os atores econômicos na justiça de transição: desenvolvimentos globais e perspectivas...
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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca do Ministério da Justiça
Revista Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério da Justiça. – N.10 (jul. / dez. 2013). Brasília – Ministério da Justiça , 2014.
Semestral. Primeira edição: jan./jun. 2009. ISSN 2175-5329 1. Anistia, Brasil. 2. Justiça de Transição, Brasil. I. Brasil. Ministério da Justiça (MJ).
CDD 341.5462
Governo Federal
Ministério da Justiça
Comissão de Anistia
Presidente da RepúblicaDilma Rousseff
Ministro da JustiçaJosé Eduardo Cardozo
Secretário-ExecutivoMarivaldo de Castro Pereira
Presidente da Comissão de AnistiaPaulo Abrão
Vice-presidentes da Comissão de AnistiaJosé Carlos Moreira da Silva FilhoSueli Aparecida Bellato
Diretora da Comissão de AnistiaAmarilis Busch Tavares
Chefe de GabineteLarissa Nacif Fonseca
Coordenadora Geral do Memorial da Anistia Política do BrasilRosane Cavalheiro Cruz
Coordenadora do Centro de Documentação e PesquisaElisabete Ferrarezi
Coordenadora do Centro de Documentação e PesquisaRenata Barreto Preturlan
Coordenador de Articulação Social, Ações Educativas e MuseologiaBruno Scalco Franke
Coordenador Geral de Gestão ProcessualMuller Luiz Borges
Coordenadora de Controle Processual, Julgamento e FinalizaçãoNatália Costa
Coordenação de Pré-AnáliseRodrigo Lentz
Coordenadora de Análise e Informação ProcessualJoicy Honorato De Souza
As fotos que registram as atividades públicas promovidas pela Comissão de Anistia, no segundo semestre de 2013, são de propriedade do Ministério da Justiça. Demais fotos usadas, com autorização, tem sua fonte indicada nas legendas individuais.
Os textos recebidos em língua estrangeira foram traduzidos pelo Ministério da Justiça sob a responsabilidade técnica dos editores designados indicados nas notas de rodapé. A Revista agradece aos colaboradores desta edição produzida:
Alexandre Mourão, Ana Luisa Amaral, Bianca Dias de Oliveira, Dario de Negreiros, Elisabete Ferrarezi, Gabriela Costa Carvalho, João Alberto Tomacheski, Lethicia Quinto Cirera, Marcelo Torelly, Mayara Nunes, Paula Andrade, Rosane Cavalheiro Cruz, Vanessa Zanella e Vinicius Lins Maia
Esta é uma publicação científica que objetiva a difusão de ideias plurais. As opiniões e dados nela inclusos são de responsabilidade de seus autores, e não do Ministério da Justiça ou do Governo Federal, exceto quando expresso o contrário.
REVISTA ANISTIA POLÍTICA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO
Presidente do ConselhoPaulo Abrão
Coordenador-AcadêmicoMarcelo Torelly
Coordenadora-ExecutivaElisabete Ferrarezi
EstagiáriasBianca Dias de OliveiraLethicia Quinto Cirera
Organização do Dossiê:Juan Pablo Bohoslavsky Marcelo Torelly
Conselho Editorial
Antônio Emanuel Hespanha (Universidade Nova de Lisboa-Portugal), BoaVentura de Souza Santos (Universidade de Coimbra - Portugal), Bruna Peyrot (Consulado Geral- Itália), Carlos Cárcova (Universidade de Buenos Aires - Argentina), Cristiano Otávio Paixão Araújo Pinto (Universidade de Brasília), Dani Rudinick (Universidade Ritter dos Reis), Daniel Araão Reis filho (Universidade Federal Fluminense), Deisy Freitas de Lima Ventura (Universidade de São Paulo) Eduardo Carlos Bianca Bittar (Universidade de São Paulo), Edson Cláudio Pistori (Memorial da Anistia Política no Brasil), Enéa de Stutz e Almeida (Universidade de Brasília) Flávia Carlet (Projeto Educativo Comissão de Anistia) Flávia Piovesan (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), Jaime Antunes da Silva (Arquivo Nacional), Jessie Jane Vieira de Souza (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Joaquin Herrera Flores (in memorian), José Reinaldo de Lima Lopes (Universidade de São Paulo) José Ribas Vieira (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), Marcelo Dalmás Torelly (Coordenador Acadêmico), Maria Aparecido Aquino (Universidade de São Paulo), Paulo Abrão Pires Junior (Editor), Phill Clark (Universidade de Oxford - Inglaterra), Ramon Alberch Fugueras (Arquivo Geral da Cataluña - Espanha), Rodrigo Gonçalves dos Santos (Comissão de Anistia), Sandro Alex Simões (Centro Universitário do Estado do Pará), Sean O’Brien (Universidade de Notre Dame - Estados Unidos) Sueli Aparecida Bellato (Comissão de Anistia).
Conselho Técnico
Aline Sueli de Salles Santos, Ana Maria Guedes, Ana Maria Lima de Oliveira, André Amud Botelho, Carolina de Campos Melo, Cristiano Paixão, Daniela Frantz, Egmar José de Oliveira, José Carlos M. Silva Filho, Juvelino José Strozake, Kelen Meregali Model Ferreira. Luciana Silva Garcia, Márcia Elaine Berbich de Moraes, Márcio Gontijo, Marina Silva Steinbruch, Mário Miranda de Albuquerque, Muller Luiz Borges, Narciso Fernandes Barbosa, Nilmário Miranda, Paulo Abrão, Prudente José Silveira Mello, Rita Maria de Miranda Sipahi, Roberta Camineiro Baggio, Roberta Vieira Alvarenga, Rodrigo Gonçalves dos Santos, Vanderlei de Oliveira, Virginius José Lianza da Franca, Vanda Davi Fernandes de Oliveira.
Projeto GráficoRibamar Fonseca (ACS revisar)
Revisão ortográficaCarmen da Gama (ACS revisar)
Editoração eletrônicaSupernova Design
Capa inspirada no trabalho original de AeM’Hardy’Voltz
A Revista Anistia nº 10 é alusiva ao segundo semestre de 2013, tendo sido editada durante o segundo semestre de 2014.
