pesquisa avaliativa em reabilitação profissional: a efetividade de um serviço em desconstrução

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1473 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(5):1473-1483, set-out, 2003 ARTIGO ARTICLE Pesquisa avaliativa em reabilitação profissional: a efetividade de um serviço em desconstrução Evaluative research on occupational rehabilitation: the effectiveness of a health care service subject to dismantlement 1 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. C. P. 6111. Campinas, SP 13084-971, Brasil. Mara Alice Batista Conti Takahashi 1 Ana Maria Canesqui 1 Abstract This article deals with the results obtained from 1995 to 1997 by an innovative occu- pational rehabilitation model for individuals with repetitive strain injury/work related muscu- loskeletal disorder (RSI/WRMD), developed by the Campinas Occupational Rehabilitation Cen- ter under the Brazilian National Institute for Social Security.The study had two objectives: 1) to reconstruct the program as a precondition for evaluation and 2) to evaluate the model’s effec- tiveness in reestablishing the autonomy of individuals with RSI/WRMD. The methodology in- volved document analysis in order to reconstruct the program’s background in terms of problem identification, organizational participation, awareness-raising, staff characteristics and respon- sibilities, and profile of the clientele. An analysis of 221 patient files provided the basis for con- structing an evaluative instrument consisting of different dimensions, variables, and indicators, which was applied to a sample of 47 patient histories prior and subsequent to rehabilitative in- tervention. High effectiveness was observed in the model, with variations in the different target dimensions. Key words Rehabilitation; Cumulative Trauma Disorders; Evaluation; Effectiveness Resumo O texto aborda a avaliação dos resultados de um modelo assistencial inovado, no período de 1995 a 1997, para adoecidos por LER/DORT, desenvolvido no Centro de Reabilitação Profissional de Campinas do Instituto Nacional de Seguro Social. Dois objetivos foram postos pelo estudo: o de reconstituir o programa como precondição da avaliação e o de avaliar a efetivi- dade do modelo assistencial adotado, quanto ao objetivo de resgatar a autonomia dos adoeci- dos. A metodologia envolveu o estudo e análise da documentação do programa para sua recons- tituição quanto à identificação da problemática, inserção organizacional, as relações de inte- resse despertadas, a equipe e suas atribuições, e o perfil da clientela atendida. O estudo dos 221 prontuários dos atendidos no serviço permitiu a montagem de um instrumento avaliativo, com- posto de dimensões, variáveis e indicadores, que foi aplicado em uma amostra de 47 prontuários nos momentos antes e depois da intervenção. A elevada efetividade do modelo adotado foi cons- tatada, comportando variações nas diferentes dimensões examinadas. Palavras-chave Reabilitação; Transtornos Traumáticos Cumulativos; Avaliação; Efetividade

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Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(5):1473-1483, set-out, 2003

ARTIGO ARTICLE

Pesquisa avaliativa em reabilitação profissional:a efetividade de um serviço em desconstrução

Evaluative research on occupational rehabilitation:the effectiveness of a health care service subject to dismantlement

1 Departamento de MedicinaPreventiva e Social,Faculdade de CiênciasMédicas, UniversidadeEstadual de Campinas.C. P. 6111. Campinas, SP13084-971, Brasil.

Mara Alice Batista Conti Takahashi 1

Ana Maria Canesqui 1

Abstract This article deals with the results obtained from 1995 to 1997 by an innovative occu-pational rehabilitation model for individuals with repetitive strain injury/work related muscu-loskeletal disorder (RSI/WRMD), developed by the Campinas Occupational Rehabilitation Cen-ter under the Brazilian National Institute for Social Security. The study had two objectives: 1) toreconstruct the program as a precondition for evaluation and 2) to evaluate the model’s effec-tiveness in reestablishing the autonomy of individuals with RSI/WRMD. The methodology in-volved document analysis in order to reconstruct the program’s background in terms of problemidentification, organizational participation, awareness-raising, staff characteristics and respon-sibilities, and profile of the clientele. An analysis of 221 patient files provided the basis for con-structing an evaluative instrument consisting of different dimensions, variables, and indicators,which was applied to a sample of 47 patient histories prior and subsequent to rehabilitative in-tervention. High effectiveness was observed in the model, with variations in the different targetdimensions.Key words Rehabilitation; Cumulative Trauma Disorders; Evaluation; Effectiveness

Resumo O texto aborda a avaliação dos resultados de um modelo assistencial inovado, noperíodo de 1995 a 1997, para adoecidos por LER/DORT, desenvolvido no Centro de ReabilitaçãoProfissional de Campinas do Instituto Nacional de Seguro Social. Dois objetivos foram postospelo estudo: o de reconstituir o programa como precondição da avaliação e o de avaliar a efetivi-dade do modelo assistencial adotado, quanto ao objetivo de resgatar a autonomia dos adoeci-dos. A metodologia envolveu o estudo e análise da documentação do programa para sua recons-tituição quanto à identificação da problemática, inserção organizacional, as relações de inte-resse despertadas, a equipe e suas atribuições, e o perfil da clientela atendida. O estudo dos 221prontuários dos atendidos no serviço permitiu a montagem de um instrumento avaliativo, com-posto de dimensões, variáveis e indicadores, que foi aplicado em uma amostra de 47 prontuáriosnos momentos antes e depois da intervenção. A elevada efetividade do modelo adotado foi cons-tatada, comportando variações nas diferentes dimensões examinadas.Palavras-chave Reabilitação; Transtornos Traumáticos Cumulativos; Avaliação; Efetividade

