o fantasma da indexação - notas

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MESA-REDONDA Uma nova ord Os atentados terroristas igualaram os Estados Unidos aos outros países em segurança e geraram incertezas econômicas que podem fazer os capitais migrarem para regiões mais tranqüilas. Os países emergentes, inclusive o Brasil, podem se beneficiar desta possível diáspora econômica e financeira. Esta é uma das conclusões de uma mesa-redonda promovida por Conjuntura Econômica que reuniu o ex-ministro da Fazenda Marcílio Marques Moreira (ele também é presidente da Fotos: Américo Vermelho A ECONOMIA MUNDI Outubro de 2001 CONJUNTURA ECONÔMICA 24

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Uma nova ord em econômicaOs atentados terroristas igualaram os Estados Unidos aos outros países em

segurança e geraram incertezas econômicas que podem fazer os capitais migrarem para regiões mais tranqüilas. Os países emergentes, inclusive o Brasil, podem

se beneficiar desta possível diáspora econômica e financeira. Esta é uma das conclusões de uma mesa-redonda promovida por Conjuntura Econômica que reuniu

o ex-ministro da Fazenda Marcílio Marques Moreira (ele também é presidente da

Fotos: Américo Vermelho

A ECONOMIA MUNDI AL PÓS ATENTADOS

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Uma nova ord em econômicaAssociação Comercial do Rio e consultor da Merrill Lynch); o ex-presidente do Banco

Central Carlos Geraldo Langoni; o diretor do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas, Antonio Carlos Pôrto Gonçalves; o coordenador de

projetos do IBRE, Renê Garcia; e o professor do Departamento de Economia da PUC e sócio da Tendências Consultoria, José Márcio Camargo. A mediação foi do vice-

diretor do IBRE e editor-chefe de Conjuntura Econômica, Roberto Fendt.

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Conjuntura Econômica — O cenário é de desaceleração do crescimento nos EUA particularmente, já que o cresci-mento está muito desacelerado na Europa e não tem cres-cimento no Japão. Até que ponto os atentados terroristas agravam essa situação? Como isso afeta o comércio mun-dial? E até que ponto prejudica a nossa disponibilidade de acesso a fontes de financiamento do déficit do balanço de pagamentos?Marcílio M. Moreira — Temos de fato que dividir o cenário em duas etapas. A primeira inclui os 20 dias desse trimestre, mas que são 20 dias tão inéditos, tão diferentes, que devem ter impactado o desempenho do trimestre todo. Alguns previam, o Stainger, por exemplo, economista chefe da Merrill Lynch, um crescimento de até 3% no trimestre, o início da recuperação. Isso foi totalmente afastado, de modo que hoje a maioria dos economistas americanos está trabalhando com a hipótese de que no terceiro e quarto trimestres nós tenhamos um crescimento zero ou negativo, o que caracterizaria tecni-camente uma recessão e quase todos acham que isso se estenderia no mínimo até o primeiro trimestre do ano que vem. E por que isso? Isso porque o setor da economia que vinha sustentando a atividade econômica e não deixando-a cair em recessão era o consumidor final, cuja confiança já tinha sido abalada nos dez primeiros dias de setembro, mas que ainda vinha num ritmo ao menos capaz de evitar um crescimento negativo. Esse sentimento de confiança e a propensão a comprar do consumidor caiu drasticamente e as experiências anteriores de traumas dessa natureza mostram que isso leva algum tempo para se recuperar. A segunda etapa seria o ano que vem, aí evidentemente eu vejo quase todos convergirem para o fato de que a economia se recuperará. A grande divergência é quando. A maioria fala em segundo ou terceiro trimestre. Os mais otimistas chegam a dizer primeiro e os mais pessimistas, quarto trimestre.

Por que quase todos acham que vai haver uma recupera-ção? Marcílio M. Moreira — Porque nós teríamos uma combinação de política monetária expansionista e agressivamente expansionista. Nas primeiras 36 horas (após os atentados) o Banco Central Europeu, o FED e o Banco do Japão injetaram US$ 120 bilhões no sistema. Poucos dias depois o Banco do Japão diminuiu

simbolicamente a taxa de redesconto de 0,25 para 0,10; o FED em meio por cento, o Banco Central Europeu também, o Banco da Inglaterra, o Banco do Canadá e o Banco Nacional da Suíça. Foi realmente um gesto coordenado. Você tinha uma recessão sincronizada e um único Banco Central agindo que era o FED, agindo de uma maneira agressiva. Isso deve continuar e acho que é o principal motivo pelo qual os economistas estão esperando que até o fim do ano os juros dos fundos federais caiam de 2,5 para 2% nos EUA. No Japão não há muito que descer mais a taxa, mas há possibilidade de aumentar a liquidez. A isso se soma uma política

fiscal muito mais expansionista, que era expansionista nas tentativas de corte de impostos e agora passou a ser expansionista nos gastos, o gasto para reconstrução de Nova Iorque, para defesa, segurança de vôos aéreos, segurança dos aeroportos, e já se fala na reconstrução da rede ferroviária, meio de transporte de passageiros que nos EUA é muito pequeno, mas que na Europa é muito desenvolvido. No Japão também, parte das estradas de rodagem e alguma realocação de aeroportos.

Serviços, também...Marcílio M. Moreira — A área de tec-nologia, o setor que estava realmente puxando para baixo a economia, deve receber investimentos. Ficou claro durante vários dias que os sistemas telefônicos de Nova Iorque funcionaram muito mal. Aquelas

empresas todas ficaram sem servidor, sem e-mail. Essas empresas tinham uma certa redundância de banco de dados, mas não redundância operacional, de modo que o que parecia ser um superinvestimento passou a ser visto como um subinvestimento e a idéia agora é as empresas terem uma política de espalhar um pouco seus ativos tecnológicos para aumentar o grau de segurança, de redundância. Então isso tudo — política monetária, política fiscal e a própria necessidade do setor privado de se readaptar a um mundo que será diferente — deve ter um impacto econômico que deve se traduzir em uma recuperação econômica, possivelmente no segundo trimestre. Temos que levar em conta também que além da gravidade da situação, houve uma mudança muito grande no mundo. O mundo de hoje é diferente do mundo que amanheceu em 11 de setembro, o grau de incerteza é muito grande porque você não tem ainda uma clareza do que significa para os EUA estar em guerra, a justiça infinita, liberdade duradoura.