Atuaram como revisores nesta edição: Alexandre Mourão, Ana Luisa Amaral, Bianca Dias de Oliveira, Dario de Negreiros, Elisabete Ferrarezi, Gabriela Costa Carvalho, Marcelo Torelly, Rosane Cavalheiro Cruz e Vinicius Lins Maia
DOSSIÊ
INTRODUÇÃOOS ATORES ECONÔMICOS NA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: DESENVOLVIMENTOS GLOBAIS E PERSPECTIVAS BRASILEIRAS1
Juan Pablo Bohoslavsky Especialista independente sobre os efeitos do endividamento externo nos direitos humanos, Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Doutor em Direito.
Marcelo TorellyCoordenador acadêmico da Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Mestre e doutorando em Direito, Universidade de Brasília.
UM DEBATE EM ABERTO E CRESCENTE: CONTEXTUALIZANDO A QUESTÃO DA RESPONSABILIDADE ECONÔMICA NO BRASIL
Quando, em 17 de outubro de 2011, o secretário nacional de Justiça do Brasil declarou que “a Comissão da Verdade deve investigar as empresas que financiaram a ditadura” 2, demonstrando
1 Este trabalho foi realizado pelos autores em sua exclusiva capacidade de juristas. Assim, as opiniões expressas nesta introdução são dos autores, não pretendendo representar posições oficiais da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça ou de qualquer outra organização as quais pertençam. Agradecemos aos comentários de Carlos Lopes, Cezar Augusto Baldi, Inês Virginia Prado Soares e Rosa Cardoso a uma primeira versão desta apresentação. Algumas seções desta introdução se baseiam ou reproduzem parcialmente o trabalho anteriormente publicado: Juan Pablo Bohoslavsky; Marcelo Torelly. “Cumplicidade financeira na ditadura brasileira: implicações atuais”. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, n.º 6, Jul./Dez. 2011, pp.70-117.
2 Paulo Abrão: Comissão da Verdade deve investigar empresas que financiaram a ditadura,”. 17 de outubro de 2011, disponível em 204
adesão ao movimento de juristas que argumentam que existe base legal para algum tipo de
responsabilização pelas violações dos direitos humanos que ocorreram durante o regime militar,
conforme já declarado por alguns procuradores da República,3 muitas pessoas (e empresas)
indagaram quais eram as implicações políticas, econômicas, institucionais e as referidas bases
legais desta ideia. Apenas alguns meses após esta declaração, o jornal O Globo reproduziu outra
declaração deste mesmo secretário, de que a responsabilidade dos atores privados deveria
ser o segundo principal objetivo da Comissão Nacional da Verdade, após investigar as mortes,
desaparecimentos e prática de tortura.4
Estas declarações se relacionam a uma variedade ampla e duradoura de demandas da sociedade
civil por responsabilização que foram ganhando força no Brasil nos últimos anos. Este movimento
cresceu ainda mais após novembro de 2011, com a aprovação pela presidente Dilma Rousseff
da criação de uma Comissão Nacional da Verdade (CNV) para investigar crimes do regime militar,
também apoiada por novas e nem tão novas revelações de evidências do envolvimento de
empresas com os militares e as violações dos direitos humanos.5 Pesquisa da latinoamericanista
Leigh Payne, realizada na Universidade Yale e publicada nos anos 1990, já demonstrava cabalmente
o envolvimento do empresariado com o Golpe de 1964. No momento em que inúmeras outras
investigações chegam às mesmas conclusões, esta edição da Revista Anistia publica, pela
primeira vez em português, um resumo atualizado da investigação de Payne, baseada em 155
entrevistas realizadas no final da década de 1980. Soma-se, ainda, a este debate o estudo de
Lúcia Guerra, também contido neste dossiê. Guerra foi uma das coordenadoras do projeto da
Comissão de Anistia do Ministério da Justiça para a digitalização dos fundos documentais do
Tribunal Russell II, disponíveis na Fundação Lélio e Lisli Basso, em Roma (Itália), e apresenta nesta
edição um resumo das evidências encontradas sobre a cooperação de empresas multinacionais
com a prática de graves violações contra os direitos humanos durante a ditadura militar no Brasil.
Embora o Relatório principal da CNV, apresentado ao público em 10 de dezembro de 2014, tenha optado
por focar na responsabilidade do Estado pelas graves violações contra os direitos humanos, o oitavo
capítulo do volume de estudos temáticos é exclusivamente dedicado à participação civil no golpe e na
http://www.viomundo.com.br/politica/paulo-abraocomissao-da-verdade-deve-investigar-empresas-que-financiaram-a-ditadura.html. http://www.viomundo.com.br/politica/paulo-abraocomissao-da-verdade-deve-investigar-empresas-que-financiaram-a-ditadura.html
3 Como os procuradores da República de São Paulo, Marlon Weichert e Inês Virgínia Prado Soares. Ver: Marlon Weichert, O financia-mento de atos de violação de direitos humanos por empresas durante a ditadura brasileira. In Acervo (v. 21, nº 2, 2008); Inês Virginia Prado Soares; Marcelo Torelly. “Cooperação Econômica com a Ditadura”. Folha de S. Paulo, 3 de julho de 2014. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/07/1480130-ines-soares-e-marcelo-torelly-cooperacao-economica-com-a-ditadura.shtml.
4 Prioridade da Comissão da Verdade é localizar desaparecidos. In O Globo, 2 de março de 2012, Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/prioridade-da-comissao-da-verdade-localizar-desaparecidos-4129759.
5 Ver Estudo analisa articulação de empresário pró golpe de 64. Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMos-trar.cfm?materia_id=19959&boletim_id=1168&componente_id=18699 205
manutenção do regime de força.6 Este Relatório temático apresenta nomes de indivíduos e empresas
que, direta ou indiretamente, apoiaram o golpe e a ditadura, descrevendo como concretamente se
deu tal cooperação e fazendo avançar a referida base de evidências circunstanciais que apontam a
necessidade de uma mais ampla perquirição sobre as relações entre o regime autoritário e os atores
econômicos, domésticos e internacionais, durante os 21 anos de ditadura no Brasil.