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Introdução

Os serviços de reabilitação profissional da Pre-vidência Social foram questionados, na décadade 90, quanto à eficácia de suas ações, à efeti-vidade de seus resultados e à legitimidade deseus objetivos. O Relatório Final do Grupo deTrabalho Interministerial sobre Acidentes deTrabalho e Saúde do Trabalhador, apontou osCentros de Reabilitação Profissional (CRPs) doInstituto Nacional do Seguro Social (INSS) co-mo executores de um “modelo ultrapassado,centralizado, inadequado e com desempenhonão satisfatório” (MPAS, 1993:20) e propôs revi-sões, conceitual e prática, desses serviços queimplicavam a sua descentralização, o fomentode parcerias com outras instituições e a padro-nização normativa dos programas para ampliara cobertura.

Essa crítica fundamenta-se na ausência deuma política global da instituição previdenciá-ria para com os acidentes de trabalho e as doen-ças profissionais, cujos dados oficiais demons-travam a ocorrência de 28.271.828 casos notifi-cados no período de 1970 a 1991, com 92.688óbitos (Carmo et al., 1995). Os serviços de reabi-litação foram apontados com uma atuação dis-sociada e omissa nas questões de prevenção efiscalização das condições de trabalho, gerado-ras da magnitude desses eventos.

Após esse Relatório ficou demonstrado quenão se tratava apenas de uma avaliação organi-zacional e dos métodos de trabalho da reabili-tação profissional e sim, de uma crise políticamais ampla, inserida na perspectiva da reformaprevidenciária, na redefinição do papel do Esta-do, por meio do desmonte das políticas sociais,quer pela privatização de serviços (transferên-cia de responsabilidades para outra instituição),quer pela focalização de clientela, isto é, elegen-do seletivamente os grupos a ser atendidos.

Dentre as propostas de reforma do Estado,defendidas pelo governo de Fernando Henri-que Cardoso, estava a previdenciária cujos ar-gumentos de natureza fiscal e econômica justi-ficavam o equilíbrio dos atuais e futuros défi-cits orçamentários do sistema e os efeitos so-bre a política macroeconômica de estabiliza-ção. Essa reforma afetaria os direitos trabalhis-tas conquistados, mas ela não foi realizada in-tegralmente graças às resistências suscitadas.O discurso dessa proposta assentava-se em ar-gumentos de natureza exclusivamente econô-mica, integrando-os ao ideário de formação in-tencionada de uma cultura política de crise,fortemente marcada pelo pensamento priva-tista, reduzindo o direito aos benefícios sociaise estimulando o pagamento pelos planos de

saúde e de aposentadoria, por meio de segurosprivados, como mais uma estratégia econômi-ca de reordenação capitalista (Mota, 1995).

Outros argumentos eram contrários àquelaproposta, lembrando Andrade (2000:7), que o“desequilíbrio não é componente intrínseco deregimes de repartição públicos e equilíbrio nãoé um atributo exclusivo dos sistemas privadosde capitalização” , e propondo a alteração do fi-nanciamento, mediante a taxação sobre o fatu-ramento e o lucro das empresas como basesefetivas de custeio mais amplo da SeguridadeSocial.

A Previdência Social, em 1995, fez uma pro-posta de privatização do Seguro do Acidente deTrabalho (SAT), cujas arrecadação e gerencia-mento seriam feitos por entidades privadas defins lucrativos ou não, que se responsabiliza-riam pela provisão de prestações e serviços pre-videnciários, dentre eles os de reabilitação pro-fissional (Schubert, 1996). Essa proposta tam-bém não foi implementada devido à conforma-ção das resistências.

Constatou-se que, ao contrário de um pe-ríodo de expansão e consolidação dos serviçosde Reabilitação Profissional no Brasil, ocorridonas décadas de 70 e 80, na década de 90, sob osigno do ajuste macroeconômico e da reordena-ção do papel do Estado, iriam ocorrer mudan-ças no nosso frágil sistema de proteção socialque provocariam uma redefinição e encolhi-mento daqueles serviços.

Apesar desse contexto favorável ao des-monte, vigiram nos âmbitos institucionais in-ternos de alguns CRPs experiências inovadorasvoltadas para a mudança do modelo assisten-cial, que queriam romper com a lógica da con-cepção securitária brasileira focalizada exclu-sivamente na recuperação da capacidade la-borativa da clientela, como uma preocupaçãocom a reprodução e manutenção da força detrabalho, vinculada exclusivamente às deter-minações de ordem econômica (Soares, 1991).Os modelos assistenciais tradicionais de reabi-litação profissional ancoravam-se apenas nasintervenções clínicas individualizadas, despro-vidas de investimentos nos vínculos com ospacientes e ensurdecidas quanto às suas ne-cessidades e anseios.

Este artigo resulta de uma pesquisa avalia-tiva realizada no Programa de Atenção aos A-doecidos de LER/DORT (Lesões por EsforçosRepetitivos/Distúrbios Osteomusculares Rela-cionados ao Trabalho) do CRP-Campinas, queincorporou um modelo assistencial renovado,avaliado no período de 1995 a 1997, subprodu-to da Dissertação de Mestrado de Takahashi(2000).

