o rio de janeiro em a menina sem estrela, de nelson rodrigues

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O Rio de Janeiro em A Menina Sem Estrela, de Nelson Rodrigues Pedro Henrique Trindade Kalil AUAD 1 Resumo Este trabalho apresenta análise do livro A Menina Sem Estrela de Nelson Rodrigues e sua relação com a cidade do Rio de Janeiro. As crônica autobiográficas reunidas nesse livro, ao mesmo tempo em que contam a história do autor, também contam a história do Rio de Janeiro. Esta análise propõe não somente o estudo sobre relatos a respeito da cidade, mas deixar claro como o próprio texto contribui para a construção do imaginário sobre o Rio de Janeiro. Palavras-chave: Nelson Rodrigues, Rio de Janeiro, cidades, crônica. Abstract This paper presents a study on the book A Menina Sem Estrela by Nelson Rodrigues and its relationship with the city of Rio de Janeiro. The chronic gathered in this book is also an autobiography of the author, and while he’s telling his story he also tells the story of Rio de Janeiro. The study proposes not only the study of reports about the city, but as the text itself contributes to the construction of the concept of the city. Key-words: Nelson Rodrigues, Rio de Janeiro, cities, chronicle. I Introdução As crônicas de A Menina Sem Estrela de Nelson Rodrigues podem, à primeira vista, parecer escolha estranha para o estudo sobre a cidade nas obras do autor. Estranho 1 Doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da UFMG. Belo Horizonte – 30310-290 – [email protected]

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O Rio de Janeiro em A Menina Sem Estrela, de Nelson Rodrigues

Pedro Henrique Trindade Kalil AUAD1

Resumo

Este trabalho apresenta análise do livro A Menina Sem Estrela de Nelson Rodrigues e

sua relação com a cidade do Rio de Janeiro. As crônica autobiográficas reunidas nesse

livro, ao mesmo tempo em que contam a história do autor, também contam a história do

Rio de Janeiro. Esta análise propõe não somente o estudo sobre relatos a respeito da

cidade, mas deixar claro como o próprio texto contribui para a construção do imaginário

sobre o Rio de Janeiro.

Palavras-chave: Nelson Rodrigues, Rio de Janeiro, cidades, crônica.

Abstract

This paper presents a study on the book A Menina Sem Estrela by Nelson Rodrigues

and its relationship with the city of Rio de Janeiro. The chronic gathered in this book is

also an autobiography of the author, and while he’s telling his story he also tells the

story of Rio de Janeiro. The study proposes not only the study of reports about the city,

but as the text itself contributes to the construction of the concept of the city.

Key-words: Nelson Rodrigues, Rio de Janeiro, cities, chronicle.

I – Introdução

As crônicas de A Menina Sem Estrela de Nelson Rodrigues podem, à primeira

vista, parecer escolha estranha para o estudo sobre a cidade nas obras do autor. Estranho

1 Doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da UFMG. Belo Horizonte – 30310-290 – [email protected]

porque outros textos (outras crônicas, textos dramáticos, romances) poderiam ser, com

muito mais facilidade, estudados sob esse aspecto: o da cidade. Por exemplo, na série de

crônicas, A Vida Como Ela É, o autor se empenha em retratar a relação das pessoas com

a cidade, a relação do subúrbio com a zona sul carioca e a série de personagens que

pululam do imaginário coletivo do Rio de Janeiro.

Mas A Menina Sem Estrela oferece algo que os outros não têm: o contraponto

do Rio de Janeiro antigo (a infância de Nelson Rodrigues) ao Rio de Janeiro

contemporâneo à escrita do texto, 1967. Mas é um texto que fala sobre a cidade? Sem

duvida é. A partir de suas memórias, ocorre não somente a reconstrução de uma vida,

mas também de uma cidade, e ainda oferece um panorama interessante do Rio dos anos

1960. As crônicas reunidas no livro A Menina Sem Estrela foram encomendadas pelo

jornal Correio da Manhã, quando Nelson já tinha 54 anos e era já famoso por seus

textos dramatúrgicos, principalmente O Vestido de Noiva, tido como o fundador do

teatro moderno no Brasil. Nesse livro, se entrecruzam diversos momentos

memorialísticos do autor, não seguindo, necessariamente, uma ordem linear, deixando

espaço para intromissão de algumas memórias dentro de outras memórias.

