mapas para a festa

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+ VOZES N REFLEXOES LATINO-AMERICANAS 1 SOBRE A CRISE E O I CONHEOMENTO . orro MADURO

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+ VOZES

N

REFLEXOES LATINO-AMERICANAS

1 SOBRE A CRISE E O I CONHEOMENTO

U@~~~~ . ]iiJl,UfifiJ~If~lr • orro MADURO

Otto Maduro foi, em seu iti­nerário espiritual, grandemente influenciado pela história de Ro­bin Hood, quando ficava choca­do, ainda criança em Caracas, Venezuela, com a situação de miséria de largos estratos da po­pulação. Ao crescer, virou mar­xi ta como forma de reagir aos descalabros sociais. E foi estudar - ironia do destino! - Filosofia da Religião e Sociologia das Reli­giões em Lovaina, Bélgica. Mes­mo estudando religiões, deu uma de "meio ateu", sendo confirma­do em seu meio-ateísmo pela morte de duas filhas, até que, em sua estrada de Damasco, aconte­ceu o padre Gustavo Gutiérrez, criador da Teologia da Liberta­ção. A partir de então, voltou para a" casa" de suas convicções primogênitas, encontrando o Leitor detalhes maiores sobre sua biografia na introdução de Ma­pas para a Festa.

O presente livro, afirma seu tradutor, o teólogo e filósofo Ephraim F. Alves, "lê-se com crescente interesse, quase que de um só fôlego, de tão cativante e su cstivo" . O A. constata que os m vimentos populares de liber­tnç· o dos anos 60 passam agora por momentos de hesitação quanto a seus novos rumos. De­pois da implosão do chamado "socialismo real" , está se tor­nand dificil apresentar alterna-

OTTO MADURO

Petrópolis 1994

© 1994, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100

25689-900 Petrópolis, RJ Brasil

Título do original espanhol: Mapas para la fiesta: Retlexiones latinoamencanas sobre

la cnsis y el conocimiento

COORDENAÇÃO EDITORIAL:

Avelino Grassi

EDITOR:

Neylor J. Tonin

COORDENAÇÃO INDUSTRIAL:

José Luiz Castro

EDITOR DE ARTE

Ornar Santos

EDITORAÇÃO:

Editoração e organização literána: Ângelo Augusto Zanatta

Revisão grática: Revitec S/C

Diagramação: Josiane Furiati

Supervisão gráfica: Valderes Rodrigues

ISBN 85.326.1279-2

Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda., em agosto de 1994.

Dedicatória

A Nancy Noguera, companheira na busca, no pranto e na festa da vida

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .

Festa, dor e conhecimento .. . ...... .. . .

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Um pouco de autobiografia para entrar no assunto . 13

Com a teologia da libertação . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14

Como me aproximei da reflexão sobre o conhecimento . . . 15

E a quem pode interessar este debate?. . 17

Um problema: falta de materiais apropriados de leitura. . . 18

Que vamos, então, entender por "conhecimento"? . . 19

Esclarecimentos importantes . . . . . . . . . .... . 21

1. A EXPERIÊNCIA INFLUI EM NOSSO CONHECER? 25

Algumas dimensões do problema .... . . . . . . . . . 27

A experiência do decisivo para a vida ............ . 28 A experiência das alegrias e dificuldades da vida. . . 30

A experiência: de afetuosa aceitação ...... . .... . .... 33 A experiência das normas sociais ..

A experiência do "sabido e conhecido" .

A experiência da certeza. . . ...... .

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A experiência do poder. . . . . . . . . . . . . . 44

A experiência da frustração. . . . . . . . . . . . . . 48

A experiência da contradição e da incoerência 51

Breve síntese do assunto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54

2. REFLETIR COM CALMA SOBRE NOSSO CONHECIMENTO ...

Algumas dimensões do problema . . . . . . ....... . .

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59 Para que complicar a vida sem necessidade? . . . . . . . . . . 60

Por que refletir a fundo sobre nossa realidade? . . . . . . . . 63

Examinar a posição a partir da qual conhecemos. . . . . . . 66

Estudar a história daquilo que queremos conhecer 70 Contrastar o familiar com o diferente . . . . . . . . . . . . . . . . 73

Colocar-se na pele do outro . . . . . . . . . . . . . . . . 76

Rever calmamente nossas convicções e posições. . . . . . . 79

Breve síntese do assunto . . . . . . . . . . 84

3. OPRESSÃO, LIBERTAÇÃO E CONHECIMENTO.

Algumas dimensões do problema . . ...

Visões estáticas e dinâmicas do poder.

Necessidade e limites das teorias da opressão ..... .. .

E quem é responsável por aquilo que nos oprime? ..

O conhecimento não será coisa de intelectuais?

Contexto prático e conhecimento teórico. . . ... . . .

Ampliar nossos critérios de verdade

Breve síntese do assunto . . . . . . . . . . . . .. . . .

4. COMO EXPRIMIMOS E COMPARTILHAMOS O CONHECIMENTO?.

Algumas dimensões do problema .

A linguagem como instrumento de construção do mundo ....... . ... .. ................. . .

Controle da linguagem e dominação . . . . . . . . . . . . . . . .

A comunicação silenciosa. . ............ . .

Para uma reapropriação criativa da linguagem .

Marginalização, libertação e linguagem ....... .. . .. . Linguagem popular: elitismo x populismo .

Para além da prosa escrita.

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Breve síntese do assunto . 146

5. PARA REPENSAR AQUILO QUE ENTENDEMOS POR "CONHECIMENTO". . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149

Vários aspectos do tema . ........... . ... . . ..... .

As ciências modernas: utilidade e idolatria Razão, emoções e conhecimento ..

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Conhecimento: reconstrução imaginativa de relações

O conhecimento daquilo que (ainda) não é Conhecer como pré-juízo, re-conhecimento e co-nhecimento . . . . . . . . . . . . ....

O conhecimento como des-conhecimento e exagero .

O conhecimento em constante transformação .

Outra maneira de ver o tema da verdade e do erro.

A unidade e a distinção de conhecimento e realidade

Breve síntese do assunto e proposta de redefinição.

CONCLUSÕES . . ....... .

Das certezas passadas à busca incerta do futuro ...... .

Perguntas compartilhadas, mais que respostas pré-fabricadas . . . . . . . . . ....... .

BIBLIOGRAFIA ....

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INTRODUÇÃO

Quase nós todos- e provavelmente todas as comunidades humanas - tivemos experiências formosas, inolvidáveis de satisfação, vitórias , bondade, carinho, felicidade, paz, espe­rança. Um amor correspondido. Uma greve bem sucedida, a conquista de uma casa própria, o fim de um sofrimento, o nascimento de uma criança na família, a aprovação de uma nova lei salarial muito esperada e defendida, a saída da prisão de urna pessoa querida, a reconciliação com alguém com quem tínhamos brigado, a cura de um parente alcoólico ou toxicômano. Todas estas são vivências agradáveis e valiosas que afirmam o sentido da vida humana. Tais experiências e sua recordação periódica nos aniversários suscitam a celebra­ção alegre. convocam a comemoração prazerosa e otimista em companhia dos amigos e vizinhos, parentes e amizades. Não é verdade? E reciprocamente: a festa, o baile, a missa, a romaria, as festas juninas, muitas vezes provocam e espalham alegria e esperança, contribuem para criar amizades, estimu­lam a abertura de novos vínculos e reforçam os antigos.

FESTA, DOR E CONHECIMENTO

Em certo sentido, pode-se dizer que a vida humana gira em torno da festa, move-se no sentido da celebração. Nós lutamos de sol a sol para conseguir aquilo que dê alimento e sentido à vida e que, portanto, mereça ser festejado jubilosa­mente em companhia de nossos entes queridos : trabalho, amor. alimento. lar, saúde, liberdade, paz, tempo para descan­sar, brincar e desfrutar da amizade gratuita. Lutamos constan­temente para encontrar motivos, tempo, espaço e outros recursos para poder celebrar a vida sem medo nem culpa; para poder festejar o bom da vida sem causar sofrimento à vida dos outros.

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Infelizmente, muitas vezes a vida se toma dura, dolorosa e difícil: não se consegue um emprego, rompe-se uma relação amorosa, a comida escasseia, não se ganha o suficiente para alugar uma casa decente, uma doença grave nos leva à beira da morte, os mais fortes e poderosos usam e abusam dos mais fracos , a violência ameaça cotidianamente nossa vida e não há tempo nem para descansar ou brincar, nem usufruir das amizades. O sofrimento, a urgência e o medo invadem nossa existência e tomam difícil- porém mais necessária que nunca - a festa. Isto é parte do que está acontecendo nesta última década de século XX na América Latina para um número cada vez maior de pessoas: a vida e, portanto, a festa se tornam cada vez mais difíceis ... mas, por isso mesmo mais urgentes.

Os tempos difíceis, duros e cheios de sofrimento - quando rareiam as ocasiões para festejar - talvez sejam aqueles em que nós, seres humanos, sentimos mais clara, aguda e forte­mente a necessidade de conhecer a realidade que nos rodeia: procurar compreender o que está acontecendo para ver se é possível fazer alguma coisa que nos traga de volta a tranqüi­lidade ... e nos dê razões para uma testai

Esse brasileiro tão criativo e carinhoso que se chama Rubem Alves, em seu livro Estórias de quem gosta de ensinar, diz o seguinte: "Na verdade, parece que o pensamento surge com a dor(. .. ). Quando tudo vai bem, não pensamos sobre as coisas: nós as curtimos( ... ). Não é necessário conhecer aquilo que não incomoda" 1

Mas, certamente, a urgência dolorosa não é a única razão pela qual surge em um grupo humano - ou em uma pessoa -a iniciativa de procurar conhecer, saber, entender, compreen­der e explicar a realidade. Às vezes, queremos conhecer por pura e simples curiosidade: porque algo nos assombra, nos enche de maravilha, e queremos saber "por quê" ou "como" isso é assim. Em outras ocasiões, são os sentimentos de amor,

1. Rubem ALVES, Estórias de quem gosta de ensinar, São Paulo. Cortez Editora, Autores Associados 1984 (2ª ed.), p 21 e 43.

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atração, ternura ou simpatia por outras pessoas que podem nos motivar a tentar compreender essas outras pessoas, suas relações, idéias, origens, preocupações etc . Ou pode haver coisas cujo conhecimento nos dê tamanho prazer que nos entregamos a investigá-las com toda a dedicação, mesmo quando desse esforço não esperamos outra recompensa a não ser o prazer de compreender melhor a realidade que nos cativa e intriga. Às vezes, o gosto por exercer nossa imaginação criadora - ou o simples prazer de disputar jogos intelectuais com outras pessoas - nos leva a inventar explicações interes­santes da realidade .. . a conhecer, portanto, de maneira dife­rente daquela a que estávamos acostumados.

Nestas reflexões vou comparar muitas vezes o esforço humano por conhecer a realidade cóm essa outra velha a ti vi­dade humana, que é a de fazer mapas ou planos. Assim, se a vida humana é - entre outras coisas - uma busca constante de motivos para a festa, e se os obstáculos dolorosos à vida estão entre os principais estímulos do esforço humano para pensar, conhecer, compreender e transformar a realidade circundante, então poderíamos imaginar o conhecimento hu­mano como uma tentativa de elaborar/esboçar "mapas para a festa", uma espécie de roteiros para tentar achar e abrir caminhos que nos levem de volta à vida feliz , a uma vida que mereça e facilite ser freqüentemente festejada com alegria, prazer e gosto . Mais ainda: até o ato de inventar, elaborar, comparar e corrigir mapas pode se tomar, em si mesmo, fonte de prazer e motivo de festa ... embora, como os caminhos reais de toda vida, este prazer esteja constantemente misturado, estimulado, dificultado e ameaçado por dificuldades, frustra­ções, estagnações, conflitos, desvios, limitações e retrocessos.

UM POUCO DE AUTOBIOGRAFIA PARA ENTRAR NO AS­SUNTO

Estas idéias são fruto de uma longa e complicada história. Eu gostaria de partilhar com quem ler estas linhas, embora em poucas palavras , uma parte dessa história. Quero fazê-lo -entre vários motivos - por me parecer que um dos problemas que hoje contamina nossa visão do conhecimento é este preconceito ingênuo e perigoso de que as idéias, a "verdade",

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o "saber" e o~livros saem da genial inteligência de uns poucos indivíduos is1lados e fora-de-série. Ao menos no caso deste livro, as coiss são bem diferentes: estas páginas surgem porque muitl gente pediu e contribuiu para que eu me sentasse em) desse o gosto de escrevê-lo.

Desde q'le eu li, quando criança, a história das façanhas de Robin Hocd, fui incapaz de ficar quieto e calado diante do espetáculo de sofrimento inocente de tanta gente mergulhada na pobreza - incapacidade que foi reforçada em mim por mamãe, papü e uma professora que tive no segundo ano primário, e tue se me foi acentuando ano após anos de trabalho socitl na periferia, em prisões e hospitais populares da minha cicade, Caracas na Venezuela. Essa realidade me parece aindanais trágica e insuportável por ocorrer diante do espetáculo d1 desperdício e da destrutividade dos detentores do poder.

Essa "in:apacidade" ou sensibilidade foi encontrar na Bíblia, no tes;emunho dos Profetas, de Jesus, e em boa parte do Cristianisrro (sobretudo o de João XXIII, Paulo Vl, Vaticano II e Medellín) Uha expressão e um alimento importantes. Assim, enquanto est1dava filosofia na Universidade, eu me interessei pelo marxisrro, abandonei a Democracia Cristã com um pe­queno grupo ,de vida breve, a que demos o nome de "Esquerda Cristã". E ga1hei uma bolsa de estudos para me formar em filosofia da reigião e, mais tarde, em sociologia da religião, na UniversidadeCatólica de Lovaina, na Bélgica.

COM A TEOlOGIA DA LIBERTAÇÃO

NaqueleE anos lovainenses, me tornei, como boa parte dos meus colegaf, "meio ateu" . A reflexão crítica a que a filosofia me conduziu (esse me dar conta que minhas crenças eram apenas uma opinião entre milhares de outras) foi uma das causas. Outré. foi a frustração das esperanças despertadas por João XXIII, Iaulo Vl, Vaticano II e Medellín. Depois de dez anos de belaEdeclarações públicas, pareceu-me que a vida da minha Igreja continuava sendo de submissão diante dos po­derosos destE mundo e de insensibilidade diante do sofrimento dos pobres. VIas a morte das duas filhas de meu primeiro

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casamento- a mais velha justamente antes que eu fosse cursar a bolsa de estudo, e a mais nova quando já me encontrava no terceiro ano de Lovaina - foi talvez o empurrão mais forte para que me afastasse da Igreja por uns cinco anos. Em 1976, pouco depois da morte de minha filha mais nova, algumas atnigas me convidaram para ir a Bruxelas para escutar uma palestra do sacerdote peruano Gustavo Gutiérrez. Quando encerrou a palestra, Gustavo convidou para ir à missa os que assim desejassem. Senti, durante a palestra e nas reações do público, em boa parte composto por latino-americanos, que a Igreja com a qual eu tinha sonhado estava nascendo e crescendo dentro da Igreja que abandonara uns cinco anos antes ... e no convite a participar da missa senti o chamado para regressar ao lar. E regressei: voltei para a América Latina e para minha Igreja. Voltei também às lutas para fazer da América Latina e de minha Igreja um lar acolhedor e vivifitante para todos os que nascem em seu seio.

Assim me liguei a este movimento denominado "teologia da libertação", do qual ouvira falar e com o qual simpatizava desde 1969, mas em cujas possibilidades libertadoras não cheguei a confiar a não ser a partir do encontro com o teólogo Gustavo Gutiérrez.

Estas linhas são parte dessa caminhada e, sobretudo, dos meus últimos anos trabalhando como companheiro, amigo e/ou assessor de grupos sindicalistas, militantes partidários, assistentes sociais , animadores de bairros, estudantes univer­sitários, organizações missionárias e agentes de pastoral que atuam em meios populares, sobretudo na América Latina e nos EUA.

COMO ME APROXIMEI DA REFLEXÃO SOBRE O CONHECIMENTO

A idéia de escrever estas reflexões surgiu por causa de inúmeros problemas, encontrados por muitos de nós, quando tentamos compreender como funcionam e como transformar realidades que consideramos opressoras e destruidoras. Com muita freqüência, tais realidades se comportam de modo diferente e mesmo contrário ao modo como nossas teorias e

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pesquisas tinham previsto. Por exemplo, vamos a uma clínica com um parente enfermo, seguimos as orientações de vários especialistas, e acontece que a pessoa estava sofrendo de uma doença diferente da diagnosticada. E, com o tratamento errado piora ainda mais sua saúde.

Outras muitas vezes, nossos esforços transformadores -baseados em nosso conhecimento da realidade - se vêem obstaculizados , frustrados, perdidos ou, inclusive, chegam a se tornar processos contraproducentes, provocando o reforço daquilo que desejávamos contribuir para transformar. Por exemplo, lutamos por uma escola para um bairro da periferia, com a certeza de que a juventude que ali estudar vai colocar seus novos conhecimentos, contatos e recursos a serviço da comunidade inteira ... e talvez, poucos anos depois, vamos ver que a maioria dos graduados daquela escola, com uma certa arrogância, abandonam o bairro, ocultam suas origens e se afastam dos parentes e antigos companheiros

Desse tipo de experiências, muitas vezes, vão surgir perguntas como estas: a maneira como vemos a realidade não estaria de algum modo errada, viciada? Porventura, nossas teorias sobre a realidade não serão insuficientes? Estarão equivocadas? Existe algum método seguro para conhecer a realidade? Ou, ao contrário, estaremos condenados a nos enganar e errar constantemente? Por que tanta gente tem opiniões tão diferentes sobre a mesma realidade? Como posso saber quem está com a razão? O que é verdadeiro? O que é falso? Todas essas perguntas suscitam muitos problemas sobre o conhecimento. Quanto a mim, despertaram-me viva­mente a atenção alguns desses problemas assim que comecei a estudar filosofia pelos anos 60. Por isso, desde então, prestei muita atenção a esses problemas - um pouco desordenada­mente - e estudei as disciplinas que abordam o assunto. Em filosofia, me dediquei à chamada "teoria do conhecimento" (muitas vezes rotulada com títulos mais exotéricos como os de "epistemologia" , "gnosiologia", "noética") e à filosofia das ciências. Em sociologia, às assim chamadas sociologia do conhecimento, sociologia da cultura, sociologia da ciência e à "teoria das ideologias". Em psicologia e biologia, a diversos

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estudos como os de Jean Piaget sobr-e a biologia e conheci­menta, e sobre as formas infantis de conhecer, muito relevante para o tema. Além disso, tenho prestado atenção à história das ciências e aos estudos antropológicos sobre as formas de conhecimento em culturas diferentes da ocidental.

E A QUEM PODE INTERESSAR ESTE DEBATE?

Sempre me pareceu que em todas essas disciplinas filo­sóficas se discutiam assuntos e idéias do maior interesse e importância para quem se preocupa em mudar as coisas , em superar realidades destruidoras para as pessoas e comunida­des humanas. Todavia, tive também a impressão, desde o começo, que a maioria dos autores daquelas disciplinas abor­davam o tema do conhecimento de maneira tão abstrata, especializada e hermética, que terminava sendo impossível que seus escritos fossem compreensíveis ou despertassem o interesse da maior parte das pessoas. O que fazer, então? Até uns poucos anos atrás, procurei convencer algumas pessoas amigas, concentradas, disciplinadas e preparadas em algumas daquelas áreas para que assumissem a tarefa de estudar, sintetizar e "traduzir" os temas e idéias de alguns desses especialistas, pondo-os em relações com e a serviço das tradições, organizações, lutas, modos de comunicação e bus­cas presentes em nosso povo. Não consegui convencer nin­guém. Anos depois, a partir de alguns convites para escrever e dar palestras sobre esse tema, comecei a colocar eu mesmo mãos à obra, embora sempre de um modo um tanto lateral, marginal. Escrevi alguns artigos sobre o tema2 e continuei conversando e lendo esporádica e caoticamente sobre o as­sunto. Por volta de 1980, o ITES (Instituto Teológico de Estudos Superiores) da Cidade do México me convidou para escrever alguma coisa a esse respeito. Finalmente, em 1984, o CESEP

2. O mais elaborado foi "Avertissements épistémologicopolitiques pour une sociologie latinoaméricaine des religions", em Social Compass (Lovaina) 1979, XXVI/2-3: 179-194.

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(Centro Ecumênico a Serviço da Educação Popular), com sede em São Paulo, me convidou para ministrar um curso intensivo sobre "Análise da realidade". Propus que o curso fosse prece­dido por uma semana de reflexão sobre "o problema do conhecimento". Os assistentes- mais de trinta- eram agentes de pastoral, militantes políticos, sindicalistas, líderes campo­neses e de favelas, cristãos em sua grande maioria, vindos de uns quinze diferentes países da América Latina. As discussões e a avaliação crítica do curso, efetuadas pelos participantes, me mostraram duas coisas: valia a pena continuar trabalhando o tema ... mas era necessário conversar mais a esse respeito com gente como aquela que havia participado nesse curso.

UM PROBLEMA: FALTA DE MATERIAIS APROPRIADOS DE LEITURA

Desde 1988, então, refiz diversas vezes este curso e as notas e leituras para ele, no calor das contribuições, críticas, comentários, apreciações e sugestões de, sobretudo, cursistas do CESEP (e, no primeiro semestre de 1990, dos estudantes da Faculdade de Teologia de Maryknoll, em Nova Iorque). As avaliações de todos esses cursos coincidem em dois pontos ao menos: valia a pena trabalhar em grupo este tema de forma parecida ao modo como estávamos fazendo ... , mas era preciso contar com materiais de leitura além dos esquemas-guia do curso, para preparar, aprofundar e dar continuidade à reflexão sobre o tema. O problema continuava sendo o mesmo de 1984 quanto à bibliografia: os textos e autores mais críticos, criati­vos e inovadores nessa matéria ainda eram inacessíveis à grande maioria do público em vista do idioma, preço e/ou linguagem demasiadamente especializada. Alguns cursistas do CESEP me pressionaram insistindo: por que eu não desen­volvia por escrito os cursos que estava apresentando e que contavam com a inestimável colaboração de diversos grupos latino-americanos de cursistas do CESEP? Mas como achar tempo e recursos, onde e quando?