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Embora esse programa tenha sido transitó-rio, a avaliação ex-post da efetividade dos resul-tados alcançados pelo modelo de intervençãoadotado, permitiu demonstrar a importância daexperimentação de inovações que podem con-tribuir para a redefinição de modelos assisten-ciais voltados à reabilitação de trabalhadoresadoecidos por LER/DORT, cujos registros sobreo tema são bastante escassos na literatura.

Material e métodos

O aporte metodológico desta pesquisa ancora-se em Martinic (1997), que concebe o sentido daavaliação de programas sociais como a emis-são de juízo de valor ou de um julgamento, fei-to por uma pessoa ou equipe, sobre as ativida-des e resultados de um programa de interven-ção social. O avaliador recorre a um conjuntode critérios e a um marco referencial que lhepermite comparar, contrastar e interpretar osresultados observados em função de um ou vá-rios padrões explícitos ou implícitos.

Dois objetivos básicos foram postos no es-tudo. O primeiro foi o de reconstituir o progra-ma implementado pela equipe de LER do CRP-Campinas. Segundo recomendação de Marti-nic (1997), para dar início à avaliação é neces-sário compreender tanto os elementos inter-nos da intervenção, ou sejam, as relações esta-belecidas entre os seus propósitos (explícitosou implícitos), quanto os meios e resultadosproduzidos, juntamente com os elementos ex-ternos, isto é, os contextuais que também con-dicionam as possibilidades de êxitos ou fracas-sos da intervenção.

Essa etapa requereu a identificação e leitu-ra exaustiva de 221 prontuários que represen-taram a totalidade dos casos atendidos peloserviço no período de agosto de 1995 a dezem-bro de 1997, dos quais pôde-se extrair o perfilda clientela atendida e a identificação do mo-delo assistencial e de sua lógica e objetivos.

O segundo objetivo do estudo foi o de ava-liar os resultados do modelo assistencial em re-lação ao seu propósito de resgatar a autonomiados adoecidos por LER/DORT. O resgate da au-tonomia foi entendido no sentido de que osadoecidos estavam acometidos por um con-junto de limitações, que podia conduzi-los agraus diferenciados de agravamento da inca-pacidade associada à doença, sendo, entretan-to, possível a eles desenvolver modalidades deconvivência com as limitações decorrentes,produzindo portanto, “novas formas de andara vida”, sempre com base em uma concepçãovitalista da saúde, proposta por Canguilhem

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(1995), que se contrapõe à concepção estanquee polar do normal e do patológico, tão cara aomodelo biomédico.

Dessa forma, da leitura das anotações dosprofissionais feitas nos 221 prontuários que so-maram os atendimentos no período pesquisa-do, pôde-se extrair os cômputos das freqüên-cias absolutas das referências feitas por eles,que foram retraduzidas e interpretadas peloavaliador nas dimensões, variáveis e indicado-res do estudo. Eles estão expostos na Tabela 1 ese constituíram em um instrumento metodo-lógico importante na avaliação. Delas equacio-nou-se o estado de incapacidade dos adoeci-dos nas seguintes dimensões: (1) a física, que épreponderante, à medida em que o adoecimen-to provoca um conjunto de sintomas e sensa-ções desagradáveis; (2) o uso social do corpo quepermite superar a visão meramente mecânica efuncional posta pela reabilitação, substituin-do-a pela capacidade dos adoecidos em usaradequadamente o seu corpo nas atividades co-tidianas; (3) a dimensão do emocional, identi-ficada por um conjunto de estados psicológi-cos e (4) a dimensão da sociabilidade, incluin-do os aspectos relacionais em geral e os especí-ficos ao trabalho.

Uma vez construído esse instrumento, elefoi aplicado na avaliação propriamente dita,feita mediante uma amostra de 47 prontuários,selecionada segundo os seguintes critérios:diagnósticos da LER/DORT grau III, cumpri-mento integral de todas as atividades do pro-grama e encaminhamento exclusivo da PeríciaMédica do INSS de Campinas. Observa-se queos casos diagnosticados no grau III são defini-dos segundo a Norma Técnica de Avaliação daIncapacidade por LER (MPAS, 1993:18) como:“A dor é mais persistente, é mais forte e tem ir-radiação mais definida(...) Há freqüentes paro-xismos dolorosos(...) Há sensível queda de pro-dutividade quando não impossibilidade de exe-cutar a função(...) Os sinais clínicos estão pre-sentes: o edema é freqüente e recorrente, a hiper-tonia muscular é constante, as alterações desensibilidade estão quase sempre presentes, es-pecialmente nos paroxismos dolorosos e acom-panhadas por manifestações vagas como pali-dez, hiperemia e sudorese da mão. A mobiliza-ção ou palpação do grupo muscular acometidoprovoca dor forte. Nos quadros com comprome-timento neurológico compressivo, a eletroneu-romiografia pode estar alterada. Nessa etapa oretorno à atividade produtiva é problemático.Prognóstico reservado”.

Este estudo caracteriza-se como avaliaçãoex-post, isto é, feito após a intervenção. Incluiua abordagem do programa nos momentos an-

Tabela 1

Dimensões, variáveis e indicadores utilizados para avaliar o programa de LER/DORT

do Centro de Reabilitação Profissional. Campinas, São Paulo, Brasil.

Dimensões Variáveis Indicadores

Dimensão física Presença da dor Dor intensa e ininterrupta.

