o campo e a copa: antropologia, jornalismo e manifestações na cidade do rio de janeiro

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O campo e a Copa: Antropologia, Jornalismo e manifestações na cidade do Rio de Janeiro The field and the Cup: Anthropology, journalism and protests in the city of Rio de Janeiro El campo y la Copa: Antropologia, periodismo y manifestaciones en la ciudad de Rio de Janeiro EVANDRO JOSÉ MEDEIROS LAIA 1 Resumo: A Copa do Mundo do Brasil, realizada em 2014, teve o Rio de Janeiro como um das sedes, onde foram disputados sete jogos, entre eles a grande final. Tudo isso exatamente um ano depois das manifestações de junho de 2013, marcadas pela ocupação das ruas do centro da cidade e também pela violência usada pela Polícia Militar na repressão aos atos. E ainda pela multiplicidade de vozes em transmissões, ao vivo, pela internet, simultâneas às transmissões feitas pelos grandes veículos de comunicação. Considerei então este um ambiente produtivo para realização de um trabalho de campo, com o objetivo de observar como as tecnologias móveis, com destaque para o telefone celular, estão transformando a maneira de se fazer jornalismo na televisão, inspirado nas propostas de Bruno Latour, Roy Wagner e Eduardo Viveiros de Castro. Palavras-chave: redes, telefone celular, Copa do Mundo, jornalismo, manifestações. Abstract: The Brazil`s World Cup, realized en 2014, have the city of Rio de Janeiro as one of the venues, where were played seven games, including the final. All this happened exactly one year after the june/2013 protests, remembered for the central streets occupation and the Military Police`s violence used to repress the movement. And, even, for the multiplicity of voices in alive transmissions, through the internet, simultaneously with the great media`s transmissions. Because of it, I have considered this as a productive environment to realize a field work, to observe how mobile technologies, principally the cell phones, are changing the way to do television journalism, inspired by Bruno Latour, Roy Wagner e Eduardo Viveiros de Castro. Key-words: networks, cell phones, World Cup, journalism, protests. 1 Doutorando em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Jornalista, trabalhou como repórter na TV Alterosa, afiliada do SBT em Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 1

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O campo e a Copa: Antropologia, Jornalismo emanifestações na cidade do Rio de Janeiro

The field and the Cup: Anthropology, journalism and protests in the city of Riode Janeiro

El campo y la Copa: Antropologia, periodismo y manifestaciones en la ciudadde Rio de Janeiro

EVANDRO JOSÉ MEDEIROS LAIA1

Resumo: A Copa do Mundo do Brasil, realizada em 2014, teve o Rio deJaneiro como um das sedes, onde foram disputados sete jogos, entreeles a grande final. Tudo isso exatamente um ano depois dasmanifestações de junho de 2013, marcadas pela ocupação das ruas docentro da cidade e também pela violência usada pela Polícia Militar narepressão aos atos. E ainda pela multiplicidade de vozes emtransmissões, ao vivo, pela internet, simultâneas às transmissõesfeitas pelos grandes veículos de comunicação. Considerei então este umambiente produtivo para realização de um trabalho de campo, com oobjetivo de observar como as tecnologias móveis, com destaque para otelefone celular, estão transformando a maneira de se fazer jornalismona televisão, inspirado nas propostas de Bruno Latour, Roy Wagner eEduardo Viveiros de Castro.Palavras-chave: redes, telefone celular, Copa do Mundo, jornalismo,manifestações.

Abstract: The Brazil`s World Cup, realized en 2014, have the city ofRio de Janeiro as one of the venues, where were played seven games,including the final. All this happened exactly one year after thejune/2013 protests, remembered for the central streets occupation andthe Military Police`s violence used to repress the movement. And,even, for the multiplicity of voices in alive transmissions, throughthe internet, simultaneously with the great media`s transmissions.Because of it, I have considered this as a productive environment torealize a field work, to observe how mobile technologies, principallythe cell phones, are changing the way to do television journalism,inspired by Bruno Latour, Roy Wagner e Eduardo Viveiros de Castro.Key-words: networks, cell phones, World Cup, journalism, protests.

1 Doutorando em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação daUniversidade Federal do Rio de Janeiro. Jornalista, trabalhou como repórter naTV Alterosa, afiliada do SBT em Minas Gerais. E-mail:[email protected].

1

Resumen: La Copa do Mundo del Brasil, que tuvo lugar em 2014, tenía elRio de Janeiro como una de las sedes, donde jugaron siete partidos,incluindo el gran finale. Tudo esto sucedió exatamente un año despuésde las manifestaciones de junho de 2013, marcadas por la ocupación delas calles del cientro d ela ciudad e también por la violenciautilizada por la Policia Militar en la represión de los actos. Ytambién por la multiplicidad de voces en transmissiones, en vivo, porla internet, simultáneas a las transmissiones hechas por losprincipales medios de comunicación. Consideré este un ambienteproductivo para la realización de un trabajo de campo, con elobjectivo de observar como las tecnologías moviles están cambiando laforma de hacer periodismo en la televisión, inspirado en laspropuestas de Bruno Latour, Roy Wagner e Eduardo Viveiros de Castro.Palabras-clave: redes, teléfono celular, Copa del Mundo, periodismo,manifestaciones.