Depois de conversar com a coordenação do CESEP e de este trocar impressões com a equipe de assessoria do Instituto de Estudos da Religião (ISER), do Rio de Janeiro, chegamos a

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um plano concreto. Eu me comprometia a trabalhar por uns seis meses no Rio de Janeiro, entre dois cursos do CESEP, na redação de um livro sobre o tema. O CESEP e o ISER conse­guiriam o apoio financeiro para tornar isso viável. E a equipe de assessoria do ISER me convidaria para participar de seu trabalho interdisciplinar, fazendo ao mesmo tempo uma leitura crítica de meus materiais à medida que estes fossem redigidos. O CESEP e o ISER conseguiram ajuda econômica da fundação católica européia Broederlijk Delen. E assim surgiram estes "Mapas para a Festa" : obra comunitária possibilitada pelas achegas intelectuais , afetivas, econômicas, e de outro tipo , de muita gente querida. Oxalá essas pessoas, lendo estas pági­nas, possam nelas sentir sua participação e meu reconheci­mento agradecido.

QUE VAMOS, ENTÃO, ENTENDER POR "CONHECIMENTO"?

Há muitas maneiras diferentes de classificar as realidades e as experiências com as quais entramos em relação, muitas possibilidades de compreender como é "no fundo" e como funciona a realidade, muitas maneiras diferentes de explicar por que as coisas são como são e funcionam do jeito que funcionam, e também muitas e muito diversas formas de tentar influir sobre a realidade para fazê -la andar segundo nossas necessidades e nossos interesses.

Entendemos por "conhecimento" - por enquanto e para nos compreendermos - precisamente esses esforços para classificar, entender e explicar como e por que a realidade é como é e funciona como funciona. Se é assim, poderíamos dizer que há muitos caminhos e modos através dos quais nós, pessoas e comunidades humanas, procuramos conhecer o real: há muitas formas e muitos tipos de conhecimento.

Seria, talvez, muito bonito se aceitássemos com simplici­dade, humildade e respeito essa possibilidade plural. Infeliz­mente, na vida real das sociedades humanas de hoje, isto não é assim. Certos modos de conhecimento, certas regras e certos modelos do conhecer são favorecidos com financiamento, publicidade, reconhecimento oficial, ensino acadêmico etc.

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! ll ltr 111 lll.ll lloiras de conhecer - tradicionais ou novas - são 10 contrário, ignoradas, ridicularizadas e até, em certas cir~

cunstâncias, reprimidas, prmbidas e perseguidas. As razões desses privilégios e perseguições são muitas e

já falaremos um pouco sobre isso, mais adiante. Por agora, gostaria de ressaltar que, para mim, aí reside precisamente um dos mais importantes problemas do conhecimento: o da dis­criminação, maus-tratos e até eliminação de certas formas de conhecimento e, pior, das pessoas e comunidades que as compartilham.

Quando uma cultura, uma nação ou um grupo humano se sentem donos da verdade, sobretudo se têm o poder militar para se impor, surge ali um grande perigo para o resto da humanidade: o perigo de que aqueles que compartilham essa forma de conhecer, arrogantes e armados, infiram medo, sofrimento e morte àqueles que têm outras formas de ver e viver a vida.

Na maior parte das vezes, os dogmatismos, os sectaris­mos, autoritarismos e totalitarismo são provavelmente isto: modos de conhecimento arrogantes que, sendo compartilha­dos por grupos poderosos, acabam sendo impostos pela força àqueles que compartilham outras maneiras de conhecer. His­toricamente, temos os casos das inquisições (católica e pro­testante), do holocausto dos judeus sob o nazismo, do "Gulag" estalinista na antiga URSS e do "macartismo" norte-america­no. Assim, portanto, infelizmente, o conhecimento também pode aumentar o sofrimento e a injustiça, em lugar de oferecer motivos para a festa.

Outra questão central para mim talvez seja a mais antiga preocupação humana com respeito ao conhecimento, aquela que deu origem a todas as disciplinas e escolas que abordam o conhecimento: Por que a realidade freqüentemente se com­porta de maneira diferente ao modo como entendemos, pre­vemos e queremos? Em outras palavras: por que erramos tantas vezes em nosso conhecimento da realidade? Ou seja: por que, tantas vezes, os caminhos que pareciam levar à satisfação, à paz, à alegria, nos levam por outros rumos? Por que, em lugar do correto "mapa para a festa", nosso conhecer

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nos desencaminha, tantas vezes, para longe das ocasiões de celebração comunitária?

ESCLARECIMENTOS IMPORTANTES

Estas reflexões partem, entre outras, destas convicções simples:

-Nosso modo real de viver molda nossa maneira de ver a realidade, levando-nos usualmente a acreditar que "as coisas são, sem dúvida, como as vemos" e que "outras maneiras de vê-las são, é claro, falsas" ;

- Nossa maneira de perceber a realidade nos leva a ver e a executar certos comportamentos e atos como "normais" e, ao contrário, a rechaçar outros como "anormais";

-Muitas vezes, não gostamos de criticar e modificar nossa maneira de captar a realidade assim como nosso comporta­mento diante da realidade, e essa resistência constitui, com freqüência, um novo obstáculo para transformar a realidade que nos cerca;

- Se queremos transformar nossa realidade, talvez fosse então conveniente exercitar e desenvolver nossa capacidade de criticar e modificar nossos modos de perceber a realidade assim como nossa capacidade de escuta e aprendizagem diante de outras maneiras de ver e de viver .

Precisamente por estas últimas convicções, gostaria de compartilhar com o leitor destas linhas algumas idéias que oxalá não reforcem essa tendência tão humana como desuma­na: de aceitar, em bloco, ingênua, dogmática e sectariamente os conjuntos de idéias que parecem sólidos, coerentes, lógi­cos, convincentes e capazes de resolver problemas candentes de uma comunidade. Essa tendência talvez seja tão forte como a complementar: rejeitar logo de saída qualquer idéia que pareça contradizer ou ameaçar nosso modo de perceber as coisas e de viver no mundo.

Assim, portanto, gostaria de sugerir coisas como estas: As idéias que vou apresentar neste texto, eu as vejo não

como verdades definitivas que se devem crer ou aceitar. Não! Eu as considero antes como idéias que ocorreram a muitas

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0 11 LI m; posso as e que a mim e aos outros parecem instigantes, róLCeis , fascinantes, sugestivas, interessantes, fecundas. Por­tanto, vou sugerir a quem as ler que não as aceite nem rechace à primeira vista; que examine, primeiro, se há alguma coisa em uma ou em várias delas que lhe pareça estimulante para imaginar, pensar, classificar, compreender, criar ou resolver alguma coisa em sua vida comunitária e pessoal. E depois -mas apenas depois - procure discernir o que pode haver de falso, exagerado, unilateral e/ou contraditório em alguma delas, que o separe do fértil, que sempre haverá alguma coisa fecunda, certo? - e se possível, ao menos por um tempo, conserve isso consigo. Afinal de contas, estas não são puras idéias: são cozinhadas com carne, desejos, amores, ódios, dúvidas, medos, sonhos, caos, alegria, dor, costumes, interes­ses, recordações, esperanças e outros ingredientes profunda­mente humanos em sua receita. São hipóteses, ocorrências não demonstradas como talvez todas as idéias humanas -que são para algumas comunidades e pessoas, nesta última déca­da de desespero latino-americano, aquilo que eu disse: idéias férteis, fecundas, frutíferas para entender e transformar alguns dos modos como conhecemos e como procuramos mudar nossas realidades. Claro que aqueles que receiam a dúvida, a crítica e a mudança -seja lá por que motivo for- talvez achem este texto muito "duro de engolir" .

Este, como qualquer texto, é incompleto: há muitíssimas idéias que poderiam e deveriam estar aqui e, no entanto, por mil e uma razões , não se acham no livro. Por isso, quem o ler poderia (deveria?) sentir-se livre e convidado, para introduzir em qualquer ponto suas próprias idéias, experiências, intui­ções etc., para completar, nuançar, corrigir e enriquecer as reflexões e sugestões aqui apresentadas.

A coerência e a ordem do texto, como talvez as de qualquer outro, são coerência e ordem artificiais: são o resul­tado da arte, da habilidade, de costumes e das inclinações de seu autor - não da "realidade real". As pessoas que o lerem devem sentir-se, por isso, convidadas e estimuladas a des­montar a ordem artificial deste texto, criticar sua lógica, tirar

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ou acrescentar o que lhes aprouver e, no final das contas, reorganizar as idéias aqui apresentadas da mane1ra que lhes parecer mais adequada.

o modo de apresentar as idéias aqui contidas não é "o melhor" possível, de modo algum. Até mesmo para seu autor "mas certamente muito mais para leitores com uma v1da, uma linguagem e interesses diferentes - este livro podena e deve_:m ser melhorado em milhares de aspectos (ordem, apresentaçao, exemplos, recursos gráficos e de outra ordem, clareza, humor, atualidade, documentação etc .). Assim, portanto, flquem os leitores exortados a criticar este livro sem med1da nem vergo­nha alguma, e inclusive recriá-lo de modo totalmente novo e diferente.

Como muitas idéias, as minhas estão aqui traduzidas em palavras. Boa parte da confusão que um livro pode acarretar está na maneira como seu autor usa as palavras. Antes de aprontar alguma confusão, deixem-me sublinhar o segumte: as palavras - pobres coitadas I -não qu~rerr:_ nunca d1zer nada, pois elas não podem "querer" , porque nao sao seres v1vos, mas apenas garatujas ou trinados inventados pelas pessoas. O~em deseja dizer alguma coisa somos nós, as pessoas. E, para 1sso, nós usamos, entre outras coisas, as palavras. ~or vezes, com elas, conseguimos significar, transmitir, comumcar aqmlo que queremos dizer. Às vezes, não. O mais importante, portanto, não são as palavras e sim aquilo que procurar::os comumcar com elas . Peço, portanto, a meus leitores. q~e nao se. apegue~ às palavras aqui usadas, pois o que mms 1mporta e o deseJO que se acha por trás das palavras. . , .

A intenção deste livro não é apresentar apenas 1de1as originais. Muitas das opiniões aqui e~postas eu as encontrei ao longo da vida em conversas, escntos, pe~guntas e con,fe­rências de outros seres humanos, como tambem em expenen­cias, reflexões, bate-papos e discussões propriamente ~mnhas. o mais "original", talvez, seja o esforço para re~mr 1dmas que fui encontrando separadas e tentar apresenta-las em _uma linguagem mais "latino-americana norm~l do final do s~culo vinte" . Pode 0 leitor acrescentar suas propnas concepçoes e

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aquelas que tiver adotado. tirar e mudar o que lhe aprouver e assim poderá obter um conjunto mais original por ser m~is seu.

Oxalá estas reflexões contribuam para criar (ou para re­compor) "mapas" realmente "nossos" que sirvam para nos onentar comunitariamente de um modo menos agressivo, VIolento e destruidor que os modos dominantes de conhecer a realidade: mapas mais aptos para produzir e apoiar o trabalho solidário, justiça e ternura entre pessoas e comunidades hu­manas e, assim, então, podermos nos encontrar. cada vez mais gente, mais amiúde, em festas alegres para celebrar, alimentar e alegrar vidas que valham, profundamente, a pena ... Oxalá!

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1. A EXPERIÊNCIA INFLUI EM NOSSO CONHECER?

Em 1982, quando fui pela terceira vez a Manágua, pude andar pela cidade por conta própria. Aprendi a usar o ônibus que circulava entre a casa onde me hospedava, a Universidade em que estava trabalhando e um centro comercial para onde gostava de ir saborear umas deliciosas pizzas havaianas. Um dia, me convidaram para uma reunião em um local que eu desconhecia. Sai para a reunião, prudentemente, com quase duas horas de antecedência. Tinha o endereço certo e o dinheiro para tomar um táxi (em uma cidade bem menor que a minha, Caracas. e onde todo o mundo fala a mesma língua que eu) . Mas cada vez que parava um táxi, ou um ônibus ou perguntava a alguém como chegar a meu destino, esbarrava com perguntas ou sugestões incompreensíveis. como: "Posso deixá-lo onde ficava 'Talcor de Villafontana"' ; ou: "Siga pri­meiro até 'La Voz de Nicaragua', siga depois mais umas cem 'varas' até o lago e depois suba de táxi". Ou ainda: "Isso fica em Altamira d'Este? " Mas . com mil demônios!, o que é que eu sabia de "onde ficava" alguma coisa antes do terremoto , se esta era minha primeira visita mais demorada à Nicarágua? E o que significava "até o lago". ou, então, "em direção à montanha", "para cima" ou "para baixo"? Eu estava acostu­mado com Norte-Sul, Leste-Oeste. E as benditas "varas"? Em meu país, medimos distâncias em quadras e metros. E. afinal de contas , o que é que eu sabia a respeito de "La Voz de Nicaragua" ou, então, "Altamira d'Este"? Em suma, depois de duas horas parado em um ponto de ônibus, voltei desesperado à Universidade e pedi a um de meus colegas que me fizesse o favor de me levar de carro, depressa, para a bendita reunião que já deveria estar começando.

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Passei então mais de dois meses em Manágua. Além de meu já familiar ônibus entre a residência, o trabalho e as maravi~osas pizzas havaianas, nunca consegui andar sozinho nessa acolhedora e cálida cidade.

De fato, a maioria dos estrangeiros que conheci em Ma­nágua, por aqueles meses, me confirmaram que, infelizmente, eu era apenas um entre muitos "perdidos" na cidade ... em certos momentos, tão perdidos como caribenhos pela primeira vez no Pólo Norte.

E por falar em Pólo Norte: nas comunidades autóctones tr~dicionais que vivem nas regiões mais frias dos países nordicos, chamados "esquimós", palavra despectiva que eles re)eltam, ocorre um fenômeno sumamente interessante tendo muita coisa a ver com nosso tema. Onde, para os habitantes das cidades ou de regiões rurais mais quentes, tudo parece ter a mesma cor - somente "o branco" - os "esquimós" são capazes de distinguir uma enorme variedade de matizes ... e ate possuem um sem-número de nomes para as cores que nós outros veríamos, no máximo, como simples e pálidos matizes do "branco" ("matizes do branco", aliás, que nós somente poderíamos distinguir se os víssemos ao lado de outros "tons" da "mesma" cor). Graças a essa habilidade, os "esquimós" consegurram VIve_r durante muitos séculos em territórios cujas temperaturas estao quase o ano inteiro "abaixo de zero". Ou melhor, por tere~ vivido durante muitos séculos em regiões congeladas a mawr parte do ano, os "esquimós" desenvolve­ram a capacidade de distinguir e reconhecer muitas cores diversas onde outras pessoas, como nós, só veriam uma e a mesma cor.

. Nossa vida, nossa experiência- pessoal ou coletiva- influi vigorosamente sobre nosso conhecimento, sobre aquilo que conhecemos~ a maneira como conhecemos. Nossa experiên­Cia tem tambem repercussões - e talvez isto seja mais impor­tante amda - naquilo que ignoramos e na maneira como nos arranjamos para não conhecer algl}mas coisas e para negar ou JUStifiCar esse desconhecimento. E dessas coisas que eu gos- . tana de falar nesta parte do livro.

A vida de toda pessoa e de toda comunidade humana é extraordinariamente rica, mesmo que tenha sido breve e

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limitada nos recursos a seu alcance. Todos temos enorme quantidade de relações com coisas , pessoas, grupos, institui­ções, símbolos etc. Estamos cheios de recordações, sensa­ções, sentimentos, imagens, idéias, teorias, desejos, interesses e temores. Tudo isso conforma nossa expeüência: aquilo que vivemos, sentimos, suspeitamos, intuímos, esperamos, recor­damos, tememos, buscamos, conscientemente ou não. Aquilo que experimentamos no presente a partir daquilo que já vivemos no passado, eis a nossa experiência. Sugiro aqui que a vida, a experiência, tanto individual como coletiva, molda nosso modo de ver a realidade, nossa idéia de que é ou não é conhecimento, do que é ou não é verdade: influi em que coisas -e pessoas!- vemos como importantes, sérias, centrais, belas, boas, justas, normais, apropriadas ... ou justamente o contrá­rio!

O que proponho, portanto, na primeira parte destas refle­xões sobre o conhecimento, é esta idéia: nossa expeüência tem decisivo impacto sobre nosso conhecimento da realidade. E eu proporia os seguintes objetivos para desenvolver e aprofundar essa idéia:

- Tomar consciência da enorme influência que nossa experiência tem sobre nosso conhecimento da realidade;

- Apreciar e analisar a infinita riqueza e complexidade da experiência de qualquer pessoa ou grupo humano;

- Pensar criticamente sobre o impacto de nossa experiên­cia em nosso conhecimento, sobretudo nos aspectos menos conscientes e menos agradáveis desse impacto;

- Despertar em nós uma visão mais pluralista, respeitosa, aberta, humilde e crítica daquilo que reconhecemos, valoriza­mos e apreciamos como conhecimento.

ALGUMAS DIMENSÕES DO PROBLEMA

Gostaria de dividir a apresentação deste assunto - o problema da influência da experiência no conhecimento - em diversos aspectos ou dimensões que me parecem mais inte­ressantes, mas cuja importância é, sem dúvida, variável e discutível.

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A experiência do decisivo para a vida

Toda espécie viva parece se esforçar para se manter viva. Os membros de cada espécie parecem agir em conseqüência: procuram conservar a própria vida e a dos membros mais próximos de sua espécie. Algo semelhante acontece também com os seres humanos.

Uma menina criada em uma favela do Rio de Janeiro, por exemplo, logo aprende que os papagaios (pipas) empinados por seus companheiros significam coisas mais importantes, dependendo da cor que tiverem . O vermelho significa mais ou menos isto: "Perigo! A Polícia está subindo o morro!" Assim, a garotinha aprende que quando os meninos estão empinando papagaios vermelhos no morro é melhor correr e se esconder em casa (se estiver perto). Ou, então, correr e se esconder na casa ~e alguma amiga que more logo por ali (se estiver longe da propna casa). Ou, então, esperar antes de subir o morro se estiver, por exemplo, voltando da escola e ainda não entrou na favela. De outro modo, corre perigo de morte: papagaios de cor vermelha significam que a qualquer momento pode explodir um tiroteio.

C~m ? decorrer dos anos, temos aprendido - tanto por expenenc1a pe_ssoal como por informação dos outros - que ObJetos, Situaçoes, comportamentos ou determinadas pessoas podem servir para conservar nossas vidas e quais poderiam ameaçá-las. Essa procura do vital- e o complementar receio daquilo que é mortal - faz parte daquilo que nos impele constantemente a procurar conhecer a realidade.

Alguns chegam a afirmar - e acredito que a idéia é fecunda , sempre e quando não se exagerar- que o conheci­mento é uma capacidade que surgiu da necessidade de conservar a vida e, surgida para conservá-la, é uma forma de adaptação ao meio ambiente com o fito de resguardar a vida.1

Mas a vida, assim como aquilo que a protege e aquilo que a ameaça de morte, é algo que varia enormemente de uma

1. Entre os melhores livros que conheço, desenvolvendo esta hipótese. temos sobre­tudo o de Jean Pmget. Biologia e conhecimento.

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época, pessoa, classe social, idade, região ou comunidade para outra. Talvez esta seja uma das inúmeras razões pelas quais nós, seres humanos, desenvolvemos visões tão variegadas da realidade.

Oxigênio, alimento, água, abrigo, remédios, afeto e soli­dariedade são algumas das coisas sem as quais qualquer pessoa ou grupo humano pereceria. Regiões diferentes, po­rém, dispõem de diversos recursos utilizáveis para se alimen­tar, construir residências , produzir medicamentos ou se organizar para explorar esses recursos . Na experiência con­cretíssima da luta pela vida, dirigimos nossa atenção àquilo que nos parece decisivo para sobreviver. Assim vamos desen­volvendo certos órgãos (ouvido, mãos, vista etc.) e algumas capacidades (manipular uma faca, escrever à máquina, des­cobrir propriedades medicinais de uma planta, ler, resolver conflitos etc.) que servem, entre outras coisas, para conhecer nossa realidade concreta. Ao mesmo tempo, deixamos de desenvolver outros órgãos e capacidades que não são estimu­lados por nosso meio ambiente natural nem social, mas que, em outras circunstâncias, poderiam se mostrar extraordinaria­mente úteis para conhecer a realidade e sobreviver nela com sucesso.

Deste modo, conhecemos certos aspectos da vida, algu­mas regiões, determinadas técnicas etc., mas- e talvez até sempre- é infinitamente mais aquilo que ignoramos e desco­nhecemos do que aquilo que dominamos e sabemos perfeita­mente ... e nos damos conta disso, sobretudo ou somente, quando nos cabe enfrentar uma realidade inteiramente ines­perada. E, no entanto, o "dominar" certos conhecimentos pode nos proporcionar uma determinada vantagem sobre aqueles que "carecem" dos mesmos, até o ponto de transformar esse "saber" em "poder": inclusive em poder para nos aproveitar­mos de outras pessoas e para mantê-las na "ignorância" daquilo que poderia lhes servir para levarem uma vida mais verdadeiramente sua.

