbanos estampavam, foram esquadrinhando e
tentando tornar legível essa configuração social sentida como massa amorfa
a demandar controle e disciplinarização.22
Em São Paulo, o crescimento urbano e industrial do final do século
XIX modificou a vida da antiga vila. A rápida industrialização e a imigração
massiva trouxeram à cena novos personagens que foram recompondo a
imagem da cidade: o operário, o imigrante, o negro liberto e o “caipira”.
Esses sujeitos, portadores de culturas diferentes e falando línguas, também 20 SERRANO, Jonathas; VENÂNCIO FILHO, Francisco. Cinema e Educação . São Paulo: Cia. Melhoramentos, 1931 (?), p. 10. 21 O Congresso Católico de Cinematografia voltou a ser realizado em 1924 e em 1927. Cf. SERRANO, Jonathas; VENÂNCIO FILHO, Francisco, op. cit., p. 137-138. 22 BRESCIANI, Maria Stella M. Londres e Paris no Século XIX : o espetáculo da pobreza. Coleção Tudo é História. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1992.
19
diferentes, foram impondo, cada vez mais, sua presença na cidade que se
erguia, conquistando espaço e visibilidade.
São Paulo congregou centenas de milhares de seres desenraizados,
arrancados de seus lares, vivendo sob condições adversas, sem o
conhecimento da língua, tendo de dividir misérias e angústias com negros
recém-libertos, vivendo em condições de marginalização dentro da nova
ordem republicana, excludente em relação aos setores pobres da população
brasileira.
Nessa ordem social, imigrantes e trabalhadores nacionais foram
postos a competir no concorrido mercado de trabalho que se constituía, com
especial desvantagem para os trabalhadores negros e os migrantes. Os
“caipiras” que haviam abandonado o trabalho rural, pressionados pelo
avanço das fazendas, viam na cidade a possibilidade da prestação de
pequenos serviços, mas também sofriam com a concorrência dos
“chacareiros imigrantes”.
Viver essa situação social, na sua heterogeneidade e pluralidade dos
sentidos, constituiu-se num processo intenso de aprendizagem e
experimentação social. Cada grupo lutando pela instituição dessa nova
realidade a partir de suas necessidades foi projetando uma representação
particular23 dessa experiência e produzindo estratégias e práticas de
sobrevivência que concretizavam seus modos de viver urbano.
Nesse contexto, os conflitos e tensões socioculturais não
permaneceram circunscritos aos grupos populares. As classes mais
privilegiadas e as elites letradas disputaram formas de intervenção social no
processo de construção/reconstrução do viver na cidade de São Paulo. Ao
analisar essas tensões na passagem do século, Heloísa Cruz equacionou a
questão nos seguintes termos:
23 Para Chartier, as representações do mundo social estão sempre num campo de lutas, cujos desafios se enunciam em termos de poder e dominação. Essas percepções sociais pretendem ser universalizantes, mas são determinadas pelos interesses dos grupos sociais. Portanto, não são discursos neutros; possuem estratégias e práticas que tendem a impor uma autoridade à custa de outras e a legitimar um projeto reformador ou justificar escolhas e condutas. CHARTIER, Roger. A História Cultural : entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.
20
Na cidade em expansão, frente aos desafios da ocupação estrangeira trazidos pela imigração, aos perigos representados pelos projetos socialistas e anarco-libertários e das ameaças de “caos” colocadas pela multidão anônima, pobre e liberta, as elites passam progressivamente a disputar o espaço urbano.24
Esses sujeitos, empenhados em conquistar o espaço urbano,
construíram representações ambivalentes da metrópole moderna que então
se desenhava. Ela foi projetada como local de origem de um caos
avassalador e como matriz de uma nova vitalidade emancipadora, enquanto
seus habitantes experimentavam, de diferentes maneiras, todas as
possibilidades que esse novo meio proporcionava. Das oportunidades para
organização e manifestação política, aos estímulos da rua e dos
divertimentos, a cidade foi se recompondo e instituindo novos hábitos físicos,
mentais e sensoriais, criando novas identidades e estilos de vida.
Esses novos hábitos encontraram adeptos, principalmente nos
“jovens” ávidos pelo novo e sem o peso das tradições culturais herdadas.
Também encontraram fortes resistências, produzindo representações
negativas sobre as “novas gerações” e seus novos hábitos.
Entre esses “novos hábitos” estava o cinema, com todas as atividades
que o envolviam, contando com a participação de crianças que
frequentavam assiduamente as salas e promoviam, alegremente pelas ruas,
os espetáculos com as bandas de música, intervindo de maneira intensa no
cotidiano da cidade:
São Paulo atravessa uma epidemia cinematográfica. Não há rua, travessa ou bairro que não tenha o seu cinematographo [...]. Fazem anúncios espetaculosos, e à noite saem bandas de música, acompanhadas por grande número de garotos em infernal algazarra.25
Havia garotos que, mesmo adultos, não escaparam da “epidemia”, e o
cinema marcou definitivamente suas vidas. Como João Cypriano, operário
24 CRUZ, Heloísa Faria. Na Cidade, Sobre a Cidade . Cultura Letrada, Periodismo e Vida Urbana. São Paulo 1890/1915. Tese de Doutorado (Universidade de São Paulo), 1994, p. 84. 25 O Estado de São Paulo, 1911 apud GALVÃO, Maria Rita. Crônica do Cinema Paulistano . São Paulo: Ática, 1975.
21
encanador e cineasta.26 Ao narrar sua vinda para São Paulo, ainda muito
criança, lembrou que andou sempre “metido nos meios de cinema”. Fez de
tudo, desde vender bala na plateia e carregar tabuletas de propaganda nas
ruas, até produzir filmes.27
Archille Tartari, também fascinado pelo cinema desde menino, fez
parte do grupo de garotos que sincronizavam ruídos com os movimentos dos
filmes no cinema Te-Be, que ficava na Avenida Duque de Caxias, bem na
esquina com a Rua Guaianases. Nele, Tartari quebrou pratos, deu tiros de
pólvora seca, jogou latas, bateu bumbo, até se tornar operador de cinema,
depois ator e produtor de filmes.28
A exploração do trabalho de menores a partir das atividades dos
cinematógrafos provocou a indignação do jornal O Comércio de São Paulo.
Em 1910, esse periódico informava que os garotos fugiam de casa, para
desespero das mães, e se entregavam a pequenos serviços nos
cinematógrafos: varrer e lavar o salão, entregar cartazes pelos arrabaldes
distantes, distribuir programas nas ruas, ajudar o operador, carregar
tabuletas, carregar lanternas à noite junto aos músicos, a troco de um prato
de comida ou para ter o privilégio de assistir aos filmes.29 Outro aspecto do
cinema que preocupava os cronistas dizia respeito às fitas exibidas, sendo
constantes as denúncias contra as “cenas perniciosas” projetadas nos
cinemas do centro e dos bairros.
O episódio envolvendo o Ideal Cinema, da Rua Barão de Itapetininga,
dá a dimensão de um dos múltiplos aspectos do cinema que interferia na
vida da cidade, provocando o escândalo entre os habitantes e a ação direta
da polícia. Esse cinema promovia sessões clandestinas após as 23 horas.
Certo dia, o Dr. Rudge Ramos, delegado encarregado dos divertimentos
públicos, chegou inesperadamente no salão. O proprietário Vicente
Linguanotto acionou uma campainha e o operador trocou imediatamente a
fita pornográfica Para o Harém pelo filme instrutivo A Criação das Abelhas,
26 João Cypriano atuou e escreveu o argumento do filme O Segredo do Corcunda, de 1924. 27 Depoimento registrado em GALVÃO, Maria Rita, op. cit., p. 187. 28 Idem, p. 67. 29 O Comércio de São Paulo, 25 fev. 1910, p. 3 apud ARAÚJO, Vicente de Paula, op. cit., p. 183. Nessa mesma direção, do envolvimento de menores com o cinema, ficaram as imagens de Cinema Paradiso, escrito e dirigido por Giuseppe Tornatore, em 1989.
22
mas era tarde. O delegado lavrou o flagrante, apreendeu todas as fitas
proibidas encontradas na cabina e multou a empresa.30
Ao se mostrar diferente dos demais cinemas da cidade, o Salão de
Atos do Liceu, pertencente aos Padres Salesianos31, localizado na Alameda
Nothmann, Campos Elíseos, anunciava: “Os programas deste
cinematographo, à noite, constam de 12 fitas escrupulosamente escolhidas
de modo a proporcionar às exmas. famílias espetáculos MORAIS, instrutivos
e divertidos.”32
Como sugere este anúncio, as sessões cinematográficas, na fase do
cinema mudo, eram divididas em várias partes e compostas por vários filmes
de curta-metragem, abrangendo os mais variados temas e gêneros
cinematográficos.
Nesses primórdios das imagens em movimento, vários trabalhadores
exerciam atividades diretamente ligadas ao cinema. Os músicos, artistas de
circo e atores de teatro eram personagens tão importantes quanto os filmes
exibidos. No palco dos cineteatros
havia espetáculos com ilusionistas, palhaços, treinadores de cachorros,
lutadores e atores. Além disso, os músicos acompanhavam a exibição dos
filmes mudos e eram importantes para a propaganda do cinema pela cidade;
o contrarregra era responsável pela sonorização, sendo obrigatória a
presença desses profissionais.
O cinema Edison, localizado à Rua Mauá, fazia “reclame” com
tabuletas luminosas, precedidas por sua banda de música. Seus músicos
saíam todas as noites pelas ruas, vestidos com farda verde, enfeitada com
botões dourados, seguidos por inúmeros garotos. Esses músicos se
envolveram numa briga com o cinema rival, o Éden, da Rua de São
Caetano, em episódio que merece ser registrado:
30 O Comércio de São Paulo, 15 jun. 1912, p. 3 apud ARAÚJO, Vicente de Paula, op. cit., p. 315. 31 Os Padres Salesianos foram os primeiros censores de São Paulo. Com a multiplicação dos cinemas e das casas de espetáculos, a polícia chamou a si a tarefa da censura. Mas os padres continuaram a exercer de fato essa função, que já não lhes cabia. Cf. GALVÃO, op. cit., p. 22. 32 O Estado de São Paulo , 5 set. 1909, p. 9.
23
Ontem, (5/5/2011), às 7 e meia da noite, como de costume, a banda dos homens fantasiados de propaganda surgiu na Rua de São Caetano, tocando um trecho da ópera nacional “Vem cá, mulata”. Ao chegar em frente ao Éden, a banda parou para dar, aos garotos que a acompanhavam, o tempo necessário para apedrejar o Éden. Os partidários do Éden intervieram e saiu um grande conflito [...]. O pessoal apanhou e deu bordoadas a valer, ficando espatifados o bombardino e o bombo. Compareceu o primeiro delegado Sr. Cantinho Filho que efetuou a prisão de três músicos.33
Além dos músicos, os atores tinham presença marcante nos
espetáculos cinematográficos, em que eles trabalhavam nos prólogos de
cinema, encenando trechos de peças. Francisco Madrigano, filho de
italianos, foi um desses atores. Criou um “tipo” – o Juó Bananere –, o
carcamano que não falava mais o italiano, nem o português, mas uma
mistura dos dois; o público gostava. Trabalhou em teatro ambulante, foi ator
de cinema, produtor e diretor de filme.34 Participou como ator no filme O
Segredo do Corcunda, produzido em 1924, que chegou a ser exibido em
Portugal.35 Segundo Madrigano,
[...] não havia quem não conhecesse o Juó Bananere, mas apareceram uns jornalistas que começaram a se queixar de que os prólogos eram vulgares, de que os números caceteavam o público, de que as pessoas pagavam ingressos para ver os filmes e não cortinas de quinta categoria, e de não sei mais o quê. E os donos dos cinemas não quiseram mais saber do Juó Bananere.36
As diversões do gosto popular não agradavam aos defensores do
espetáculo cinematográfico no estilo americano37, o qual compunha-se de
fitas produzidas dentro do padrão estético hollywoodiano e de salas de
33 O Comércio de São Paulo, 6 maio 1911, p. 4 apud ARAÚJO, Vicente de Paula, op. cit., p. 197. 34 Francisco Madrigano dirigiu e atuou nos filmes Eufêmia (1930), Vício e Beleza (1926), Morfina (1927), Orgulho da Mocidade (1928), Enquanto São Paulo Dorme (1929), Filmando Fitas (1926). 35 Esse filme, apesar de ser considerado uma excelente propaganda do café paulista no estrangeiro, quando exibido em Portugal causou grandes preocupações ao embaixador do Brasil, porque poderia causar uma “idéia errônea do que fosse a vida dos colonos nas fazendas de café, apresentando espancamentos e choupanas miseráveis”. Foi filmado na fazenda do Dr. Penteado e, segundo Maria Rita Galvão, a Cinemateca possui cópia desse filme. GALVÃO, Maria Rita. op. cit., p. 58. 36 Idem, p. 106. 37 Entre os defensores do filme americano estavam Monteiro Lobato e Guilherme de Almeida.
24
projeção luxuosas, destinadas a fazer o espectador entrar na atmosfera dos
filmes: era a atração principal.
Em meio a essas e outras contendas, a chegada do cinema falado
representou o fim dos cineteatros e trouxe o desemprego de todos esses
trabalhadores ligados ao cinema mudo. Também significou o fim das
pequenas salas de projeção improvisadas, sem conforto e instalações
adequadas para a exibição de grandes produções, que tanto indignavam os
admiradores do cinema americano e preocupavam as autoridades devido ao
perigo constante de incêndio.
Desde a década de 1920, cronistas e educadores exigiram censura e
organização, principalmente das “matinês infantis”, com a construção de
salas amplas e arejadas, argumentando que esse assunto deveria “merecer
a cuidadosa atenção das autoridades e associações que se consagram à
defesa da educação das nossas crianças, incutindo-lhes no espírito as
noções da verdadeira moral de que a geração atual anda tão apertada.”38
A luta pelas salas modernas, censura e organização das matinês
infantis fez parte do processo de transformação/invenção das práticas
culturais na cidade. Os sujeitos que a empreenderam objetivaram intervir na
preferência de crianças, homens e mulheres. Discursos moralistas e
normatizadores representaram o cinema como um divertimento perigoso,
pois estimulava “os sentimentos menos delicados da turba”39 por meio das
projeções de cenas de sexo, adultério, bebedeira, assassinatos, jogos etc.
Tanto os admiradores, quanto os críticos, desejavam interferir na
relação da população urbana com o cinema. Seus detratores o
desqualificavam como um divertimento destinado essencialmente às
crianças, aos “iletrados e aos menos inteligentes”. Afirmavam que o “acesso
extraordinário”, “a popularidade sem rival” e “o acesso a todos os meios
sociais” faziam deste um precioso aparelho de vulgarização e de penetração
intelectual e todos os conhecimentos e campos da atividade humana,
transformando-o no mais eloquente meio de expressão da vida social,
sobrepujando outros processos educativos como a palavra, o livro e o jornal. 38 Cinearte , Rio de Janeiro, p. 3, 23 fev. 1927. 39 LOURENÇO FILHO, M/B. O Cinema na Escola. Revista Escola Nova , São Paulo, Órgão da Diretoria-Geral da Instrução Pública de São Paulo, vol. 3, n. 3, p. 141, jul. 1931.
25
Sua vantagem sobre esses processos estava no fato de prescindir de “certo
grau de cultura”, atingindo todas as inteligências, pois:
Um indivíduo illetrado, analphabeto, analysa apenas a vida por um modo summario. Nestas mesmas condições está a criança, pois que o cinema apaga as diferenças de idade. Onde a leitura e a compreensão de um texto seriam impossíveis, a imagem tudo ilumina instantaneamente [...].40
Nesses argumentos, os grupos identificados com essa nova
linguagem foram infantilizados, seus gostos e opções de lazer
desqualificados. Mas os críticos reconheceram que o cinema se constituiu
na diversão preferida de todas as classes sociais e idades. Sua difusão pela
cidade o converteu num “meio de expressão social” poderoso, e sua
característica desqualificadora – ser acessível a todas as inteligências – e
diferenciadora de outras formas de expressão “mais elevadas e mais
seletivas” passou a ser projetada como um “meio”, um “instrumento” para
atingir todas as “inteligências”, “idades” e “classes sociais”.
Ao congregar os mais diferentes personagens urbanos, constituindo
novas formas de sociabilidade, o cinema foi se impondo no cotidiano da
cidade como uma necessidade, de forma que essa força de canalização dos
sentidos e vontades não podia ser ignorada na luta pela definição do viver
urbano, em São Paulo.
A partir do trabalho com a imprensa cultural e de entretenimento,
Heloísa Cruz observou que ela “constituiu um campo de demandas que
punha em questão as articulações do viver em cidade ao prazer e a
diversão”. Em suas páginas, as novas formas de sociabilidade urbana,
possibilitadas pelas “diversões”, emergiram como direito. A festa, o cinema e
as práticas esportivas se constituíram como necessidade para as classes
populares. As buscas pelo direito ao prazer e ao divertimento na cidade
entraram em confronto com os projetos moralizadores dos setores
dominantes e com o projeto revolucionário das vanguardas anarquistas.41
40 GONZAGA, Otávio. As crianças e o Cinema. Jornal O Estado de São Paulo , 28 jul. 1933, p. 4. 41 CRUZ, Heloísa Faria, op. cit., p. 205.
26
A imagem do cinema como uma diversão para crianças e para os
grupos populares, compartilhada pelas classes privilegiadas e
intelectualizadas, incomodava os admiradores do cinema convencidos da
potencialidade da indústria cinematográfica. Nos anos 1920, vozes
articuladas na imprensa especializada sobre cinema clamaram pela
implantação da indústria nacional do cinema, dando um novo impulso ao
cinema brasileiro.42
O primeiro objetivo traçado pelos propagandistas do cinema,
enquanto empreendimento industrial, foi tornar o meio cinematográfico
atraente para os investidores. Para atrair maciços investimentos na
produção cinematográfica nacional e “grupos selecionados” para as salas de
exibição, os redatores da revista Para Todos43 elegeram as grandes
produções cinematográficas americanas como modelo de cinema a ser
produzido no Brasil. As salas de projeção tornaram-se o primeiro obstáculo a
ser enfrentado.
Até meados da década de 1920, os cinemas comportavam um público
limitado; eram, em grande parte, salas improvisadas, sem conforto e
segurança. Isso, segundo a revista, afastava as classes mais privilegiadas,
sendo comuns reclamações:
Corrijam primeiramente esse defeito, dêem ao público bons salões, amplos, arejados, higiênicos, confortáveis, em que ele não se sinta abafado, apertado, comprimido, supliciado durante a exibição, salões à altura desta grande capital, e cuidem depois da majoração dos preços.44
As casas de exibição, além de afastarem o público “mais seleto”,
limitavam o mercado brasileiro para a distribuição de filmes. Essas
42 As revistas Cena Muda, Selecta, Para Todos e Cinearte foram algumas dessas revistas especializadas. Estavam ligadas a editoras de grande presença no mercado, responsáveis por publicações de informação e variedade de relativa importância nacional Selecta (1914-1930) era publicada pela editora da revista Fon-Fon; Para Todos (1918-1932) e Cinearte (1926-1942), pela editora das revistas O Malho e Tico-Tico; e a revista A Cena Muda (1921-1942), pela Cia. Editora Americana, ao lado da Revista da Semana e Eu Sei Tudo. Todas as empresas da Capital Federal. Cf. MACHADO, Rubens. O Cinema Paulistano e os Ciclos Regionais Sul-Sudeste (1912-1933). In: RAMOS, Fernão (org.). História do Cinema Brasileiro . São Paulo: Art-Editora/Secretaria de Estado da Cultura, 1990, p. 128. 43 Para Todos, Magazine Semanal Ilustrado, sob a direção de Sylvio Romero-Filho, edição da Cia. Gráfica Brasileira, foi fundada no Rio de Janeiro em 21 de dezembro de 1918. 44 Para todos , Rio de Janeiro, ano 2, n.º 92, 18 de setembro de 1920.
27
“saletinhas” eram ainda problemáticas, pois, sendo abafadas e anti-
higiênicas, confrontavam o ideal da metrópole moderna.
Em São Paulo, a primeira aula de projeção fixa foi inaugurada em
1907. O Bijou-Theatre era um barracão armado no final da Rua de São
João; pertencia a Francisco Serrador, imigrante espanhol e empresário
ligado ao ramo das diversões. Sobre esse cinema comentava-se que “o
vermelho de veludo que recobria as suas poltronas desbotava sobre a roupa
dos espectadores”.45
Serrador ampliou seus negócios com o Coliseu dos Campos Elíseos,
na Alameda Nothmann; o Radium-Cinema, na Rua de São Bento e o Íris-
Theatre, na Rua Quinze de Novembro. Todos esses cinemas eram salas
improvisadas ou adaptadas de antigos teatros. O Cine República, do mesmo
empresário, foi inaugurado em 1921 com algum luxo e conforto, assim como
o Cine Odeon na Rua da Consolação, em 1926. Aspectos que iriam
prevalecer nos cinemas construídos no final da década de 1920 até meados
de 1950.
Esse movimento de construção de luxuosas salas de projeção, no
final da década de 1920, foi elogiado pela revista Cinearte que, fazendo um
balanço no final de 1929, observou:
Aqui, em São Paulo, em geral no país inteiro, multiplicaram-se os estabelecimentos de projeção, alguns realmente muito bons, cheios de comodidades para o público, dignos enfim da frequência de certas classes da sociedade que as ignóbeis saletinhas de outrora repeliam, conquistando por essa forma clientela mais vasta para o espetáculo cinematográfico. E não só quanto à qualidade, mas quanto ao número.46
O Cine Paramaunt – inaugurado em abril de 1929, na Avenida
Brigadeiro Luiz Antônio e construído em estilo “neoclássico afrancesado” –,
era o “máximo” em elegância. Otávio Gabus Mendes, correspondente
paulista da Cinearte, comentou:
45 GALVÃO, Maria Rita. Crônica do Cinema Paulistano . São Paulo: Ática, 1975. p.24.
46 Cinearte , op. cit., n.º 150, p. 3.
28
São Paulo lucrou com isso. Principalmente por ter um dos melhores cinemas da América do Sul, e além do mais pelo facto de terem sido nelle, introduzidos antes de qualquer outra localidade na América do Sul, aparelhos ‘movietone’ e ‘vitaphone’ [...]. E o PARAMOUNT, além do mais é o cinema que fazia falta à São Paulo.”47
Finalmente fora criado um cinema à altura do “progresso” pujante da
metrópole de São Paulo, para orgulho e delírio localistas. No mesmo ano foi
inaugurado o Cine Rosário, na Rua São Bento, no Edifício Martinelli – o
maior prédio da América do Sul. Era todo revestido em mármore Carrara,
decorado com pó de ouro, cabeças de animais em bronze, leões em
tamanho natural formando o braço do sofá em couro legítimo, cristais, lustre
tchecos caríssimos; foi um dos primeiros a ter poltronas estofadas.
Para frequentar e usufruir do luxo do “Rosário” o paulistano se engalanava. Traje escuro para os senhores (polainas, cachecol, chapéu) e toillete completa para as damas. A garoa paulistana cuidava de assegurar uma paisagem externa adequada: um ar londrino que torna a capital, nas palavras de habitantes nostálgicos, uma das mais belas “cidades européias do mundo.”48
Esses frequentadores dos cines luxuosos se identificaram com a
concepção de cinema norte-americano. Tal preferência teve papel decisivo
na luta pela constituição de modos de viver na cidade.
Para que o gosto do paulistano se inclinasse a um determinado tipo
de cinema, houve todo um investimento material e cultural, marcando a
atividade cinematográfica nacional pela distribuição-exibição do filme norte-
americano por meio de anúncios na imprensa, matérias pagas e publicações
específicas sobre a produção americana. Além da propaganda, pesados
capitais das grandes companhias cinematográficas foram direcionados para
o aprimoramento técnico do filme e construção de palácios cinematográficos
destinados a criar uma “situação cinema” envolvente.
Até 1911, a produção do cinema mudo, em São Paulo, florescera
graças à figura do exibidor-produtor-distribuidor local. Com a fundação da
Cia. Cinematográfica Brasileira, gerenciada por Francisco Serrador e a
47 Cinearte , op. cit., p. 35, 24 abr. 1929. 48 SIMÕES, Inimá. Salas de Cinema em São Paulo . São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura e Secretaria de Estado da Cultura, 1990, p. 18-19.