Roberto Fendt

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Você concorda, Langoni? Nós temos agora um keynesia-nismo escancarado, então o resultado líquido provavel-mente implicaria uma força de recuperação.Carlos Langoni — Eu tenho uma visão um pouco diferente do Marcílio. Acho que a grande questão é saber qual é esse novo nível de incerteza. O ataque terrorista representou uma nova dimensão de risco que não existia na sociedade americana desde a Grande Depressão, desde a vitória aliada na Segunda Grande Guerra. Então a grande questão é a questão clássica dos economistas: esse novo nível de incerteza é transitório ou permanente? Isso é fundamental para qualquer análise que fizermos. Se é transitório ou permanente depende de variáveis não-econômicas, depende de como essa ação militar de retaliação vai ser executada e se irá ou não acontecer uma nova onda de ataque terrorista. Essa é uma variável fundamental porque nós podemos ter dois cenários. Um de uma ação rápida, localizada, que tenha algum sucesso e dê a sen-sação de segurança restabelecida e caracterizaria um patamar de incerteza que subiu transitoriamente, mas depois voltaria às condições normais e aí os mercados voltariam a funcionar rapidamente. E um cenário militar, de agonia prolongada, de uma guerra sem vencedor, com ataques e outras ondas de retaliação, um processo que pode se arrastar não por 3, 4 meses, mas por 2, 3, 4 anos.

Como na Guerra do Vietnã...Carlos Langoni — Exato, só que com uma diferença. A Guerra do Vietnã foi fora dos EUA e essa seria uma guerra dentro dos EUA. Do ponto de vista da nossa análise, em termos de metodologia, qualquer conclusão tem que partir dessa consideração: o nível de incerteza que evidentemente aumentou, é transitório? Ou houve uma mudança permanente no índice de confiança do consumidor? Nas experiências anteriores, como a Guerra do Golfo, o índice de confiança desabou logo que houve a invasão do Kuwait pelas tropas do Iraque. E já tinha desabado antes só com o anúncio de desemprego. Portanto, quando houver os dados do ataque terrorista, deve desabar mais ainda. O segundo ponto é o próprio índice de confiança do investidor, que nós não conseguimos medir objetivamente, mas é tão importante quanto o índice de confiança do consumidor porque vai definir de novo o comportamento dos fluxos de capitais. Se vai ser uma realocação, uma fuga de aplicações de risco e busca por liquidez apenas transitória, ou se vai ser uma redução mais duradoura dos fluxos de capitais. Para o

Brasil e para países emergentes é fundamental. Nós temos ainda uma variável fundamental que pode complicar a conjuntura mundial, que é o que vai acontecer com o preço do petróleo.

Isso é importante...Carlos Langoni — Por enquanto há queda da demanda, estão trazendo o preço do petróleo até uma queda abaixo de US$ 25 o barril. Isso ajuda muito, até porque setores como transporte aéreo e turismo estão em queda. Agora, ninguém sabe o que vai acontecer de novo com essa intervenção militar. Até que ponto isso poderá ou não

ter repercussão sobre o preço do petróleo. E a pior combinação de cenário mundial seria a queda do índice de confiança do consumidor americano, levando à redução dos gastos e caracterizando uma recessão nos EUA, com o aumento do preço do petróleo. Aí você teria um cenário muito menos favorável, o que certa-mente levaria a uma reavaliação do tempo de recuperação. Mas eu con-cordo com o Marcílio, a maioria dos economistas acha que a recuperação vai ser em meados do ano que vem, mas tudo parte do pressuposto de que o índice de incerteza vai ter um ajuste também rápido. Mas vamos falar um pouquinho de keynesianismo. Aqui eu acho que há um otimismo exagerado. Primeiro, estamos falando aqui de planos de gastos, anúncios de gastos. Desembolso efetivo não houve nada até agora, a não ser mobilização de

tropas, contratação de pessoal para serviço de segurança etc. A experiência mostra que os lags (defasagem) de política fiscal são maiores que os lags de política monetária. Eu acredito muito mais na eficácia da política monetária, essa sim é agressiva, vai ter um efeito importante. O segundo ponto é a diferença entre multiplicador do consumo e multiplicador de gastos públicos. O multiplicador do consumo é muito maior do que o multiplicador de gastos públicos. E aqui nós estamos falando de gastos de consumo que representam dois terços do PIB. Então quando se fala em US$ 100 bilhões, a gente nota o Grinspan muito relutante. Na verdade é uma parcela muito pequena em relação ao potencial de redução de gastos do consumidor americano. A imprensa americana publicou uma matéria fantástica sobre o cálculo, a dólares atuais, dos gastos militares das guerras. Começa com a Segunda Guerra Mundial, a Guerra do Vietnã, a Guerra do Golfo e os números são absolutamente desproporcionais. A guerra mundial custaria hoje mais

Marcílio Marques Moreira

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ou menos 50% do PIB americano. Na Guerra do Golfo o gasto líquido efetivo dos EUA foi de US$ 7 bilhões porque foi dividido entre outros países.