Dor somente ao usar os membros superiores.

Limitações funcionais Dificuldades para elevar ou sustentar os membros superiores.

Dificuldades para mover mãos e punhos.

Fadiga precoce e perda de força muscular.

Presença de tensão muscular acentuada.

Sensações incômodas Parestesias persistentes.

Hipotermia e sudorese.

Presença de edemas.

Dimensão do uso social Realização das tarefas cotidianas Diminuição do ritmo ao realizar tarefas domésticas.

do corpo Baixa tolerância à escrita.

Dificuldades no autocuidado corporal.

Dimensão do emocional Aspectos psicológicos Depressão severa.

Quadro de ansiedade intensa.

Crises de irritabilidade.

Dimensão da sociabilidade Aspectos dos relacionamentos Relacionamento familiar conflituoso.

sociais e de trabalho Aversão às chefias e colegas de trabalho.

Incapacidade para o lazer.

Impossibilidade de trabalhar.

LER/DORT = lesões por esforços repetidos/distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho.

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tes e depois da intervenção que, segundo Mar-tinic (1997), permite caracterizar as mudançasproduzidas num tempo considerado, a ser ve-rificadas, com base em algumas evidências. Ointeresse foi o de aferir o quanto o conjunto dasdimensões, variáveis e indicadores foi alteradoou não em função da intervenção, uma vezconsideradas as manifestações da incapacida-de ou da falta de autonomia dos pacientes nosmomentos antes (na primeira consulta) e depois(por ocasião da alta).

A avaliação da efetividade preocupa-se comos resultados ou o impacto e aplica-se a pro-gramas que querem efetuar mudanças, que po-dem ser objetivas, subjetivas ou substantivas(Figueiredo & Figueiredo, 1986). Neste estudo,a avaliação de efetividade aferiu as mudanças,nos momentos antes e depois da intervenção,o que permitiu estabelecer a comparação entreos resultados sobre a condição de incapacida-de dos adoecidos, obtidos num e noutro mo-mento (Canesqui, 2002 ).

Resultados

A reconstituição do modelo assistencial

Se um dos objetivos do estudo foi o de recons-tituir o modelo assistencial de LER/DORT doCRP-Campinas, como uma precondição da ava-liação, a seguir passamos a caracterizá-lo, se-gundo os seguintes aspectos:

a) Os antecedentes da problemática

A LER/DORT era uma situação-problema noMunicípio de Campinas, uma vez que os profis-sionais do CRP se deparavam com casos graves,sem o nexo-causal reconhecido, nem pelos mé-dicos das empresas, nem pelos peritos do INSS.Os adoecidos afastavam-se sucessivamente dotrabalho, a ele retornando nas mesmas condi-ções que provocaram o adoecer, obtendo oagravamento de sua condição. A ausência dereconhecimento social da doença não mobili-

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zava nenhuma reação coletiva de mudança dassuas condições geradoras. A reversão desse qua-dro impunha-se. Um número grande de adoeci-dos de LER/DORT precisava de atendimentoterapêutico, que lhes resgatasse a autonomiafuncional e o equilíbrio emocional como con-dições imprescindíveis para o retorno ao traba-lho. Esse foi um dos objetivos do programa, combase no consenso da equipe.

b) A lógica da intervenção

A lógica da intervenção é um componente mui-to importante na reconstituição de um progra-ma e permite apreender as escolhas adotadaspelos atores da intervenção na consecução dosobjetivos pretendidos. Segundo Martinic (1997),ela é derivada das concepções e marcos de refe-rência desses atores e vão sustentar as relaçõescausais entre a situação-problema e os objeti-vos da intervenção.

A lógica da intervenção da equipe de LERestabeleceu rupturas com os modos de atuartradicionais da Reabilitação Profissional doINSS e articulou reabilitação com prevenção,rompendo com o isolamento característico dosCRPs, estabelecendo parcerias interinstitucio-nais, garantindo um melhor equacionamentosocial da problemática no Município de Cam-pinas, junto com o controle social dos adoeci-dos sobre as ações e intenções do projeto, porintermédio de sua associação e sindicatos.

O modelo terapêutico procurou romper como modelo biomédico vigente na área, imple-mentando um modo de atenção integral e inte-grado, ultrapassando a intervenção clínica indi-vidualizada e centrada nos aspectos físicos e dacompatibilidade dos adoecidos ao trabalho, re-conhecendo as limitações em outras dimen-sões, como a emocional, relacional e social, edesenvolvendo novos recursos adaptativos parao resgate da autonomia dos adoecidos, não sópara o trabalho, mas para a vida em geral.

c) As relações de interesse

Todo projeto de intervenção provoca muitasreações pois, como observa Martinic (1997), afe-ta tanto as pessoas beneficiárias como outrosinteresses que podem dificultar ou facilitar arealização das ações previstas, atuando comoum “jogo de forças” que pode anular os resulta-dos de um projeto ou legitimar os seus objeti-vos. O projeto de LER/DORT do CRP-Campinasdesencadeou simultaneamente atitudes positi-vas e negativas de diversos atores sociais.