A ENTRADA NO CAMPO

A Copa do Mundo do Brasil, realizada entre os dias 12

de junho e 13 de julho de 2014, teve o Rio de Janeiro como

um das 12 sedes, onde foram disputados sete jogos, entre

eles a grande final. Considerei então este um ambiente

produtivo para realização de um trabalho de campo, com o

objetivo de observar como as tecnologias móveis, com

destaque para o telefone celular, estão transformando a

maneira de se fazer jornalismo na televisão, a partir da

produção de imagens. Ou seja: mapear a rede em que estariam

a princípio, incluídos repórteres, cidadãos que usam os

smartphones para enviar imagens para as redações e ainda

midiativistas, participantes ou não de coletivos.

A viabilização do trabalho começou com o contato com

redes de TV que me permitissem a entrada nas redações de

telejornalismo para observação e entrevista. O contato com

a TV Globo foi feito a partir do Programa Globo

Universidade, única maneira de, institucionalmente,

2

encaminhar uma proposta de estudo para a emissora. Conforme

solicitado no site do programa, enviei um resumo do meu

projeto, acompanhado de uma ficha padrão com informações

sobre a pesquisa e ainda uma carta do meu orientador

acadêmico, cerca de três meses antes do período da

pesquisa. A resposta só veio duas semanas antes da Copa do

Mundo. De acordo com a coordenação do programa, não seria

possível atender a minha solicitação porque os

profissionais estavam com as agendas sobrecarregadas "em

função da cobertura de grandes eventos como a Copa do Mundo

e as Eleições Presidenciais".

Fiz contato com a chefia de reportagem da TV Alterosa,

afiliada do SBT em Minas Gerais, onde trabalhei por oito

anos, para tentar chegar ao SBT Rio. O chefe de jornalismo

do SBT Rio, Diego Sangermano, acenou positivamente, alguns

dias depois. Os detalhes foram combinados por telefone, na

semana em que cheguei ao Rio de Janeiro para o trabalho de

campo. Ao menos três vezes por semana, durante este

período, fui até a sede da emissora, no Bairro de São

Cristóvão, na Zona Norte da cidade, para acompanhar o

trabalho na redação e na rua. Na TV Record Rio, a entrada

foi feita por intermédio da chefe de produção, Rita de

Cássia Barreto. Fiz contato com ela pelo Facebook, durante o

trabalho de campo, e ela me recebeu na redação, onde me

apresentou repórteres, produtores e cinegrafistas, com quem

conversei. Estive uma única vez no prédio da TV Record, no

bairro de Benfica, também na Zona Norte do Rio.

3

Também foram feitos contatos anteriores com a equipe

do Mídia Ninja2. Já havia estado uma vez na base de

trabalho deles, num apartamento na Urca, zona Sul do Rio,

em abril de 2014. Desta vez tentei marcar entrevistas na

casa, antes de acompanhar o trabalho deles na rua, mas não

foi possível. As observações referentes a este grupo

aconteceram, por vezes, por acaso, em manifestações, e

outras vezes, porque eu acompanhei a pesquisadora Lara

Linhalis3. Além das entrevistas com membros do grupo,

também tive a oportunidade de fazer contato com outros

coletivos, que conheci durante manifestações, como o

Coletivo Carranca e o grupo Nova Democracia. Também tive

acesso ao trabalho de freelancers, jornalistas com formação

superior ou não, midiativistas ou não, que acompanham

manifestações na cidade do Rio de Janeiro. O Facebook e o

Whatsapp foram aplicativos importantes no contato e na

observação das fontes. O que reforçou ainda mais o papel do

telefone celular não só como objeto de pesquisa, como

poderia ser numa proposta científica positivista, mas

também como agente não humano em pé de igualdade nesta

imensa rede de relações.

Esta proposta de pesquisa tem relação com a minha

experiência profissional. Bacharel em Comunicação com

2 O grupo nasceu há cerca de três anos, ligado ao movimento nacional CircuitoFora do Eixo. Nas manifestações que se formaram nas ruas das principaiscidades do Brasil, a partir de junho de 2013, o canal do grupo, na internet,teve picos de audiência de 120 mil espectadores nas transmissões, ao vivo, viastreaming, coma ajuda de voluntários, que usaram telefones celularesconectados à rede mundial de computadores com tecnologia sem fio 3G ou wi-fi.3 Lara Linhalis Guimarães é doutoranda da Escola de Comunicação da UFRJ erealiza uma pesquisa etnográfica com o grupo Mídia Ninja desde asmanifestações de junho de 2013, como parte integrante de sua tese.

4

habilitação em jornalismo, trabalhei por oito anos como

repórter na TV Alterosa, afiliada do SBT em Minas Gerais.

Nos idos anos de 2006, quando fiz minhas primeiras

reportagens, o uso de imagens de câmeras de segurança na

edição final de um videoteipe, pro exemplo, era exceção,

tanto pela pouca qualidade técnica e uma carga de dados de

um tamanho que impossibilitava a leitura pelas máquinas de

edição. De lá para cá, aos poucos, as imagens produzidas

fora do controle da redação ganharam as telas e competem,

com relativa vantagem, com as imagens dos cinegrafistas,

quando o assunto é imediatismo. Neste contexto, o telefone

celular tem chamado a atenção de pesquisadores, no processo

de reconfiguração do jornalismo. É o caso de Fernando

Firmino da Silva (2008), para quem o aparelho tem

funcionado como potencializador da prática do imediatismo,

um dos valores mais caros à pratica do jornalismo.