A ideia central deste movimento por responsabilização é apontar que algumas medidas individuais
e institucionais ainda podem ser aplicadas, desafiando a interpretação de que a lei de 1979
abrigaria à anistia graves violações contra os direitos humanos7. Essa ideia é especialmente
importante naquilo que concerne o envolvimento dos atores econômicos com a ditadura, não
apenas por ser esta temática pouco explorada, mas, sobremaneira, pelo papel que estes atores
desempenharam não apenas na sustentação do regime militar como, também, na configuração
do novo sistema político e econômico que emergiu da transição.
6 Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Brasília, 2014, Vol.II, pp. 303-328.
7 Mobilização da sociedade civil em torno desta reivindicação aumentou rapidamente, como pode ser visto nos movimentos “escula-cho”. Por exemplo, João Coscelli. Grupo ‘esculacha’ torturadores e médicos da ditadura militar. In O Estado de S. Paulo, 14 de maio de 2012. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,grupo-esculacha-torturadores-e-medicos-da-ditadura-militar,872807,0.htm
EM 1978, A EXIGÊNCIA POR COMISSÕES DE FÁBRICA É ASSUMIDA PELOS TRABALHADORES EM GREVE
FONTE: ACERVO OBORÉ.
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Três estudos são relevantes para avançar com a compreensão inicial dos mecanismos disponíveis
(e possíveis de ser construídos) no Brasil para lidar com o tema. Primeiro, o estudo precursor de
Marlon Weichert, publicado no ano de 2008 na Revista Acervo, do Arquivo Nacional.8 Depois, a
investigação sobre cumplicidade financeira no Brasil, procedida por esses autores, Juan Pablo
Bohoslavsky e Marcelo Torelly, na antevéspera da instalação da CNV, publicada em 2011 por essa
Revista Anistia Política e Justiça de Transição9. Este dossiê adiciona um terceiro texto a esta
lista, escrito por Inês Virgínia Prado Soares e Viviane Fecher, analisando o conjunto de medidas
criminais e não criminais de que podem ser objeto aquelas pessoas, físicas e jurídicas, que
cooperaram economicamente com o regime militar de 1964.
Em contextos de violações de direitos humanos, podem ser encontradas conexões estreitas
entre a atuação de atores econômicos e as violações aos direitos humanos, como aquela do
custeio privado da “Operação Bandeirante” (OBAN), a iniciativa militar multiagências encarregada
de reprimir opositores durante a ditadura10 (o artigo de Maria Lygia Koike, neste dossiê, explora
esse tema). Ainda, violações graves e massivas dos direitos humanos fornecem características
de destaque quando observamos mais holisticamente como a atuação de atores econômicos
pode estar relacionada aos abusos dos direitos humanos praticados em geral.
Casos envolvendo grandes influxos de capital, investimentos, benefícios impositivos,
disciplinamento sindical, apoio político de empresários e sistemas criminais complexos que
perpetuam violações graves de direitos humanos necessitam de uma interpretação mais
matizada e sofisticada. Nesse sentido, Dustin Sharp nos aponta em seu estudo para esta edição
que a violência econômica deve necessariamente fazer parte da agenda da justiça transicional,
vez que os regimes repressivos muitas vezes se originam por contextos de disputas econômicas
e/ou implementam políticas distributivas agressivas. A análise da política econômica do regime
militar brasileiro, nesta edição, fica a cargo do professor emérito da Fundação Getúlio Vargas,
Luís Carlos Bresser-Pereira.
Para melhor entender se e como os atores econômicos contribuíram para estes crimes em massa,
é necessário observar a interação entre estruturas, processos, as dinâmicas da economia e da
política do país, e as de violações dos direitos humanos. Deve ser realizada análise interdisciplinar
que leve em consideração não apenas os dados micro como também os macroeconômicos do
8 Marlon Weichert, O financiamento de atos de violação de direitos humanos por empresas durante a ditadura brasileira.In Acervo (v. 21, n.02, 2008 ).
9 Juan Pablo Bohoslavsky; Marcelo Torelly. Cumplicidade financeira na ditadura brasiliera: implicações atuais. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, n.º 6, Jul./Dez. 2011, pp.70-117.
10 Thomas Skidmore, The Politics of Military Rule in Brazil, 1964-1985, Oxford University Press, New York, 1988, pp. 127-8; Weichert, Marlon, O financiamento de atos de violação de direitos humanos por empresas durante a ditadura brasileira,” Acervo, 2008, Vol. 21, n° 2, p. 186. Já existem importantes iniciativas de judicialização em torno da Operação Bandeira. Neste sentido, recomendamos a leitura da Ação Civil Pública que tramita na Justiça Federal da 3º Região, movida pelo Ministério Público Federal: Processo nº 0025470-28.2011.4.03.0000/SP 207
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país e dos mercados internacionais; os processos políticos e institucionais internos e externos;
a situação social; políticas monetárias, financeiras, orçamentárias, industriais e fiscais; a situação
dos direitos humanos, bem como todos os outros fatos relevantes. O presente dossiê se propõe
a contribuir com a solução desse desafio, oferecendo leituras e perspectivas que, a um só
tempo, descrevem a dimensão fática da cooperação econômica e suas consequências jurídicas
e políticas.