29
associação de industriais e banqueiros ligados ao capital estrangeiro, foi
formado um truste cinematográfico. Essa Companhia comprou salas de
exibição em todo o país e organizou o mercado exibidor em função do
produto estrangeiro.49
Houve o fechamento de várias empresas nacionais, e o público que
num primeiro momento reclamou da quase exclusividade dos filmes
estrangeiros na tela, passou a apreciar os enredos, cenários e recursos
técnicos das grandes produções norte-americanas, rejeitando o produto
nacional com o qual, outrora, havia se identificado.
O cinema produzido pelos grandes estúdios, movido pelo capital
financeiro, era o projeto de cinema nacional propagandeado pelas revistas
de cinema do período, principalmente pelos investimentos americanos. Esse
projeto combateu práticas cinematográficas que contrariavam a lógica da
grande indústria, em que o filme nacional, as salas de exibição e os
personagens que compunham o meio cinematográfico nacional foram
sistematicamente atacados e desqualificados pelas revistas Para Todos e
Cinearte.
A Cinearte, lançada em 1926 a partir da seção de cinema da revista
Para Todos, trazia a dramatização dos enredos, cinerromances, das notas
sobre artistas e dos anúncios de produtos de beleza. Ela aderiu ao esquema
de produção e exibição norte-americano, e em suas páginas também tratou
das questões de aprimoramento técnico da produção e exibição;
acompanhou a produção nacional por meio da seção “Filmagem
Brasileira”.50 A revista influenciou de maneira marcante as opiniões e o
debate sobre o cinema. Sua concepção sobre cinema, além dos critérios de
apreciação técnica e estética do filme, contaram com o apoio de Guilherme
de Almeida, que escreveu para a seção “Cinematographos” do jornal O
Estado de São Paulo, de 1926 a 1943, assinando “G.” ou “G. de A.”.
Paralelamente, Ademar Gonzaga escreveu na Para Todos e depois
em Cinearte, criticando, insistentemente, a inadequação das salas de
projeção e a organização das sessões cinematográficas: 49 MOURA, Roberto. A Bela Época (primórdios-1912). In: RAMOS, Fernão (org.). História do Cinema Brasileiro , op. cit., p. 45. 50 Machado, Rubens. O Cinema Paulistano , op. cit., p. 108.
30
É mister que, ás comodidades oferecidas ao público corresponda a excelência dos programas, para que o novo cinema adquira a clientela de que carece para êxito financeiro de sua exploração... O nosso meio cinematográfico carece ser modificado e especialmente saneado. Se novos capitaes não são empregados na exploração do cinema, entre nós, é que o meio provoca fundas desconfianças.51
Para os colaboradores dessas revistas, a atividade cinematográfica
deveria sair do esquema da pequena produção e passar para produtoras
com grandes estúdios, patrocinados pelo capital financeiro. A revista Para
Todos projetou imagens negativas do meio cinematográfico dominado pelos
pequenos produtores que, segundo ela, eram os responsáveis pela
indiferença dos capitalistas quanto à possibilidade da exploração industrial
do filme:
Este caso é autêntico. Bastou o primeiro contato para que o ilustre capitalista avaliasse do charco de intrigas soezes, de concorrência desleal, de negociatas excursas, de quotidianas misérias que é o nosso meio cinematográfico, e faltando-lhe a coragem para nele entrar, armado dos necessários desinfetantes, preferiu buscar ares mais saudáveis, lograis de higiene mais apurada, em que a sua atividade se exercesse sem possibilidade de salpicos na sua roupa, sempre escrupulosamente limpas.52
Por mais que criticasse a falta de uma mentalidade que entendesse o
filme como um produto para o mercado e clamasse pelo grande investidor, o
cinema continuava sendo uma produção artesanal controlada por pequenos
produtores, na sua maioria de imigrantes pobres, trabalhadores de diversos
ofícios fascinados pelo cinema. Essa produção era composta basicamente
por filmes de “cavação”, ou seja, filmes sem atores, de curta duração,
realizados para jornais de tela, documentários, divulgação institucional e
propaganda. Ademar Gonzaga, em sua campanha sistemática contra os
“cavadores”, responsabilizava os realizadores de filmes naturais e de
propaganda, geralmente encomendados pelo Governo, pela péssima
conceituação do cinema no Brasil e pela má divulgação do Brasil no exterior:
51 Para Todos , op. cit., n.º 147, 8 out. 1921. 52 Idem, ibidem.
31
O meio dos “cavadores”, piratas, imbecis, ignorantes de cinema e até ladrões... Só os que fazem posados, produções de enredo, cinema honesto e sadio, enfim, merecem auxílio, mas assim mesmo, depois de apresentarem umas tantas coisas e com as devidas fiscalizações, e não esta canalha tocadora de realejo.53
Essa prática foi introduzida em 1911 pelo imigrante Gilberto Rosai,
que viera para ser cinegrafista quando essa profissão ainda não era
conhecida por aqui. Decidiu filmar qualquer acontecimento que lhe
parecesse importante: festas, inaugurações, indústrias e fazendas,
oferecendo-as aos interessados.54
Os “cavadores”, na sua maioria de imigrantes e operários, não
possuíam equipamentos sofisticados, nem eram técnicos especializados em
cinema, mas foram os grandes responsáveis pela produção do cinema mudo
paulistano, destacando-se cinegrafistas como Arturo Carrari, João Stamato,
Antônio Campos, Archille Tartari, Nicola Tartaglione, além do próprio
Rossi.55
Para entender o combate sistemático de Pedro Lima e Ademar
Gonzaga à prática de “cavação”, será recorrido, mais uma vez, ao trabalho
de Maria Rita Galvão sobre os pioneiros do cinema mudo paulistano em que
esclarece que, quando os cinegrafistas paulistanos não estavam envolvidos
na produção de enredos, faziam “cavação” de documentários, filmes de
propaganda política ou comercial e jornais cinematográficos. A disputa era
acirrada entre esses homens de cinema, que não “tinham escrúpulos”
quanto à forma de arranjar dinheiro para sua sobrevivência.
Partir para “filmar por esse interior afora” normalmente significava
[...] arranjar encomendas de filmagens com fazendeiros, prefeitos dos ‘progressistas municípios paulistas’ que pretendiam se eleger deputados, pequenos comerciantes ou industriais que queriam tornar seus estabelecimentos conhecidos. Também significava
53 Idem, ano VII, 19 set. 1925. 54 GALVÃO, Maria Rita. Crônica do Cinema Paulistano , op. cit., p. 26. 55 É preciso lembrar, ainda, a estreita relação do cinema mudo paulistano com os grupos de teatro amador, ligados a associações de imigrantes e sociedades mutuarias. A propósito das relações entre teatro operário e cinema paulistano, Rubens Machado observa que: “É natural que se busque um parentesco do cinema paulistano das décadas de 1910 e 1920 junto ao teatro... Não só o elenco de atores saía dos seus quadros, como se pode supor a utilização dos mesmos procedimentos de encenação, interpretação, apropriação de temas e divisão em gêneros.” Cf. MACHADO, op. cit., p. 101.
32
vender ao Governo do Estado os filmes que já haviam sido pagos pelos fazendeiros. E também significava receber dinheiro das encomendas, rodar a máquina sem filme e sair correndo da cidade antes que o logrado percebesse a tapeação.56
Nicola Tartaglione, denominando-se “um cinegrafista honesto” e não
um “cavador”, nas suas idas ao interior revelou que
[...] às vezes dava mesmo vontade de mandar às favas esses fazendeiros emproados, sumir e nunca mais ver a cara deles... Era sempre a mesma coisa, o que eles queriam; primeiro filmar o dono da fazenda todo importante tocando o sino para chamar os colonos; depois, filmar os colonos no cafezal colhendo café e abanando as suas peneiras...
Após esse trabalho árduo, lá pelas três da tarde, faminto, “só com um
cafezinho preto tomado de madrugada sem mistura nem nada num boteco lá
da cidade, o tal fazendeiro nem se lembrava de mandar convidá-lo para
almoçar [...]”57
Gilberto Rossi, produtor de Rossi Atualidades, outro “cinegrafista
honesto”, argumentou que tinha a seu favor não a subvenção
governamental, “como diziam as pessoas”, mas a superioridade técnica, pois
procurava se informar do que se fazia na Europa em matéria de cinegrafia, e
sempre que tinha dinheiro suficiente trazia as novidades para o Brasil58. Os
outros cinegrafistas apenas viam os filmes estrangeiros e tentavam imitá-los
sem saber como. Eles
[...] usavam máquinas velhas, caindo aos pedaços além de desatualizadas; cometiam erros primários... Pareciam aqueles homens do realejo: punham a máquina em qualquer lugar, sem se preocupar com verificar se estava em nível ou fora de nível, e iam rodando a manivela...59
56 GALVÃO, op. cit., p. 51-52. 57 TARTAGLIONE, Nicola. Depoimento registrado em GALVÃO, Maria Rita, op. cit., p. 147. 58 O jornal Rossi Atualidades recebeu subvenção oficial do Governo Washington Luís; teve seu primeiro número apresentado em janeiro de 1921, na inauguração do “luxuoso Cine República” de Francisco Serrador. Foi produzido regularmente até 1931, chegando ao número 227. Em 1933, Rossi passou a produzir A Voz do Brasil, “primeiro jornal falado do país”. Cf. BERNADET, Jean Claude. Filmografia do Cinema Brasileiro 1900-1935 : Jornal O Estado de São Paulo. Secretaria da Cultura e Comissão de Cinema, 1979. 59 ROSSI, Gilberto. Idem, p. 48.
33
Em suas páginas, a Cinearte criticou insistentemente as subvenções
governamentais à “indústria cavatorial” promovida pela “canalha tocadora de
realejo”, utilizando argumentos como:
Muita vez nos temos insurgido destas colunas contra a especulação sórdida de que é victima o governo, contractando a elaboração de Films documentaes que servem apenas para moer pelliculas de celluloide, apanhando aspectos que nada mais recommendam senão a extrema ingenuidade dos nossos estadistas que nesses Films figuram, posando, cheios de “aplomb”, pejados de importância, de dez em dez metros.60
Para a revista, essas películas eram executadas em geral sem arte,
sem gosto, “[...] photographicamente, sem technica Cinematographica, sem
visão d’arte e muito menos industrial ou comercial... representam apenas
dinheiro sacado do Thesouro nacional para gáudio de um bando de
cavadores espertalhões.”61
O modelo de “filme natural” obviamente era o americano, o “Film
mixto, que focalisa aspectos da nossa vida e do nosso habitat atravez da
fabulação, do enredo. Este é o Film intelligente, o Film de propaganda de
que carecemos.”62 Essa campanha contra os cavadores foi intensificada
após o decreto 21.240, de 1932, que previa:
Art. 13. Atualmente, tendo em vista a capacidade do mercado cinematográfico brasileiro, e a quantidade e a qualidade dos filmes de produção nacional, o Ministério da Educação e Saúde Pública fixará a proporção de filmes nacionais a serem obrigatoriamente incluídos na programação de cada mês.63
Ainda que afirmasse não acreditar na necessidade da subvenção
oficial para o desenvolvimento da indústria cinematográfica, a Cinearte
reivindicou para as “empresas modestas”, que lutavam honestamente para
60 Cinearte , op. cit., p. 3, 22 jun. 1932. 61 Idem, p. 3, 31 ago. 1932. 62 Idem, p. 3, 22 jun. 1932. 63 Decreto n.º 21.240, de 4 de abril de 1932. Revista Cinearte , op. cit., p. 10, 4 maio 1932.
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produzir o filme nacional, o lugar ocupado pelos cavadores. Cabe lembrar
que entre elas estava a Cinédia, fundada em 1930 por Ademar Gonzaga.64
As reportagens e os “filmes naturais”, na sua maioria, não passavam
de propaganda do governo, das indústrias e fazendas de café, travestidas
em notícia e informação. Como exemplo, pode-se lançar mão do sumário da
primeira edição do Rossi Atualidades:
Chegada a São Paulo do General Mangin – O Exmo. Sr. Washington Luís assiste à inauguração da sede-campo da Sociedade Hípica Paulista – O Corpo de Bombeiros da estação central comemorou com grande pompa a festa da bandeira – As nossas estradas de rodagem – Um grande melhoramento no Caminho do Mar – Construção se um Belvedere no mais pitoresco lugar da Serra – Sociedade Hípica Paulista – Partida da Avenida Paulista para a caça à raposa realizada no dia 8 de dezembro atual – As nossas belezas naturais – Panorama de Santos, São Vicente e Praia Grande, descortinado do Alto da Serra – A Grande Festa de Natal, realizada no jardim da Luz, no dia 24 último, esteve concorridíssima.65
Além das festas e inaugurações oficiais, as partidas de futebol e a
moda também tiveram lugar garantido nos jornais cinematográficos. Essa
característica dos filmes de cavação – propaganda travestida de informação
– prevaleceu também nos Complementos Nacionais produzidos após a lei
21.240. Tal aspecto desagradava o público, sendo que os exibidores
contrários a essa lei insistiram nesse ponto ao criticar a obrigatoriedade da
exposição dos complementos nacionais. A Cinearte, saindo em defesa dos
complementos, formulou argumentações como:
Não é bem verdade. Distingamos onde esta crítica não quer distinguir. Uma cousa é propaganda do Brasil, outra é reclame commercial. Quando um film nacional apresenta uma de nossas estações thermaes fazendo elogio das virtudes therapeuticas de suas águas, quando nos mostra o funcionamento de uma de nossas indústrias, com a qual nem sonharamos, a concorrer no levantamento das nossas forças economicas não fez reclame commercial, faz a mais sadia e necessaria das propagandas do Brasil.66
64 O estudo cinematográfico Cinédia produziu, além dos filmes de enredo, complementos nacionais, como Campinas; Correio Aéreo Naval; Ameba, filme científico produzido para o Museu Nacional; e o Cinédia Jornal. 65 BERNADET, Jean Claude, op. cit, 1921-34. 66 Cinearte , op. cit., p. 11, 15 maio 1937.
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Se esse aspecto do filme de “cavação” também apareceu na
produção das “empresas honestas”, isso indica que o meio cinematográfico
não conseguiu “inventar estratégias de sobrevivência” diferentes das criadas
pelos cavadores. Ainda que os responsabilizassem pela péssima
conceituação do cinema no país, aqueles que se diziam diferentes
disputavam com tais grupos um canal rico em possibilidades para a
sobrevivência enquanto cineastas.
Mas a contenda entre a Cinearte e os cavadores foi importante na
medida em que mostrou a disputa entre modos diferentes de viver e de
representá-los na tela. A conduta ilícita de muitos cavadores e a falta de
“competência técnica” desses cinegrafistas comprometia, sem dúvida, o
meio cinematográfico, mas o problema maior da “cavação” estava no fato de
essa prática ser radicalmente contrária ao ideal de “civilização” e de “arte
cinematográfica” defendida pela revista.
Ainda que sofressem ataques sistemáticos, as práticas de “cavação”,
juntamente com as Escolas de Cinema, foram responsáveis pela produção
do cinema mudo paulistano. Os “cavadores” aprenderam a filmar tentando
imitar o que viam na tela, sem possuírem conhecimentos técnicos,
maquinaria e material adequado, e nem os “respeitáveis capitais”.
O dinheiro necessário para fazer um filme era apenas o suficiente para comprar filme virgem, pagar as despesas do laboratório, e eventualmente dar de comer aos artistas durante o período de filmagem, quando não eram os artistas que davam de comer aos cinegrafistas e diretores.67
As filmagens eram feitas em locais improvisados, os artistas não
recebiam salários ou, ainda, pagavam para trabalhar nos filmes; não havia o
técnico especializado. Os cinegrafistas eram, ao mesmo tempo, atores,
diretores, roteiristas, montadores e laboratoristas.
Essas Escolas de Cinema foram criadas por cinegrafistas que
agrupavam algumas pessoas interessadas em fazer cinema, ensinava-as a
interpretar e os alunos financiavam o filme no qual participavam. Mas, além
de formar atores, também incitavam seus alunos na produção fílmica. Eles
67 GALVÃO, Maria Rita, op. cit., p. 47.
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eram duramente criticados pelos jornalistas que, por sua vez, ansiavam pela
moralização do meio cinematográfico, classificando as escolas de “antro de
cavadores”. Sobre as críticas de Pedro Lima, dono da escola de cinema
Internacional, que funcionava na Praça da Sé em 1925, Francisco
Madrigano fez este depoimento:
[...] Mas, que diabo, para que é que ele precisava marretar tanto as coisas? Se fosse um outro qualquer, que não fosse gente de cinema, que não soubesse de que jeito as coisas eram, ainda vá. Mas Pedro Lima sabia. Ele queria fitas, não queria? Que é que a gente podia fazer? Essa história de capitalistas é muito bonita, mas só serve para escrever em revista, não dá certo quando chega a hora de fazer filme. A única coisa que a gente podia fazer era abrir uma escola de cinema, para ver se, entre os alunos, juntando um pouco cada um, dava para arranjar dinheiro para comprar o material e fazer o filme. Existia outra solução? Não existia. Era isso ou desistir de tudo de uma vez, ir cuidar da sua vida.68
A possibilidade de reprodução de si mesmo pela câmara
cinematográfica despertou o desejo de “fazer cinema” nos homens e
mulheres de todas as classes sociais, daí o grande sucesso das Escolas de
Cinema. A “febre cinematográfica”, em São Paulo, dizia respeito não só à
mania o paulistano de ir ao cinema, mas também a mania de “fazer cinema”.
Ao refletir sobre a aspiração legítima do homem moderno de se ver
reproduzido, Benjamin atentou para a exploração do cinema pela indústria
cultura, que impede a concretização dessa aspiração, promovendo a
participação das “massas” por meio de concepções ilusórias e especulações
ambivalentes:
Seu êxito maior é com as mulheres. Com esse objetivo, ela mobiliza um poderoso aparelho publicitário, põe a seu serviço a carreira e a vida amorosa das estrelas, organiza plebiscitos, realiza concursos de beleza. Tudo isso para corromper e falsificar o interesse original das massas pelo cinema, totalmente justificado, na medida em que é um interesse no próprio ser e, portanto, em sua consciência de classe.69
68 Depoimento registrado em: GALVÃO, Maria Rita, idem, p. 109. 69 BENJAMIN, Walter. A obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica, op. cit., p. 184-185.
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Essas críticas de Benjamin recaem diretamente sobre a Cinearte. As
imagens glamourosas reproduzidas em suas páginas, assim como os
anúncios de produtos de beleza, evidenciam investidas para a construção de
uma imagem feminina. Essa mulher deveria estar voltada para
preocupações com moda, decoração da casa, cuidados com a saúde e
beleza do corpo; sempre atraente para o homem, imitando gestos,
penteados e roupas das estrelas de cinema.
Contra essa forma de reapropriação do cinema, o autor apontou para
o controle da atividade cinematográfica exercido pelos grupos populares. A
consciência desse controle abre possibilidades para que se percebam
enquanto centro e razão dessa atividade, destruindo a relação de
subordinação e manipulação estimulada pelo culto ao estrelato.
Mas os paulistanos se tornaram “clientela voluntariamente cativa e
feliz” do cinema, para o desespero de um cronista d’O Estado de São Paulo
que, não aprovando as mudanças de comportamento, provocadas
principalmente nas mulheres, deixou registrado:
Tal é a obsessão cinematográfica. Não falta por cá quem viva para o cinema, banalizado e materializado, assim como arroz-doce e a marmelada. Não escasseiam também os que, não contentes com isso, vivem para além das telas e das fritas... Cúmulo da abstração, armam-se em lindas cabecinhas cinematógrafos ideais em que se projetam projeções de reminiscências de filmes e vidas inteiras de atores e atrizes, medíocres e nulos na generalidade.70
Apesar da indignação contra o devotamento feminino ao cinema,
proliferaram os fã-clubes, as revistas especializadas e a venda de produtos
de beleza para moças e senhoras identificadas com a imagem das estrelas
de cinema. Havia, inclusive, jornalistas brasileiros em Hollywood para cuidar
da correspondência dos fãs e contar fofocas quentinhas da Sunset
Boulevard e Beverly Hills71, mantendo e estimulando a “devoção” feminina.
Guilherme de Almeida, promotor culto ao estrelato, definiu de maneira
peculiar o fã de cinema, diferenciando-o do “entendido” em cinema da
seguinte maneira:
70 O Estado de São Paulo , 5 maio 1920, p. 3 apud SEVCENKO, Nicolau, op. cit., p. 93. 71 SIMÕES, Inimá, op. cit., p. 42.
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O “fã” não vae ver uma fita porque a fita é baseada no grande romance de X... ou na grande peça theatral Y... Nem porque ataca ou defende esta ou aquella these philosophica ou social. Nada disso. Elle vae ver uma fita, porque é uma fita, “voilà”! E – boa ou má – acceita-a, porque ella lhe mostrou a “estrela” que elle queria ver e de quem elle sabe a história toda, inteira, completa: ou porque lhe revelou o trabalho de tal director, de tal “scenario-writer”, de tal photographo...72
Para o cronista, apenas as mulheres eram verdadeiramente fãs do
cinema, uma pessoa de seu tempo; o tempo de cinema. Dona Alice, por
meio de suas lembranças, dá a dimensão da importância do cinema na vida
da mulher paulistana ao lembrar do cinema que frequentava regularmente e
das estrelas que admirava, possibilitando sondagens sobre gostos e
costumes:
Toda semana íamos a um cinema que tinha no Bom Retiro, o Marconi, ver os filmes da Pola Negri, Teda Bara, Glória Swanson. O primeiro filme falado que assisti foi no Cine Rosário, na Rua São Bento. Gostávamos da Mary Pickford e do casal que cantava: Janete MacDonald e Nelson Eddie. A Glória Swanson está com setenta e oito anos, ainda em forma, como vejo nos filmes da TV. Gostei muito de Sangue e Areia, com Rodolfo Valentino, e da Greta Garbo na Dama das Camélias, Ninotchka.73
Em meio a esse domínio do filme estrangeiro se desenvolveu o
cinema de ficção paulistano, que não resistiu à chegada do filme falado.
Essa produção pouco agradava aos defensores da indústria nacional do
cinema. Além das críticas às fontes de seu financiamento, o resultado final
também não era apreciado. Poucos filmes do período sobreviveram até os
dias atuais e só se pode conhecê-los por meio de depoimentos de seus
realizadores e das referências registradas nos jornais da época.
De acordo com os interesses desta pesquisa, foram trabalhados
filmes que possibilitam reflexões sobre as representações de São Paulo
construídas pelas imagens cinematográficas desses produtores. Chama-se a
atenção para um número considerável de filmes retratando os “costumes
sertanejos”, a figura do “caipira” e os “filmes patrióticos”.
72 “G.” Os Entendidos. O Estado de São Paulo , 27 fev. 1930, p. 5. 73 Depoimento registrado em: BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 2. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, Editor/Edusp, 1987, p. 63.
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Destaca-se O Guarani, de 1916, produzido por Vitorio Capellaro e
encenado por um grupo de atores pertencentes aos grupos teatrais
operários. Os principais quadros foram tirados “no Parque Jabaquara, do Sr.
Cantarella; na Cantareira; em Pinheiros; no Butantã; na Lapa; no Alto da
Serra, na propriedade do Sr. Tobias de Aguiar; e o último quadro na represa
de Santo Amaro”.74 Sobre esse filme, a protagonista Georgina Machiani
lembra que Capellaro, pintado de amarelo e coberto de penas, fazia o índio
Peri. Além dela, no papel de Ceci, “os outros atores eram Cassoli, a Sra.
Valentini, Dora Lambertini... Na figuração havia uma porção de pretos
(também pintados de amarelo e cobertos com penas) Capelaro fazia
questão deles, para dar um cunho de realidade nacional às cenas.”75
Marchioni também protagonizou, em 1917, o filme Pátria Brasileira
que, segundo a imprensa, tratava-se de “um drama simples”, no qual uma
filha de pescadores é seduzida e abandonada; seu irmão de criação:
[...] desgostoso, vai ser soldado, adoece e morre precisamente quando uma turma de voluntários jura fidelidade à bandeira. Esta, como episódio final, flutua ao vento, no meio da cidade, cheia de sol, enquanto lá longe, no Ipiranga, se desenha gloriosamente a silhueta do monumento.76
Esse e outros filmes do gênero77 foram produzidos e protagonizados
por imigrantes italianos, na sua maioria. Seus produtores, atentos ao
nacionalismo e ao orgulho localista do período – aguçados durante a
Primeira Guerra Mundial –, procuravam se aproximar dos temas nacionais.