Neste sentido, além da difusão de conteúdo para celulares,a produção de conteúdo por meio de dispositivos móveis é aoutra ponta desta perspectiva. Estas duas modalidadescomplementares – difusão e produção – fazem parte dojornalismo móvel o conceito mais apropriado paraoperacionalizar ou descrever, de forma mais próxima, estefenômeno por se constituir em uma prática jornalística quese utiliza de web móvel e de aparelhos como celular emcondições de mobilidade (SILVA, 2008, p.21).

Há relatos também de empresas que apostam no telefone

celular e na transmissão via tecnologia 3G, como

alternativa aos gastos com a estrutura de transmissão

broadcast ao vivo.

Nos moldes atuais o jornalismo pode se estruturar emoutras dimensões através da utilização de um ambientemóvel de produção formatado por ferramentas portáteis

5

online como smartphones para processar as informações(áudio, vídeo, texto, imagem) de forma digital etransmitir em caráter instantâneo. Advém daí umapotencialização da produção jornalística baseada nacapacidade de desenvolvimento de atividades como apuração,edição e publicação utilizando-se de tecnologias móveiscomo plataforma (SILVA, 2008, p.23).

O fato, categoria nobre do jornalismo, passa a ser

registrado não mais pelo repórter, que agora parece estar

readequando seu papel na produção da notícia. Uma

readequação, que, de acordo com Jenkins (2009), constitui

não um processo de adequação, mas a própria condição da

produção de informações no contexto midiático

contemporâneo. “Num futuro próximo, a convergência será uma

espécie de gambiarra – uma amarração improvisada entre as

diferentes tecnologias midiáticas – em vez de um sistema

completamente integrado” (JENKINS, 2009, p.45). Vemos nisso

uma aproximação da mídia massiva com as ferramentas de

mídia pós-massiva, no sentido estabelecer diálogos com as

modalidades emergentes de jornalismo digital. O telefone

celular aparece como ferramenta-chave neste processo, como

um dispositivo híbrido, que pelo fato de oferecer

mobilidade, cumpre bem a função de acoplamento.

Os experimentos com o jornalismo cidadão têm sido

comuns não só no Brasil, mas em todo o mundo. Dan Gilmor

(2005), jornalista e professora na Universidade de Harvard,

nos Estados Unidos, chama a atenção para o fato de que o

embate entre jornalismo e tecnologia não deve ser pensado

em si mesmo, já que aponta para muita coisa mais

importantes, que deve ser pensada com urgência, já que

estamos entrando numa era e que as mensagens midiáticas

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deixam de ser transmitidas de um para muitos, e agora vão

de muitos para muitos. Gilmor nos alerta ainda para o fato

de que as transformações que presenciamos aparecem desta

forma no jornalismo, mas são muito maiores, e perpassam

todas as relações do coletivo em que vivemos.

Inspiring grass-roots activities are happening not just injournalism, but all across society. In business, forexample, the Web and open-source concepts are transformingnot just software development but the relationshipcompanies have with their customersers and otherconstituencies. Walter Lippmann, in his 1914 book, “Driftand Mastery,” warned that civilization was becoming socomplex that “the purchaser can’t pit himself against theproducer, for he lacks knowledge and power to make thebargain a fair one.” Knowledge is shifting back towardsthe purchaser, and the power is following (GILMOR, 2005,s/n).

É como se o jornalista estivesse perdendo o controle sobre

as coisas, de maneira que uma fotografia, um depoimento, um

pequeno vídeo possa trazer novas informações, um ângulo

inédito, uma abordagem que transforme o entendimento do

fato. Ninguém sabe ainda como e se isso vai tomar uma forma

comercial, garantindo a continuidade da informação como

negócio. Por isso mesmo, tudo parece ter ficado mais

arriscado, neste sentido. As observações em campo mostraram

que minha hipótese fazia sentido, logo de início. Na

primeira entrada no SBT Rio, no dia 16 de junho, acompanhei

a exibição do principal telejornal da casa, que vai ao ar

na hora do almoço. A apresentadora Isabele Benito, começou

mostrando um flagrante, feito com telefone celular, do

regate, pelo Corpo de Bombeiros, de cachorrinhos recém-

nascidos, abandonados em sacolas plásticas, na rua. Em

seguida vieram as imagens de protesto no Maracanã, no dia

7

anterior, quando um policial civil à paisana que puxou a

arma e depois de discutir atirou para baixo. Ele foi

identificado e o nome foi dito. Havia uma nota da Polícia

Civil do Rio dizendo que vai investigar. Não havia crédito

para a imagem. Também foram mostrados torcedores argentinos

na Praia de Copacabana e em várias partes do Rio de

Janeiro, com imagens de telefone celular, enviadas por

telespectadores. Foram cerca de 20 minutos do jornal sem

videoteipe, apenas com imagens feitas com telefone celular.