Assim. uma menina "esquimó" poderá perfeitamente so­breviver a uma tempestade de neve no Alasca, mas talvez não

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a um blecaute em Bogotá ou a uma inundação na Nicarágua. Uma engenheira argentina ~xilada poderia "ter sucesso" no mercadQ de trabalho do Rio de Janeiro, mas se lhe acontecesse de se extraviar em uma montanha de seu próprio país, talvez não conseguisse sobreviver. Um robusto e saudável jovem indígena guatemalteco, capc.z de distinguir e cultivar centenas de plantas alimentícias meCicinais, forçado a emigrar ilegal­mente para os EUA, pode perecer por falta de alimento e cuidados médicos se não tiver um visto de permanência, emprego, dinheiro, casa, nem seguro médico_ Uma operária venezuelana, grávida, que não conheça seus direitos traba­lhistas, pode se resignar ao ser demitida do trabalho e, assim, talvez perder o neném pelas angústias e outras conseqüências do desemprego . Portanto, a experiência real daquilo que se nos afigura vital ou mortal estimula o desenvolvimento de certas capacidades ou certos órgãos, para compreender e lidar com situações familiares ou parecidas . Mas a experiência também, em contrapartida, i:npede muitas vezes que amadu­reçamos (e até nos leva a atrofiar) outras capacidades que poderiam se nos mostrar de::::isivas diante de certas circuns­tâncias inéditas.

A experiência das alegrias e dificuldades da vida

Viver a vida é, entre outras coisas (e sobretudo, quem sabe!?), buscar a vida feliz e não meramente sobreviver. A vida que se reduz exclusivamente à luta pela sobrevivência - para não morrer e nada mais - é vivida como um pesadelo, como situação desesperadora, como um mal. Este é o caso de pessoas e populações vítimas de graves enfermidades, secas e fomes, violência física ou psicológica.

Mas a vida que buscamos e aprecianos é aquela que sentimos como vida em abundância: vida que é possível gozar junto com os outros, sem pôr em perigo que os outros também a gozem; vida a desfrutar sem destruir a possibilidade de usufruí-la até a mais avançada idade; vida digna de celebrar em comunidade e de recordar depois com saudade ... a vida boa, a vida feliz I Esta vida - a vida que vale 1 pena viver e que nos estimula a degustá-la- não se resume c uma simples luta

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contra a morte, mas é busca do prazer em comum, a alegria duradoura, o deleite profundo, o gozo gratuito, a felicidade que contagia. A vida boa, a vida feliz - a vida que merece ser preservada, nutrida, comunicada, reproduzida e festejada - é o desfrute compartilhado do afeto, da companhia, do trabalho, do alimento, do descanso, da arte, do jogo, da dança ... enfim, da festa'

A vida boa, a vida feliz, é também a aptidão para assumir criativamente o sofrimento pessoal como dimensão intrínseca da própria vida. É, igualmente, disposição para apreciar e acompanhar a aflição dos outros com solidariedade e ternura. Mas a vida boa é, também, esforço para superar o sofrimento injusto e evitar o sofrimento desnecessário.

Eu gostaria de propor aqui a idéia segundo a qual, no fundo, todo conhecimento é um esforço de reconstrução da experiência, de ordenação de nossa experiência, precisamente para nos orientar na procura da vida boa. Noutras palavras, as pessoas e comunidades humanas tendem a reconstruir a realidade (isto é, a conhecer), a fim de se orientarem na busca dos caminhos que levam à vida feliz, à vida boa. Por isso, aprecio a imagem dos "mapas", ou "planos", ou "roteiros": o conhecimento poderia ser compreendido como a elaboração de "mapas mentais" da realidade, mapas baseados na expe­riência passada (tanto pessoal, como coletiva), para nos orien­tar no presente em direção à conquista futura da vida boa.

De um modo mais simples, mas que pode ser útil, eu diria que o conhecimento é um esforço para reconstruir "mental­mente" a realidade, com o intuito de nos dirigirmos para o prazeroso e nos afastarmos do que é doloroso. Mas a realidade real, como bem sabemos, é muito mais complexa. Por expe­riência, sabemos que algumas pessoas ou sociedades huma­nas tiram prazer de atividades que causam sofrimento e destruição a outros seres humanos; sabemos, igualmente que muitas maneiras de ver a vida (conhecer, portanto) impelem alguns seres humanos a viver à custa do sofrimento e até da morte dos outros.

Um antigo provérbio latino reza assim: primum vivere, de.inde pMosophari ("primeiro viver, depois filosofar") . Paro-

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diando o provérbio, poder-se-ia dizer que primeiro experimen­tamos a vida, com suas dores e alegrias, para depois nos preocuparmos em conhecer a realidade em que vivemos. Antes 'do conhecer, antes de nos (pre)ocupar em tentar com­preender a vida, a realidade, vem a própria experiência·da vida, da morte, da alegria e da dor . E talvez sejam estas experiências - com as de surpresa, fascinação, curiosidade, sofrimento, saudade ou desejo - aquelas que estimulam mais profunda­mente nossa imaginação cognoscitiva, nossa capacidade cria­tiva de conhecer.

Essas realidades da vida, da felicidade de viver (lembrada, frustrada, recordada com saudade e/ou desejada), da morte (temida, lamentada, esperada, surpreendente) e a dor (própria, alheia, remota ou não, física, emocional etc.) estão entre aquelas coisas que nos estimulam a nos perguntar por que as coisas são como são. Ou, se porventura poderiam ser de outra maneira e como seria possível transformá-las, de modo que, por exemplo, em vez de sofrermos injustamente, pudéssemos desfrutar alegremente da boa vida compartilhada.

Por isso, talvez nos pareça mais fácil, geralmente, "só ver aquilo que achamos conveniente ver". Porque, muitas vezes, suspeitamos que a realidade seja muito mais complexa, am­bígua, perigosa ou exigente do que julgávamos e desejávamos. Então, achamos mais prazeroso, cômodo e simples imaginar e crer, de pés juntos, que as coisas são como acreditamos e queremos que sejam; que a vida é mais simples e fácil de levar e de compreender do que na realidade o é tantas vezes.

Assim, acontecem coisas como aquela que minha amiga Ana me contou um dia. Pouco depois do parto de sua amiga Andréia, foi visitá-la e conhecer o recém-nascido . Andréia e Ernesto, seus amigos, tinham então cinco filhos . Brincando com o bebê, Ana percebeu que este não reagia normalmente aos estímulos da luz e dos sons . Comunicou sua preocupação a Ernesto e Andréia. Mas estes ficaram aborrecidos e, com raiva, pediram que Ana se retirasse e desse por terminada a amizade entre eles. Infelizmente , um ano depois , o pediatra confirmou as suspeitas de Ana e os receios secretos de Andréia e Ernesto.

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Algo análogo ocorreu com Eugênio, um dirigente sindical. Uma vez sugeriu que o melhor para qualquer sindicato seria passar constantemente a liderança para operárias e operários mais jovens, mas com tarimba suficiente rias lutas sindicais. No entanto, quando me encontrei de novo com ele, sete anos depois, ainda era o presidente do sindicato. Parecia não estar mais interessado no rodízio de lideranças. Suas energias estavam agora concentradas, ao contrário, em convencer os colegas de que o reelegessem para um novo mandato. Talvez porque, em vez de voltar para a dura vida de esgotantes, monótonas e ensurdecedoras jornadas de trabalho na fábrica, preferisse a vida de dirigente sindical: desfrutar do mesmo (ou melhor) salário sem ter que ir quase nunca até a fábrica e com muito maior liberdade para organizar a própria vida.

Em qualquer caso, essas experiências me confirmaram aquilo que eu quero sugerir aqui: que as alegrias e os sofri­mentos que marcaram nossa vida, marcam também a maneira como tendemos a perceber, ver, conhecer a realidade. E que, por isso, às vezes, achamos difícil aceitar certas realidades ou, ao contrário, se nos torna muito difícil reconhecer que boa parte de nossa "realidade" é invenção nossa .

A experiência de afetuosa aceitação

A nossa maneira de compreender a vida, de nos relacionar com a realidade, com as outras pessoas e conosco mesmos, com nossos desejos, sofrimentos, esperanças e alegrias , com o passado e o presente, com o futuro, não é algo totalmente livre e pessoalmente escolhido por qualquer um de nós . Não é tampouco algo "natural, eterno e idêntico" para todos e para cada um dos seres humanos . Não. A maneira como nós, pessoas e comunidades humanas, sentimos e definimos o que é central para nossas vidas, o que é aquilo que mais ameaça nossa sobrevivência e nossa segurança, o que é que mais nos atrai e satisfaz etc., é algo afetivamente condicionado, emo­cionalmente marcado, sofrendo a profunda influência de nos­sas relações com os outros seres humanos desde a mais tenra infância.

As experiências mais decisivas de felicidade ou de sofri­mento são experiências em relação com outras pessoas e com

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uma profunda dimensão emocional e afetiva. Pensemos, por exemplo , na aceitação por parte de uma pessoa amada, a morte de um ente querido, a compra de um novo apartamento ou a perda do emprego.

O sofrimento, o medo, a indiferença, a esperança e a alegria se acham intimamente ligados à vida social, coletiva, comunitária: àquilo que nossos semelhantes, familiares, an­cestrais, vizinhos, colegas, amigos, dirigentes, tradições e meios de comunicação costumam definir tanto como desejável ou não , digno de felicitações ou não, quanto , ao contrário , como de pena ou rejeição.

Ou, para dizê-lo em palavras diferentes: o modo como definimos e experimentamos (isto é, como conhecemos) o vital, o prazeroso e o agradável, o indiferente, o ameaçador ou o insuportável, é um modo parcialmente "herdado", ampla­mente "aprendido", "recebido" de nossa comunidade (paren­tes, ancestrais, vizinhos, amizades, colegas, autoridades etc.), desde a mais tenra infância. E a maneira como herdamos, recebemos, aprendemos, imitamos, reproduzimos e repetimos estes e muitos outros "pontos" de nossa visão da realidade é através da muito peculiar experiência de afetuosa aprovação ou de rejeição reprobatória de nossa conduta por parte das pessoas emocionalmente importantes para nós.

As pessoas que durante a primeira infância foram cerca­das de autêntico afeto, estima, respeito pelas suas opiniões e desejos etc., têm de maneira geral uma visão de si mesmas e da realidade circundante muito diferente daquelas que sofre­ram superproteção, abandono, abuso físico ou desprezo siste­mático . A tal ponto que. por exemplo, algumas mulheres que apanharam muito de seus pais, quando crianças, educam os próprios filhos debaixo de pancadas e desconfiam do marido que não bate nos filhos. De maneira semelhante, homens que foram violentados na infância, somente conseguem se relacio­nar, sexualmente violentando outros seres humanos.

Isto parece certo não apenas no nível individual, mas também coletivo: os grupos sociais que sofrem sistematica­mente discriminação, marginalização, desprezo e abusos. ten­dem a ver o mundo de uma maneira muito mais caótica,

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ameaçadora e violenta que os setores acostumados ao respei­to, à estima e a uma boa atenção.

Seja-me, então, permitido apontar que é muito provavel­mente assim que cada um de nós aprendeu a ver, a conhecer de certo modo a realidade. Desde os primeiros anos de infância, começamos a experimentar que, diante de certas características e comportamentos nossos, as pessoas mais queridas (que também eram, de modo geral, aquelas de que mais necessitávamos e, inclusive, que mais temíamos) nos olhavam com agrado, nos tomavam nos braços, carinhosa­mente, nos falavam afavelmente e, algumas vezes, nos recom­pensavam com alguma coisa que nos proporcionava imenso prazer. Assim fomos associando um certo prazer conforme o grau de aprovação a certas formas de ser e de comportamento. Começamos também a descobrir que outras condutas e ca­racterísticas nossas levavam esses mesmos entes queridos a nos olhar com desagrado, a nos maltratar fisicamente, a nos insultar, a nos ameaçar com a retirada de seu afeto e a nos privar de coisas que desejávamos. Assim começamos a asso­ciar diversos graus de sofrimento, medo, rejeição e inseguran­ça com diversos atributos e atos nossos.

Mais adiante na vida serão os professores, vizinhos, cole­gas, chefes, autoridades educacionais , religiosas, governa­mentais, policiais e militares, culturais etc., que passarão a ocupar o papel dos pais e das amizades da primeira infância . Muitas vezes, sem nos darmos conta, vamos à procura da aprovação dessas pessoas: sentimos prazer contando com sua aceitação/aprovação, e isto nos leva a reforÇar certos hábitos e a abandonar ou esconder outros. Quando, ao contrário, nos sentimos rejeitados pelas pessoas que consideramos impor­tantes, isto nos leva com freqüência a modificar ou a dissimular nossa maneira de pensar, agir e opinar . O perigo de não passar no vestibular ou não terminar o curso superior , perder o emprego, ficar sem a casa ou ver manchada nossa reputação, talvez se nos apresentem como perigos de morte, profunda­mente associados ao sofrimento e ao medo que a rejeição afetiva produzia durante nossa infância e adolescência .

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Assim, vamos, imperceptivelmente, recebendo e reelabo­rando uma visão do mundo, "mapas" ou roteiros da realidade, marcos e orientações para diferenciar e discriminar aquilo que nossa coletividade aceita ou recusa como conhecimento ver­dadeiro, como fonte válida do saber, como autoridade cientí­fica legítima etc. Vamos também- quase sempre sem tomar consciência disso- herdando e reproduzindo uma organização mental daquilo que para nós é importante, grave, urgente conhecer, e daquilo que é, ao contrário, secundário, indiferen­te , irrelevante ou marginal para o conhecimento. Por outro lado, vamos também aprendendo e refazendo certas idéias sobre o que é racional, científico, efetivamente real. E também sobre o que é, ao invés, absurdo, anticientífico, utópico ou supersticioso.

Para encerrar este ponto, proponho a hipótese que uma das coisas que mais influem em nossa maneira de ver a realidade, de conhecê-la, é nossa necessidade de afetuosa aceitação por parte de nossos entes mais próximos e queridos e com maior poder sobre nossas vidas, assim como nossa necessidade paralela de reduzir o perigo de sermos rejeitados por estas mesmas pessoas.

A experiência das normas sociais

Toda sociedade necessita e elabora normas sociais, explí­citas e implícitas, para a vida em grupo: hábitos de trabalho, ritos religiosos, costumes, tabus e proibições quanto ao ali­mento e à sexualidade, metas para a vida pessoal, coisas que provocam escândalo, acontecimentos a celebrar, castigos para certos tipos de comportamento, regras segundo a idade, sexo, estatuto familiar etc.

Aquilo que é costume fazer dentro do âmbito dessas normas, o que é cotidianamente realizado à vista de todos sem provocar rejeição coletiva, o que é favorecido ou admitido, ainda que implicitamente, assim como tudo aquilo que é publicamente estimulado e premiado, isto é feito e confirmado como o normal.

O contrário, aquilo que é mal visto, desestimulado, criti­cado, reprovado pela maior parte dos membros de uma sacie-

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dade, ou aquilo que provoca escândalo, perseguição, exclusão ou castigo em uma comunidade, por quaisquer razões que sejam, isto acaba se transformando em, ou consolidando-se como, o anormal.

Nas sociedades humanas, os estímulos e prêmios conce­didos ao comportamento normal fazem com que se associe à normalidade o prazer da aceitação. E, reciprocamente, a rejeição e os castigos que acompanham o comportamento classificado como anormal fazem com que, muitas vezes, se identifique um certo medo ou sofrimento com a anormalidade. Por isso, se a proibição nos atrai tanto que nos atrevemos a violar alguma regra da comunidade, geralmente o fazemos às escondidas (talvez daí venha a associação entre prazer e proibição). Deste modo, procuramos evitar a aflição da rejeição coletiva. No entanto, a própria culpa pode tornar insuportável o continuar violando as normas de nossa comunidade.

Quando premiamos uma afilhada por ter passado de ano na escola, ou quando felicitamos um sobrinho por ter dedicado algum tempo a ajudar uns colegas de classe que tinham muita dificuldade em matemática, estamos, ao mesmo tempo, sem nos dar conta, ensinando-lhes certas normas necessárias para a vida em comunidade. E, sem que ninguém o proponha nem o saiba, estamos lhes ensinando a conhecer a realidade, a ver o mundo de uma determinada maneira; a reconhecer a neces­sidade de esforços, às vezes dolorosos, para conseguir o que se quer da vida ; a perceber a existência de circunstâncias que fazem certas coisas mais difíceis para algumas pessoas e mais acessíveis para outras; a apreciar a solidariedade como forma de superar as limitações particulares etc.

Infelizmente, em sociedades injustas, muitas normas so­ciais escondem e perpetuam as injustiças. Assim, sem o saberem nem desejarem, quando os mais velhos aceitam ou ensinam certas normas, estão também contribuindo para que o injusto se torne normaL Por exemplo, quando se diz aos filhos que, se não estudarem, vão ficar sem emprego, tornarem-se mendigos e morrerem de fome, isso pode facilmente induzir nas crianças a idéia segundo a qual os pobres são pobres porque não quiseram estudar; que a pobreza é um problema

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de falhas individuais e que ninguém precisa se preocupar com a pobreza dos outros.

Eu diria. então, que, em geral, todos nós tendemos a reconstruir a realidade, ou seja, a vê-la, conhecê-la, "mapeá­la" com o fito de conseguir aquilo que experimentamos como vital. prazeroso e/ou aceitável e, paralelamente, procurando evitar aquilo que aprendemos a ver como fonte de perigo, sofrimento ou rejeição. Assim, tantas vezes, percebemos a realidade sem sequer nos dar conta, como se o normal fosse o único verdadeiramente real (o único desejável, possível, importante etc.); e, por outro lado, aquilo que aprendemos a considerar como anormal, isso tendemos a captar como irreal (ou indesejável, impossível, irrelevante etc.).

Uma amiga médica, exilada cubana, teve enorme dificul­dade para se adaptar à vida em Porto Rico, apesar de não querer mais voltar a Cuba e ganhar muito bom salário em uma clínica privada de San Juan. Ela, simplesmente, não conseguia se acostumar à idéia de cobrar dinheiro para cuidar da saúde de outros seres humanos. E ficava indignada ao ver gente que não podia receber o devido atendimento médico por carecer de recursos econômicos. E mais ainda ao ver como os preços de alguns médicos eram inacessíveis para muita gente que deles precisava para sobreviver.

Tenho um conhecido, pesquisador de história da Igreja, convicto de que é normal e bom existir, na Igreja, uma clara distinção entre os sacerdotes e os leigos e só se admitir homens solteiros ao sacerdócio.

Ele mesmo reviu uma boa quantidade de documentos descrevendo comunidades cristãs dos primeiros séculos sem um clero distinto dos leigos, com mães e pais de família consagrando e repartindo o pão e o vinho na celebração litúrgica. Todavia, procurou sempre se convencer a si mesmo que esses documentos eram "apócrifos" ou, então, que ele não estava conseguindo entender o "verdadeiro sentido" desses textos.

As normas que experimentamos, recebemos e assimila­mos em nossa sociedade, nos motivam, portanto, a perceber

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a realidade de certo modo e a transmitir a outras pessoas uma maneira peculiar de ver a vida, de captar as coisas. Quão positivo ou negativo seja isso depende - e por demais - das circunstâncias concretas a que nos referimos. Em qualquer caso, para compreender nosso modo de ver a realidade - e a maneira como os outros percebem a vida - é importante analisar o que experimentamos e assimilamos como "normal" e aquilo que, ao contrário, experimentamos como "anormal"

A experiência do "sabido e conhecido"

Toda pessoa. bem como toda comunidade. se acha com freqüência diante de situações inéditas, novas, inesperadas: uma pessoa que não se conhece, um comportamento do qual nunca se tinha ouvido falar, uma sensação interior desconhe­cida e surpreendente, uma idéia diante da qual não se sabe como reagir, um problema que nunca se tinha enfrentado antes etc.

Se a novidade é simplesmente prazerosa- se não desperta em nós nenhum tipo de medo - nossa resposta pode ser então simplesmente de desfrute, sem reflexão nenhuma. Mas se essa novidade ~espertar em nós alguma forma de insegurança ou medo, entao nossa resposta pode ser- depois, em vez de uma reação evasiva ou agressiva - a de examinar, consultar e refletir sobre essa novidade. Ou seja, nós podemos nos ver compelidos a procurar conhecer esse fenômeno inesperado.

Quando procuramos compreender o novo, porém, nossa primeira referência, nosso critério inconciente, nosso termo de comparação implícito é o "velho", o "já sabido e conhecido". aqmlo que nos parece compreensível. Quando queremos "co­nhecer o novo", portanto, nossa tendência natural, normal, comum e espontânea é a de "guardar o vinho novo em odres velhos"_: classificar o inesperado segundo as categorias já conhecidas, ve-lo como semelhante a algo já sabido.

Contou-me um dia meu pai que, no começo do século quand~ chegou à cidade de Coro, nà Venezuela. o primeir~ automovel, algumas pessoas, que nem sequer tinham ouvido falar desse tipo de veículo, viram um deles com os faróis acesos numa rua às escuras. E saíram correndo apavoradas, gritando:

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Carly
Realce

"O diabo! O diabo! Lança fogo pelos olhos ... é o diabo!" O automóvel era totalmente desconhecido enquanto o diabo, de certo modo. era uma figura bem conhecida. Assim, este servia para compreender e explicar as características do automóvel. ..

Eu diria que a experiência do compreensível, isto é, o processo de aprender a reconhecer e dar nome a certas coisas, orienta constantemente nossa maneira de enfrentar as reali­dades novas. Com isso, se torna possível - não digo que seja a razão única nem principal - que um Governo acuse de "comunista" um novo movimento social e religioso que emer­ge entre os camponeses e enfrente os latifundiários. Ou, paralelamente, é isso que faz com que muitos marxistas não consigam compreender o que está acontecendo na Europa Oriental a não ser como "traição", "complô capitalista" ou "crise passageira do socialismo". Em ambos os casos, o novo não é reconhecido como tal, mas é identificado, classificado como, simples e simplistamente. "mais do mesmo".