Agora não seria dividido...Carlos Langoni — Quando se fala em gastos militares, nós estamos falando de uma guerra em que o gasto é muito em capital humano, em inteligência, mais em software, do que em hardware. Temos que tomar cuidado para não fazer analogias errôneas. O esforço militar da Segunda Guerra pegou os EUA saindo da recessão de 1929/1930, margem de capacidade ociosa nas fábricas. Houve uma reciclagem enorme de indústrias para a área bélica, portanto o efeito é bem diferente. Em termos de econo-mia mundial nós estamos hoje numa situação de grande indefinição. Sem dúvida o efeito líquido é aprofundar a recessão, adiar a recuperação. A grande questão é se será um adiamento a prazo curto, no primeiro trimestre, no segundo trimestre... Até que ponto as políticas compensatórias terão de fato condições de mudar esse quadro? Eu duvido um pouco, pelo menos por enquanto. A política fiscal vai custar a ter um impacto efetivo. Já houve uma redução de impostos, mas até os gastos públicos se transformarem em despesa efetiva, isso chegar à economia, vamos viver um período de grande incerteza. E o Brasil vai sofrer diretamente o efeito dessas incertezas, não só pelo desaquecimento da economia mundial — o comércio vai crescer esse ano só 2%, são as últimas estimativas, cai de 9% para 2% — mas principalmente com a redução dos fluxos de capitais, num momento em que ainda temos um desequilíbrio externo expressivo, apesar da expectativa de melhora.

Suponhamos que realmente haja um efeito expansionista líquido. Há algum risco inflacionário? Pôrto Gonçalves — Uma analogia que poderia ser feita. O Japão num certo momento sofreu uma série de choques, em particular o choque imobiliário de Tóquio que derrubou o preço dos imóveis extraordinariamente e o choque financeiro, com vários bancos japoneses com muita dificuldade. O que aconteceu no Japão foi um processo recessivo contínuo e há deflação. A situação americana difere um pouco da japonesa de modo positivo porque os bancos, como no caso do Japão, não estavam enfiados na bolsa. A bolsa caiu enormemente, mas os bancos não tinham aplicações lá. Mas de negativo há o potencial de uma guerra incerta, não se sabe nem quem é o

inimigo. Portanto, os níveis de confiança do consumidor e do investidor dos EUA pode ficar muito tempo debilitado. Já vinham debilitados com as perdas na Nasdaq. Então eu diria que a demanda está muito enfraquecida e vai enfraquecer ainda mais. O resultado é que não deve haver inflação em hipótese alguma, seria inconcebível, a não ser que haja um enorme choque de ofertas. Não sei se o preço do petróleo vai subir, é incerto. A situação é bastante complexa e acredito piamente no que falou o Grinspan: “No longo prazo está tudo ótimo”, mas não quis falar em hipótese alguma sobre o curto prazo. Você pode baixar os juros, jogar mais liquidez na economia, mas enquanto

o consumidor não se animar com essa liquidez toda, e o investidor também, você vai ter um potencial apenas de ter demanda sem ter necessariamente a demanda. Eu estou pessimista a respeito da recuperação econômica mundial e brasileira. Acho que o Brasil tem rapidamente que fechar seu déficit em conta corrente e tentar de todas as maneiras possíveis ter um resultado mais positivo, porque a oferta de fundos vai ser restrita, acho que é um quadro que pode levar o câmbio a valores muito altos. Nossa política cambial funciona muito bem, evitou a recessão, se ajustou às crises asiática e outras, mas agora corremos o grave risco de ter inflação aqui dentro promovida pela política cambial, inflação cambial. Se vem inflação ou não, o potencial vem dessa área cambial. Pode ser maior na medida em que as incertezas e a falta de

entrada de capital fazem com que o câmbio suba. Então, inflação nos EUA é muito improvável, mas aqui dentro possivelmente do lado cambial. É preciso reestudar rapidamente a situação cambial.

Há algum indício de que poderemos sair dessas dificulda-des?José Márcio — Não há a menor chance de se definir cenário algum. O que a gente pode fazer é desenhar possibilidades de cenário, sem qualquer idéia de que tal cenário é mais provável ou menos provável. Eu concordo um pouco com o Langoni de que a percepção de risco mudou, mas mudou de forma diferente. Eu vou chamar de uma nova ordem econômica mundial, a partir desse processo. O que eu acho que vai mudar permanentemente é a percepção do grau de fragilidade da economia americana e da sociedade americana, dos EUA como país. A mudança vai ser permanente. A idéia de que os EUA são um lugar seguro, independente do que acontece no

Carlos Geraldo Langoni

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resto do mundo, porque nunca teve uma guerra, porque as crises econômicas não chegam lá, partem de lá e afetam o resto do mundo, acabou. Os EUA hoje são um país tão frágil quanto qualquer país europeu onde tem guerrilhas, guerra, onde as coisas acontecem. Essa fragilidade vai ser muito importante na redefinição de uma nova ordem econômica internacional. E fundamentalmente na questão dos fluxos de capitais. Primeiro porque essa fragilidade é percebida tanto dentro, quanto fora dos EUA. Isso significa que toda essa postura prepotente, isolacionista que os americanos têm, e que estava magnificada pelo governo Bush, vai mudar, já está mudando.

Os atentados provocaram isso ...José Márcio — Houve uma mudança extremamente importante a partir dos atentados, na postura do governo Bush em relação à comunidade diplomática e econômica internacional. Isso vai afetar de forma decisiva o compor-tamento das organizações multila-terais, porque afinal de contas é o maior sócio. Isso vai fazer com que as organizações multilaterais sejam mais solidárias. A forma como as organizações multilaterais vão tratar dos problemas dos outros países vai provavelmente ser muito mais solidária do que era antes. Os EUA, em conjunto com a Europa, vão acabar fazendo com que as organizações mudem o seu comportamento daqui para frente, numa direção completamente oposta ao que estava acontecendo até o dia 11 de setembro. A segunda coisa importante dessa fragilidade americana vai ser o fluxo de capital. Muito provavelmente você vai ter mais algum tipo de redirecionamento no investimento direto que nos últimos anos. A Europa estava comprando dos EUA até o começo desse ano. As empresas européias estavam simplesmente invadindo a economia americana, comprando, fazendo fusões nos últimos três ou quatro anos de forma impressionante. Acho que isso vai mudar um pouco. Não no curto prazo, mas de médio a longo prazos esse fluxo de capitais vai ficar menos concentrado na economia americana e vão ser mais diluídos no mundo inteiro porque agora o mundo ficou igualmente frágil e eu acho que isso é um ponto importante.