Durante todo o tempo da exibição havia um repórter

sentado numa poltrona ao meu lado, dando palpite. Ao final,

Diego me apresentou para ele: é o Eduardo Oliveira, "o cara

das imagens de celular", porque tem muitos contatos.

Eduardo pegou o Iphone dele e já começou a me mostrar a

quantidade de contatos que tem no Whatsapp. Me mostrou

vídeos enviados por Policiais Militares, que formam boa

parte da rede de contatos dele. Descemos para a redação e

ele me mostrou uma reportagem feita por ele naquela semana.

Eduardo foi agente de uma série de observações importantes

durante este período em campo. Inclusive por ter me

apresentado os repórteres cinematográficos com quem

trabalha. Um deles, o Pedro Motta, que está no SBT há seis

anos, me disse que não é pouco comum fazer reportagens

inteiras com imagens de telespectadores. “Direto a gente

faz matéria que é só a passagem. O resto, com imagens de

telefone celular”. Mas ele não gosta disso. “Acho que

desvaloriza a gente. Mas a tendência é essa, sem volta". Na

fala dele aparece uma postura que acabei adotando

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inicialmente na pesquisa: a do embate. Toda esta mudança

parecia, a princípio, ter feito surgir uma polarização

entre estes novos atores, inicialmente tímidos, mas agora

já participantes do processo ativamente, no papel de

blogueiros, midiativistas, streamers, e os jornalistas de

redação, formados e consagrados pelo lugar que ocupam e

pelo significado da profissão como pilar da democracia.

Foi a partir desta premissas que preparei o meu

trabalho de campo e apresentei esta hipótese para uma banca

de professores, em junho de 2014, como projeto de

qualificação no Doutorado em Comunicação da UFRJ. A ideia

era receber ajuda da banca para orientação do meu trabalho

de campo durante a Copa do Mundo. E foi o que aconteceu. A

equipe que ouviu e discutiu meu projeto acabou me chamando

a atenção para o quanto eu estava tentando polarizar uma

rede de relações que parecia, para eles, bem mais complexa

do que um cabo de guerra com duas pontas, como eu fazia

parecer. Eles estavam certos.

A COPA E OS ECOS DE JUNHO

A entrada em campo, de fato, aconteceu no dia 12 de

junho. O clima de Copa do Mundo surgiu com força na

primeira sida para um almoço, nos arredores da Lapa, onde

fiquei hospedado, na casa de uma amiga, nos primeiros dias.

Bandeiras coloridas, pessoas com camisa da seleção, o verde

e amarelo por todo lado, tomando as vitrines das lojas e as

bancas de artigos nos camelôs, no comércio de rua. Tendo

chegado naquele dia bem cedo ao Rio de Janeiro, segui com a

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pesquisadora Lara Linhalis para uma manifestação nos arcos

da Lapa, no centro do Rio. Lá estavam alguns ativistas, com

faixas, panfletos, rostos pintados, andavam, ao lado de

torcedores. E um quantidade enorme de policiais nas

imediações. Abordamos os ativistas e eles nos disseram que

a manifestação já havia acabado. Um professor teria sido

detido pela PM e levado para a delegacia. Resolvemos ficar

um pouco ali, já que eu achei que poderia encontrar alguma

coisa interessante. Na verdade, eu estava impressionado,

nesta primeira incursão, com a quantidade de pessoas usando

capacetes, com micro-câmeras, e carregando máscaras de gás.

Comecei a abordar algumas delas, principalmente os que

gravavam e fotografavam. Difícil saber, neste contexto,

quem era repórter, quem era midiativista, quem estava ali

só observando.

Segui para uma outra manifestação, em Copacabana, Zona

Sul da cidade, na saída a da estação Cardeal Arcoverde do

metrô. Ali foi a oportunidade de fazer contato com

jornalistas que estavam na cobertura. Na verdade, foi nesse

momento que começou a se mostrar porá mim a diversidade de

atores neste processo. Até escrever a qualificação, eu

pensava num embate entre jornalistas profissionais X não-

profissionais. Na rua, no protesto, não dá pra saber muito

quem é quem. Na situação que presenciei, penso que isto não

é possível por dois motivos: 1) se os repórteres não

tiverem microfone com logomarca ou qualquer identificação,

não dá para saber, já que muita gente usa máscaras de gás e

capacete; 2) porque ali havia muita imprensa internacional

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e de agências de notícias. A coisa só ficaria mais

complicada depois.

Numa manifestação do dia 15, que seguiu da Praça Saens

Peña, na Tijuca, em direção ao Maracanã, encontrei um rapaz

de capacete azul, escrito Imprensa. Ele fazia algumas

anotações. Lara se aproximou e perguntou de onde ele era,

sem se apresentar. Assustado, ele respondeu “que estava

fazendo algumas imagens”, de forma independente, “não é

para veículo nenhum”. Seguimos conversando e ele me disse

que ficou com medo, por isso não disse que é repórter do

jornal O Globo. “Sabe o que acontece, os manifestantes não

gostam muito do grupo onde eu trabalho e a gente sofre na

rua por isso. Nem manifestante, nem a polícia gostam da

gente. Eu já apanhei da polícia, tive um dedo quebrado.