Isso pode ser interpretado como estratégia de enfrentamento ao filme
estrangeiro na disputa pelo gosto do público frequentador de cinema, ou
tentativa de estabelecer vínculos com os “nacionais”, num momento em que
o primeiro era alvo de ataques sistemáticos por alguns setores da sociedade
paulista na disputa por espaços na cidade. 74 BERNADET, Jean Claude, op. cit., 1916-6. 75 MARCHIANI, Georgina. Depoimento a GALVÃO, op. cit., p. 127-128. 76 BERNADET, Jean Claude, op. cit., 1927-28. Olavo Bilac escreveu os letreiros, dirigiu a cena de juramento à Bandeira e ainda apareceu em retrato no início do filme. O filme foi exibido para membros da Liga de Defesa Nacional, recebendo elogios da imprensa quanto ao “bom português que aparece no filme”. 77 Na mesma linha estão: Inocência (1917); O Grito do Ipiranga (1917); Os Heróis Brasileiros na Guerra do Paraguai (1917); A Escrava Isaura (1917); Tiradentes (1917) e As Armas (1918).
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Na linha dos filmes que tematizavam os costumes nacionais
encontram-se os que retrataram a “vida simples do caipira”. Sobre O
Curandeiro, escreveu o jornal O Estado de São Paulo: “nele existem com
muita observação e fidelidade, cenas rústicas do interior entre as quais o
consultório de um curandeiro, o jogo de ‘truque’, a preparação da ‘jacuba’ e
lindas paisagens naturais”.78
Ao diferenciar esse filme dos outros também feitos sobre temas
nacionais, o jornal ressaltava que ele fora feito por Antônio Campos, mineiro,
residente em São Paulo há vinte anos, professor, cirurgião dentista e
cinegrafista. Além de preparo intelectual, possuía bons conhecimentos
teatrais e fotográficos, fato que o diferenciava das outras tentativas de
caracterizar nossos costumes, pois:
foram realizadas por pessoas, se bem criteriosas, que não possuíam os conhecimentos necessários para darem um cunho verdadeiramente brasileiro aos trabalhos por elas intentados. Daí o fracasso e a decepção daqueles que à força de reclamos corriam pressurosos com a esperança de verem uma obra brasileira e que na realidade não passava de cenas de costumes europeus!... .79
Outro aspecto positivo do filme estava na fotografia com “trucs” e
efeitos de cinematografia que só possuem as películas americanas, além da
presença do popular Sebastião Arruda, “o mais perfeito imitador do gênero
caipira...”.80 Esse comentário permite perceber que os “filmes nacionais”
produzidos pelos imigrantes estavam saturados pela experiência e cultura
das sociedades italianas de teatro operário e falavam desse universo, ainda
que tentassem propagandear o contrário.
Sobre esses filmes nacionais, Guilherme de Almeida foi um crítico
severo. Algumas raras exceções foram feitas à produção local quando ela se
diferenciava sobremaneira da produção habitual. Foi o caso do
documentário São Paulo, a Sinfonia da Metrópole, produzido em 1928 pelos
78 BERNADET, Jean Claude. Filmografia do Cinema Brasileiro 1900-1935 : Jornal O Estado de São Paulo. Secretaria da Cultura e Comissão de Cinema, 1979.p.? 79
Idem, p.? 80 BERNADET, Jean Claude, op. cit., 1918-25. Outros exemplos do gênero: A Caipirinha (1919); Os Faroleiros (1920 – baseado em Urupês); Acabaram-se os Otários (1929); Uma Encrenca no Olimpo (1929); Lua de Mel (1930); O Babão; Casa de Caboclo (1931).
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húngaros recém-chegados a São Paulo, Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeny.
Em sua coluna, ele escreveu que “afinal” acreditava no cinema nacional, e
perguntava:
Que foi? Algum dramalhão creoulo com bugres, pretos e gallegos insupportaveis? Algum horror patriótico, com figurões nacionais fazendo cócegas na história e no resto da humanidade? Algum caipirismo grotesco, com tatus sorrateiros, enlambuzados de terra vermelha, escorregando ou trepando por literaturas lamentaveis? Algum hysterismo melindroso e almofadado, com toalhinhas de crochet, cadeiras austríacas e “cache-pots” degradantes nos interiores theatraes, e costelletas ou “accroche-coeurs”, olheiras ou “ratazanas” nas caras também theatraes?...81
Essa observação atenta aos cenários, figurinos e penteados era
coerente com a concepção de cinema do cronista. Para “G.” o cinema era,
antes de tudo, moda. E o cinema paulistano – temas, cenários, atores e
atrizes – estava longe da estética “moderna” dos americanos. Os bigodes
dos atores e os penteados das atrizes denunciavam o “provincianismo” e a
permanência de hábitos e costumes que confrontavam a imagem idealizada
para a “pujante metrópole que crescia desafiando as nuvens”. Sem deixar de
mencionar os nossos índios, negros, mestiços e caipiras que não podiam ser
registrados pela câmara cinematográfica, comprometendo o ideal de beleza
e higiene identificado com o “branco bonito”.
Qual São Paulo foi construída pelas lentes dos documentaristas?
Segundo Adalberto Kemeny, ele e o irmão “levaram mais de um ano
filmando, sem roteiro, andando a esmo pelas ruas de São Paulo, nas mais
variadas horas do dia, com a câmara na mão. Pretendiam mostrar São
Paulo num dia de trabalho.”82 “G.” assim descreveu o registro “sensível da
câmara” de Kemeny e Lustig:
Caminha por ahi, essa “câmara” madrugadora e esperta, desde as primeiras claridades pelas ruas ainda humidas do sereno e vazias de vida, até o suado entardecer cidadino, quando as sombras se alongam, em espreguiçamentos de cansaço, por estes asphaltos
81 “G.”. Afinal! O Estado de São Paulo , 23 maio 1929, p. 4. 82 KEMENY, Adalberto. Depoimento. In: GALVÃO, op. cit., p. 162-163. Ainda segundo o depoente, esse documentário não teria sido copiado de Berlin, Sinfonia de uma Cidade, como costumam dizer, pois não sabia da existência do filme de Ruttman quando resolveu fazer o seu.
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cosmopolitas e laboriosos. Tudo o que é a historia anonyma, o romance collectivo quotidiano, e o obscuro de uma grande cidade moderna, essa “camera soube ver, estudar e contar”.83
Os instantes flagrados num dia de trabalho “desta cidade que tem que
ser o nosso amor – por que ella é todo o nosso desejo, todo o nosso
pensamento, todo nosso orgulho, toda a nossa alegria e também, às vezes,
toda a nossa tristeza...”84, construíram São Paulo contagiada pelo progresso
que vive ordenadamente para o trabalho; um exemplo de civilização
moderna, conforme as palavras de Rubens Machado.85
O advento do cinema falado mudou os rumos do cinema em São
Paulo, como no mundo todo. Para o cinema paulistano significou o fim do
período intenso de produções de longa-metragem nas mãos dos pequenos
grupos familiares, como os Rossis, os Carraris, os Del Picchia, ou de
pessoas como Adalberto Kemeny, Rodolfo Rex Lustig e Joaquim Garnier.
Esse último, lamentando o desaparecimento do Brás da sua lembrança,
também revelou as transformações profundas que ocorreram no meio
cinematográfico paulistano após o surgimento do filme falado:
O cinema em São Paulo também acabou; ninguém resistiu ao falado. A começar pelos próprios artistas, mesmo aqueles que eram muito bons; tinham desenvolvido toda uma técnica de interpretação mímica que não se adaptava ao cinema falado. E depois, havia aquelas mocinhas, de figuras tão delicadas na tela muda, que se tornavam grotescas quando se ouviam as suas vozes, revelando falhas de instrução e “polimento” que a fotografia esconde...86
Mas, segundo Garnier, esse era o menor dos problemas e poderia ser
contornado. A questão que provocou a derrocada do cinema paulistano foi a
ausência de conhecimentos, pois os técnicos eram autodidatas e aprendiam
na base do ensaio e do erro; além da inexistência de matéria-prima para a
confecção do filme falado. Ou seja, o investimento maciço dos grandes
estúdios no estudo e no desenvolvimento de tecnologia sofisticada significou
83 “G.”. Afinal!, idem. 84 Idem, ibidem. 85 Segundo Machado, outro filme que sobreviveu até os nossos dias, Fragmentos da Vida (1929), também “forja” a imagem de São Paulo que vive ordenadamente para o trabalho. Cf. MACHADO, op. cit., p. 121. 86 GARNIER, Joaquim. Depoimento. In: GALVÃO, op. cit., p. 157.
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a expulsão, do meio cinematográfico, dos pioneiros do cinema paulistano e o
desaparecimento de um modo de trabalhar que Adalberto Kemeny, ao
relatar suas dificuldades em se adaptar “aos métodos e à racionalização de
tudo” dos técnicos estrangeiros contratados pela Vera Cruz, descreveu o
“modo de trabalhar à brasileira”, que consistia no trabalho feito por
indivíduos que “faziam tudo”: filmar, editar, revelar e copiar os filmes.
Esse modo de trabalhar foi sistematicamente combatido pelos
defensores do cinema feito pelo “grande capital”. Sob a pretensão de “elevar
o espetáculo cinematográfico”, foi necessário não apenas atacar as práticas
“indignas” que sustentavam a atividade cinematográfica – Escolas de
Cinema, salas de projeção, sessões cinematográficas, cavação e o filme de
ficção local – como também mostrar aos críticos do cinema a “utilidade
dessa invenção”.
Foi nesse embate que o cinema educativo se constituiu num poderoso
argumento com o qual combateram os “adversários do filme”. Entre os que
alardeavam os males causados pelo cinema, foi construído o discurso pelo
cinema educativo, disposto a silenciar críticos e conquistar espaços para
essa “maravilhosa invenção”.
Assim, nesse processo de luta cultural, nas páginas de Para Todos,
Cinearte e O Estado de São Paulo encontram-se vozes empenhadas na
instituição do cinema educativo:
Por várias vezes destas colunas nos temos ocupado de uma das modalidades do cinema, daquela que pode ser considerada a mais útil, tão útil que todos os defeitos porventura atribuídos a essa estupenda invenção do espírito humano seriam excusados a vista dessa utilidade.87
O conjunto de vozes que polemizou a linguagem cinematográfica e
sua influência sobre os habitantes da cidade, criticando ou vislumbrando a
criação da indústria cinematográfica, projetou o cinema educativo como um
interventor precioso nos modos de viver urbanos. A constituição desses
modos de viver passava, necessariamente, pela moralização do lazer e dos
divertimentos; cinema e cidade, indissociáveis, foram alvo do projeto de
87 Para Todos , op. cit., 1º jan. 1921, ano 3, n.º 107.
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moralização nas tensões com os setores populares pela
transformação/constituição das práticas culturais na cidade.
Na direção da “moralização da cidade”, foram erigidos projetos
políticos legitimados por representações da criança, do trabalhador, da
mulher e do meio urbano, formuladas a partir do olhar das elites intelectuais.
Os projetos de “regeneração dos costumes” representavam a cidade como
um local difusor de várias epidemias, sendo as “epidemias psíquicas” as
mais preocupantes. O psiquiatra Franco da Rocha, observador atento da
multidão na cidade, afirmava:
Como tipo de transição, no fenômeno do contágio psíquico, entre o estado normal e o estado de verdadeira loucura, apresentam-se as reuniões populares, chamadas turbas [...]. A população que se reúne a propósito de um fato emocionante e forma rapidamente uma personalidade bestial, inferior, é sempre um exemplo destes casos de transição. Todos estes fatos são produtos da sugestão, no sentido mais geral desta expressão.88
A representação da população urbana percebida enquanto “multidão
desorganizada”, “bestial” e “inferior” projetou a cidade como um caos
avassalador e potencializador de inúmeros males. A concentração dessa
“turba” nas salas de cinema, sob emoções fortes, era especialmente
perigosa. Os médicos recomendavam às gestantes evitar a “dor moral” que
“divertimentos tensos como o cinema poderiam causar”.89 Enquanto no
Juquery eram promovidas, esporadicamente, sessões de cinema com filmes
cuidadosamente selecionados: filmes naturais, cinejornais, comédias e
filmes educativos; os dramas, as fitas policiais ou enredos emocionantes
eram proibidos.90
De outra parte, ao examinar as representações da cidade nos anos
1920 por meio de dois romances, Margareth Rago acompanha imagens
ambivalentes construídas sobre a São Paulo que se industrializava. A cidade
tematizada por Oswald de Andrade em Os Condenados aparece como o
88 ROCHA, F. Franco da. Esboço de Psiquiatria Forense apud CUNHA, Maria Clementina P. O Espelho do Mundo . Juquery, a História de um Asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 49. 89 RAGO, Luzia Margareth. Do Cabaré ao Lar : a utopia da cidade disciplinar. Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 131. 90 CUNHA, Maria P, op. cit., p. 101.
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trágico palco onde encenam pessoas dilaceradas, vítimas de um destino
implacável. A cidade-cabaré é o espaço sombrio e decadente, cenário de
relações esvaziadas, hipócritas e fingidas.
Já Hilário Tácito, em Madame Pommery, aponta para uma
representação mecânica da urbe como sinal de modernidade e progresso. O
cabaré aparece como um empreendimento capitalista progressista de uma
imigrante francesa, destinado a mudar os costumes provincianos da cidade.
Ao distinguir três fases na história de São Paulo, ele identifica a fase
contemporânea, progressista com o cinematógrafo.
Mas Rago assinala o predomínio de uma concepção sobre a outra. A
representação da cidade como local do prazer, do vício e da perdição foi
associada ao crescimento urbano-industrial e ao surgimento das novas
formas de lazer. O discurso médico constituiu num espaço gerador de males
incontáveis:
[...] nas cidades modernas tudo age no sentido de estimular o apetite sexual; o luxo, a libertinagem, a tendência que impele às diversões – ao teatro, à dança, ao bar, mas principalmente ao cabaré, que é uma associação destes três gêneros, ou pelo menos dos dois últimos. A estas causas temos recentemente que juntar a influência do cinema [...].91
Essa projeção negativa da cidade e dos novos hábitos que estimulava
predominou entre alguns intelectuais que concentraram esforços contra o
cinema. Assim, a tematização da vida urbana propôs intervenções no
sentido de controlar o cotidiano de classes populares, delimitando espaços e
disciplinarizando o tempo livre destinado ao prazer e às diversões.
Contra o perigo das legiões pobres, iletradas e estrangeiras, a
educação e o trabalho foram pensados como maneiras de intervenção e
organização do projetado caos avassalador. Nesse processo de intervenção
e controle das populações urbanas, as elites procuraram, progressivamente,
incorporar as demandas populares por trabalho, educação e lazer,
conferindo-lhes outros sentidos.
91 LEME, J. B. Moraes. O Problema Venéreo. São Paulo: Globo, 1926 apud RAGO, Luzia Margareth. Prazer e Perdição: a representação da cidade nos anos vinte. Revista Brasileira de História , São Paulo, v. 7, b. 13, ANPUH/Marco Zero, p. 91, set./fev. 1987.
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Grupos sociais organizados em sindicados, colônias de estrangeiros,
associações culturais e grupos negros fundaram escolas de acordo com
seus interesses e sua concepção sobre os fins e métodos educacionais. Os
anarquistas, durante os anos 1910, criaram as Escolas Modernas, que foram
fechadas em 1919 pelo diretor da Instrução Pública de São Paulo, Oscar
Thompson. No ano seguinte, as escolas das colônias estrangeiras foram
atingidas pela Reforma Sampaio Dória.
Planejada como fator que iria dar forma e feição às multidões
anônimas das cidades e de todo o território nacional, a educação também foi
se constituindo num campo de práticas estratégico para as elites no
processo de luta pela cidade. As populações urbanas tidas como
regeneradas, vadias, imorais e indisciplinadas seriam redimidas pela
educação e pelo trabalho. O papel da escola seria o de formar o cidadão
laborioso, núcleo da nacionalidade em formação, enquanto modos de educar
diferentes e conflitantes com esses princípios foram combatidos e
destruídos.
Ao produzir um discurso alarmante, intelectuais de diferentes áreas do
conhecimento, como médicos, psicólogos, higienistas e educadores
criticaram o pessimismo, a passividade e a indiferença das elites, lançando-
se à campanha de regeneração nacional pela educação. Nesse clima de
“entusiasmo pela educação”, o médico Miguel Couto propôs “vitalizar pela
educação e pela higiene” como a única “salvação” para o Brasil.92
Além de regenerar as populações urbanas, era necessário conter o
êxodo rural, fixando o homem no campo para que o número de habitantes
na cidade não aumentasse, tornando ainda mais caótica a vida da metrópole
composta por múltiplos personagens, aos quais se juntariam os
trabalhadores rurais, “rudes e ignorantes” e mais “suscetíveis” aos estímulos
negativos da vida urbana.
Deter os fluxos imigratórios para a cidade, promovendo política agrarista de fixação do homem no campo através da escola, ou dinamizar a economia, por medidas educacionais que incorporassem levas de ociosos ao sistema produtivo, eram
92 CARVALHO, Marta M. Chagas de. A Escola e a República . Coleção Tudo é História. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 19.
47
projetos com um denominador comum: o equacionamento da questão urbana, a estruturação de esquemas de controle que viabilizassem, no espaço da cidade e no tempo da produção-expropriação capitalista, o disciplinamento das populações resistentes, na vadiagem ou na anarquia, à nova ordem que se implantava.93
Para a solução desse novo problema eram exigidos novos processos
de ensino e uma nova escola. A escola deveria educar e não apenas instruir,
constituindo corpos saudáveis, mentes e corações disciplinados. A instrução
pura e simples era desaconselhável, haja vista que a educação associada
ao mote da organização do trabalho assumiu o significado de: a)
racionalização do trabalho escolar, que incluía orientação profissional, testes
de aptidões, maximização dos resultados escolares com diminuição do
tempo gasto no processo de ensino e aprendizagem; b) distribuição
ordenada da população por diversas atividades produtivas; c)
disciplinamento e controle do lazer das populações urbanas.
No processo de disciplinarização e controle do lazer das populações
urbanas, a questão do cinema emergiu com força, e o cinema educativo –
como processo de ensino – assumiu posição estratégica no projeto de
regeneração dos costumes. Ele foi projetado como instrumento privilegiado
na luta pela moralização dos costumes urbanos.
93 CARVALHO, Marta M. Chagas de. op. cit., p. 21.
48
CAPÍTULO II – CINEMA EDUCATIVO E MORALIZAÇÃO DA VID A URBANA
2.1 Higienização e Moralização do Cinema Durante as décadas de 1920/30, foi grande o empenho de
educadores, intelectuais, políticos, Igreja, Estado e associações culturais e
cívicas para a implantação do cinema educativo no Brasil. Esse empenho
pelo “bom cinema” também pode ser acompanhado em outros países, uma
vez que as experiências da Itália, França, dos EUA, da URSS e da
Alemanha são citadas, com frequência, como modelos ou sugestões
valiosas para a resolução dos problemas nacionais.
Entre as entidades profissionais, a Associação Brasileira de Educação
(ABE) foi a que mais debateu a “questão cinematográfica”, constituindo-se o
cinema e sua poderosa influência nos habitantes da cidade num desafio a
ser enfrentado. Ao apresentá-lo como causador de vícios e corruptor,
principalmente da infância, os intelectuais que compunham essa associação
tiveram uma justificativa essencial para intervir nessa forma de lazer
praticada, essencialmente, pelas classes populares a partir da instituição da
censura e, simultaneamente, da criação do cinema educativo.
Ao narrar o esforço da ABE para a criação do cinema infantil, o Dr.
Levi P. Carneiro, jurista, deputado e membro da diretoria, lamentou o fato
revelado pelos donos de estabelecimentos cinematográficos e pelos
importadores de filme de que as películas educativas não interessavam ao
público, constituindo-se em verdadeiros fracassos comerciais. Ao clamar por
uma legislação que regulasse as matinês infantis, houve críticas sobre o
Código de Menores em vigor, particularmente o art. 76, que proibia
ingressos às crianças menores de 14 anos que se apresentassem
desacompanhadas de seus pais, tutores ou qualquer outro responsável, aos
espetáculos cinematográficos em que houvesse a exibição de películas
prejudiciais à infância.94
Segundo sua interpretação, esse dispositivo legal permitia aos
menores assistir a exibição de filmes considerados impróprios, transferindo a
94 Cinearte , op. cit., p. 3, 1927.
49
responsabilidade da seleção dos programas adequados aos pais que,
segundo Levi Carneiro, não possuíam critérios para discernir o que era
conveniente.
Na fala do “advogado consagrado”, crianças e seus familiares foram
infantilizados, e seus gostos, comportamentos e opções de lazer,
desqualificados. Para resolver os problemas de assistência e proteção à
infância, a iniciativa privada das associações particulares, “investidas de
funções novas e poderes extensíssimos”95, foi apontada como alternativa
eficiente aos poderes governamentais. Além de persuadir o Estado a legislar
sobre o cinema infantil, apontando soluções, a ABE propôs educar os pais
de família sobre a escolha dos “divertimentos infantis adequados”. Ao
esclarecer acerca do que consistiria a obra da associação, registraram:
Falta, principalmente, a obra em que a ABE, também se empenhará, de persuasão, de esclarecimento, de verdadeira educação dos paes de família – desses pobres paes de família que desertam das exhibições de films verdadeiramente educativos e, enchem com sua prole as abomináveis “matinées” infantis de certos estabelecimentos desta cidade... É um emprehendimento complexo, que exige longo esforço continuado, mas que pode proporcionar magníficos resultados.96
Além disso, a ABE elegeu as manhãs de quinta-feira, “dia de sueto
nas escolas públicas”, como espaço perfeito para iniciar as exibições de
filmes especiais rigorosamente selecionados, destinados às crianças dessas
escolas e dos asilos.
Na pretensão de reforma moral dos habitantes da cidade, seus
costumes e divertimentos deveriam ser transformados, e suas formas de
percepção e apreciação, reeducadas. As crianças que apareceram
genericamente na fala de Levi Carneiro foram assumindo um contorno mais
nítido ao longo do discurso para, finalmente, se constituírem nas crianças
dos asilos e das escolas públicas, que faltavam nas escolas e enchiam as
salas de cinema nas matinês de quinta-feira.
95 As associações profissionais e as ligas civis agiam dentro da perspectiva de resolver privadamente os assuntos de interesse geral, tal qual os princípios defendidos pelo Fordismo. Cf. ANTONACCI, Maria Antonieta M. A Vitória da Razão? O Idort e a Sociedade Paulista. São Paulo: Marco Zero, 1993, p. 85. 96 Cinearte , op. cit., p. 3 e 32.
50
Sobre a família recaía a responsabilidade pelos problemas que
atingiam a infância. Como consequência, os pais precisavam constituir um
lar adequado, aprender a educar seus filhos; daí a necessidade de
intervenção dos educadores. Quanto aos menores que povoavam ruas e
cinemas, eles deveriam ser conduzidos para a escola e tratados com
cuidados e atenções especiais, uma vez que essas crianças representavam,
para a entidade, o “futuro da nação”.
Com vistas a expandir o raio de ação da escola para a moralização
dos costumes da cidade, a ABE construiu um discurso maniqueísta opondo
o presente ao futuro, em que o primeiro foi lastimado e condenado, enquanto
que o segundo foi louvado como possibilidade de glórias, dependendo,
evidentemente, da ação das “elites” em prol da transformação do país por
meio da educação. Nesse sentido, as campanhas empreendidas adquiram
conotações de verdadeiras obras cívicas que congregavam homens
“esclarecidos e bem intencionados”, conquistando apoio e legitimidade.
Para compreender melhor essas representações sobre a infância e a
família, é necessário sondar os significados assumidos por associações
cívicas e profissionais durante as primeiras décadas do século XX.