O Brasil pode se beneficiar disso?José Márcio — Essas coisas são muito benéficas para países como o Brasil. Se essa possibilidade realmente se tornar uma realidade, a longo prazo pode ser muito bom para a América Latina em geral, para países como o Brasil

em especial, e também para outros países emergentes que estão por aí. O grande problema é a transição de curto prazo. A minha preocupação é: quanto tempo vai demorar para essa nova ordem surgir? Do ponto de vista diplomático, isso está surgindo porque tem uma guerra na frente. Toda a necessidade que os EUA têm de uma guerra contra um inimigo que não tem rosto e não tem território está fazendo com que essa solidariedade seja demandada muito rapidamente. Aliás, tem um fato marcante nesse processo. Os EUA parece que vão pagar à ONU, depois de décadas, vão transferir o dinheiro que deviam para a ONU depois de décadas que não transferiam. Isso é simbólico.

Quanto mais rapidamente isso se tornar claro para as organizações internacionais e para os capitais, mais rapidamente a gente vai sair dessa crise, porque mais rapidamente vai ter a demanda nos outros países, ajudando o aumento de demanda nos EUA e aumentando a confiança dos consumidores lá nos EUA. Quanto mais rápido essa percepção, melhor. Se essa percepção for muito lenta, pode-se gerar uma crise de dívidas em países emergentes que vai afetar a confiança dos consumidores nos EUA e na Europa. Evitar que esse processo se transforme numa crise simultânea em diferentes países é fundamental. Quanto mais rápido essa mudança de atitude do ponto de vista econômico, mais rapidamente a gente vai fazer essa transição.

Há décadas buscamos a coordenação de políticas macroeconômicas e repentinamente, em 36 horas, todos os bancos centrais coordenaram as suas polí-ticas. Será que a gente precisa de mais alguns terroristas para coordenar políticas macroeconômicas? Valeria a pena algum terrorista dentro do Mercosul para ajudar a coordenar nossas políticas macroeconômicas regionais? Renê Garcia— O José Márcio colocou um dado que na verdade é um pouco de reprodução da história. O movimento de migração do capital da Europa para os EUA que está ocorrendo agora é muito semelhante ao que ocorreu entre 1900 e 1914, quando cerca de 30% das empresas americanas eram cotadas na Bolsa de Londres. O José Márcio tem uma posição muito correta quando diz que o posicionamento do EUA, dos países emergentes ou dos órgãos internacionais vai se alterar após os atentados de 11 de setembro. Por quê? Porque não é possível conviver com uma polarização assimétrica, onde o comércio internacional, onde a concentração de renda aumentou nesse período e países da América Latina foram ajudados

Antonio Carlos Pôrto Gonçalves

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pelo fluxo de capital, mas também se tornaram vulneráveis a esse fluxo. Eu acho que o governo americano vai rediscutir a Alca em novas bases, até como forma de antever futuros movimentos que possam vir a colocar em risco os países da América latina. O episódio é traumático para a sociedade americana, é traumático para o mundo, mas foi um espécie de chamamento à razão. Aqueles procedimentos isolacionistas de resolver problemas unilateralmente, ou a ação individual sem nenhum compromisso com a história, eu acho que vão ser revistas.

Vários itens do balanço de pagamento se revelaram positivos de uma hora para outra: queda dos juros interna-cionais, talvez uma surpresa agradável com a balança comercial. Como é que a economia brasileira é afetada por tudo isto? Nós mapeamos o cenário externo, vamos agora trazer isso para o Brasil?Marcílio M. Moreira — Antes de entrar nisso eu gostaria de enfatizar alguns pontos muito pertinentes e que têm a ver com a mudança da atitude dos EUA e de outros países da chamada aliança ocidental. Primeiro é aquele aspecto ressaltado pelo José Márcio, que é o fim do isolacionismo americano. Eles nunca tinha sofrido um ataque, entravam em guerras mas não para se defender. Acho que isso acabou realmente e passou-se para uma fase de muito maior coordenação. Coordenação das políticas macroeco-nômicas, coordenação das políticas antiterrorismo, dentro das Nações Unidas, em organismos internacionais, é um novo tipo de cooperativismo internacional que pode ter um efeito, não imediato, mas a partir de meados do ano que vem no Brasil e em outros países emergentes. O segundo ponto, também ressaltado pelo José Márcio, é o possível redirecionamento dos investimentos estrangeiros, em função da idéia de que se mudou o risco. E o hedge é mais barato em função do risco. Então, a diversificação do risco pode vir a ser importante, até mesmo pelas características do Brasil.

Mas não a curto prazo...Marcílio M. Moreira — A gravidade do momento está sendo subestimada. A curto prazo a situação piorou bastante, a curto prazo o acesso a fontes internacionais de financiamento parou, não quer dizer que parou para sempre, como nas outras ocasiões, esse acesso voltará, de formas diferentes, estão em curso algumas operações

muito estruturadas, com securitização, pegando qualquer tipo de fluxos ativos no exterior. Há umas certas janelas de oportunidades que já estão começando a ocorrer, mas a situação realmente é muito difícil. Devemos contar com taxas de crescimento baixas nesses últimos dois trimestres aqui. Alguma pressão inflacionária, embora não veja demanda para sancionar aumento de preços. Estou vendo supermercados querendo aumentar, eu faço parte do conselho de uma dessas cadeias, mas não há demanda. Devemos ter, dentro dessas incertezas, um certo paralelismo com a economia americana, mas com um hiato. Se lá a economia se recuperar no primeiro,

no segundo trimestre, que é o que a maioria dos economistas acha, a nossa recuperação seria um pouco mais tarde, um hiato aí de três a seis meses, lá para o fim do ano, que é uma análise recente da Merryll Linch. Eu vi eles rebaixarem o crescimento do ano que vem para 0,9%, na média, mas acho que no último trimestre, o Brasil já estará crescendo a 3% sobre o último trimestre de 2001. Então você teria esse agravamento em termos de perda de renda per capita aqui, dois, três trimestres, e depois uma recuperação mais para o fim do ano, enquanto talvez nos EUA seja mais para o meio do ano que vem.