Depois disso, venho para as manifestações sem me

identificar”. O nome dele é Bruno. Procurando na internet,

vi que ele foi agredido e preso meses antes. Depois disso,

comecei a prestar atenção nas pessoas que faziam imagens e

anotações. Eram raros os casos em que se ostentava um

capacete com logo da empresa, um crachá ou mesmo um adesivo

na câmera, no caso dos repórteres de televisão. Se havia

mais jornalistas da “grande imprensa” ali, eles disfarçados

também. E parece que tinha sim, já que encontramos, minutos

depois, notícias da manifestação na internet, no site do

G1. A hipótese é que cheguei em campo num momento em que

uma série de estratégias já estavam sedimentadas a partir

da experiência de um ano de manifestações. Os capacetes, os

disfarces, o cuidado excessivo com a própria identificação

11

aparecem nestes dois exemplos citados, mas são bem mais

abundantes durante o mês em campo.

O trabalho de jornalismo sendo desempenhado por "não-

jornalistas" também chama a atenção. É o caso do que vi

quando segui para a Favela Nova Brasília, no Complexo do

Alemão, junto com uma equipe do SBT. Uma mulher foi presa

depois de ter sido sido responsabilizada por deixar um

filho morrer queimado dentro do seu barraco, no Largo da

Vivi, local conhecido como muito perigoso na região, mesmo

depois da pacificação. Quem me levou para esta reportagem

foi o repóreter Eduardo Oliveira. A equipe levou o

equipamento para fazer uma entrada ao vivo com a tecnologia

LiveU4, chamada por eles de mochilink. Neste meio tempo chegou

um “motoca”, da TV Record, com uma mochila também com o

LiveU. Ele usava colete à prova de balas, com logomarca da

emissora, com a identificação de imprensa. Ele preparou o

material e esperava ser chamado para entrar com imagens ao

vivo da delegacia dentro do Complexo do Alemão. Ele estava

ali sozinho, sem repórter, sem auxiliar e sem ninguém que

pudesse passar para ele informações no caso de qualquer

mudança no "clima"da favela enquanto ele fazia as imagens.

É assim nas manifestações também. O chefe de

jornalismo do SBT Rio, Diego Sangermano, me disse que não

manda "repórter para a manifestação, pode ser posição

conservadora, mas não coloco equipe minha em risco. Só

trabalho com imagens de colaboradores”. Justificou este

4 A tecnologia alemã, vendida para redes de televisão no mundo todo em formatode uma mochila, conta com entrada para oito chips de telefone celular etransmite imagens e sons para uma central, usando um rede 3G ou 4G, com atrasoque varia entre 15 e 40 segundos, dependendo da velocidade da conexão.

12

posicionamento dizendo que teve um carro queimado, no ano

passado, durante as manifestações. E que teve cinco carros

quebrados na mesma situação. Um destes colaboradores é o

Tiago. “O Tiago é conhecido aqui como Tiago Black Bloc”. O

nome dele apareceu várias outras vezes em conversas com

profissionais do SBT Rio. Isabela Masi, chefe de reportagem

da emissora, disse que ele é "como um infiltrado, que se

passa por manifestante”, para fazer imagens que depois

vende. Ela me disse ainda que ele vende imagens também para

outras TVs e até para a CNN. Fiquei pensando na relação de

uma figura desta com a empresa. Sem garantia trabalhista

nenhuma, se colocando num lugar de risco.

Isabela me informou o telefone do Tiago e liguei para

ele. Marcamos um encontro durante uma manifestação, em

Copacabana, no dia 23 de junho. Tiago foi desde o início

muito direto e claro nas falas dele. Talvez tenha sido o

entrevistado mais impactante até este momento da pesquisa.

Ele disse que começou a cobrir as manifestações desde o

início, quando fazia imagens para a CNN. Naquele momento

estava vendendo imagens, preferencialmente, para o SBT, mas

também para a Bandeirantes e durante a Copa do Mundo para o

El País. Ou seja, é um freelancer. Perguntei como ele consegue

ter entrada nas manifestações. “O pessoal conhece o meu

trabalho, sabe que eu não vou fazer merda. Uma vez pedi a

um Black Bloc para colocar a máscara enquanto ele tava

quebrando tudo, para não mostrar o rosto dele”. “Mas em

alguns lugares não dá para se identificar. Eu estou com

este colete aqui (com a logomarca do SBT), mas já vou tirar

13

quando começar a manifestação”. Tiago me disse que tem uma

rede de contatos que permite a ele trabalhar. "Como eu são

apenas três no Rio todo. Sendo que apenas eu entro na

favela sem PM”. Tiago me contou também que já apanhou da

polícia enquanto fazia cobertura. “Era uma manifestação. O

policial ia me bater, eu vi. Coloquei a mão esquerda na

frente para proteger a câmera e o meu rosto. Ele quebrou o

meu braço”.