A Associação Brasileira de Educação, fundada em 1924 no Rio de
Janeiro, foi projetada como organização nacional e representante legítima
das elites intelectuais em matéria educacional. Sua originalidade estava na
maneira como redimensionava o problema da educação no Brasil, propondo
a “educação integral”.
Para Heitor Lyra da Silva, a ABE tinha o propósito de levantar o “nível
popular” sobre as bases da moral por meio do cultivo das qualidades do
caráter; sobre as bases higiênicas, melhorando as condições de saúde da
população; e sobre as bases econômicas, pela organização racional do
trabalho. Ao conceber a educação integral como uma grande reforma de
costumes, elegeu como objetos de intervenção “o vício, a doença e a
indolência das populações brasileiras”.
A prática do debate e das Conferências Nacionais legitimou a
representação dessa população como massa amorfa e doente, bem como o
51
diagnóstico e as técnicas de intervenção preconizadas para a solução desse
problema.
Marta Carvalho97, ao trabalhar os discursos da ABE entendidos como
prática política, propõe pensar os reformadores sociais das diferentes
Associações Cívicas e profissionais do período como “colaboradores
indispensáveis e eficientes na invenção e no aprimoramento de dispositivos
de dominação”. Nesse sentido, essas associações se constituíram em
espaços de ação política, organizando e credenciando reformadores sociais,
além de produzir um saber técnico de caráter autoritário sobre o social.
Paschoal Lemme, membro atuante da ABE, lembra que a primeira
ideia dos fundadores da Associação foi organizar um partido político que
tivesse com objetivo principal lutar pela melhoria das condições de educação
no Brasil em todos os aspectos, pois consideravam que, por meio dela,
seriam resolvidos os problemas econômicos, políticos e sociais, ocorrendo,
então, a grande transformação do país.98 Ao abandonar essa ideia inicial,
acreditaram que o melhor instrumento para promover a realização dos seus
objetivos seria fundar uma entidade que congregasse educadores, cientistas
e intelectuais sem ligação direta com os poderes públicos:
Em síntese pois: a Associação aspira constituir-se em órgão legítimo da opinião das classes cultas, pronta a colaborar em perfeita harmonia com os governos e a aplaudir-lhes os acertos, mas capaz também de falar-lhes de frente, de apontar-lhes, quando necessário, os erros e as lacunas de suas leis de educação e de ensino e de defender vigorosamente nesse terreno os grandes interesses do Brasil.99
Com o propósito de “defender os grandes interesses di Brasil”, a ABE
tomou para si o “problema do cinema”. Em 1926 constituiu uma comissão
para estudar a instituição do “cinematógrapho infantil” articulada à questão
da censura às matinês e à importação-exibição de filmes educativos. Essa
comissão entrou em contato com os donos de estabelecimentos
97 CARVALHO, Marta Chagas de. Molde Nacional e Fôrma Cívica : higiene, moral e trabalho no projeto da Associação Brasileira de Educação (1924-1931). Tese de Doutorado (Universidade de São Paulo), 1986. 98 LEMME, Paschoal. Memórias 2 . São Paulo: Cortez/Inep, 1988, p. 100. 99 Discurso de Heitor Lyra da Silva pronunciado em 19 de novembro de 1925, em comemoração ao primeiro ano de fundação da ABE. In: LEMME, Paschoal, op. cit., p. 101.
52
cinematográficos e os importadores de películas. Do Sr. Slberto Rosenval,
da Fox Film, obteve a informação sobre o fracasso comercial dos filmes
educativos e sobre as realizações norte-americanas na área do cinema
educativo. O representante da Fox Film também se referiu aos espetáculos
infantis, apoiando a formação de um bureau de censura formado por
integrantes da ABE:
Ousamos adeantar mais que uma associação que conta com elementos de destaque como os Drs. Fernando Magalhães, Levi Carneiro, [...], poderia, perfeitamente, formar um “bureau” de censura e, desse modo, como nas demais nações, teríamos o film censurado pôr pessoas de valor incontestável, evitando que tivéssemos um departamento estadual para esse fim... O que não devemos deixar de dar todo o nosso apoio á Associação Brasileira de Educação, que consideramos de utilidade pública.100
A Associação Brasileira de Educação obteve apoio de intelectuais e
políticos para seu projeto de instituição da censura moral, retirando das
mãos da polícia essa incumbência. Em 1931, propôs formalmente ao
Governo Federal a transformação da censura policial em censura cultural101,
bem como a uniformização e nacionalização desse serviço.102
A censura cultural proposta seria feita pela ciência. Não seriam mais
os padrões morais da “truculência policial” que dariam conta de proteger as
“futuras gerações”. Os saberes racionais da higiene mental, da puericultura,
da pedagogia e psicologia eram os mais indicados para exercer essa
delicada função; portanto, nada mais lógico do que entregar essa função aos
homens de “destaque” dessa associação.
A representação feita pela Sociedade Nacional de Educação ao chefe
de Polícia do Distrito Federal, pedindo providências sobre a censura
cinematográfica, foi duramente criticada pela revista Cinearte, a qual
argumentou que a censura deveria passar da polícia para o recém-criado
Ministério da Educação, pois ninguém podia confiar no critério policial que,
via de regra, era “puro arbítrio”, uma vez que a polícia era composta por
100 Cinearte , op. cit., p. 27, 11 maio 1927. 101 O professor Deodato Moraes, membro da ABE, apresentou, em 1920, um projeto de lei sobre a federalização da censura cinematográfica. 102 INSTITUTO NACIONAL DO CINEMA EDUCATIVO. Histórico do Cinema Educativo no Brasil . Rio de Janeiro: CPDOC/FGV.GC, 1937 (?), p. 1.
53
“alguns bachareletes ignorantes e pernósticos”, “delegados de poucas
letras”, “comissários semianalfabetos”, “investigadores absolutamente
iletrados” e por censores acostumados a cobrar gratificações “extras” para
realizar o trabalho de censura. Tais pessoas não estavam preparadas para
exercer o “alto ideal de defesa dos mais sagrados interesses da moralização
das novas gerações”.103
No documento apresentado ao chefe de Polícia, a Sociedade
Brasileira de Educação ressaltou a poderosa influência exercida por diversas
associações de caráter religioso nos EUA e o esforço de uma senhora norte-
americana, residindo no Brasil – a revista não forneceu outras informações –
, no sentido de “procurar meios de conjugar os nossos esforços com os de
algumas associações catholicas dos Estados Unidos”.104
A luta pela moralização da cidade exigiu dos educadores um grande
esforço, que incluía a educação de pais e filhos, a mobilização do Estado,
dos órgãos formadores de opinião e dos intelectuais. Mas esses educadores
não estavam sós, haja vista que puderam contar com a ajuda e a
experiência da Igreja Católica nessa questão.
Ao trabalhar com a doutrina social da Igreja nos anos 1930, Cynthia
Vilhena aponta para o relevo dado à família enquanto “‘célula-mater’ da
sociedade, e a necessidade de sua preservação e defesa contra os perigos
representados pelas transformações sociais, econômicas, políticas e
culturais; enfim, responsáveis pelo seu processo de desintegração.”105
Para a Igreja Católica, a desestabilização da instituição familiar
ameaçava a paz e a harmonia da sociedade, entendida enquanto conjunto
de famílias. Sob a influência do espectro da secularização crescente da vida
nacional, a instabilidade da família moderna representava um perigo à
hegemonia católica.
Assim, a Igreja se organizou no sentido de aumentar sua influência
sob a sociedade, iniciando em 1920, a partir da liderança de Dom Leme, um
movimento leigo destinado a recuperar o terreno perdido. Nascido no Rio de 103 Cinearte , op. cit., p. 3, 25 fev. 1931. 104 Idem, p. 3, 11 mar. 1931. 105 VILHENA, Cynthia P. de Sousa. Família, Mulher e Prole . A Doutrina Social da Igreja e a Política Social do Estado Novo. Tese de Doutorado (Universidade de São Paulo), 1988, p. 6.
54
Janeiro, esse movimento se articulou em torno da revista A Ordem e do
Centro de Dom Vidal, que contava com a participação de Jônatas Serrano,
Sobral Pinto, Hamilton Nogueira, Alceu Amoroso Lima, entre outros.
Sob a liderança de Fernando Magalhães, os católicos ocuparam
posição de destaque na ABE dos anos 1920, marcando a atuação da
entidade pela leitura católica do processo de urbanização, especialmente no
Rio de Janeiro. Segundo essa leitura, a vida tumultuosa e corrosiva das
cidades exigia ações dos educadores para a moralização dos costumes
citadinos por meio de pregações, festas pedagógicas, comemorações
cívicas, controle do lazer e constituição de Círculos de Pais, destinados a
ampliar a influência da escola e proteger a infância.
A militância católica em favor da reconstituição da família moderna
combateu, no mundo todo, os divertimentos que considerava uma ameaça;
aqueles que, a seu ver, provocavam a desestruturação dessa instituição,
com atenções especiais para o cinema.
Pressionados por esse movimento, os chefes da indústria
cinematográfica norte-americana firmaram, em 1930, um código moral para
regular a produção de filmes, declarando que o cinema era uma diversão,
mas tinha a responsabilidade direta pelo progresso moral e pelo modo de
pensar dos indivíduos e das classes sociais. Para mostrar como seria o filme
moral e responsável, o código prescrevia que:
Sobre as relações entre os dois sexos as prescripções adoptadas visam o respeito á santidade do matrimonio e ao lar doméstico e quando o adultério seja, por necessidade de entrecho, apresentado nada deve justifical-o ou tornal-o athraente [...]. As scenas de intimidade no lar devem ser tratadas sempre com delicadeza e bom gosto.106
Essas medidas107 visaram “sanear o meio cinematográfico” e,
principalmente, fugir aos prejuízos causados pelas comissões de censura
nos vários mercados mundiais. Com isso enfrentaram as investidas dos
grupos religiosos contra o cinema, que identificavam as imagens e os
106 Cinearte , op. cit., p. 3, 14 out. 1931. 107 Juntava-se a isso a proibição de mostrar a mistura de raças, cruzamentos entre brancos, pretos e índios, a nudez completa, o comércio de mulheres e virtudes femininas, além de vários outros itens. Cf. Cinearte , op. cit., p. 5, 1º jan. 1935.
55
enredos dos filmes – quase sempre girando em torno do “problema dos
sexos”, “do eterno triângulo amoroso” – como uma ameaça à instituição
sagrada do matrimônio e, consequentemente, à família.
Em 1935, a “agitação contra o cinema” tomou grandes proporções
nos EUA e no mundo inteiro. As inúmeras Legions of Decency espalhadas
pelos EUA travaram constantes batalhas contra “O perigo de Hollywood”. A
campanha religiosa criou o “certificado de pureza”, obrigatório para todos os
filmes exibidos no país.
Com o intuito de neutralizar a influência cinematográfica na formação
moral cristã, a Igreja Católica apresentou um programa de ação do
catolicismo para a reforma do cinema. O cardeal Pacelli, secretário de
Estado do Vaticano, esclareceu que não se tratava apenas de levantar
obstáculos aos malefícios do cinema, mas convertê-lo em instrumento de
bem.
A “moralização do cinema” seria alcançada por meio de medidas
como: a) criação de uma seção cinematográfica em todos os jornais
católicos que louvassem os bons filmes e condenassem os maus; b)
multiplicação das grandes salas de cinema, munidas dos progressos
modernos e fortemente coordenadas entre si, oferecendo espetáculos
instrutivos e recreativos de inspiração cristã; c) instituição de uma
organização católica central de cinema; e d) produção de filmes cristãos.
Essa investida contra o cinema converteu “o grande divertimento
popular” liberador de costumes em instrumento de adaptação moral. O
cinema educativo exercia o papel de neutralizador das más influências do
cinema comum por meio dos fins plenamente delineados pela Igreja e pela
Escola.
Houve reações contra esse movimento de moralização do cinema.
Nos EUA, os espectadores vaiavam a apresentação do purity seal. No
Brasil, os pais insistiram em frequentar, juntamente com seus filhos, os
espetáculos impróprios. Atitude que escandalizou inúmeras associações
civis, educadores e higienistas, como já foi visto anteriormente.
A “moralização” ou a “educação integral” almejou, ambiciosamente, a
educação dos sentimentos, dos gostos, do corpo e da mente dos habitantes
56
da cidade. O cinema agia diretamente sobre os sentidos e sentimentos; por
isso precisava ser posto a serviço da educação.
Aumentar o prestígio e a ação da escola no meio urbano através do
tempo gasto fora da escola com divertimentos perigosos108, da educação
dos pais e da instituição do cinema educativo significou confinar o cotidiano
das populações urbanas em espaços idealizados: o lar, a escola e a fábrica.
Sujeitos urbanos não podiam ficar expostos a toda a série de “vícios” e
“maus hábitos” que a cidade propiciava. A rua, com suas possibilidades de
entretenimento, ameaçava a constituição da família. Os jogos, as
bebedeiras, o cinema, o teatro e o bordel eram verdadeiras ameaças à
construção do trabalhador disciplinado e higiênico.
O cinema perturbava, em geral, as mulheres e as crianças que,
segundo discursos desqualificadores, possuíam uma “mentalidade simplória”
que os tornavam mais suscetíveis às impressões provocadas pelas imagens.
As crianças, em particular, deveriam receber maior atenção, sendo que os
cuidados e a proteção para com os menores assumiram o significado de luta
para a formação e preservação das “futuras gerações”.
Esses cuidados para com as crianças fizeram com que a imprensa,
durante o ano de 1928, se ocupasse de um conflito entre os proprietários as
casas de diversão – cinema e teatro –, e o juiz de menores do Distrito
Federal, Mello Matos. Em São Paulo, o jornal O Estado de São Paulo
acompanhou a proibição à frequência de menores aos espetáculos
considerados impróprios e a luta dos proprietários na Corte de Apelação
contra essa decisão. O episódio terminou com a revogação da decisão do
juiz e consequente vitória dos proprietários.
Enquanto o jornal limitou-se a “registrar os acontecimentos”, a revista
Cinearte tomou abertamente a defesa do juiz, clamando contra as
“famigeradas matinês infantis” e apelando para a instituição de um aparelho
108 Ao falar sobre a conscientização dos professores americanos sobre a responsabilidade em ajudar a distribuir o emprego das horas de folga da criança, o Sr. Edwin C. Broome, superintendente da seção de Filadélfia da Associação de Educação Nacional, estimava que, de 5.475 horas em que a criança se acha desperta durante o ano, 1.000 no máximo são transcorridas na escola; portanto, os professores estavam sob um handicap de quatro a um e meio contra um, no esforço para desenvolver bons hábitos nas crianças. Cinearte , op. cit., p. 25, 1º out. 1934.
57
de censura nacional. Ao levantar o problema das matinês, exigindo censura
e organização de espetáculos adequados à mentalidade infantil, a revista
abriu espaço, em suas páginas, para o juiz de menores do Distrito Federal
justificar seu ato contra os donos das casas de diversão:
A atmosfera das salas de espetáculos é prejudicial ás crianças menores de cinco annos: fica pesada e corrompida pelas emanações dos espectadores, carregada de poeira, que levantam os movimentos de entrada e sahida, de assentamento e levantamento daquelles, e, ás vezes, sobrecarregada de fumo... Demais, estas nada comprehendem do que passa ante os seus olhos nas télas ou nos palcos; não se divertem, antes se aborrecem ou dormem. Vão lá sacrificada pelo egoismo, senão pelo desamor, dos paes, que procuram divertir-se, sem attender a que arriscam a vida de seus innocentes filhinhos. Trata-se, pois, de uma medida, não só de protecção á creança, mas de salvação da raça.109
Na fala do juiz de menores, as salas de cinema foram representadas
como um ambiente promíscuo e anti-higiênico; uma atmosfera perigosa,
onde seria impossível respirar satisfatoriamente. Que pessoas frequentavam
esses espaços e tal divertimento barato? Um grande número de
trabalhadores que lotavam “as saletinhas ignóbeis” ignoravam os preceitos
do “bom gosto” e da “higiene”, formando grandes multidões em frente às
salas de espetáculo, preocupando, principalmente, os “moralistas”,
higienistas e pedagogos. Esses sujeitos, segundo o jurista, desconhecendo
os malefícios causados pelos cinemas – tanto físicos quanto morais –
arrastavam consigo sua prole, desejando se divertir e demonstrando
claramente não se importar com o “futuro da raça”. Portanto, as crianças
precisavam ser protegidas das salas de cinema, dos seus proprietários
gananciosos e, principalmente, do egoísmo e da ignorância dos pais.
Segundo Mello Matos, a proteção à infância deveria seguir tanto os
preceitos da higiene, como os da pedagogia. Aos menores de 14 anos era
vedado, pelo Código de Menores, participar de espetáculos que
terminassem após as 20 horas. Argumentou que “os menores dessas idades
109 Cinearte , op. cit., p. 3, 27 jun. 1928.
58
precisam dormir cedo e accordar cedo, não só a bem de sua saúde e de seu
desenvolvimento physico como também por causa de seus estudos.”110
Essas disputas pelo controle dos divertimentos infantis estavam
vinculadas ao projeto de constituição da família nuclear moderna, em que a
criança foi escolhida como figura central. A mãe, principal responsável pela
educação dentro do lar, podia contar com os ensinamentos da puericultura,
da higiene mental e da pedagogia para ajudá-la no cumprimento da difícil
“missão” de formar os futuros dirigentes e os futuros trabalhadores
brasileiros.
Por meio da educação higiênica das crianças, médicos e educadores
objetivaram influenciar os pais e outros adultos para que mudassem seus
hábitos no intuito de “melhorar a vida individual e coletiva do futuro;
assegurar uma segunda geração melhor, e uma terceira geração ainda
melhor; uma nação e uma raça mais sadias e mais capazes.”111
A higienização da infância passaria pela transformação dos hábitos
cotidianos da família. As antigas práticas e os antigos cuidados ministrados
à criança foram combatidos e desqualificados como tradicionais e perigosos.
Também as formas de lazer e os divertimentos foram reformulados e
reinventados no processo de constituição de modos de viver urbanos,
higiênicos e moralizados.
Tais projeções da criança enquanto “futuro da Nação” evidenciaram a
percepção desta como “corpo produtivo”. A necessidade de trabalhadores
sadios no futuro juntou-se, também, à de caráter moral e preventivo; formar
espíritos dóceis e disciplinados; confinados em asilos, nas casas de
correção e nas escolas, longe do perigo da rua.
Maria A. de Castro, educadora sanitária, afirmava que a ignorância
era a maior aliada da mortalidade infantil, e a puericultura, o melhor meio de
combatê-la.112 Na Reforma Sanitária de 1925, conhecida como Reforma
Paula Souza, o ponto central foi a educação sanitária do indivíduo. O Centro
de Saúde Modelo da Capital ministrava conferências, exposições e
110 Idem, Ibidem. 111 A Educação da Saúde. Revista Escola Nova , op. cit., vol. 2, n. 1 e 2, p. 7, jan./fev. 1931. 112 O ensino de Puericultura nas Escolas e Agremiações Femininas. Revista da Educação , op. cit., vol. 4, p. 117, dez. 1933.
59
projeções de fitas cinematográficas com o propósito de educar as mães nos
preceitos da “boa higiene, nutrição e dietética.”113
Os discursos desses sujeitos sobre a infância trouxeram a imagem de
uma situação caótica e ameaçadora nos grandes centros urbanos,
projetando para o futuro a superação do “caos” e a instalação da harmonia e
da cooperação entre as classes. A experiência de viver na cidade, com a
multiplicidade e a imprevisibilidade, constituiu o presente como uma ameaça
constante e o passado identificado com atraso e ignorância; era um
fantasma a ser exorcizado.
Esse processo de exorcização do atraso e da ignorância produziu a
busca permanente do “moderno”114 que, enquanto “novo” e “revolucionário”,
podia ser vislumbrado no futuro promissor; enquanto sinônimo de
indisciplina, promiscuidade, perda de controle, representou o presente
caótico da vida urbana a ser equacionado. O cinema comercial, como
símbolo da tecnologia moderna, foi um exemplo da negatividade do
“moderno”, encarnando a liberalidade dos costumes, o incentivo ao vício, à
bebedeira e à dissolução da família.115
Para o reordenamento da vida urbana a partir da reconstituição da
família moderna, foi imprescindível promover a volta da mulher ao lar. Não
apenas porque a responsabilidade da educação dos filhos recaía sobre seus
ombros, mas porque sua “fragilidade de caráter” a tornava mais suscetível
aos estímulos negativos da vida nas cidades. Tais quais as crianças, ela
sofria a influência “nefasta do cinema, fazendo-se necessário protegê-la
desse ‘divertimento perigoso’”.
113 RIBEIRO, Maria Alice Rosa. História Sem Fim... Inventário da Saúde Pública de São Paulo (1880-1930). São Paulo: Unesp, 1993, p. 259. 114 No processo de fetichização da palavra “moderno”, foi introduzido “um novo sentido à história, alterando o vetor dinâmico do tempo que revela sua índole não a partir de algum ponto remoto no passado, mas de algum lugar no futuro.” SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole : São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 228. 115 Esse movimento em prol da moralização do cinema e em defesa das futuras gerações também pode ser observado no Rio Grande do Sul, onde foi criada, em 1934, a “Campanha Pelo Bom Cinema”. A Comissão Central da Campanha, com sede no Distrito Federal, elaborou, em 1936, uma mensagem pública, dirigida ao Presidente da República, pedido apoio. Uma das tarefas dessa Comissão consistiu na propaganda e na demonstração do cinema educativo. Cf. Cinearte , op. cit., p. 42 e 44, 15 mar. 1936.
60
Ao discutir a efervescência e o refluxo no universo feminino durante
os anos 1910, 1920 e 1930, ou seja, a liberação dos costumes e a posterior
contenção e o confinamento da mulher em espaços definidos, Reis116
levantou as opiniões divergentes sobre a influência do cinema no
comportamento feminino. Para alguns, o cinema era fator de liberação ao
apontar outras formas de ser mulher; outros o viram como “escola de
depravação de costumes.”117
O cinema, todavia, poderia passar de “liberador de costumes” a
“educativo”. Para o Dr. P. A. Nery Gonçalves, inspetor médico escolar de
São Paulo:
O cinema, como a radio-telephonia, será um dos maiores factores do progresso humano, se obedecer ao influxo dos são princípios da sciencia e da moral e, dentro ou fora das escolas, terá de prestar os mais assignalados serviços. Elle já é um precioso e incontestável instrumento de civilização e vai se tornando insubstituível como meio de vulgarização de todos os conhecimentos. Como médico e cultor que sou da pediatria, eu antevejo a sua efficiencia na educação das mães, dando-lhes lições, para assim dizer, vivas de puericultura.118
O cinema seria fator do progresso humano desde que estivesse sob a
orientação e a serviço da ciência e da moral. Seu alcance educativo deveria
extrapolar o mundo escolar e alcançar todos os habitantes da cidade, sendo
que nas famílias seria um colaborador precioso na educação das mães
dentro dos princípios da puericultura. O referido inspetor médico escolar
ressaltou sua convicção no cinema como “instrumento de maior valia na
educação” em palestra realizada no Rotary Club e irradiada no dia 30 de
janeiro de 1930 pela Rádio Educadora Paulista.
116 REIS, Maria Cândida Delgado. Tessitura de Destinos : mulher e educação, São Paulo 1910/20/30. São Paulo: Educ, 1993. 117 São interessantes, ainda, as críticas de Maria Lacerda de Moura, militante feminista, apontando para o processo de “deseducação da mulher” operado pelo cinema ao instituir o culto ao estrelismo. Essas críticas também mostram o preconceito que nutria pelo cinema, pois afirmava que os enredos cinematográficos só atraíam “a atenção da imaginação rocambolesca das mulheres, em geral, e dos medíocres...” (REIS, op. cit., p. 24). Ao analisar a influência do cinema no comportamento dos habitantes da cidade, Nicolau Sevcenko observou que o culto e a devoção aos “mitos” do cinema mostrava que “a mais revolucionária tecnologia se cruza e se ajusta circunstanciadamente com os legados simbólicos mais arcaicos.” (SEVCENKO, op. cit., p. 93). 118 GONÇALVES, P. A. Nery. A Educação pelo Cinema. Revista Educação , São Paulo, vol. 11, n. 2, p. 141.