Para Nelson Rodrigues, o Rio de Janeiro mágico e esplêndido, a tal cidade

maravilhosa, é o de sua infância, até 1918, quando a gripe espanhola devasta a cidade.

Cotejando com outros autores que falaram sobre o Rio de Janeiro, observamos que o

mágico e o belo estavam, sempre, no antes. João do Rio foi duramente severo com as

reformas da cidade que a modernizaram, dizendo que a modernização expulsava da

cidade as belezas populares e a vida das pessoas à época. Caio Fernando Abreu e

Marcelo Mirisola (ambos estrangeiros na cidade) apontam a magia do Rio dos anos 50 e

60, décadas que Nelson Rodrigues já sentia uma enorme decadência dos costumes e da

cidade.

Nesse sentido, o Rio de Janeiro de Nelson Rodrigues se encontra com o herói

baudelairiano que “encontra na cidade uma espécie de palco trágico marcado pela

ruína, pelo vazio, pela caducidade e pela morte” (SELDMAYER, 2004, p. 29). Como

homem de teatro, Nelson Rodrigues cria com suas memórias uma comunhão com o

palco: coloca em cena o obsceno, transforma e pauta a vida na ruína, no vazio e

principalmente na morte. Qual o lugar da morte na cidade? Esse é dos pontos mais

marcantes das crônicas de Nelson Rodrigues. Há também espaço para o carnaval, o

futebol, os personagens da cidade, a vida nas ruas, e, como não poderia faltar, o meio

cultural. É esse Rio de Janeiro de Nelson Rodrigues que veremos nesse presente

trabalho.

II – O Texto da Cidade

Segundo Vilém Flusser (1998), um espaço urbano, para ser considerado como

uma cidade, deveria conter três espaços necessários: o privado (a casa, oikos), o público

(a praça pública, a ágora) e o cultural (o templo, o lugar do culto religioso). Mas não

basta que esses espaços sejam isolados um do outro, é necessário que exista a síntese

dos mesmos para então se configurar, na vida urbana, uma cidade.

Renato Cordeiro Lopes, em texto intitulado A Cena e a Obscena de Uma

Cidade, Dita Maravilhosa, identifica dois espaços urbanos delimitados depois da

reforma Pereira Passos de 1920, “o privado dos salões e o público das ruas” (LOPES,

1994, p. 109). Poderíamos ainda pensar com Foucault, em seu texto Outros Espaços,

outras duas categorias de espaços: os de posicionamento de parada provisória (espaço

público) e os de posicionamento de repouso (espaço privado). É interessante ver esse

posicionamento de Foucault porque ele coloca o teatro como um espaço de heterotopia

que “tem o poder de justapor em um só lugar real, vários espaços, vários

posicionamentos que são em si próprios incompatíveis” (FOUCAULT, 2006, p. 418).

Por isso, o que Nelson Rodrigues faz ao colocar as suas memórias com uma

ligação próxima ao teatro, não é apenas um jogo de cena. É conseguir fazer com que o

texto relacione esses espaços inconcebíveis de conciliação (os espaços públicos e os

privados), para, só a partir daí, surgir a construção ou a reconstrução da cidade no texto.

Podemos observar em diversos momentos a aproximação das crônicas com o texto

dramático. Na crônica 6, Nelson Rodrigues, ao lembrar do irmão recém falecido, fala

sobre a visão que o irmão tinha, e que ele deveras também tem, do “mistério e do

dramatismo das coisas” (RODRIGUES, 1993, p. 34)”. Já na crônica 32, ele expõe

claramente a dramatização ao falar do salário que recebia em O Globo: “o que me

importa no momento é valorizar e dramatizar o salário (RODRIGUES, 1993, p. 116)”.