Eu chegaria inclusive a sugerir que uma das múltiplas razões pelas quais tanto nos custa reconhecer, identificar e estimular a multiplicação do verdadeiramente novo é, preci­samente, porque, com freqüência, o novo dá medo. Por vezes, preferimos, sem sequer nos dar conta, negar a existência do novo quando este parece negar que seja novo, incluí-lo dentro de algo visto, e rejeitá-lo como algo ruim. E, em certo sentido, isto é lógico: o realmente novo é algo desconhecido. Não sabemos que resultado dará, não temos linguagem para lhe dar um nome, suscita em nós o medo que. se o abraçarmos, nos poderá trazer rejeição e sofrimento (ou até algo pior), desperta em nós profundas e incontroláveis inseguranças. Qual o resultado "normal"? Expulsar o novo, negando que seja realmente novo, definindo-o, por exemplo, como absurdo ou - no melhor dos casos - classificando-o dentro de moldes familiares que despertem e estimulem a repulsa coletiva ("mau", "ruim", "atrasado", "diabólico", "ineficaz", "improdu­tivo", "comunista" , "reacionário", "anticientífico" etc.) .

As três tentativas latino-americanas mais recentes de reformar a economia democraticamente. de modo legal. gra­dual, misto, pacífico e autônomo, para criar mais riqueza acabando ao mesmo tempo com a pobreza- a Unidade Popular

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chilena, a Revolução Sandinista na Nicarágua, a "Lavalas" haitianas- não sucumbiram, de certo modo, a essa tendência? Nem as elites da América Latina nem dos EUA, ao que parece, foram capazes de ver ali outra coisa a não ser "mais do mesmo": ditadura, ilegalidade, opressão, comunismo, violên­cia e conspiração soviética.

Por vezes, em sentido inverso, o novo se nos apresenta com brilho extraordinário, desejável, atraente, promissor: en­tão desperta dentro de nós o desafio do desconhecido e até nos fascina uma certa sensação de medo: a curiosidade e a criatividade nos impelem à procura do inimaginável. do sur­preendente, do absurdo e até do incompreensível. Muitas vezes, quando o conhecido se nos tomou intoleravelmente destrutivo ou quando saboreamos a bondade de algo novo, vamos remexer em nossas tradições, nossa memória e nossa herança tentando encontrar algo que nos ajude a aceitar o novo como algo compreensível, possível, válido e legítimo. e nos ajude a refutar as possíveis e temíveis acusações de que aquilo que propomos seja "absurdo", "anormal", "diabólico".

Esta poderia ser em boa parte uma das motivações que animam a leitura da Bíblia em muitas comunidades populares latino-americanas: a suspeita e a necessidade de que nesse vetusto livro, que nos é tão querido e sagrado, se encontrem chaves para nossos desafios mais urgentes e importantes, para compreender e combater eficazmente a crise que tanto nos atormenta nas últimas décadas. e assumir e explicar as novas e alvissareiras experiências de vida comunitária popular!

Seja como for, o que realmente pretendo aqui é levar em conta que nosso conhecimento da realidade ocorre, geralmen­te, por comparação, associação e referência ao "já sabido e conhecido". Por esse motivo, exige-se um certo esforço cria­dor, "remar contra a corrente". para reconhecer e apreciar o autenticamente novo, sobretudo se o novo - como acontece em certas ocasiões - oferece possibilidades de superar aflições ou injustiças, antigas ou recentes.

A experiência da certeza

Uma das experiências desagradáveis, dolorosas, que ge­ralmente associamos à morte, é justamente o sentimento de

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incerteza, de insegurança, de confusão. E isso acontece, parece-me, sobretudo quando a incerteza é compartilhada por amplos setores, se estende por muito tempo e atinge questões de vida ou morte para a comunidade. Nesses casos, o caos, a debandada ou a violência cega podem ser uma resposta extrema: como tudo está cheio de insegurança, reage-se violentamente para destruir tudo.

Outra possível e diferente conseqüência é a de ir procurar certeza e segurança a qualquer preço e a todo o custo e achá-las , talvez , na primeira ocasião que pareça proporcioná­las. Porque, devemos dizê-lo de uma vez por todas, viver com certeza de que se está no correto, de que se está fazendo o que deve ser feito, é uma sensação profundamente necessária, gratificante, prazerosa : quem a perde, suspira por ela; quem a possui, sabendo ou não, gostaria de preservá-la.

Quem sofreu longa, coletiva e gravemente uma insegu­rança profunda, dolorosa e destruidora, geralmente tende a abraçar com diligência e a defender com toda a força a oportunidade de tornar a viver na certeza.

Eis aí, portanto, outra razão pela qual custa reconhecer e assumir o verdadeiramente novo quando este emerge. E eis aí, além disso, o motivo por que certas pessoas e grupos se aferram com unhas e dentes ("fanáticos", são entãJ chamados) a suas convicções e organizações e por que as defendem tão agressivamente de qualquer exame crítico, dúvida, reinterpre­tação ou "contaminação " com outras idéias ou associações.

Porque, em última instância, o medo do caos, da desinte­gração, da morte não abandona tão facilmente aquele que os viveu de perto (por exemplo, uma pessoa que sofreu tortura, fome prolongada, ausência do lar, família e emprego; aquele que sofreu abandono, abuso físico ou psicológico durante a infância: alcoólicos ou toxicômanos, mas tambÉm anciãos e inválidos pobres e abandonados, bem como dcentes termi­nais) . Assim, talvez se possa dizer que a experiência da certeza ajuda a pessoa a conhecer a realidade dentro dos cânones do já sabido e aceito. A experiência da incerteza, J.o contrário, força a pessoa a buscar segurança e, por isso mesmo, a refazer a visão da realidade em função de reconquistar a certeza perdida. Por isso, com freqüência, vemos a realidade, conhe-

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cemos a realidade do modo que mais nos garanta preservar ou recuperar a segurança de estarmos no certo.

Um exemplo desse "mecanismo de segurança", podemos encontrá-lo em muitas conversões, tanto religiosas como políticas. Com freqüência, é entre pessoas que estiverem debaixo de prolongadas circunstâncias de insegurança, caos, confusão e desorientação que ocorrem as conversões mais "radicais" (isto é, mudanças repentinas e muito acentuadas de conduta, crenças, companhias e linguagem) . Isto aconte­cerá se o grupo original a que pertencia tal pessoa não dispõe de mecanismos capazes para responder adequadamente a esse tipo de situação desesperada. Em tal caso, comumente, o convertido - com seu novo grupo - tenderá a defender agressivamente a nova segurança conquistada, recusando críticas, dúvidas, e qualquer tipo de reflexão, conversa, ami­zade ou leitura que ameace relativizar as novas certezas.

Segundo minha convicção, de fato nós todos necessitamos não tanto de processos de reflexão crítica sobre nossa maneira de conhecer e viver a realidade, mas sobretudo de longos períodos para viver e compartilhar certezas em ambientes afetivamente acolhedores. Se chegamos à idade adulta sem termos construído certezas sólidas para nossas vidas, ou se experiências traumáticas aniquilaram essas certezas, é possí­vel que , para reconstruir um "alicerce firme" para nossas vidas, procuremos grupos aparentemente "dogmáticos e sectários" aos olhos das outras pessoas. A possibilidade de que , a partir de uma situação como esta, se tenha acesso a - e/ou se respeitem- outros modos de conhecimento depende , em boa parte, do modo como "os outros" se posicionem em relação a "nós".

A comum tendência humana de procurar e conservar certezas pode, portanto, ser saudável, indiferente ou destruti­va. Depende. O que pretendo sublinhar agora é que, muitas vezes, nosso conhecimento da realidade pode ser mais um resultado de nossas certezas prévias e de nossa necessidade interior de certeza, do que um produto de nossa cuidadosa atenção à própria realidade.

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A experiência do poder

Toda pessoa- e a comunidade também- tem capacidade, habilidades, hábitos e tradições que podem ajudá-la a sobre­viver, desfrutar a vida, ser aceita por aqueles que a rodeiam e confirmar assim a orientação de sua existência. Toda pessoa (e a comunidade também) tem, portanto, um certo tipo e grau de poder sobre suas condições de existência, uma certa forma e medida de poder alcançar suas metas: todo grupo ou indivíduo humano vivo tem uma certa experiência do poder de alcançar suas necessidades e interesses .

As coisas se complicam, todavia, quando dentro ou fora de uma comunidade emergem interesses em conflito; quando diversos grupos ou indivíduos disputam entre si o mesmo objeto - território, gado, metais, armas, por exemplo - sem poder ou sem querer compartilhar esse objeto. Ou quando um indivíduo ou um grupo quer subjugar outra pessoa ou comu­nidade para submetê-la a seu próprio serviço, forçando-a a produzir para o proveito do grupo ou indivíduo preponderante.

É nesses casos que ocorre o fenômeno das relações de força entre grupos humanos: alguns dominam, oprimem, ex­ploram outros que, por sua vez , se submetem, se resignam e se entregam. Em circunstâncias semelhantes, o poder se torna poder de alguns seres humanos sobre outros: alguns podem alcançar seus propósitos porque conseguiram, pelo terror ou pelo suborno, que outros não possam colocar seus próprios interesses em primeiro plano . Alguns detêm maior poder de satisfazer suas próprias necessidades porque os outros - para conservar alguma coisa que apreciam na vida ou, ao menos, a própria vida - se entregaram ao cumprimento da vontade dos primeiros, cedendo poder sobre suas próprias vidas . Na realidade, não existe aí ninguém totalmente sem poder, mas certamente nos achamos diante de relações de força desiguais, desproporcionais e contraditórias, onde o poder de uns poucos se exerce sobre e contra os interesses e as capacidades dos outros. Mas, quer seja o poder a simples capacidade para realizar as próprias metas, ou seja, a força sobre os outros seres humanos, quer seja poder sobre ou sob os outros, o que eu

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quero dizer e destacar aqui é que nossa experiência do poder marca nosso conhecimento da realidade.

Eu gostaria de sugerir, então, que nós, seres humanos, tendemos a perceber a realidade, a reconstruí -la mentalmente, a conhecê-la, pois , da maneira que mais pareça contribuir para manter, consolidar e, se possível, aumentar o poder que tivermos alcançado até esse momento para satisfazer nossos interesses.

Noutras palavras, conhecemos, entre outras coisas, para poder viver, para poder desfrutar da vida, para poder ser aceitos por aqueles que nos cercam, para poder obter e preservar um certo sentido para nossa vida. Sendo assim, não aceitamos e defendemos como conhecimento qualquer re­construção da realidade. Não! Tendemos a reconhecer e salvaguardar como conhecimento só aqueles "mapas da rea­lidade" que nos ajudarão a preservar o poder já conseguido; isto é, a resguardar aquilo que permite que possamos viver como. vivemos, desfrutar da vida como o fazemos, ser acolhi­dos por aqueles que mais temos a peito, e nos convencer de que nossa vida tem sentido.

Por isso, acaba sendo tão real e honestamente difícil para tantos homens (varões) reconhecer, por exemplo, que as diferenças biológicas e psicológicas entre mulheres e homens não explicam nem justificam colocar as mulheres em posições de subordinação ou inferioridade. Conhecer a igual dignidade entre mulheres e homens contradiz e subverte a experiência que nós, do sexo masculino, temos de nosso próprio poder. Conhecer-se a si mesmo como igual (não superior) implica para o homem (varão) expor-se a transformações e limitações de seu modo de viver e desfrutar a vida, sofrer rejeição de parentes e amigos e até desmoronar na confusão e no caos. Por isso , "logicamente", a maior parte dos homens (varões) "conhece" sua superioridade diante da mulher ... e se mostrará aberto a todo "conhecimento" biológico, econômico ou teológico que venha confirmar aquilo que ele já "sabe": que as mulheres são de algum modo inferiores. A experiência que as mulheres têm de seu próprio poder é capaz de questionar ou, ao contrário

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(caso se submetam, ou se sua rebeldia não conseguir vitória nenhuma), confirmar aquilo que o homem (varão) já "sabia".

Num outro nível, governos e partidos políticos- de direita, centro e esquerda - oferecem oportunidades inéditas para aqueles que ocupam posições de poder: dinheiro, influência, fama, divertimentos, segurança e outros privilégios, dificil­mente acessíveis ao cidadão comum e corriqueiro. A tendên­cia espontânea e normal, habitual, daqueles que têm acesso a tal forma de poder (por exemplo, dirigentes partidários ou governamentais) é a de aproveitar, assegurar e aumentar aquelas prerrogativas e seus privilégios. Assim, será "normal" que aqueles que exercem esse tipo de poder aceitem e defendam teorias que justifiquem sua liderança e seus privilé­gios ... e, também, será "normal" que rejeitem, persigam e até eliminem os que criticarem essa maneira de exercer o poder.

Mais ainda, o próprio conhecimento se transforma facil­mente em situações de opressão, em instrumento de poder. Aqueles que têm acesso a certas informações podem estar interessados em escondê-las de outras pessoas ou comunida­des (por exemplo: os proprietários de uma fábrica, que não querem ver diminuir seus lucros com empregadas grávidas, tentarão fazer com que elas não saibam de seu direito à licença maternidade) . Aqueles que desenvolveram certas habilidades de que outros necessitam, mas que, no entanto, não puderam desenvolver, podem usar essas capacidades para explorar outras pessoas (por exemplo, advogados com muita experiên­cia em direito trabalhista que tiram dos clientes, sob a forma de "honorários profissionais", a maior parte dos benefícios sociais que conseguem recuperar) . Aqueles que conseguiram dominar certas técnicas pouco comuns e muito cotadas em sua sociedade podem utilizá-las para menosprezar, margina­lizar e abusar impunemente daqueles que não as dominam (apenas uma amostra: em muitos bairros populares ou povoa­dos da zona rural, alguns jovens que têm um certo grau de escolaridade desprezam, discriminam e abusam daqueles que em sua região ou em sua família não fizeram estudos formais).

Existirá alguma "vacina" contra essas "tentações corrup­toras" do poder, contra a tendência que afeta profundamente

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até a maneira de conhecer a realidade do ponto de vista do poder? A meu ver, e aqui exponho meu ponto de vista, talvez só haja "antibióticos" (e mesmo estes nem sempre dão resul­tados satisfatórios). Primeiro, o antibiótico da humildade: reconhecer que todas as pessoas estão e estarão sempre expostas à tentação de aproveitar qualquer poder que tenham em seu próprio benefício (mesmo quando isso implique preju­dicar os outros e abandonar convicções que tinham no passa­do). Reconhecer, além disso, que essa mesma tentação pode nos conduzir geralmente a ver, a conhecer a realidade de modo que nos justifique e consolide em nossas prebendas. Este seria o primeiro "antibiótico", mais de tipo ético, espiritual, se se preferir. Mas não basta. Faz alguns anos que aqueles que estão lutando por aquilo que denominamos "democracia" e contra aquilo que concordamos em denominar "ditadura" vêm pro­pondo um segundo "antibiótico", agora de tipo mais jurídico e político: mecanismos que permitam a qualquer cidadão comum denunciar todo abuso do poder da parte de qualquer dirigente. Isto exige, porém, leis, costumes e instituições que facilitem ao homem do povo fazer tais denúncias sem o temor da vingança dos poderosos ... e com esperanças razoáveis de que realmente haverá inquérito e destituição dos que abusa­ram do poder2

.

Enfim, freqüentemente nos deixamos deslumbrar pelo brilho do poder e tendemos a copiar, imitar os hábitos, valores, idéias e teorias e, sobretudo, o mais superficial de tudo isso, os gestos e as frases daqueles que estão "por cima", em nossa sociedade. Tomamos assim "emprestado" nosso conhecimen-

2. Este é o verdadeiro sentido popular, acho eu, de instituições democráticas como as liberdad~s de pensamento, palavra, imprensa, associação, organização política, apresentaçao de candidatos, votação e demissão de funcionários públicos etc . Sem estas - e isso é aquilo que muitos de nós entendemos como ditadura - se facilita todo abuso do poder, militar ou civil, capitalistas ou socialistas. Tudo isso afeta profundamente aquilo que se compreende na sociedade por conhecimento e aquilo que é rejeitado e perseguido como "erro". Talvez por aí se consiga explicar em parte o que aconteceu com o marxismo nos experimentos da Europa Oriental e sua recente implosão.

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to de grupos cuja experiência da realidade é profundamente diferente da nossa. E, deste modo, nos relacionamos com nossa realidade de maneiras profundamente inadequadas, irrelevantes, "alienadas".

A própria experiência do poder exercido e/ou padecido me parece, por conseguinte, um dos fatores mais importantes para moldar aquilo que imaginamos, aceitamos, abraçamos ou aquilo que tememos ou rejeitamos como possível conhecimento.

A experiência da frustração

Em grande parte, a experiência humana - tanto pessoal como comunitária - se compõe de propósitos frustrados, interesses malogrados, expectativas estraçalhadas, projetos fracassados. As surpresas desagradáveis, um sofrimento ines­perado, o fracasso desolador e a tragédia insolúvel são, infe­lizmente, parte normal de toda vida humana. Esse elemento de nossa experiência, que tem algo a ver com todos aqueles já mencionados, também exerce um forte impacto sobre nossa maneira de conhecer e entender o que seja o conhecimento.

"Frustração" indica alguma coisa que desejávamos ou pensávamos que ia acontecer e, contrariando nossa expecta­tiva, não aconteceu. Ou, o que dá quase na mesma, alguma coisa que tínhamos certezas que não aconteceria e, no entan­to, acabou acontecendo. Toda frustração tem uma relação importante com o conhecimento: significa experimentar que a realidade se comporta de maneira diferente de como nossa imagem da realidade supunha (e desejava ardentemente) que fosse se comportar.

Por isso, de certa maneira, toda frustração é um desafio e um risco para nosso conhecimento. Pode, sem dúvida, nos levar a um maior esforço para melhor conhecer a realidade. Pode também nos impelir a levar em conta aspectos da realidade e idéias sobre ela que ainda não tínhamos conside­rado. Pode, inclusive, nos levar a modificar um pouco nossa visão do mundo. No entanto, quando um certo tipo de frustra­ção esbarra repetidamente contra convicções arraigadas, isso pode provocar crises psicológicas e até rupturas radicais.

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Talvez todos nós já tenhamos experimentado, ou conhe­cido uma pessoa que tenha vivido, a frustração de nossa confiança no sistema médico vigente. Alguém, por exemplo, que vai de médico em médico tentando encontrar saídas (ou ao menos explicação) para uma disfunção orgânica pessoal. Cada médico que visita, depois de um longo questionário e muitos exames, lhe garante saber o que é que o client3 tem, lhe diz o "nome" da disfunção, "explica" à pessoa, e geralmen­te de modo bastante complicado, o problema e lhe receita um tratamento, afirmando ao cliente que ficará bom em pouco tempo. No entanto, a doença se agrava. Os remédios vão causando desagradáveis "efeitos colaterais". Cada médico consultado contradiz os anteriores e não se encontra solução em parte alguma. Carcomidas as finanças e baldadas as esperanças, a pessoa ouve, recorda ou descobre que fJra do sistema médico vigente existe "uma bruxa", ou um '\::uran­deiro", ou um "ervateiro" que parece conhecer e ser capaz de curar esse tipo de enfermidade. Apesar de conselhos e :r::erigos - já desesperada pela frustração - a pessoa decide recorrer ao sistema médico "marginal", para ver se aí encontra uma solução. Quer encontre ou não a resposta, a sua maneira de pensar a respeito do corpo e da saúde, da medicina e da autoridade médica provavelmente se modificará muito3

. Tal­vez, inclusive, se converta a uma religião autoritária e "mar­ginal", a de "curandeiro", por exemplo, sobretudo se este for bem sucedido na cura, e rompa com velhos laços de trabalho e hábitos familiares, éticos etc., que se associam mais a seu período de dor e frustração.

3. Experiência semelhante foi a que eu tive com duas filhinhas de meu primeiro casamento. Depois de fracassos e contradições de seis pediatras e dois curandei­ros, um nono médico, obrigado por esse fato a desconfiar de seu saber, "descobriu" aquilo que tinham: "mucoviscidose" ou "fibrose cística do pâncreas" (.ncurável doença infantil hereditária). Ambas as crianças morreram: Jeny, quando 1inha dois anos e meio; Vanessa, aos três e meio. A experiência, certamente, me levou a modificar a visão da vida e do conhecimento. Este livro, em diversos sEntidos, é fruto dessa experiência frustrante.

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Esse tipo de processo é provavelmente mais comum do que parece. Menos comuns - e muito mais graves, no entanto -são as frustrações coletivas, graves e repetidas, sobre quando a reaiídade contradiz interpretações oficiais, certezas compar­tilhadas e tradições normativas de uma comunidade. Em tais casos, as mudanças e possíveis rupturas na esfera do conhe­cimento podem levar a sérios conflitos, crises e rupturas no plano psicossocial e sócio-político.

Talvez algo desse gênero seja o que vem acontecendo, hoje, em muitos lugares da América Latina: o crescimento da miséria; a frustração de muitos belos sonhos; a desesperança que se instala até nas próprias classes médias; a insegurança e a violência em constante aumento; a refutação prática das teorias, promessas e previsões de políticos e economistas; o desmoronamento das poucas experiências políticas econômi­cas com ênfase nas necessidades básicas das camadas popu­lares; a sucessão ininterrupta de políticas econômicas diferentes, cada uma criticando a anterior e prometendo os mesmos resultados sem nunca alcançá-los; a multiplicação das mais estranhas religiões oferecendo milhares de explica­ções e saídas, cada uma contra as outras ...

