o riot grrrl e a busca por uma identidade punk e feminista

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O Riot Grrrl e a busca por uma identidade punk e feminista Laíssa Suyan Torres; Henrique Gieseke Quando falamos, na maioria das vezes, sobre o movimento punk e o hardcore, nos vem a imagem de bandas masculinas, ou de homens. O que é compreensivo, já que é um movimento claramente masculinizado. Mas, nos dias de hoje podemos reverter esse cenário graças ao movimento feminista Riot Grrrl, fruto do grito de resistência de meninas punks no início da década de 90. Neste trabalho, analisaremos a partir da história de vida da Amanda Flores, nossa entrevistada, o processo de formação de identidade das Riot Grrrls como meninas punk e também como feministas. Amanda toca atualmente na banda Ostra Brains, já teve outras bandas e também ajudou a formar um coletivo feminista, hoje em dia extinto. No dia da entrevista, a encontrarmos para a entrevista foi algo bem informal e tranquila, justamente pelo fato de um dos entrevistadores (no caso a entrevistadora, pois somos um rapaz e uma moça), ser conhecida dela, fomos até a casa de um amigo, que mora bem no centro de Niterói, o que facilitaria a logística para todos. Foram duas horas (aproximadamente) escutando sem muita dificuldade o relato da Amanda, que não precisou de interferências para conseguir nos proporcionar um relato cheio de questões e pontos fortes, seguindo sua linearidade e temporalidade próprias. Mas como já foi dito, vamos nos focar na questão da identidade Riot Grrrl 1 , fazendo uma análise temática de sua narrativa e não biográfica. Antes de mais nada, é importante ressaltar um dos traços principais da entrevista é que foi, como Portelli (1997) afirma, uma entrevista entre iguais: em toda entrevista, 1 O movimento Riot Grrrl surgiu nos Estados Unidos, em Olimpia, quando duas garotas punks, Kathleen Hanna e Tobi Vail criaram o zine Revoluon Girl Style Now, e depois, juntas com outra punk, Kae Wilcox, começam outra zine, Bikini Kill e posteriormente fundaram a banda Bikini Kill, a percussora do eslo e movimento Riot Grrrl. 1

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O Riot Grrrl e a busca por uma identidade punk e feminista

Laíssa Suyan Torres; Henrique Gieseke

Quando falamos, na maioria das vezes, sobre o movimento punk e o hardcore, nos vem

a imagem de bandas masculinas, ou de homens. O que é compreensivo, já que é um

movimento claramente masculinizado. Mas, nos dias de hoje podemos reverter esse

cenário graças ao movimento feminista Riot Grrrl, fruto do grito de resistência de

meninas punks no início da década de 90.

Neste trabalho, analisaremos a partir da história de vida da Amanda Flores, nossa

entrevistada, o processo de formação de identidade das Riot Grrrls como meninas punk

e também como feministas.

Amanda toca atualmente na banda Ostra Brains, já teve outras bandas e também ajudou

a formar um coletivo feminista, hoje em dia extinto. No dia da entrevista, a

encontrarmos para a entrevista foi algo bem informal e tranquila, justamente pelo fato

de um dos entrevistadores (no caso a entrevistadora, pois somos um rapaz e uma moça),

ser conhecida dela, fomos até a casa de um amigo, que mora bem no centro de Niterói, o

que facilitaria a logística para todos. Foram duas horas (aproximadamente) escutando

sem muita dificuldade o relato da Amanda, que não precisou de interferências para

conseguir nos proporcionar um relato cheio de questões e pontos fortes, seguindo sua

linearidade e temporalidade próprias. Mas como já foi dito, vamos nos focar na questão

da identidade Riot Grrrl1, fazendo uma análise temática de sua narrativa e não

biográfica.

Antes de mais nada, é importante ressaltar um dos traços principais da entrevista é que

foi, como Portelli (1997) afirma, uma entrevista entre iguais: em toda entrevista,

1 O movimento Riot Grrrl surgiu nos Estados Unidos, em Olimpia, quando duas garotas punks, Kathleen

Hanna e Tobi Vail criaram o zine Revolution Girl Style Now, e depois, juntas com outra punk, Katie Wilcox, começam outra zine, Bikini Kill e posteriormente fundaram a banda Bikini Kill, a percussora do estilo e movimento Riot Grrrl.

1

acontece uma troca entre os sujeitos, sendo essa troca, verdadeira quando não acontece

de forma forçada ou enganosa. Toda entrevista pede esta igualdade, a fim de melhorar a

relação entre os sujeitos. No nosso caso, esta relação foi possível devido a

entrevistadora fazer parte da rede da entrevistada, e, por manterem um certo laço de

amizade, resultado da identidade coletiva das duas: o Riot Grrrl.

O que é muito forte no discurso da Amanda, é a questão da identidade, tanto feminista

quanto punk, dela. Em seu discurso nos fica claro que, a partir do momento em que ela

começa a escutar bandas de rock, ela procura por uma identidade, uma participação

mais ativa das mulheres, dentro do rock:

“A primeira cantora que eu cheguei a ouvir, [...] foi a Avril Lavigne. Eu gostava muito,

eu tinha aquela coisa de que não tem cantora no meio. Como assim? Só vejo banda

com homem... e eu falava, eu lembro que eu reclamava muito disso com o meu irmão,

falava bastante disso com ele ‘Bruno, por que você só escuta banda com homem, não

tem banda com mulher, banda toda de mulher? ’, e ele falava ‘ah, as que tem não

devem ser boas. ‘Rolava aquele comentário machistinha, hoje em dia ele diz que não,

mas eu lembro muito bem desse comentário”.

Entendemos que tratar da questão da identidade não pode ser possível se não falarmos

também sobre a memória.

Segundo Michel Pollack (1992) a memória é algo individual, “próprio da pessoa”, mas

ela também deve ser entendida como algo coletivo e social. “É um fenômeno construído

coletivamente (...) submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes”.

Segundo o autor, essa memória (individual e coletiva) é constituída pelos

acontecimentos vividos pessoalmente pela pessoa, vividos por ela por tabela, ou seja,

“acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente

pertencer”. Além disso, a memória também é constituída por pessoas, personagens que

realmente se encontrou durante a vida, personagens conhecidas por tabela e que não

pertenceram ao espaço-tempo da pessoa. Por último, também há os lugares da memória,

que estão ligados a lembranças, podem não ter apoio cronológico, serem lugares de

comemorações, etc. A memória pode sofrer alterações como fenômenos de transferência

e projeções2 e, a partir disso, temos uma das características da memória: ela é seletiva,

2 Não cabe a esse artigo elaborar detalhadamente os fenômenos da memória. Ver: POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, RJ, n.10, p.200-215, 1992.

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tanto a individual quanto a coletiva. É um fenômeno construído, conscientemente ou

inconscientemente, logo:

“Podemos dizer que, em todos os níveis, a memória é um fenômeno construído social e

individualmente, quando se trata da memória herdada, podemos também dizer que há

uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de

identidade”. (POLLACK, 1991, p. 204).

A partir da leitura do Pollack sobre memória, entendemos que esta é, segundo o autor, o

elemento fundamental para a formação da identidade, tanto a individual quanto a coletiva:

“A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros,

em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que

se faz por meio da negociação direta com outros. Vale dizer que memória e identidade

podem perfeitamente ser negociadas, e não são fenômenos que devam ser

compreendidos como essências de uma pessoa ou de um grupo”. (POLLACK, 1991,

p.204)

Para Zygmunt Bauman (2005), a identidade e o pertencimento que ela gera, também é

algo passível de mudanças, as decisões que o próprio sujeito toma durante a vida, molda

essa identidade e o seu pertencimento. Esse pertencer necessita de uma “comunidade”,

que pode ser tanto de vida quanto “fundida por ideias”.

A identidade só irá ter alcançado seu pertencimento quando se encontrar na segunda

comunidade, a de ideias e princípios. Segundo o autor, provavelmente ninguém se

encontra somente em uma comunidade de ideias de cada vez. Nesse caso, nós não

possuímos somente uma identidade, e sim, várias identidades que se transformam de

acordo com nossas comunidades e nossas decisões ao longo da vida.

A identidade não é algo que se descobre, é algo que é construído, inventado. É um

objetivo que pode ser influenciado de acordo com o que acontece ao nosso redor:

“As “identidades” flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas

e lançadas pelas pessoas em nossa volta[...].

Perguntar quem é você só faz sentido se você acredita que possa ser outra coisa além de

você mesmo; se você só tem uma escolha, e só se o que você escolhe depende de você,

ou seja, só se você tem de fazer alguma coisa para que a escolha seja “real” e se

sustente”. (BAUMAN, 2005 p. 19).

Nesse texto, analisamos o processo de identificação de garotas da nova geração do Riot

Grrrl a partir desses dois conceitos: o de identidade construída e em transformação, e,

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memória individual, característica primordial para o processo de identificação com o

coletivo, sendo esta, uma memória silenciada e subterrânea que cria essa nova

identidade punk, como uma forma de tomar uma participação mais ativa no movimento

e contestar esse silêncio.

O punk já nasceu na década de 70 com a proposta de ser contrário ao mainstream: as

grandes mídias, gravadoras, etc. Era uma forma de se dissociar do rock progressivo que

estava no auge naquela época e que para muitos jovens da época, tinha perdido a

essência da década anterior.3

E dentro da própria coletividade punk existia uma memória feminina. Uma memória

que, por muito tempo, foi silenciada e, pode-se dizer, que ainda a silenciam, mesmo que

minimamente.

De acordo com o autor Michel Pollack (1989) toda memória coletiva irá ter memórias

concorrentes, pois, além do discurso oficial, há memórias subterrâneas, e, estas são

“apagadas”, deixadas de lado, mas, em momentos de crise, elas se tornam públicas,

evidenciando a disputa entre as memórias do coletivo.

Essa disputa fica clara no caso do começo do movimento Riot Grrl, como a Amanda nos

conta:

“O Riot Grrrl foi basicamente uma explosão de sentimentos em relação ao machismo

absurdo que acontecia no cenário do hardcore. Porque as meninas gostavam de punk

rock, elas gostavam daquilo, gostavam de ouvir aquele som, que é basicamente como

eu me sentia quando era mais nova, me sentia rejeitada no colégio, me sentia sozinha

porque não tinha com quem compartilhar, mas como lá nos Estados Unidos tudo é

mais amplo e mais acessível do que aqui no Brasil, tinha sim grupos de meninas.

Poucos grupos, mas tinham grupos de meninas que iam pra assistir shows e

namoravam aquele carinha da tal banda, era namorada do guitarrista, era namorada

do baterista. Mas elas também curtiam o som, não só iam pra ficar segurando a bolsa

do namorado, a mochila, o casaco e ficar naquele canto ali, mas também elas curtiam

o som. Só que os homens, naquele tempo ali, eles discriminavam muito a presença

delas ali ou, simplesmente, quando não discriminavam ridicularizavam o fato delas

estarem ali, sabe. E ai finalmente elas: “não, pera ai, isso tem que ter um basta, calma

ai, queridinho, eu também gosto de hardcore”, “qual o problema?”, “só porque eu sou

3 A origem do punk gera muitas controvérsias, sabendo-se que as primeiras bandas ditas punks, nasceram da segunda metade de 70. Ver: BIVAR, Antônio. O que é punk? São Paulo: Brasiliense, 2001.

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uma menina”, “eu também gosto de som, assim, pesado”. E ai começou a vir bandas

como Blats, Bikini Kill, BlatMobile, Teen Drash, (...) muita banda foi surgindo com

esse movimento do Riot Grrrl, com essa proposta do all the girls to the front. (...) A

vida inteira eu fiquei segurando o teu casaco, segurando a tua mochila, é, cuidando

dos seus pertences no canto do show, assistindo quietinha ali, sem poder entrar na

roda, sem poder chuta macho, sem poder dá o mosh, sem poder dá um stage dive sem

ser abusada ou passarem a mão no corpo, se aproveitarem de mim porque eu to

pulando do palco, ter aquela coisa do tato, das pessoas se aproveitarem. Vai ter

menina aqui na frente e elas vão cuidar umas das outras, é isso, elas vão se divertir

porque elas querem também se divertir como todo mundo tem direito, acabou, é isso”.

Nesse relato do início do Riot Grrrl, a entrevistada também nos mostra um exemplo

claro de memória coletiva vivida por tabela e também uma individual que entrelaça com

sua identidade atual: Quando ela mostra que se sentia excluída na sua época de escola,

assim como aquelas garotas lá na década de 90 também se sentiram um certo dia, ela

revive uma lembrança dela e ao mesmo tempo de outras garotas que pertencem a

mesma comunidade que ela.

Refoçando essa dificuldade de enquadramento das meninas no punk, Erica de Melo

(2013), conta que as garotas são colocadas em provação, para saber se elas conseguem

ser tão boas quantos os meninos, se tocam com a mesma intensidade do que eles, se são

tão viris quanto eles. E esse quadro só dificulta ainda mais a inserção das garotas no

punk.

Essa ausência e falta de bandas femininas dentro do rock e do punk, fez da bandeira

principal do Riot Grrrl o emponderamento das garotas: colocando-as como

protagonistas, ocupando o lugar de direito delas dentro da cena que por muito tempo

lhes foi negado, tendo bandas só de meninas, compondo músicas sobre suas vivências,

etc. É muito importante que elas se sintam inseridas ali.

O aspecto estético e agressivo masculino do punk também está presente no Riot Grrrl,

se esse antes era usado como uma forma de diminuir as meninas, agora estas se

apropriam das características masculinas, seja a roupa menos feminina, no caso das

lésbicas4 ou o jeito de tocar um instrumento, como uma forma de resistência, de mostrar 4 Na atualidade a presença da identidade lésbica no Riot Grrrl está cada vez mais forte e explícita. Uma forma de reiterar essa identidade foi apropriar-se do termo pejorativo em inglês, “dyke” e também do “butch” para criar uma identidade lésbica feminista dentro do punk, também como uma forma de

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que esse estilo musical agressivo também pode ser feminino, mulheres não são

delicadas, frágeis, elas são tão capazes de serem agressivas quantos os garotos. Logo,

para essas meninas, não basta ser punk, tem que mostrar força, agressividade, mostrar

que pode ser tão forte quanto os rapazes:

“O Riot Grrrl surgiu por conta disso, por conta dessa coisa toda, de rolar essa

barreira, essa muralha em volta das mulheres. De: ‘não, você é mulher, você é fraca’,

‘você vai pular do palco, minha filha? ’, ‘você vai se quebrar toda aí, depois vai ter

que te levar no hospital’, ‘a gente não, a gente é macho, quebro o nariz depois boto no

lugar e tá tudo certo, se quebra de novo’. Um pouco dessa visão. É uma visão bruta? É

uma visão bruta, claro, mas quem me garante que o cara se quebrando ali também não

vai ter que ir pro hospital, sabe, é um ser humano, as pessoas têm um pouco essa visão

atrasada de que só mulher sente dor, só mulher sofre. A mulher sofre pra caramba, isso

é fato, só que o homem também. [...]

[...]porque a sociedade é isso, ela faz isso com você, ela te fragiliza, mesmo que você

não seja frágil, ela te fragiliza simplesmente pelo simples fato de você ter nascido uma

mulher, só isso. Independente de você estar usando um vestido, uma saia, um boné,

uma calça, a sociedade vai olhar pra você “ah, você é uma mulher, então peraí

queridinha”, sabe. Meu irmão tinha muito mais liberdade do que eu nesse ponto,

[...]Quando o Bruno tinha 14 anos ele pôde ir pra, sei lá, pro Espirito Santo, pra casa

de fulano: “ah, mas o Bruno é menino”. Essa era a desculpa: o Bruno é menino, ponto.

Eu ficava com raiva daquilo, porque a minha, assim, desde que quando eu era

pequena, eu via coisas que o meu irmão podia fazer, e eu me questionava o que é que

tem de errado comigo, por que que eu não posso fazer, sabe. “Porque você é menina”,

“meninas não fazem isso”, “meninas não podem fazer...”. As pessoas te limitam sem

você ter a capacidade, a capacidade não, sem você ter a chance de fazer, as pessoas te

limitam”.

Além de quebrar a dominação masculina dentro da cena, o Riot Grrrl, devido ao seu

caráter feminista, problematiza o papel da mulher de ser frágil e passivo na sociedade (e

no próprio punk), começa-se a relatar abusos, discutir suas sexualidades, os padrões

postos nas revistas femininas sobre o que é ser mulher, etc. tudo isso através do meio

musical e de outros mecanismos próprios da cena punk, como os zines5, tudo pautado na

contestação à esse padrão de beleza feminino, onde a menina tem que ser delicada, frágil, gostar de mini-saias ou vestidos e usar maquiagem.5 Zines e e-zines são publicações não comercializáveis típicas do underground, principalmente do punk e do hardcore, que são compostas de poesias, desenhos, críticas musicais, divulgação de bandas, relatos pessoais, etc. Foi uma das formas (e a origem) do riot grrrl se espalhar pelo mundo todo e aqui no Brasil, na década de 90, seu principal meio de divulgação de ideias feministas e bandas. Ver: DE MELO, Érica.

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filosofia do “do it yourself” ou, “faça você mesmo”, que prega a independência das

bandas, dos coletivos, de produzirem e divulgarem seus próprios materiais, sem precisar

depender das grandes gravadoras.

A divulgação do riot grrrl é tão exitosa aqui no Brasil que só se expandia mais e mais.

Então, Elisa, vocalista da banda paulista Dominatrix6, através das redes sociais,

organizou o Lady Fest7, um festival independente que contava não somente com a

apresentação de bandas femininas como também com oficinas voltadas para o ensino da

autodefesa, sexualidades, exposições e exibição de vídeos independentes.