61
Para as mulheres que povoavam as ruas e frequentavam
indiscriminadamente as sessões de cinema (com seus filhos ou
desacompanhadas), foram construídos discursos que buscaram atraí-las
para o espaço moralizado dos lares e escolas onde, submetidas aos saberes
médicos, receberiam ensinamentos fundamenteis para a proteção e o
cuidado das “futuras gerações”.
A representação da cidade como espaço nocivo à formação moral das
crianças, e do cinema como um fator de corrupção de suas populações,
congregou inúmeros intelectuais no esforço da implantação do “cinema
infantil”. No jornal O Estado de São Paulo, através da seção
“Cinematographos”, encontram-se debates acerca da censura
cinematográfica; notícias sobre sessões de cinema educativo; e as
iniciativas de associações culturais em prol do cinema para a infância.
Durante o ano de 1928, o jornal acompanhou o debate acerca da
frequência indiscriminada de menores nos teatros e cinemas.119 Em 1929,
há notícias sobre a censura nas cidades do interior de São Paulo, como, por
exemplo, Campinas.120 A partir de 1930, as realizações de entidades como o
Centro do Professorado Paulista121, da Sociedade de Educação122, do
Instituto de Educação123 e da Associação Brasileira de Cultura, na área do
cinema educativo, foram alvos de elogios por meio dos comentários de
vários intelectuais. Antonio Carlos Pacheco e Silva elogiou a criação do
cinema infantil pela Associação Brasileira de Cultura com argumentos de
higiene mental que, naquela época, estava em expansão:
119 “Os menores nos cinemas”, 4 jan. 1928, p. 6; “A frequência de menores nos theatros e cinemas”, 15 jan. 1928, p. 7; e “As crianças e o cinema”, 7 mar. 1928, p. 4 são artigos que chamaram a atenção das autoridades para a questão da censura às matinês infantis nos cinemas da capital e do interior de São Paulo. 120 “Censura cinematográfica”, 14 set. 1929, p. 10. 121 “O cinema educativo”, 14 abr. 1931, p. 6; notícia sobre a exibição de filmes educativos no CCP. Essa entidade foi fundada em 19 mar. 1930, destinada a congregar a classe do professor primário de São Paulo. 122 “Sociedade de Educação”, 20 nov. 1929, p. 7; sobre trabalhos realizados no Grupo Escolar Barra Funda: exibição de “films instrutivos” e aproximação de pais da escola. 123 “O Instituto de Educação”, 18 jul. 1930, p. 5. Essa entidade foi criada no início de 1930, “para maior e melhor cultura do professorado”, e entrou em entendimento com a Universidade de Harvard para exibir, periodicamente, filmes pedagógicos. As matrículas para os cursos do Instituto eram feitas no Lyceu Rio Branco e Mackenzie College.
62
A questão do cinema infantil começa finalmente, entre nós, a preocupar os responsáveis pela educação da juventude, empenhados em preservar as crianças dos ambientes nocivos à sua formação moral. A evolução social que se tem operado nestes últimos tempos, os modernos meios de propagação de ideias, a liberdade de costumes, são fatores que tem contribuído poderosamente para agravar o problema de assistência a menores; numa época em que a concorrência vital força os pais a se descurarem da educação dos filhos obrigado o Estado a tomar medidas de caráter coletivo.124
Ao fazer essa leitura da realidade urbana, Pacheco e Silva apontou
para a questão da assistência aos menores e a preocupação em “preservar
as crianças dos ambientes nocivos”. Com referência aos pais das classes
trabalhadoras, que por circunstância da “concorrência vital” eram obrigados
a abandonarem a educação dos filhos, delegou ao Estado o direito de
“educar” esses menores, confinando-os em espaços higiênicos e
moralizados, já que viviam abandonados, suscetíveis a todo tipo de vício
existente nas ruas, agravando “a questão social”.
No intuito de continuar a enumeração dos fatores que influenciavam
negativamente o meio social, Pacheco e Silva observou que a luta pela
sobrevivência forçava homens e mulheres, que compunham a pobreza
urbana, a abandonarem a educação de seus filhos, deixando-os à mercê
dos mais variados “fatores modernos de corrupção” dos costumes. Um
desses fatores era, evidentemente, o cinema. Para esse higienista mental:
As pellículas de enredos empolgantes são profundamente prejudiciaes aos menores... A força muscular, medida pelo dinamômetro, diminue consideravelmente, os tremores se acentuam, a curva de atenção baixa sensivelmente, os reflexos se mostram mais exaltados e as crianças acordam no dia seguinte, abatidas e fatigadas, sobretudo quando prolongam em sonho o espetáculo luminoso.125
Essa constatação, feita a partir dos princípios e avanços da tecnologia
para medir, observar e analisar, revela todo um esforço de qualificação
sociológica que marcou a época. Essas reações captadas pelo dinamômetro
eram a prova definitiva de que o cinema podia levar as crianças
124 PACHECO E SILVA, Antonio Carlos. O Cinema Infantil. O Estado de São Paulo , 2 maio 1931, p. 4. 125 Idem, ibidem.
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“impressionáveis” e “nevropatas” à delinquência moral e à criminalidade.
Contra esse fato, as leis eram “impotentes”; por conseguinte, só a seleção e
a transformação desse divertimento trariam bons resultados. Essa tarefa
deveria ficar nas mãos de psiquiatras, sociólogos e educadores guiados
pelos “princípios básicos da higiene mental infantil” como Pacheco e Silva,
exemplo de cientista competente.
Diretor do Juquery, fundador da Liga Brasileira e da Liga Paulista de
Higiene Mental, fundador do Instituto de Organização Racional do Trabalho
(IDORT) e deputado constituinte de 1934, colaborou
[...] decisivamente para fixar o perfil do Estado enquanto implementador de políticas de higiene e saúde que incluam a coordenação dos serviços sociais, o estímulo à educação eugênica, a “proteção” da juventude contra o “abandono físico, moral e intelectual”, a adoção de medidas de higiene social, a responsabilidade direta pelas tarefas da higiene mental.126
Médicos e alienistas, agora voltados para o meio social127,
esquadrinharam o cotidiano das cidades para conhecer seus usos,
costumes, suas condições de vida, práticas culturais e sociais, construindo
saberes e técnicas de intervenção sobre essa realidade; técnicas revestidas
da neutralidade científica e legitimadas pela competência e pelo saber dos
cientistas.
As Ligas de Higiene Mental, assim como as Associações Civis e
Profissionais, concentraram esforços em torno da higienização e
moralização social. As iniciativas da Sociedade de Educação, da Associação
Brasileira de Cultura e do Centro do Professorado Paulista pelo cinema
educativo e pela censura cinematográfica continham essa perspectiva.
Instituir mecanismos de disciplinarização dos costumes e formas de lazer foi
126 Sobre sua atuação no Idort, ver: ANTONACCI, op. cit. Sobre sua atuação no campo da psiquiatria, ver: CUNHA, op. cit., p. 191-192. 127 Nos anos 1920 e 1930, a Higiene Mental procurou equacionar os problemas da origem social da loucura. Para tanto, voltou seus olhares para o “meio social”, entendido como perturbador mental dos indivíduos, indicando tarefas e métodos para a normatização e o controle desse meio. Os indivíduos e toda a série de problemas mentais e manifestações da loucura deixaram de ser os alvos centrais para o saber médico. Isolar os loucos nos asilos para o tratamento e a cura foi uma proposta abandonada, pois a loucura passou a significar apenas o estado terminal de uma série de perturbações que tinham origem hereditária, mas também eram desencadeadas pelos meios físico e social.
64
entendido como uma medida preventiva a favor das “futuras gerações” que,
evidentemente, seriam melhores do que aquela com a qual conviviam e que
tanto os indignavam. Nessa luta pela mudança dos hábitos e costumes do
homem urbano, o cinema foi transformado em cinema educativo, sendo
projetado como um aliado importante no processo de instituição de novas
práticas culturais na sociedade.
Os sujeitos empenhados nesses processos de transformação de
modos de viver e de práticas culturais acompanharam, atentos, as ações
promovidas nesse sentido no mundo inteiro. Por meio das páginas da revista
Cinearte foi possível seguir as discussões travadas no IV Congresso
Internacional de Educação Moral, realizado na cidade de Roma em 1926.
Nesse evento, foi debatida a questão da moralização da humanidade sob a
perspectiva da instituição de um código universal de moral, merecendo
destaque a “questão cinematográfica”. O valor “instrutivo” e “moralizador” do
cinema foi louvado, enquanto o “cinema corruptor” e sua “influência nefasta”
sobre a “moralidade pública” foi, inversamente, condenado.
Angélica Ch. de Patterson, representante do Panamá, esclareceu que
“as crianças e o povo ignorante” são mais suscetíveis às impressões
causadas pelo cinema, pois sua “simplicidade de espírito” impedia que
discernissem entre o bem e o mal, ficando expostos a toda sorte de vícios e
maus exemplos que povoavam as telas dos cinemas no mundo inteiro. Em
contrapartida, informava que os Estados Unidos e a Itália, por exemplo,
converteram a “machina cinematográfica no mais importante vehiculo para
levar ás jovens mentalidades dos estudantes, os conhecimentos precisos e
os últimos methodos de fabricação que prevalecem nas indústrias...”128
Mas foi no campo da educação moral que Patterson forneceu
detalhes interessantes sobre o valor “instrutivo” do cinema e seu papel de
destaque dentro do ambicioso projeto de criação de uma moral universal. As
películas com fins morais que exagerassem os terríveis resultados da
embriaguez e de outros vícios igualmente odiosos; que ensinassem
“cientificamente” os prejuízos causados aos filhos de pais alcoólatras; e
demonstrassem os benefícios da saúde, do amor, da paz mo lar e da retidão
128 Cinearte , Rio de Janeiro, p. 3 e 33, 19 jan. 1927.
65
do caráter seriam importantes para a construção do “homem moral” que
idealizavam naquele momento.
A cinematografia foi encarada como meio mais eficaz que a
propaganda oratória e a impressa, principalmente sobre as crianças e as
comunidades rurais. Pensados como “sujeitos simples” e facilmente
impressionáveis, seriam os primeiros grupos sobre os quais a ação
moralizadora do cinema alcançaria melhores resultados.129
A fala da representante do Panamá é interessante pelo fato de
apontar questões também debatidas em torno do cinema do Brasil,
especialmente no Rio de Janeiro em São Paulo. A cobertura do Congresso
pela revista Cinearte tinha como objetivo chamar a atenção do seu público
para o debate acerca da censura cinematográfica, apontando as discussões
e realizações na área do cinema educativo em diferentes países, mostrando
o valor e a importância dessa “maravilhosa invenção” até mesmo no
combate ao êxodo rural.
Nas páginas da revista acompanha-se a projeção do campo como
local onde imperava o atraso e a ignorância, constituindo populações rurais,
seus hábitos, costumes e modos de trabalhar como um entrave no
desenvolvimento nacional: “Toda a gente diz, nas camaras e na imprensa,
nas sociedades de agricultura e outras, nos congressos, em toda a parte,
que nós só não produzimos porque o nosso lavrador ignora processos
científicos de tratar a terra.”130
Dessa maneira, em torno do cinema também foi produzido um
discurso que imputou, ao trabalhador rural e suas práticas, a
responsabilidade pelas mazelas que o vitimava e, principalmente,
comprometia o desenvolvimento do país e a vida nos grandes centros
urbanos.
Para a transformação dos modos de trabalho no campo, o cinema
educativo foi proposto como um auxiliar valioso da propaganda e do ensino
129 Patterson observou que as cidades cresciam e se povoavam de indivíduos provenientes dos campos próximos, fazendo-se necessário educar e moralizar essa massa camponesa de “espírito simples” constituinte de centros urbanos populosos, desordenados, caóticos. Em relação às crianças – futuros homens do país e dirigentes do povo –, ponderou sobre a necessidade de seu desenvolvimento se realizar num ambiente moralizador. Idem, ibidem. 130 Cinearte , op. cit., p. 3, 27 abr. 1927.
66
rural.131 Os filmes de propaganda agrícola deveriam exaltar “os processos
científicos de trabalhar a terra”, convencendo os trabalhadores rurais a
abandonarem os “processos coloniais” que aprenderam com seus avós.
Podiam, ainda, resolver o problema da falta de escolas e de professores,
pois “num país como o nosso povoado por 40 milhões, onde só a ínfima
minoria, concentrada nas grandes cidades, está alphabetisada, o cinema é
para nós um grande recurso educativo de que podem lançar mão as
autoridades.”132 Esse recurso seria vital, pois “o lavrador mais rude, mais
inculto, no film aprende o que nunca conseguiriam lhe ensinar as dezenas
de professores ambulantes entretidos pelas verbas que escorrem do
Thesouro Nacional e dos Thesouros estadoaes.”133
Os camponeses que trabalhavam a terra como “nossos avós tupis,
antes da chegada de Cabral ou a feição dos lavradores do Minho ou do
Alemtejo”, desconhecendo os processos modernos da agricultura, deixavam
de retirar da terra toda a riqueza que ela podia produzir e,
consequentemente, negavam o bem-estar e a prosperidade ao país. Para
educá-los, os processos de educação intuitiva das lições práticas dos filmes
que ensinassem os processos de criação de animais, os métodos de
fabricação de laticínios, de conservas etc. foram considerados os mais
eficazes.
A partir dessas representações, sujeitos urbanos construíram imagens
da cidade em oposição ao campo, projetando a primeira como lugar da
modernidade e o cinema educativo como instrumento civilizatório por
excelência. Nessa luta pela reconstituição dos modos de viver, do horizonte
da cidade foram erigidos projetos de intervenção na vida do campo,
131 Sobre tensões e disputas em torno de propostas para o ensino rural no período, ver: DUARTE, Geni Rosa. Rumo ao Campo . A Civilização pela Escola. São Paulo, 1910/20/30. Dissertação de Mestrado (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), 1995. 132 Cinearte , idem, p. 3, 15 fev. 1933. 133 A educação pelas imagens também seria uma solução para a “desqualificação profissional” dos que se aventuravam a trabalhar como professores ambulantes: “E à míngua de professores ambulantes, nem sempre capazez, que busquem ensinar nosso lavrador pelo film, levando as sábias prelecções de um profissional de verdade acompanhado da visão de detalhes que ajudam as palavras a penetrar nos entendimentos mais rudes.” Idem, p. 3, 27 abr. 1927.
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acompanhando, atentos, o uso do cinema educativo rural na França, nos
EUA, na Alemanha, na URSS e na Itália.134
Percebe-se que, ao lado da projeção do campo enquanto sinônimo de
atraso, representações o constituíram como local do paraíso idílico em
oposição à cidade da perdição. Tais representações não são
necessariamente contraditórias, uma vez que tentaram resolver o “caos
urbano” agravado pelo êxodo rural.
O jornalista R. Fernandes e Silva, em artigo reproduzido por Cinearte,
informou que a primeira tentativa para a produção de sobre agricultura no
Brasil datava de 1928. O ministro Lyra Castro mandou confeccionar oito
filmes, sob a direção do Museu Comercial, que chegaram a figurar na
Exposição de Sevilha. Ainda segundo ele, o Ministério da Agricultura, em
1934, graças “à boa vontade e ao interesse” dos ministros Juarez Távora e
Odilon Braga, já havia confeccionado o primeiro filme da séria agropecuária
e suas indústrias derivadas.
O cinema como propaganda da vida rural interessou diretamente aos
grandes proprietários de terra. Vivendo sob a perspectiva da permanente
crise da falta de mão de obra nas suas terras, fazendeiros paulistas viram
com maus olhos o crescimento e o enorme poder de atração populacional da
cidade.135
Para fazer a propaganda do campo, de suas propriedades e atrair
braços disciplinados para a lavoura, os fazendeiros encomendavam filmes
retratando a vida nas fazendas, os quais eram exibidos com certa
regularidade nos cinemas da capital. Em 1904, um filme sobre a Sociedade
Paulista de Agricultura apresentando fazendas de café, culturas diversas,
paisagens de colônias e plantações de algodão foi exibido no Jardim da Luz
134 No I Congresso Internacional de Cinematografia Educativa e de Ensino, realizado em abril de 1934 na cidade de Roma, foram tiradas conclusões sobre o uso do cinema aplicado ao ensino rural. A primeira delas referia-se ao emprego do cinema para combater o êxodo rural, mostrando que as condições de vida no campo poderiam ser melhoradas, desde que fossem transformados os professos de trabalho dominantes. Concluíram, também, que o cinema rural seria um instrumento eficaz para “elevar a cultura e modificar os hábitos obreiros do campo”, evitando exibições de filmes que pudessem despertar, entre as populações rurais, o abandono de seus afazeres, da “vida pura e simples do campo, pelas exagerações do luxo, dos vícios e do relaxamento dos costumes, que há nas grandes cidades.” CInearte , 1º nov. 1934, p. 6. 135 SEVCENKO, Nicolau, op. cit., p. 127.
68
e, durante o ano de 1911, foram exibidos, no cinema Radium, os filmes
Propaganda do Café I, II, III e IV, encomendados pelo Governo do Estado
para servir de propaganda do café no exterior.136
O “citadismo” era um mal que precisava ser combatido, na opinião de
Fernando Magalhães, médico carioca e líder católico na ABE. Para ele, a
agitação urbana, representada especialmente pelas greves operárias,
caracterizava o imigrante como presença indesejável a “fermentar de
anarquia o caráter nacional.”137
O imigrante perdera o signo da operosidade e da disciplina. A
perspectiva moralizadora, que viu nele a possibilidade de acabar com a
vadiagem nacional, caiu por terra diante das constantes greves e de outras
formas de insubordinação na cidade e no campo.
O cinema educativo rural podia combater esse perigo ameaçador,
forjando a nação e o trabalhador nacional ideal. Ao acompanhar as
discussões e as experiências com o cinema educativo nos diferentes países,
intelectuais brasileiros estavam atentos para os problemas nacionais. A
apologia dos novos processos de ensino, principalmente o cinema aplicado
à educação, não resultava propriamente “de descobertas pedagógicas, mas
de necessidades sociais inelutáveis.”138 Essas “necessidades sociais” diziam
respeito à organização do trabalho num momento de reorganização e
redefinição das práticas de dominação social139 e dos modos de viver
urbanos.
A redefinição dos costumes e das culturas populares passou a ser
pensada como um processo de construção da nacionalidade. Sob essa
bandeira, as culturas e as diferenças foram combatidas. Sendo assim, o
cinema educativo foi mais que uma renovação nos processos de ensino e
136 BERNADET, Jean Claude. Filmografia do Cinema Brasileiro, 1900-1935 . Jornal O Estado de São Paulo. São Paulo: Secretaria da Cultura, Comissão de Cinema, 1979, 1904-1, 1911-3. 137 “Parecia o Brasil pagar duramente o pecado da escravidão prolongada. Ao cabo de quase 50 anos, permanece a preocupação angustiosa pelo destino da massa popular, núcleo da nacionalidade e da democracia, incapaz de servir as suas responsabilidades e arriscada de se falsificar as correntes imigratórias fermentadas de disciplina.” In: A Escola Regional. Rio de Janeiro: Biblioteca da ABE/Imprensa Nacional, 1931 apud CARVALHO, Marta Chagas de., idem, p. 12. 138 BONFIM, Manoel. Crítica da Escola Activa. A Academia , Rio de Janeiro, p. 47, 1929. 139 ANTONACCI, Maria Antonieta M. A Vitória da Razão? . op. cit.
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aprendizado, mais que um novo método e ensino ou simples cópia de
procedimentos estrangeiros avançados para o estágio de desenvolvimento
brasileiro.140 Foi construído como um instrumento para enfrentar as questões
sociais desse momento histórico e, para os agentes sociais que tomaram a
cidade e as suas relações como um problema a ser equacionado, esse
recurso pedagógico ou de propaganda – muitas vezes o segundo sentido foi
tomado como o primeiro – foi estratégico para a moralização dos hábitos
urbanos.
2.2 Os escolanovistas e o Cinema Educativo O movimento educacional escolanovista dos anos 1920/30 projetou a
Reconstrução Educacional por meio da regeneração dos costumes pela
educação. Propôs a administração científica do trabalho escolar e do
trabalho fabril utilizando os saberes da psicologia, biologia, pedagogia e
higiene para a construção de um trabalhador nacional produtivo, articulando
a escola ao moderno mundo fabril.141
Os educadores empenhados em introduzir, nos meios pedagógicos,
os princípios da “Escola Nova”, viram o cinema educativo como um antídoto
ao cinema comercial e, sobretudo, um simplificador do processo pedagógico,
possibilitando a aprendizagem rápida sem demandar muito esforço mental
por parte do aluno.
Ao trabalhar com os pressupostos da educação intuitiva, os
educadores defenderam que as noções deveriam penetrar no “espírito do
aluno” pelos canais da percepção sensível. Quanto mais viva fosse a
imagem sensorial, mais facilmente seria evocada a lembrança das pessoas
e das coisas que essa imagem representava.
O cinema, em particular, foi considerado um processo de percepção
artificial, uma reprodução do objetivo real que possuía a vantagem de
facilitar o ensino, suprimindo as perdas de tempo e esforço. Segundo Canuto 140 Nessa perspectiva, ver: FRANCO, Marília da Silva. Escola Audiovisual . Tese de Doutorado (Universidade de São Paulo), 1987, mimeo. 141 O projeto de pesquisa Trabalho, Cultura, Educação: dimensões dos conflitos sociais em São Paulo nas décadas 1920/30, já mencionado, procurou apreender conexões históricas entre trabalho e educação a partir de conflitos na sociedade paulista.
70
de Almeida, o cinema “domina o tempo e o espaço, o movimento e a
extensão. Sabe concentrar doze horas num minuto com a mesma perícia
com que extende um século num dia.”142 Qual seria, então, o pressuposto
básico do ensino intuitivo artificial? Apresentar o conteúdo a ser estudado no
seu conjunto, ressaltando apenas o elemento mais importante e eliminando
os fatos considerados secundários.143
O cinema educativo deveria pôr em relevo o elemento importante e
afastar (ou eliminar) o resto, sendo um reeducador das maneiras de ver e
sentir, atuando alternadamente sobre o coração e sobre o intelecto da
criança. Às imagens moventes cabia o “grande milagre” que consistia em
“instruir divertindo, e suscitar nas creanças um interesse extraordinário,
absolutamente novo, para os problemas da cultura e da sciencia.”144
Na tese O filme educativo no ensino de Geografia, apresentada no V
Congresso de Educação em 1934, o professor Francisco Venâncio Filho,
membro da ABE, rebateu as acusações feitas ao cinema educativo:
[...] a visão cinematographica evita o esforço da intelligencia; oblitera a percepção pela fascinação que exerce, é espectatico para illetrados, torna a realidade dispersa e fraca pela concentração que obtem da realidade, falseado a noção de tempo; enfraquece a capacidade de abstracção, abaixando o nível intellectual.”145
Sua argumentação insistiu no fato de que o homem não poderia
deixar de aproveitar um fator de educação, de conhecimentos e de cultura
que, sobretudo, “civiliza”, “aproxima” e “humaniza”. Continuou sua defesa
lembrando que, no mundo moderno, o homem tem de acelerar o seu
“aparelhamento” para viver a vida áspera e forte do seu tempo e, quanto
mais fáceis fossem os meios de adquirir a massa crescente de informações
e noções, tanto melhor seria. Se o cinema economizava o esforço da
142 ALMEIDA, J. C. Mendes de. O Cinema na Educação. Revista Escola Nova , op. cit., v. 3, n. 3, p. 187, jul. 1931. 143 BARRETO FILHO, Sérgio. Cinema Educativo. Cinearte , op. cit., p. 32. 144 BARRETO FILHO, Sérgio. Cinema Educativo. Revista Cinearte , op. cit., p. 29, 24 fev. 1932. 145 VENÂNCIO FILHO, Francisco. O Film educativo no ensino de Geografia. Revista Cinearte , op. cit., p. 9, 15 abr. 1934.
71
inteligência, fascinava e instruía sem letras, mais completo e vigoroso seria
seu efeito pedagógico.