Entre as crônicas de número 42 a 49, em que Nelson Rodrigues se concentra

mais na sua experiência com o teatro, é que se torna óbvio a construção dramática e

cênica dos seus textos (sem contar ainda que diversas vezes relembra seu ofício de

repórter e como ele constituía, paralelamente ao fato, uma experiência dramática. Ainda

poderíamos citar a ligação que o escritor fazia entre futebol e teatro grego). O teatro,

dessa forma, não é desligado da vida: a vida, nas crônicas, está como em um teatro. É

através dessa construção textual dramática que Nelson Rodrigues consegue intercalar os

espaços constituintes de uma cidade: os espaços públicos e os espaços privados.

É como se ele dividisse o texto em cenários (diversos) e incluísse, aí, os

personagens (também diversos, dos papeis principais aos secundários e ainda sobrando

espaço para os figurantes). Pois, os textos, apesar de estarem em formato de crônica –

formato propício para a análise urbana –, são constituídos por uma forma dramática

(poderíamos gastar um longo tempo analisando formalmente as crônicas para

demonstrar a ligação das rubricas que determinariam ação/espaço e as falas dos

determinados personagens, mas acredito que se entrássemos nesse assunto o trabalho

perderia o foco e então seria, simplesmente, outro trabalho).

Enfim, o importante aqui é ressaltar que a forma como Nelson Rodrigues

escreve as crônicas, se assemelhando ao teatro, um espaço de heterotropia, propicia

mais veementemente a ligação das mesmas com a cidade. Com isso, poderemos passar

adiante e ver o que o autor relata sobre a cidade em suas crônicas autobiográficas.

III – A Cidade do Texto

As crônicas de A Menina Sem Estrela parecem sempre fazer o movimento da

casa em direção à rua ou vice-versa. Não é à toa que quando fala da infância na Rua

Alegre, é uma infância muito mais pautada no particular, apesar de ser sempre

denominada como a vida da Rua Alegre, um espaço público. Mas não é à toa ainda, que

mesmo os espaços sendo imbricados pelo movimento constante de inda e vinda, os

espaços continuam existir independentemente. O privado, obviamente é o lugar seguro,

o lugar de fugir dos perigos e dos sustos que doravante o espaço público oferece.

Esse movimento entre público e privado não desaparece quando a idade avança.

Nas crônicas do número 50 à 59, Nelson Rodrigues nos fala sobre a sua primeira

experiência sexual. O espaço é então delimitado, O Mangue, bem famoso por sua vida

boêmia. Diz Nelson esse espaço e em contraponto a sua casa:

Certa vez, houve um tiroteio. Eu passava pela porta de um café,

quando um sujeito puxou o revolver. Descarregou a arma. (…) Corri

alucinado de medo. E, já na Avenida do Mangue, parei um momento

junto à palmeira. Naquele momento, me senti perdidamente menino.

“Não volto mais”, decidi. Comecei a pensar no banho noturno das

criadas. Não havia o perigo de uma bala perdida, ou de uma doença, e

eu não sentia nem a vergonha, nem o medo. Nessa mesma noite,

chego em casa e passo pelo banheiro das empregadas: - iluminado.

Subo na árvore, instalo-me e fico de olhar parado como um cego.

(RODRIGUES, 1993, p. 189).

Este trecho exemplifica bem o fato recorrente do texto que se concentra sempre em

fazer os movimentos do interior (casa) ao exterior (rua) e vice-versa. Mesmo o sujo, o

errado, o impróprio, em casa é mais seguro. Fora, qualquer movimento, mesmo o mais

comum, pode ser perigoso. Esse tipo de movimento é bastante recorrente ao longo de

todas as 80 crônicas, mas, como exemplo, o trecho acima demonstra bem. Pensando

nesse movimento, poderemos ver pontos mais marcantes da cidade na obra.