Para além de São Paulo, em Salvador também acontecia o Vulva La Vida8, que tinha

uma proposta semelhante à da Lady Fest:

“Foi uma das melhores viagens, uma das melhores experiências que eu poderia ter que

me fizeram abrir a mente pro feminismo. Foi uma coisa incrível, incrível. Eu conheci

mulheres, meninas, enfim, garotas, de, sei lá, do Brasil todo, do mundo inteiro: eu

conheci uma alemã, eu conheci uma mulher do Cazaquistão, eu conheci, sabe, uma

russa, eu conheci uma argentina, duas mexicanas, uma boliviana. Eu conheci muitas

mulheres. Isso só as de fora do país, né, e ainda tinham as que eram do país, que eram

de Curitiba, São Paulo, Rio Grande do Norte, Manaus. Tinha gente pra caramba, tinha

muita menina, muita”.

Essa movimentação e organização de festivais feministas também, graças a identidade

coletiva, gera uma vontade em outras meninas de fazerem o mesmo, gera um

sentimento de pertencimento muito forte, como foi o caso da Amanda:

“Eu lembro que nesse tempo eu falei: “cara, eu vou fazer um evento onde tenham bandas com

mulheres e o evento vai ser feminista”. Porque eu estava muito empolgada com aquela coisa do

feminismo e a Eliza Gargiulo e as meninas do Dominatrix, todas elas fizeram lady fest em São

Paulo porque lá fora rola muito esse evento, lady fest. [...] Aí eu conheci a questão do lady fest

e conheci o festival Vulva La Vida que acontecia em Salvador. O Vulva La Vida teve 3 edições,

Feminismo não morreu – As Riot Grrrls em São Paulo. Revista Ártemis. PB, vol. 15, n 1, 2013. pp. 161-178.6 Dominatrix, banda riot grrrl de São Paulo, é reconhecida como a primeira banda do estilo brasileira. Tendo a vocalista como a que trouxe o movimento para o Brasil. Devido a esse caráter percussor no Brasil, a banda se apresentou em edições do festival Lady Fest na Europa e também nos Estados Unidos. O que trouxe mais visibilidade à banda e ao estilo no âmbito nacional.7 Lady Fest foi o festival independente primeiramente organizado nos EUA pela Kathleen Hanna, vocalista do Bikini Kill, que era voltada ao público feminino punk, onde rolavam discussões diversas e a divulgação de bandas feministas. Posteriormente, devido ao seu sucesso, começou a ser realizado em países da Europa e também aqui no Brasil, em São Paulo.8 O Vulva La Vida foi resultado da I Convocatória Riot Grrrl Salvador, organizado pelo Coletivo feminista Na Lâmina da Faca. Aconteceu em três edições, a última tendo sido em 2013.

7

se eu não me engano. [...] Eu fiz o Sufrágio Feminino porque eu não podia ir no Vulva La Vida

e falei: ‘cara, eu preciso de um festival feminista, eu preciso movimentar porque aqui no Rio eu

não vejo nada disso’. Poxa, se em Salvador um grupo de meninas, um coletivo de meninas se

reuniram pra fazer isso porque gostam. Por que que eu não poderia também? Fazer o mesmo,

tentar reunir meninas aqui e fazer um evento maneiro como esse, tentar movimentar essa coisa.

Porque eu nem tinha noção dessa palavra “cena” ainda. Tipo, tentar movimentar essa coisa,

dá um estímulo”.

Além da esfera musical e as formas alternativas de divulgação, o Riot Grrrl é uma nova

forma de ser feminista, de fazer feminismo, uma forma jovem, que se afasta dos

ambientes acadêmicos e teóricos característicos de um feminismo tradicional:

“Ao afastar-se dos parâmetros do feminismo tradicional, a cena musical das Riot Grrrls é um

dos movimentos que se constroem justamente nessa tensão dos mecanismos identitários de

gênero, utilizando a música, principalmente o punk (muitas vezes, as adeptas se referem a punk

hardcore), tanto como instrumento identitário quanto como veículo de luta política, como

instrumento de protesto e de sociabilidade”. (CASADEI, 2013, 199).

A temática feminista das Riot Grrrls, no princípio, é sobre o dia-a-dia, sobre padrões de

beleza, educação sexista. E já nas bandas das gerações posteriores, as meninas cantam e

escrevem sobre lesbianidade, a questão do aborto, da violência doméstica. Mesmo que

muitas garotas se vejam como feministas antes de pertencerem ao Riot Grrrl, no caso da

Amanda e de muitas outras garotas da nova geração, o processo de identificação com o

feminismo ocorre depois da identificação com o Riot Grrrl:

“E feminismo é muito importante pra mim por que? Porque ele me faz abrir os olhos e enxergar que eu não estou ficando maluca, que eu sou capaz de fazer tantas coisas quanto um homem. E isso dentro do, eu estou falando isso tudo, mas isso tudo tá inserido dentro do hardcore, do Riot Grrrl, do feminismo tudo tá inserido de forma que me auxiliou bastante na minha vida[...]as minhas letras sempre foram feministas e tal, a grande maioria das letras são sobre feminismo, sobre essa coisa da mulher sofrer perseguição na sociedade, ódio, assédio, abuso, etc.A maioria das letras são sobre isso, mas são de forma implícita, ninguém consegue perceber exatamente o que é, mas eu sei o significado de todas as músicas. Nesse ponto sempre tive muita liberdade na banda, sempre mesmo. Até porque se não tivesse esse tipo de liberdade eu não estaria na banda, eu não estaria porque se eu estou numa banda onde eu não posso me expressar, onde eu não posso por o que eu sou, então eu não estou na banda, eu não estou fazendo parte daquilo, eu só estou ajudando. Eu só estou de enfeite, digamos assim”.

A adesão de meninas jovens ao movimento feminista talvez tenha sido possível por

causa do Riot Grrrl, pois, sua linguagem, sua forma de fazer música, de interagirem

8

entre si como uma coletividade que se identifica não somente com o gosto musical, mas

também com vivências e traumas. Tamém proporciona a construção de uma identidade

jovem feminista, muito característica dos dias de hoje.

Se antigamente as feministas Riot usavam basicamente as zines e e-zines como

divulgação e ativismo, as atuais não só utilizam as redes sociais para divulgação tanto

de e-zines mas de músicas e bandas, como a organização de coletivos que são formados

nessas redes e que extrapolam para locais públicos, e também formam selos

independentes com o propósito do emponderamento feminino e da divulgação de seus

trabalhos artísticos:

“[...]de 2013 a final de 2014, digamos assim, existiu o coletivo que eu montei com a Letícia e outras amigas, que era o coletivo Raiotage, aqui no Rio. É o coletivo que era, tinha essa coisa do queer9 e tinha essa coisa do interseccional, mesmo que não estivesse explicitamente, era isso.[...]E o coletivo era pra tudo, era pra estimular fazer zine, estimular fazer fanzine, revistinha, estimular a ter banda, estimular a tocar algum instrumento, estimular a escrever, a pintar, a desenhar, a qualquer coisa, escrever um livro, a fazer um documentário, fazer um vídeo.[...]O coletivo Raiotage juntou muita menina foda, desculpa o termo, muita menina bacana, muita menina incrível, menina interessante, menina que contribuía muito. Porque todas elas acabaram ficando muito amigas e o coletivo não era meu e da Letícia, nós formamos o coletivo, mas o coletivo era de todas, sacou, todas elas tinham propriedade, elas comandavam aquilo, todo mundo ali, aquilo era de todo mundo”..

Fora esse relato sobre o coletivo feminista Raiotage, também há o relato de meninas se

organizando em outro coletivo, mais restrito à publicações e um selo, para gravações:

“elas resolveram montar um outro coletivo, só que era só pra zine, só pra fazer impressões, que é a Drunken Butterfly, que é da Micha, da Hana, da Ju, da Sofia e da Letícia. Ai elas fazem algumas zines, como protesto, zines feministas, de cunho feminista, falando sobre o dia a dia, falando sobre histórias, várias coisas, é muito interessante, é um selo bastante interessante. Elas também fizeram um selo pra gravar bandas de meninas que é a Efusiva”.

Considerações Finais

A História Oral é uma corrente histórica que tem proporcionado o debate e a narrativa

de diversas culturas e setores populares, que não estão incluídos nas memórias dos

9 Queer é um termo em inglês utilizado para falar sobre questão de gênero relativo à comunidade LGBT, principalmente. Ver: BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

9

grupos dominantes. É uma forma subversiva de se fazer História. Assim como o punk e

o riot grrrl são movimentos subversivos que contestam o status quo.

Partindo da análise teórica sobre identidade e memória, percebemos que o Riot Grrrl é

uma nova forma de ser feminista que somente é possível a partir da irrupção do

protagonismo das garotas dentro do meio punk, quebrando assim, com uma memória

silenciada dentro do movimento, mas que, não quer repartir ou segregar os meninos, e

sim mostrando que ali em cima do palco ou no meio dos shows, também é lugar para

meninas.

Esse primeiro movimento feminista e punk na década de 90 perpetuou-se até os dias

atuais, fazendo com que meninas mais jovens do que aquelas pioneiras, também

incorporassem essa identidade riot grrrl e feminista, mantendo no cenário punk e

hardcore, questionamentos que a esfera masculinista do punk não permitiu serem feitos

20, 30 anos atrás.

É uma identidade que está construída, mas que ainda sofre alterações de acordo com as

gerações que vão surgindo e, agora luta para se manter, assim como Bauman explicita.

Mas também é uma identidade enraizada na memória, como Pollack também fala. As

novas Riot Grrrls, como é perceptível em algumas falas da Amanda, se espelham nas

memórias das mais antigas como uma força de reafirmar sua identidade, não só

individual mas também uma identidade de pertencimento coletivo.

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Referências bibliográficas

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e identidades. História Oral (Rio de Janeiro), São Paulo, v. 6, p. 9-26, 2003.

POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, RJ, n.10,

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Fontes audiovisuais

Documentários:

Bela Donas: meninas na cena punk. Direção: Anelise Paiva Csapo. Brasil: 2004, 1

DVD (9 min.), son., color. Documentário (trabalho de Conclusão de Curso, PUC – SP).

Botinada: a origem do punk no Brasil. Direção: Gastão Moreira. Brasil: ST2 Vídeo,

2006. 1 DVD (100 min.), son., color. Documentário.

Punk: Atitude!. Direção: Don Letts. EUA: Focus, 2006. 2 DVD‟s (224 min.), son.,

color. Documentário

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tipo de entrevista: história de vida e temática

entrevistador(es): Laíssa Suyan Torres; Henrique Gieseke levantamento de dados: Equipe pesquisa e elaboração do roteiro: Equipe sumário: Laíssa Suyan Torresconferência da transcrição: Equipe gravação: Henrique Giesekelocal: Niterói - RJ - Brasil data: 25/01/2016 duração: 2h 17min páginas: 40

Entrevista realizada para a confecção de um artigo como trabalho final do curso

instrumental “História e Fontes Orais” ministrado pela professora Juniele Rabelo para o

curso de História da Universidade Federal Fluminense no período 2015.2.

Temas: Movimento Punk, identidade, Riot Grrrl e feminismo.

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Sumário

Entrevista 20/01/2016

Áudio único: Relato sobre o movimento punk e o Riot Grrrl no Brasil e em outros

países. Relação do feminismo com o movimento riot grrrl.

Entrevista

Amanda: Eu me apresento? Meu nome é Amanda Flores e vou falar um pouco sobre o

movimento Riot Grrrl, o feminismo dentro do cenário, dentro do underground. Dentro

do underground carioca e de uma certa forma dentro do underground nacional e

internacional e o meu contato direto com o cenário em si.

Eu comecei a ouvir rock e tal por causa do meu irmão quando tinha 9 anos. Sempre

me senti um pouco distante dessa coisa da música popular, quando era mais novinha eu

sempre gostei do que era, como posso dizer, diferente, não diferente de uma forma que

eu quisesse aparecer, mas o diferente que as pessoas não costumavam ouvir, não era

uma coisa comum. Então, eu sempre tive interesse por isso, eu comecei a ouvir rock e

tal, eu conheci primeiro, bandas do new metal, né, como muitas pessoas conhecem,

como, sei lá, Linkin Park, várias outras bandas nessa pegada. A primeira cantora que eu

cheguei a ouvir, que eu tinha 9 anos, isso foi em 2003, hoje em dia eu estou com 22

anos, foi a Avril Lavigne. Eu gostava muito, eu tinha aquela coisa de que não tem

cantora no meio. Como assim? Só vejo banda com homem... e eu falava, eu lembro que

eu reclamava muito disso com o meu irmão, falava bastante disso com ele “Bruno, por

que você só escuta banda com homem, não tem banda com mulher, banda toda de

mulher? ”, e ele falava “ah, as que tem não devem ser boas.” Rolava aquele comentário

machistinha, hoje em dia ele diz que não, mas eu lembro muito bem desse comentário.

Eu tinha o que, 9, 10 anos, é aquela coisa, né, você tem um irmão mais velho, você

acaba indo, seguindo muito o que ele diz, você não tem ainda aquela capacidade de

questionar aquilo de: “não peraí, tá errado isso”.

14

E ai com o tempo eu fui crescendo, mas aquela vontade de procurar bandas que

tivessem mulheres nunca saiu da minha cabeça, sabe. Eu nunca tive, na minha família

não tem ninguém que escute, além do meu irmão, que goste dessa coisa mais do rock e

tal, meu irmão gosta de metal, né. Não tem ninguém, ninguém além dele que escute

rock. A minha família gosta de ouvir pagode, samba, mpb, axé, funk, forró, qualquer

coisa, mas que não seja rock. Isso é normal, a maioria das famílias são assim.

Eu fui crescendo, né. Na época do colégio eu fui conhecendo pessoas, na verdade eu

fui me aproximando de menino porque era muito, muito difícil terem meninas

envolvidas com esse tipo de música. Porque o rock em geral sempre foi visto como uma

coisa meio agressiva uma coisa, aquela coisa rotulada de: “ah, o rock é agressivo

demais, você é uma menina”, “ah, você tá jogando futebol”. Eu sempre fui

relativamente masculinizada pelos outros e eu mesma tinha um pouco dessa postura, de

estar no meio de um bando de menino, desde, sei lá, desde de pequena, jogando futebol,

jogando totó, sabe, jogando carta no meio de menino, fazendo essas brincadeiras mais

de moleque, que são tidas como brincadeira de moleque. Por que? Porque eram as

únicas pessoas que eu encontrava que tinham gostos parecidos com os meus, gostos

musicais. Eu nunca consegui, na época do colégio era muito difícil ter uma amiga que

eu me aproximasse e falasse: “cara, você gosta desse som aqui?”. E a gente tivesse um

gosto em comum ali, era bem difícil. Então, foi um pouco difícil. Eu ouvia muito essas

bandas do mainstream, né. Daí quando eu comecei a entrar pro ginásio eu comecei a

conhecer bandas mais de pop punk: Blink 182, Offspring, Greenday, Nofx e várias

outras bandas também de homens.

Ah, minto! Antes disso, antes de conhecer essas bandas pop punk, eu ainda estava

nessa coisa de, nessa ânsia, ao mesmo tempo que eu ainda escutava as bandas com

homens, etc. Eu não tinha preconceito, eu gostava e tal, não tinha raiva, não tinha um

sentimento de repulsa como muitas feministas tem, rola isso e é compreensível,

totalmente, e eu respeito numa boa. É que antes de conhecer essas bandas pop punk eu

conheci, eu sai catando, eu lembro que eu entrava na internet, sei lá, eu devia ter uns 12

ou 13 anos já nessa época, e comecei a catar bandas com mulheres e as bandas que eu

tinha contato diretamente, quando eu achava, eram oque: The Donnas. Ai em 2008 e

2007, acho que foi, 2007 e 2008 tiveram dois anos consecutivos que tiveram show do

The Donnas lá no Inferno lá de São Paulo. Eu não pude ir porque eu era muito nova,

minha mãe também não queria ir comigo e ambos os shows foram, rolaram num

15

domingo, tanto em 2007 quanto em 2008 e a minha mãe não me deixava ir sozinha,

tinha aquela coisa de “ah, você é nova”, “ah, eu já tenho 14 anos”, “eu já tenho, sei lá,

15, não-sei-o-que”, “não, você é muito nova pra viajar sozinha”. Rolava esse lance

porque a sociedade patriarcal é toda de pegar você e tratar você como um objeto frágil o

tempo todo, não que você esteja segura 100% “ah meu deus, eu sou poderosa, etc”. Não,

porque a sociedade é isso, ela faz isso com você, ela te fragiliza, mesmo que você não

seja frágil, ela te fragiliza simplesmente pelo simples fato de você ter nascido uma

mulher, só isso. Independente de você estar usando um vestido, uma saia, um boné, uma

calça, a sociedade vai olhar pra você “ah, você é uma mulher, então peraí queridinha”,

sabe. Meu irmão tinha muito mais liberdade do que eu nesse ponto, com 14 anos se ele

quisesse viajar pra São Paulo, ele poderia e eu não: ”não, você só tem 14 anos”. Eu:

“sim, mas o Bruno também tem”. Quando o Bruno tinha 14 anos ele pôde ir pra, sei lá,

pro Espirito Santo, pra casa de fulano: “ah, mas o Bruno é menino”. Essa era a

desculpa: o Bruno é menino, ponto. Eu ficava com raiva daquilo, porque a minha,

assim, desde que quando eu era pequena, eu via coisas que o meu irmão podia fazer, e

eu me questionava o que é que tem de errado comigo, por que que eu não posso fazer,

sabe. “Porque você é menina”, “meninas não fazem isso”, “meninas não podem

fazer...”. As pessoas te limitam sem você ter a capacidade, a capacidade não, sem você

ter a chance de fazer, as pessoas te limitam.