A conversa com este profissional me deixou mais

embaralhado do que já estava. Situação que foi piorada

quando confrontei estas informações com os relatos

anteriores de manifestações. No dia 26, na Candelária, no

centro do Rio, fotografei Policias Militares usando óculos

com uma microcâmera que lembra o Google Glass. Para que

seriam usadas aquelas imagens? E para que seriam usadas as

imagens transmitidas ao vivo durante a manifestação do dia

15 de junho, na Praça Saens Peña? Foi lá que fotografei

dois PMS, juntos: um usava uma câmera pequena e gravava o

protesto, o outro carregava uma mochila LiveU. Por que a

polícia está usando uma tecnologia de transmissão de som e

imagem ao vivo? Mais atores entravam então na minha

pesquisa. A Polícia Militar tornou-se produtora de imagens,

com tecnologia de transmissão via antena de telefone

celular. Assim como os coletivos e as emissoras. Fiquei com

uma pulga atrás da orelha. Com duas pulgas: a Polícia

Militar e o Tiago Ramos, que acabavam de colocar por terra

a minha hipótese simplista de um embate dualista entre

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jornalistas e não-jornalistas. Neste sentido, o modelo das

redes parece fazer mais sentido.

JORNALISMO EM EQUÍVOCO

Quando o pesquisador começa o seu trabalho de campo,

ele mesmo vem marcado por um modo de funcionamento

proveniente de seu contexto, no qual faz sentido produzir

uma pesquisa, que deve ser comunicada, de alguma forma, à

sua tribo, posteriormente. É assim, para Roy Wagner (2010),

no contato com a diferença, por contraste, que “nasce” para

o antropólogo a cultura, abstração que só faz sentido no

seu próprio contexto de origem, uma invenção do pesquisador

usada como forma de marcar seu lugar em relação ao outro. A

cultura não passaria então de uma estratégia, da qual o

antropólogo lança mão, como forma de entender esta

experiência. E mais: só aparece quando ele coloca-se em

confronto com o outro: seria então um tipo de precipitação,

o que surge da relação, não sendo possível defini-la

claramente, objetivamente, nem antes, nem depois do

contato. Daí o termo invenção.

De fato, poderíamos dizer que um antropólogo “inventa” acultura que ele acredita estar estudando, que a relação –por consistir em seus próprios atos e experiências – émais “real” do que as coisas que ela “relaciona”. Noentanto, essa explicação somente se justifica secompreendemos a invenção como um processo que ocorre deforma objetiva, por meio de observação e aprendizado, enão como uma espécie de livre fantasia (WAGNER, 2010,p.30).

Para Wagner, esta tentativa de repete do outro lado: o

nativo também tenta entender o pesquisador. Por isso ele

15

considera a possibilidade de uma Antropologia Reversa, um

pensamento, não sistematizável, como na antropologia, mas

similar, do ponto de vista intencional, por parte do

nativo. O importante é pensar que esta invenção não é

exclusividade do antropólogo. O nativo também formula

hipótese a partir deste encontro, e mesmo que não expresse

este pensamento pelos meios acadêmicos, também inventa o

outro de alguma maneira.

A noção ganha fôlego a partir da visão de Bruno

Latour, para quem a Antropologia precisa de uma profunda

transformação. “Ela mesma evita estudar objetos da natureza

e limita a extensão de suas pesquisas apenas às culturas.

Permanece assimétrica. Para que se torne comparativa e

possa ir e vir entre os modernos e os não-modernos, é

preciso torná-la simétrica” (LATOUR, 1994, p.94). Latour

propõe que a barreira que separa ideologia e ciência seja

derrubada, desconstruindo a posição do objeto como fora do

problema. Daí a proposta de uma Antropologia Simétrica, na qual

existe a consciência de que a definição do que é científico

ou não é construída, e não uma emanação. Portanto, os

objetos pelos quais chegarmos às conclusões científicas

também fazem parte do processo, e por vezes, cumprem papel

fundamental.

O próprio fato de ser, eu mesmo, um jornalista,

repórter de televisão, me coloca no lugar da Reversibilidade e

da Simetria: não só eu quero conhecer meus "nativos",

colegas de profissão, e estabelecer parâmetros, etnografar

as vivências e as mudanças nas rotinas produtivas a partir

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dos dispositivos móveis, mas eles também querem saber de

mim, da minha produção acadêmica, do meu interesse em tudo

isso. Por isso mesmo não foram poucas as explicações sobre

o meu processo de pesquisa, sobre a conciliação entre vida

acadêmica e mercado, uma questão que é bem típica do mundo

dos jornalistas, e ainda sobre o que eu penso sobre o

trabalho de midiativistas. Mas talvez o processo de

reversibilidade mais importante tenha aparecido na fala da

presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais da

Cidade de Rio de Janeiro, Paula Máiran. Conheci Paula pelo

telefone e ela me recebeu na sede do Sindicato, no centro

do Rio de Janeiro, para uma conversa de mais de duas horas.

Quando questionada sobre, se o que os midiativistas fazem é

jornalismo ou não, ela me respondeu: "Não acho que é esta

questão. O problema não é esse". Para ela, o importante,

nestes tempos de mudanças no jornalismo, é entender que

toda atividade que fomente o jornalismo, e a liberdade de

expressão, em última análise, deve ganhara atenção do

Sindicato. Uma mudança de direção, se pensarmos o Sindicato

como defensor dos interesses de uma determinada classe de

trabalhadores.