III.1 – A Morte e o Carnaval na Cidade

A morte é dos temas mais caros a Nelson Rodrigues que resumiu seus escritos

como uma meditação sobre o amor e sobre a morte. Essa obsessão melancólica sobre o

negativo é tão marcante na obra do escritor que em uma das crônicas ele narra um

episódio de uma senhora pedindo para que ele não escreva mais sobre o tema. Mas

como a morte é um dos temas de sua obra, nessa mesma crônica citada, ele volta a tratar

do tema. Tema esse interessante para esse presente estudo porque a relação da morte,

para Nelson Rodrigues, é algo tão ligado à pessoa quanto à cidade.

Foi dito anteriormente que existia uma divisão na visão de Nelson Rodrigues da

cidade entre o antes e o depois da gripe espanhola. Com a gripe veio o fim de certa

tradição de enterros e de relação da cidade com a morte. Diz Nelson Rodrigues sobre os

antigos enterros:

Em 1917, 18, 19, os enterros saíam de casa. Não era como agora.

Agora despacham o cadáver pelos fundos. (…) Naquele tempo, o

sujeito era velado, chorado e florido no próprio ambiente residencial.

(…) De mais a mais, o enterro atravessava toda a cidade. Milhares de

pessoas no caminho, tiravam o chapéu. Ninguém mais cumprimentado

do que o defunto, qualquer defunto. (…) Sei que nosso tempo não

valoriza a morte e a respeita cada vez menos. (RODRIGUES, 1993, p.

28)

Com a gripe espanhola essa relação muda, passa de um momento vivido

coletivamente por toda a cidade para uma relação de indiferença coletiva e de

particularidade individual. Com a quantidade de mortos que surgiam na cidade, a morte

se tornou simplesmente uma rotina, como todas as outras, e, daí, o caráter de espanto e

respeito desaparecera completamente:

Diz alguém que a cama é um móvel metafísico, onde o homem nasce,

sonha e morre. Em 1918, a esquina, e o botequim, e a calçada, e o

meio-fio seriam metafísicos também. Porque lá se morria, a toda hora.

Mas eis o que eu queria dizer: - vinha o caminhão de limpeza pública,

e ia recolhendo e empilhando os defuntos. Mas nem só os mortos

eram assim apanhados no caminho. Muitos ainda viviam. Mas nem a

família, nem coveiros, ninguém tinha paciência. Ia alguém para o

portão gritar para a carroça de lixo: - Aqui tem um! Aqui tem um!”. E,

então, a carroça, ou o caminhão, parava. O cadáver era atirado em

cima dos outros. Ninguém chorando ninguém. (RODRIGUES, 1993,

p. 45)

Mudou-se o jeito de morrer, mudou-se o jeito de se relacionar com a morte –

para o escritor, mudou-se o jeito de se viver na cidade. “Hoje, há enterro até de kombi”,

diz ele, com o espanto de que a morte não ocupe mais uma posição importante na vida

da cidade e de sua população.

Essa posição é ainda ressaltada com o enterro do irmão Paulo Rodrigues:

Colocam as primeiras coroas nos cavaletes. Houve um instante em

que me deu um ódio negro e cego contra o bar da capela, instalado no

andar de cima. É um balcão que serve tudo, coca-cola, guaraná,

grapete, sanduíche e cafezinho. A dor tem, ao fundo, um alarido de

xícaras e de pires. (RODRIGUES, 1993, p. 85)

É nesse sentido que Nelson Rodrigues coloca a morte e as tragédias e o jeito de

se lidar com elas como a “aridez de três desertos” (RODRIGUES, 1993, p. 38). Depois

da gripe espanhola, o autor relaciona o novo modo de lidar com a morte, com a grande

indiferença com o que ocorreu no carnaval seguinte à gripe: “Logo depois explodiu o

Carnaval. E foi um desabamento de usos, costumes, valores, pudores (RODRIGUES,

1993, p. 55) e ainda, “a morte vingou-se, repito, no Carnaval (RODRIGUES, 1993, p.

57)”. Era no Carnaval que a nudez invadiu a cidade. E que tudo se tornara permitido. A

cidade indiferente à morte se mostrava também, para o escritor, indiferente às tradições,

aos pudores.