Então, esse lance da música, eu achei The Donnas, eu achei uma banda pop lá, de

pop roquisinho, assim, vendo um filme, um, acho que com 12 anos, aquele Sexta Feira

Muito Louca, que a filha troca de corpo com a mãe, e ai a filha é toda roqueirinha, tinha

uma banda dela, e eu ficava viajando naquilo, eu falava: “cara, que legal”. E ai eu

lembro que eu comprei o DVD desse filme, que eu fiquei tão, assim, sabe. Doze anos,

eu não podia sair de casa, eu cresci a vida inteira morando em Duque de Caxias, então

meus pais tinham aquela coisa de medo de sair de casa, de “ah, vai ser assaltada”, pode

ser estuprada, pode acontecer algum abuso, alguma coisa assim, o que é real, isso

acontece. Então eles me trancavam muito em casa, se eu quisesse sair com alguma

amiga, eu tinha que ir na casa dela, mas, sei lá, de carro, eu não andava de ônibus, eu fui

começar a andar de ônibus com praticamente 14 anos, até os meus 14 eu não andava de

ônibus, eu não pegava ônibus. Como eu estudei até os meus 13 anos em colégio de

freira, colégio católico, era bem regrado, eu tenho respeito e tal, porque o ensino é bom,

mas era um lance meio quartel. Essa questão de você ter que estar ali andando na linha,

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seguir e tal. Eu já sou meio doida, né, já sou meio, sei lá, já gosto de rock e tal, já sou

tida como rebelde pela sociedade, pela minha forma de vestir, usar piercing, tatuagem,

essas coisas. Hoje em dia é uma coisa mais aceitável, mas a muitos anos atrás, eu

lembro que quando eu era pequena era uma coisa que incomodava bastante, eu lembro

disso e eu queria desde nova, sempre quis botar piercing, fazer tatuagem, as pessoas

ficavam me olhando pensando: “um pequeno demônio” “aquela garota ali, não bate

bem”. Então, era isso, achavam que eu era muito revoltada, porque era essa coisa

adolescente, que isso era fase, e na verdade não, eu nunca quis fazer mal a ninguém,

nunca quis ser aquela sementinha do mal. Eu sempre gostei de ouvir som e sempre, e

nunca foi algo, eu nunca ouvia som pra incomodar ninguém, era porque eu gostava de

ouvir, da mesma forma que existem pessoas que vão a baile funk, gostam de ouvir, e só,

sem querer incomodar ninguém.

Mas tudo bem, enfim. Pulando essa parte de preconceitos, voltando a essa parte da

cena feminina. Eu conheci The Donnas, conheci essa banda por conta desse filme do

Sexta Feira Muito Louca eu comprei o DVD e fui vendo os créditos e as bandas que

tinham, as bandas não, os vídeos, etc. Eu descobri duas bandas, uma eu esqueci agora o

nome e a outra era Lilix, que eu tenho até o CD, eu lembro que eu comprei depois o CD,

sai catando pela vida. Anos, muitos anos depois eu achei o CD e fiquei meio que

nostálgica pensando: “caraca, cara, acho que foi por causa dessa época que eu comecei a

me envolver com o feminismo”. E foi muito legal era uma banda pop, né, era um

roquezinho bem leve e tal, mas é muito legal e eram todas meninas. Eu lembro que

depois desse filme me incentivou muito a querer procurar cada vez mais bandas ligadas

as mulheres e isso, cara, foi 2005 ou 2004, por ai, acho que 2004. Dessa época em

diante até hoje eu pesquiso que nem uma louca atrás de bandas que tenham mulheres

porque tudo que é vindo das mulheres é algo que me interessa e me representa, de

alguma forma, mesmo que, sei lá, que aquela mulher, aquela vocalista abra a boca pra

falar besteiras de alguma forma, ela estando no palco já esta me representando,

independente do que ela esteja dizendo, se o que ela diz pode não me representar, ok,

posso não concordar com a visão dela, mas o fato dela ser uma mulher, estar no palco,

aquilo dali já me dá um pouco de orgulho, já me dá um pouco de felicidade. E ai eu

pesquisei bastante, e essa banda Lilix, ela tinha uma baixista que eu, não sei, que o

nome dela era Louisie, e eu ficava toda encantada, aquela coisa do fã e do ídolo, né, e eu

ficava toda encantada, “eu acho ela linda”, “ah, ela é incrível”, “ah, po, contrabaixo é

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um instrumento tão legal”. E eu comecei, tipo, ninguém nunca da muita importância a

quem toca baixo, normalmente quando você monta uma banda você “vou tocar guitarra

pra caramba”, “po, vou ser baterista”, “po, vou cantar, meu irmão, vou cantar!” e ai

você esquece do baixo, você não liga pro baixo. Hoje em dia eu diria que é até uma

coisa mais comum. Eu conheço muitas pessoas que tocam baixo, mas naquele tempo, eu

nem sabia se quer o que que era um baixo direito.

E ai porque eu fui pesquisar sobre essa menina, que eu vi que ela tocava contrabaixo

eu comecei a estudar um pouco mais o que que era o instrumento contrabaixo. Eu falei:

“cara, que legal, que instrumento legal”. Ele é grave, só tem quatro cordas, tem outros

com mais cordas, né, mas o clássico ali são quatro cordas e tal e você não precisa

quebrar tanto a cabeça quanto a guitarra, porque a guitarra, digamos que requer um

pouco mais de dedicação e o baixo, não é que você não tenha que se dedicar, mas é uma

dedicação diferente, é outra coisa, outro esquema. Então nessa época eu comecei a ficar

mais apaixonada pelo baixo.

E ai foi passando esse tempo, nesse tempo, foi ai que eu comecei a ouvir mais as

bandas de pop punk que eu falei: Nofx, Offspring, Blink182, Greenday, junto também

eu ouvia bastante Avril Lavigne e Sun41. Todas essas bandas eu comecei a ouvir

bastante e quando foi chegando lá por volta de, sei lá, 2008, 2008 pra 2009, acho que eu

estava com 14 pra 15, não tenho certeza, eu comecei a pesquisar a origem do punk. Eu

já conhecia Ramones e tal, desde a época que eu comecei a ouvir rock, tipo, são bandas

clássicas que você acaba tendo contato, você acaba tendo acesso. Conhecia Ramones e

tal, mas eu não conhecia Misfits, Misfits eu conheci nessa época, mais ou menos assim

em 2008. Quando eu conheci Misfits, cara, foi ai que eu parei e falei “meu irmão, que

doidera, isso é muito maneiro, isso é muito bom”. Eu falei: “acho que me encontrei”. E

ai fui ouvir. Eu lembro que as pessoas da minha idade não conheciam e aquilo me

deixava com um pouco de raiva, me sentia, sei lá, me sentia um nada na sala de aula,

aquela pessoa que sentava no fundão, na última cadeira, mas que não era bagunceira, eu

não era de arrumar quizumba, arrumar confusão, responder professor. Eu só ficava

sentada no meu canto ouvindo minhas músicas no fone e quando alguém se aproximava

de mim e perguntava: “e ai Amanda, o que é que você tá ouvindo?”. Eu respondia: “po,

to ouvindo tal banda”. E a pessoa falava: “eu hein, negócio estranho, eu não conheço

esse negócio não”. E ai eu ficava: “po, tem que ouvir, cara, tá perdendo tempo ai de

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vida, cara, isso é muito bom”. Então, era engraçado nesse ponto, depois que eu conheci

Misfits.

Nesse tempo que eu conheci Misfits, eu conheci também The Distillers que fez a

minha cabeça mudar completamente, completamente, acho que graças a Brody Dalle,

ela fez a minha cabeça mudar completamente. E foi um combo, eu lembro que em uma

semana eu conheci tanta banda, que eu ficava tão viciada nisso, em pesquisar banda, ir

atrás de banda, que eu falava: “cara, eu acho que eu vou até fazer faculdade de música”.

De tão louca e de tão bitolada que eu ficava naquilo, isso durante anos. Toda semana era

como se fosse uma obrigação minha pesquisar bandas novas, conhecer bandas novas e,

sabe, e nessa época que eu conheci Misfits, tipo, no mesmo dia que eu conheci eu

fiquei, ouvindo, ouvindo, fiquei apaixonada por aquilo, aquela coisa do horror punk,

aquela coisa meio que é filme de terro antigo, aquela coisa meio psicodélica, mas ao

mesmo tempo misturado com o punk rock, aquela coisa meio obscura. E ai eu comecei

a ouvir The Distillers, comecei a ouvir Garbage, comecei a ouvir outras bandas que não

são ligadas ao mesmo som, mas que eram mulheres e estavam no underground, tipo The

Breeders com a Kim Deal do Pixies. Então, nessa época eu comecei a ouvir muita banda

junto e eu pensei: “meu deus, caraca, uma explosão no meu cérebro, isso é muito

bom!”. Fiquei feliz, descobri que existiram muitas mulheres que faziam ali o trabalho

delas a parada delas, o que elas gostavam de forma livre e independente do que fossem

dizer ou não. No Doubt também, eu já conhecia No Doubt, só que eu fui me aprofundar

mais em No Doubt. É que eu estou tentando lembrar todas as bandas, que é banda pra

cacete, estou lembrando as bandas que mais me marcaram nessa época: Nou Doubt, The

Distillers, Hole também, a Courtney Love eu tinha um pouco de resistência quanto a ela

por conta dos boatos, milhões de boatos que tinham. O Nirvana foi até uma das

primeiras bandas que eu comecei a ouvir com 9 anos entre essas bandas de New Metal

que tinha Likin Park, System, Slipknot, Korn. O Nirvana foi uma das bandas também

que eu comecei a ouvir, Nirvana, Pearl Jam, acho que só, tidas como grunge.

E ai eu tinha um amigo, que ele era muito apaixonado pelo Kurt Cobain, assim, a

história dele. Ele lia livro e contava tudo pra mim, isso na época do colégio, até o

ginásio. Então, ele contava tudo pra mim, eu ficava muito inteirada na história do Kurt

Cobain e sabia quem era a Courtney Love por causa do Kurt Cobain. Depois que eu fui

saber que a Courtney Love tinha uma banda também chamada Hole, nessa época eu já

escutava The Distillers e ai quando eu conheci o Hole eu tive uma resistência porque

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rolava aqueles boatos de que a Courtney Love que matou o Kurt Cobain, que eu acho

isso a maior besteira, isso é uma coisa que pra mim não é verídico, enfim, e na época eu

tinha um pouco de resistência porque as pessoas diziam, batiam firme: “ah foi ela”.

Então, eu acreditava porque eu não sabia a história real, eu era meio leiga nesse ponto e

ficava pensando: “caramba, mulher matou o próprio marido”. Mas depois eu fui vendo,

fui pesquisando melhor sobre ela, tentando entender um pouco mais a história da vida

dela, comprei um diário dela, soube várias coisas, que ela possuía vários problemas na

infância, várias coisas. Enfim, eu fiquei pensando: “po, cara, não é bem assim”. A

mulher não matou o cara, tem outras versões que realmente dá pra você ver que não tem

nada a ver isso. E fui ouvir a banda dela e quando eu ouvi a banda dela eu pensei assim:

“po cara, esse som é muito bom”. Não tem como eu não gostar, sabe, isso é o que eu

gosto, é o que eu gosto de ouvir, é o que eu gosto de fazer. E tá bom, isso foi vindo

Sonic Youth junto, etc.

Daí eu poderia dizer que no meio de 2009 pra final de 2009, isso eu era uma pessoa

eu pesquisava muito banda internacional, não ouvia banda nacional até porque eu

achava que nem existia banda de menina aqui no Brasil. A única banda que eu, pra

vocês terem uma noção, em 2005, achei porque abriu acho que pro The Donnas ou

tocou na mesma época, que era lá de São Paulo, que era uma banda de pop rock, era

Lipstick que era só mulheres e tal, era uma banda de pop rock. Eu ficava pensando: “po,

essa banda não é ruim, é boa, mas não é muito minha vibe”. Eu ouvia porque eu

pensava: “bom, tem mulheres, eu quero ouvir, sei lá, quero ver”. Eu achava que me

incentivava nesse ponto. Daí quando chegou nessa época de 2009, isso era em 2005,

quando chegou essa época de 2009, esse foi um ano muito importante, minha cabeça

mudou muito. Época de orkut também eu fui começar a ter noção do Riot Grrrl, eu fui

começar a ter contato com o Riot Grrrl por causa de orkut, por causa de google, né,

essas coisas. Eu ainda não tinha contato com as bandas brasileiras, as bandas nacionais

dentro punk, do hardcore, feminismo, não tinha contato.

Ai eu conheci Bikini Kill, que Bikini Kill é uma banda que eu poderia dizer que foi a

banda que me fez mudar a postura, a forma como eu enxergo, a forma como eu lido, a

forma como eu trato as pessoas e como eu levo a vida. Foi uma banda que realmente

revolucionou a minha vida. Por que? Porque Kathleen Hana, que é a vocalista, quando

ela se apresentava lá, na época do Bikini Kill, ela tinha uma necessidade de tá no palco

e mostrar que ela era uma mulher e estar presente ali, expressar: “ninguém vai me tirar

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daqui porque aqui é o meu lugar, pode ser seu lugar também, mas também é meu e eu

não preciso ser um homem, ter um pênis e tá aqui, se eu for uma mulher eu to ganhando

e é isso e eu vou expor as minhas dores, os meus traumas, tudo que eu já sofri na vida e

tudo que me fez ser forte hoje em dia pra tá aqui”. Isso é muito legal. Então, de certa

forma, quando eu conheci Bikini Kill eu pensei: “cara, sou outra pessoa agora”. Eu

realmente vi que minha vida mudou, tipo, a minha cabeça nunca mais foi a mesma em

relação a pessoas.

E nessa época eu estava com uma banda, isso é, eu montei uma banda, foi a minha

primeira banda, eu consideraria a minha primeira banda porque as outras eu só ensaiava,

mas foi a primeira banda que eu realmente me apresentei e fiz show e etc. Foi a

RulesPat, eram quatro meninas, todas elas eu conheci pelo orkut na época e todas as

integrantes que passaram pela banda são pessoas incríveis, todas elas. Eu não tinha o

que reclamar porque todas elas ajudaram muito pro meu crescimento, sabe, pra minha

maturidade, pro que eu enxergo hoje e tal. Eu respeito muito todas elas. Eu comecei

sendo só vocalista porque eu falei: “cara, eu não sei tocar nada”. Eu, sei lá, queria

montar uma banda de punk rock com um pouco de grunge, era meio farofa, assim, na

real, mas era uma coisa que eu falava: “cara, tem que dar certo porque são meninas, elas

são todas talentosas, são legais e é isso, cabou, vai dar certo”. E ai eu lembro que eu

conheci a Dani, que foi a baterista da gente do início ao fim, pelo orkut, Thaís, Thaís

Madruga, que já namorou até um amigo meu, o Leandro Padawan, e ela tipo, cara, ela

também me ajudou muito, ela me ajudou muito a conhecer melhor essa coisa do punk

porque ela sacava bem. Ela era dois anos ou um ano mais velha que eu, sei lá, eu era a

mais nova da banda, eu tinha 15 anos, a Dani tinha 22 e estava na bateria, a Thaís acho

que tinha 17 ou 18 e tinha a Raissa, que ela tocou baixo, mas umas duas vezes só com a

gente e saiu. Ai depois disso eu me mudei, mudei de bairro e tal, sai de Duque de

Caxias e fui morar no Recreio dos Bandeirantes. Meus pais compraram um apartamento

em 2008 e eu só fui me mudar em 2010. Eu tive um choque muito grande porque as

pessoas, a forma como eu era como eu me relacionava com amigos em Caxias era muito

diferente da forma como comecei a me relacionar com as pessoas no colégio no

Recreio. As pessoas tinham um ar de superioridade sobre você só pelo fato de terem

grana ou de que o pai é dono de tal estabelecimento. Então, eu me senti um pouco

reduzida nesse ponto, sabe. Meu ensino médio foi um pouco problemático. Foram três

anos que ao mesmo tempo foram muito construtivos e muito, muito interessantes e

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foram problemáticos nesse ponto de relacionamento dentro do colégio. Então, nessa

época que eu entrei e tal, 2010, eu conheci uma menina chamada Juliana que é a minha

amiga até hoje. A banda acabou rolando e tal, a gente estava ensaiando, mas aos

pingados porque cada uma morava em um canto, a Dani morava em Campo Grande, a

Thaís morava em Caxias, eu estava morando no Recreio, era tudo muito distante, todas

relativamente novas e ninguém podia sair muito bem, rolava um pouco de resistência

dos pais. Ai eu conheci a Juliana, que estava no terceiro ano, e a Juliana tipo, primeira

vez que eu vi Juliana ela estava com uma camiseta do Ramones, eu falei: “po, essa

banda é boa”. E ela perguntou: “po, você gosta também?”. Falei: “gosto”. E a gente

ficou trocando muita ideia sobre banda, sobre banda de menina.

Até então, isso em 2010, eu não tinha muito contato com o feminismo, isso no início

do ano, eu não tinha muito contato com o feminismo, o movimento, sabe, o feminismo

tenho desde que nasci, toda mulher tem. Só que eu digo com o movimento, saber de

forma consciente saber que aquilo dali é feminismo, saber distinguir, o que que é e o

que não é feminismo, o que que te ajuda, né, o que te faz mal. Eu não tinha muita noção.

Então, quando eu conheci Juliana, ela também não tinha, só que a gente, rolou muita

empatia entre as duas e a gente acabou criando uma amizade, criando um laço e eu falei:

“cara, eu tenho uma banda com mais duas amigas e eu to pensando em começar a tocar

baixo”. Porque a gente não achava baixista de jeito nenhuma depois que a Raissa saiu,

eu falei “cara, eu to pensando em começar a tocar baixo”. E ela falou: “po, eu acabei de

vender meu baixo pra comprar uma guitarra”. Eu perguntei: “mas você toca guitarra?”,

“eu toco”, eu falei: “po, você tá afim de tocar guitarra com a gente?”. Ela: “ah, mas

você já não tem guitarrista?”. Eu falei: “tenho, mas toca duas, não tem problema, tipo,

eu acho que quanto mais melhor”. Eu não tinha muita noção dessa coisa de guitarra

solo, guitarra base, a gente só queria fazer um som e se divertir, sabe, e ela falou: “po,

demorou, vamo”. E ai a gente começou a ensaiar e tal, começou a levar a parada adiante

e era muito divertido porque eram quatro garotas relativamente adolescentes, que não

sabiam muito bem o que estavam fazendo ali, mas de alguma forma aquilo dali estava

revolucionando o dia-a-dia de cada uma. Eu penso assim, porque a mim mudou muito a

vida depois dessa época. E ai fomos seguindo, até teve um dia que a gente fez um show

e tal. Ai a Thaís saiu da banda e só ficou eu, Juliana e Dani e essa formação power trio

ficou até 2012, por ai, inicinho de 2012, não, final de 2011 inicinho de 2012, por ai, até

essa época.