O memorando de entendimento do Brasil com o Fundo previa um déficit em conta corrente relativamente grande em relação ao que se pensa hoje. Lan-goni, como é que você vê o que está

acontecendo após os atentados?Carlos Langoni — Mais uma vez um choque externo interrompe um ensaio de crescimento sustentado da economia brasileira. Se você analisar os últimos oito anos, pós-Plano Real, tivemos sucesso relativo no controle da inflação, mas não tivemos sucesso em sair da relativa estabilização para uma trajetória de crescimento sustentado. Pelo contrário, o padrão de crescimento brasileiro é extremamente instável. O que isso revela? Isso mostra que o processo de transformação e modernização da economia brasileira é um processo ainda em andamento, um processo incompleto. Se fosse um processo mais completo, mais acabado, é lógico que haveria algum impacto, mas esse impacto não teria tanta magnitude, tanta importância como tem tido, começando com a crise mexicana, a crise asiática, a crise russa, a própria crise brasileira, o contágio da crise argentina, a aterrissagem forçada dos EUA e agora o ataque terrorista. A primeira reflexão que nós temos que fazer é: por que a economia

José Márcio Camargo

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brasileira permanece tão vulnerável a esses eventos externos? E a resposta me parece mais ou menos óbvia. Nós não conseguimos completar o ciclo de reformas estruturais.

E o câmbio?Carlos Langoni — Esse é outro fator importante. Na primeira metade do Plano Real ficamos com a âncora cambial, o que agravou a perda de competitividade brasileira. Quando corrigimos a questão cambial, e não foi uma correção voluntária, foi uma correção forçada pelo mercado, o câmbio se ajustou, mas a economia mundial desacelerou e nós perdemos aquele momento em que a economia mundial crescia, o comércio mundial crescia a 9%, 10%. Quando estávamos nos preparando para fazer a realocação de recursos, aquele clássico movimento de exportar mais, a economia desabou. Isso nos deixou muito vulneráveis no plano externo. No plano interno, apesar da melhoria da política fiscal após a crise cambial — nós consegui-mos atender metas fiscais e negociá-las com o Fundo e isso foi fundamen-tal para devolver credibilidade à política macroeconômica —, estamos descobrindo que mesmo o superávit primário de 3% a 3,5% do PIB não é suficiente para assegurar a solvência fiscal.

No curto prazo não há saída.Carlos Langoni — Nós estamos no curto prazo numa situação muito difícil, porque essa crise do ataque terrorista, elevando o nível de incerteza, reduzindo o fluxo de capitais, reduzindo o fluxo do comércio, ataca os dois pontos vulneráveis da economia brasileira. Pressiona câmbio, pressiona juros, dificulta o ajuste fiscal e torna clara a percepção de risco externo, que é a relação dívida pública/PIB. Uma trajetória crescente, apesar de estarmos cumprindo as metas fiscais, o que mostra que o ajuste fiscal é insuficiente mesmo do ponto de vista quantitativo, ao lado da sua péssima qualidade, porque é um ajuste baseado em aumento de impostos em cascata. Eu acho que o impacto do ataque terrorista no médio prazo é empurrar a economia brasileira para a estagnação, o crescimento vai ser em torno de 1%, nós não temos espaço de manobra. É curioso verificar como estamos amarrados, não temos nenhum instrumento de política compensatória. Não podemos afrouxar a política monetária, pelo contrário, temos que apertar a política monetária. Não podemos afrouxar a política fiscal porque não temos gordura fiscal, pelo contrário.

A única coisa que temos a nosso favor, curiosamente, é aquilo que nos causa desconforto a curto prazo, que é a flexibilidade cambial e a flexibilidade dos juros que funcionam como dois amortecedores. Pelo menos ajudam a amortecer o impacto desse choque externo.

O risco Brasil aumentou muito.Carlos Langoni — A percepção de que o risco Brasil piorou me preocupa. Eu achei muito interessante um ponto que foi levantado anteriormente, que é a idéia de que, como o risco americano mudou, poderá haver um benefício para países emergentes na medida em que se

busca diversificação de riscos. Mas o que importa na decisão de investir é o diferencial de risco, e para que esse diferencial mude a favor dos países emergentes não só o risco americano tem que subir, mas o nosso tem que cair. O que está acontecendo no curto prazo, José Márcio, é que subiu o risco americano e o nosso também. Mas você tem razão, a longo prazo espera-mos que, completado esse processo de reformas, o diferencial de risco possa nos beneficiar.

São riscos de natureza diversa.Carlos Langoni — É lógico, não faço distinção se é risco financeiro ou risco a curto prazo, nós chamamos de risco econômico de mais longo prazo. De qualquer maneira, o diferencial de risco é fundamental e temos que fazer muito esforço interno para corrigir essas vulnerabilidades para a gente se

beneficiar dessa nova ordem econômica que o José Márcio chamou a atenção. Nós vamos ter de fato crescimento baixo, não vamos ter espaço para uma redução expressiva da inflação, apesar da fraca demanda, por um componente fundamental, a inflação do ano que vem vai ser explicada fundamentalmente por reajuste de tarifas públicas, e esse reajuste está fortemente influenciado pela correção cambial, principalmente na área de energia. Então nós vamos viver uma situação paradoxal, a demanda vai desabar, as margens do setor privado vão cair, mas a inflação vai ficar mais ou menos amarrada nesse patamar.