III. 2 – O Caráter Blasé e a Massa

Assim, aparece o que George Simmel define como o caráter blasé da cidade, que

é definido por ele como “a incapacidade, (…) de reagir aos novos estímulos com uma

energia que lhes seja adequada (SIMMEL, 2005, p. 581)”. Algo que combina muito

com o que Nelson Rodrigues constata ao ouvir um camelô gritar na rua sobre a nova

prostituição do Brasil:

Todavia, não me espanto, ninguém se espanta. As pessoas passam e

nem olham. Há qualquer coisa de vacum no lerdo escoamento da

multidão. (…) O que eu reclamava de mim mesmo era todo o espanto

que não sentia. Sim, eu devia estar espantado, todos deviam estar

espantados. (…) O que me põe doente é a falta de espanto. Preciso me

espantar com a maior urgência. (RODRIGUES, 199, p. 12-13).

A multidão, outro centro gravitacional em torno do caráter blasé, também é

outro ponto que Nelson Rodrigues trata em suas memórias. Não é à toa que pertence a

ele a famosa frase “toda unanimidade é burra”. Frase essa que aparece em suas

memórias com uma pequena alteração “toda unanimidade é hedionda” (RODRIGUES,

1993, p. 68) ou, ainda bem modificada, “a opinião pública é uma doente mental”

(RODRIGUES, 1993, p. 102)”. Mas, por incrível que pareça, é essa unanimidade, essa

massa de pessoas que é, para Nelson Rodrigues, o público ideal do teatro.

Na crônica 44, Nelson Rodrigues aponta diretamente qual seria o espectador

perfeito para o teatro: uma senhora gorda comendo pipoca. “Dos gregos a Shakespeare,

de Ibsen a O’Neill, todos escrevem para a senhora gorda” (RODRIGUES, 1993, p.

156). Coincidência ou não, a incrível constatação que fazemos aqui é essa ligação da

massa com o teatro, logo, da massa com o texto sobre cidades de Nelson Rodrigues e

ainda, da massa como o maior representante da cidade.

É nessa massa anônima que se movem os personagens de seu texto, a já citada

senhora gorda (muitas vezes denominada como senhora gorda machadiana), e que é

presa à cidade, “a nossa cidade é emotiva como uma senhora gorda” (RODRIGUES,

1993, p. 205). É também nessa cidade que surge o artista engajado, socialista

principalmente, que é ligado à burrice da unanimidade. É na cidade que a adultera, a

prostituta e os suicidas aparecem como ponto chave do meio urbano e sendo

influenciados pela cidade: “a rua matou uma pobre adúltera” (RODRIGUES, 1993, p.

79).

Esses personagens são chaves porque se individualizam por um instante na

multidão. É o suicida de amor que fazia charges no jornal, a adultera da Rua Alegre

assassinada pelo marido, a prostituta velha que lia uma revista na sacada. São

personagens sacados por um instante das ruas e colocados individualizados em meio a

toda vida urbana. A união feita destes três personagens por Nelson Rodrigues coloca o

desvio como método de particularização da pessoa, que deixa de ser a unanimidade, e se

tornam o suicida, a adúltera, a prostituta. O que morre na praia, a que escandaliza a rua.

Nelson Rodrigues ainda não deixa de caracterizar como poucos a diferença entre

a zona sul e a zona norte carioca. E, ainda, a diferença entre brancos e negros. É na zona

norte onde vivem muitas D. Odetes e é na praça Sanz Peña que se chorava muito mais

os mortos do que na zona sul, com seus cafés, restaurantes e pessoas que trafegam pela

rua como se nada acontecesse. O autor ainda aponta o preconceito, desmistificando a

crença de um povo não racista, a ideologia da democracia racial: “escrevi sobre nossa

questão racial (outro óbvio que ninguém quer ver). Disse então que, no Brasil, os

brancos não gostam dos pretos, ao passo que os pretos não gostam dos pretos”

(RODRIGUES, 1993, p. 231).

IV – A Escrita da Cidade

Nelson Rodrigues apontava também a importância da construção de uma frase.