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Antes disso logo quando a Juliana entrou, ela era uma pessoa que também

pesquisava muitas bandas femininas, muitas bandas com mulheres, só que eu

pesquisava muita banda internacional e ela já era o tipo de pessoa que pesquisava

bandas nacionais, então a gente ficava trocando figurinha e a Thaís também. Ai a Thaís

me mostrou X-Ray Specs na época, ai a Juliana me mostrou Dominatrix, eu mostrei pra

elas Lunatics, Juliana me mostrou Go Betty Go que é uma banda também bem legal. Ai

a gente ficou trocando figurinha, eu mostrei Bulimia pra uma delas, ai a Juliana me

mostrou Menstruação Anárquika, que são bandas punks daqui do Brasil. Dai a gente

ficava nessa, elas iam lá pra casa, a gente fazia pipoca e Dani também mostrava umas

bandas de metal, varias, é que agora eu não lembro o nome porque não costumo ouvir

bastante metal, mas ela ouvia, ela mostrava umas bandas mais de new metal que tinham

mulheres, tipo aquela da Tarja, Tarja Turunen, eu não sei pronunciar direito nome dela,

mas era do Nightwish. Ela gostava dessa vibe assim, a Dani já era mais desse lado, mas

eu, Juliana e Thaís, a gente, as três gostavam muito de punk rock, muito dessa área do

punk rock e a gente ouvia The Destillers juntas, a gente vazia cover de The Destillers,

fazia cover de Hole, fazia cover de, sei lá, várias bandas que estavam ali no meio,

Lunatics a gente fez cover uma vez, fizemos cover de Bkini Kill, Rebel Girl. Enfim, a

gente fez cover de algumas bandas ali. E ai eu lembro que a gente ficava uma

mostrando pra outra falando: “po, olha essa banda aqui que eu achei, caraca que legal!”.

Quando não tinha ensaio era isso, a gente se encontrava, elas iam lá pra casa, ficávamos

comendo pipoca e escutando banda, falando de banda e não só banda de mulher, banda

com cara também. The Cramps também. Isso me ajudava e acabava me deixando cada

vez mais interessada em pesquisar sobre a história do punk rock, essa coisa do punk

rock e principalmente mulheres dentro do punk. E ai conheci Isiuks também, conheci a

Nina Hagen, o L7 eu já tinha conhecido em 2009 por causa do Nirvana, por causa do

Kurt Cobain, teve aquele show aqui no Brasil, então eu achei, eu falei: “caramba, que

banda genial, cara, L7, caraca, po as mulheres são muito da hora, maneiro e tal, po, mo

som pesado”. Eu achava irado. Nessa época também com Juliana e Thaís eu conheci

Seven Year Bitch, Try B8. Cara, várias bandas que eu fui, eu comecei a pesquisar, que

de certa forma tinham essa influência, eram todas dos anos 1990 e tinham essa

influência do grunge e do punk, mas principalmente do grunge, algumas eram muito

grunge, com essa coisa do metal e outras eram mais punk com uma coisa mais do pop,

eram duas vertentes, mas que todas acabavam sendo muito, muito boas e eu acabava

gostando de todas e o fato de serem mulheres eu ficava feliz e era isso. Deixa eu pensar

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aqui. Nisso a gente tinha uma banda, a Rulespat. Acabou que a Juliana saiu da banda e

tal, na época a gente se desentendeu, mas depois a gente acabou voltando a se falar, mas

a banda já não estava mais andando do jeito que devia a gente não estava mais

caminhando do jeito que devia caminhar na época, ai acabou de se desfazendo.

E ai eu conheci um amigo que hoje em dia ele é um homem trans, mas eu o conheci

antes da transição e conheci a Letícia Lopes que hoje em dia é uma grande amiga

também, que ela toca na Trash No Star que é uma banda daqui do Rio também com

influências absurdas de Sonic Youth, dos anos 1990 e, na minha opinião, é uma das

melhores bandas do Rio de Janeiro na atualidade, uma das melhores bandas porque ela é

uma banda que o som é dançante, o som é real, você ouve, você sente que aquilo dali

tem uma mensagem e tá sendo passada, entendeu, nem que seja por osmose, você tá

absorvendo aquilo ali e é muito bom. Não é uma coisa que você ouve e fala: “ah tá bom,

uma bandinha, legal, tchau”. Não, você ouve, se você para prestar atenção por um

minuto, um minuto você já fica preso um pouco ali naquilo, independente de você tá

querendo ou não, você fica preso naquilo ali.

Então, quando eu conheci a Letícia (a gente falar de Benária tem que falar isso),

como eu e Marcos a conhecemos, foi basicamente o seguinte. Em 2012 eu fiz um

evento feminista, com a proposta feminista, porque quando eu estava na banda e tal, eu

tinha noção que a banda era toda composta por mulheres, mas eu não, eu não usava esse

termo “feminista” pra retratar a banda, eu não usava esse termo porque eu não sabia o

que que significava o feminismo em si. Eu tinha aquela visão retrograda de que o

feminismo é odiar os homens e eu tinha aquela visão de achar que o feminismo era o

oposto do machismo, né, é a mesma coisa que o machismo só que pras mulheres, eu

tinha aquela visão meio retrograda e ai com o tempo eu fui desconstruindo isso. Na

verdade no mesmo ano que eu pensava isso eu falei: “bom, vou pesquisar sobre isso,

pesquisar o que que é”. E ai eu comecei a pesquisar.

Nessa época eu já estava ouvindo muita banda nacional tipo: Bulimia, kaos

Klitoriano, Menstruação Anárquika, Dominatrix, Sapama, Cala Boca Zé Bedeu. Muita

banda, que agora lembrar de tudo é fogo. Polux que era da Bianca e é do Leela hoje em

dia. Eu ouvia muita banda com menina, eu pesquisava a fundo, ia fundo mesmo. Tinha

Cínica também, que agora lembrar de tudo é fogo, a cabeça também não ajuda, mas

tinha muita banda. Então, isso era em 2011 e eu ouvia muito dessas bandas. Eu ouvia

também aquela banda que é uma banda só de menina tipo com um visual street punk de

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moicano, aquela coisa de jaqueta que era The Devoticas, que eu não sei a origem delas,

não sei se é russa, mas eu ouvi muito o som delas, era bem louco, era bem legal.

Tsunami Bomb também. Então eu ouvia muita banda, não só do punk quanto de dentro

dessa coisa do grunge dos anos 1990, mais alternativa, eu ouvia muita coisa.

E ai passando esse tempo em 2012 eu fui e fiz esse evento Sufrágio Feminino RJ. A

primeira edição que foi no Saloon em Botafogo e eu chamei cinco bandas e a banda

principal, a última banda a se apresentar, que era uma banda que já estava rolando já a

um tempo que é a Catilinárias, que também é uma das bandas que eu mais gosto, daqui

do Rio que tem mina.

Elas são sensacionais, elas são, digamos, que o bebê do L7, eu diria isso, é o bebê do

L7 e dos Babys in Toyland, é uma fusão, é Catilinárias. Eu olho pra elas e falo:

“caramba, que escutar grunge? Vai escutar Catilinárias”. É isso, e é um som bem legal e

elas, sei lá, são inteligentes, as letras são legais, o som é bom, elas têm presença, são

todas mulheres e é uma banda carioca e isso me dá muito orgulho. Eu fico bem feliz por

isso.

E ai eu lembro que eu botei Catilinárias e botei outras bandas. Eu acho que a única

banda que realmente todas as integrantes eram mulheres era a Catilinárias. As outras

bandas que apresentaram tinham mulheres na banda, mas também eram compostas por

caras, entendeu, por isso que eu botei elas como principal porque era a única banda que

era totalmente composta por mulheres e as outras eram bandas que não eram de punk

rock, era banda de pop rock ou banda mais de surf music, surf music, eu diria, não surf

music dos anos 1960, eu diria surf music nessa pegada de For Fun, Di Bob, esse rock

mais popzinho mais levinho, tinha uma galera que gostava. Tinha um som mais puxado

pra Evanescence, Nightwish. Então, era uma mistura não era um evento que era focado

só no punk rock hardcore. Nesse tempo eu nem tinha muito contato com o hardcore era

somente punk rock, o punk 77, né, punk de raiz mesmo, ali, aquela coisa da origem e o

protopunk, digamos assim, nem o proto-punk eu tinha muito contato, eu conhecia

bandas de antes do punk, mas não sabia dizer o que que era.

Eu lembro que nesse tempo eu falei: “cara, eu vou fazer um evento onde tenham

bandas com mulheres e o evento vai ser feminista”. Porque eu estava muito empolgada

com aquela coisa do feminismo e a Eliza Garjulo e as meninas do Dominatrix, todas

elas fizeram lady fest em São Paulo porque lá fora rola muito esse evento, lady fest. Lá

25

nos Estados Unidos, na Europa que eu não sei se é, rola muito lá fora. Então, a Elisa

Garjulo, como ela já tinha tocado lá fora com o Dominatrix, ela meio que trouxe a ideia

pra cá e ai fez essa edição. Ela fazia algumas edições lá com as meninas do The Dealers.

Era Dominatrix, The Dealers, Bulimia, acho que Anticorpos, a primeira formação do

Anticorpos. Isso devia os anos 2000, devia ser 2004, 2003, só que eu era muito

pequena, eu estava começando a ter contato com o rock nessa época, eu não fazia ideia

do que era, fui conhecer Dominatrix, todas essas bandas, depois de mais velha porque

eu tive que buscar por mim mesma, eu nunca tive ninguém que me apresentasse.

“Amanda, olha só, escuta essa banda aqui”. Até porque eu não sou da mesma época que

elas, eu não sou da mesma geração, elas são mais velhas que eu, sei lá, uns 10 ou 15

anos mais velhas que eu. Quando elas estavam na ativa eu era muito pequena, eu era

criança, então não era a mesma época, não era a mesma fase, então não tinha realmente

como conhecer, ao menos que eu tivesse alguém da minha família que conhecesse e me

mostrasse na época, ai sim, mas não era o caso.

Ai eu conheci a questão do lady fest e conheci o festival Vulva La Vida que

acontecia em Salvador. O Vulva La Vida teve 3 edições, se eu não me engano. Eu acho

que a primeira foi em 2011, a segunda em 2012 e a terceira 2013 e acho que todas elas

acabam acontecendo sempre nas férias, assim, época de verão, Dezembro e Janeiro,

acho que sempre foi nessa época. Eu só fui na última edição.

Eu fiz o Sufrágio Feminino porque eu não podia ir no Vulva La Vida e falei: “cara,

eu preciso de um festival feminista, eu preciso movimentar porque aqui no Rio eu não

vejo nada disso”. Poxa, se em Salvador um grupo de meninas, um coletivo de meninas

se reuniram pra fazer isso porque gostam. Por que que eu não poderia também? Fazer o

mesmo, tentar reunir meninas aqui e fazer um evento maneiro como esse, tentar

movimentar essa coisa. Porque eu nem tinha noção dessa palavra “cena” ainda. Tipo,

tentar movimentar essa coisa, dá um estímulo.

Porque até hoje eu não toco bem contrabaixo, eu não toco bem guitarra, não canto

bem totalmente, mas eu sou uma pessoa que se você chegar pra mim e falar: “Amanda

comprei um violino”. Eu vou falar: “cara, toca, é isso ai”. Tipo eu sempre vou buscar

estimular a pessoa independente se é menina ou é menina, mas principalmente quando é

uma menina porque rola aquela coisa de você se sentir incapaz, rola muito. São poucas

as meninas que olham e pensam: “ah, eu consigo”, “isso ai não é problema pra mim”.

São poucas. A maioria pensa: “ah, eu sou muito ruim nisso”, “não vou conseguir”.

26

Porque eu sou assim e eu vejo isso como um espelho. E eu olho pras outras meninas e

falo: “cara, não, independente se eu toque ou eu não toque eu tenho que estimular”.

Porque eu não nunca tive estímulo pra nada, entendeu, nada. Sobre punk, hardcore,

feminismo, nada, nada, tudo fui eu na carcaça, ali, sozinha buscando, nunca tive

estímulo nenhum. Nunca tive ninguém que chegasse pra mim e falasse: “cara, vai tocar

contrabaixo”, “cara, mete as caras, é isso ai, monta uma banda”. Nunca, isso tudo partiu

de mim e as dificuldades sempre apareceram, normal.

Então, quando chegou nesse ano de 2012 eu fiz o evento. Rolou e tal, foi legal e etc.

Não foi propriamente feminista, foi de cunho feminista porque era organizado por

mulheres, eu estava a frente do evento. Tinham bandas que tinham mulheres, mas o

evento em si não era fechado só para mulheres. Tinha muito família, tinha muito

menino, tinha muito cara. Então, rolou umas piadinhas machistas, transfóbicas,

piadinhas ridículas em geral, que na época eu não me ligava, eu não entendia porque eu

não tinha ainda conhecimento sobre esses assuntos. Eu não entendia muito bem, mas eu

achava que, bom, o evento está sendo protagonizado por mulheres, isso pra mim, aquilo

ali já bastava. Na verdade não é só assim. É importante? É, é primordial, mas não só

isso. Num evento feminista você tem que, digamos que você tem que cobrir o evento

para que todas as mulheres que estejam ali se sintam seguras, isso sim é um evento

feminista. As vezes o evento pode nem ter um cunho feminista, nem ser feminista, pode

ter banda, sei lá, de cara, mas ser organizado por mulheres, o evento todo pode não ter

uma banda que não tenha uma mulher, mas se o evento for organizado por mulheres e

aquelas mulheres estiverem assegurando que nada vai acontecer com uma mulher, não

vai acontecer nada de ruim, o evento é feminista, acabou, sacou, é isso. Eu não tinha

noção disso na época. Ai passou, tiveram alguns atritos no evento que isso me

desestimulou um pouco, isso foi em 2012.

Em janeiro de 2013 eu acabei o ensino médio e ai eu finalmente falei: “bom, mãe

(minha mãe não me deixava viajar sozinha, não deixava fazer nada), eu e o Marcos (que

é esse meu amigo, só que antes da transição) vamos pro Vulva La Vida lá em Salvador”.

Era a última edição do Vulva La Vida, então, esse foi o meu discurso pra convencer a

minha mãe. “Mãe, é a última edição, não vai ter mais”. E a minha mãe respondia: “vai

sim!”. Eu falei: “não, elas já postaram que é a última edição, que elas não pretendem

fazer nem tão cedo porque é um gasto muito grande e nem todo mundo ali estava

disposta a ter esse gasto todo ano e tal, então elas meio que vão fazer de uma forma de

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despedida e vai ter uma banda de aqui do Rio (que era a Trash No Star, que eu não

conhecia na época), po mãe, deixa eu ir, deixa eu ir”. Ela: “Ai Amanda, tá bom, já que

você acabou o ensino médio, tá bom, vai, não tem nenhuma responsabilidade a mais”. E

fui. Cara, foi uma das melhores viagens, uma das melhores experiências que eu poderia

ter que me fizeram abrir a mente pro feminismo. Foi uma coisa incrível, incrível. Eu

conheci mulheres, meninas, enfim, garotas, de, sei lá, do Brasil todo, do mundo inteiro:

eu conheci uma alemã, eu conheci uma mulher do Cazaquistão, eu conheci, sabe, uma

russa, eu conheci uma argentina, duas mexicanas, uma boliviana. Eu conheci muitas

mulheres. Isso só as de fora do país, né, e ainda tinham as que eram do país, que eram

de Curitiba, São Paulo, Rio Grande do Norte, Manaus. Tinha gente pra caramba, tinha

muita menina, muita.

Entrevistadora: Dentro do evento mesmo?

Amanda: Dentro do evento, cara. Foi um evento que durou uns quatro dias, quatro,

cinco dias. Daí fui eu e Marcos, a gente ficou, a gente não ficou no alojamento, a gente

foi pra casa da Sandra, Sandra Munhoz que é uma pessoa incrível. A Sandra, ela é

ativista, ela é feminista e ativista lá de Salvador, ativista no movimento LGBT e...

(nesse momento um entrevistador pegou o gravador para ver se estava gravando

corretamente)

Entrevistadora: Pode continuar.

Amanda: E assim, eu troquei ideia pouquíssimas vezes com ela e ela foi super educada

comigo e falou: “cara, pode cair lá em casa”. Eu falei “é sério?”. Ela: “po, você é minha

irmã, taí pra isso”. “Mas você nem me conhece pessoalmente”. E ela: “não tem

problema, pode cair lá em casa”. Ai fui eu e Marcos e ela abriu as portas pra gente, a

gente ficou lá, não pagou nada, a gente ficou tipo 0800, muito gente fina.

Eu conheci as meninas que estavam organizando o evento e tal, a Iris, Iris do Carmo

que é muito amiga da Eliza Garjulo, a Cista Cátia, ela é grafiteira lá em Salvador e ela

faz movimentos, ela também é um pouco ativista nesse ponto sobre combater a

gordofobia. Porque ela é gorda e ela fala: “eu sou gorda e sou mesmo”. Ela gosta de hip

hop e tal, ela gosta de punk e hardcore, mas ela é mais dessa área do hip hop ela escuta

mais, eu acho.