E temos um ano eleitoral pela frente.Carlos Langoni — Mesmo que a economia mundial se recupere em meados do ano que vem, os Estados Unidos saiam da recessão e que não haja essa guerra. Mesmo isso acontecendo, o risco político Brasil sobe com as eleições presidenciais. Eu gostaria de chamar a atenção

Renê Garcia

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para um aspecto de fato peculiar nesses últimos anos. Pela primeira vez estamos tendo uma superexposição do Brasil, com crise econômica e risco político. Na crise mexicana tivemos sorte porque ocorreu nos primeiros seis meses da eleição do primeiro mandato do Fernando Henrique Cardoso. A própria crise cambial brasileira ocorreu na primeira semana da reeleição do Fernando Henrique.

A crise russa...Carlos Langoni — A crise russa antecedeu um pouco, de certa forma até ajudou porque forçou medidas. Agora essa é uma crise de fim de governo, as eleições vão ocorrer, o risco político Brasil vai subir num momento em que a economia ainda está estagnada, e portanto aquele movimento compensatório de normalização dos fluxos de capitais que poderia ocorrer em uma situação normal não vai ocorrer, vai ser adiado provavelmente para 2003. Acho que essa conjugação de crise econômica e crise política deve adiar o processo de recuperação. Eu acho que o José Márcio colocou de forma muito interessante essa nova perspectiva causada pela fragilidade americana. Os EUA perceberam que nem uma superpotência militar pode resolver sozinha seus problemas que hoje são problemas de interdependência global, de segurança etc. Isso sem dúvida aumenta o poder de barganha dos países emergentes nos foros internacionais. É onde o Brasil tem uma boa possibilidade de reduzir algumas dessas vulnerabilidades. São dois vetores que eu acho fundamentais. Primeiro, uma ação mais efetiva junto aos órgãos multilaterais para que eles possam exercer as suas políticas compensatórias de forma mais ágil. Nós tivemos acesso a recursos do Fundo, US$15 bilhões, para evitar o contágio da crise argentina. Agora temos um novo fator desastabilizador, um ataque terrorista de dimensões nunca conhecidas, um novo choque exógeno. Se estivéssemos numa ordem econômica mundial mais eficiente, automaticamente os organismos multilaterais viriam oferecer ao Brasil créditos adicionais para minimizar os efeitos dessa externalidade, ajudando inclusive a lidar com a flutuação cambial. Isso deveria ser um processo automático.

Os economistas pregam isso há anos. Carlos Langoni — O Brasil deveria aproveitar esse momento e agir para melhorar a engenharia financeira internacional. E um outro ponto, uma política de médio/longo prazos, é o acesso a mercados. Está mais do que evidente que câmbio sozinho ou mesmo ganhos de competitividade sistêmica não vão resolver a vulnera-bilidade externa, ou seja, o crescimento das exportações vai ser um processo lento e insuficiente para permitir um salto quantitativo. E o Brasil podia aproveitar essa nova situação, principalmente pela posição americana, que vai mudar em função de todos esses eventos e alavancar

as suas políticas de negociação comercial, buscando acesso a megamercados como o dos EUA, a Alca, a União européia e os mercados emergentes. Essa é a maneira de resolver o nosso grande calcanhar-de-Aquiles, nosso grande fator de restrição de crescimento sustentado que é a vulnerabilidade externa. É uma tendência, sempre que a economia brasileira cresce, o déficit em conta corrente volta a crescer. Nós vamos ter uma redução do déficit em conta corrente, mas em função da recessão, da estagnação, porque as importações vão desabar. As exportações não vão ter um crescimento estupendo, pelo contrário. Mesmo com o câmbio 30% desvalorizado, as exportações vão crescer talvez 10% esse ano. Vivemos isso na década de 80. É um ajuste perverso. O que queremos é um ajuste positivo, é um ajuste com a economia crescendo, e isso nós só vamos conseguir gerando acesso a mercados. O Brasil podia usar o espaço geopolítico que surgiu dessa nova percepção de fragilidade americana para criar mecanismos compensatórios ágeis para essas situações de curto prazo e alavancar o nosso poder de barganha na política comercial: acesso a mercados, acabar com esse protecionismo absurdo dos países industrializados, com os subsídios americano e da União Européia.

O que é que você acha, José Márcio?José Márcio — Eu tenho de concordar. Acho que no curto prazo a situação é muito grave e o que me preocupa é a sensação de que estamos perdendo todos os instrumentos de política econômica que em algum momento nós tínhamos — política cambial, política monetária. O último instrumento que nos resta é a política fiscal, politicamente muito difícil de ser utilizada. O que me preocupa menos em relação à inflação, e eu tenho de concordar com o Langoni, é que eu acho que a inflação do ano que vem vai ser muito parecida com a deste ano. O

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que eu acho que evita uma explosão da taxa de inflação no Brasil — como aconteceu na década de 80, numa situação parecida porque os fluxos de capitais acabaram e tivemos que gerar um superávit em conta corrente de US$15 bilhões para resolver o problema, gerando inflação — é que hoje não é possível esse tipo de processo porque a economia brasileira está muito desindexada. Você vem de uma taxa de inflação de 1,7% no mês passado, e cai para uma taxa no mês seguinte de zero vírgula alguma coisa. O que significa o seguinte: o aumento da tarifa de energia vai ser maior do que o IGP por causa da crise energética, mas na hora que as tarifas aumentam as rendas caem em termos reais, diminui demanda, diminui pressão sobre a inflação pelo lado da demanda. Aumenta pelo lado de custo e diminui pelo lado da demanda, você não consegue repassar, a inflação tende a ficar aí parada.