Sobre a necessidade de “economizar esforços” e “acelerar o aparelho
humano”, as considerações de Thompson sobre o tempo enquanto
construção sociocultural são esclarecedoras. Ao apontar, na passagem do
tempo da natureza para o tempo do relógio, as transformações profundas
nos modos de vida por meio da introdução do trabalho assalariado e do
consequente controle exercido pelo capitalista, ele ressaltou que “o que
pontifica é o valor do tempo reduzido a dinheiro. O tempo torna-se dinheiro –
não passa, gasta-se.”146
Essas ponderações ajudam a pensar sobre o processo de redefinição
das relações socioculturais do período estudado, em que um imenso esforço
de racionalização dos processos de trabalho fabril e escolar foi empreendido
por educadores, empresários, médicos e outros interventores sociais –
processo que implicou mudanças nos modos de trabalhar e na valorização
do tempo como um bem precioso que deveria ser “utilizado” sem
desperdícios.
A “vida áspera” nas cidades criou uma nova equação de valores em
que a ação tomou o lugar da consciência reflexiva. O ritmo da vida urbana
demandava o recondicionamento dos corpos e exigia que os indivíduos se
adaptassem aos novos estímulos provocados pelo advento das modernas
tecnologias, sem que pudessem refletir ou resistir a elas. Nesse processo, o
cinema constituiu-se em linguagem fundamental para o ajustamento do
homem à máquina, construindo uma nova percepção do tempo e, com ela,
novas formas de trabalhar e viver nas cidades.
Sobre o “sentido do cinema” no mundo moderno, vale lembrar as
considerações de Benjamin:
O filme serve para exercitar o homem nas nova percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações urbanas – é essa
146 THOMPSON, E. P. O Tempo, a Disciplina do Trabalho e o Capitalismo Industrial. In: SILVA, Tomaz T. (org.). Trabalho, Educação e Prática Social . Pará: Artes Médicas, 1991, p. 49.
72
a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido.147
Nessa direção, o cinema educativo foi concebido como uma
ferramenta para introduzir na escola e na sociedade os princípios do
trabalho racional, desenvolvendo hábitos e habilidades exigidos pelas novas
tecnologias.
Na luta pela instrumentalização das imagens, os escolanovistas
atuantes nas associações profissionais utilizaram os espaços das
Conferências Nacionais de Educação, das revistas de educação e da
imprensa, assim como o poder dos cargos que ocuparam no Estado,
principalmente após 1930, para a criação do cinema subordinado aos
princípios da Escola Nova.
Lourenço Filho foi um dos educadores que usou todo seu prestígio e
conhecimento na instituição do cinema educativo em São Paulo. Muitas
decisões realizadas na Reforma de 1931, no ensino paulista, foram
veiculadas e se consolidaram por meio da revista Escola Nova, periódico
publicado por sua administração destinado ao professor, e que substituía a
publicação anterior da Diretoria-Geral da Instrução Pública de São Paulo.148
Ao equacionar o problema moral como um problema educacional e
social, e o problema social como um trabalho de adaptação biológico-social
a ser realizado pela psicologia, argumentava-se, em 1928, que tanto o
cinema comercial, como o cinema educativo, prejudicavam o
desenvolvimento psíquico da criança. O primeiro deveria ser fiscalizado e
censurado, enquanto que o segundo, usado com moderação e
acompanhado por explicações complementares que organizassem a
147 BENJAMIN, Walter. A obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técn ica , op. cit., p. 174. 148 Escola Nova substituiu a revista Educação, publicação da Diretoria-Geral de Instrução Pública e da Sociedade de Educação. Seu primeiro número data de outubro de 1930, e o último, de julho de 1931, quando voltou a chamar-se Educação. Seus exemplares foram dedicados aos temas: “Escola Nova”, ”Programas Escolares”, “Saúde”, “Iniciação aos Estudos dos Testes”, “O Problema da Orientação Profissional” e “Cinema Educativo”. Sobre a finalidade da revista, Cecília Mate observou que esse periódico circulou entre os professores, promovendo uma concepção de “Escola Nova” que então se oficializava. Cf. MATE, Cecília Hanna. Dimensões da Educação Paulista nos Anos 20 : inquirindo, reformando,legitimando uma escola nova. Dissertação de Mestrado (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), 1991, p. 70.
73
percepção dos alunos sem deixar qualquer margem para interpretações
livres.149
Suas afirmações estavam baseadas num inquérito150 que realizou em
1920 com 424 crianças – meninos e meninas de 10 a 15 anos – da Escola
Normal da Capital, em que foi “verificada” a má influência do cinema na
formação mental das crianças. No inquérito, o tema proposto para o trabalho
escrito foi “Que fitas você aprecia mais: as cômicas ou as dramáticas? Por
quê?”. Observou-se que os alunos normalmente não escreviam mais que
trinta linhas, mas alguns escreveram até oitenta linhas sobre esse tema151, o
que demonstrava o espaço ocupado pelo cinema na imaginação da criança:
Pois, a influencia do cinema sobre seu funccionamento é bastante característico: Ella revela nos allunos das nossas escolas, grandes freqüentadores de cinema, uma predominância do sensacionalismo em que é fértil o filme, com a exploração da publicidade do crime, das perversões sociais e moraes.152
Ao acreditar que a imaginação igualava as representações à
realidade, temia que meninos e meninas prolongassem em vida as fantasias
e alucinações provocadas pelo cinema, levando-as ao delito e ao crime. Mas
em 1931, como diretor da Instrução Pública de São Paulo, Lourenço Filho foi
um entusiasta fervoroso do cinema educativo, sem deixar, evidentemente,
de fazer restrições ao “mau cinema”. Este, ao lado das Associações de Pais
e Mestres e das Bibliotecas Escolares, foi projetado como uma instituição
destinada a mudar os rumos da educação, pois após a fase puramente
comercial em que explorava “os sentimentos menos delicados da turba”, 149 LOURENÇO FILHO, M. B. A moral no theatro, principalmente no cinematógrafo. Revista Educação , op. cit., vol. 2, n. 3, p. 227-234, 1928. 150 Na década de 1920, foi comum a prática dos inquéritos. Essa forma de intervenção social estava revestida da neutralidade e objetividade dos métodos científicos, que consistiam na observação e classificação de dados, além da legitimação dos resultados como verdades incontestáveis. Sobre a prática dos inquéritos, ver: REIS, Maria Cândida Delgado, op. cit., p. 56-57. 151 Com a finalidade de comprovar suas teorias, Lourenço Filho reproduziu algumas respostas dos alunos: “A. C. 12 (annos): ‘Gosto dos transes perigosos, porque me commovem muito; causam-me grandes aflições e um desejo de saber o fim, etc.’”, “L. B. (12 annos) ‘A noite em que eu vou ao cinema, passo em claro, com medo dos ladrões e dos bandidos das fitas...’”, “O. M. A. (13 annos) ‘Gosto das dramaticas, daquellas em que ha luctas, tiros, correrias a cavallo, e um assumpto em que entra em todas as fitas dramaticas: o amor’”. LOURENÇO FILHO. A Moral no Theatro, Principalmente no Cinematograph o, op. cit., p. 231-232. 152 LOURENÇO FILHO, M. B., idem, p. 232.
74
provocando distúrbios mentais e psicoses, o cinema converteu-se em
instrumento de educação.
Com vistas a demonstrar as possibilidades de utilização das imagens
moventes no ensino de história, geografia e higiene, Lourenço Filho
ressaltou que o cinema escolar podia amenizar os efeitos do cinema comum
sobre a criança, dando sugestões morais e estéticas, corrigindo as maneiras
e apresentando novas formas de trabalho, despertando tendências
profissionais desconhecidas. Ao afirmar que, mal lançada a ideia de cinema
educativo, cinquenta estabelecimentos de ensino adquiriram os seus
aparelhos – contando a Filmoteca Central da Diretoria-Geral de Ensino com
dezenas de películas – concluiu:
Ao lado de todos os benefícios de instrucção e educação, o germezinho do cinema educativo, já vitorioso, está contribuindo, em muito também para a obra do cooperativismo escolar e para a maior projeção social da escola. Da meia centena de apparelhos adquiridos, quatro apenas não o foram por cooperativismo. E o cinema recreativo, que está calculadamente precedendo ao cinema estrictamente educativo, aproxima os paes das mesmas classes em que os filhos estudam, e, divertindo-os, fal-os melhor conhecer a escola, que assim mais estimarão e estarão promptos a defender.153
No esforço de Reconstrução Educacional, os educadores que
estavam dentro do Estado após 1930 buscaram atrair pais e alunos para a
causa da educação; sem eles, o esforço para a projeção social da escola
não seria logrado. Para os redatores da Cinearte, defensores incansáveis do
cinema, este poderia, inclusive, substituir professores:
Isso de pessoas habituadas a dar taramela o dia inteiro, a propósito de tudo e mesmo sem propósito nenhum, serem obrigadas a calar a boca substituídas por um apparelho de projectar imagens, estupidamente mecanisado, constitue na verdade grave attendado ás faculdades oratórias de uns tantos pedagogos.154
Essa fala, extremamente autoritária e violenta, não difere muito das
imagens veiculadas nos órgãos de imprensa atuais, que se apresentam
153 LOURENÇO FILHO, M. B. O Cinema na Escola. Revista Escola Nova , op. cit., vol. 3, n. 3, julho de 1931, p. 143. 154 Cinearte , Rio de Janeiro, p. 3, 12 jun. 1929.
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como ônus para o estado e mão de obra desqualificada. Mas a violência
dessa fala aponta a resistência de professores à implantação do cinema
educativo. Medo de serem substituídos pela máquina? Desconfiança em
relação às soluções milagrosas que propunham amenizar, ou mesmo
eliminar o trabalho duro que enfrentavam todos os dias nas salas de aula?
Obviamente, os intelectuais “mais esclarecidos” encararam essa resistência
como mais um sintoma da “ignorância” desses professores.
Ao retomar as reflexões sobre a atuação da Diretoria-Geral de Ensino
de São Paulo, na área do cinema educativo, será analisado o relatório do
professor Luiz Mello, chefe do Serviço de Cinema. Em 1938, a filmoteca
contava com filmes americanos e 37 títulos nacionais produzidos pela
própria Diretoria, além de um laboratório funcionando para conserto,
filmagens, confecção de letreiros, contendo câmaras e um gerador elétrico
automático destinado a mover os projetores em lugares onde não havia
energia elétrica etc.155 Sobre o funcionamento desse laboratório, Antonacci
observou que, em função do cinema educativo
[...] colocaram-se em circulação, nos espaços escolares, equipamentos que potencializaram o reaproveitamento de filmes abandonados pelos circuitos de mercado, o conhecimento e manejo destes maquinismos, sem contar na possibilidade da chegada destes recursos a regiões inacessíveis mesmo para a luz elétrica.156
Nesse documento, Mello relatou as experiências que envolveram o
cinema educativo a partir de sua implantação, em 1931, na gestão Lourenço
Filho. Foram ministradas 140 aulas-modelos para os terceiros e quartos
anos, durante 1936 e 1937, utilizando-se o processo de explicação antes e
durante o filme, sendo que, após o término, os alunos faziam trabalhos
escritos expondo o que assistiram.
Entretanto, para o diretor de Ensino em 1938, Joaquim Alvares Cruz,
esse detalhamento das atividades do cinema educativo tinha a intenção de
155 MELLO, Luiz de. Relatório à Diretoria de Ensino de São Paulo . CPDOC, GC 38.00.00/1, p. 10, 1938. 156 ANTONACCI, Maria A. M. Trabalho, cultura, educação: Escola Nova e Cinema Educativo nos anos 1920/30. Projeto História – revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP, São Paulo, Educ, n. 10, p. 163, 1993.
76
convencê-lo da importância do serviço. Percebe-se que a continuidade (ou
não) dessa iniciativa dependeu do interesse pessoal de cada um dos
inúmeros diretores que ocuparam esse departamento após a saída de
Lourenço Filho.
Além das queixas referentes à pouca verba destinada ao setor, o
professor Luiz Mello insistia nas qualidades e vantagens do ensino pelo
cinema, ressaltando que em todo o Estado havia 82 aparelhos de projeção
adquiridos por meio de sessões recreativas de cinema.
Nessas sessões recreativas eram projetados desenhos animados e
comédias, ou seja, fitas consideradas menos prejudiciais ao
desenvolvimento infantil, desde que exibidas em ambiente escolar. Para as
140 aulas dadas, foram realizadas 570 sessões recreativas nos grupos
escolares do Estado, indicando que o relativo sucesso do cinema educativo
nas escolas paulistas esteve ligado ao uso do cinema comum, tão
duramente criticado pelos educadores.
Ao final desse detalhado relatório, Mello fez sugestões que indicaram
os sentidos e usos atribuídos ao cinema educativo. Tal recurso poderia ser a
exposição metódica de assuntos instrutivos – como os filmes Respiração,
Ciclos da água, Circulação do sangue –, ou instrutivos e educativos, como
os filmes de geografia e história, que possibilitariam “às nossas crianças
melhor conhecimento da nossa terra” e da “nossa história”, como, por
exemplo, Aspectos das cidades da Bahia, Pernambuco, Espírito Santo e Rio
de Janeiro, Aspectos de São Paulo, 7 de Setembro – Aspectos da
comemoração da data. Desfiles das Forças Armadas de São Paulo (Exército
e Força Pública) etc.
Ao indicar que a educação, nesse momento, significou “mostrar o
Brasil aos brasileiros”, dever-se-ia moralizar e nacionalizar os costumes dos
diferentes sujeitos sociais que compunham a população brasileira utilizando
variados recursos para esse fim.157
157 Tem-se conhecimento da existência de latas de filmes espalhadas pelas escolas públicas estaduais, sendo que, na década de 1970, a Coordenadoria de Ensino e Normas Pedagógicas de São Paulo encomendou pesquisa sobre a existência de projetores 16 mm nas escolas paulistas, constatando a existência de inúmeros aparelhos abandonados. Um trabalho de recuperação desses equipamentos abriria possibilidades de diálogo com experiências pedagógicas que problematizaram o uso de recursos audiovisuais na
77
Fernando de Azevedo, outro promotor dos recursos audiovisuais na
educação, ao manifestar preocupação com o ensino primário, incluiu entre
os itens que compuseram o inquérito sobre a Instrução Pública, realizado em
1926 a pedido do jornal O Estado de São Paulo, as seguintes questões:
“Qual o verdadeiro papel que deve caber à escola primária na formação do
caráter nacional”; “não acha que o Estado de São Paulo não poderá
resolver, de maneira intensiva e extensiva, o problema da educação popular,
sem pôr a serviço dessa obra os grandes recursos modernos como o cinema
e o rádio?”158
Em 1930, no artigo A arte Como Instrumento de Educação Popular na
Reforma, Azevedo explicitou como os modernos recursos de educação
poderiam ser utilizados no processo de constituição da nacionalidade:
O povo requer personagens e heroes nos quaes symboliza qualidades e tendências que lhe são caras. Toma por isto, da realidade, um personagem quasi sempre medíocre, e o transforma em heroe, em archetypo da nacionalidade... é assim que, para formação do espírito nacional, a arte pode concorrer mais do que a própria história.159
Mais uma vez se depara com a imagem do “povo” inculto, “simples de
espírito”, a demandar educação e conformação das “elites esclarecidas”. No
processo de constituição de personagens e arquétipos da nacionalidade, a
arte teria função de criar uma história e uma memória nacional, moldando o
homem brasileiro por meio de recursos como o cinema e o rádio:
Para que se realise, porém, esse objetivo de aproveitar as artes na sua função social, e pôl-as a serviço da educação é preciso começar, appellando para o cinema e para o rádio, pelas artes populares, que sendo mais próximas das crianças e ao alcance de sua mentalidade, lhes tocam mais profundamente a sensibilidade e lhes falam mais directamente ao coração.160
educação paulista do período. Essas informações foram apresentadas pela professora Marília da Silva Franco em palestra realizada na Coordenadoria de Gestão da Educação Básica de São Paulo (CENP) sobre o tema “Cinema e Educação” em 23 set. 1992. 158 AZEVEDO, Fernando de. A Educação na Encruzilhada . Problemas e Discussões. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1960, p. 41. 159 AZEVEDO, Fernando de. A Arte como Instrumento de Educação Popular na Reforma. O Estado de São Paulo , 1º mar. 1931, p. 3. 160 AZEVEDO, Fernando de. A Arte como Instrumento de Educação Popular na Reforma. O Estado de São Paulo , 1º mar. 1931, p. 3.
78
Ao tomar o cinema como uma linguagem ao alcance da mentalidade
infantil das crianças e das multidões, escolanovistas pretenderam atingir
sentimentos e percepção, educar os sentidos; tocar, a um só tempo, a
inteligência e o coração, promovendo mudanças nas maneiras de sentir e
conceber o mundo da cultura, dos valores, do trabalho. Para tanto, o cinema
educativo, como uma nova instituição escolar, seria capaz de renovar
costumes e ideias, atravessar os muros escolares e promover a educação
integral da sociedade.
Com vistas a analisar as experiências escolanovistas com a educação
dos sentidos, Ney Moraes Filho, ao trabalhar com Quadros de Educação
Intuitiva, surpreendeu as práticas de sensibilização e dessensibilização da
visão e da audição na perspectiva de fixar padrões modernos de acuidade
audiovisual, constituindo determinados modos de percepção sensorial.
Considerou que, para os educadores envolvidos nesse processo, educar os
sentidos ou o imaginário significou produzir um conjunto de imagens que
evocassem uma memória coletiva para assegurar o funcionamento de uma
dada sociedade. E concluiu que o “potencial poder das imagens de construir,
desconstruir e reconstruir relações sociais, memórias ou visões de mundo
transformou os meios audiovisuais em campo de batalha pelo domínio da
representações.”161
Outro momento de disputa pelos recursos audiovisuais foi a reforma
educacional promovida no Distrito Federal no ano de 1928, em que Azevedo
determinou o uso do cinema educativo em todas as escolas primárias. Nos
artigos 633 a 635 do Decreto n.º 2940, de 22 de dezembro de 1928, que
instituiu a reforma, são encontradas as seguintes especificações sobre o uso
do cinema educativo:
As escolas de ensino primário, normal, doméstico e profissional, quando funccionarem em edifícios próprios, terão salas destinadas á installação de aparelhos de projecção fixa e animada para fins meramente educativos. O cinema será utilizado exclusivamente como instrumento de educação e como auxiliar do ensino que facilite a acção do mestre sem substituí-lo.
161 MORAES FILHO, Ney. Educação dos Sentidos na Escola Nova . Dissertação de Mestrado (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), 1993, p. 151.
79
O cinema será utilizado sobretudo para o ensino scientífico, geográphico, histórico e artístico. A projecção animada será aproveitada como apparelho de vulgarização e demonstração de conhecimentos, nos cursos populares nocturnos e nos cursos de conferência...162
Essa luta pode ser observada em outros Estados brasileiros. Além de
São Paulo e Rio de Janeiro, pode-se acompanhar a atuação em Minas
Gerais sob a gestão de Francisco Campos, secretário do interior que firmou,
em 1929, contrato com a Universum-Film-Aktiengesellschaft (UFA) para o
fornecimento de aparelhos de projeção e filmes educativos destinados aos
estabelecimentos de ensino.163 Sobre essa empresa cinematográfica da
Alemanha, vale ressaltar que, no processo de cartelização das empresas
cinematográficas nos anos 1920, foi construído um império na indústria das
comunicações, interferindo na realização de filmes e disciplinando a
produção cinematográfica.164
Apenas as grandes empresas cinematográficas, como a Fox e a UFA,
produziam filmes educativos. Isso leva a pensar que a produção desses
filmes demandava recursos técnicos e financeiros que não estavam ao
alcance dos pequenos produtores. Na Revue Internationale du Cinéma
Éducateur encontra-se a propaganda da Section Culturelle de L’UFA:
Vaste assortiment de films instructifs pour écoles, universités et cinémas. Nos collaborateurs sont choisis parmi des personnes de renomée internationale. Notre production embrasse toutes les branches de La Science: Sciences naturelles dans toutes leurs subdivisions. Géographie et ethnologie en films de court métrage. Industrie et technique. Agriculture et zootechnique. Sports et jeux. Médicine: films scientifiques, films de vulgarisation scientique et amusants. [...]
162 Cf. SERRANO, Jonathas; VENÂNCIO FILHO, Francisco. Cinema e Educação . São Paulo: Cia. Melhoramentos, 1930, p. 12. 163 Cinearte , op. cit., p. 3, 13 mar. 1929. 164 Em 1927, Alfred Hugenberg, diretor da Krupp e membro de destaque da ala direita do Partido Nacional, comprou e passou a dominar a UFA. Cf. ANTONACCI, Maria Antonieta M. Do Cinema Mudo ao Falado: cenas da República de Weimar. Revista História , São Paulo, v. 10, p. 41-70, 1991.
80
Nous fournissons les films culturels “UFATON” dans les versions: Allemande, Française, Anglaise, Espagnole, Polonaise, Tchèque, Suédoise.165
A diversidade da produção e a disponibilidade em várias línguas
apontam a dimensão da força e do poderio econômico da UFA, fazendo
pensar sobre a influência dessa produtora em diferentes países no sentido
de instituir mudanças nas formas de percepção visual e auditiva, nas noções
de tempo e espaço, de trabalho, de conhecimento etc.166
No ano de 1932, a Cinearte publicou um texto elogiando um filme da
UFA exibido como complemento no cinema Capitólio no Rio de Janeiro –
tratando de detalhes e particularidades do sangue animal – produzido com a
utilização de microscópio e de câmara cinematográfica.167 Sobre a “Seção
de filmes culturais da UFA, Barreto Filho afirmou que “é dali que têm sahido
para a sua marcha triunphal atravez do mundo inteiro, esses maravilhosos
‘educativos’ da UFA.”168
Ao entrar nessa batalha, o Governo pós-1930 utilizou como subsídio
as experiências desses promotores dos recursos audiovisuais, decretando
uma série de medidas que culminaram com a criação do Instituto Nacional
de Cinema Educativo em 1936, que “veio para organizar as práticas difusas
do cinema educativo, definindo objetivos e finalidades bem como garantindo
os recursos que lhe possibilitariam o êxito.”169 Ou seja, esse órgão foi
instituído para controlar, homogeneizar e nacionalizar essas práticas.
A primeira intervenção do Governo Federal nesse campo data da
assinatura do Decreto n.º 21.140, de 4 de abril de 1932, que nacionalizou o
serviço de censura dos filmes, criou a taxa cinematográfica para a educação
popular e a obrigatoriedade da exibição de complementos nacionais em
todos os cinemas. O Ministério da Educação e Saúde Pública ficou
responsável pela censura cinematográfica, sendo que a comissão incumbida
de realizar esse serviço deveria ser composta de um representante do chefe
165 Revue Internationale du Cinéma Éducateur , dez. 1932, p. 1044. 166 Em 1936, o arquiteto italiano Rino Levi construiu o suntuoso UFA-Palace na Avenida São João, destinado a exibir filmes da UFA em São Paulo. 167 A Sciencia, a Educação e o Cinema. A Microcinematographia. Revista Cinearte , op. cit., p. 40, 20 jan. 1932. 168 BARRETO FILHO, Sérgio. Cinema Educativo. Revista Cinearte , op. cit., 15 jun. 1932. 169 Histórico do Cinema Educativo no Brasil . CPDOC, GC 35.00.00/2, p. 1, 1938.
81
de Polícia, um representante do Juizado de Menores, do diretor do Museu
Nacional, de um professor designado pelo Ministério da Educação e de uma
educadora indicada pela Associação Brasileira de Educação – todos
residindo no Distrito Federal. Ainda determinava o que era considerado filme
educativo (não só os filmes de divulgação científica, mas os tendentes a
revelar ao público os grandes aspectos da natureza ou da cultura). O art. 12
estabeleceu a obrigatoriedade da inclusão de um filme educativo em cada
programa, indicado pela comissão de censura a partir da data a ser fixada
pelo Ministério da Educação.170
Um grande importador de filmes teceu elogios à atuação da comissão,
constituída após a nacionalização da censura:
Estamos muito satisfeitos com ella. Sempre encontramos boa vontade por parte de um dos seus membros, excepção feita do elemento feminino que se pudesse fazer prevalecer os seus pontos de vista prohibiria todos os films que vem ao Brasil, taxando-os imoraes. Isso porém é questão de defeito de observação ou deriva de desvio educacional. Esse ponto de vista porém não tem prevalecido [...].171
Esse registro aponta tensões e conflitos de interesses entre a
comissão de censura e os importadores e distribuidores de filmes, bem
como entre os próprios membros da comissão, sobretudo a desqualificação
da opinião e do comportamento da representante da ABE, tido como
“defeito” ou “desvio”.