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É bem legal quando você encontra mulheres um pouco mais velhas que você com

uma postura decidida sobre a vida delas, sabe, quando eu estava saindo do ensino

médio, digamos que saindo de um casulo. Eu era aquela pessoa que passou a vida

inteira trancafiada em casa, não podia viajar sozinha, não podia fazer nada sozinha, não

podia andar de ônibus direito sozinha, tinha que estar sempre com alguém, com amigo,

com família, com primo, parente. Esse ano, cara, 2013 foi um ano que foi libertador pra

mim. Quando eu fui nesse evento foi incrível. Conheci duas bandas que acho que até se

desfizeram. Uma pena porque as duas eram muito boas. Dança da Vingança e Soror que

eram de Brasília. Todas as meninas muito gente finas. As duas bandas se apresentaram

no festival, foi: Soro, Dança da Vingança, Trash No Star aqui do Rio (esqueci o nome

da banda da Luiza e do Marcelo agora), teve Sad Girls Por Vida. Foi um showzinho

acústico da Carla Duarte que é aqui do Rio, de Barra Mansa, que também é uma zineira,

ela faz zines, ela tem um blog chamado Cabeça Tédio, também muito gente fina. A

Luiza que é lá de São Paulo e o Marcelo também que é de São Paulo, eles tinham esse

projeto que eles ensaiavam, eu achava engraçado, achava interessante, que eles

ensaiavam pelo Skype. Era um projeto que eles ligavam o Skype e ficavam fazendo

música e tem um delay, né, tinha o delay, então, até todo mundo acertar, eles falavam

que era bem complicado, mas acabavam rindo no final das contas e se divertindo. E ai

eles fizeram esse projeto acho que pra isso mesmo, pra se encontrar nesses festivais,

nesses eventos. A Luiza e o Marcelo tinham uma banda só que agora eu não lembro o

nome da banda, ai senhor, esqueci cara. Eu conheci na época do evento, só.

Entrevistadora: Depois você lembra.

Amanda: É. E ai nesse evento eu conheci a Eliza Garjulo, conheci muitas mulheres.

Conheci a Elaine Campos que é uma fotografa e feminista e teve uma banda também

que eu não lembro nome agora da época do final dos anos 1990, início dos anos 2000 lá

em São Paulo. Ela é fotografa feminista, ela foca nessa coisa de fotografar mulheres e

etc. Ela estuda muito sobre a história da fotografia, a mulher dentro da fotografia. Eu

assisti algumas oficinas, algumas palestras dela no festival que eu ficava de boca aberta

com a bagagem cultural, a bagagem, sabe, que ela tinha sobre aquilo, o conhecimento

que ela tinha e eu achava incrível, coisa que eu não faria ideia se ela não falasse, ela não

apresentasse porque eu não sou da área da fotografia, mas ela é, ela fotografa muito bem

e ela entente a história. Ela falou lá que tinha uma mulher, não sei se era na Rússia, ela

foi uma das primeiras mulheres a, sei lá, nos anos 1920 ou nos 1930, eu não tenho

29

noção do tempo, mas a primeira mulher a ter uma loja que revelava fotos, tirava fotos e

etc. E não era comum, mulheres não podiam nem sequer escrever, sabe, fazer coisas

básicas. Isso foi muito interessante, eu nunca mais vou esquecer isso, foram coisas

muito legais. Isso foi em 2013.

Antes de acontecer esse festival em 2012 eu tive um professor que hoje em dia ele é

meu amigo, é uma pessoa que eu gosto muito, que tem banda também. É o Cristiano

Onofre ele foi meu professor de gramática no ensino médio e eu tenho muito orgulho de

falar que ele foi meu professor, porque ele contribuiu muito com essa coisa do, ele não

sabe disso ou talvez saiba, mas ele contribuiu muito com essa coisa de me fazer me

aprofundar na questão do hardcore. Cada vez ele chegava na sala de aula com uma

camiseta diferente: Poison Ideia, ai vinha com a camiseta do Deadfish, ai vinha com a

camiseta do The Doors. E a gente ficava trocando ideia sobre as bandas. Com uma

camiseta d’O Inimigo. Eu não conhecia essa coisa do hardcore, eu sabia e tal o punk

rock ali, aquela coisa mainstream, aquela coisa básica que todo mundo conhece e fui até

um pouco além pesquisando a coisa de punk 77 e tal junto com o Marcos, esse meu

amigo. Mas quando eu estudei com o Cristiano, ele foi um facilitador pra que eu

gostasse mais ainda de hardcore, o que eu conhecia de hardcore era Dominatrix e

algumas bandas de meninas, não conheciam o hardcore cena. E ai nessa época que eu

trocava ideia com o Cristiano, prestava muita atenção nas aulas dele, ele organizava

eventos. Nesse ano de 2012 teve o Rvivr aqui no Rio e eu fui, eu fiquei encantada com o

Rvivr.

Antes de eu ver o show do Rvivr, tem um amigo meu que mora nos Estados Unidos,

o Peter, ele é cineasta, ele fez um documentário chamado US of DYI, que ele expos no

CCBB e ai ele separou uns convites pra algumas pessoas e separou pra mim e pra um

ex-namorado que eu tive, nos dois éramos amigos dele. E ele falou: “quero que vocês

vão, tipo, pra assistir e depois falar o que vocês acharam”. Cara, um dos melhores

documentários que eu já vi na vida, assim sobre punk. Eu falei: “Peter, você está de

parabéns, eu conheci Rvivr por causa do seu documentário”. Isso antes de acontecer o

show do Rvivr aqui no Rio. Isso foi no final de 2011 ou início de 2012. Eu falei: “cara,

eu amei Rvivr, eu amei a performance da Erica no vocal”. Foi ai que eu tive contato o

queer.

Eu já tinha contato com o hardcore em 2011, mas de forma bem sutil, eu não estava

inserida numa cena ou no contexto político. Eu estava simplesmente ali só observando

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de longe, mas eu não conhecia em si. Eu sabia melhor era sobre o punk, sobre a questão

do punk em si que o hardcore nasceu do punk, né. Então eu tinha noção do punk em si e

conhecia também muita coisa sobre raw punk que é aquela coisa mais do street punk,

aquela coisa do punk de rua, bandas como Discharge, Exploited, Casual Tease. Fui

conhecendo bandas assim e fui entendo que existe essa coisa de classificar pessoas

como nazi por ouvir tal banda ou por não ouvi tal banda você não era nazi e rolava um

pouco disso. Fui entendo, vendo, conhecendo melhor esse lado do punk. O hardcore em

si eu não tinha noção. Ai eu vi esse documentário US Of DYI. Foi muito bom porque

me fez abrir a mente sobre o hardcore. Eu lembro que agradeci muito ao Peter e tal a

oportunidade. Até hoje eu tenho muita vontade de rever e ele não disponibiliza. Eu fico

falando: “po, cara eu quero ver o seu documentário de novo”. Ele responde: “não, um

dia eu vou deixar e tal”.

Na época estava tendo uma exposição sobre punk também, roupas, discos e etc. Na

mesma época que rolou o documentário dele estava tendo uma exposição. Então, casou,

tinha tudo a ver. O nome da exposição era uma música do X-Ray Specs, era I am a

cliche, eu sou um clichê. Eu lembro que tinha uma tvzinha e ficava passando clipe do

X-Ray. Po, muito bom, cara, muito bom. E vários discos. E ai eu fui conhecendo melhor

as bandas. Ali que eu conheci The Stooges, que eu olhei no disco e falei: “nossa, que

legal”. Eu comecei a anotar o nome das bandas porque eu não conhecia, não tinha

acesso. Conheci McFive também. Eram bandas que vieram relativamente antes do punk

ser punk, ser dito como punk na classificação. Vieram antes e eram bandas incríveis. Ai

vi também Ratos de Porão, Cólera, Adesivo, várias coisas. Eu falei: “cara, que incrível,

essa exposição podia durar muito mais pras pessoas terem contato tanto quanto eu to

tendo agora”. Cólera eu já conhecia, Ratos de Porão já conhecia e tal, mas eu digo essas

bandas internacionais, essas assim eu não tinha contato, não tinha muito, até conhecia

de filme, ouvi uma música no filme, etc. Mas não conhecia saber: “ah, essa banda é tal

banda e tal”, linka, né.

Então, passou um tempo e ai em 2012, no início do ano, acho que foi abril, não

lembro direito, teve Rvivr aqui no Rio e o Cristiano Onofre já era o meu professor e ela

estava ajudando na organização. Eu lembro que quando eu confirmei presença ele

chegou na sala de aula pra mim e falou: “Amanda você gosta de Rvivr? Como assim

você gosta de Rvivr, você não falou nada disso”. Falei que eu conheci Rvivr por causa

do documentário de um amigo e etc. E ele: “meu deus, eu tenho uma aluna que gosta de

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Rvivr e é feminista, como assim, eu to me sentindo muito privilegiado”. Ficou

brincando assim comigo e a gente conversando assim um tempo e rindo e tal. Foi bem

legal. Não tinha muita intimidade com o Cristiano, até hoje a gente não tem muita

intimidade, mas tem aquele carinho enorme de professor e aluna eternamente e ele foi

uma pessoa que me ajudou muito assim nesse ponto. Inconscientemente ele ajudou

porque eu me interessava muito pelas coisas que ele fazia, na época ele escreveu um

livro chamado Câmera Lenta, que eu tenho até hoje. Eu li o livro de dele, eu pesquisava

as coisas que ele fazia e hoje em dia ele é quadrinista, ele pinta, ele desenha, ele grafita,

ele expõe, ele dá palestras. Isso é bem legal. Eu tinha muito orgulho dele ser o meu

professor. que era um cara que ele estava ali, de certa forma ele estava ele estava

resistindo ali na contracultura, sabe, ele estava resistindo na contracultura diante de

pessoas metódicas e monótonas, metódicas naquele ponto de, naquela coisa

corporativista de você ter que ser socialzinho. Lembro que todo mês o Cristiano vinha

com uma tatuagem diferente, uma tatuagem nova e ficava incrível porque eu ficava tipo,

sei lá, meio abobada. Ficava falando: “cara, que legal, você faz uma tatuagem nova!”.

Eu pergunta: “ninguém reclama, tipo, coordenadora, né, ninguém fala nada?”. Ele

respondia: “já reclamaram um pouquinho, mas hoje em dia tá tranquilo”. Levava assim

e era muito legal, me estimulava a beça.

Nessa época eu tinha a Rebeca Domiciano, que é a vocalista atual do Anticorpos,

que Anticorpos teve uma formação acho que em 2012 e ai Anticorpos entrou em hiato

por muitos anos e voltou acho que em 2009 ou 2010 a tocar. Fui conhecer realmente

Anticorpos com a Rebeca por volta de 2011, por ai. E eu tinha a Rebeca no facebook,

desde 2010. Rebeca não era do Anticorpos ainda, o Anticorpos tinha voltado, mas ela

não era do Anticorpos ainda. Eu tinha acabado de me tornar, assim, tinha um ano e

pouquinho que eu era vegetariana, que eu tinha me tornado vegetariana e a Rebeca era

do movimento dos vegetarianos. Eu acho que hoje em dia ela é vegana, mas na época eu

acho que ela era ovo-lacto e eu sou ovo-lacto. Ai ela era do movimento dos vegetarianos

e eu tinha adicionado ela por algum motivo e depois eu comecei a acompanhar

brutalmente ela pelo facebook vendo que ela tinha entrado pro Anticorpos. Nessa época

eu estava na Rulespat ainda. Eu pensei: “que legal, ela tem uma banda, só de mina, que

legal”. E o som brutalsão e ai eu fui ver “caraca, é hardcore que legal”. Fui me

apaixonando e cada vez me apaixonando mais. Anticorpos eu posso dizer, eu posso

botar a mão no fogo, é a banda que atualmente, falando de cenário nacional, é a banda

32

que me representa. Eu não tenho outra banda que me represente mais que Anticorpos,

não tenho. Falando em termos Brasil. As letras, tudo, a postura delas, isso é muito legal

e elas são muito gente fina.

Nessa época eu continuava procurando muita banda também, continuava procurando

muita banda com menina e quando eu conheci o Rvivr e conheci Anticorpos eu tive

uma noção do que que era o queer, essa coisa do queer de quebrar a normatividade que

eu não tinha muita noção. Conheci também bandas como Teu Pai Já Sabe, Limpin Rist.

Nesse período, o que me fez também entender o que que era o tal cenário que todo

mundo dizia, do hardcore dos anos 1980, foi assistir o American Hardcore, o DVD. Me

ajudou muito, muito a entender, a conhecer as bandas, a conhecer o cenário, como era

mais ou menos, ter uma noção. Porque eu não sou dessa época, eu não acompanhei isso

e muitas pessoas que hoje em dia também curtem hardcore também não acompanharam,

mas sofrem grande influência sobre esse cenário que existiu. Eu fiquei apaixonada por

aquele documentário, apesar de existir vários pedaços machistas e tal, você entender

que, cara, é uma cena machista pra caramba, era mesmo, não tem meia boca, ainda é. O

machismo tá inserido no dia-a-dia, mas era legal pelo fator do som, era isso que me

deixava feliz de ter assistido o documentário. Eu gostava dessa coisa da agressividade

no som, era um som meio revoltado porque eles estavam incomodados com a política,

com a política daquela época lá nos Estados Unidos.

Enquanto rolava o hardcore nos Estados Unidos, o hardcore punk nos Estados

Unidos. Ainda rolava muito daquela coisa do punk 77, punk junkie, daquela coisa do

junkie, de se cortar, de ter uma overdose, de usar muita droga, lá na Inglaterra, na

Europa ainda estava muito esse clima. Nos Estados Unidos estava rolando já de forma

absurda essa coisa do hardcore punk que era tocar o punk de uma forma mais rápida,

mais acelerada, aquela coisa da bateria, do (faz o som de bateria batendo nas pernas no

ritmo). E o punk lá na Inglaterra já era uma coisa mais lentinha, mais 77, mais dançante,

que a bateria era rápida mais não era(bate na perna no ritmo) aquela coisa brutal. Então,

ao longo dos anos foi uma coisa que foi mesclando. Ai foram vindo, surgindo bandas

também lá na Europa de hardcore punk. Na mesma época que estava tendo o hardcore

punk ainda existia o The Germs que é totalmente uma banda que é punk junkie, o

vocalista se cortava e tal, se drogava pra caramba, morreu de overdose.

É bem legal porque nessa mesma época surgiu straight edge, o movimento. Ele

surgiu por conta de existirem pessoas muito novas que tocavam, com 14, 15 anos, sei lá,

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tipo teen idols, o Ian Mackain por exemplo, queriam entrar nas boates, boates entre

aspas, nos lugares onde tinham shows, bares, pubs, etc. Eles não podiam, eram menores

de idade: “ah, vocês não têm 21”, “ah, mas eu quero ir, eu também quero “. Queriam

montar banda, queriam tocar e não podiam, não podiam consumir bebida. Então, o que

que acontecia, eles colocavam um x na mão porque era novo: “ah, então tá, vou colocar

um x na sua mão porque tu é novinho, tu não pode beber e é isso, vai curtir o show,

beleza, mas não bebe não, fica na tua”. Foi isso, acabou surgindo um movimento,

bandas mais velhas e outras bandas, outras pessoas acabaram aderindo àquilo, acharam

interessante aquilo de: “po, cara, eu não bebo, mas eu sou mais velho”. Eu acho que foi

mais ou menos por ai, eu não tenho muita propriedade para falar sobre straight edge

porque eu não sou straight edge, mas tá tudo inserido dentro do hardcore. Tem muita

banda feminista que é straight edge e tal.

Dessa mesma época começou a vir nos anos 1990 o Riot Grrrl. O que que foi o Riot

Grrrl? O Riot Grrrl foi basicamente uma explosão de sentimentos em relação ao

machismo absurdo que acontecia no cenário do hardcore. Porque as meninas gostavam

de punk rock, elas gostavam daquilo, gostavam de ouvir aquele som, que é basicamente

como eu me sentia quando era mais nova, me sentia rejeitada no colégio, me sentia

sozinha porque não tinha com quem compartilhar, mas como lá nos Estados Unidos

tudo é mais amplo e mais acessível do que aqui no Brasil, tinha sim grupos de meninas.

Poucos grupos, mas tinham grupos de meninas que iam pra assistir shows e namoravam

aquele carinha da tal banda, era namorada do guitarrista, era namorada do baterista. Mas

elas também curtiam o som, não só iam pra ficar segurando a bolsa do namorado, a

mochila, o casaco e ficar naquele canto ali, mas também elas curtiam o som. Só que os

homens, naquele tempo ali, eles descriminavam muito a presença delas ali ou,

simplesmente, quando não discriminavam ridicularizavam o fato delas estarem ali, sabe.

E ai finalmente elas: “não, pera ai, isso tem que ter um basta, calma ai, queridinho, eu

também gosto de hardcore”, “qual o problema?”, “só porque eu sou uma menina”, “eu

também gosto de som, assim, pesado”. E ai começou a vir bandas como Blats, Bikini

Kill, Black Mobile, Teen Drash, muita banda, muita banda, que agora lembrar de tudo

também vai ser fogo, enfim, mas muita banda foi surgindo com esse movimento do Riot

Grrrl, com essa proposta do all the girls to the front. Essa coisa de meninas pra frente

mesmo, que até o Anticorpos adotou pra elas como frase de impacto, né, e é uma frase

que por si só ela já diz. A vida inteira eu fiquei segurando o teu casaco, segurando a tua

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mochila, é, cuidando dos seus pertences no canto do show, assistindo quietinha ali, sem

poder entrar na roda, sem poder chuta macho, sem poder dá o mosh, sem poder dá um

stage dive sem ser abusada ou passarem a mão no corpo, se aproveitarem de mim

porque eu to pulando do palco, ter aquela coisa do tato, das pessoas se aproveitarem.

Vai ter menina aqui na frente e elas vão cuidar umas das outras, é isso, elas vão se

divertir porque elas querem também se divertir como todo mundo tem direito, acabou, é

isso.