E ajuda o lado fiscal.José Márcio — Ajuda um pouco o lado fiscal. Ter uma economia desindexada faz com que a inflação não exploda. Apesar da desvalorização do dólar em mais de 100% nos últimos três anos, a inflação está aí a 6%. É uma inflação relativamente alta, mas nada que se olhe e diga: vai explodir. Eu concordo que está na hora de o Brasil tentar se aproveitar desta nova ordem econômica internacional, para tentar criar mecanismos mais ágeis de respostas dos organismos multilaterais. Aliás tem um bom sinal do FMI, que pela primeira vez em muito tempo vem a público para dizer que está muito preocupado com a situação da dívida latino-americana. O representante do Fundo cita o Brasil e a Argentina. É um sinal de que alguma coisa está acontecendo, porque não é comum, a gente sabe disso. O FMI raramente faz declarações desse tipo.

Mas também com a posição do secretário do Tesouro dos

EUA, uma posição extremamente agressiva em relação à Argentina...José Márcio — Dos carpinteiros americanos. Eu acho que tem aí alguns sinais extremamente importantes e que a direção muito provavelmente vai ser esta. A economia brasileira pode talvez voltar a crescer lá no final do próximo ano. Se a gente conseguir crescer esse ano um e meio por cento é ótimo, se no começo do ano que vem a gente continuar com o crescimento em torno de meio, um por cento, vai ser um ganho excepcional, e se a gente conseguir, como está pregando a Merrill Lynch, crescer 3% lá no último trimestre, eu acho que estaremos saindo desse processo de uma forma muito melhor do que entramos.

O Langoni tem defendido seguidamente a Alca como opção para o Brasil...Pôrto Gonçalves — Eu acho que não dá para um país tentar absorver US$30 bilhões, US$50 bilhões em poupança externa de investimento direto, como é o caso do Brasil, com déficit em conta corrente. Não dá para ter números desse tipo, com exportação de 50 e importação de 50, porque se houver qualquer problema de falta de fluxo de capital não dá para você, mudando o câmbio ou com recessão doméstica, obter números melhores na balança comercial. O Brasil, para ter absorção de poupança externa de US$ 50 bilhões por ano, um investimento de US$ 30 bilhões, tem que ter exportações de US$ 200 bilhões e importações de US$ 200 bilhões, porque aí com 10% de desvalorização real do câmbio você já tem mais US$ 20 bilhões de exportação e menos US$ 20 bilhões de importação, com saldo de US$ 40 bilhões. Qualquer instabilidade mundial nos fluxos de capitais acarreta a necessidade — se você quer participar como absorvedor de poupança externa — de ter muita exportação, é um ponto básico. Não precisa ter superávit. Agora, não adianta os bancos centrais do mundo expandirem dólar na Europa e nos EUA se a liquidez ficar no Primeiro Mundo. Tem que ter mecanismos mais ou menos automáticos para passar para nós. É muito positiva a reação do FMI, mas devia ser automático. Não adianta dar liquidez só para uma parte do mundo. Isso é uma coisa que o Brasil pode negociar. A preocupação do secretário do Tesouro americano de criar mecanismo pelo qual a dívida do país possa ser mais bem estudada, mecanismos automáticos de não se pagar a dívida instantaneamente é um bom argumento contra essa posse de liquidez no primeiro mundo. Acho mais difícil abrir o mercado lá e desempregar mais gente. É mais difícil politicamente porque isso incide diretamente num setor que tem lobby, se protege, sindicatos. Nossa grande oportunidade está no mecanismo de liquidez internacional, recirculação dessa liquidez, temos que aproveitar isso agora, com intensidade, com energia, para poder funcionar.

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É coerente essa história do Banco Central, a pretexto de combater a especulação cambial, decidir, num regime de câmbio flexível, frear a desvalorização cambial?Pôrto Gonçalves — Há duas maneiras de corrigir as dificuldades da balança de pagamentos. Uma é a recessão doméstica e a outra dar preço relativo. Neste caso, você teria um juro maior, recessão doméstica, e no outro um câmbio maior para fazer o preço relativo. O Banco Central, devido à subida do câmbio e a possibilidades especulativas, está preocupado com o índice de inflação e está tentando conter a economia, e fez isso através de compulsório. Eu tenho até um modelinho que diz que se você subir os juros de 19% para 21% o câmbio não precisa subir tanto. Se subir de 19% para 30% o câmbio pode subir menos ainda. Tem um trade off de curto prazo entre câmbio e juros. De qualquer maneira subiram os juros via compulsório porque não se quer subir o CDI, já que a dívida interna, a taxa básica da dívida interna, pode ter que ter mais encargos ainda. Os juros subiram para dar uma freada na economia e isso dá uma mensagem ao mercado de câmbio. Está-se contendo a economia para evitar que o balanço de pagamentos piore. Se deixassem sem essas medidas o câmbio teria que subir mais. Estão tentando um câmbio de equilíbrio. A política está adequada, deixaram subir bastante o câmbio e os juros estão subindo um pouco indiretamente. Não os juros sobre a dívida interna, mas os juros sobre o lucro das empresas.

Nós esquecemos a Argentina.Renê Garcia – Eu gostaria de falar sobre o “empossamento” de dinheiro nos EUA, que na verdade é uma apropriação do modelo de finanças bancária, é a tese de que diante de uma relação de incerteza, quando aumenta o risco percebido pelos investidores, o dinheiro normalmente fica nos bancos com menor risco. Bancos que muitas vezes estão em boas condições, mas com uma percepção errada, passam a ter problemas e surge a figura clássica do Banco Central, provendo a liquidez desses agentes como uma forma de reposicionar o risco dos investidores. Então está muito mais justificado que o FMI neste momento venha em socorro, como o professor Langoni colocou muito bem, e coloque esse diferencial entre a percepção de risco anterior e a posterior como fator adicional, é uma coisa teoricamente que tem suporte. Agora, eu acho que o problema da Argentina se soma a um outro problema que o Brasil teve ao longo dos últimos anos, que é um programa de estabilização que perdura por um tempo razoavelmente longo, onde não está inserido um projeto de governo ou um projeto de desenvolvimento. A conversibilidade foi um fim em si mesmo. Durante 94/99 a banda cambial, ou modelo de banda cambial, era um fim em si mesmo. Faltou às duas nações um projeto de desenvolvimento. O Brasil teve oportunidade de sair, porque teve ao longo de