Uma situação desse gênero pode facilmente culminar em uma espécie de "caos coletivo do conhecimento": ninguém tem mais certeza de nada; ninguém confia nem acredita em ninguém nem em nada; nenhuma autoridade tem mais legiti­midade. Daí, entre os mais fracos , ora uma desesperada corrida para agarrar ingenuamente a primeira tábua de salva­ção que encontram, ora uma disponibilidade imensa para a mudança radical e a violência. Mas também, por esse motivo, entre os mais fortes, uma atitude cínica e violenta de "vale tudo", "salve-se quem puder", de "levar vantagem" a qualquer preço, inclusive uma facilidade enorme para a corrupção administrativa, o abandono de qualquer convicção ou compro­misso prévio, e a repressão violenta de qualquer um que se oponha a suas iniciativas .

Seja como for, a frustração repetida, individual ou coletiva, das expectativas "normais" leva a questionar e a modificar o conhecimento estabelecido da realidade. Talvez a frustração

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e o sofrimento, próprios ou dos outros. sejam, com a curiosi­dade e a imaginação criadora, um dos principais aguilhões do conhecimento humano, uma de suas fontes.

A experiência da contradição e da incoerência

Todos nós, seres humanos, desenvolvemos, desde o dia do nascimento, e ao longo da nossa experiência, uma certa teoria da realidade. Por teoria compreendo, simplesmente, uma visão ou imagem (um "mapa", outra vez) de como é e como funciona este mundo, a realidade. Ao que parece, a maioria das pessoas, na maior parte do tempo, não elabora, nem exprime e modifica, muito menos critica deliberadamente a própria teoria da realidade. Talvez aquilo que fazemos sempre o fazemos e refazemos sem nos dar conta, através de toda a nossa vida. Apenas ocasionalmente - quando alguém que achamos importante nos interroga acerca de certas coisas, ou quando entramos em contato com outra teoria, ou quando nossa teoria nos leva muitas vezes a fracassar - articulamos, refletimos, explicitamos, criticamos ou modificamos a teoria da realidade (o "mapa") que herdamos do passado e que compartilhamos com os semelhantes que temos mais a peito.

Creio, na verdade, que toda teoria da realidade anda cheia de contradições4 De um lado, acham-se as contradições de nossa própria teoria em face da realidade: fatos reais inexpli­cáveis dentro de nossa visão da realidàde; comportamentos da realidade diferentes e até contrários àqueles que nossa imagem do mundo previa; realidades impossíveis ou até absurdas na perspectiva de nosso "mapa". Por outro lado, ainda por cima, existem as próprias contradições internas de

4. Esta hipótese. embora inicialmente desenvolvida em relação às modernas e explícitas teorias científicas ocidentais, julgo eu. parece interessante ampliá-la para qualquer imagem mais ou menos estruturada da realidade científica, moderna, ocidental, explícita ... ou não I Entre os melhores livros que conheço, desenvolvendo uma idéia semelhante e que me inspirou também, acha-se o de Paul K. Feyerabend, Contra o Método. Para Feyerabend, com efeito, "o progresso" de uma teoria científica antiga para uma nova é fruto , precisamente, dessas contradições.

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nossa teoria: idéias que têm pouco a ver com outras idéias da teoria, muitas vezes procedentes de visões bastante diferentes da re~lidade; princípios que se excluem uns aos outros ; valores contrários ; lacunas que se preenchem artificialmente; pressu­postos e conclusões sem nenhum fundamento etc. etc .

No entanto, enquanto essas contradições e incoerências não derem na vista ou enquanto não encontrarmos formas aceitáveis de resolvê-las, ou for socialmente perigoso chamar a atenção para elas, nossa tendência é silenciá-las, negá-las, disfarçá-las ou justificá-las ... conforme as circunstâncias I

Algo semelhante se pode encontrar na história das Igrejas cristãs. Uma medida como, por exemplo, a proibição da ordenação sacerdotal das mulheres em certas Igrejas cristãs pode ser vista como incoerência com a proclamação da igual­dade de direitos entre mulheres e homens nessas mesmas igrejas. Um grupo de historiadores da Igreja pode até achar que essa proibição - assim como sua justificação teológica -é contrária aos fatos históricos das primeiras gerações cristãs e a seus textos. Inclusive, como já aconteceu, diversas comu­nidades podem começar a fazer experiências em seu seio com algumas formas de participação da mulher no ministério sacerdotal. E as reações? Houve e há muitas e em diversos sentidos: silenciar diante da discussão; declarar que esse assunto é irrelevante; condenar, excomungar e mesmo, even­tualmente, torturar e executar aqueles que pregam idéias pouco "ortodoxas" a esse propósito5

; desenvolver novas ela­borações teológicas, interpretações históricas e refutações com base na Bíblia, para justificar o sacerdócio feminino (ou, ao contrário, para negá-lo e, ao mesmo tempo, apresentar o

5. Este último processo já não é diretamente praticado pelas Igrejas cristãs como tais.

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Foi praticado, até pelo menos o século passado, na maioria das regiões debaixo da preponderância cristã, inclusive a América Latina antes da independência. Hoje, membros de muitas Igrejas, atuando no governo ou em grupos paramilitares em uma suposta defesa da fé, ainda praticam esta forma de "controle do conhecimen­to". Um exemplo recente foi a ditadura militar guatemalteca do General Efraín Ríos Montt.

sacerdócio exclusivo de homens solteiros como perfeitamente compatível com a dignidade e a igualdade humanas); começar - como já está fazendo, entre outras, a Igreja Episcopal - a ordenar mulheres como sacerdotisas e inclusive consagrá-las como bispos; organizar protestos e greves contra a discrimi­nação da mulher nas Igrejas etc. etc.

Por outro lado, quem se opõe à ordenação sacerdotal da mulher pode apresentar múltiplos motivos, como provavel­mente toda ação ou idéia humana. Assim, pode ser por medo da mudança; por medo das mulheres em geral e, mais ainda, por receio de que cheguem a ocupar posições de poder; por suspeitar de que, caso se tolere a ordenação sacerdotal da mulher, isto venha desencadear uma série de outras mudanças muito mais profundas nas Igrejas; por simples obediência à autoridade; pelo dissabor de perder privilégios, emprego, reputação ou afeto de outras pessoas caso apóie essa possibi­!idade; na convicção de que "se até agora foi assim, deve ter sido por algum bom motivo, e deve continuar assim"; por realmente achar que esta é "a vontade de Deus" ... ou por uma combinação de vários desses motivos ou até por todos eles ao mesmo tempo!

Usualmente, porém, custamos a reconhecer que muitas­complexas e até contraditórias- são as raízes de nossas visões e ações. E é difícil para nós , antes de tudo, porque um certo tipo de motivações (por exemplo, o medo, a conveniência puramente econômica, o sonho de fama e poder, a simples atração por outra pessoa, a necessidade de afeto etc.) é muitas vezes visto como fundamentação imoral, baixa, feia, pouco séria ou indigna, do conhecimento e da ação humana. Mas não será certo que, na maioria dos casos, todos nós temos inúmeros, confusos e heterogêneos fatores que nos levam a ver a realidade desta ou daquela maneira? E não será também possível que a razão pela qual não refletimos sobre nem reconhecemos essas inúmeras motivações é a vergonha de ser mal vistos ou repelidos por aqueles que mais nos importam?

Seja como for, gostaria de encerrar este último tópico sugerindo que talvez seja mais arriscado desconhecer que reconhecer as contradições e incoerências que infestam todo

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conhecimento da realidade. Desconhecer essas contradições e incoerências (e, por exemplo, aceitar cegamente aquilo que ouvimos do médico ou do padre) pode nos transformar em vítimas, marionetes de coisas que nunca quisemos analisar nem criticar. Reconhecer, porém, as contradições e incoerên­cias do conhecimento pode nos servir para analisar, criticar, transformar - com outras pessoas e outras comunidades - o impacto do conhecimento sobre nossas vidas .

BREVE SÍNTESE DO ASSUNTO

Nós, seres humanos, queremos viver e não morrer; que­remos ter uma vida boa e feliz . Neste processo, o afeto aprobatório, ou a rejeição aborrecida que nosso comportamen­to suscita nas pessoas que nos cercam, vai orientando na aprendizagem da vida em comunidade. Assim, construímos, recebemos e ensinamos normas, confiando em que estas nos ajudarão a preservar e desfrutar a vida. Algumas certezas vão surgindo em nosso espírito e desenvolvemos um modo de ver e compreender o mundo circunstante, muitas vezes prescin­dindo daquilo que nos parece incompreensível e repelindo aquilo que possa perturbar nossas convicções. Deste modo. conforme fomos levados por nosso poder ou refreados por nossa impotência, iremos experimentando a realidade . A partir dessa experiência, vamos elaborando "mapas" da realidade que nos servirão para olhar e avaliar nosso meio circunstante e orientar aí nosso modo de nos comportarmos. Às vezes suspeitamos que esses "mapas" sejam vulneráveis, limitados e frágeis, eivados de paradoxos e contradições . Então, habi­tualmente, fugimos do risco por receio da confusão maior e da insegurança de nos deixarmos levar pela dúvida acerca de nossa própria maneira de ver a realidade. Assim, vamos formando para nós mesmos e tentando transmitir a outros uma idéia do que é o conhecimento, como se reconhece e como se obtém.

Experiências diferentes, portanto,levam a conhecimentos diferentes: não apenas a tipos de conhecimentos diferentes, mas também a maneiras diferentes e até contrapostas de

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compreender e explicar as mesmas realidades, bem como a modos ch.Ierentes e incompatíveis de compreender e expnmir o que é o conhecimento.

Em outras palavras, as nossas experiências nos levam a ver a realidade de uma maneira diferente daqueles que vive­ram outras experiências. Essas experiências farão com que a comunicação seja não apenas possível, mas, muitas vezes, necessária. E do diálogo pode surgir, a seu tempo, o consenso ou inclusive algo mais difícil (porém mais necessário em nossos dias?): o respeito aberto a formas diferentes de pensar e viver junto com a humilde consciência das próprias limita­ções.

No entanto, às vezes, as diferenças se tomam obstáculos para a comunicação e a compreensão. Quando captamos a realidade de um certo modo, freqüentemente acreditamos que aqueles que a percebem de outro modo se enganam .. . mas nós não! Se, ainda por cima, temos maior poder que essas outras pessoas, podemos facilmente cair na tentação de usar nosso poder para impor aos outros nosso modo de ver as coisas.

Por isso, em mais de um sentido, nossa experiência pode nos levar a observar as coisas de maneira contraproducente e destrutiva ... , quer para nós mesmos, quer para os outros. Daí a conveniência, e este capítulo quer acima de tudo chamar a atenção para isto , de examinar cnticamente- de modo sério, reflexivo, pessoal e coletivo - como nossa experiência tem condicionado nossa maneira de ver a realidade, até que ponto e com que conseqüências.

Afinal, nenhuma pessoa é simplesmente prisioneira de sua própria experiência passada. Todos nós, pessoas e comunida­des, temos um certo grau de liberdade que nos permite reinterpretar, contrastar e reorientar nossas vidas, superando deste modo, em certo sentido, nossa experiência. Além disso, a experiência pessoal e coletiva não é pura experiência "exte­rior e objetiva". Não! Toda experiência passa a ser propria­mente humana na medida em que se integra à subjetividade, à vida interior da pessoa. E aí, em nosso foro interno, podemos

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refletir criticamente sobre nossa experiência passada e criati­vamente imaginar novas maneiras de ver e viver a realidade.

A partir dessa reflexão crítica, então, talvez surjam novos "mapas" mais abertos e flexíveis, pluralistas e humildes, mais ricos, que nos permitirão encontrar outras maneiras de viver, realmente dignas de celebração com muitas e boas festas.

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2. REFLETIR COM CALMA SOBRE NOSSO CONHECIMENTO

Faz algumas décadas, por volta dos anos quarenta, che­gou a Caracas, para se apresentar em um teatro de revistas, uma companhia de "vaudeville", uma espécie de espetáculo ligeiro de cabaré. Um casal de jovens líderes católicos daquela época - que fiquei conhecendo anos mais tarde - sentiu-se ofendido por aquilo que eles achavam ser uma exibição pornográfica. Esperando que a companhia teatral suspendesse as funções, os jovens líderes católicos decidiram organizar uma manifestação pública diante da sala em questão, exigindo que fossem canceladas as apresentações imorais. Porém o espetáculo não foi cancelado e a atenção despertada pelo protesto se transformou em publicidade gratuita. Por isso a sala não podia mais conter as centenas de homens que iam bem cedo comprar ingresso e ver o denunciado show de vaudeville 1

Não faz muitos anos, visitei, no Brasil, um grupo de missionários dos quais fora professor nos EUA Estavam tra­balhando em um bairro popular da cidade de São Paulo. Ouvi seus comentários: achavam que eram frios, acanhados, isola­dos e desumanos os novos apartamentos destinados às famí­lias operárias naquela área da cidade. Mais tarde, falando com uma das famílias recém-transferidas para o novo bairro, pude apreciar, no entanto, como a família estava contente: depois de muitos anos de lutas políticas e sindicais, de manifestações e protestos, e também de sonhos e poupança, aquela família e muitas outras de operários ... finalmente conseguiram dar um passo à frentel Tinham conseguido sair do amontoamento e da insalubridade dos barracos das favelas. E, agora, podiam levar uma vida mais saudável, segura e tranqüila em um apartamento próprio, novo, sólido e limpo. De fato - conver-

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sávamos depois- ver esta situação como "triste e desumana" somente era possível para quem ignorava as condições das quais vinham essas famílias. Pior: comunicar-lhes uma visão negativa de suas novas habitações. Era como desprezar os sonhos desses operários, suas lutas e vitórias; era como dizer-lhes: "Vocês não sabem nem sequer o que é bom para vocês. Eu, sim!"

*

Quando percebemos, captamos, conhecemos a realidade, muitas vezes o fazemos - sem intencioná-lo nem sabê-lo -aceitando passivamente que a realidade é "assim como se diz que é" (como é definida pela tradição, os mais velhos, "a maioria", os "especialistas" ou as elites) . Comumente, esta maneira de conhecer anda junto a uma certa simplificação da realidade: parcelando-a e reduzindo-a até que se nos torne mais fácil compreendê-la, recordá-la, e nos orientar dentro dela e discorrer sobre ela.

Por um lado, isto é parte inevitável de toda fabricação de mapas, planos e outros guias. Todos nós, quando desejamos conhecer alguma coisa, fazemos algo assim: desenhamos um mapa, um plano, um roteiro de nossa realidade e aceitamos, sem discutir, boa parte daqueles mapas que recebemos, sem nos dar conta de nossos ancestrais, parentes, vizinhos e colegas. E simplificamos a realidade para que possamos nos orientar dentro dela. Tudo iria perfeitamente bem, se o cami­nho tomado fosse sempre construtivo para a humanidade e enquanto nossos mapas nos servissem para nos orientar por esse caminho.

Quando, pelo contrário, caímos sistematicamente em comportamentos destrutivos , para nós e para os outros; quan­do muitas vezes fracassamos em nossos bons propósitos; quando repetidamente nos achamos diante de resultados imprevistos e indesejáveis de nossas próprias atitudes, aí, então, talvez seja a hora de encetar, de outra maneira, a aventura de conhecer a realidade que nos cerca e da qual somos parte ... hora, provavelmente, de criticar e refazer nossos mapas; hora de nos esforçarmos para ver as coisas de maneira diferente da habitual.

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Sobre "outras maneiras" de ver as coisas, eu gostaria, precisamente, de falar nesta Segunda Parte.

Na Primeira Parte falei sobretudo acerca da maneira como a nossa experiência condiciona nosso modo espontâneo, "nor­mal", de ver a realidade. Agora, quero conversar um pouco sobre algo que só de leve abordei no final da Primeira Parte: a necessidade de refletir criticamente sobre como esta maneira espontânea de conhecer pode muitas vezes nos levar a resul­tados opostos àqueles que esperamos e de que necessitamos. As maneiras de conhecer que surgem "naturalmente" , sem reflexão, de nossa experiência, vamos denominá-las, simples­mente, conhecimento espontâneo. Os modos de conhecer que surgem, quando se reflete deliberada e criticamente sobre esse conhecimento espontâneo e sobre suas limitações, vamos denominá-los, como fazem muitos, conhecimento critico.

Não quero dizer com isto que algumas pessoas conheçam de maneira puramente espontânea, irrefletida, passiva e sim­plista, ao passo que outras conheceriam sempre de maneira reflexiva, crítica, criativa e ativamente. Não, em absoluto. Creio que em todos nós ocorrem ambos os "modos" de conhecer, entrelaçados , o tempo inteiro. Aquilo que varia em uma pessoa ou comunidade - segundo suas circunstâncias e decisões específicas - é a medida ou a freqüência com que fazemos o esforço deliberado de pensar a fundo (crítica e criativamente) acerca de nosso conhecimento da realidade. E me parece que isto depende mais dos estímulos coletivos e da solidez emocional das pessoas do que, por exemplo, de fatores como idade, grau de instrução escolar, nível de renda econô­mica, sexo, cultura, raça ou religião.

ALGUMAS DIMENSÕES DO PROBLEMA

Vou inicialmente refletir sobre a tendência, que julgo compartilhada por todos os seres humanos, a assumir sem muita discussão o conhecimento recebido e a simplificar a realidade em função de nossa experiência, indicando tanto algumas razões como diversos desafios dessa tendência, e ilustrando o tema com alguns exemplos. Depois, nos pontos seguintes, vou sugerir diversas maneiras possíveis de contra-

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balançar essa tendência, isto é, diversos caminhos entre outros muitos para estimular um conhecimento de tipo mais refle~vo, crítico e criativo da realidade.

Para que complicar a vida sem necessidade?

"Pão, pão; vinho, vinho!" reza um velho refrão espanhol. Sem dúvida, mas qual a relação do preço do pão com o preço do vinho? Até que ponto qualquer tipo de pão é igualmente bom para a saúde? E o vinho não poderá levar em certas circunstâncias à cirrose hepática e mesmo, tantas vezes, a um sem-número de problemas no lar? O cultivo do trigo e de outros cereais para a elaboração do pão e das uvas para fabricar o vinho terão algum impacto importante sobre o meio ambiente? E quais são as condições de trabalho para os lavradores e suas famílias? Essa exagerada confiança de alguns países em sua capacidade de importar cereais, em vez de cultivá-los para produzir o pão indispensável para a dieta popular, não trará para o povo o perigo de futuras fomes? ...

Limitar-nos a dizer "pão é pão e vinho é vinho" pode ser perfeitamente sensato e eficaz debaixo de certas circunstân­cias, mas nem sempre. De fato, hoje, em quase todo o chamado "Terceiro Mundo", boa parcela da população come­ça a sentir como é importante aprender a captar as complexi­dades e novidades de coisas tão simples e antigas - à primeira vista- como o pão e o vinho.

Claro que um problema já vem da própria língua que se fala desde criança, das próprias palavras usadas: "pão" e "vinho" (como também "ética", "pátria" e "democracia"), sendo palavras que já existem há milênios, dão a ilusão de se referirem a realidades que não mudam nunca, e frases como "em boca fechada não entra mosquito" dão a falsa impressão de transmitir uma verdade eterna, válida para qualquer pessoa e em qualquer tempo e lugar.

O certo é que, freqüentemente, parece que nós seres humanos temos a tendência a simplificar a realidade, a aceitar aquilo que aprendemos a ver como "real" sem querermos ver sua complexidade, desconhecendo suas complicações.

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Coisa perfeitamente natural! Afinal de contas, por que deveríamos nos preocupar, complicando a vida sem necessi­dade? Já boa parte de nossa vida real, prática, concreta- vida profissional, afetividade, relações familiares, problemas de subsistência etc. da maioria- é bastante difícil e complicada, para ainda por cima começar a buscar mais dificuldades, não é verdade? Seria como procurar "as cinco patas do gato I"

Dedicar-se a imaginar, descobrir e discutir as complexi­dades e os problemas da realidade é algo de que talvez todos nós sejamos capazes. No entanto, a maioria das pessoas não gosta disso. De fato, para muitos, dedicar-se a essa tarefa seria um luxo para o qual não há tempo nem energia ou, pior, uma espécie de vício "sadomasoquista" que só provocaria mais sofrimento, o que não tem muito sentido para a maioria.

Pouca gente encontra motivações suficientes para se dedicar à tarefa de conceber, analisar, expor e discutir as dificuldades e complicações da realidade. Quem? Ora, por um lado, pessoas que encontraram- às vezes desde a infância­estímulo e gratificação necessários para cultivar com prazer esta habilidade, sem necessidade de instrução formal a esse respeito. Por outro lado, pessoas que descobriram - de uma maneira entre milhares - a necessidade e a conveniência do estudo, da reflexão e discussão para enfrentar e resolver os problemas de suas próprias comunidades. E, enfim, aqueles que tiveram recursos para se tornarem profissionais, intelec­tuais, cientistas ou técnicos, desenvolvendo precisamente essas habilidades para com elas ganhar a vida. Só que, muitas vezes, estas últimas pessoas não sofrem na própria carne as dificuldades que estudam.

Além disso, a vida cotidiana da maioria das pessoas e comunidades está cheia de urgências, correrias e emergências que, literalmente, não deixam força nem ocasião para se dedicar a tarefas que exigem, justamente, tempo, energia ... como a tarefa de examinar, considerar, discorrer e dialogar acerca da complexa teia de aspectos e conexões de toda a realidade.