O Riot Grrrl surgiu por conta disso, por conta dessa coisa toda, de rolar essa barreira,

essa muralha em volta das mulheres. De: “não, você é mulher, você é fraca”, “você vai

pular do palco, minha filha?”, “você vai se quebrar toda ai, depois vai ter que te levar no

hospital”, “a gente não, a gente é macho, quebro o nariz depois boto no lugar e tá tudo

certo, se quebra de novo”. Um pouco dessa visão. É uma visão bruta? É uma visão

bruta, claro, mas quem me garante que o cara se quebrando ali também não vai ter que

ir pro hospital, sabe, é um ser humano, as pessoas têm um pouco essa visão atrasada de

que só mulher sente dor, só mulher sofre. A mulher sofre pra caramba, isso é fato, só

que o homem também. E qual a diferença? A única coisa de diferença entre um homem

e uma mulher é essa questão física. O homem realmente tem mais resistência física, não

estou falando de pessoas marombeiras ou fisiculturistas, estou falando, pega um homem

e uma mulher que não malhem, basicamente o homem vai ter mais resistência física,

isso é fato, do que uma mulher. Porém, não quer dizer que a mulher não suporte mais

dor que aquele cara, a partir do momento que uma mulher consegue suportar um parto,

a mulher consegue fazer muito mais coisa, suportar a dor, segurar a dor ali, ela

consegue, sem desmaiar, eu quero dizer, entendeu. E muitos homens não conseguem.

Conseguem, assim, tá ali, tá na luta, legal, mas quando a dor é interna, as vezes o

homem não consegue, pode desmaiar. E ai? Baixa a pressão e vai com deus. Então, são

forças diferentes, mas isso não quer dizer que um seja menor que o outro, na verdade, se

essas forças existem, o ideal é que se complementassem pra um ajudar o outro,

independente de heterossexualidade, não estou falando disso, estou dizendo uma

questão de amizade ou questão de: ”estamos aqui, estamos no mesmo contexto”, “por

que a gente atacar um ao outro em vez de se ajudar?”, “já que você é forte e eu sou forte

a gente pode transformar essa força em uma coisa muito maior”. Eu penso assim e não

me diminuir ou eu tentar ridicularizar você.

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Eu acho que é um pouco isso, é como aquela filósofa dizia, isso eu tive acesso depois

também, procurando autoras, escritoras feministas. Depois quando eu já estava inserida,

ali, na questão do feminismo. Eu conheci a Mary Wollstonecraft, é Virginia Woolf, é

Simone de Beauvair, a Clarice Linspector, várias feministas, várias mulheres, escritoras,

enfim. E, cara, aquela frase da Mary Wollstonecraft que é incrível, que todo mundo fala,

toda mulher fala, a Eliza Garjulo até falou uma vez numa entrevista que ela deu. Muito

incrível, a mulher totalmente a frente do tempo dela, século XVII ou século XVIII, é, eu

acho que ela chegou a falecer quando já era século XVIII, mas ela nasceu no século

XVII. A mulher simplesmente falou, ela definiu o feminismo com uma frase: “o

feminismo é a luta pelos direitos da humanidade”. Ponto, acabou, tá ligado, não tem

mistério, acabou, é isso, sabe. O feminismo não tá ali pra botar a mulher como

protagonista e aniquilar todos os homens, existe essa visão, que não é a minha visão,

uma visão misândrica e tal, mas eu respeito. A grande maioria das mulheres que são

misândricas são mulheres que sofreram abuso, sofreram algum tipo de agressão, algum

tipo de opressão que as fizeram ter essa postura. Eu já sofri abuso, eu já sofri agressão,

já sofri muitas coisas, mas eu não tenho essa visão porque eu sei que não é todo homem

que tá ali só pra acabar com você ou acabar com o que você acredita, mas a grande

maioria em si pensa que as mulheres ainda são propriedade, são posse, a grande

maioria, porque isso está enraizado, isso é passado de pai pra filho, isso é passado de

avô pra neto e é assim que vai caminhando a sociedade. E feminismo é muito

importante pra mim por que? Porque ele me faz abrir os olhos e enxergar que eu não

estou ficando maluca, que eu sou capaz de fazer tantas coisas quanto um homem. E isso

dentro do, eu estou falando isso tudo, mas isso tudo tá inserido dentro do hardcore, do

Rio Grrrl, do feminismo tudo tá inserido de forma que me auxiliou bastante na minha

vida. O vegetarianismo, o veganismo em si tudo isso, assim, me auxiliou bastante.

Voltando pra esse lance de banda, em 2012 eu fui pra esse festival Vulva La Vida,

conheci pessoas maravilhosas. Dai eu montei com o Marcos e a Letícia uma banda

chamada Benária, por causa da Olga Benário. A gente colocou Benária por causa dessa

coisa de ser feminino e a gente botou, fez em homenagem a Olga Benário. Não em

relação política, não tinha nada sobre isso, não era uma questão histórica, relacionada

em nada a questão de nazismo ou comunismo, não tinha nada relacionado a isso. Era

somente uma forma de homenagear uma mulher que foi muito importante no contexto

histórico. E a banda foi muito legal, foi um tempo que, graças ao Marcos, ele é uma

36

pessoa muito importante na minha vida, é um grande amigo, é uma pessoa que eu gosto

muito, as vezes a gente tem uns atritos e tal, mas isso é normal, coisa de amizade

mesmo, mas é uma pessoa que eu admiro muito, que ele é um homem trans e graças a

ele eu pude aprender e descontruir os preconceitos que eu tinha, as visões atrasadas, os

vícios de linguagem, as formas erradas que eu tinha em relação as pessoas trans. Eu

poderia dizer que antes da transição dele, não porque eu quisesse, mas porque era algo

que já estava embutido em mim porque já era passado, essa coisa de ter preconceito

com as travestis, essa coisa de chamar travesti de “traveco”, “mulher de tromba”, esses

apelidos ridículos, que não tem necessidade. É um ser humano que merece ser tratado

como deve, sabe, ser bem tratado. Tu não quer ser bem tratado? Então, o que custa tratar

bem outra pessoa também? Não custa nada. Graças ao Marcos, que ele estava estudando

muito essa coisa antes da transição, ele estava estudando muito esse lance de gênero e

graças a ele eu fui aprendendo junto, ele falava muito comigo, ele vinha falava muita

coisa comigo, vinha e falava: “Amanda estou estudando tal coisa, po, to achando muito

interessante esse lance de gênero binário, não binário, homem cis, mulher cis, homem

trans, mulher trans, gender fluids”. Eu ficava boiando no início porque eu não entendia

muito bem, mas ao longo do tempo eu fui clareando a mente e aprendendo a

desconstruir, que eu acho que é isso que é importante, dentro do feminismo ou dentro

dessas questões de gênero, desconstruir preconceitos é necessário e é importante. É

importante pra que você se melhore, não só pra você, mas pros outros, pra que você

tenha um ambiente mais agradável e mais abrangente. É que nesse tempo, eu poderia

dizer, antes do Marcos passar por essa transição eu acho que eu tinha até uma visão

meio de, como chamam, radical feminist, radfem, que as pessoas chamam, ou pessoas

TERFs. Eu tinha uma visão meio errada, não porque eu queria ter aquela visão, mas

porque eu não tinha acesso, eu não tinha, eu era leiga no assunto sobre gênero, eu tinha

aquele preconceito enraizado em mim e eu pensava: “bom, feminismo é pra mulher que

é mulher, que nasceu mulher”. Eu tinha essa visão errada, entendeu, e eu confesso hoje

em dia que tinha mesmo. Mas depois com o tempo eu fui entendo que não, que as

pessoas trans sofrem tanto ou mais, até, que as mulheres cis, e ai eu fui vendo que, não é

por ai, não é por ai, uma mulher trans tem os mesmos direitos de ser feliz como uma

mulher cis e ela, o sonho dela era ter nascido como uma mulher cis, ela se enxerga num

outro corpo, que ela teve necessidade de passar por uma transição. O quando doloroso,

o quão dolorido foi aquilo, a aceitação da família, dos amigos, mudar o nome. E ai você

ouve todo dia, eu imagino o quão desgastante deva ser uma pessoa, uma mulher trans,

37

vou primeiro entrar nessa questão da mulher trans pra depois entrar na questão do

homem trans, da mulher trans chegar e ser aceita na sociedade como uma mulher, que te

olhem e te enxerguem te tratem como um mulher, é muito difícil, mas ela se olha no

espelho e se ver como uma mulher, a cabeça dela é toda feminina. Feminina diante da

sociedade, ela não se enquadra no que ela nasceu, no que a sociedade impôs a ela: “oh,

você tem um pênis, você é um homem, acabou”, “não, mas eu não me sinto um

homem”. E é isso.

E essa questão de desconstrução é muito interessante, nesse ponto, porque você

acaba aprendendo a respeitar todo mundo, toda uma diversidade e isso é muito legal.

Porque você aprende com a vivência, você entende que o outro é diferente de você e

isso é legal, que isso te ajuda a ser uma pessoa melhor, a construir novas ideias, novas

parcerias, novos pensamentos e até novos estudos. Um aprende com a vivência do

outro. E isso não acontece normalmente, é muito difícil, as pessoas trans sofrem pra

caramba, sofrem pra caramba. Eu tinha uma visão, eu posso dizer hoje que eu acho que

eu tinha uma visão um pouco terf, uma visão meio radfem nessa época, antes do Marcos

passar pela transição, mas quando ele começou a passar pela transição eu comecei a ter

uma visão mais interseccional das coisas. A entender que mulheres trans fazem parte

disso, elas também tão nessa luta. Num é mulher? Pra mim é mulher, não importa ter

um pênis, não importa. Eu não gosto desses termos que as pessoas usam pra chamar

mulheres trans, pessoas dentro do feminismo que usam termos como “piroco”, termos

chulos, termos ridículos que diminuem as mulheres trans só porque tem pênis. Cara,

quantas sofrem, quantas se matam porque tem a porcaria do pênis? Só por conta disso.

Se matam, simplesmente pensam: “nunca vou ser uma mulher, nunca vou ser aceita,

nunca vou ser feliz”, “o único trabalho que eu tenho é me prostituir e acabou”. Porque é

muito difícil, muito difícil, hoje em dia que a gente tá vendo um avanço nessa coisa da

mulher poder fazer uma faculdade, uma mulher trans poder fazer uma faculdade, da

aula, ser bem sucedida e isso pra mim é muito gratificante, eu fico muito feliz de ver

isso, depois de ter desconstruído isso e ter entendido que não importa o que que você

seja desde que que você seja feliz e você dê amor e receba amor e é isso. É uma visão

meio paz e amor, pode até parecer, mas a real, é isso que todo mundo precisa, é só isso

que todo mundo precisa, as pessoas não precisam de ódio, o ódio acaba sendo

disseminado e tal, mas por conta dessa coisa da ganância, do capitalismo, de muito

dinheiro, o dinheiro causa isso, a ganância, a cegueira, tudo isso.

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Então, o feminismo acaba sendo um facilitador, ele abre as portas para que você

enxergue com uma visão mais ampla das coisas. Você entende que: “pera ai, deixa eu

abrir meu mundinho, minha caixinha”. Porque até então você pensa: “sou eu, aqui,

ouvindo meu rock e acabou”. Ponto, não existe mais nada. Não, vai muito além de uma

banda ser composta por mulheres, vai muito além disso. Nesse tempo que eu conheci Le

Tigre que é da Kathleen Hana que foi do Bikini Kill que tem o JD. O JD, ele é um

homem trans e eu não sabia, eu soube por causa do Marcos nessa época, acho que o JD

foi uma das pessoas também que influenciou bastante o Marcos em querer passar por

essa transição, que ele não se enxergava como ele se via, ele não aceitava aquilo, ele

falava: “eu não sou isso”, “eu sou o Marcos, esse é o meu nome, é o nome que eu adotei

e é o nome que eu me reconheço, é como eu me vejo, como eu me aceito, é isso”. Eu

nunca, nunca, se em algum momento eu fiz, eu fiz de forma inconsciente, mas eu nunca

desestimulei ele, nunca quis desestimular ele a fazer isso, eu ficava preocupado por

esses lances de hormônio e tudo mais, até porque eu não tinha muita noção do que se

tratava e o quanto aquilo alteraria o corpo dele, a forma biológica dele, se aquilo traria

algum problema biológico pra ele. Eu falava: “cara, vai num médico, vê isso, não sai

tomando assim, por tomar”, “vai com calma, mas faz se é isso que tu quer, é isso”, “eu

vou continuar te tratando, gostando de você, amando você do jeito que você é porque

você é meu amigo e é isso que tem que ser”. Hoje em dia eu acho que ele se sente uma

pessoa muito mais feliz por ter passado pela transição e tudo mais.

Eu falei das mulheres trans, agora eu vou falar um pouco dessa visão dos homens

trans no feminismo. Entra aquela questão das pessoas perguntarem: “ah, mas não existe

homem feminista?”. Não existem homens feministas, existem homens que apoiam o

feminismo, diferente. Feminismo somente as mulheres protagonizando, somente. Mas o

homem trans, ele já não teve aquela vivência, ele já não passou por aquela experiência,

ele já não teve noção do quão difícil é ser mulher? Então, ele também tem propriedade

pra falar do assunto, entendeu, mesmo não estando mais como protagonista daquela

luta, protagonista no front, ali na frente levantando bandeira e tal, ele pode chegar e

falar: “olha só, uma mulher sofre sim”. Defender. Digamos que essa é o papel dele e

ajuda muito, eu acho muita perda de tempo mulheres feministas que rejeitam pessoas

trans, tanto mulher trans quanto homem trans. Cara, você tem que ajudar o teu parceiro,

a tua parceira trans, o teu amigo, a tua amiga trans a desconstruir certos vícios de

linguagem ou certas formas erradas de pensar, que já são embutidas na gente. Aquela

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coisa de olhar pra uma mulher que se veste um pouco mais masculinizada, usa um boné:

“ah, é sapatão”. Taxa aquilo. As vezes não, as vezes as mulher é assexuada, assexual, as

vezes a mulher não se envolve com nada, com ninguém. As vezes ela é uma pansexual.

Gosta de tudo, você não tem como taxa aquilo ali: “ah, porque ela se veste assim, com

um boné, anda com skate e tal, toda meio menino, é sapatão”. Ou o contrário, porque

um cara tá tipo de sainha, mas ao mesmo tempo bigode e maquiagem, tá uma coisa

meio que misturada, entra aspas, com o feminino e o masculino, uma coisa meio queer,

digamos assim. Que eu conheci um menino que ele era assim, ele usava saia, mas ele

tinha bigode, tinha o cabelo raspado de um lado e grande aqui e com uma franjinha e

usava um sapato, de homem. Era uma coisa meio que misturada e eu perguntava: “como

eu posso tratar você?”. Ele foi e falou assim: “olha, eu sou um trans não binário, mas

por enquanto me sinto uma pessoa trans não binária, mas eu queria muito me tornar uma

mulher trans, só que eu tenho muita dificuldade com esse lance de família e tudo mais,

então, é meio que uma forma como eu lido comigo mesmo pra que eu não surte porque

eu não me vejo como um homem cis”, foi o que ele disse “eu não me vejo como um

homem cis, mas também ainda não me vejo como um mulher trans, não me vejo com ou

uma mulher”. E ai eu lembro que eu fui e falei: “então, tudo bem”. Ele foi e falou:

“então, é assim, eu adoto essa postura meio queer, assim, essa coisa misturada e tal, eu

gosto disso, eu gosto de confundir a cabeça das pessoas porque eu não faço questão que

me digam o que que eu sou, sabe, não ligo se quiserem me tratar no feminino, ok, se

quiserem me tratar no masculino, ok também, se quiser me tratar sem gênero, ali,

também ok”. Achei aquilo muito interessante, achei aquilo muito legal. É uma coisa que

é difícil porque muitas pessoas acabam não tendo paciência.

Isso não é só na questão trans, mas no feminismo principalmente, as pessoas que tem

conhecimento sobre determinado assunto muita das vezes não tem, não estou dizendo

que a culpa é delas, muitas das vezes não têm paciência ou não dão credibilidade pra

ensinar um outra pessoa, não é ensinar, mas passar aquele conhecimento adiante.

Chegar e conversar na moral mesmo, chegar ali no sapato e falar: “cara, vem aqui,

vamos ali no cantinho quero trocar uma ideia contigo, então, acho que essa tua visão tá

um pouco atrasada”, “ah, mas por que?!”, “porque, cara, não é assim que funciona, as

pessoas merecem respeito”. Chegar ali e conversar. Se a pessoa não demonstrar aquilo,

ai é uma situação, mas tem pessoas que não tem nem paciência e não tem vontade.

Estou falando isso, não é só uma feminista falando com um machista, não, porque isso

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ai realmente é mais complicado. Tem muito cara que não tá afim de te ouvir, vira as

costas pra você e deixa você falando sozinha, isso aconteceu diversas vezes comigo,

mas tem muito cara que tá afim de te ouvir, que tá ali realmente prestando atenção e

falando: “caraca, eu já fiz isso”, “caraca, po, eu não sabia que isso era uma coisa que

incomodava”. Tem cara que realmente tem vontade, são pouquíssimos, mas tem. Lá no

próprio Por exemplo, Vulva La Vida, no festival, tinha uma menina com 16 anos na

época, Marcelinha e a maioria das meninas lá tinham 20 pra cima, assim, 25, 26, 27,

trinta e poucos, tinha mulheres de 40, tinha de tudo quanto é idade, uma diversidade. Eu

sentia que ela era um pouco leiga nesse lance de feminismo, feminismo ativista, essa

coisa do movimento, ela conhecia algumas bandas de punk hardcore e tal, mas ela não

tinha muita noção. Era, digamos assim, eu me vi nela com 14 anos, eu me via nela,

conhecia algumas bandas que tinham mulheres, mas eu não sabia direito o que que era

feminismo, não sabia defender o feminismo, não sabia chegar e falar com propriedade:

“olha, isso que você tá fazendo é errado, não é assim”. Conversar na boa, não sabia. E ai

eu lembro que eu vi ela conversando com duas pessoas que agora não vem ao caso citar

o nome, mas eram figuras extremamente importantes para o movimento feminista

porque são figuras mais velhas que influenciaram diversas e diversas gerações e

estavam cagando e andando, desculpa o termo, mas ignorando a presença da menininha

ali, da garota de 16 anos, a menina foi simplesmente trocar ideia: “sou sua fã, adoro sua

banda, adoro você, não sei o que”. A pessoa simplesmente: “ah tá, valeu”. A menina

ficava um pouco boiando nesse lance de quando tinha alguma palestra ou alguma

oficina sobre desconstrução de gênero, sobre mulher em cena, qualquer coisa, qualquer

coisa que falasse sobre mulher, eu via que ela ficava um pouco perdidinha, ficava meio

que olhando assustada é ninguém se aproximava dela. As pessoas mostravam um pouco

de tipo assim: “ah, minha filha, se vira ai, eu conheci tudo sozinha”.