Não havia contradição entre as disposiçõeslegais da reabilitação profissional do INSS e as

ações do projeto, e as citadas rupturas ocor-riam apenas como contradições à lógica domi-nante na instituição. As direções do INSS deCampinas (direção do CRP, supervisão da Perí-cia Médica e gerência regional) garantiram aalocação dos recursos humanos e materiais eofereceram apoio institucional. Os assistidosmantiveram uma percepção positiva do pro-grama, uma vez legitimado pelos sindicatos epela associação dos adoecidos. Este tambémcontou com o respaldo político das diversasinstituições públicas e privadas que compu-nham o Grupo Interinstitucional de LER (GIL)do Município de Campinas.

As reações contrárias foram observadas nasatitudes das empresas que resistiam em reco-nhecer a LER/DORT como uma problemáticadecorrente das condições de trabalho, não aco-lhiam adequadamente os adoecidos reabilita-dos e descumpriam as condições acordadasnas negociações de retorno, o que levou o CRP-Campinas a formalizar várias denúncias contraelas no Ministério Público Federal do Trabalho.As supervisões estadual e nacional da reabilita-ção profissional do INSS também foram forte-mente contrárias à continuidade do projeto, efaziam pressão institucional e pessoal para seuenquadramento nos moldes dos atendimentostradicionais, cuja inadequação na abordagemdos acidentados e adoecidos do trabalho já erademonstrada. Elas serviram de apoio às propos-tas de desmonte articuladas na esfera macroad-ministrativa e política da Previdência Social.

d) O contexto institucional e a inserção organizacional

O Programa de Atenção a LER/DORT foi levadoa efeito por iniciativa de uma das cinco equi-pes de reabilitação profissional que atuavamno CRP-Campinas no período estudado. A equi-pe se reportava técnica e administrativamentea uma supervisão de atividades terapêuticas eà direção do CRP, e contou com o apoio institu-cional dessas duas instâncias, o que lhe garan-tiu, por determinado tempo, condições favorá-veis para seu funcionamento; entretanto, nãose pode minimizar os efeitos desestabilizado-res da reforma em curso que afetaram profun-damente sua continuidade.

As suas atividades adequavam-se aos obje-tivos e à “missão” institucional do serviço, ouseja, o de promover o retorno ao trabalho dossegurados da Previdência Social acidentados eadoecidos do trabalho, encaminhados pela Pe-rícia Médica do INSS, cujo processo de reabili-tação, além das atividades terapêuticas, envol-via a profissionalização e a negociação com as

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empresas para a recolocação dos reabilitadosem funções compatíveis.

e) Os aspectos internos do programa de LER/DORT

O projeto terapêutico foi pensado como umtrabalho interdisciplinar que envolvia, além dosatendimentos individuais ou em grupo, reu-niões técnicas semanais para discussão de ca-sos e definição de metodologias de intervenção.

Por intermédio de reuniões interinstitucio-nais foi formado o GIL para intervir nas empre-sas e provocar mudanças nas condições de tra-balho que estavam gerando a doença. Coubeprincipalmente aos assistentes sociais desen-volver essas atividades.

No âmbito interno do serviço, os resulta-dos obtidos foram sistematizados nas práticasmais importantes de cada categoria profissio-nal e seus objetivos específicos, envolvidos naintervenção.

O assistente social ainda fazia os levanta-mentos situacionais e profissionais junto aosadoecidos e, após sua análise, contextualizavaos casos nas reuniões técnicas da equipe, for-necendo os elementos sociais necessários parasubsidiar a definição das capacidades laborati-vas residuais e orientação das diversas áreaspara os programas de reabilitação. Orientavaos direitos trabalhistas e de cidadania, na bus-ca de melhores alternativas de volta ao traba-lho. Eram atividades concebidas como terapêu-ticas pois, conforme Souza (1997:160), “viabili-zavam outros canais de liberação da energiamobilizada pelo sofrimento, em que pudessemencontrar uma linguagem para elaborar, de for-ma real, os sofrimentos de injustiça e impotên-cia diante do problema”.

O médico medicava e prescrevia tratamen-tos em situações de crises agudas, avaliandotambém clinicamente as condições globais desaúde de cada adoecido, o seu grau de compro-metimento físico, os limites funcionais e a com-patibilidade com a função exercida e a exercerpor ocasião do retorno.

O psicólogo estimulava individualmente aelaboração dos sentimentos dos adoecidos, de-correntes da perda funcional e emocional vi-venciada de modo singular, trabalhando naaceitação dos limites, na aprendizagem da con-vivência com a dor e no estabelecimento de no-vas condutas para a satisfação de seus anseios.O trabalho em grupo objetivava desenvolver osaspectos sadios dos adoecidos e por meio deum processo de identificação, tornava possívelressignificar a LER/DORT, segundo um referen-cial coletivo, reduzindo o nível de angústia e

proporcionando o suporte emocional para a re-construção da identidade abalada pela doença.

O fisioterapeuta oferecia atividades paraque os adoecidos pudessem desenvolver a per-cepção do próprio corpo, conhecendo as suasestruturas e as suas inter-relações, visando ga-rantir a autonomia na criação ou alterações doshábitos posturais e funcionais comprometidos,diminuindo as sobrecargas físicas e tensionais.