Assim, portanto, há razões de sobra para simplificar a realidade e aceitar sem muita discussão o conhecimento

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recebido através da experiência. E todo o mundo sempre fez assim, assim o faz ainda e continuará fazendo sempre o mesmo! Se não fosse assim, mas também se não houvesse gente que se dedica a investigar, refletir e discutir sobre as realidades que nos dizem respeito, há muito tempo a espécie humana teria desaparecido da face da terra. Entre outras coisas, porque, no caso contrário, não teríamos podido encarar com presteza e rapidez as situações em que a vida ou a morte dependem de decisões instantâneas e de ações imediatas. Exemplos: um motorista de táxi vê um pedestre cruzando a rua a poucos metros, enquanto ele vai a uns 50 km/h ... Que tal se o motorista se pusesse a analisar todos os aspectos possíveis da ocasião? Com certeza, o pedestre morreria! Em tal circunstância, refletir, decidir e agir têm que ser realizados em fração de segundos: é absolutamente necessário, portanto, que aí simplifiquemos a realidade com base na experiência. Apenas. Depois- sobretudo se a ação provocou algum resul­tado destrutivo - há de se refletir mais pormenorizadamente sobre o assunto. Situações análogas, mais ou menos graves, nós as vivemos, dia após dia, muitas vezes sem nos darmos conta ... pois nos dar conta, também, poderia ameaçar nossa vida ou nossa saúde mental.

Economistas, vendedores ambulantes, políticos, professo­res universitários, choferes, carpinteiros, enfermeiros, médi­cos, comerciários, crianças do grau primário, religiosas e religiosos, sacerdotes, torneiros ... todas as pessoas- de qual­quer idade, sexo, cultura, etnia, profissão, classe social, credo religioso ou ideário político - tendemos, portanto, constante­mente, a simplificar a realidade com base em sua experiência. E tendemos a fazê-lo tanto fora como inclusive dentro de nossa profissão, religião, família e moral. E propendemos a simplifi­car, portanto ... justamente por ser mais simples I Isto acontece porque- pelo menos à primeira vista- é mais fácil, simples, realizável, claro e rápido ver a realidade como "simples" e como até agora a viram outros do que procurar entendê-la com toda a sua complexidade. É ou não é assim?

Deste modo, o economista, ou candidato a Presidente, tende a fazer crer e, "no pior dos casos", ele mesmo chega a acreditar de verdade que a causa dos problemas do país é

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"uma só" (por exemplo, a corrupção administrativa do Gover­no anterior); ou que a solução do problema da inflação é "muito simples" (por exemplo, talvez desvalorizar de um só golpe a moeda em 400%); ou, enfim, que a superação da crise "só vai levar três anos" (por exemplo, privatizando as empresas esta­tais, liberando os preços e congelando os salários). Igualmente, a lavadeira de nossa rua pode tender a pensar que "a gente nasce boa ou ruim, e gente ruim só se endireita com a cadeia ou com a pena de morte!" O sacerdote da Paróquia, de maneira semelhante, talvez sinta, sinceramente, que "as relações se­xuais fora do casamento estão acabando com a sociedade". O menino de sete anos, filho de qualquer família nossa, talvez não tenha problema em afirmar que "quem estuda com apli­cação, e tira boas notas nas provas, será rico quando crescer". A doutora mais tarimbada do hospital mais famoso da cidade talvez acredite piamente que "a esterilização voluntária da mulher não produz nenhum efeito negativo, nem físico nem psicológico". E, finalmente, o encanador de meu prédio certa­mente aceitará a idéia segundo a qual, "de vez em quando, é preciso dar uma sova na criança para que aprenda a respeitar os mais velhos e ser, um dia, bom cidadão".

É mais cômodo, devemos reconhecê-lo, pensar que qual­quer realidade tem apenas uma ou duas causas (em lugar de dúzias delas!); que o semelhante é igualzinho; que todos aqueles que estudaram e ganharam um diploma profissional sabem muito bem o que estão dizendo ou fazendo em seu campo (e não que estão cheios de dúvidas , confusões e conflitos dentro de si mesmos); que sabemos perfeitamente quais as conseqüências futuras de nossos atos; que é melhor "não procurar as cinco patas do gato" nem "arranjar sarna para se coçar"; que a moral é uma só e está perfeitamente claro o que é o bem e o que é o mal e ponto final; que o caminho correto para a vida de qualquer ser humano é um só, reto, claro e perfeitamente realizável; que uma religião é ou verdadeira ou falsa e ponto final... e assim por diante.

Por que refletir a fundo sobre nossa realidade?

Nestes últimos anos que vivemos na América Latina- e também na África e Ásia - a própria realidade nos forçou a

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reconhecer as múltiplas conexões que qualquer coisa tem com todas as outras, e a necessidade de ir além das explicações recebidas ... Talvez por isso estejamos construindo, neste final de século, muitas novas maneiras de ver e conhecer nossa realidade (novos "mapas" ou "teorias" de nossa realidade) .

Um bom exemplo provavelmente seja o da inflação e as desvalorizações sucessivas de nossa moeda. Antes disso, na maior parte dos países latino-americanos, podia-se afirmar com relativa facilidade, por exemplo, que um salário de tantos "cruzeiros reais" (cruzeiros, cruzeiros novos, cruzados, cruza­dos novos ... ) dava para viver decentemente. Previa-se com alguma clareza quanto seria necessário poupar durante o ano para comprar, nas festas de Natal e Ano Novo, alguns presen­tinhos para as crianças. Confiava-se em "estudar, trabalhar e poupar" como garantia de alguma tranqüilidade na vida adul­ta. Prescindia-se facilmente das notícias econômicas, da co­tação do dólar e do ouro no mercado internacional, das variações nas taxas de juros bancários ou do índice inflacio­nário semanal ou mensal. O pão era pão, o vinho, vinho, e nenhum desses dois artigos tinha muito a ver com o outro .. . exceto porque muita gente gostaria, mas nem sempre podia, ter ambos na mesa ao menos uma vez por dia.

Hoje, nesta última década do século XX, já não vemos as coisas de maneira tão simples. Em mais e mais lugares, meninos e meninas sem escola e sem teto procuram saber, ao acordar, qual a cotação do dólar e do ouro ; calculam o aumento que podem aplicar ao preço dos cigarros importados ou dos caramelos que irão vender na rua naquele dia; decidem se vale a pena guardar parte do produto da venda para o dia seguinte ou se, ao contrário, seria mais vantajoso tornar a aplicá-lo"na compra de mercadoria ou convertê-lo em dólares; apressam­se a comprar quanto antes um estoque de três meses de algum remédio para um familiar doente; zombam do discurso do Presidente que convida os cidadãos a poupar; discutem aca­loradamente diversas teorias acerca do motivo pelo qual o Pastor da Igreja próxima denunciou a dívida externa como "castigo divino pelos pecados do mundo"; e vão dormir, tristes, desconfiando que a única maneira de chegar a ter uma

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bicicleta, como aquela que viram há alguns meses em uma loja do centro, será roubando-a ou vendendo drogas.

Isto é, as próprias dificuldades da vida cotidiana no meio da crise atual podem nos levar a não querer complicar ainda mais a própria vida refletindo sobre as possíveis causas e soluções para esses problemas. Ou podem nos impelir ao desespero e, em certos casos, a abraçar um grupo que nos dê certezas absolutas e hospitalidade afetiva. Ou, também, essas mesmas dificuldades podem nos estimular a suspeitar que , na realidade, tudo está relacionado com todo o resto. Depende (e depende certamente de uma imensa quantidade de fatores de todo o tipo).

Em certas ocasiões, então, e sobretudo se participamos de ações e debates sobre esses assuntos em ambientes onde encontramos estímulos para desenvolver essa capacidade nossa, nos interessamos ativamente pelos múltiplos aspectos, conexões e implicações da realidade contemporânea. De re­pente, quase, começamos a suspeitar e a meditar acerca do modo como algo tão "simples" como o preço do leite em pó tem muito a ver com o comércio internacional, a indústria militar, as relações diplomáticas do Vaticano, um golpe de Estado na Argentina, o suicídio de um empresório do interior, a possibilidade de minhas sobrinhas obterem um diploma na Faculdade, o ponderar a conveniência de começar a usar pílulas anticoncepcionais, a redução do pessoal da clínica de meu bairro etc . etc. etc.

Não vemos a realidade como simples ou como complexa simplesmente porque "assim nos dá vontade", por "puro acaso" ou por ter mais ou menos anos de escolaridade. Parece-me que não. Eu insinuaria ·que são as relações que estabelecemos em torno das dificuldades, novidades e com­plicações da vida real que nos levam ora a participar ativa­mente no exame atento dos complicados meandros de qualquer realidade, ora a nos conformar com uma visão sim­plista e simples da mesma, ora a nos convertermos a uma visão em radical ruptura com as tradições e expectativas dos que nos cercam mais de perto.

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Por outro lado, parece-me que quando- com uma visão comum e simples da realidade - fracassamos dolorosa e repetidamente em nossos esforços, podem surgir, entre outras muitas e bastante variadas coisas, perguntas cruciais como estas: Será que não estou enganado? Será que a realidade não é muito mais complexa e difícil de entender do que eu acreditava? Não será bom prestar atenção a isto e àquilo e mais àqueloutro? Será verdade que se deve tratar de ver as coisas de maneira mais imaginativa, criativa, nossa, pluralista, ao invés de nos amarrarmos ao que os outros disseram antes?

Vejamos, logo a seguir, algumas maneiras de ver a reali­dade de maneira mais crítica, mais reflexiva. Não se trata de "receitas para ver corretamente". Não tenho tais receitas nem acredito que alguém as possua, e por isso este livro não traz nenhuma!) São apenas algumas perspectivas que podem nos ajudar a penetrar nas difíceis complexidades da realidade.

Examinar a posição a partir da qual conhecemos

Com freqüência, falamos sobre a realidade - ou tentamos conhecê-la sem nos interrogarmos sobre o lugar de onde nos vem o interesse para penetrar em certos aspectos da mesma; ou como nossa experiência molda a imagem que fazemos daquilo que nos cerca; ou em que medida nossas emoções · condicionam a maneira como nos metemos na empreitada de conhecer o mundo etc. Claro, mais uma vez, é mais fácil e simples "conhecer" o mundo sem levantar essas complicadas questões .

Mas - aqui entre nós, sinceramente - será, porventura, nossa percepção das coisas verdadeiramente independente do lugar, do caminho, do ponto de vista de onde procuramos e dizemos conhecer as coisas? Permitam-me sugerir que, pelo contrário, e talvez sempre, aquilo que conhecemos e como o conhecemos depende, em grande medida, do contexto, do lugar, do trajeto percorrido, da perspectiva de onde procura­mos compreender a realidade.

Imaginemos uma pessoa que tenha visto poucos ciganos, ou não tenha amizades nem trato freqüente com esta gente, nem lido, visto ou ouvido quase nada sobre sua cultura, ou

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não tenha tido nunca um contato mais significativo com ciganos. Suponhamos que essa pessoa seja enviada como assistente social de um Ministério para investigar a situação de um bairro da cidade onde haja cerca de 30% de ciganos . E para sugerir o que o Ministério deve fazer diante da situação do bairro. As conclusões e recomendações dessa pessoa serão as mesmas de uma investigação feita por uma equipe de assistentes sociais com maior familiaridade e apreço pela cultura cigana?

Haveria alguma diferença se a pessoa que faz a pesquisa se apaixona perdidamente por um membro daquela comuni­dade cigana? E o que aconteceria se, ao contrário, a pessoa que dirige a pesquisa tiver sido assaltada já duas vezes por pessoas que "pareciam ciganas"? Vai haver alguma variação se a assistente social, encarregada da pesquisa, receber uma oferta de triplicar-lhe o salário para que se dedique mais a fundo a investigar o setor cigano do bairro? Ou se ela mesma descobrir que tal pesquisa pode ser aproveitada como tema para sua tese de doutorado, para um livro ou para se destacar nos congressos profissionais de sua própria disciplina? O que acontecerá com essa pesquisa e os seus resultados, se - pelo contrário - o pesquisador tem medo e preguiça para se dedicar a fundo em visitar o bairro em questão? Ou se, simplesmente, tem a certeza de que, faça o que fizer, não vai mudar nada, nem na realidade do bairro nem em sua própria vida? E que tal se aquele que faz a pesquisa é um cigano que não deseja que ninguém conheça suas origens, e tem certeza de que ser "cigano" é algo vergonhoso e primitivo, que deverá desapare­cer? Ou se urna empresa privada está interessada em que a comunidade seja despejada e, assim, sugere ao pesquisador, oferecendo-lhe ainda por cima uma polpuda bolsa de estudos, publicação da tese ou um bom emprego?

Em suma, nossa posição diante daquilo que desejamos conhecer marca profundamente o que e como conhecemos. Quando digo posi ção, estou me referindo às muito concretas circunstâncias físicas, emocionais, culturais, sociais, políticas e econômicas nas quais nos encontramos quando - conscien­Lemente ou não - procuramos conhecer alguma coisa. Essas

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circunstâncias variam de uma pessoa para outra e de um momento de nossas vidas para outro. Tais condições - claro -vão mudar também conforme o lugar, tempo, setor social, grupo étnico, conjunto lingüístico, tradição cultural, visão religiosa ou conjuntura política em que se vive.

Nossa posição não é algo, portanto, estático nem mera­mente individual ou simplesmente momentâneo . Não I Nossa posição é variável, dinâmica, mutável, e isso contribui para modificar aquilo que conhecemos e como conhecemos. Nossa posição é, além do mais , a posição que ocupamos em uma sociedade concreta, com seus idiomas, autoridades, evidên­cias, conflitos etc. e não outros. É a partir de uma comunidade - com os instrumentos de conhecimento e de comunicação a nosso alcance dentro de tal comunidade - que conhecemos aquilo que conhecemos. A nossa posição, enfim, é um mo­mento específico de uma vida individual, de uma biografia própria: é o resultado de uma busca - pessoal e coletiva- com vitórias e ganhos, acomodações, frustrações e anseios espe­cíficos . Nossa posição é um fragmento de um percurso, um pedaço de uma travessia, um trecho de um itinerário definido não apenas pelo passado, mas também por esperanças, dese­jos, temores, interesses e metas que nos impelem para o futuro de modos bastante característicos.

E não conhecemos somente a partir de nossa posição, mui particular. Pois essa nossa posição nos força a conhecer certas coisas (não todas) e de certo modo (e não de qualquer modo) .

É muito fácil dizer que isto somente se aplica ao conheci­mento "não científico". Por isso eu gostaria de sugerir- e não faltarão cientistas para concordar com a idéia

1 - que qualquer

tipo de conhecimento se acha marcado, condicionado, mol­dado pela posição concreta daquele que conhece . Mais ainda,

1. Toda a nova epistemologia feminista que vem sendo desenvolvida na última década, sobretudo nos EUA, tem como ponto de partida - creio eu - esta perspectiva. Em todo o caso, minha proposta deve muito a minhas próprias leituras dessa corrente. Veja, sobretudo, Mary Field Belenky: Women's Ways of Knowing. The Development of Self, Voice, and Mind (EUA. Basic Books 1986, 256 p)

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poder-se-ia dizer que, num certo sentido, todo conhecimento é também - entre outras coisas, embora não nos demos conta disso - uma forma de ver o mundo em relação conosco e de nos vermos a nós mesmos neste mundo do qual fazemos parte ativa2

.

Em todo o caso, gostaria de propor- para encerrar este ponto - algumas implicações da idéia segundo a qual a nossa posição condiciona o que conhecemos e o modo como o conhecemos .

Se levamos bem a sério esta idéia, creio eu, não basta então "olhar para fora de nós" na hora de conhecer a realidade que nos cerca. Antes, ao contrário, o esforço para conhecer criticamente nossa realidade talvez teria que implicar o esforço deliberado, constante, para examinar também quem somos, de onde viemos, o que sentimos e desejamos, o que tememos ou almejamos, e como esta situação concreta nossa repercute naquilo que conhecemos e como o conhecemos. Assim, po­deríamos nos interrogar sobre o que consideramos importante para conhecer - ou irrelevante - e como chegamos a vê-lo como taL Igualmente, poderia ser fecundo nos perguntar a quem e por que - e desde quando - consideramos como autoridades em matéria de conhecimento. E, pelo contrário, a quem e por que desprezamos como fontes do conhecer.

Além disso, valeria provavelmente a pena refletir pessoal e coletivamente sobre qual é a situação específica daqueles que reconhecemos como autoridades científicas: A partir de onde, apoiados por quem, em benefício de quem, com que proveito próprio e em que áreas tais autoridades "fazem ciência", "produzem conhecimentos"? Qual é a posição social, econômica, política, profissional etc., a partir da qual tais autoridades dizem conhecer? Quais vozes, interesses, tradi-

2. Desde os albores deste século, nomes famosos da Física- como Werner Heisenberg, por exemplo -insistiram em que aquilo que as ciências naturais medem não é um "objeto" exterior ao "sujeito" cognoscente. mas a relação entre ambos: entre um "sujeito" afetado por um "objeto" e vice-versa.

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ções, especialidades, habilidades, conquistas, técnicas e co­nhecimentos são, ao contrário, desautorizados por essas au­toridades? Em que outros aspectos se diferenciam "autoridades" e "desautorizados"? Seria algo casual?

No melhor dos casos, interpelar-nos acerca de tais coisas nos ajudará , por um lado, a não aceitar como "conhecimento", sem mais nem menos, coisas que podem e devem ser exami­nadas muito mais a fundo. E, quem sabe, por outro lado, um exercício como este talvez nos leve a apreciar muito mais aquilo que nós mesmos- e muitos outros- temos a dizer sobre o que é o real, o possível, o desejáveL e sobre o modo como chegar não somente a conhecê-lo, mas também, alcançá-lo, desfrutá-lo e enriquecê-lo em comunidade.

Estudar a história daquilo que queremos conhecer

Às vezes fazemos perguntas como estas: "O que é o comunismo"? e esperamos respostas simples e simplificadas para as perguntas ... respostas como, por exemplo: "O comu­nismo é um sistema econômico e político, inspirado nas idéias de Marx e Lênin, como ocorreu na União Soviética de 1917 a 1991 . Nele, toda a propriedade pertence ao Estado, há um só partido político e não se permite a religião". Fácil, elementar, não? Todavia, essa resposta nos serve bem pouco para enten­der coisas como as disputas entre países, partidos e pessoas que também recebem o nome de "comunistas". Nem nos serve muito essa definição quando se procura compreender por que tantos cristãos que trabalham com grupos populares são acusados e perseguidos como "comunistas". Enfim, essa idéia de "comunismo" não nos explica o fascínio que idéias e partidos comunistas muitas vezes exercem entre intelectuais, jovens e trabalhadores.

Vou sugerir algumas possíveis falhas nessa definição de "comunismo": algumas das possíveis razões pelas quais uma definição como essa deixa sem resposta muitas outras per­guntas também relacionadas com o tema.

Em primeiro lugar, nem a pergunta nem a resposta diz coisa alguma acerca de quem responde, nem de como tem sido a relação daquele que responde com pensamentos, par-

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tidos, países e pessoas "comunistas". Mas isto é, sem dúvida, Importante, como sugerimos no item anterior. Afinal de con­tas, uma pessoa que sofreu debaixo de um regime chamado "comunista" (como aconteceu com o Papa João Paulo II na sua Polônia natal, ou com o escritor Alexandre Solshenitsin na R~ssia) não terá a mesma opinião sobre o comunismo qu~ alguem que tenha sido, pelo contrário, perseguido por ser supostamente "comunista" (como as religiosas norte-america­nas de Maryknoll, assassinadas em El Salvador, ou a cantora Mercedes Sosa na Argentina). Pelo contrário, toda pessoa destacará numa realidade qualquer aqueles aspectos- positi­vos ou negativos - que mais marcaram sua própria relação pessoal com essa realidade.

Neste sentido, eu gostaria de sugerir que - na hora de aprofundar nosso conhecimento de uma coisa qualquer - é preciso rever a fundo qual foi a relação de quem nos informa (autor, equipe, instituição etc) com a realidade que desejamos conhecer Este é um primeiro aspecto histórico que me parece mteressante levar em conta: a história da relação de nossas fontes de conhecimento com a realidade que pretendemos conhecer.

Mas agora, neste ponto, gostaria de ir mais longe e ainda sugenr o seguinte: pode ser útil, para enriquecer nosso conhe­cimento de uma realidade qualquer, reconstruir a história dessa própria realidade que queremos conhecer e também a história da linguagem (dos termos, das palavra~) com q~e falamos a respeito dela. Voltemos agora ao nosso exemplo do "c~m~nismo" : De onde vem esta palavra? Em que idioma, pms, epoca e grupo se forjou o termo? Que significado parece que lhe foi dado então? A que se opunha, a que se associava? ~uais eram então os sinônimos e os antônimos dessa expres­sao? Oue transformações vem sofrendo essa palavra, seu uso e seu sentido? Onde, quando, em que circunstâncias sociais políticas, econômicas, étnicas, lingüísticas, geográficas mili~ tares, religiosas? '

_ Todas essas perguntas, é claro, exigem pesquisa e refle­xao, temp~ e esforço: tornam muito mais difícil e complicada a resposta aquela pergunta original ("O que é o comunismo?"). Mas, também, esse tipo de pergunta pode nos ajudar a

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Carly
Realce

enriquecer o conhecimento daquelas coisas que realmente nos interessa conhecer mais a fundo.

, Vejamos outro exemplo. Várias pessoas podem travar um debate sobre a questão, digamos, se o Papa é ou não "infalí­vel" . O debate pode terminar com a divisão e o conflito entre os membros do grupo: uns acharão que sim, outros que não, e alguns dirão estar ainda em dúvida. Mas, no final das contas, a polêmica pode terminar sem que ninguém tenha enriquecido em nada seu conhecimento sobre a história da Igreja, do papado e do conceito de infalibilidade pontifícia.