OS REGIMES AUTORITÁRIOS E OS ATORES ECONÔMICOS: O CASO BRASILEIRO EM AÇÃO
A literatura econômica e política procurou racionalizar o comportamento de regimes autoritários,
apontando que existe, essencialmente, um “trade off” entre lealdade e repressão.11 Os ditadores
procurarão permanecer no poder, assegurando privilégios para as elites e/ou os militares,
dispondo de benefícios econômicos ou restringindo liberdades políticas. Para permanecer no
poder, um regime tem que ser capaz de enfrentar situações econômicas de modo a garantir
um apoio político mínimo e/ou permitir que a máquina burocrática (particularmente a militar)
funcione de forma eficiente para controlar e reprimir. As fontes econômicas são, por conseguinte,
necessárias para apoiar esta política durante um determinado período.12
Há, em todo regime autoritário, uma equação entre as lealdades que consegue obter e a
repressão que precisa promover. A opção do regime por comprar lealdades, ao conceder
benefícios econômicos (subsídios, proteções tarifárias, salários, consumo etc.), ou por
reprimir a população, como na repressão direta aos trabalhadores e ao movimento sindical,
tema do estudo de Alejandra Esteves e Sam Romanelli Assunção para este dossiê, depende
de alguns fatores. Primeiro, da natureza do regime e sua capacidade de incorporar demandas
sociais e criar instituições.13 Segundo, o desempenho econômico fraco, a recessão, a inflação
e eventuais colapsos cambiais obviamente diminuem o poder de barganha dos ditadores,
11 Bruce Bueno de Mesquita et al., The Logic of Political Survival, MIT Press, Cambridge, Mass, 2003; Ronald Wintrobe, The Political Economy of Dictatorship, Cambridge University Press, Cambridge, 1998
12 Esta seção reproduz e amplia o argumento sobre escolhas racionais antes apresentado em: Bohoslavsky & Torelly, op.cit.; e em Juan Pablo Bohoslavsky, “Tracking down the missing financial link in transitional justice”, The International Human Rights Law Review, 2012, especialmente pp. 82-88. Aplicando este modelo ao caso argentino, veja-se Utilizando este modelo racional en el caso argentino, Horácio Verbitsky & Juan Pablo Bohoslavsky, “Terrorismo de Estado y economía: de Nuremberg a Buenos Aires”, em Horácio Verbitsky & Juan Pablo Bohoslavsky (eds.), Cuentas pendientes. Los cómplices económicos de la dictadura, Siglo XXI Editores, Buenos Aires, 2013, pp. 11-27.
13 Abel Escriba Folch & Joseph Wright, “Dealing with Tyranny: International Sanctions and the Survival of Authoritarian Rulers, ”Inter-national Studies Quarterly, 2010, Vol. 54, p.335208
destruindo sua capacidade de ganhar o apoio público por meio da provisão de benefícios.
Um governo autoritário enfrentando um retrocesso fiscal pode procurar conceder certas
liberdades políticas e civis para garantir o apoio político em curto prazo. Poderia – em vez
disso, previa e sucessivamente – aumentar a repressão para conter os crescentes protestos
sociais. E, terceiro, numa análise macroestrutural, as despesas com bem-estar e com os
direitos políticos parecem diminuir enquanto ocorre um aumento na capacidade repressiva
do regime (geralmente refletida nos dispêndios militares), sugerindo que os regimes
autocráticos, como os militares, se basearão menos nos benefícios econômicos ou aberturas
políticas para garantir o apoio político.
É razoável se esperar que o apoio econômico e político para o funcionamento regular e eficiente
de um regime que perpetua graves violações aos direitos humanos o ajudará a alcançar aquilo
que o caracterizará de modo central nas leituras futuras: levar a cabo uma série de atividades
criminosas que facilitam a consecução dos objetivos políticos, sociais e econômicos do governo
autocrático. O orçamento estatal deve apoiar um sistema efetivo para comprar lealdades e/ou um
aparato repressivo. Especificamente em matéria de ajuda financeira (um capítulo crucial durante
da ditadura brasileira), são as instituições políticas que moldam os empréstimos soberanos, pois
emprestar para os Estados também ajuda a dar forma a suas instituições políticas, incluindo as
criminais. Isto é válido mesmo se considerando a natureza fungível do dinheiro, e o fato de que
os recursos emprestados a um regime criminoso podem também, prima facie, ter um efeito
benéfico para a população, não auxiliando no desenvolvimento de mecanismos repressivos.
Entretanto, este é um caso muito raro.
Em segundo lugar, quando os recursos são efetivamente gastos em programas sociais ou outras
despesas benéficas, isto pode ajudar a conter o protesto e a resistência social e política, prolongando,
assim, a sobrevivência do regime.14 Mais recursos podem proporcionar temporariamente mais
espaço fiscal para ditadores operarem, e com isso eles garantem mais compra de lealdades e menos
repressão. Na realidade, quando os ditadores levam em conta as preferências de grupos externos
que possuem suas próprias prioridades financeiras e orçamentárias, provavelmente obterão algum
apoio social e político que, ao mesmo tempo, os ajudará a atingir sua meta principal: sobreviver no
poder e executar seus planos.15 Esta é a chamada barganha autoritária, um acerto autoritário entre
as elites governantes e setores da sociedade, pelo qual os cidadãos abrem mão da liberdade política
em troca de bens públicos.
14 Antonio Cassese, “Foreign Economic Assistance and Respect for Civil and Political Rights: Chile, A Case Study,” Texas International Law Journal, 1979, Vol. 1979, p. 261; Sabine Michalowski, Unconstitutional Regimes and the Validity of Sovereign Debt: A Legal Perspective, Ashgate, Aldershot, 2007, pp. 52, 82.
15 Jennifer Gandhi, Political Institutions Under Dictatorship, Cambridge University Press, Cambridge, 2008, p.73. 209
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Essas considerações teóricas são confirmadas por estudos estatísticos que vêm identificando
uma correlação entre uma maior quantidade de recursos financeiros emprestados aos governos
autoritários e sua maior prolongação de tempo no poder. Ou seja: o apoio financeiro contribui
para a consolidação política dos regimes autoritários.16
Como operam, na prática do caso brasileiro, essas possibilidades levantadas no plano teórico?