No relatório elaborado pelo INCE em 1938, esse decreto foi apontado
como o marco da eclosão do cinema nacional, pois permitiu o aparecimento
de inúmeros filmes, facilitou o desenvolvimento da indústria exibidora e
incrementou o número de casas de espetáculo no território nacional.172
Essas experiências com o cinema educativo indicaram o sentido
atribuído à linguagem cinematográfica pelos educadores engajados no
movimento de Reconstrução Educacional, autodenominado Escola Nova, e
outros sujeitos que também projetaram as transformações sociais pela 170 A comissão organizada em 1932, responsável pelo Decreto n.º 21.140, de 4 de abril daquele ano, era formada por Edgar Roquette Filho, Lourenço Filho, Teixeira de Freitas, Mário Behring, Jonathas Serrano e Francisco Venâncio Filho. 171 Cinearte , op. cit., p. 3, 15 abr. 1933. 172 Histórico do Cinema Educativo no Brasil , op. cit., p. 2.
82
educação. As mudanças almejadas se materializaram na forma de
reordenação dos modos de viver urbanos por meio da
moralização/higienização dos costumes.
O projetado caos urbano, construído pela leitura católica da cidade ou
pelo olhar de psicólogos, educadores, higienistas, juristas e médicos,
constituiu as estratégias de intervenção social no sentido de
conformar/hierarquizar as relações sociais. Para a efetivação dessas
práticas, as Associações Civis e os profissionais tiveram papel destacado,
funcionando como instâncias legitimadoras das ações dos seus militantes.
Na ABE, o grupo católico liderado por Fernando Magalhães dirigiu a
atuação da entidade para a intervenção nos modos de viver urbanos a partir
da educação da família e moralização do lazer. Ao gozar de prestígio e
legitimidade como associação de “grande utilidade pública”, conquistou
espaços nos jornais e revistas no final da década de 1920, para a efetivação
de suas práticas moralizadoras.
O desejo de reorganizar o social, “recuperando” a instituição familiar
desfigurada pelo processo de urbanização acelerado, levou os agentes a
intervirem no comportamento das mulheres e crianças, afastando e
neutralizando os divertimentos “negativos”.
Enquanto o discurso católico constituiu as entidades particulares e a
Igreja como legítimos empreendedores dessa “missão” – cientistas como A.
C. Pacheco e Silva defenderam a atuação do Estado para a resolução das
“questões sociais”. Em relação ao cinema, além da censura foi planejado o
cinema educativo com a pretensão de neutralizar os supostos efeitos do
cinema comercial, direcionando o poder das imagens para determinados
ângulos.
Nessa tensão entre cinemas, sob a orientação de uma determinada
pedagogia, foi construindo-se um instrumento de educação dos sentidos de
adultos e crianças para a instituição de modos de viver heterogêneos.
A luta pela “reconstrução social” do período estudado foi, sobretudo,
um empenho no sentido de forjar a nacionalidade por meio da diluição dos
conflitos de classes e da heterogeneidade cultural. Para constituir a Nação,
83
foi preciso inventar um trabalhador disciplinado, higiênico e moralizado, bem
como uma cultura nacional.
O emprego do cinema a partir dos “interesses nacionais” é a
preocupação do terceiro capítulo, que acompanha investidas
nacionalizadoras no Brasil, especialmente em São Paulo – contra as
populações brasileiras e estrangeiras – por meio da educação e do cinema
educativo.
84
CAPÍTULO III – CINEMA EDUCATIVO E NACIONALIZAÇÃO DA CULTURA A presença heterogênea de grupos sociais lutando por espaço e
visibilidade na cidade fez com que elementos da “elite” disputassem a
reconstituição desse espaço, projetando a instauração de uma nova ordem
social por meio da moralização e da nacionalização dos modos de viver
urbanos.
Pode-se tomar como sinais significativos das práticas
nacionalizadoras a publicação da Revista do Brasil173 e a fundação da Liga
Nacionalista174 em 1916, marcos da chamada “Reação Nacionalista” iniciada
em São Paulo que tinha por objetivo defender a “cultura nacional” contra a
“ameaça” da “desfiguração” proporcionada pela presença massiva do
imigrante. No editorial da revista, seus promotores explicitaram “o desejo, a
deliberação, a vontade firme de constituir um núcleo de propaganda
nacionalista”, afirmando que “só a escripta e a palavra podem, neste
momento, estabelecer entre as populações que a vastidão do território e as
difficuldades de comunicação trazem afastadas e ignoradas umas das
outras, a mesma corrente de ideais e sentimentos...”175
Essa “Reação Nacionalista” foi planejada como uma intervenção
cultural por meio da educação, sendo que por cultura entendiam a
alfabetização e instrução das camadas populares associadas com o culto ao
folclore nacional.
Antonio de Sampaio Dória, fundador da Liga Nacionalista, foi além
das questões de alfabetização e instrução das camadas populares,
ampliando as dimensões e o sentido da educação:
173 A Revista do Brasil foi fundada por um grupo que contava com nomes como Mário Pinto Serva, Oscar Thompson, Ruy de Paula Souza, Armando Salles de Oliveira e Júlio Mesquita Filho. 174 A Liga Nacionalista foi organizada por Sampaio Dória, Antonio Francisco de Paula Sousa, Frederico Steidel, Plínio Barreto, entre outros, como resultado da campanha nacionalista de Olavo Bilac no Rio de Janeiro, de onde fundara a Liga de Defesa Nacional, também em 1916. 175 Revista do Brasil, vol. 1, n. 1, p. 2-5, jan. 1916 apud MORAES FILHO, Ney. Educação dos Sentidos na Escola Nova . Dissertação de Mestrado (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), 1993.
85
A educação que orthopediar e crescer a intelligencia, corrigir e disciplinar as emoções e os instinctos, terá criado o acerto, a energia e a previdência da vontade, e como a vontade é uma confluência da sensibilidade e da intelligencia, terá, em ultima analyse, formado o espírito.176
Na concepção de Sampaio Dória, a educação deveria alcançar os
sentimentos, formando o indivíduo integralmente nos valores e sentimentos
nacionais. Seria, sobretudo, uma educação moral. Quando diretor da
Instrução Pública de São Paulo em 1920, a reforma que realizou foi pautada
pela preocupação em difundir o ensino pelo Estado e com a constituição da
nacionalidade pela escola. Para tanto, tornou obrigatório o ensino público
para crianças de 9 a 10 anos; criou a figura do inspetor escolar para
fiscalizar a frequência escolar e penalizar a ausência, bem como avaliar,
profissional e moralmente, professores e diretores; instituiu as cadeiras
obrigatórias de língua portuguesa, história e geografia do Brasil; determinou
que as aulas deveriam ser ministradas em português etc.
Segundo Cecília Mate, a Reforma Sampaio Dória procurou atrair o
maior número possível de alunos a um tipo de escola que se encontrava em
constituição entre os setores intelectuais, empresariais e institucionais
paulistas. Mais que enfrentar a questão da oferta de escolas, a Reforma
procurou solucionar o problema da baixa frequência e evasão escolar.177
Mas em 1926, apesar da Reforma, as colônias estrangeiras do Estado
ainda se constituíam em ameaça para alguns paulistas. O artigo Um Apello
chamou a atenção para o problema do ensino ministrado aos filhos dos
imigrantes afirmando que:
A escola paulista vem realizando, desde os alvores da República, uma ingente tarefa, que só os vindouros hão de apreciar devidamente: – a nacionalização dessa massa assás considerável
176 DÓRIA, A. Sampaio. Finalidade Educativa apud MORAES FILHO, Ney, idem, p. 26. 177 “As reformulações pedagógicas que então se impunham, buscavam criar uma escola que garantisse a ‘integração’ social a partir de uma reforma moral. A escola concebida como restabelecedora de uma ordem e regeneradora de uma massa popular ‘ignorante’, produziria um arsenal de esquemas e mecanismos de controle que viabilizaria disciplinar as populações nos ‘bons hábitos’ de vida e de trabalho, adequados a uma organização urbana e industrial. Por isso, tornava-se necessário excluir possibilidades de outras formas de educação ou escola.” MATE, Cecília Hanna. Dimensões da Educação Paulista nos Anos 20: inquirindo, reformando,legitimando uma escola nova. Dissertação de Mestrado (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), 1991, p. 49.
86
de imigrantes, vindos dos quatro pontos cardeaes, com línguas, usos e costumes tão diversos.178
As diferenças nos costumes e na língua tornaram-se uma
preocupação para os que pretendiam constituir a Nação homogênea. Na
escola paulista, os “cuidados” para com a formação nacional se
manifestaram, desde o início da República, por meio de práticas
nacionalizadoras da linguagem e dos costumes.
Para que essa “tarefa ingente” continuasse a dar bons resultados, foi
dirigido um apelo aos colegas do magistério para que lutassem, sem tréguas
e com afinco, para defender “as nossas tradições, os nossos usos e
costumes, cuidando com carinho do ensino da Geographia e da História
Pátria e cultuando a nossa língua, a língua de Vieira, de Machado de Assis,
de Ruy Barbosa, de Gonçalves Dias, de Bilac...”179
Nesse contexto de reordenação e transformação das relações
socioculturais, em que as mudanças foram projetadas via educação, a língua
se constituiu no elemento básico para a sistematização de uma “cultura
nacional”. Para os diferentes grupos étnicos do período, a manutenção de
suas línguas lhes possibilitava a construção de identidades próprias e a
preservação de tradições, questão encarada como ameaça aos “interesses
nacionais”.180
Para os industriais paulistas empenhados na reconstituição das
relações entre patrões e trabalhadores por meio da racionalização do
trabalho, a questão da diversidade cultural se mostrou como um grande
empecilho. Léon Walther, especialista suíço em psicologia industrial,
contratado em 1929 para ministrar cursos, apontou as dificuldades para a
aplicação do Taylorismo em São Paulo:
178 Revista Escolar , São Paulo, Órgão da Diretoria-Geral de Instrução Pública, ano 2, n. 19, p. 52, 1º jul. 1926. 179 Revista Escolar , idem, ibidem. 180 Para as reflexões sobre o significado do uso da língua como instrumento de homogeneização e construção de uma nacionalidade brasileira, foi importante o estudo de Berberian sobre as dimensões históricas do surgimento das práticas fonoaudiológicas, as quais estiveram inseridas no processo de homogeneização e discriminação dos indivíduos que não dominavam a língua portuguesa. Cf. BERBERIAN, Ana Paula. A Normatização da Língua Nacional . Práticas Fonoaudiológicas (1920-1940). Dissertação de Mestrado (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), 1993.
87
[...] falta de auxiliares competentes ou com a necessária dose de boa vontade para colaborar na reforma dos processos de produção [...]. No caso das grandes indústrias paulistas, essas dificuldades sobem de ponto, pois há operários brasileiros, italianos, portugueses, espanhóis, alemães, húngaros, austríacos, trabalhando nos mesmos misteres cada qual com sua cultura rudimentar orientada para rumos diversos e falando línguas diferentes.181
Grande parte desse trabalho de “nacionalização” foi tarefa delegada à
escola, sendo que, por meio da educação das crianças, a pretensão era a de
mudar a cultura dos pais e dos avós, resistentes em abandonarem suas
tradições, seus costumes e sua língua.
Em documento de 1921, citado por Lourenço Filho no Relatório do
Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos sobre a nacionalização do
ensino, sobressaiu a preocupação com a educação dos filhos de
estrangeiros:
O espírito essas crianças brasileiras, formado em língua, nos costumes, nas tradições dos pais, só poderia tender para a pátria de origem, constituindo um empecilho à coesão nacional. Mesmo na raça latina e assimilável como é a italiana, nota-se uma grande tendência para conservar a língua e os costumes, quando formando regulares aglomerações.182
Nesse sentido, a obrigatoriedade do ensino de língua portuguesa e da
introdução das disciplinas de história, português e geografia em todas as
escolas paulistas, instituída pela Reforma de 1920, atingiu diretamente o
imigrante por intermédio de seus filhos.183
Para os educadores paulistas preocupados, especificamente, com o
ensino rural, as colônias estrangeiras espalhadas pelo interior do Estado se
constituíram em verdadeiras ameaças aos “interesses gerais”. Sud Menucci,
educador e colaborador do jornal O Estado de São Paulo, atento ao
problema do ensino rural – falta de professores e de alunos –, propôs uma
formação ao professor do campo que o tornasse avesso à vida urbana e o 181 Informações Semanais n. 28. São Paulo: CIESP, 2 set. 1929 apud ANTONACCI, op. cit., p. 77. 182 SCHWARTZMAN, op. cit., p. 73. 183 Segundo Antunha, a frequência escolar aumentou no período da Reforma, sendo aplicadas as penalidades legais “aos pais que se recusaram sistematicamente a enviar seus filhos à escola”. ANTUNHA, Heládio C. G. A instrução pública no Estado de São Paulo . A Reforma de 20. Coleção Estudos e Documentos. São Paulo: FEUSP, 1976, p. 188.
88
constituísse em um líder para a comunidade onde fosse lecionar. Nas suas
palavras, as populações “alienígenas” colaboravam economicamente; mas
isso não era suficiente, pois se mantinham “arredias do ponto de vista
social”. Ao professor cabia despertar-lhes os “ideais nacionais”,
incentivando-os a que aceitem, preguem e pratiquem.184
Aggêo Pereira do Amaral, também preocupado com o ensino rural,
levantou o problema dos migrantes e imigrantes, enfatizando que era
necessário “arrebanhar a criançada para a sombra do pavilhão brasileiro, ao
som de hinos cantados em nosso idioma, ao sabor de fatos históricos de
nossa pátria que é a sua apesar de não ser a de seus progenitores.”185 A
Nação homogênea deveria se impor tanto aos estrangeiros, quanto aos
migrantes brasileiros, que também ameaçavam esse projeto com suas
variações dialetais, com seus sons e sotaques diferentes.186
Nesse clima de exaltação dos sentimentos nacionalistas, Pedro
Toledo, interventor federal no Estado de São Paulo, assinou o Decreto n.º
5.475, de 14 de abril de 1932, regulamentando a Delegacia-Geral de Ensino
Privado. Esse decreto, entre outras medidas, estabeleceu:
Art. 5. [...] d) prova de nacionalidade dos professores de Português, Geografia do Brasil e História do Brasil; [...] Art. 9. É proibido, nos estabelecimentos de ensino particular, o ensino de língua estrangeira a crianças menores de 10 anos de idade, e sendo analfabeto, em qualquer idade; [...] Art. 10. Só poderão reger classes de jardins da infância, ou escolas maternais, professores brasileiros natos.187
Diferentes vozes, emitidas de diversos campos de ação, procuraram
intervir na constituição das futuras gerações brasileiras que seriam formadas
a partir dos filhos dos imigrantes e dos brasileiros, educados civicamente
conforme os valores “nacionais” homogêneos e moralmente protegidos
contra os estímulos perturbadores da vida urbana. Dentre esses perigos
estava o cinema; isso fez com que alguns ligados à ABE se empenhassem
184 Revista Educação , op. cit., vol. 4, n. 1 e 2, p. 6-8, ago./set. 1931. 185 Revista Educação , idem, vol. 3, n. 4 e 5, p. 57, abr./maio 1932. 186 Berberian, ao estudar as práticas fonoaudiológicas, aponta para a constituição dos sotaques e da pronúncia regional como distúrbios da linguagem, e o trabalho para reeducar a fala a um “padrão normal”. Cf. BERBERIAN, op. cit. 187 Revista Educação , idem, vol. 6, n. 6, 7 e 8, p. 150, jan./fev./mar. 1932.
89
na moralização das matinês infantis e na instituição do cinema educativo,
como foi visto no segundo capítulo deste trabalho.
Na década de 1930, o clima de intimidação dos “adversários” e de
orgulho localista se intensificaram contra a “turbulência ameaçadora dos
imigrantes”. A “Reação Nacionalista” não ficou restrita a São Paulo; foi
convertida em política oficial de “Constituição da Nacionalidade”, assumindo
um tom coercitivo contra as colônias estrangeiras existentes no país.
Ao analisar as investidas do Ministério da Educação e Saúde, Simon
Schwartzman, nessa direção, observou que o conteúdo do ensino nacional
dizia respeito, primeiramente, “à história mitificada dos heróis e das
instituições nacionais e o culto às autoridades, à ênfase no catolicismo e ao
uso padronizado da língua portuguesa em todo o território nacional.”188
O segundo aspecto referia-se à padronização e à homogeneização de
currículo mínimo obrigatório, livros didáticos, criação da universidade-padrão
e de escolas-modelo. Por último, a nacionalização significou a “erradicação
das minorias étnicas, linguísticas e culturais que haviam se constituído no
Brasil no final do século XIX e nas primeiras décadas deste século”.189
Essas investidas para a constituição do homem nacional ainda
continham uma perspectiva racista, apontando o progressivo
branqueamento da população como condição para o desenvolvimento do
país. A seleção do branco enquanto elemento que deveria prevalecer sobre
os demais formadores do povo brasileiro; “devido a sua superioridade
natural”, colocou a necessidade do combate aos grupos étnicos que
ameaçavam a homogeneização social, pensada não apenas em termos
linguísticos e culturais, mas também em termos racionais.
Ao investigar a opção pelo branqueamento do brasileiro, formulada
por setores dominantes nos anos trinta, Alcir Lenharo acompanhou as
manifestações racistas contra judeus, negros e asiáticos, atento a como
vários discursos procuraram suavizar o confronto das diferenças para criar o
188 SCHWARTZMAN, Simon et. al. Tempos de Capanema . Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo: Edusp, 1984, p. 141. 189 Idem, p. 142.
90
brasileiro e a unidade nacional, integrada numa dimensão biológica e
natural.190
Nesse clima de intolerância frente a costumes, tradições, valores,
formas legítimas de religiosidade e modos de vida, enraizaram-se
perspectivas de moldar um trabalhador nacional, apagando as diferenças
culturais, mudando hábitos e, principalmente, controlando “os desejos e os
vícios” proporcionados pelo viver na cidade.
Para alcançar esse objetivo, tornou-se essencial delimitar os sujeitos
urbanos em espaços isolados e higiênicos; combater o fascínio da cidade
sobre o campo, evitando o êxodo rural; tornar único o sentido da cidade,
apagando as diferenças, diluindo os conflitos, organizando o “caos”.
O ideal de vida urbana nacional, homogêneo, higiênico e disciplinado
deveria se estender por todos os “cantos” do país. Para tanto, foi necessário
fazer a propaganda do Brasil aos próprios brasileiros, mostrar suas belezas
e a obra de “civilização” realizada nas cidades do país.
Na mesma direção de se preocupar com o “enfraquecimento da
unidade nacional”, Joaquim Canuto Mendes de Paula insistiu na propagação
da higiene, da instrução, da consciência nacional, do império da lei e do
progresso para todas as regiões pobres e isoladas do território nacional, com
o propósito de mostrar o Brasil ao Brasil. O fortalecimento da Nação seria
alcançado por meio do incentivo às viagens de turismo ao interior, da
multiplicação das estradas de ferro e de rodagem e, principalmente, pela
transformação dos processos de ensino, pela nacionalização das escolas.191
Nessa luta, além dos “soldados da educação”, seriam recrutados os
modernos inventos – o rádio e o cinema.
Se em 1916 os fundadores da Revista do Brasil acreditavam que a
propaganda nacionalista só poderia contar com a palavra e a escrita;
contudo, na década de 1930, a frequência cada vez maior das multidões ao
cinema redimensionou essa questão. O perigo à “Constituição da
Nacionalidade” não vinha apenas das colônias estrangeiras com seus
costumes, sua língua e suas escolas. A exibição (quase que exclusiva) de 190 LENHARO, Alcir. Sacralização da Política . São Paulo: Papirus, 1986, p. 121. 191 ALMEIDA, J. C. Mendes. Cinema Educativo Integral. Revista Educação , op. cit., v. 4, n. 1 e 2, p. 138, 1931.
91
filmes estrangeiros, especialmente o filme norte-americano, constituiu-se em
outra ameaça igualmente perigosa.192
Desde o final da Primeira Guerra Mundial o filme americano passara a
monopolizar o mercado nacional, num esquema de indústria cultural que
incluía a distribuição, exibição e propaganda intensiva das atividades que
envolviam os grandes estúdios cinematográficos: os filmes, as estrelas do
cinema e todos os acontecimentos dos bastidores relacionados à vida
privada dos astros da tela, conforme já foi discutido no primeiro capítulo.
Se nas duas primeiras décadas do século XX o cinema era a diversão
das crianças e das classes populares, na década de 1920 a “febre
cinematográfica” tomou conta de São Paulo. Da instalação da primeira sala
de projeção fixa em 1907 – o Bijou-Theatre – às construções monumentais
realizadas no final da década de 1920 até a de 1950, o cinema deixou de ser
meramente uma diversão popular para se converter na “maior diversão” da
cidade, atraindo crianças, homens, mulheres e velhos indistintamente,
desbancando circos, cafés-concerto, teatros e serões.
Nos anos 1940 e 1950, o slogan “O Cinema é a Maior Diversão”
refletia a relação do paulistano com o cinema, tornando-o orgulhoso de fazer
parte da cidade que frequentava as salas de cinema como poucas cidades
no mundo.193
Esse processo também ocorria noutras classes, sendo que o
educador Celso Kelly, preocupado especificamente com a educação dos
adultos, estava atento para o fenômeno da indústria cultural e o “trabalho de
desfiguração nacional que opera no elevado público que o frequenta”.
Justificou sua apreensão argumentando que não havia um sistema
organizado de educação para o adulto; sua educação se dava através de
meios informais. O cinema era, de longe, o meio de educação informal mais
192 Em 1931, um total de 1.766.695 metros de filme foi censurado. Desse total, 1.268 filmes provinham dos Estados Unidos; 114, da Alemanha; 29, da França; oito, da Inglaterra; cinco, da Rússia; quatro, da Áustria; três, da Espanha; três, da Argentina; dois, da Itália; um, da Polônia; um, do Chile; um, da Turquia; e 38, do Brasil. Cf. Revue Internationale du Cinéma Educatéur , op. cit., p. 1043. A situação não mudou em 1937, em que foram censurados 1.500.000 metros de filme; destes, apenas 120.000 metros eram de filmes nacionais, compostos quase que exclusivamente de reportagens e complementos, tal qual a produção de 1931. Cf. KELLY, Celso. O Cinema na Educação de Adultos . Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, LF-KELLY, CPI 00.00.00, p. 5. 193 SIMÕES, Inimá. Salas de Cinema em São Paulo , op. cit., p. 11.
92
abrangente, pois estimava que uma população constante de seis milhões de
brasileiros vivia sob a influência do cinema. Por contar com 1.535 salas de
projeção, o cinema era, em 1937, o principal agente na educação dos
adultos:
Aquele que, por dispor da imagem e do som, exerce um poder de sugestão mais incisivo. Aquele que é accessível ao indivíduo qualquer que seja sua cultura, até ao analfabeto. Aquele em favor de quem já se pronunciou, de maneira inequívoca, o público brasileiro. Aquele que mais pode influir e está influindo na formação de costumes no Brasil.194
Ao demonstrar uma percepção aguda das transformações nas formas
de sociabilidade provocadas pela nova linguagem social, apontou a família
como a instituição mais atingida pelas transformações. Como exemplo das
perturbações e inovações que “só poderiam ter tido inspiração na
cinematografia estrangeira”, lembrou “o conflito de religiões, a luta de
classes, a prevenção de raças” – perturbações que “nunca existiram e nem
têm clima para existir no Brasil”. A preocupação com essas questões estava
permeada pela leitura católica desse contexto social.