Eu conheci as coisas do feminismo buscando, eu tive que ir atrás, eu que tive que

pesquisar, eu tive que estudar, ninguém chegou pra mim e falou: “Amanda, é assim, tá,

isso é errado, esse pensamento aqui, uma pessoa não pode fazer isso com você”. Coisas

que a gente acha que é super normal quando a gente tá em casa, quando a gente nasce,

quando a gente cresce dentro de uma família totalmente patriarcal, ai você vê e pensa:

“não, aquilo ali é tudo normal, meu pai faz isso, meu irmão faz aquilo, tudo bem”, “eu

não posso fazer porque sou menina”. Mas ai você vê que não é bem assim, pera ai, eu

posso sim.

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E essa menina, a Marcela, ela tinha umas visões assim. Durante o evento, foram

poucos dias, eu queria ter tido mais tempo com ela, pra conversar com ela. E eu falava:

“cara, você ainda estuda?”. Ela: “estudo”. Eu falei: “po, legal, acabei de terminar o

ensino médio”. Ela estava, eu acho, que na sétima série. Ela: “po, que legal”. Eu

perguntei: “você tem banda?”. Ela: “po, to montando uma agora com as minhas

amigas”. Era uma banda até emo, eu dei força falei: “cara, faz, cara”. E ela: “ah, mas eu

só canto, a gente tá sem baixista”. Eu me via na situação da menina, falei: “Marcela,

você vai aprender a tocar a porcaria desse contrabaixo agora”. Ela falou: “mas como é

que eu vou aprender a tocar isso?”. Eu falei: “não sei, não tem ninguém que você

conheça que possa te emprestar um baixo?”. Ela: “ah, tem, o meu vizinho”. Eu falei

“bate na casa dele, meu filho me empresta esse baixo, ai, vambora”. Ela ficava rindo,

ela: “po, obrigada, pelas palavras”. E tal pessoa que estava tão acessível a ela no evento

inteiro, inteiro porque estava falando com diversas pessoas que ela não conhecia, né,

essa pessoa que ignorou a presença dela, estava trocando ideia com diversas outras

pessoas com uma idade próxima a dela, que ela não conhecia e tal, mas digamos porque

tinha algo a agregar à vida dela, porque tinham noção do que que era o feminismo,

sabiam do que que era o movimento, que ai quando a Marcelinha foi falar com ela,

pedir autógrafo ou abraçar ou qualquer coisa ela ignorou, ela só falou: “ah tá, valeu,

querida”. Ignorou pelo simples fato de entender que aquela garota era imatura ainda

numa questão do movimento, não imatura, não estou dizendo pela idade, imatura boba,

não, eu digo em relação ao movimento, ela não tinha noção do que se tratava. Achei

aquilo um absurdo. Acho que se eu encontrasse com o meu ídolo hoje ou com alguém

que me influenciasse muito e me tratassem dessa forma eu ia ficar muito mal, acho que

eu ia ficar muito triste. Ela não ficou, graças a deus que ela não ficou, mas eu fiquei

meio chateada por ela, você tem que encorajar, você tem que estimular, você tem que

chegar ali e falar: “toca, faz uma banda porque daqui a 10 anos eu quero ver você

tocando, eu quero ver você na cena”. É isso que a pessoa tem que dizer: “eu quero ver

você lá na frente, eu quero tá na rodinha da tua banda”, “eu quero tá tocando com a sua

banda, tocando no mesmo dia”, “eu quero que a tua banda abra pra mim ou o contrário,

tanto faz”. É isso que tem que acontecer e não um certo estrelismo. Então, rola, mas isso

não é só no feminismo, isso rola em todo movimento social, político, enfim, rola essa

coisa de pessoas mais velhas, essa coisa hierárquica, da: “ah, que eu sou pioneira”, “ah,

que eu sou pioneiro”. Isso é errado, isso é uma visão errada, uma visão horrível porque

não é assim, se ela tá ali contigo é porque ela acredita no teu potencial e no dela, então,

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vocês juntas podem fazer muito mais coisas juntas se apoiando. Não tem porque querer

atropelar o lugar da outra, não tem, porque o seu lugar já tá ali, reservado, independente

de quem você seja.

É claro que dentro dessa questão do machismo, na vida normal, tem muito mais

competitividade, muito mais guerra, muito mais hierarquia do que no feminismo, eu

enxergo brutal. Acontece que no feminismo as mulheres brigam por qualquer coisa

porque simplesmente está enraizado nas mulheres ser assim, porque nós mulheres não

fomo ensinadas, desde pequenas pelas nossas mães, avós, tias, enfim, nós não fomos

ensinadas a amar mulheres, nós fomos ensinadas a odiar mulheres, nós odiar e somente

servir aos homens, fomos ensinadas a servir aos homens mesmo que eles nos odeiem.

Isso não é uma coisa que eu estou inventando agora, isso tem todo um estudo e toda

uma vivência. Você nasceu mulher, você sente isso, em algum momento da tua vida

você sente isso. Existem mulheres que tem muito mais liberdade do que outras, que são

criadas muito mais soltas do que outras, isso existe, mas ela vai encontrar machismo e

dificuldade na vida dela em algum determinado momento e umas encontram o tempo

todo.

Eu, por exemplo, eu encontro o tempo todo dificuldade, eu tenho 22 anos e ainda

tenho dificuldade para dormir fora de casa. Eu não obedeço mais aos meus pais porque

nesse ponto eu não devo mais satisfações a eles, que eles ficam preocupados, mas eu só

chego e falo: “oh, num vou dormir em casa hoje não, tá”. Perguntam: “ah tá, mas vai

dormir aonde?”. Se eu durmo na casa de algum amigo, amigo mesmo, homem, já

torcem o nariz, isso não quer dizer que eu vá ficar com o cara ou que eu vá fazer alguma

coisa, é amigo de banda, eu toco junto ou o cara é meu amigo mesmo, as vezes ele tem

até namorada e é amigo, vou jogar video game, eu vou fazer qualquer coisa, ver filme e

é amigo. As vezes rola um pouco dessa coisa, dessa resistência, de torcer o nariz porque

se fosse menina, se eu falasse: “po, vou dormir na casa da Shy”. Eles nem precisariam,

eu tenho certeza, tenho certeza porque eles já fizeram isso, eles nem perguntam quando

que eu volto. Tá, as vezes perguntam: “ah, volta quando?”. Eu: “volto tal dia”. Mas nem

encrencam, nem perguntam: “por que você vai dormir na casa Shy?”. Só falam “ah, vai

dormir lá? “tá bom”, “volta quando?”, “ah, volto tal dia”, “tá bom”. Agora se é na casa

de um amigo que eles sabem que é amigo: “ah Amanda, não sei se vale a pena não”,

“por que que você vai dormir lá, hein?”. Rola um questionamento. Essa coisa tá

enraizada. Mesmo que esse amigo é um amigo confiável, que não vai fazer nada de

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errado comigo, que também rola isso, essa coisa da segurança, botar a nossa segurança

em risco. Que parece que o homem, ele tá sempre predisposto a fazer alguma coisa de

errado com você e não é verdade, na verdade ele é ensinado a isso, entendeu, ele é

ensinado que pode fazer qualquer besteira com você, mas nem todo homem pensa

assim, que vai chegar lá e vai fazer. Já cansei de ter colegas que me respeitavam muito

nesse lance de não me forçar a fazer nada, mas tinham uma visão muito errada, falavam

coisas machistas de forma absurda que eu tinha que ouvir, entrava por um ouvido e saia

pelo outro, tinha ignorar pra manter a ali a amizade ou um clima bom e tem muita

feminista que não tolera isso, eu respeito também, eu compreendo tranquilo, eu acho

que você não é obrigada a nada, entendeu, você não é obrigada a nada. Você não é

obrigada a aturar macho, você não é obrigada a viver com homem, não é, mas se você

quiser, tudo bem também, só que cuidado, tome cuidado com quem você divide a sua

vida.

Eu estou falando de uma forma feminista. Uma pergunta que costumam me fazer:

“ah, mas se então você é feminista, Amanda, você provavelmente deve amar todas as

mulheres”. Não, não é amar todas as mulheres, é apoiar todas as mulheres, amar é

diferente. Você ama qualquer pessoa? Não. Você ama todos os homens? Não. Não tem

como você amar todas as mulheres, mas você tem como apoiar elas, tem como apoiar

todas as mulheres. Incentivar num sonho, numa coisa que ela goste, numa coisa que ela

almeje. Por exemplo eu discuti com uma pessoa, a gente perdeu a amizade, ela me falou

umas coisas, agiu de forma falsa comigo, eu achei aquilo errado e perdeu a amizade,

não confio mais nela, tudo bem, é um ser humano antes de tudo, vamos combinar,

esquecendo gênero, tudo, é um ser humano antes de tudo. Tá, brigou fez e aconteceu,

perdemos a amizade, ok, mas um dia aquela pessoa, aquela fulana ali, eu soube que ela

sofre um abuso sexual, um assédio, alguma coisa assim e tá bem mal. Sofreu agressão,

enfim, tudo de pior aconteceu com aquela pessoa. Eu seria uma pessoa muito, muito

ruim, com o coração muito de pedra se eu não estendesse a mão ou falasse “bem feito”.

Mesmo que eu tivesse brigado com ela por um outro motivo. Não, é ai que o feminismo

entra, eu estou ali pra estender a mão pra ela e falar: “cara, olha só, você não tá sozinha

nisso não, tá, respira fundo, tá, porque eu entendo a tua dor e eu sei que isso ai não é

fácil, é mo barra mesmo e calma”. Tentar ver se tem outras amigas outros amigos,

pessoas, família que estejam ali do lado dela. É ai que o feminismo entra, é isso.

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Hoje em dia, voltando a esse lance de banda, eu tento por tudo isso nas minhas letras.

Eu sou a única menina da banda hoje em dia, todas as bandas que eu tive na vida, todas,

exceto as que eu não fazia show quando era mais novinha, que eu ensaiava só, era só

menino e eu de menina, mas banda que eu fiz show mesmo, todas eram compostas por

mulheres. Depois de Benária, Benária acabou, eu participei de uma banda também

chamado Fetiche Velho. A gente fez a segunda edição do Sufrágio Feminino, trouxe

Anticorpos, foi bem legal, tocou Catilinárias, tocou Pagu Funk, tocou várias bandas

legais, Noras de Newton tocou.

Depois que acabou isso, eu e um parceiro meu fizemos uma banda chamada Ostra

Brains. O nome foi uma brincadeira por causa de Bad Brains, mas que não tem nada vê

com Bad Brains, assim, o som é totalmente diferente, foi uma brincadeira e também não

tem nada a ver com o Rio das Ostras. Todo mundo pergunta: “Ostra Brains foi uma

mistura de Rio das Ostras com Bad Brains?”. Na verdade ostra foi porque a gente fico

brincando: “po, ostra é um nome tão legal, né, vamos fazer uma música sobre ostra, ah

não, vamos botar o nome e tal”. A gente pirou nessa ideia, ficou viajando nisso e acabou

ficando Ostra Brains: “ah, Ostra Brains é um nome forte, vamos usar esse nome?”, “ah,

vamos, legal”. Eu fazia as letras e Fábio tocava guitarra, o Fábio sempre foi, ele sempre

tocou baixo e eu também sempre toquei baixo. Eram dois baixistas perdidos querendo

montar uma banda. A gente tinha uma ideia de montar uma banda mais garagem com

uma pegada do pré-punk, daquela coisa do proto-punk, uma coisa bem antes do punk.

Essa coisa do garage music veio lá dos anos 1960, 1970 e tinha muita influência do

rockabilly, do psicobilly, tudo isso acaba tendo influência ali no garage music, que é

uma coisa meio de psicodelia. Fábio agregou muito com essa bagagem, eu não tinha

muita noção de garage music. Até então eu gostava muito de punk rock hardcore e ele

sempre gostou muito disso, ele também conhece um monte de punk rock hardcore só

que Fábio é dez anos mais velho que eu, então, ele tem muito mais conhecimento sobre

música, digamos que ele tem dez anos a mais de conhecimento do que eu sobre música

e punk rock hardcore. Isso me agregou muito, nesse ponto foi muito bom porque me

ajudou muito a conhecer mais coisas e ver que eu tinha um gosto mais amplo, até do

que eu acreditava que tinha. A gente foi falando: “po, vamos fazer uma mistura dessa

coisa do garage com o punk rock, fazer um garage punk”. A gente começou a escutar

umas bandas, a gente começou a fazer um projeto tipo do White Straps que é uma

menina na bateria e um cara tocando guitarra e cantando. Porque a gente queria tocar na

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rua. A gente começou a olhar bandas tipo Mica Mico, muito boa, Good Palms que é

uma banda que tá na atualidade até hoje. Good Palms é uma mulher que toca uma caixa

e um surdo em pé, assim(faz o som da batida com a boca), ela só faz essa marcação e o

cara toca guitarra e canta. E a gente tinha pensado nisso: “ah, Amanda você vai pra

bateria”. Só que eu não tenho ritmo nenhum, nenhum, sou um desastre, e eu falei “cara,

isso não dá pra mim”. Ai ele: “mas você canta bem, eu gosto do jeito que você canta”,

“você não quer cantar?”. Eu falei: “ah, canta os dois”. Ele: “tá bom, eu faço uns

backings com você”. A princípio ele ia tentar tocar bateria e eu ia ficar na guitarra e na

voz, mas eu falei: “cara, mas o jeito que a gente quer tocar, eu não consigo tocar rápido

e cantar melodicamente”. Porque o melódico requer uma concentração maior de manter

a nota ali, sem desafinar. Quando você berra, você berra e vai, tá ligado, mas quando

você tá tocando guitarra e você tá cantando mais o melódico, bonitinho, aquela coisa

mais cantada, você tem que prestar atenção e eu tocando rápido e cantar o melódico, ali,

eu não estava conseguindo conciliar aquilo, eu falei “Fábio, eu não consigo, ou eu só

canto ou eu só toco, não dá porque backing dá pra fazer, mas se eu for cantar, cantar

mesmo, a música inteira eu não vou conseguir”. Ele: “ah, então deixa que eu fico na

guitarra porque eu também não tenho ritmo nenhum na bateria”. Falei: “então tá bom, a

gente não vai achar baterista nenhum na vida”.

Passou um tempo e tal, tocou a Karen com a gente, ficou um tempo, ajudou muito, a

Karen foi, digamos, que o up que deu na banda. Karen ajudou muito no início porque a

gente não tinha baterista nenhum. Depois da Karen passaram algumas, uma dessas

pessoas Prisley(uma das entrevistadoras presente), Prisley tinha feito alguns ensaios de

bateria e Prisley foi uma pessoa incrível também pro ensaio porque a gente foi vendo

que ficava muito legal o som da banda. Além de Prisley passaram muitas pessoas, meio

que passando por testes, vendo o que que ia dar. Prisley estava com a gente porque a

gente estava meio que vendo como é que a gente ia fazer , se ia tocar no, era no Rvivr,

né? No Rvivr ou foi depois?

Prisley: Depois.

Amanda: Foi depois, né? Na época do Rvivr era o Guilherme, não sei se você chegou a

conhecer o Guilherme. Tinha o Guilherme, que tocava na Join The Dance. Guilherme.

O Guilherme, ele sabe tocar guitarra bem a beça, baixo a beça, mas ele não sabia bateria

eu falei “Guilherme, eu preciso de alguém que toque...”. Antes do Guilherme passou o

Paulo. Cara, passaram várias pessoas tocando bateria com a gente, o Guilherme ficou

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um tempo porque ele estava muito na correria e o tempo da gente não estava

conciliando com o dele e o Paulo também. Acaba que eu por morar longe, Fábio mora

longe. Eu morar numa extremidade do Rio de Janeiro e Fábio morar noutra

extremidade, ficava praticamente impossível ensaiar com as pessoas. Então, a gente

meio que deu uma parada. Ai o Guilherme foi e se ofereceu, ele falou: “cara, eu não sei

tocar bateria, mas posso tentar”. Porque era pra esse show do Rvivr. Eu falei “po, cara, a

gente precisa muito abrir pra esse show, porque eu gosto muito de Rvivr e a gente

recebeu esse convite e a banda tá sem baterista”. A banda não tinha baixista, era só eu e

Fábio, era esse som de garageira mesmo, sem baixo. Ele foi e falou “po, posso tentar,

vamos fazer uns dois ensaios e se eu vê que não tem jeito, ai não vou tocar não,

recomendo até outra pessoa e a gente vê”. A gente fez e acabou que Guilherme se

empolgou muito, em uma semana ele pegou todas as músicas e falou: “vambora,

vambora, eu quero ajuda vocês e curti muito o som”. Ele conseguiu pegar rapidinho, só

que a vida dele estava muito bagunçada, e a minha e a do Fábio, nada estava casando.

Ai depois de um tempo Prisley entrou, ficou um tempo. A gente resolveu fazer um outro

projeto com Prisley que ainda está em standby, que se chama Magenta, mas esse ano

vai, eu quero botar pra frente, eu quero botar adiante, porque é um projeto diferente,

mas é um projeto bem bacana, é um projeto que eu penso que vai ter um pouco de

rodízio entre os instrumentos porque Prisley ia tocar guitarra um pouco, ia tocar um

pouco de bateria, eu ia cantar um pouco, ia tocar um pouco de baixo, ia ficar um pouco,

assim, desse...

Prisley: Tecladinho.