De acordo com o conjunto de investigações apresentadas neste dossiê, o projeto criminoso
imposto ao país pelo regime militar tinha uma clara racionalidade econômica: impor uma
disciplina violenta aos movimentos sociais e sindicais, facilitando a implementação de uma
política de desenvolvimento econômico ensejadora de brutal concentração de renda nos
setores empresariais e rentistas. Em termos gerais, tanto o setor empresarial brasileiro quanto
inúmeros membros do empresariado internacional e de multinacionais aqui operando apoiaram
o golpe e o regime militar. A interrupção do processo de reformas de base e o estabelecimento
de políticas de transferência de lucros e riquezas para os proprietários em desfavor dos
trabalhadores se materializaram na redução dos salários reais, e sua análise contribui para a
compreensão da ampliação da atividade sindical (e de sua repressão brutal pela ditadura), e
para o esclarecimento de alguns dos fatores que motivaram o apoio dos setores empresariais
ao regime autoritário.
O orçamento público, durante a ditadura, não estava propriamente orientado para o
desenvolvimento estável, de longo prazo, mas para uma política específica, cuja capacidade de
gerar crescimento dependeu da contração de uma grande dívida pública, beneficiando atores
privados, que assim mantinham seu apoio ao regime de exceção, reduzindo a necessidade de
repressão direta (em que pese, ambas as estratégias sempre conviverem). Os emprestadores
internacionais, cientes das graves violações de direitos humanos praticadas no Brasil,
igualmente apoiaram e se beneficiaram do regime militar, ajudando-o a cobrir déficits financeiros
permanentes e a levar adiante projetos de desenvolvimento clientelistas que beneficiavam as
elites e destroçaram as organizações trabalhistas e uma série de comunidades indígenas.
Com essas políticas, o chamado “milagre brasileiro”, entre os anos de 1968 e 1974, com acelerado
crescimento econômico, manteve apoios-chave na elite econômica e garantiu alguma adesão
social. Não obstante, esses são justamente os anos onde a violência política para conter os
opositores a tal modelo político e econômico explodiu, com a brutal repressão às forças sociais
de oposição ganhando terreno e a instituição do assassinato e do desaparecimento forçado de
centenas de inimigos políticos do regime como política de Estado. Na economia, ainda, foram os
16 Juan Pablo Bohoslavsky, “Report on financial complicity: lending to States engaged in gross human rights violations,” UN Doc. A/HRC/28/59, apresentado ao Conselho de Direitos Humanos em 09 de março de 2015, disponivel em: http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/HRC/28/59&referer=/english/&Lang=S210
anos do crescimento sem precedentes da desigualdade. O crescimento econômico durante a
ditadura, portanto, não beneficiou a todos, mas principalmente aos seus apoiadores.
Ainda, os apoios políticos, econômicos e financeiros recebidos pelo governo de exceção
contribuíram para estruturar, financiar e manter uma política expansiva de gastos militares,
apesar do déficit comercial e das contas públicas. Sem a ocorrência de guerras ou a existência
de qualquer ameaça externa em potencial, tal expansão de gastos foi basicamente orientada
à repressão interna17, com trágicas e por demais conhecidas consequências para os direitos
humanos.
Fragmentar, analisar e recompor essa dinâmica econômica, política e orçamentária implicam
em um trabalho de investigação complexo que excede em muito os argumentos e informações
disponíveis nesta introdução. Este dossiê se propõe a contribuir com essa investigação, agregando
novas peças ao quebra-cabeça da cumplicidade econômica, analisando também as implicações
jurídicas e políticas do conhecimento cada vez mais amplo do papel dos atores econômicos nas
graves violações contra os direitos humanos.
3. UM OLHAR SOBRE AS EXPERIÊNCIAS COMPARADAS
A origem da consideração jurídica e política do papel dos atores econômicos no contexto dos
governos autoritários remonta os “julgamentos dos industriários” levados a cabo pelo Tribunal
Militar de Nuremberg. Neles, foram julgados os empresários alemães que se organizaram para
contribuir ou se beneficiar do regime nazista. Não obstante o “estado de alerta” produzido na
comunidade internacional pelas atrocidades cometidas pelo Estado nazista, por muitas décadas o
Direito Internacional e o direito internacional dos direitos humanos deixaram de lado a questão da
responsabilidade das corporações, focando apenas as atividades dos próprios Estados. Neste dossiê,
Nelson Camilo Sanchez retoma o desenvolvimento histórico e normativo da ideia de responsabilidade
corporativa nos contextos de transições políticas, ampliando a contextualização histórica do tema.
Em uma apertada síntese dos desenvolvimentos recentes, foi apenas com a aceleração dos
processos de globalização e a emergência exponencial de empresas multinacionais capazes
de criar e destruir riquezas transnacionalmente que a questão da vinculação entre os direitos
17 Para um detalhamento sobre a evolução orçamentária em questão veja-se: Bohoslavsky & Torelly, op.cit., pp.96-98. 211
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humanos e a atuação empresarial ganhou centralidade na agenda internacional18. Para fazer
frente a essa mudança, o sistema das Nações Unidas passou a promover numerosas iniciativas,
especialmente no marco do Conselho de Direitos Humanos, promovendo importantes avanços
na última década19, especialmente a elaboração e negociação de standards globais relacionados
ao tema das empresas e dos direitos humanos (em que pese, tais standards ainda serem débeis
em lidar de forma explícita com a cooperação financeira, e com problemas de acesso à justiça
no âmbito global).
De maneira similar, como nos explica Sabine Michalowski em sua entrevista para esta edição
da Revista Anistia, até bem pouco tempo o campo da justiça de transição igualmente não havia
incorporado em sua agenda, de maneira substancial e sistemática, o tema do papel desempenhado
por atores econômicos nos regimes autoritários. O enfoque conferido pelo campo às violações
contra direitos humanos mais básicos, como a integridade física, e na responsabilidade de
atores estatais ou diretamente envolvidos nos conflitos, como as Forças Armadas e os grupos
paramilitares, bem como a priorização de uma agenda efetiva relacionada ao direito à memória
e à verdade, permitiram um importante incremento de eficácia nas medidas transicionais e na
consolidação da justiça de transição enquanto campo de ação e investigação, mas igualmente
implicaram em um grande nível de exclusão dos atores econômicos nos contextos concretos
dos processos transicionais20.