O terapeuta ocupacional, servindo-se detécnicas específicas, possibilitava vivências pa-ra os adoecidos desenvolverem posturas corre-tas, mediante a observação e o autoconheci-mento da inter-relação entre tempo, ritmo, res-piração e tensão muscular na realização de ta-refas e nos movimentos de segurar objetos;aprendendo, por meio de relaxamentos, novoscaminhos funcionais adaptativos. Esse traba-lho oferecia ainda adaptações dos adoecidospara as atividades da vida diária e do lazer. Se-gundo Melo (1998), utilizando-se de atividadeslúdicas, expressivas e de relaxamento, realiza-das num setting grupal, possibilitando que atroca entre seus participantes, do que foi expe-rimentado, seja um potencializador para o au-toconhecimento dos hábitos funcionais e pos-turais, o que poderá levar a uma efetiva modi-ficação dos mesmos.

No período delimitado pelo estudo, atua-ram na Equipe de LER/DORT três assistentessociais, um sociólogo, dois médicos, três psicó-logos, dois fisioterapeutas e dois terapeutasocupacionais. As várias alterações na composi-ção da equipe respondiam às necessidades deuma demanda sempre crescente de adoecidosque precisava ser equacionada com as lacunasprovenientes do processo de desmonte do ser-viço, que, como já dissemos, vinha sendo im-plementado pela Previdência Social em âmbitonacional, por meio de pedidos de demissão in-centivada e aposentadorias precoces, motiva-das pela ameaça constante de perdas de direi-tos trabalhistas dos servidores públicos.

O programa de LER/DORT não necessitoude recursos adicionais, a não ser os tradicional-mente viabilizados para os programas: passa-gens e diárias, auxílio-alimentação, auxílio-do-cumentação, mensalidades para cursos profis-sionalizantes e aquisição de instrumentos detrabalho para possibilitar o serviço autônomo,além dos salários da própria equipe. A capaci-dade instalada do serviço foi suficiente para arealização das atividades planejadas e os pro-fissionais definiram autonomamente a suaprópria capacidade de atendimento, a despei-to das intensas pressões por agilização exerci-das pelas supervisões estadual e nacional daárea de reabilitação profissional do INSS.

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f) O perfil da clientela

Com base nos dados obtidos por meio da quan-tificação dos 221 prontuários foi possível iden-tificar o perfil da clientela beneficiária do proje-to. Os dados sistematizados no estudo de Taka-hashi (2000) apontaram uma clientela majori-tariamente feminina, cobrindo 87% (193) douniverso, sendo que 13% (28) era constituída dehomens. Esse perfil de gênero assemelhava-seao encontrado em outros serviços públicos deatendimento de LER/DORT (Sato et al., 1993), erefletia a questão de poder e desigualdade so-cial entre os gêneros encontrada no mundo dotrabalho. Para as mulheres, reservavam-se ostrabalhos monótonos e repetitivos, desprovidosde conteúdo intelectual, que exigem movimen-tos leves, delicados e precisos, de atenção con-centrada, grande responsabilidade e paciência,atividades muito próximas de seus papéis fami-liares, condizentes com o papel feminino, cons-truído socialmente.

Isso explicaria os diferentes impactos que aexposição de riscos ocupacionais, determina-dos pelas condições e fatores da organização dotrabalho, provocam de modo específico em ho-mens e mulheres, contrariando teorias, tão ca-ras às empresas, de um destino biológico e na-turalizado, onde haveria uma predisposição fe-minina para o adoecimento por essa patologia.

Os adoecidos eram, em sua maioria, adul-tos jovens, sendo que 87% (193) tinham entre20 e 44 anos. Esse resultado levou-nos a inferirque, por se tratar a LER/DORT de uma doençaocupacional ligada às exigências de produtivi-dade exacerbadas, os indivíduos jovens, os queestão em sua fase de vida mais produtiva, sãoos mais atingidos porque são os mais requisi-tados pelos parâmetros capitalistas de contra-tação e exploração da força de trabalho.

Quanto ao significado desse adoecimento eincapacitação profissional em pessoas tão jo-vens, constatamos uma faceta ainda mais do-lorosa: a destruição de projetos de vida – repre-sentando uma perda muito significativa daidentidade pessoal e profissional. Para o indi-víduo jovem, as transformações impostas peladoença provocam uma ruptura na antiga iden-tidade já que essa deixou de ser reposta pelomeio social, portanto é preciso que ele busquenovos referenciais para que se reconheça, reor-ganize sua história pregressa e construa umnovo projeto de futuro (Lima et al., 1996).

Em relação à escolaridade, a LER/DORTveio modificar de modo importante o perfil daclientela previdenciária atendida nos CRPs, ha-bitualmente composta por trabalhadores queexerciam funções menos qualificadas e traba-

lhos braçais que não exigiam escolarização. Nouniverso dos adoecidos de LER/DORT atendi-dos pelo CRP-Campinas no período, 43% (95)declararam ter cursado o 1o grau, 30% (66) o 2o e22% (50) tinham o 3o grau ou nível universitário.

A distribuição dos adoecidos de LER/DORTpelos diferentes ramos de atividades produti-vas leva ao entendimento da importância de suaocorrência, segundo alguns ramos de ativida-des, sendo que o ramo bancário foi o mais re-presentado entre os atendidos, com 35% (78),seguido pela indústria metalúrgica com 28%(63) e pelos serviços hospitalares com 11% (24).Embora seja bastante controvertida a discus-são sobre a causalidade da LER/DORT, as for-mas de organização dos processos de trabalho,seu ritmo e intensificação, os modelos geren-ciais e as tecnologias adotadas se imbricam nodesgaste físico e psíquico dos trabalhadores,sendo a LER/DORT uma dessas expressões.