Narra ele em suas crônicas a angústia ao se escrever uma sentença, que devia conter em

si mesma toda a potência do que seria dito. É no mínimo interessante ver essa ligação da

frase perfeita com a publicidade. Como sabemos, a publicidade tende a sintetizar a

potência do seu produto com uma comunicação mínima.

A publicidade, que caracteriza tanto a cidade moderna, aparece em contato com

a força da frase rodriguiana. Não só ela, cartuns e a imprensa ilustrada, como aponta

Ben Singer (2001), são parte do problema dos estímulos visuais e também são meio de

denuncia dos mesmos. Esses estímulos que se comunicam ainda mais com Nelson

Rodrigues ao colocar a rua, a cidade como fonte de perigo, e a casa como o local

seguro. A cidade, com seus estímulos e sua dinâmica, aparecem nos textos de Nelson

Rodrigues. As frases curtas, por exemplo, espelham o deslocamento dentro da cidade:

uma ou duas frases no máximo para descrever o trajeto próximo de um local ao outro. E

três ou quarto frases no máximo para locais mais longínquos.

Outro ponto que também podemos apontar nas crônicas de Nelson Rodrigues

que diz respeito à escrita da cidade é o fato da escrita fragmentada das crônicas e

também a não-linearidade das mesmas. Quanto ao caráter fragmentado, não temos que

explicar muito: sendo crônicas, os textos são construídos de forma curta, que se

interrompem para depois continuar. O que acontece é que a continuidade não é linear.

Nelson aponta isso já na primeira de suas crônicas de memórias:

Tenho mortos e vivos mais urgentes. Por outro lado, minhas

lembranças não terão nenhuma ordem cronológica. Hoje posso falar

do kaiser, amanhã do Otto Lara Resende, depois de amanhã do czar,

domingo do Roberto Campos. E por que não do Schmidt? Como não

falar de Augusto Frederico Schmidt? Seu nome ainda tem a

atualidade, a tensão, a magia da presença física. Todavia, deixemos o

Schmidt para depois. O que eu quero dizer é que estas são memórias

do passado, do presente, do futuro e de várias alucinações.

(RODRIGUES, 1993: 11).

Essa não linearidade serve também como característica de um texto da cidade.

Ocorre então deslocamentos temporais que acabam por revelar um caráter mais espacial

às suas crônicas, e, ao retratar o espaço, vemos nascer a cidade.

V – Conclusão

Observamos neste trabalho como a crônica de memórias de A Menina Sem

Estrela de Nelson Rodrigues também ajuda a construir a impressão que se cria da

cidade moderna, em especial do Rio de Janeiro. Nelson se utiliza de elementos

memorialísticos para por em cena, como num teatro, a cidade em que vive e viveu. Dá

também às crônicas uma escrita propícia à cidade, com a fragmentação e a não-

linearidade. Com isso, ele constrói uma visão da cidade, onde se vive e onde se morre –

e onde é necessário o espanto.

Os textos de Nelson Rodrigues parecem pertencer a essa ambiguidade da

modernidade. Ambíguo porque se caracteriza por esses signos modernos da velocidade,

da fragmentação, da união das artes (crônica e dramaturgia), o caráter blasé, etc. Mas,

por outro lado, sua cidade é aquela dos restos da evolução, dos vencidos. Enfim, o Rio

de Janeiro de Nelson Rodrigues é a história do insucesso: “talvez a história da negação

da tradição que não se institui em tradição da negação, algo como a história da ironia ou

da melancolia. A tradição da negação opõe outros valores aos valores; a negação da

tradição é a ironia e a melancolia de Poe ou de Baudelaire, sem esperança”

(COMPAGNON, 2010, p. 51).

Referências

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UFMG, 2010.

FLUSSER, Vilém. Fenomenologia do Brasileiro – Em Busca de um Novo Homem.

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2004.

SIMMEL, Georg. As Grandes Cidades e a Vida do Espírito. Mana: Estudos de

Antropologia Social, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 577-591, 2005.

SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In:

CHARNEY, Leo & Schwartz, R. O Cinema e a Invenção da Vida Moderna. São

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