No entanto, na última década, acompanhamos um gradual incremento no número de Comissões
da Verdade que incorporaram referências ao papel desempenhado pelas empresas e pelos
empresários durante os períodos autoritários. São exemplo as comissões do Quênia, da Libéria, de
Serra Leoa, da África do Sul e de Timor Leste. Atualmente, na Argentina, existem várias iniciativas
e projetos ligando justiça de transição e economia. No âmbito federal, foi recentemente aprovada
uma lei para criação de uma Comissão da Verdade sobre a cumplicidade econômica. No âmbito
estadual, a província de Rio Negro aprovou uma lei em 2014 criando uma Comissão da Verdade
exclusivamente dedicada para a investigação da cumplicidade econômica durante a ditadura.21
Iniciativas similares tramitam nas casas legislativas das províncias de Buenos Aires e Santa Fé.
18 Horacio Verbitsky & Juan Pablo Bohoslavsky, “Terrorismo de Estado y economía: de Nuremberg a Buenos Aires”, em Horacio Ver-bitsky & Juan Pablo Bohoslavsky (eds.), Cuentas pendientes. Los cómplices económicos de la dictadura, Siglo XXI Editores, Buenos Aires, 2013, pp. 11-27.
19 Devemos igualmente registrar trabalhos prévios que enfocaram a dimensão socioeconômica dos governos autoritários. Em 1977, Antonio Cassese foi designado pela Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas como relator especial com manda-to para avaliar a relação que existia entre a ajuda financeira que recebia o regime do general Augusto Pinochet e as violações aos direitos humanos sofridas pela população do Chile. Em seu informe, Cassese desenvolveu uma metodologia para avaliar de maneira integral o impacto da ajuda econômica na situação geral dos direitos humanos. (Veja-se: Antonio Cassese, “Study of the Impact of Foreign Economic Aid and Assistance on Respect for Human Rights in Chile”, E/CN.4/Sub.2/412,Vols I-IV, 1978. Disponível em: http://www.antoniocassese.it/english/reports/home.htm).
20 Naomi Roht-Arriaza, “¿Por qué la dimensión económica estuvo ausente tanto tiempo en la justicia transicional? Un ensayo explora-torio”. In: Verbitsky & Bohoslavsky, op. cit., pp. 31-43.
21 Veja: http://www.legisrn.gov.ar/lrn/?p=10077 212
Outro fator que contribui fortemente para o crescimento da agenda econômica nos debates da
justiça de transição, na academia e na prática institucional, e da discussão sobre os padrões de
conduta mínimos esperados das empresas e corporações, tem relação com o desenvolvimento
exponencial experimentado pelo campo mais geral das empresas e direitos humanos. Dezenas
de livros e centenas de artigos científicos, além de blogs, cátedras universitárias, seminários,
cursos de capacitação e afins vêm se dedicando a analisar questões afins a esta relação. O
desenvolvimento deste campo é tão notável que, assim como ocorreu com a justiça de transição,
o mesmo passou a constituir-se enquanto uma área de investigação científica própria: negócios e direitos humanos.22
Ao mesmo tempo em que o campo acadêmico florescia, como nos aponta Wolfgang Kaleck em
sua entrevista, uma plêiade de casos estratégicos passou a ser denunciada em Cortes por todo o
mundo, reclamando contra empresas por sua atuação ou cumplicidade com violações contra os
direitos humanos. Os casos de maior visibilidade ocorreram na jurisdição dos Estados Unidos, em
22 Andrew Clapham, Human Rights Obligations of Non-State Actors, Oxford, Oxford University Press, 2006.
GREVE DE OSASCO. FÁBRICA OCUPADA PELOS TRABALHADORES. OSASCO-SP. ANO DE 1968.
FONTE: ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO - FUNDO ÚLTIMA HORA.
213
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diversos países europeus e na Argentina. Os tribunais
de justiça vêm sendo utilizados com frequência para dar
visibilidade às atividades corporativas que impactam de
maneira negativa os direitos humanos. Esse movimento,
para além de visibilizar as violações, igualmente objetiva
a descontinuação das práticas abusivas e a obtenção
de compensações pelos danos ocorridos. As ações
civis movidas, nos anos 1990, nos Estados Unidos, por
familiares de vítimas do Holocausto contra entidades
financeiras que cooperaram com o regime nazista,
se beneficiando da desgraça destas mesmas vítimas,
constituem um notável exemplo desta tendência de
judicialização.
Entre os países mais próximos ao Brasil, a vizinha
Argentina se notabilizou pela promoção de passos
concretos e importantes para a responsabilização dos
cúmplices econômicos da ditadura militar tida entre
1976-1983. Atualmente encontram-se sob investigação
administrativa, penal e civil, múltiplos casos relacionados
à cooperação de empresários com a ditadura,
incluindo a desaparição dos próprios trabalhadores das
empresas (às vezes por solicitação de seus dirigentes).
Ainda, tribunais da Justiça do Trabalho declaram ser
imprescritível a reclamação trabalhista de natureza
indenizatória contra empresas pela desaparição forçada
de trabalhadores nas dependências corporativas.
Vítimas da ditadura acionaram civilmente os bancos que
financiaram o governo militar, exigindo conhecer os detalhes da trama financeira que permitiu a
sustentação do regime de fato.
Ainda, promotores de Justiça do Ministério Público argentino solicitam autorização para investigar
os proprietários de veículos de comunicação, bem como jornalistas que implementaram
campanhas de manipulação de informações, sendo coniventes com o projeto repressivo.
Procedimentos administrativos e penais foram abertos para investigar acusações de extorsão
de empresários por parte de membros do regime militar ou mesmo outros empresários. A
Unidade de Informação Financeira do Estado apresentou a um tribunal criminal evidências de
roubo de bens das vítimas da repressão e da trama de empresas de fachada que seriam, ainda
“Os trabalhos reunidos neste dossiê representam uma primeira tentativa coletiva, no âmbito acadêmico brasileiro, de descrever e analisar, de maneira holística, o sistema político, econômico e social da ditadura brasileira em relação à participação e cumplicidade de atores econômicos na prática de graves violações contra os direitos humanos”
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hoje, responsáveis por dissimular práticas criminosas. Finalmente, em 2014 foi aprovado pelo
Congresso Nacional um novo Código Civil com disposição expressa vedando a aplicação de
prescrição ou cláusulas restritivas de responsabilidade em ações civis referentes a crimes contra
a humanidade23, inclusive a cumplicidade econômica.