A avaliação propriamente dita

Como segundo objetivo do estudo, apresenta-mos os resultados obtidos na avaliação da inter-venção do modelo assistencial de LER do CRP-Campinas em relação ao seu propósito de res-gate da autonomia dos adoecidos. O estudo daamostra dos 47 prontuários selecionados per-mitiu a montagem da Tabela 2, contendo os re-sultados do cômputo das freqüências absolutasdos indicadores relacionados antes e depois daintervenção.

Na organização desse quadro interessou-semenos pela análise dos resultados quantitati-vos obtidos pelas freqüências e mais pelo seuuso como recurso metodológico da avaliação.Seguindo a proposta metodológica de Martinic(1997), os indicadores podem traduzir-se emunidades de observação das variáveis e dimen-sões que lhes correspondem, às quais foramatribuídas uma ponderação, ou uma qualifica-ção traduzida em valores numéricos e que re-presentam ao mesmo tempo a sua importân-cia, conforme critérios valorativos do próprioavaliador, decorrentes de julgamento das con-cepções (reconstruídas) do modelo assistencialempregado e dos conteúdos do trabalho da equi-pe, anteriormente caracterizados.

A metodologia de análise comparativa e deaferição dos momentos antes e depois incluiua ponderação prévia das dimensões e variá-veis, com base em critérios qualitativos do ava-liador, sendo que correspondeu à dimensão fí-sica o maior peso (40) por ser preponderantena definição da incapacidade dos adoecidos,distribuído nas seguintes variáveis: presençada dor (20), limitações físicas (15) e sensações

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incômodas (5). À dimensão do uso social docorpo foi atribuído peso (30) por ser determi-nada fundamentalmente pela otimização dadimensão anterior, tendo se expressado poruma variável única, a realização das tarefas co-tidianas (30). A essas dimensões seguiram-se aemocional e a da sociabilidade, cada qual re-cebendo peso (15) por serem entendidas comorepercussões dos comprometimentos causa-dos pela LER/DORT nas dimensões anteriorese suas variáveis de expressão foram, respecti-vamente, os aspectos psicológicos (15) e os as-pectos dos relacionamentos sociais e de traba-lho (15).

A Tabela 3 foi elaborada como uma matrizde julgamento e demonstra os resultados obti-dos utilizando-se a multiplicação dos valoresda freqüência absoluta dos indicadores pelosvalores da ponderação e, a seguir, o cálculo dosíndices de variação percentual do momentodepois (D) da intervenção em relação ao mo-mento antes (A), cuja expressão numérica é ∆ =(1 - D/A) x 100, representando o resultado daintervenção, isto é, os percentuais obtidos, quetraduzem as variações na obtenção do resgateda autonomia dos adoecidos.

Pode-se observar na Tabela 3, que na di-mensão física, fortemente marcada pela pre-

Tabela 2

Apresentação da ponderação prévia valorativa das dimensões e variáveis do adoecimento por LER/DORT

e da quantificação dos seus indicadores, nos momentos antes e depois da intervenção.

Dimensões/Variáveis/Indicadores Ponderação Momentos da intervençãoAntes Depois

Freqüência simples Freqüência simples

Física 40

Presença da dor 20

Dor intensa e ininterrupta 43 1

Dor somente ao usar os membros superiores 4 0

Limitações funcionais 15

Dificuldades para elevar e ou sustentar os membros superiores 25 9

Dificuldades para movimentar mãos e punhos 20 7

Fadiga precoce e diminuição da força muscular 38 15

Tensão muscular acentuada 6 0

Sensações incômodas 5

Parestesias persistentes 17 14

Hipotermia e sudorese 10 0

Presença de edemas 17 0

Uso Social do Corpo 30

Realização das tarefas cotidianas

Diminuição do ritmo ao realizar tarefas domésticas 35 13

Baixa tolerância à escrita 21 17

Dificuldades no autocuidado corporal 10 0

Emocional 15

Aspectos psicológicos 15

Depressão severa 21 7

Quadro de ansiedade intensa 22 7

Crises de irritabilidade 11 6

Sociabilidade 15

Aspectos dos relacionamentos sociais 15

Relações familiares conflituosas 11 0

Aversão às chefias e colegas de trabalho 22 2

Incapacidade para o lazer 5 1

Impossibilidade de trabalhar 47 13

LER/DORT = lesões por esforços repetidos/distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho.

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Tabela 3

Resultados ponderados da variação das dimensões e variáveis, e sua comparação nos momentos antes e depois da intervenção.

Dimensões/variáveis Valor de ponderação Momentos da intervenção ∆ = (1 – D/A) x 100Antes Depois

F F x P F F x P

Física 40

Presença da dor 20 47 940 19 380

Limitações funcionais 15 89 1.335 31 465

Sensações incômodas 5 44 220 14 70

Subtotal 180 2.495 64 915 63%

Uso social do corpo 30

Dificuldade na realização 30 66 1.980 30 900das tarefas cotidianas

Subtotal 66 1.980 30 900 55%

Emocional 15

Aspectos psicológicos 15 54 810 20 300

Subtotal 54 810 20 300 65%

Sociabilidade 15

Relacionamentos sociais 15 85 1.260 16 240e de trabalho

Subtotal 85 1.260 16 240 81%

Total 100 385 6.545 147 2355 64%

F = freqüência simples; F x P = produto das freqüências x ponderação; A = antes da intervenção; D = depois da intervenção.

sença intensa e ininterrupta da dor e por quei-xas de severa incapacitação, foi obtido um ga-nho de 63%, não significando, contudo, a curaou a volta à condição anterior ao adoecimento,já que esse não era o propósito definido pelaequipe de atendimento. O resgate da autono-mia significava a aquisição de novos padrõesfuncionais readaptativos que possibilitassem oconvívio com a doença, lidando melhor comela, conhecendo e respeitando seus limites ecom isso obtendo o alívio e a supressão das cri-ses agudas de dor.