Essa instituição combateu intensivamente o individualismo e o
socialismo na luta pela construção da sociedade sedimentada sob as bases
da família. Isso seria possível por meio da “reespiritualização da cultura”; da
restauração de uma filosofia social capaz de unir as classes, frear o avanço
do “materialismo” e a valorização da razão e da ciência como únicos critérios
para a ação social e política.195
Com o intuito de retomar as reflexões sobre o poder da sugestão das
imagens, Kelly lembrou que a diferença entre um romance e um filme estava
no fato de o primeiro ser “lido por pessoas de uma certa cultura, que sabem
discernir com propriedade, assumindo uma posição crítica que não as 194 KELLY, Celso. O Cinema na Educação do Adulto , op. cit., p. 3. 195 A Igreja lutou contra os processos de “laicização do ensino”, “laicização dos sindicatos”, “laicização do Estado”. A revogação do decreto de ensino religioso de 1932 em São Paulo foi atribuída à influência da maçonaria, dos liberais, dos céticos e dos protestantes, segundo membros da Igreja. Esse discurso aponta para o combate a outras práticas religiosas, além das ações para moralizar e reconstituir a família nuclear moderna. Cf. SCHWARTZMAN, op. cit., p. 58. No sentido de “moralizar o cinema”, foi criado o Serviço de Informações Cinematográficas da Ação Católica Brasileira em 1937, destinado à cotação moral dos filmes. No mesmo ano, foi criada em São Paulo a Orientação Moral dos Espetáculos por Dom Cândido Pardim.
93
prejudica. Mas o público dos cinemas é de todas as classes, daquelas que
sofrem, desde logo, a influência estranha.”196 Tem-se, mais uma vez, a
preocupação com o fácil acesso à nova linguagem aberto a todos os
segmentos sociais.
Intimidado com a presença das multidões na cidade e a quantidade
de informações que circulavam via cinema, Kelly defendeu um sistema
permanente de esclarecimentos que acompanhasse o adulto em toda a sua
vida, para evitar “as massas cegas e inconscientes, de cujo delírio tudo se
pode esperar”. A educação cívica teria o papel de combater os conflitos e a
luta de classes, despertando o sentimento da nacionalidade homogênea.
O cinema educativo como contraponto ao cinema comercial
estrangeiro e um novo meio de educação, era “uma força poderosa de
difusão cultural e de incentivo a formação de um espírito nacional, uno,
coheso, homogeneo.”197 Portanto, Kelly saudou a lei que obrigava a exibição
do Complemento Nacional198 em todos os cinemas brasileiros, por revelar “o
Brasil ao Brasil, fazer com que os habitantes de uma região conhecessem os
patrícios de outra zona, as cidades, as suas indústrias, as suas paisagens...,
fazer com que as pláteas se rejubilem em escutar a língua nacional e a
pronuncia brasileira.”199
Canuto de Almeida200 também contrapôs cinema comercial e cinema
educativo propondo o ajuste do cinema na educação e da educação no
cinema. O primeiro processo – utilização do cinema nas escolas – tornara-se
uma prática corrente em vários países, mas o movimento contrário – fazer
do cinema uma escola – foi apresentado como um processo mais lento. Para
realizar esse segundo movimento, cabia ao Estado intervir, por meio da
censura ao cinema mercantil, na produção de filmes educativos e na
196 Idem, ibidem. 197 KELLY, Celso. A Victoria da Imagem. Revista Cinearte , op. cit., p. 4, 15 jul. 1937. 198 Lei aprovada pelo Decreto n.º 21.140, de 15 de abril de 1932, e regulamentada em 1934, fixando em dez minutos a duração de cada complemento. 199 Idem, ibidem. 200 J. C. Mendes de Almeida foi jurista, promotor público e cineasta. Quando ainda era estudante de Direito, escreveu, em 1922, o roteiro do filme Do Rio a São Paulo Para Casar; dirigiu, em 1926, Fogo de Palha e adaptou para a tela o conto de Viriato Correia, Gigi, em 1925.
94
proteção da indústria e do comércio cinematográficos.201 O Estado, em
nome da educação, deveria intervir no cinema, produzindo fitas para:
[...] propagar ensinamentos de hygiene, economia doméstica, processos racionaes de agricultura, indústria ou commercio, conceitos scientificos geraes e especialisados, cultura artistica, o amor ás virtudes da caridade e solidariedade social, á coragem moral e physica, á saúde do corpo e do espírito, á pátria e ao progresso, á disciplina e á ordem, etc...202
A “Nacionalização” assumiu, então, múltiplos significados, todos
ligados à instituição de novos hábitos de higiene, trabalho, comportamento e
mentalidade, numa perspectiva de cooperação social para o alcance do
“progresso nacional”.
Assim, o cinema educativo, na década de 1930, tornou-se “cinema
nacional”, sendo utilizado na luta contra os costumes estrangeiros
veiculados pelo “cinema deseducador” e portador de “elementos nocivos e
desagregadores da nacionalidade” por meio do enaltecimento das nossas
belezas tropicais, construindo uma imagem de “paraíso turístico”.
Com base nessa argumentação, o jornalista Mário Vieira de Mello fez
elogios ao questionário formulado para o inquérito em torno de um Plano
Nacional de Educação, elaborado por Gustavo Capanema em 1936 que,
entre outros itens, tratava do cinema educativo. Nesse inquérito, Capanema
perguntou: o que é o cinema educativo?203
Para Vieira de Mello, o cinema apresentava inúmeras possibilidades
educativas e, respondendo à pergunta do ministro da Educação, afirmou que
o cinema educativo estava relacionado à questão do cinema nacional:
Precisamos de um cinema que nos dê a nossa subsistencia. Só assim poderemos resistir á influencia de hábitos e costumes estranhos. Ao lado de um cinema que nos dá uma substancia que não podemos assimilar, é preciso que se forme um outro que nos faça sentir o prazer da authenticidade e a superioridade dos nosso hábitos e costumes sobre os de outros povos tão ingenuamente admirados.204
201 ALMEIDA, J. C. Mendes de. Cinema Contra Cinema . São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1931. 202 ALMEIDA, J. C. Mendes de. Cinema de Estado? Revista Educação , op. cit., p. 141. 203 Cinearte , op. cit., 15 fev. 1936, p. 22. 204 Idem, p. 23.
95
Ao mesmo tempo em que setores sociais buscaram exorcizar o
“atraso das populações brasileiras”, os hábitos e costumes das classes
populares foram trabalhados numa perspectiva folclorizada, como elementos
formadores da “verdadeira cultura”. O cinema nacional, no entender de
Vieira de Mello, teria esse papel constituidor da “nossa cultura” por meio da
neutralização de “elementos nocivos e desagregadores. Costumes
importados, idéias sem raízes na alma nacional podem perturbar o equilíbrio
e solidez da alma brasileira [...].”205
Ao enfatizar a necessidade da indústria nacional de cinema, também
os repórteres da Cinearte, defensores do cinema norte-americano,
afirmaram que “os films americanos mesmo já fizeram pelo Brasil. Já
levaram ao sertão muita civilisação. Mas só nossos films poderão
accrescentar o sentimento nacionalista...”206
Para fazer a propaganda “saudável ao Brasil”, a realidade sonhada e
desejada teria de ser construída em estudos cinematográficos apropriados,
onde as imagem pudessem ser controladas:
Fazer um bom cinema no Brasil deve ser um ato de purificação de nossa realidade, através da seleção daquilo que merece ser projetado na tela: o nosso progresso, as obras de engenharia moderna, nossos brancos bonitos, nossa natureza. Nada de documentários, pois não há controle total sobre o que se mostra e elementos indesejáveis podem infiltrar-se; é preciso um cinema de estúdio, como o norte-americano, com interiores decorados e habitados por gente simpática.207
Negros, mestiços, caboclos e japoneses208 não pertenciam à
categoria de “gente simpática” e não mereciam ser flagrados pela câmera,
205
Idem, Ibidem. 206 Cinearte , op. cit., p. 4, 30 dez. 1931. 207 Cinearte , op. cit., p. 28, 11 dez. 1929. 208 Na Constituição de 1934, o racismo tomou corpo e veio à tona por intermédio de um grupo de deputados eugenistas ligados a Oliveira Viana. Eles “chegaram a propor uma emenda de n.º 1.164, assinada por Xavier de Oliveira, que proibia a entrada no Brasil de elementos das raças negra e amarela de qualquer procedência para efeito de residência. Sua justificativa incidia na ‘inferioridade étnica dos negros’ ao mesmo tempo em que criticava a aceitação de ‘rebotalhos de raças mais ou menos degeneradas’”. Cf. LENHARO, op. cit., p. 126. Pacheco e Silva, defensor de uma política eugenista de imigração, assim se referiu aos japoneses: “A nossa observação demonstra serem os japoneses extremamente sujeitos a certos distúrbios mentaes e que, quando alienados, manifestam acentuada
96
sob o risco de comprometerem a imagem de um país purificado, depurado
dos elementos indesejáveis. Por meio da “seleção” cinematográfica, o
atraso, a pobreza e a “feiura” dos elementos menos dignos de
representarem a Nação brasileira – para brasileiros e estrangeiros – seriam
apagados.
Na sua luta incansável contra o “filme comprometedor”, a Cinearte
não deixou de registrar os mais veementes protestos contra uma película
exibida em Curitiba sobre “combates mortíferos realizados entre brasileiros”
em 1932, nas regiões de Apiahy, Ribeira, Jacarezinho etc., “localidades
perdidas nos sertões de São Paulo e do Paraná”. A revista condenou a
autorização dos chefes militares para realizarem as filmagens e exibirem a
fita sem nenhuma censura, alegando que
[...] a estas horas, naturalmente, já estarão, em cópia, sendo remettidas para o estrangeiro para o fim de mostrar lá fóra como é que os brasileiros se matam uns aos outros, se é como todos os matadores, isto é, de accordo com os preceitos mais modernos da arte bellica, se é primitiva, como é de uso entre os povos que de civilizados têm o nome apenas.209
Terminou suas críticas observando que ao serviço cinematográfico do
exército cabia produzir esses “filmes-documentos” apenas para o propósito
de obterem ensinamentos.
As tensões e disputas em torno da produção fílmica apontaram o
desejo de projetar um Brasil nacionalizado e coeso em torno de uma religião,
uma língua e uma cultura, assim como educar a percepção, mudar gostos e
critérios de apreciação visual e estética. De outra parte, ao identificar
fotogenia com ideais de beleza associados ao luxo, higiene e juventude, a
Cinearte lutou para que o Brasil “feio, mestiço e atrasado” desaparecesse da
tela.
Tal qual o cinema educativo – concebido para combater o cinema
potencializador “dos baixos sentimentos da multidão”, numa tentativa de
tendência para a prática de crimes. Dado os seus sentimentos religiosos e o pouco valor que lhes merece a vida, não só revelam acentuada propensão ao suicídio, como são levados a prática de delictos mais bárbaros e atrozes, cujas vítimas são, não raro, os membros da própria família.” Idem, p. 131. 209 Idem, p. 3, 9 set. 1932.
97
submeter as imagens moventes a uma determinada concepção de
educação, canalizando as paixões numa determinada direção –, esse
cinema pretendeu constituir modos de viver “modernos”, “nacionais” e
“racionais”.
Já os críticos do cinema estrangeiro sentiram a necessidade de
combater o inimigo exterior, o diferente, o outro. Neutralizar as vontades e os
desejos estimulados pelas imagens fílmicas que mostravam realidades e
sonhos de lugares distantes, de múltiplos e diferentes modos de viver e de
se comportar.
Os ânimos nacionalistas se intensificaram ainda mais após a criação
do cinema falado. Entendido como uma ameaça à língua pátria, suscitou a
elaboração do projeto de lei proibindo a exibição de filmes em inglês,
apresentado na cidade de São Paulo em 1929. Os favoráveis ao projeto
argumentaram que “o idioma inglês no cinema fere a cultura nacional, pois,
sendo um instrumento de propaganda de hábitos, costumes e sentimentos
não deve ser estrangeiro.”210
Tal apologia (e defesa) de uma “cultura nacional” certamente
agradava aos críticos da “massificação da cultura”, mas não se pode deixar
de lembrar que essa luta foi travada contra o “inimigo interno”, composto não
só pelas colônias de estrangeiros, mas pelos brasileiros que figuravam no
imaginário das elites sob o signo do atraso e da ignorância como obstáculo
ao progresso nacional.
Esse imaginário apareceu com clareza na resposta de Lourenço Filho
à questão: “qual o verdadeiro papel que deve caber à escola primária
paulista, na formação do caráter nacional?”211 Nesse entremeio, ele fez a
seguinte argumentação: “[...] entendo que a escola precisa ser
fundamentalmente nacionalizadora, integrando não só o estrangeiro, mas o
210 A Lei Contra o Filme Falado. O Estado de São Paulo , 1º dez. 1929. No artigo O Tal Projecto, de 14 de março de 1930, Guilherme de Almeida comemorou a derrota desse projeto. A Cinearte, em reunião do Ministério da Educação, “logo após a revolução”, pronunciou-se contrariamente à proibição total da entrada de filmes estrangeiros no país. Cinearte , op. cit., p. 7, 1º out. 1934. 211 Questão formulada por Fernando Azevedo no Inquérito da Instrução Pública, realizado em 1926, a pedido do jornal O Estado de São Paulo.
98
próprio sertanejo, tanto ou mais desviado, por certos aspectos, do que o
imigrante, em relação a vida contemporânea política e social.”212
As propostas de nacionalização da cultura evidenciam, antes de tudo,
a intolerância à diversidade cultural e a inexistência de projetos políticos que
vislumbrassem a constituição da vida nas cidades e no país como um todo,
a partir da multiplicidade e da diferença.
Nesse sentido, o cinema educativo misturou-se à propaganda do
governo, de fazendeiros, indústrias etc. A preocupação de Capanema em
definir o que era o cinema educativo apontava a dificuldade do seu Ministério
em estabelecer formas de ação e orientação para o grande público em
delimitar a “tênue linha divisória que separasse a ação cultural,
eminentemente educativa e formativa, da mobilização político-social e da
propaganda propriamente dita.”213 O esforço para separar o “educativo” da
“propaganda” pura e simples do Governo inseriu-se no contexto de disputa
entre o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural – criado em 1934 e
subordinado ao Ministério da Justiça – e o Ministério da Educação pelo
controle dos serviços de rádio e cinema.
O Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), criado em 1936 e
subordinado ao Ministério da Educação, nasceu desse esforço do ministro
Gustavo Capanema. Mas ainda em 1942, Roquette Pinto, diretor do Ince,
precisou, mais uma vez, caracterizar a diferença entre a atuação de seu
departamento e o recém-criado Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP), que também continha, em sua organização, uma divisão de
radiodifusão, outra de cinema e teatro, com estes argumentos:
No Brasil, o INCE, exclusivamente consagrado ao cinema educativo, em nada pode perturbar quaisquer planos ministeriais de propaganda. Ao contrário, tem cooperado com o DIP. O material, oficinas e laboratórios necessários ao DIP não se acham representados no INCE senão em proporção mínima. O DIP precisa de aparelhagem cinematográfica standard – 35 mm, e o INCE trabalha especialmente com o filme substandard – 16 mm.214
212 AZEVEDO. Fernando de. A Educação na Encruzilhada – problemas e discussões. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1960, p. 104-105. 213 SCHWARTZMAN, idem, p. 86. 214 Idem, p. 89.
99
Ao que tudo indica, o Ince não perturbava o trabalho de propaganda
do Governo; ao contrário, suas películas educativas agiam no sentido de
estimular o “sentimento nacional”, bem ao gosto do Estado Novo.
Em sua definição de filme educativo, Roberto de Araújo evidenciou
que o “exclusivamente educativo” não se restringiu ao cinema pedagógico e
escolar:
O valor do filme educativo popular reside no próprio espírito que o anima. Inspire o sentimento do belo e do justo, o amor à terra, às plantas, aos animais. Exponha aos olhos da população as principais fontes de riqueza do país, os panoramas mais variados, os recantos mais pitorescos. Traga, finalmente, à mentalidade da plátea heterogenea os assuntos de interesse geral expostos de modo claro, inteligente e sobretudo simples, para que sejam facilmente assimilados e rapidamente aproveitados.215
A produção da película educativa deveria colaborar no processo de
homogeneização cultural, apagando as diferenças, construindo o sentimento
de comunhão nacional por meio da projeção da “nossa” exuberante
geografia.
Ao pensar a Nação ainda em termos de natureza216, as elites, nesse
momento decepcionadas com o imigrante enquanto sujeito aprimorador do
“caráter nacional”, tratavam de construir o trabalhador nacional. A
construção da nacionalidade dar-se-ia por meio do convencimento das
possibilidades grandiosas da nossa geografia e pela exibição das “obras de
civilização” que o esforço do trabalho disciplinado havia construído e que
ainda poderia vir a construir.
O cinema educativo foi idealizado, principalmente, para o ensino de
geografia e história. Mostrar “as belezas naturais”, o “progresso industrial” e
os “grandes heróis nacionais” fazia parte da luta pela instituição de uma
memória nacional mitificada. Assim, o Ince produziu, em 1936, os filmes Um
215 ARAÚJO, Roberto de A. O Cinema Sonoro e a Educação . São Paulo, 1939, p. 37, 1939, mimeo. 216 Velloso, em estudo sobre as tradições populares do Rio de Janeiro da Belle Époque, assinalou que a Nação passou a “ser pensada em termos de natureza, já que a raça se constitui em elemento prejudicial, à idéia de unidade. Não apenas a raça, mas a religião e a língua são identificadas com a diversidade, encarando-se essa como uma ameaça ao projeto de integração nacional.” VELLOSO, Mônica Pimenta. As Tradições Populares na Belle Époque Carioca . Rio de Janeiro: Funarte/Instituto Nacional do Folclore, 1988, p. 14.
100
Apólogo (Machado de Assis); Dia da Bandeira; Dia do Marinheiro –
Lançamento da Pedra Fundamental da Estátua do Almirante Tamandaré; Os
Inconfidentes e 7 de Setembro de 1936 – Dia da Pátria, dentro da
perspectiva de uma educação cívica.
Em 31 de março de 1937, Raymundo Magalhães Jr., redator
cinematográfico do jornal A Noite, falou ao microfone da Hora do Brasil
sobre as possibilidades do ensino da geografia por meio das imagens,
afirmando que o cinema nacional estava “realizando uma obra magnífica de
divulgação das coisas brasileiras, tanto das cidades, dos núcleos modernos
de civilização e de progresso industrial, como dos sertões brasileiros e das
pequenas cidades...”217
Ao narrar as imagens apresentadas pelos complementos nacionais,
referia-se tanto a uma visão sobre o Rio São Francisco, as regiões do
Araguaya, a riqueza da nossa fauna, as malocas Tapirapés; quanto às
riquezas do solo mato-grossense e aos índios Garajás – eleitores
qualificados que sabiam ler e escrever, viviam felizes em colônias agrícolas
etc.
Pode-se perceber que a diferença entre cinema educativo e simples
propaganda era quase imperceptível. Esses filmes educativos, produzidos
como complementos nacionais por diferentes produtores, ou os filmes
educativos produzidos pelo Ince, mostravam um país idealizado, ordenado,
onde cada grupo tinha seu lugar delimitado e trabalhava disciplinadamente
para o progresso da Nação.
Dentro desse “espírito” de “mostrar o Brasil aos brasileiros”, o Ince
confeccionou as películas O Céu do Brasil na Capital da República (1936), O
Telegrapho no Brasil (1936); Os Centros de Saúde no Rio de Janeiro (1937),
Jogos e Dansas Regionais – Escolas Primárias (1937), Universidade do
Brasil (1937), Combate à Praga do Algodoeiro em Minas Gerais (1938) etc.;
além de inúmeras aulas sobre mecânica, biologia e química.218
217 MAGALHÃES JR. Geographia pela Imagem. Revista Cinearte , op. cit., p. 4, 15 abr. 1937. 218 Destacam-se os filmes Machinas Simples-Alavancas, O Parafuso, Manômetros, Barômetros, Hydrostática, Medida de Comprimento, A Luta Contra o Ofidismo, Hérnia Iguinal, Circulação de Sangue na Cauda do Girino, A extirpação do Estômago etc.
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Essas representações do social, enquanto um corpo uno e coeso, e
as projeções de passado e futuro gloriosos, foram construídas pelos
intelectuais empenhados na reordenação social nas décadas de 1930 e
1930; pretenderam ser universalizantes, mas foram percepções
particularizadas, produzidas para legitimar seus projetos reformadores.
Esses sujeitos, vivenciando a experiência da urbanização acelerada –
particularmente no Rio de Janeiro e em São Paulo –, sentiram-se perplexos
diante das forças sociais liberadas por essas mudanças. Disputaram o rumo
e o controle dessas forças, construíram representações desse social
tentando ordenar, hierarquizar e nacionalizar essas relações sociais.
Nessa direção, o cinema foi convertido, pelos moralistas e
intelectuais, no seu contrário, ou seja, de objeto que desperta desejos e
instiga paixões nas multidões foi transformado num instrumento educativo,
em que educar significou higienizar, homogeneizar e nacionalizar gostos e
comportamentos das diferentes camadas sociais e grupos étnicos do país.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desafio que se coloca àqueles que pretendem trabalhar as
linguagens audiovisuais na sala de aula está em percebê-las não como
simples acréscimos à linguagem escrita (ou alternativas a ela), como
observou Willians, mas entendê-las como “uma nova prática substancial na
própria linguagem social”, manifestação e representação da “fala interior” e
do “pensamento verbal”.219
Tomar a produção fílmica como um complemento do texto escrito,
destinado a tornar “interessantes” os conteúdos trabalhados há décadas
sem qualquer alteração, é desconhecer a particularidade dessa forma social
de linguagem. Por meio dela, sujeitos contemporâneos se revelam,
manifestando suas consciências, evidenciando tensões e conflitos
socioculturais.
As formas adquiridas por diferentes linguagens dizem respeito à
dinâmica social; logo, não podem ser tomadas apenas como recursos
didáticos, sem que haja indagações sobre as relações que as produzem,
como são empregadas e quais interferências provocam no social. As
reflexões em torno das representações nelas construídas devem questionar
sua pretensa universalidade, tendo-se clareza de que são determinadas por
interesses de grupos, e que por meio delas é possível apreender as divisões
e contradições do mundo social, conforme argumentações de Chartier.220
A problematização das propostas para instituir o cinema educativo
nos anos 1920 e 1930 fez emergir um processo de tensões e disputas pelo
reordenamento das relações socioculturais, em que modos de viver
projetados como ignorância e atraso, ou como vício e dissolução dos
costumes, foram sistematicamente combatidos. Em nome da constituição
das “futuras gerações” sadias, disciplinadas e da Nação homogênea, as
imagens moventes foram censuradas e colocadas a serviço dos princípios
da “educação nova”.
219 WILLIANS, Raymond, op. cit., p. 59. 220 CHARTIER, op. cit.
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Nesse contexto, a educação enquanto sintoma e recurso da
“modernização” foi eleita como o principal instrumento para a efetivação de
mudanças por diferentes sujeitos interventores. Estes, do horizonte urbano,
projetaram um ideal de viver moralizado, higiênico, racional e nacional que
deveria abarcar acidade e suas relações. Nessa luta pela constituição da
Nação homogênea, foram combatidas culturas, línguas e práticas de lazer
que confrontaram essas aspirações.
Dentre essas práticas, o cinema tornou-se elemento significativo na
constituição das experiências socioculturais de sujeitos contemporâneos,
provocando mudanças no comportamento, nos valores, nos hábitos e na
percepção humana. Essa influência o converteu num campo de tensões
decisivo pela definição dos modos de viver.
Além do cinema, o rádio, a televisão, a revista e outras formas de
linguagem são elementos constitutivos da experiência social e, antes de
serem convertidos num empecilho para o trabalho do professor ou
responsabilizados pelo “fracasso escolar”, precisam ser trabalhados
enquanto “espaço de luta entre o congelamento do que existe e as
possibilidades de devir elaboradas pelos grupos sociais em confronto”, como
lembrou Silva.221 O trabalho com a produção audiovisual, nessa perspectiva,
possibilitaria a formação do leitor/produtor que dialoga com as
representações produzidas percebendo as relações de poder que se
estabelecem no campo da produção das linguagens sociais.
Se ao iniciar esta pesquisa tinha consciência das limitações da minha
formação, as questões levantadas e desenvolvidas nos limites deste
trabalho apontaram a complexidade que envolve o universo das linguagens
audiovisuais e a importância de assumir os desafios colocados por esta
temática, trazendo-a para o campo da história e da educação.
221 SILVA, Marcos A. da. O Trabalho da Linguagem. Revista Brasileira de História , São Paulo, v. 6, n. 11, set. 1985/fev. 1986, p. 46.
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