94/99 possibilidade de repensar o seu modelo e aproveitar esse bônus do comércio internacional. Hoje eu converso muito com empresas e elas têm um problema adicional em relação ao endividamento público, da deterioração da vulnerabilidade externa que é a contaminação do macro para o micro. Tem empresas brasileiras viáveis que por uma questão estrutural resolveram se endividar em dólar, devido a projetos de reaparelhamento ou de privatização, e com esse risco na taxa de câmbio passaram a ter um diferencial de risco e um impacto sobre seus passivos extremamente expressivo. Isso vai adicionar risco ao Brasil. Por quê? Porque são empresas expressivas em setores importantes que podem contribuir até para uma eventual troca. O câmbio flexível tem a grande vantagem de permitir que em situações de aumento de risco, dívidas sejam convertidas em equities. E aí houve um problema sério porque o real não foi um programa de desenvolvimento. É a mesma situação que a Argentina está passando neste momento. Será que houve uma fadiga do material, ou seja, do projeto de conversibilidade? Será que a sociedade vai embarcar numa alternativa que tenha um componente de risco mais elevado de curto prazo, mas possa sair dessa camisa-de-força? Já está havendo na Argentina uma certa tentação para ousar, e ousar significa possivelmente um rompimento com a paridade ou algum tipo de renegociação de dívida. Em relação ao Brasil confesso que a minha perspectiva de curto prazo não é muito favorável, porque se vê claramente que o governo está equacionando a sua questão fiscal e a sua questão monetária e cambial, para que chegue até 2002. No próprio discurso oficial e nos números você vê que o objetivo é fechar as contas em 2001 e fechar em 2002. O Brasil que se antevê para 2003 é uma grande incógnita, seja porque o regime cambial talvez seja insustentável

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com uma realidade adversa, ou porque a nova realidade política pode ter demandas sociais ou demanda por novos tipos de inserção do estado na economia que possam levar a uma situação em que haja uma deterioração do superávit primário fiscal. A médio prazo também tem um problema sério. O que a eleição presidencial vai fazer com o Brasil?

José Márcio – Eu discordo de uma parte que o Renê falou. Pelo contrário, os oito anos do governo Fernando Henrique tinham um projeto de desenvolvimento muito claro. Ele pode não ter cumprido inteiramente esse projeto de desenvolvimento. Era uma economia superestatizada, fechada, onde os mercados funcionavam muito mal como mercados e o governo FH fez um projeto de reformas macroeconômicas impressionante. O Brasil hoje é completamente diferente do Brasil pré-1994, aliás esse projeto começou em 1990. Não é verdade que não tenha um projeto de desenvolvimento, você pode dizer que ele não foi levado até o fim por questões que eles não tinham condições de fazê-lo, ou porque não quiseram fazer. Eu acho que tem um segundo passo nesse projeto, que é o seguinte: esse país teve uma industrialização, o antigo projeto de desenvolvimento, voltado para uma economia fechada, baseada no estado. Nós passamos dez anos mudando esse projeto de desenvolvimento. Podemos gostar ou não do novo projeto, isso não importa, não é essa a discussão aqui, eu estou dizendo que existe um outro país. E para esse outro país você precisa fazer os mercados funcionarem corretamente. O país anterior não precisava disso, eficiência não tinha a menor importância. Esse novo país que foi desenhado nos anos 90, exige eficiência para funcionar, e tem que ter regras de mercados que gerem os incentivos corretos, que faça com que os

agentes busquem eficiência e é isso que está faltando. As regras dos mercados não estão definidas corretamente, são as mesmas regras de trinta anos atrás. Ou você redefine essas regras ou vamos ter problemas, nós não vamos conseguir exportar. O problema do Brasil hoje é voltar a uma economia fechada ou dar um passo à frente. Ficar onde está não é possível. O que é o passo à frente? O passo à frente é fazer com que os mercados gerem eficiência, para isso temos que redesenhar as regras de mercado, esse é o ponto fundamental.

Renê Garcia – Se havia projeto de desenvolvimento, foi um fracasso em números.

José Márcio – O argumento é o seguinte: a transição é sempre muito difícil, todos os países tiveram transição difícil. É uma enorme mudança de país, o país mudou completamente.

Oito anos é um tempo muito pequeno, isso vai levar uma ou duas gerações.Renê Garcia – 2002 vai ser um teste. Democracia é boa por isso. A democracia vai testar a percepção da sociedade, se foi um bom modelo ou não.

José Márcio – A minha discordância com você é se tem ou não um novo projeto de país. Eu acho que tem. Você pode até discordar desse novo projeto, mas que existe e está em andamento, não tenho a menor dúvida.

Marcílio M. Moreira – Eu acho que as transições são muito difíceis e que as reformas são desestabilizadoras, muito penosas. Acho que estamos numa transição incompleta, ficamos no meio do caminho. A parte macroeconômica foi bastante bem encaminhada, muitas empresas se ajustaram, mas a interface entre o macro e o micro ficou faltando, que é exatamente a interface de mercado, incluindo o marco regulatório legislativo que ficou faltando. As agências reguladoras são conceitualmente um grande avanço, mas na prática se revelaram uma transferência de burocratas de ministérios para agências, mudando apenas o rótulo, mas com a mesma cultura burocrática, patrimonialista, intervencionista. A antiga sociedade já acabou, mas a nova ainda está lutando para surgir. Mas eu sou menos pessimista em relação a 2003. Eu acho que a sociedade brasileira mudou muito, as mudanças demográficas, sociais, são muito grandes, hoje existe uma classe média e essa classe média nas eleições não vai querer brincar. Inclusive eu acho que esse próprio trauma enorme vai tornar esse eleitorado ainda mais preocupado, mais conservador. Então, quem não tiver uma política, uma plataforma muito realista, não terá condições de ser eleito.

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