Amanda: É tecladinho, cara, que é um tecladinho que a gente pegou de sintetizador dos

anos 1980, bem legal. Ia ter um pouco disso, ia ter uma panderola também, um som

totalmente experimental, uma coisa diferente, ia ser uma coisa meio doida, assim, mas

que a gente estava super pilhando de fazer. A Shy também talvez participe do projeto,

que ela também tem um tecladinho e ela falou: “po, enquanto um tá fazendo alguma

coisa, eu to lá no tecladinho”. A gente vai brincando assim.

Dai quando o Guilherme saiu, Prisley também e tal, a banda ficou meio parada, a

gente ficou sem baterista e a banda quase que se desfez, que era só eu e Fábio e era

muito complicado conciliar as coisas, cada um morando num ponto do Rio. E ai acabou

que eu conheci o Roger, que é o meu atual baixista, ele seria o nosso baterista porque o

Roger, ele sabe tocar bateria, mas ele falou: “po, vocês não têm baixista, né?”, “po, eu

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tenho um amigo que ele é baterista e eu queria tocar baixo”. Falei: “cara, a gente estava

pensando em testar o baixo na banda”. Vê como sairia, como seria o som, se agregaria,

se daria aquele punch no som. Ele falou: “po, vamos fazer esse teste”. Então, teve um

dia que a gente foi fazer o teste, vê se era boa mesmo e acabou casando, o Mario e o

Roger estão ai até hoje com a gente, eles meio que pegaram o projeto pra eles: “po, não

deixa esse projeto morre não cara, a gente gostou muito do projeto como se fosse nosso

também, sabe”. Então, a gente foi levando por causa deles porque o projeto ia acabar, o

projeto ia acabar e eles que ficaram insistindo: “não, não, não acaba não, cara, vamos

levar isso adiante”. E a gente tá tocando até hoje.

E ai é que vem esse lance do feminismo, as minhas letras sempre foram feministas e

tal, a grande maioria das letras são sobre feminismo, sobre essa coisa da mulher sofrer

perseguição na sociedade, ódio, assédio, abuso, etc.A maioria das letras são sobre isso,

mas são de forma implícita, ninguém consegue perceber exatamente o que é, mas eu sei

o significado de todas as músicas. Nesse ponto sempre tive muita liberdade na banda,

sempre mesmo. Até porque se não tivesse esse tipo de liberdade eu não estaria na

banda, eu não estaria porque se eu estou numa banda onde eu não posso me expressar,

onde eu não posso por o que eu sou, então eu não estou na banda, eu não estou fazendo

parte daquilo, eu só estou ajudando. Eu só estou de enfeite, digamos assim. Então,

rolava um pouco disso. A gente acabou misturando, quando entrou o Mário e o Roger, a

gente acabou misturando um pouco das influências do hardcore na banda, que não tinha.

Eu e Fábio, a gente escutava muito hardcore, mas não colocava diretamente na banda,

não influenciava diretamente na banda, influenciava cada um ali, cada integrante, ponto.

Quando o Roger e o Mário entraram isso acabou sendo um plus na banda, acabou sendo

um plus mesmo. O Mário e o Roger gostam muito de hardcore, o Mário já gosta mais de

pop punk e hardcore melódico. O Roger já gosta mais de, ele gosta de hardcore

melódico, mas ele gosta mais de hardcore oldschool dos anos 1980 e eu já tenho essa

coisa do feminismo do Riot Grrrl, de trazer do punk, que digamos que é o lado

feminista do hardcore e o Fábio tem essa coisa do garage mesmo e gosta bastante dessa

coisa do punk junkie, traz muita influência do The Who, a banda, ele gosta bastante

também. Então acabou sendo uma mescla, acabou botando um pouco de características

de cada um e a banda tá seguindo. A gente faz alguns shows e tem gravado, tocamos no

festival feminista, um evento feminista do coletivo feminista lá de Volta Redonda

chamado Thiamat, muito bacana, por sinal, tocou Ostra Brains, que é a minha banda,

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tocou Framboesas Radioativas, que são as meninas de São Paulo e Ratas Rabiosas, que

é uma banda também anarquista lá de São Paulo, bem legal, eu acho que é anarquista,

não tenho certeza, mas também todas só de meninas bem legal. E o evento falava sobre

ativismo vegano, ensinava como fazer, foi soverte vegano? Acho que foi, né.

Prisley: Não sei, porque na hora eu acho que eu estava lá olhando a lojinha.

Amanda: É. Então, eu acho que teve, acho que teve um negócio assim, que teve uma

hora que teve uma oficina ensinando a fazer sorvete vegano ou era um mousse, alguma

coisa assim. Nessa hora eu não estava, mas eu assisti todas as outras oficinas. O evento

em si era totalmente ativista, ele tinha uma pegada muito interessante e eu nunca tinha

ido pra Volta Redonda, foi a primeira vez e foi logo pra um evento feminista. São umas

amigas muito gente fina que organizam, a Carla Duarte que estava no festival Vulva La

Vida, que é de Barra Mansa, ela é do coletivo Thiamat, a Helena Davi que é muito gente

fina também, a Estela, a Ana Paula, a Iris, que era do festival Vulva La Vida, estava no

evento pra ajudar e tal e outras meninas, assim.

Eu falei do coletivo delas e queria falar também, que eu quase já ia esquecendo, de

2013 a final de 2014, digamos assim, existiu o coletivo que eu montei com a Letícia e

outras amigas, que era o coletivo Raiotage, aqui no Rio. É o coletivo que era, tinha essa

coisa do queer e tinha essa coisa do interseccional, mesmo que não estivesse

explicitamente, era isso. Tanto eu quanto Letícia, as duas aceitávamos que mulheres

trans, mulheres cis, entrassem ali e agregassem e que a gente também pudesse apoiar a

causa delas e amenizar o sofrimento de cada uma ali de alguma forma. E o coletivo era

pra tudo, era pra estimular fazer zine, estimular fazer fanzine, revistinha, estimular a ter

banda, estimular a tocar algum instrumento, estimular a escrever, a pintar, a desenhar, a

qualquer coisa, escrever um livro, a fazer um documentário, fazer um vídeo. Nessa

época eu passei pra elas o American Hardcore. Algumas meninas não conheciam, não

faziam ideia do que que era punk rock hardcore, que iam na época, mas tinham

interesse. Eu cheguei a passar o American Hardcore pra elas saberem mais ou menos

qual era essa questão da cena e também passei um outro documentário que eu falo que é

a versão das mulheres, até hoje praticamente, do hardcore punk rock, que é o From The

Back Of The Room, que é um documentário bem legal. Ai tem bandas como

Condenada, 3B8, Blats, aparece a Kathleen Hana falando do Bikini Kill, diversas

bandas, Ratmobile, diversas. Bem legal. Porque algumas ali, não era muito a vibe delas,

assim, hardcore, era mais ouvi um som mais alternativo, indie. Eu respeitava, de certa

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forma, apesar de eu ainda me sentir um pouco deslocada porque eu sempre gostei desse

som mais brutalzão, mais gritado, berrado, mas algumas delas ali até que gostavam ou

começaram a gostar, na época do coletivo, começaram a ter um pouco mais de noção e

falar: “po, isso é maneiro, cara, até que isso é legal”. Não é a pegada delas pra fazer o

som, mas elas até ouvem hardcore tipo Anticorpos, muitas delas gostam até hoje. O

coletivo Raiotage juntou muita menina foda, desculpa o termo, muita menina bacana,

muita menina incrível, menina interessante, menina que contribuía muito. Porque todas

elas acabaram ficando muito amigas e o coletivo não era meu e da Letícia, nós

formamos o coletivo, mas o coletivo era de todas, sacou, todas elas tinham propriedade,

elas comandavam aquilo, todo mundo ali, aquilo era de todo mundo. Não era uma coisa

de: “ah, então quer dizer que você é líder, você e Letícia eram as líderes?”. Não, não

existe isso, eu não gosto desse termo “líder”, não tem: “ah, é na sua banda?”, “você que

é a líder da banda?”. Não, eu posso ser ali a pessoa que resolve coisas, resolve tretas,

resolve burocracias, mas o Roger me ajuda muito, o Mário também faz muita coisa, o

Fábio também faz muita coisa, mas não existe um líder ali. Digamos que eu sou a

representante no microfone, é isso, mas o Roger é o representante no baixo, o Fábio é o

representante na guitarra e o Mário é o representante na bateria. E depois que dissolveu

o coletivo Raiotage, acabou porque estava tendo um pouco de dificuldade nesse lance

de encontro, conciliar o horário, isso acaba acontecendo em qualquer grupo, sempre

acaba saindo uma, entrando outra, e acaba(faz um som de esvaziar com a boca). Ai eu

meio que me afastei um pouco porque eu também não estava mais conseguindo

conciliar horário, encontrar com elas, que a maioria dos encontros era aqui pelo centro

do Rio e eu moro no Recreio e era muito difícil vir pra cá sexta feira a noite, ir por

centro da cidade, voltar, pegar ônibus na Central, era perigoso, sozinha, não tinha

companhia pra voltar. Então, isso acabou também dando uma afastada, mas o tempo que

existiu o coletivo foi muito bom porque nós fizemos muitos e muitos eventos feministas

e isso ajudou muitas e muitas meninas pelo Estado do Rio de Janeiro a entenderem o

que que é feminismo e se envolver na causa, se envolver no movimento e parar e botar a

mão na cabeça e pensar: “po, eu fui feminista a vida inteira e nunca me liguei nisso”, ou

então “po, eu tinha uma visão super errada sobre feminismo”, ou “po, caraca, minha

cabeça mudou sobre o feminismo”. Isso é bem legal, ou então: “po, eu lembrei de

fulana, tipo uma amiga minha que poderia tá aqui comigo nesse evento”. Isso rolava

bastante, isso era bem legal. Então, o coletivo foi muito gratificante pra mim, só me

trouxe frutos maravilhosos, eu conheci pessoas maravilhosas, até hoje eu tenho contato

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com a maioria delas. Prisley foi um fruto disso! E muitas outras pessoas que mudaram e

mudam todo santo dia, todos os dias a minha vida e isso é muito bom, cara, eu acho isso

maravilhoso.

O coletivo se dissolveu, mas as bandas continuaram, Trash No Star continuou, eu

montei o Ostra Brains e tal, toquei numa banda chamada Vivá com a Joy e a Kika, e

tinha o Ralph e o Leandro Padawan, que era eu fazendo, eu berrava, mas eram os berros

mais agudos e a Kika berrava os graves, então, ficava uma mescla. Era bem legal, eram

duas minas no vocal e cada uma berrando de um jeito totalmente diferente da outra e era

muito legal. Eram duas meninas, não era um cara e uma mina, eram duas meninas, isso

era legal, e a Joy ficava no baixo. Essa era uma banda que era divertida, era bem

divertida, eu só fiz um show, que foi um show que era também do coletivo e o nome do

evento era Teimosa. Foi bem legal, foi bem divertido. E ai acabou Vivá porque um foi

pra São Paulo outro foi pra Curitiba, eu já tinha saído da banda e ai acabou que a banda

não voltou. Eu fiquei só com o Ostra Brains. E foi seguindo e as meninas as vezes se

reuniam pra fazer alguns eventos, mesmo sem coletivo: “po, vamos continuar fazendo

evento?”, “é tão legal, né, fazer os roles, não sei o que”, “que a gente conhece gente

nova a gente se diverte”. Isso acabava sendo uma desculpa pra gente se encontrar

também, a gente sentia falta daquilo, sentia de ver a amiga, de trocar ideia porque o dia

a dia já é tão maçante, essa coisa de trabalho, faculdade, responsabilidades, filho, conta

pra pagar, casa, é vizinho que reclama, é tanto estresse, é trânsito, é engarrafamento, é

chuva, é a casa alagada, é goteira, é tanto problema que não sobra espaço pra você se

divertir e quando sobra aquele espacinho. Por que não fazer, sabe, por que não fazer

algo que você gosta? E era basicamente isso, a gente gostava de se encontrar e a gente

continuou fazendo evento. Rolou umas três edições do Salafrárias, que foi o evento, foi

o nome que a gente botou depois, ano passado, esse ano que passou agora 2015.

Essa ano agora, provavelmente, talvez aconteça o Sufrágio Feminino três, a terceira

edição do Sufrágio Feminino RJ, que foi aquele evento que eu fiz a primeira vez em

2012 e a segundo em 2014 e a terceira vez seria por agora, talvez aconteça, ainda é algo

que tá no papel. Eu conheci pessoas maravilhosas, como a Shy também, que é uma

amiga incrível que tá super colada comigo, é uma pessoa que tá super me apoiando,

tanto no roller derby, quanto na música, em tudo, ela sempre fala: “po, cara, tenho mo

orgulho de você e quero muito que a gente faça eventos juntas”. Eu quero poder trazer

banda porque eu gosto disso, eu gosto de ver banda de menina, eu gosto de ver gente

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ensinando coisa sobre veganismo, vendendo comida vegana e eu provando comida

vegana, encontrando gente nova, conhecendo gente nova, tendo novas experiências.

Renovando aquele ciclo de amizade e o clico mental mesmo, a cabeça, renovar o

cérebro. É bom, cara, é bom. Isso tá rolando, esse ano talvez a gente faça alguns

eventos. Tem a Efusiva que é das meninas, que as meninas, algumas meninas do

coletivo quando acabou, se dissolveu, elas resolveram montar um outro coletivo, só que

era só pra zine, só pra fazer impressões, que é a Drunken Butterfly, que é da Micha, da

Hana, da Ju, da Sofia e da Letícia. Ai elas fazem algumas zines, como protesto, zines

feministas, de cunho feminista, falando sobre o dia a dia, falando sobre histórias, várias

coisas, é muito interessante, é um selo bastante interessante. Elas também fizeram um

selo pra gravar bandas de meninas que é a Efusiva e ai vai ter o evento agora dia 5 de

fevereiro, que é o evento que vai ter Catilinárias, a gente, Ostra Brains e uma banda que

fazia, não sei se ainda faz, fazia cover de Holy, que era a Kinder Horse, bem legal, da

tijuca, um banda só de menina, que é novinha também, é uma banda que nasceu a pouco

tempo, é recente que é bem legal. Tem uma outra banda também chamada Drugged

Dolls que também tem essa pegada do grunge, que é com um vocal feminino da Joana,

acho que é isso, é Joana, ai ela e é só ela na banda.

E esse lance de eu ser a única menina na banda, as vezes, isso incomoda um pouco

muitas pessoas. Eu já ouvi uns comentários sobre: “como a banda pode ser Riot Grrrl se

só tem você na banda?”. Eu falo: “justamente, não precisa de muita coisa, tendo uma

menina já é o suficiente”. É o que eu tento pregar, sim, tem porque eu participo dela, o

fato de eu ser a única menina já representa isso, a banda não precisa ser totalmente

composta por mulheres, pra que ela, pra que eu tenha importância nela, o importante é

que eu tenha voz.

Entrevistadora: Que tenha um espaço, né.

Amanda: É. Que eu tenha espaço, é isso e eu tenho e eles me dão espaço, tem respeito.

O Roger toda vez, tanto o Roger quanto o Mário, toda vez que tem alguma coisa pra ser

decidida eles vem a mim: “Amanda, o que que você acha?”. Eles não saem tomando

decisão sem me consultar, sem vir falar comigo, rola um respeito, isso pra mim é

respeito. Da mesma forma que eu faço isso com eles, eu não saio tomando decisão: “ah

não, porque vai ter show tal dia e eu quero fazer esse show e ponto acabou”. Ai depois

eu aviso: “oh, vai ter show tal dia”. Não, eu chego e falo: “galera, todo mundo pode?”,

“vai ter show tal dia”. Porque tem que ser assim que tem que funcionar, isso não é só

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banda, isso é sociedade, o mundo tinha que ser assim, as pessoas deviam consultar mais

as outras, ter mais respeito. O respeito eu acho que é uma palavra que pra alguns pode

ser muito pouco e pra outros muita coisa. O que é respeito? Respeito pode ser você falar

de forma educada, mas pro outro aquilo dali num é falar com respeito, sabe. Pra uns isso

é respeito e pra outros não é. Então, isso varia muito, mas o respeito pra mim é esse

lance de você saber conversar, você saber se portar e não é se portar de forma: “ah, oi,

boa noite, senhor”. Não é de forma formal, não é isso, é saber tratar o outro com

educação e respeitar a forma como ele tá se pondo pra você. Por exemplo, esse lance

que eu falei todo das mulheres trans, dos homens trans, porque que você vai diminuir

uma pessoa se você tá vendo que a pessoa tá passando por aquilo, porque que você vai

tocar naquela ferida que já é exposta pra todo mundo, já é uma ferida que tá aberta ali, a

tempos, que todo mundo vai lá e faz questão de botar o dedo: “ah, viadinho”, “ah,

traveco”, “ah, não sei o oque”. Você não tem que piorar aquilo ali, você tem que ajudar

a curar aquilo. Isso pra mim é respeito. Não forçar uma pessoa, aprender a descontruir

termos, que eu não sou a rainha a desconstrução, não, eu sou uma pessoa que todo dia

eu estou aprendendo, eu ainda tenho que desconstruir muita coisa em mim, muita coisa

e, graças a deus, eu consigo ter essa visão de que eu tenho que desconstruir. Porque pior

seria eu falasse: “não, já desconstruí tudo, tá tranquilo, eu não erro, eu dito regras”, É

uma visão ridícula, não, eu erro pra caramba, todo dia eu erro e eu sempre tento me

corrigir ou tentar reformar minha cabeça, faz bem, né. E esse lance do feminismo é isso,

no feminismo em si, é uma parada que é muito importante na minha vida, é uma coisa

que tá no meu dia a dia. E feminismo importa, cara, feminismo importa, sim. Eu acho

que muitas pessoas ainda têm aquela visão que feminismo é só um blá, blá, blá, é só

uma desculpa pra que as mulheres tenham o que reclamar e não é, são fatos históricos,

desde de que o mundo é mundo a mulher é tida como alvo. Eu acho que é isso.

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