Felipe Peçanha, do Mídia Ninja, também não penou duas

vezes quando fiz essa pergunta. Para ele, "pouco importa se

as pessoas concordam ou não. Não estamos preocupados em

chamar o que fazermos de jornalismo". Ele disse que a

disputa do sentido da palavra Jornalismo não é o foco do

Mídia Ninja. Ele gastou boa parte da uma hora e meia de

entrevista com ele para me fazer perguntas e tentar

17

entender a minha proposta de estudo. O que parece ser um

comportamento do grupo, já que, no dia do jogo do Brasil

contra o Chile, 28 de junho, também respondi a uma série de

perguntas do Grupo do Mídia Ninja que acompanhei na

cobertura da exibição da partida, na Praia de Copacabana.

Paulo Gianini, um deles, me perguntou, em determinado

momento, se eu achava que o movimento Não vai ter Copa

conseguiu alguma coisa com as manifestações. Eu disse que

sim que ao menos não estava sendo realizada uma Copa sem

crítica, sem incômodos. E então ele me apresentou uma

teoria, que, de acordo com ele, foi pensando coletivamente,

em reuniões do Mídia Ninja, sobre a confluência de

movimentos sociais pós junho de 2013. E que, neste

contexto, um fato marcante foi a morte do cinegrafista de

Rede Bandeirantes, Santiago Ilídio Andrade, da TV

Bandeirantes, quando estava cobrindo os protestos do dia 6

de fevereiro de 2014 no Rio de Janeiro. Santiago, que não

usava equipamento de proteção, foi atingido por um rojão

que, a princípio partiu das mãos dos ativistas Caio Silva e

Souza e Fábio Raposo, indiciados por homicídio doloso,

quando existe a intenção de matar5, numa investigação

baseadas em imagens de câmeras de segurança e de canais de

televisão, além de fotografias. Para Gianini, "foi a mídia

que conseguiu ganhar a guerra ideológica, conseguiu uma

versão definitiva de toda esta história. Parece que foi aí

que a coisa se acirrou entre jornalistas e midiativistas.

5 Fonte: http://br.noticias.yahoo.com/acusados-de-lan%C3%A7ar-roj%C3%A3o-em-cinegrafista-ser%C3%A3o-indiciados-no-rio-de-janeiro-181733895.html.

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As brigas na porta da delegacia foram grandes. Os

midiativistas não acompanharam isso, os jornalistas sim."

Gian, como é conhecido no grupo, acha que foi um "exagero"

a condenação dos indiciados por homicídio doloso, já que,

de acordo com ele, não houve intenção de matar “Foi um

acidente que aconteceu por irresponsabilidade deles". Para

o midiativista, há um antes e um depois do acontecido, que

foi um marco na relação dos diversos atores que ocupam o

espaço na cobertura midiática das manifestações.

Fala que é corroborada por jornalistas que eu ouvi

durante a pesquisa. O chefe de jornalismo do SBT, Diego

Sangermano, disse que, na época dos protestos, em junho de

2013, "ficava ligado aqui no Mídia Ninja, aqui no

computador, o tempo todo, acompanhando o que estava

acontecendo. Foi lindo no ano passado, de arrepiar mesmo as

manifestações. Mas agora já foi, me decepcionei. A gente

sabe agora que tem muitas outras coisas, muita coisa de

política envolvida nisso. Não tem mais a mesma força”. Para

a chefe de produção do SBT, Isabela Masi, “eles se acham

jornalistas. Se acham, mas não são. (...). Eu odeio esse

tipo de coisa. Nem posso falar muito”. Ela acha que eles

não gostam da imprensa. Nem o Ninja, nem outros coletivos

porque dizem que a mídia deturpa o que eles fazem.

“Deturpar quer dizer, ouvir os dois lados, fazer

jornalismo”. As discordâncias, mesmo que negadas ou

evitadas, existem. E nos colocam no que acreditamos ser uma

disputa de sentido em torno da palavra jornalismo. Do que

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estão falando midiativistas, repórteres, editores,

policiais militares, freelancers, quando usam esta palavra?

Eduardo Viveiros de Castro (2002) reúne as propostas

de Bruno Latour (1994) e Roy Wagner (2004), considerando

também a possibilidade, mesmo como um tipo de ficção, da

existência de uma antropologia nativa. Wagner vai além, nos

dizendo que não é só o antropólogo que pensa o nativo, mas

que o nativo também pensa o pesquisador. Mas como pertencem

a mundos diferentes, a cosmos distintos, nem sempre

conseguem se entender. A simetrização da relação entre

jornalistas da grande mídia e os outros atores deste

processo parece aumentar (não apenas metaforicamente) os

riscos da atividade profissional do repórter. Daí

precipita-se o equívoco, conceito tomado de empréstimo na

obra de Eduardo Viveiros de Castro, e também de grande

importância no nosso trabalho de campo.

Viveiros de Castro propõe trazer as contribuições do

pensamento ameríndio para a teoria antropológica, lembrando

que a comparação é a base do trabalho de um etnógrafo, que

faz paralelos entre sua própria vivência social e a

observação da sociedade do outro, para fazer analogias,

numa tentativa de tradução. Supondo a separação clássica

entre natureza e cultura, esta tradução permite que este

etnógrafo descubra caminhos culturais diferentes para

acessar uma mesma realidade. O problema é que, segundo

Viveiros, quase nunca, numa relação etnográfica, os dois

entes deste processo comunicativo dividem a mesma posição,

o mesmo ponto de vista, ou seja, a mesma realidade. Nesta

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visão, não seriam as culturas acessos diferentes à mesma

natureza. Mas sim a cultura como um a priori, e as naturezas

como dependentes deste ponto de vista ocupado pelo

indivíduo. Ele oferece exemplos.