Uma controvérsia como essa talvez se torne muito mais interessante e enriquecedora, se incluir preocupações como estas : De onde é que vem o título de "Papa"? A quem, onde, quando e com que sentido se aplicava esse título a um membro da Igreja? Este é um título que se aplicou sempre e exclusiva­mente aos bispos de Roma? E, em caso contrário, desde quando se aplica tal título aos bispos católicos de Roma? E a ''infalibilidade"? De onde é que vem esse termo? Quando, onde e por que se começou a falar acerca da "infalibilidade pontifícia"? Quando, como, por quem e em que circunstâncias foi declarada essa "infalibilidade do Papa"? Que definição recebe essa "infalibilidade do Papa" na declaração? Quem, dentro e fora da Igreja Católica, criticou esse dogma da "infalibilidade pontifícia"? Quem foi contra ele? Com que argumentos? Que discussões e opiniões surgiram nos últimos anos entre os teólogos sobre esse tema? Houve alguma inovação a esse respeito. introduzida por João XXIII, Paulo VI ou pelo Concílio Vaticano II? Alguém abandonou a Igreja Católica por causa da declaração do dogma da "infalibilidade pontifícia"? Por quê? E as outras Igrejas cristãs ... que opiniões desenvolveram acerca do Papado e da "infalibilidade pontifícia"?

Muitas vezes, os grupos humanos se dividem ou se unem contra as expectativas ou os planos de seus dirigentes: nossas lutas fracassam inesperadamente ou, ao contrário, consegui­mos coisas diferentes daquelas que estávamos buscando. Nossos sonhos se frustram, postergam-se indefinidamente, modificam-se ou se realizam do modo mais surpreendente. Às vezes isso acontece, precisamente, porque nos ocupamos

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unicamente da realidade imediata e presente que desejamos resg~~ar, defender ou transformar - sem prestar atenção à h1stona dessa realidade. Tal realidade pode ser o desemprego, a cri~in~lidade crescente, a música clássica, a separação ecleSiastlCa entre o clero e os leigos, a destruição da camada protetora de ozônio, uma crise amorosa pessoal, a perestróika, a Sida (Aids), uma filha toxicômana, ou qualquer outro proble­ma. O que eu gostaria de sugerir é que, em todos esses casos, se queremos compreender as tendências, possibilidades e dificuldades de uma realidade determinada, pode ser de gran­de proveito examinar o processo histórico de onde essa reali­dade provém e do qual essa mesma realidade é apenas um momento.

Contrastar o familiar com o diferente

Na Primeira Parte do livro falamos de nossa tendência a não lidar ~om aquilo que achamos estranho, incompreensível, absurdo. E mais simples, sem dúvida, fazer como se isto não existisse ... Seria essa atitude, porém, sempre a melhor?

Vamos tomar como exemplo um casal que descobre que a filha está grávida, sem ser casada. Em nossa sociedade, esse casal poderia facilmente perceber esse fato como algo ruim, escandaloso, pecaminoso, inaceitável. Por conseguinte, o ca­sal poderia expulsar a filha de casa e recusar ajudá-la de qualquer forma . Desesperada, cheia de vergonha e abandona­da à própria sorte, a moça poderia até preferir- como às vezes acontece - suicidar-se. Ninguém, ao que parece, sairia ga­nhando com tal situação. Mas não se poderiam ver as coisas de outro modo?

Por exei?plo, se isso acontecesse no meu país, a Vene­zuela, podenamos nos perguntar se, na realidade, a gravidez dessa moça é algo tão extraordinário assim e escandaloso .. . pois, quando se examinam bem as estatísticas do país, mais ela metade dos venezuelanos nasce de gente que não é oficialmente casada. Não quero dizer que se deva aceitar sem mais aquilo que a maioria faz. Não! Mas quero sugerir que nqmlo que mmta gente imagina que é totalmente anormal e oxc,epcional pode ser muito mais comum do que lhe parece ... tl ve-lo como algo "mais comum do que lhe parece" pode nos

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ajudar a tratá-lo de modo mais equilibrado, saudável e provei­toso.

, Se examinamos, além disso, como a maternidade e a família são compreendidas em outras sociedades, atuais e passadas, podemos adquirir outra perspectiva a esse respeito. Por exemplo, em quase todas as nações e religiões da huma­nidade se considerava suficiente o consentimento de certas pessoas adultas para que duas criaturas humanas pudessem viver juntas e ter descendentes. Em muitas sociedades isso era celebrado com uma festa .. . mas não era a celebração que tornava a união válida. Ao contrário, a união é que dava sentido à festa. Nas comunidades católicas - até poucos séculos atrás - matrimônio válido era aquele em que uma mulher solteira e um homem solteiro, católicos, capazes de ter filhos e que não tivessem grau de parentesco próximo, deci­diam viver juntos e ter filhos ... , quer os pais soubessem ou não, apoiassem ou não a união, fossem ou não preenchidos certos papéis pelos contraentes, e o ato nupcial se celebrasse ou não dentro de uma igreja ou na presença de um padre! Até hoje, certas comunidades cristãs na Holanda conservam ainda a tradição de só permitir o matn·mônio das filhas quando estiverem grávidas, garantindo assim continuidade, comuni­dade, herdeiros etc. Isto é, noutras circunstâncias, a gravidez daquela moça teria sido celebrado como agradável comprova­ção de que devia certamente casar-se e, inclusive, como prova de que de certo modo já estava até casada!

Insisto novamente: a minha intenção aqui não é a de dizer que porque em outro lugar e noutra época se faz ou fez alguma coisa, então deveremos nós também fazer assim. Não. Nem quero sugerir que "tudo é relativo e, portanto, qualquer coisa é válida". Também não. Quero, porém, insinuar que pode ser bom parar e examinar calmamente a nossa realidade de diversos pontos de vista, compará-la com realidades contem­porâneas, contrastá-la com realidades diferentes, questionar nossa própria perspectiva espontânea e imaginar criativamen­te outras possíveis maneiras de ver as coisas. Esse esforço poderia nos ajudar, precisamente, a ver de modo mais claro o que é que queremos e por que; a discernir até que ponto e

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através de que caminhos podemos alcançar o máximo daquilo que realmente queremos; e, então, projetar aquelas ações que pareçam levar ao que buscamos. Esse mesmo esforço de tentar ver a realidade através de prismas diferentes dos "nor­mais" poderia talvez nos ajudar a compreender, e superar melhor, os fracassos ; avaliar e superar as circunstâncias que tantas vezes frustram nossos sonhos, projetos e planos; e discernir e aproveitar mais a fundo as novidades inesperadas que apareçam em nossos caminhos.

Usualmente, portanto, nossa tendência é analisar os "fa­tos" sem contrastá-los com realidades diferentes nem pareci­das e sem nos colocarmos perguntas "anormais". Neste sentido, eu gostaria de propor que tentemos, com mais fre­qüência, "sair" de nossa realidade "normal": que comparemos nossa realidade com muitas outras, sobretudo com realidades muito diferentes da nossa; que façamos a nós mesmos per­guntas criativas, imaginativas, "esquisitas" acerca da realida­de que conhecemos; e que tentemos conhecer tudo aquilo que questione a idéia segundo a qual as coisas "sempre foram assim" . Talvez este modo de "conhecer criticamente" sirva para descobrir modos inéditos de conservar, resgatar, trans­formar ou superar aquilo que nos interesse de nossa realidade.

Isto não significa trabalhar sem método, desorganizada­mente. Não. Conhecer a realidade exige, sem dúvida, levar a sério os métodos de pesquisa estabelecidos: conhecê-los, dominá-los, saber usá-los e aproveitá-los. Mas conhecer a realidade exige, por outro lado, ser capaz de perceber também as limitações, rigidezes e incoerências desses mesmos méto­dos; ser. portanto, capaz de corrigi-los, enriquecê-los, supe­rá-los, indo até ao ponto de fazer-se capaz de conceber novos métodos, mais aptos para oferecer novas soluções para nossos novos problemas.

É claro que, infelizmente, essas coisas não são fáceis. Precisam de recursos emocionais, culturais , econômicos, po­líticos e sociais, que custa muito conquistar e preservar. Mais um motivo, talvez, para continuar refletindo sobre esses as-

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suntos, sabendo que para nenhum deles existe uma resposta fácil.

Colocar-se na pele do outro

De fato, muitas vezes nem é preciso ir muito longe para encontrar outras perspectivas, outros pontos de vista, outros modos de perceber e de abordar realidades que consideramos importantes. Em nosso próprio bairro residencial, família, partido, empresa, igreja, certamente existem pessoas ou gru­pos que captam muitos aspectos da realidade de maneira bastante diferente - às vezes até contrária - daquela como a vemos, não é verdade? E se não, certamente em nossa cidade ou nosso estado, região ou país, haverá muita gente que não vê as coisas do mesmo jeito que eu, não é verdade?

Isto parece acontecer em maior escala em sociedades grandes, complexas, heterogêneas, onde a população vem de raças, países, culturas e religiões variadas , como se vê prati­camente em todas as nações da América e da Europa... e talvez de todas as grandes cidades do mundo. E se tem a impressão de que tal multiplicidade e choque de perspectivas se dá ainda mais onde existem relações desiguais de poder econômico, militar, cultural, político; isto é, onde ocorrem relações de opressão e dominação entre setores diversos da mesma sociedade . E este é provavelmente o caso de todas as sociedades "modernas" hoje existentes.

Parece. Assim, é perfeitamente possível que a esmagadora maio­

ria dos trabalhadores de um país qualquer (empregados ou desempregados) e suas famílias vejam como catástrofe espan­tosa uma declaração do governo congelando todos os salários durante um ano. Ao mesmo tempo, pode ser que uma boa parte dos grandes empresários do mesmo país receba esta medida com grande alvoroço e alegria, e até prestem home­nagem ao ministro da economia, num ato de agradecimento . Simultaneamente, é provável .que outros setores do mesmo país (profissionais liberais, intelectuais, técnicos, comercian­tes, banqueiros e pequenos empresários) apresentem maior variedade de pontos de vista. Para alguns, o congelamento de

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salários será algo sem importância (por exemplo, para aquele que não sabe ainda que conseqüências isto terá em sua vida). Para outros, será uma coisa "dolorosa, mas necessária" (so­bretudo quando têm esperança de que as coisas serão melho­res depois de um ano e se esse congelamento não ameaça sua própria sobrevivência e de seus entes queridos) . Para outros, pode ser algo bom "mas com inevitável custo social" (talvez vejam as coisas deste jeito os assessores econômi.cos do governo e boa parte dos empresários). Finalmente, poderá haver quem veja este congelamento como "uma política intolerável do Governõ que deve ser derrotada pela força das armas" (e aqui podem coincidir não somente guerrilheiros de esquerda como também militares ansiosos para "pescar em águas turvas") .

Diante de opiniões tão diferentes3, quem é que tem razão?

Permitam-me, aliás, destacar que esta pergunta: "Quem é que tem razão?" talvez seja a pior pergunta que poderíamos fazer diante de uma variedade de opiniões como a mencionada acima.

Em suma, aonde nos leva essa pergunta? De modo geral, irá nos conduzir apenas a escolher uma das opiniões preexis­tentes, rechaçar as outras e não contribuir em nada de novo para a solução do problema.

Melhor, talvez, seria perguntar: por que, como e entre quem surge cada uma dessas perspectivas? Quem e como alimentam cada uma dessas perspectivas? Que tipos de ação e com que resultados acompanham cada uma dessas maneiras de perceber?

3. E se existe hoje uma ciência onde ocorre uma variedade de opiniões tão grande ou maior, é na ciência econômica. Diante da crise econômica atual, até os economis­tas conservadores americanos têm uma incrível diversidade de opiniões acerca da natureza da crise: suas causas. quando e onde começou; como se está desenvol­vendo e por que; para onde nos leva e quais seriam os possíveis remédios a curto, médio e longo prazos para superá-la. Basta ler os escritos e declarações dos Secretários do Tesouro de Reagan e Bush para confirmá-lo.

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Carly
Nota
parei aqui

Que interesses conflitantes se acham por trás de cada uma dessas visões de realidade? Que relações de poder, de força, caracterizam as relações entre essas idéias em conflito?

É bem possível que aprendamos mais e desenvolvamos melhor a nossa capacidade de reflexão crítica nos pondo seriamente este outro tipo de perguntas, ao invés de simples­mente "tomar partido". Não. Na realidade, creio que, em situações como esta, "não tomar partido" é, realmente, a maneira mais cômoda de tomar partido contra aqueles que vão sair perdendo. O que eu quero realçar é que não basta tomar partido (sobretudo se tomamos partido do lado que deve perder): é preciso ir mais longe e tentar compreender a lógica daqueles que vêem a coisa de maneira diferente; procurar captar o que é que se vê de outras posições que não vemos da nossa; tentar entender aqueles, como e por que são atraídos a uma maneira de ver as coisas diferente daquela que nos parece correta.

Talvez um esforço constante para analisar deste modo a pluralidade de perspectivas sobre uma matéria nos ajude, ao menos de vez em quando, para compreender alguns de nossos fracassos e derrotas. Talvez assim também poderemos enten­der, colocando-nos em outras perspectivas, vários de nossos próprios avanços e conquistas. E, finalmente, no melhor dos casos, este exercício nos serve para melhorar nossos mapas da realidade e superar alguns dos obstáculos que nos impedem de chegar aonde queremos.

Mas nem toda pluralidade de perspectivas precisa ser sempre conflitiva. As diferenças não precisam ser sempre "más" . A unanimidade não é sempre necessariamente melhor que a multiplicidade4

. As discrepâncias não precisam ser sempre resolvidas em termos de "vencedores" e "vencidos".

4. Alguns amigos brasileiros me contaram que no Brasil um Autor (Nelson Rodrigues:

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Nota do Trad.) costumava dizer: "Toda unanimidade é burra". Nesta mesma ordem de idéias, um intelectual dos EUA dizia que "quando todo o mundo pensa a mesma coisa. ninguém está pensando" de fato.

Pode haver - e muitas vezes existem - outras formas de considerar e manejar a variedade e a divergência de perspec­tivas. Mas, para isso, é necessário "colocar-se na pele da outra pessoa", dialogar, tentar compreender de verdade, por dentro e a fundo, as diversas maneiras de ver uma mesma realidade.

Permitam-me concluir o presente tópico com esta idéia: quando nos achamos diante de versões diferentes de uma mesma realidade, tendemos a pensar que somente uma delas é certa. Quem sabe não seria melhor se, em vez de "decidir" apressadamente "qual é a certa" , examinar o que há por dentro e por trás de cada opinião diferente. Talvez. Não quero dizer "suspender indefinidamente a ação até examinar todas as posições em jogo". Não! Além de ridículo e impossível, isto seria contraproducente para qualquer grupo ou pessoa em situação de emergência e/ou de conflito desvantajoso. Quero certamente sugerir que é de elementar necessidade ética não eliminar nem excluir aqueles que vêem as coisas de maneira diferente: é mister reexaminar cuidadosamente o que existe por dentro e por trás de visões diferentes da nossa. Talvez isto nos ajude não apenas a construir uma sociedade mais justa e humana - mais carinhosamente respeitadora da pluralidade e da diferença - mas, também, a ver mais fundo em nossas próprias razões e nos tornar assim capazes de corrigir, enri­quecer e transformar construtivamente nossas relações e ações com outros seres humanos.

Rever calmamente nossas convicções e posições

Quando estamos gravemente preocupados com uma cir­cunstância nova, geralmente nos precipitamos - sozinhos ou em grupo - para procurar lhe dar uma solução imediata. Assim, por exemplo, podemos achar que é preciso lançar-se a um protesto de rua a fim de fazer pressão por melhores salários ... mas acabar derrotados, presos e desempregados no final do ato de protesto. Quando, ao contrário, gostamos da situação em que nos achamos, ou estamos certos de que não vai mudar em nada, é bem provável que nos oponhamos a tudo aquilo que tente modificar essa situação e que nos neguemos a ver os processos que podem ser desencadeados

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por mudanças radicais da situação. Talvez alguma coisa parecida tenha ocorrido com os líderes de partidos e governos comunistas na Europa Oriental: acostumados comodamente ao p.oder e doutrinariamente seguros de que o socialismo não poderia ser derrubado nunca, a partir de dentro, pelos próprios trabalhadores, nunca prestaram séria atenção ao descontrole geral crescente. Por fim, depois de fracassar muitas vezes nos esforços para mudar uma situação destrutiva, é comum que abandonemos a luta, que nos resignemos à condição em que nos encontramos e não aproveitemos as novas ocasiões de mudança que poderiam surgir. É o que acontece com família­res de alcoólatras que chegam inclusive a defender o alcoóla­tra, negando a necessidade de mudanças radicais, tanto nele como na família, e o confirmam na sua tendência a culpar sempre "os outros" pelos seus próprios problemas e os de sua famí.lia.

Parece, portanto, que quando estamos demasiadamente metidos em determinada realidade; quando estamos profun­damente comprometidos com uma instituição, comunidade ou luta; quando estamos profundamente assoberbados ou atraídos por alguma coisa ou por alguém ... então nos é muito difícil distinguir, discernir, separar aquilo que de fato está acontecendo daquilo que aprendemos a ver e esperar, do que gostaríamos que acontecesse, do que julgamos que "deveria ser", daquilo que tememos e do que estamos acostumados a ver acontecer.

Resumindo a questão (embora o tema seja muito mais complexo), quando uma coisa pouco ou nada nos interessa, não nos damos ao trabalho de estudá-la ou analisá-la a fundo. Mas quando uma realidade determinada muito nos interessa, então tendemos a "não ver senão aquilo que nos convém", e a analisar as coisas de maneira "interessada" . Muitas vezes saltaremos às pressas do descrever e analisar a realidade "objetivamente" .. . e logo nos poremos a julgar aquilo que acontece como "bom" ou "mau", como "impossível" ou "es­candaloso" ou "calúnia" etc., e a agir em conseqüência.

Faz alguns anos, uma instituição católica venezuelana foi encarregada de fazer uma pesquisa sobre o uso de anticon-

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cepcionais na principal maternidade do país. A pesquisa constatou que a maioria das mulheres venezuelanas não tinha a menor informação acerca da doutrina oficial católica sobre os anticoncepcionais . A pessoa responsável pela pesquisa ficou profundamente aborrecida: informou os pesquisadores que os bispos não poderiam ser ofendidos com resultados desse tipo e que seria necessário refazer a pesquisa de outra maneira.

Não creio que seja realmente possível separar totalmente os nossos valores, interesses, emoções, da "análise objetiva" da realidade. Aliás, não acredito que isso seja realmente conveniente. Mas acho de fato muito importante reconhecer que os nossos princípios, desejos e sentimentos não só nos permitem captar aspectos da realidade - que talvez nos seriam invisíveis de outro modo - mas também, com bastante fre­qüência, nos cegam e impedem de ver as coisas reais que podem nos incomodar, nos angustiar ou ameaçar nossas vidas. E, paralelamente, podem nos induzir a ver como reais ilusões e fantasias que surgem de nossos desejos e temores.

Mas não estou querendo sugerir que se faça uma "análise neutra e objetiva, livre de valores" (não creio que isto seja possível nem desejável) . Nem proporia tampouco que coloque­mos nossos princípios e crenças "entre parêntesis", como se não existissem (parece-me, de novo, que isto não é exeqüível nem desejável). Mas eu gostaria, isto sim, de afirmar, em primeiro lugar, a possibilidade- e até, muitas vezes, a conve­niência e mesmo a exigência ética - de reconhecer explicita­mente, em diálogo com nossa comunidade, quais são os valores, interesses, costumes e emoções que caracterizam nossa vida e a nossa percepção do mundo, e em que medida os assumimos e queremos praticá-los. A seguir, em segundo lugar, analisar em que grau e em que áreas essa visão nossa póde nos cegar diante de certas coisas que são reais e, pelo contrário, nos fazer ver como reais certas coisas que não o são, assim como também nos levar depressa demais da análise à ação. E, finalmente, em terceiro lugar, examinar quais são os obstáculos reais para a realização de nossos valores e quais

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são os recursos com que realmente poderíamos contar para realizar nossos planos, projetos e sonhos.

Ninguém está sozinho no mundo. Nossa maneira de conhecer a realidade- e, portanto, de agir na realidade- pode afetar gravemente outros seres humanos. Ao menos por isso. temos a permanente responsabilidade ética de examinar os pressupostos e as implicações do nosso conhecimento - em diálogo com os outros - especialmente com as pessoas real ou potencialmente atingidas por nosso conhecimento e por nossos atos.

Neste sentido, julgo importante desenvolver nossa capa­cidade pessoal e coletiva de distinguir, por um lado. os pro­cessos que realmente ocorrem independentemente de nossa visão de realidade (e que, de certo modo, condicionam aquilo que é provável, possível, e dificilmente alcançável) e, por outro lado, nossos processos subjetivos (isto é, nossos desejos. valores, intenções, projetos etc.). Digo distinguir e não "sepa­rar" porque tenho perfeita consciência de que as realidades com as quais nós seres humanos estamos em relação, aquelas que nos interessam, são urna complexa combinação de "sub­jetividade" e "objetividade". De fato. nossa subjetividade (isto é, nossa maneira de ver o mundo, nossa vida interior etc.) é constantemente afetada por fatores "exteriores". "objetivos". E vice-versa: nossa subjetividade é parte da realidade "exte­rior". "objetiva" ... afeta esta mesma realidade, influi sobre ela e a transforma.

Vamos tomar o racismo como exemplo. Em princípio, poderíamos pensar que existem pessoas que são racistas e outras que não são, e que isto é uma questão "subjetiva", de valores pessoais, da visão do mundo de cada um. Isto, sem dúvida, está parcialmente certo: ser ou não ser racista depende das idéias acerca da realidade, de atitudes interiores diante daqueles que vemos como diferentes. Mas essa dimensão "subjetiva" do racismo geralmente está ligada a realidades e processos objetivos. Por um lado, em muitas sociedades existem fatores objetivos que contribuem para produzir e reforçar atitudes. relações e condutas racistas (por exemplo, filmes onde se apresentam os índios como seres inferiores;

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pressões para que um membro da família não se case com uma namorada negra; piadas ridiculizando os judeus; lincha­mentos de latinos etc.). E, por outro lado, aqueles que assu­mem uma visão racista de um grupo social, geralmente terão também comportamentos racistas com conseqüências suma­mente "reais e objetivas": negarão emprego a uma jovem indígena; darão nota inferior a um aluno judeu; recusarão as abordagens amistosas de um colega negro; ficarão de braços cruzados diante da deportação de um grupo de refugiados asiáticos; votarão em um candidato que prometer fechar as fronteiras nacionais à entrada de imigrantes latino-americanos etc.