A despeito desse grande número de iniciativas, não se verificou nenhum abalo expressivo nos
sistemas políticos e econômicos dos países protagonistas dos casos e políticas citados na África
e Europa, na Argentina e nos Estados Unidos. Esse fato fatalmente contraria a muito difundida
tese de que investigar abusos do passado, especialmente aqueles promovidos por setores
sociais poderosos – como militares e empresários – desestabilizaria a democracia presente.
4. AVANÇANDO COM A COMPREENSÃO DA COOPERAÇÃO ECONÔMICA: CONTRIBUIÇÕES ACADÊMICASPara que qualquer iniciativa de justiça de transição voltada à cumplicidade econômica possa ser
exitosa é necessário combinar um amplo conhecimento teórico e prático da mecânica envolvida com
um uso a um só tempo responsável e criativo dos instrumentos legais e institucionais disponíveis.
Uma exploração inicial destes mecanismos foi explorada em nosso artigo de 2011, nesta Revista
Anistia24. Outro universo de alternativas, possibilidades e desafios é deslindado a seguir.
Os trabalhos reunidos neste dossiê representam uma primeira tentativa coletiva, no âmbito
acadêmico brasileiro, de descrever e analisar, de maneira holística, o sistema político,
econômico e social da ditadura brasileira em relação à participação e cumplicidade de
atores econômicos na prática de graves violações contra os direitos humanos. Mais ainda,
representa um empenho de reflexão criativa sobre como mobilizar ferramentas legais e
institucionais para que o esforço de prestação de contas com o passado não deixe de fora
a importante dimensão da cumplicidade econômica.
Para avançar nesta agenda, o dossiê propõe-se a responder (mesmo que apenas por tentativa)
um conjunto questões-chave: Qual foi o papel dos atores econômicos durante a ditadura? Qual
23 Código Civil Argentino, Lei 26.994, aprovada em 2014, Seção 2.561.
24 Juan Pablo Bohoslavsky; Marcelo Torelly. Cumplicidade financeira na ditadura brasileira: implicações atuais. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, n.º 6, Jul./Dez. 2011, pp.70-117. 215
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política econômica foi implementada pelo regime? Quem são os beneficiários desta política?
Quem saiu perdendo? Existem possibilidades de se responsabilizar os cúmplices econômicos?
De que maneira?
As duas entrevistas que abrem essa edição especial da Revista Anistia, com Wolfgang Kaleck
e Sabine Michalowski, oferecem uma rica contextualização do estados das artes do tema da
cooperação econômica com violações aos direitos humanos desde uma perspectiva orientada
para a prática, no caso do fundador do European Center for Constitutional and Human Rights (Alemanha), e de outra acadêmica, pelo olhar da professora da Faculdade de Direito da
Universidade de Essex (Reino Unido).
O dossiê Cooperação Econômica com a Ditadura Militar Brasileira propriamente dito, por
sua vez, é inaugurado com um texto que se propõe a enfrentar uma das principais questões
levantadas nesta introdução: por que a pauta econômica ficou por tanto tempo na periferia da
justiça de transição. Dustin Sharp, professor da Universidade de San Diego (Estados Unidos),
argumenta que o viés liberal dos primeiros esforços no campo configuraram um preferência
por temas de direitos e responsabilidades individuais, excluindo questões econômicas e de
justiça social. Retomando a genealogia da justiça de transição proposta por Ruti Teitel25, Sharp
aponta evidências da emergência de uma quarta fase, caracterizada pela junção das pautas
atinentes aos direitos sociais e do campo dos negócios e direitos humanos com as da justiça
de transição.
Após esta contextualização teórica sobre a razão e os objetivos de se investigar a cooperação
econômica, a diretora do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Oxford (Reino
Unido), Leigh Payne, nos brinda com um estudo até o presente inédito em língua portuguesa.
Atualizando parte de seu trabalho original realizado na década de 1980 e publicado nos anos
199026, ela analisa os resultados de 155 entrevistas com empresários nacionais e estrangeiros que
atuaram no Brasil durante o regime militar. Payne conclui que o apoio dos setores empresariais
ao golpe teve menos razões ideológicas do que econômicas. A instabilidade no ambiente de
negócios teria sido o motor que levou à aglutinação do setor empresarial, geralmente individualista
e fragmentário, em favor do golpe de 1964. Confirmando a tese de que lideranças do setor
industrial tiverem responsabilidade imediata pela ruptura com a ordem democrática, Payne
argumenta ainda que tal responsabilidade é distinta após o golpe, com parte do setor seguindo
leal ao regime, enquanto outras questionavam a prolongada ausência democrática.
25 Ruti Teitel. Genealogia da Justiça Transicional. In: Felix Reategui (org.), Justiça de Transição – Manual para a América Latina. Brasília/Nova Iorque: Ministério da Justiça/ICTJ, 2011, pp.135-170. Veja também: Fazer justiça em um contexto de mudança política é olhar para o passado mas também para o futuro – Ruti Teitel responde Marcelo Torelly. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, n.º 3, jan./jun. 2010, pp.27-39.
26 Leigh A. Payne, Brazilian Industrialists and Democratic Change. Johns Hopkins University Press, 1994.216
Se o primeiro estudo contextualiza o tema macro da justiça quanto à violência econômica, e
o segundo funciona como evidência empírica do envolvimento de atores econômicos com o
Golpe de 1964, o terceiro artigo, do pesquisador colombiano Camilo Sanchez, da organização
DeJusticia, promove a conexão entre os temas, apresentando um panorama sobre a evolução
da doutrina e da prática alusiva à cooperação econômica com violações de direitos humanos e a
responsabilidade corporativa a ela correlata em contextos transicionais. Para Sanchez, a despeito
da existência de uma inequívoca responsabilidade dos atores corporativos, estabelecer a ligação
entre seus atos e as práticas de violações contra os direitos humanos é ainda o maior desafio do
campo, especialmente em casos de violência massiva e generalizada.