Here I have in mind the type of myth where, for example,the human protagonist becomes lost deep in the forest andarrives at a strange village. There the inhabitants invitehim to drink and refreshing gourd of “manioc beer”, whichhe accepts enthusiastically and, to his horrifiedsurprise, his host place in front of him a gourd brimmingwith human blood. (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p.9)

Este tipo de história, comum na bibliografia de

Viveiros de Castro, resume toda a teoria do perspectivismo,

e por consequência, a ideia de equívoco. Depois de ser

capturado por outro ponto de vista, o humano passa a ver os

animais como pares, como humanos também. É no momento de

tomar a bebida que ele percebe o erro. O que o interlocutor

chama de cerveja de mandioca, na verdade, para ele, é

sangue humano. O mesmo nome, em realidades distintas, serve

para designar coisas completamente diferentes. Aí está o

equívoco, fundamento da comunicação, na visão deste autor.

Ou seja, não é o entendimento, o consenso e a ordem, mas

sim a incompreensão que marca o processo comunicativo.

Acreditamos ser possível tomar este pensamento como um

tipo de teoria da Comunicação, apostando no equívoco como

base para o trabalho de campo. Viveiros de Castro propõe

que a antropologia se transforme pela antropologia nativa:

se ela quer pensar como o índio, precisa assumir o corpo

dele, deixar-se afetar e transformar-se. Na nossa pesquisa,

podemos colocar a questão: se queremos entender e pensar o

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lugar do jornalista é preciso nos deixar impregnar pela

vivência do repórter no dia-a-dia. Mas, ao mesmo tempo,

acessar o outro lado (ou os inúmeros outros lados...), como

um xamã, capaz de atravessar as fronteiras e traduzir um

lado para o outro. Por isso a proposta de um trabalho de

campo compartilhado, que me permitirá o acesso a outros

modos de organização, outros jornalismos. Desta maneira,

deslocamos o equívoco da relação entre antropólogos e

nativos para a relação na qual se disputa o domínio do

sentido da palavra jornalismo.

CONCLUSÃO

As primeiras observações dão conta de uma relação que

não parece ser amistosa no ambiente do meu trabalho de

campo. Jornalistas com formação superior, trabalhadores de

empresas de comunicação do Rio de Janeiro, em geral,

durante a pesquisa, apresentaram profundos questionamentos

com relação aos procedimentos e à conduta ética de

midiativistas e produtores independentes de notícias. A

situação parece ter sido agravada depois da morte do

cinegrafista da TV Bandeirantes, Santiago Andrade, atingido

por um rojão lançado por manifestantes durante um ato na

Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro, em fevereiro de

2014. Também é preciso levar em conta o número cada vez

maior de jornalistas e midiativistas feridos neste tipo de

protesto. De acordo com a presidente do Sindicato dos

Jornalistas do município do Rio de Janeiro, Paula Máiran,

foram mais de 90 agressões, registradas em boletins de

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ocorrência por 77 jornalistas da cidade, entre maio de 2013

e junho de 2014. Passado algum tempo, é hora de retomar os

dados recolhidos em campo e me debruçar sobre eles para a

reflexão.

A imersão no campo durante a Copa do Mundo foi o

início de um trabalho que teve como continuidade um segundo

trabalho de campo, desta vez em Nova Iorque com uma bolsa

de estudos da Capes, para acompanhar o trabalho de

repórtres e midiativistas durante as manifestações do

movimento Black Lives Matter, entre dezembro de 2014 e março de

2015. Os embates, a princípio, dão a sensação de que,

guardadas as devidas diferenças regionais, a difusão de

tecnologias concomitantes em quase todo o mundo colocam os

produtores de narrativas audiovisuais em situações bem

parecidas. O objetivo agora é retornar a campo, no Rio de

Janeiro, para novas entrevistas e vivências que foram

necessárias, até a conclusão da minha tese, no Programa de

Pós-graduação em Comunicação da UFRJ, que tem como titulo

provisório: “O jornalismo em equívoco: as redes, o telefone

celular e a (re)invenção do repórter”.

REFERÊNCIAS

GILMOR, Dan. Where Citizens and Journalists Intersect. Nieman Reports, Cambridge: Nieman Foundation forJournalism at Harvard, 2005. Disponível em: <http://www.nieman.harvard.edu/reportsitem.aspx?id=100559>.Acesso em: 17 abr. 2012.

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2008.

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LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.

SILVA, Fernando Firmino da. Jornalismo livre streaming: tempo real, mobilidade e espaço urbano. Anais do VI Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo: São Paulo, 2008.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation. In: Tipití, Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, vol. 2, 2004. Disponível em: http://digitalcommons.trinity.edu/tipiti/vol2/iss1/1. Acesso em: 20 maio 2013.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e Multinaturalismo na América Indígena. In: A Inconstância deAlma Selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, pp. 345-399.

WAGNER, Roy. A invenção da Cultura. São Paulo. Cosac Naify.2010.

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