A dimensão do uso social do corpo, cuja ex-pressão de gênero se diferenciava, representavapara as mulheres a impossibilidade de realizar,sem ajuda, as tarefas básicas como cozinhar,cuidar dos filhos pequenos, da roupa da família,da limpeza da casa e de si própria; e para os ho-mens, de não poder carregar peso, de cuidar dosconsertos da casa, de fazer barba e outras ativi-dades. O resgate de autonomia foi de 55%, coma diminuição dessas incapacidades que coloca-vam os adoecidos em uma situação de muitosofrimento existencial. Na dimensão emocionalobteve-se a positividade de 65%, pois os ganhosobtidos nas duas dimensões anteriores possi-

bilitaram aos adoecidos readquirir o equilíbrioemocional e o resgate da auto-estima muito aba-lados pelo adoecimento.

Na dimensão da sociabilidade o ganho de81% foi o maior de todas as dimensões, provo-cando alterações no sentimento de inutilidadeque comprometia os adoecidos em seus con-teúdos interpessoais e de volta ao trabalho. Fi-nalmente os resultados totais demonstramque o programa provocou um ganho positivode 64%.

Para se avaliar, entretanto, o grau de efetivi-dade da intervenção sobre o conjunto das ma-nifestações da incapacidade, que comprome-teu a autonomia dos adoecidos em “andar a vi-da”, um dos propósitos explícitos do programa,foi necessário montar uma escala que permiteemitir o julgamento do avaliador, uma vez quea avaliação sempre implica a emissão de juízosde valor, conforme orientou-se conceitualmen-te neste estudo.

Assim, postos os graus de efetividade numaescala que varia de 0 a 100 pontos temos o se-guinte: 0-19 pontos: efetividade muito baixa;20-39 pontos: baixa; 40-59: média; 60-79: efeti-vidade alta; 80-100: efetividade muito alta.

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Aplicando-se esses critérios de julgamentono índice global obtido pela avaliação, demons-trado na Tabela 3, concluímos que a interven-ção atingiu um grau de efetividade alta ao atin-gir 64% no resgate da autonomia, uma vez queela provocou mudanças significativas nos aco-metimentos dos adoecidos. Graus de efetivida-des distintos podem ser atribuídos às várias di-mensões sendo muito alta em relação à socia-bilidade; altas para a emocional e física e médiapara a dimensão do uso social do corpo.

De qualquer modo, houve a permanênciade 36% do efeito inalterado da intervenção em-pregada, o que pode associar-se tanto ao graude limitação proporcionada pelo quadro degravidade do próprio adoecimento (Grau III),quanto à permanência de certos obstáculosinstitucionais, como a rotatividade constantedos profissionais da equipe devido às ameaçasaos servidores públicos feitas pelo governo fe-deral, que ocasionou a corrida às aposentado-rias precoces e pedidos de demissão incentiva-da, bem como a falta de apoio institucional daschefias estadual e nacional da área de Reabili-tação Profissional do INSS que, desde o início,se posicionaram contrárias a esse modelo deatenção e exerciam pressão por agilização eenquadramento em sua condução.

Conclusão

Os efeitos positivos percebidos levaram-nos aconcluir que o Modelo Assistencial de LER/DORT do CRP-Campinas foi capaz de aliviar osofrimento de muitas pessoas, resgatando-lhesa capacitação funcional, emocional e social enum nível mais amplo, contribuiu para o reco-nhecimento social dessa problemática no Mu-nicípio de Campinas. Dessa forma, o modelofoi adequado e inovado para resgatar a autono-mia dos adoecidos de LER/DORT, apesar desua não-continuidade, devido à interferênciados elementos contextuais institucionais, nomomento de desmonte dos CRPs.

Embora não tenhamos verificado as opi-niões e comportamentos dos profissionais li-gados ao programa, é provável que a sua forteadesão a ele, como também o processo de tra-balho adotado (integrado e multidisciplinar),como foi caracterizado por meio de suas atri-buições, tenham contribuído positivamentepara garantir o elevado grau de efetividade domodelo. Certamente outras dimensões da in-tervenção poderiam ser avaliadas, juntamentecom as tecnologias empregadas, mas não seconstituíram em objeto desta pesquisa. Entre-tanto, este estudo, que se preocupou em dimen-sionar a efetividade, sob o ponto de vista quali-tativo, procurou requalificar valorativamente oquantitativo, trazendo como resultado um exer-cício metodológico de avaliação, inspirado naproposta de Martinic (1997), que reitera a im-portância da condução da avaliação como ele-mento de aprendizagem para as equipes e deverificação dos resultados.

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Recebido em 27 de agosto de 2002Versão final reapresentada em 10 de março de 2003Aprovado em 13 de junho de 2003