Os dois artigos seguintes analisam a atuação do setor produtivo e dos complexos empresariais
durante a ditadura, desde distintas perspectivas. O professor emérito da Fundação Getúlio Vargas,
Luís Carlos Bresser-Pereira, analisa como o modelo exportador de manufaturados promovido pela
política econômica do regime militar produziu um tipo crescimento efetivo, porém concentrador de
renda, fortalecendo a aliança entre agentes técnico-burocráticos do governo e o setor produtivo.
Já a historiadora Lúcia Guerra, professora da Universidade Federal da Paraíba, se debruça sobre o
acervo do Tribunal Russell II, tido na década de 1970 em Bruxelas e Roma sob a liderança do senador
socialista italiano Lélio Basso. As atas do tribunal de opinião contam com pormenorizado registro da
participação de empresas transnacionais no suporte e prática de graves violações contra os direitos
humanos na primeira década da ditadura militar. Aqueles interessados em aprofundar o estudo
das dimensões econômico-financeiras da ditadura militar brasileira podem ainda acessar nossa
investigação de 2011, originalmente publicada por esta Revista Anistia27, nas sentenças do Tribunal
Russell II traduzidas ao português e também publicadas nesta Revista Anistia, em 201228, e buscar
mais evidências fáticas no volume de resultados do Tribunal Russell II sobre as multinacionais e a
repressão na América Latina, recentemente traduzido ao português e publicado em parceria entre
o Ministério da Justiça e a Universidade Federal da Paraíba, no ano de 201429.
O trabalho de Inês Virgínia Prado Soares e Viviane Fecher, sexto artigo do Dossiê, explora as
possibilidades de iniciativas oficiais e não oficiais que podem levar ao estabelecimento alguma
forma de responsabilização de empresas por sua cumplicidade com a ditadura militar. Não se
detendo à dimensão criminal, o trabalho exploratório empreendido pelas autoras, respectivamente
membro e servidora do Ministério Público Federal, amplia e complementa as possibilidades
de mobilização de ferramentas da justiça de transição para tratar da cumplicidade apresentada
acima e alhures.
27 Juan Pablo Bohoslavsky & Marcelo Torelli. Op. cit.
28 Tribunal Russell II Sobre a América Latina. Sentenças I, II e III. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília, n.º 8, Jul./Dez. 2012, pp.460-562.
29 Tribunal Russell II. As Multinacionais na América Latina. João Pessoa: Editora UFPB, 2014. 217
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A repressão contra trabalhadores e os vínculos de ação e interesse entre empresas e o regime
militar no desmantelamento das entidades de luta de classe e defesa de direitos laborais são
o tema do estudo de Alejandra Esteves e San Romanelli. As autoras iniciam contextualizando o
caráter classista da repressão aos trabalhadores, distinguindo-a de outras formas repressivas, a
seguir apresentando evidencias de que a classe trabalhadora foi a mais duramente perseguida
pelo regime militar, um argumento que ajuda a compreender as alusões laborais presentes no
programa de reparações brasileiro30.
Finalmente, os últimos dois trabalhos do dossiê dialogam com personagens e fatos históricos
que dão concretude ao cenário geral apresentado nos estudos anteriores. A pesquisadora da
Universidade de Coimbra, Maria Lygia Koike, apresenta relato sobre a perseguição à Inês Etienne
Romeu, enquanto Rodrigo Medina Zagni e João Pedro Fortes Zagni, da Universidade Federal
de São Paulo, resenham o filme O dia que durou 21 anos sobre a operação Brother Sam e o
envolvimento norte-americano com o Golpe de 1964.
A seção de Documentos desta décima edição da Revista Anistia renova a tradição desde periódico
de traduzir ao português e disponibilizar ao público importantes aportes institucionais sobre temas
da justiça de transição. Dialogando com o presente dossiê, restam traduzidos e publicados os
três volumes do Informe sobre Cumplicidade Empresarial e Responsabilidade Legal, produzido
pela Comissão Internacional de Juristas entre os anos de 2005 e 2008. O informe causou grande
impacto ao apontar de forma inovadora como as mudanças da sociedade global implicam na
necessidade de repensar (ou, pensar criativamente) a cumplicidade empresarial, provocando
amplas reações, favoráveis e contrárias (algumas das quais captadas pela revista britânica The Economist em um editorial no ano de 2008)31.
Sem pretender esgotar o tema, o presente dossiê Cooperação Econômica com a Ditadura Militar Brasileira reúne perspectivas da Ciência Política, Direito, Economia, História e Sociologia para
fornecer ao seu leitor um amplo panorama sobre o envolvimento de atores econômicos com as
graves violações contra os direitos humanos, e as medidas legais e políticas possíveis de serem
adotadas. Com esse esforço esperamos contribuir para o movimento (globalmente em ascensão)
que joga luz nas periferias do campo da justiça de transição, expondo não apenas as violações
e seus responsáveis imediatos, mas também os interesses escusos e as causas geradoras da
ruptura com a ordem democrática, e os cúmplices e beneficiários deste regime criminoso.
30 Veja-se, no mesmo sentido: Paulo Abrão & Marcelo D. Torelly. O programa de reparações como eixo estruturante da justiça de tran-sição no Brasil. In: Felix Reategui (org.), Justiça de Transição – Manual para a América Latina. Brasília/Nova Iorque: Ministério da Justiça/ICTJ, 2011, pp.473-516. Assim como: Paulo Abrão & Marcelo D. Torelly. O sistema brasileiro de reparação aos anistiados políticos: contex-tualização histórica, conformação normativa e aplicação crítica. Revista OABRJ. Rio de Janeiro, vol. 25, nº 02, Jul./Dez. 2009, pp.165-203.
31 The Economist. Companies and Human Rights – not the usual suspects. Printed edition. September 25th, 2008.218