Qualquer "separação", aí, entre "subjetividade" e "objeti­vidade", me parece pouco fecunda. No entanto, pode ser proveitoso (para compreender o que está acontecendo e agir eficazmente contra os processos destrutivos que nos atormen­tam) distinguir, por um lado, os processos "objetivos" (que existem independentemente de nos serem convenientes ou não) e, por outro, os processos "subjetivos", que brotam de nossos desejos, esperanças, emoções e intenções. Talvez -oxalá! - o fato de distinguir mais claramente e com maior freqüência estas facetas da realidade nos ajude a compreender melhor a unidade real entre "subjetividade" e "objetividade", suas complexas inter-relações.

Talvez assim compreenderemos melhor como e por que tendemos tanto a nos enganar e nos auto-sabotar. .. e chega­remos a descobrir como as coisas podem se tomar diferentes e até melhores para todos .

Em certo sentido, insisto de novo, quero sugerir que toda análise da realidade "exterior" talvez devesse entremesclar -se com uma "auto-análise". tanto pessoal como comunitária. Isto é,_ deveríamos refletir criticamente sobre o modo como nós mesmos contribuímos para construir realidades que, mais tarde, desconhecemos e rejeitamos. O pai de família que castiga brutalmente a "desobediência" do filho de sete anos, e ao mesmo tempo protesta veementemente contra as torturas da polícia política infligidas aos presos da oposição, não está -sem perceber nem querer- gerando, repetindo e justificando

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a tortura como forma de impor aos mais fracos a opinião dos mais fortes? O movimento político que propõe somente "vote em n?sso candidato!", como a solução contra os males do sistema e do governo presentes, não estará de certo modo alimentando a passividade, o paternalismo, o messianismo e o individualismo que tanto contribuíram para multiplicar aque­les mesmos males? Seja como for, aquilo que eu quero desta­car é que pode ser conveniente rever mais a fundo e mais vezes nossas convicções e posições ... , a fim de ver até que ponto, de verdade, nossas maneiras de conhecer, de ver o mundo, são ou não adequadas para gerar o mundo com o qual sonhamos e no qual gostaríamos de celebrar a vida.

BREVE SÍNTESE DO ASSUNTO

Nós, seres humanos, costumamos preferir as operações simples e simplificadas às complicações e dificuldades, sobre­tudo se estas são de algum modo dolorosas. Assim, quando contemplamos a realidade, tendemos assiduamente a vê-la da forma como nos habituamos a crer que é, a percebê-la como se fosse fácil de entender, e mais ainda se nos sentimos gravemente pressionados a agir nela.

É, sem dúvida, mais fácil e cômodo, por exemplo, classi­ficar as ações em "boas e más", as religiões em "verdadeiras e falsas", os outros em "preguiçosos e trabalhadores" (ou em "honestos e corruptos", "opressores e oprimidos"), os sistemas políticos em "capitalismo e comunismo" (ou "democracia e ditadura", "modernos e subdesenvolvidos" etc.); crer que todas as coisas têm apenas uma causa e apenas uma solução; convencer -se de que quando várias pessoas pensam de modo diferente somente uma (ou nenhuma) está com a razão; juntar-se sobretudo àqueles que vêem as coisas "como a gente" ; pensar que se não há uma verdade única- eterna e absoluta - então "vale tudo", "tanto faz"; deve-se confiar certamente nos "peritos", nos "cientistas" etc.

E tudo isso é, inquestionavelmente, mais fácil e cômodo do que usar constantemente nossas capacidades pessoais para duvidar daquilo que parece natural e óbvio; nos questio-

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nar sobre aquilo que não é claramente visível; criticar as opiniões predominantes em torno de um assunto qualquer; nos juntar a outras pessoas para o intercâmbio de informações e idéias a respeito de um tema importante; investlgar a fundo uma realidade ao mesmo tempo em que participamos nas lutas para transformá-la; levar a sério pontos de vista diferentes dos nossos; cotejar a nossa percepção com realidades e teorias que nos obriguem a questioná-la; e, por fim, permanecer abertos à possibilidade de criticar, enriquecer e transformar nosso modo de ver e viver a vida.

Questionar-se a respeito de tantas coisas- e compartilhar essas e outras questões com aqueles que nos cercam- pode, facilmente, fazer com que nos sintamos inseguros e confusos. Exige, além disso, recursos que são difíceis de obter e preser­var (como espaço, tempo, energia, apoio comunitário, auto­confiança etc.) .

Todavia, não será por simplificar demasiadamente a rea­lidade que tantas vezes nos achamos perdidos, frustrados, sem capacidade para compreender nem superar nossos problemas pessoais e comunitários?

Talvez. Pelo menos esta era a minha hipótese nesta parte do livro. E o que eu quis sugerir é que pode haver ocasiões em que a reflexão critica nos ajudará a sair de muitos atoleiros, tanto individuais como comunitários.

E aqui, nesta parte do livro, propus apenas alguns poucos modos de exercer e desenvolver nossa capacidade de conhe­cer criticamente: nos interrogar sobre a maneira como nos temos relacionado habitualmente com as realidades que que­remos conhecer; sondar a história dessas mesmas realidades e as diferentes formas como foram vistas através de sua história; explorar no passado ou em sociedades diferentes outras maneiras possíveis de conceber e relacionar -se com realidades semelhantes; examinar a fundo diferentes perspec­tivas vigentes e controvérsias que hoje se travam em torno dessas realidades ; e refletir autocriticamente a respeito de como nossos próprios interesses e escalas de valores podem ofuscar nossa capacidade de captar aquilo que realmente nos interessa conhecer.

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Qualquer pessoa que ler esta obra poderia, e talvez deve­ria, aproveitar a ocasião para desenvolver sua própria capaci­dade. para a reflexão crítica ... criticando este livro e esta parte também! Neste sentido, pediria que pensassem o que falta aqui, o que está demais, o que deveria ser corrigido e o que poderia ser melhor explicado5

.

5. E se assim o desejarem. eu agradeceria que essas críticas e sugestões me fossem enviadas para o seguinte endereço: Apartado 17-615 Parque Central, Caracas 1015-A. VENEZUELA. Embora eu não possa prometer uma resposta. garanto que vou ler pausadamente e com respeito qualquer correspondência. levar a sério aquilo que for sugerido e tentar no mínimo acusar recebimento da mesma.

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3. OPRESSÃO, LIBERTAÇÃO E CONHECIMENTO

Conheci Maximina por volta dos anos sessenta. Era filha de camponeses e fora, ainda bastante jovem, trabalhar como empregada doméstica em Caracas. Um dia, soube que Mano­lo, um senhor que trabalhava em um mercado a poucas quadras de minha casa, sofria de uma doença de pele chamada erisipela. Maximina o aconselhou a esfregar um sapo vivo na pele doente. Segundo contava, ela havia visto como algumas pessoas de seu povoado natal tinham ficado curadas desta doença. A maior parte daqueles que ouviram Maximina riu da moça e, quando ela saiu, começaram a zombar dela: "igno­rante", "analfabeta", "feiticeira", "boba", "índia", e assim por diante .. .

Manolo tampouco deu crédito ao que Maximina dissera. Foi a uma consulta médica particular - pois não tinha Seguro Social e aquilo não parecia uma emergência - e me contou que só de consulta e de farmácia gastou quase um mês do salário. A receita mandava comprar um remédio chamado "Batracina" , e ele parecia estar melhorando com o remédio.

Mas o nome do remédio logo me chamou a atenção. Eu estava terminando o grau médio naquela época e me lembrei que as rãs, os sapos e algumas outras espécies animais recebem o nome de "batráquios" na aula de biologia. Que relação haveria entre o sapo de Maximina e a "Batra"cina" que Manolo havia comprado na farmácia? Fui perguntar sobre isso a Pedro, um amigo meu estudante de medicina. Ele não tinha a menor idéia, mas a coisa lhe despertou a atenção e se pôs a pesquisar a esse respeito na Biblioteca da Faculdade de Medicina.

Passados poucos dias, Pedro e eu nos encontramos em uma festa. Ele me contou que havia descoberto que a "Batra-

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cina" era um remédio fabricado imitando o "leite" de certos tipos de sapo (isto é, uma espécie de "leite de sapo", fabricado em laboJatório). Acontece que- conforme Pedro havia lido em um texto de história da medicina - diversas comunidades indígenas da América usavam tradicionalmente o leite de certos batráquios para tratar a erisipela. Durante séculos, essa prática foi coberta de ridículo, desaconselhada e até proibida por autoridades civis, sanitárias e religiosas não indígenas. Recentemente, no entanto, algumas instituições médicas e farmacêuticas ocidentais começaram a prestar mais atenção ao conhecimento médico tradicional indígena e, em geral, camponês. As pesquisas de uma dessas instituições "desco­briram" que o leite de certos saposparece curar a erisipela! A partir dessas pesquisas, foi possível produzir em laboratório uma substância similar e com efeitos terapêuticos semelhan­tes. Por isso, o remédio ganhou o nome de "Batracina" ou seja, "leite de sapo sintético". '

Contamos essa história a Maximina e a Manolo. Este parece que não deu muito crédito: "Ora, o que é que uns pobres índios sabem de medicina I?" Quanto a Maximina, esta comentou com um sorriso irônico: "A gente aqui só acredita no doutor!"

Se Maximina fosse uma doutora, certamente Manolo lhe teria dado crédito e teria seguido suas prescrições ao pé da letra. E se, em vez de Maximina, pobre empregada, fosse o leite de sapo aconselhado por um grande empresário , respei­tado e cheio de dinheiro, talvez Manolo também lhe houvesse prestado atenção. Ou se algum jornal de grande tiragem houvesse publicado a notícia ou se a TV, o rádio ou a professora do Ginásio próximo assim houvessem dito talvez também então, "outro galo teria cantado". ' '

*

O conhecimento tem muita coisa a ver com o poder: poder econômico, poder político, poder religioso etc. Tem muita coisa a ver, também, com outras formas sutis do poder, como o prestígio, os cargos, os títulos, os prêmios etc . A vinculação do conhecimento com o poder não é nada simples: é certa­mente muito complexa, difícil de captar à primeira vista. No

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entanto, parece-me, as relações entre conhecimento e poder são tão importantes que talvez lhe devêssemos prestar mais atenção. Sobretudo, se achamos que nossa vida poderia e deveria ser melhor, mas que ainda não temos poder suf:ciente a fim de modificá-la para melhor.

Na primeira parte deste trabalho, falamos sobre o modo como a experiência do poder marca a maneira como conhe­cemos a realidade. Agora, quero insistir mais a funde sobre este ponto, explorando meia dúzia de aspectos das relações entre conhecimento da realidade, poder opressor e esforços de libertação por parte dos oprimidos.

Já dizíamos antes que "poder" pode ser entendido, em geral. como a capacidade de uma pessoa ou de uma comuni­dade para satisfazer suas necessidades, alcançar seus interes­ses, realizar suas metas. Mas indicamos também um tipo muito peculiar de poder, bastante presente dentro e fora da América Latina: a força de um grupo ou indivíduo para impor suas próprias metas, contrariando e passando por cima dos interesses de outros seres humanos. frustrando as necessida­des de grupos com menos força. Essas relações desiguais de força, de poder, são geralmente denominadas como "opres­são". "dominação" ou "exploração".

Nesta parte, por conseguinte, vamos ver algumas cone­xões entre conhecimento, poder opressor e esforços libertadores.

Começaremos pela necessidade humana de determinar nossos mapas da realidade em idéias simples e fixas . A seguir, falaremos da exigência de "teorias explícitas" para superar situações de opressão. Continuaremos nos referindo à tendên­cia em conceber "inimigos externos", seja porque sofremos opressão, seja porque tememos o fim de nosso poder sobre outros . Prosseguiremos analisando a ambígua situação dos "intelectuais" nesse tipo de relações. Debateremos. em segui­da, alguns vínculos entre conhecimento e busca de poder. E, finalmente, apontaremos algumas possíveis maneiras de en­tender as sobremodo complexas conexões entre poder e verdade. Claro, em um tema tão vasto e complexo como este, infelizmente será muito menos o dito do que aquilo que ficará por dizer.

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ALGUMAS DIMENSÕES DO PROBLEMA

Visões estáticas e dinâmicas do poder

Para que nós mesmos possamos entender nossas próprias descobertas, interesses, idéias, intuições etc. , precisamos exprimi-los com certa precisão e firmeza . Para conseguir manifestar aquilo em que acreditamos, comunicá-lo a outras pessoas de modo compreensível e persuadi -las a agir a nosso favor, é preciso, de alguma forma, "fixar" nosso conhecimento em idéias estáveis, simples e claras (embora, como vimos no caso de Maximina, isso não seja suficiente) .

A necessidade de "fixar" o próprio conhecimento em idéias estáveis e comunicáveis pode brotar em circunstâncias bastante variáveis. Por enquanto, nesta parte, vou me referir unicamente a circunstâncias onde estão em jogo relações de força desigual, relações de opressão.

Por exemplo, um grupo ou indivíduo que se acha em uma nova situação de poder sobre outros , pode começar a perceber a realidade de uma maneira diferente daquela que é comum e corrente entre seus semelhantes (e diferente, também, daquela que compartilhava antes de alcançar esta posição de comando). Nessas condições, tal grupo ou indivíduo pode se ver impelido a sentir que agora conhece melhor a realidade; que as coisas não funcionam como ele antes pensava e como outros ainda acreditam. E, em seu esforço por se convencer a si mesmo e aos outros desse ponto de vista, aquele grupo ou indivíduo vai lançar mão de todos os recursos a seu alcance para formular sua percepção da realidade de uma nova ma­neira, ao menos tão fixa, clara e convincente como a anterior.

Lembro aqui o ocorrido com José, profissional que foi meu amigo e ocupou diversas posições de poder em uma Univer­sidade latino-americana. Quando ele era membro do sindicato dos professores de sua universidade, José combatia sempre por aumentos de salários para os colegas e lutava contra o Governo. Suas idéias e seus argumentos eram claros e persua­sivos. Assim conquistou o apoio das companheiras e dos companheiros de magistério, e foi eleito o Presidente do sindicato. No posto, continuou vitoriosamente a luta por novos

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aumentos salariais para o professorado. Algumas pessoas -embora também criticassem o Governo- tentaram fazei com que José visse o seguinte: em uma cidade pequena e isJlada como a sua, com uma universidade tão grande, os aummtos do salário do professorado poderiam provocar uma forte infla­ção. Essa inflação atingiria negativamente a maioria da popu­lação da cidade: trabalhadores pobres cujos salários não aumentariam no mesmo ritmo da inflação. Além disso, para o professorado, tal inflação acabaria anulando, a curto praw, as supostas "vantagens" do aumento salariaL José desenvolveu então argumentos novos para defender suas teses: "Acueles que não quiserem aumento- ironizava- que o distribuam para os pobres!" Com o prestígio adquirido, José se lançou em campanha como candidato a Reitor da universidade, oferecen­do novos aumentos de salários. Ganhou com a maioria dos votos. Passados poucos meses , o sindicato que ele havia dirigido lançou uma campanha pedindo os prometidos almen­tos. A resposta de José , agora Reitor, foi clara e peremptória: "A universidade não tem dinheiro! O professorado já ganha o suficiente! Um novo aumento de salários vai acelerar a inflação e se auto-anulará a curto prazo ... " Os mesmos argumentos que José rejeitara, quando combatia o Governo e a mino~ia da oposição durante anos!

Mas esta necessidade de formular o próprio conhecimento em idéias firmes e claras não surge apenas quando se ocupa o poder. Vai brotar também quando descobrimos que uma parte de nossos sofrimentos é fruto de ações de pessoas ou de grupos com maior poder que o nosso. Faz alguns ancs, em Lave Canal, nos EUA, diversas donas-de-casa começaram a suspeitar - e a dizer claramente - que as constantes enfermi­dades de suas crianças eram conseqüência de substâncias químicas venenosas lançadas no canal, alguns anos antes , por companhias que já não operavam naquela área. Foi então desencadeada uma campanha de investigação, informação e mobilização popular que produziu - entre outros resultados -declarações simples, firmes e intransigentes sobre D que estava acontecendo: tais declarações ajudaram a fazer progre­dir uma luta que culminou em diversas vitórias para aquela comunidade.

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O~lan~io um grupo oprimido se acha acossado e ameaçado lo extmçao - da mesma forma que uma minoria poderosa ao

ver seu domínio em grave perigo - essa tendência a exprimir o conhecimento em idéias fixas e firmes se radicaliza: aí, então, podem emergir visões sumamente sectárias, excluden­tes e intolerantes. Exemplos que se podem lembrar em religião, foram os episódios de anabatistas e luteranos~ uns alimentaram guerras camponesas contra os grandes latifun­diários da Checoslováquia e da Alemanha; outros incitaram a matança dos mesmos camponeses, baseando-se em textos como aquele de Lutero "Contra os bandos ladrões e assassinos dos camponeses".

Pelo contrário, se nossas idéias são expressas de modo demasiadamente flexível, variável, instável e aberta, será bas­tante difícil nos convencer - a nós mesmos - ou persuadir a outros para desencadearem iniciativas baseadas em tais idéias .

Por estas e outras razões- e também, por exemplo, pelo fato de em nossas línguas tornar-se quase inevitável exprimir o conhecimento de modo inflexível e simplista - é bastante comum nos vermos obrigados a exprimir nossa percepção do real de maneira fixa e simplista, às vezes inclusive rígida e inflexivelmente.

Esta tendência a ver a realidade de modo estático -acredita~ que vemos as coisas assim como são de fato, que as cmsas sao como são, sempre foram assim e assim hão de ser eternamente- pode ser vinculada de muitas maneiras diferen­tes com as relações de opressão e com os anseios de autono­mia de diferentes setores de uma comunidade.

No entanto, sem dúvida, a toda elite poderosa, privilegia­da, abastada mteressa e convém se perceber e ser percebida - constante e claramente - como cheia de méritos, justa, adequada etc. Mas como conseguir isso com visões confusas e mutáveis da realidade social, política, econômica, moral ou religiosa? Seria quase impossível! Por isso, as elites tendem a combater qualquer ameaça à estabilidade e firmeza de sua própria visão do mundo.

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Vamos recordar outro exemplo de viva atualidade: o caso das elites espanholas e lusitanas que se estabeleceram no poder - há uns quinhentos anos - sobre os povos autóctones da América e da África. Esses grupos invasores exerceram, sem dúvida alguma, forte violência armada para impor seu domínio. Mas, como bem o perceberam seus líderes, isso não bastava. Se queriam perpetuar seu poderio militar. econômico e político sobre a população trabalhadora, era necessário mais que a força física e o terror psicológico. Era preciso conven­cer -se a si mesmos - e convencer a maior quantidade possível de indígenas, africanos, mulatos e mestiços - que o domínio dos povos ibéricos era justo e invencível. E, para isso, era conveniente, por exemplo, uma só visão religiosa da realidade, bem firme e bastante precisa, a mesma para os poderosos e os subjugados .

Por isso, foi tão importante para os monarcas de Portugal e da Espanha ter o maior controle possível sobre a Igreja Católica na América. A tal ponto que os monarcas ibero-lusi­tanos decidiam as nomeações de bispos e vigários e párocos, fundação de seminários e conventos, envio ou expulsão de congregações religiosas, permissões e proibições de livros e leituras, comunicação das autoridades eclesiásticas na Amé­rica com o Papa ... e vice-versa! E se algum bispo pregasse uma interpretação dos Evangelhos que não agradasse aos grandes senhores, este poderia sofrer desde uma simples advertência até o assassinato - como o Bispo Valdivieso, na Nicarágua, há mais de 40 anos -passando pela multa, prisão, expulsão e inclusive tortura.

Sugerir mudanças, propor alternativas, apontar contradi­ções ou despertar confusão quanto à visão da realidade pre­dominante em uma dada sociedade pode solapar, portanto, a segurança e a autoridade dos detentores do poder. E, justa­mente por isso, tal coisa leva a provocar a repressão da parte daqueles que efetivamente têm mais força para impor os seus próprios interesses. Pensar para além dos limites estabelecidos pode, por conseguinte, ser algo subversivo e perigoso.

Mas não somente os poderosos se "prendem" a uma visão estática e simplista da realidade. Talvez todo o mundo o faça

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t,ambém, sobretudo se alguém se sente inseguro e ameaçado. E possível, então, que se chegasse ao extremo de fanatica­mente defender urna maneira de ver as coisas a que já estávamos habituados. Ou, ao contrário, abraçar sectariamen­te uma nova visão que, por ser mais rígida e simples que a anterior, devolva à pessoa com juros a perdida certeza interior. Isso acontece, e muitas vezes , nas lutas de grupos oprimidos por sua libertação (veja-se, para confirmá-lo, o caso do Sendero Luminoso, os xiitas do Irã, ou os novos movimentos racistas da Europa e dos EUA, todos apoiados pelos setores oprimidos ansiando por maior poder sobre as suas próprias vidas).

De fato, caberia aqui sugerir, para ir encerrando este tópico, o seguinte . Muitos grupos dominados por outros de­sencadeiam e propagam - contra a visão dominante da reali­dade - novos critérios para entender a realidade. Essas modalidades alternativas de definir a realidade tendem, fre­qüentemente, a tornar-se tão estáticas e simplistas como as dominantes. Isso aconteceu, por exemplo, no começo do século XIX, com patriotas americanos e liberais europeus que abandonaram as conservadoras Igrejas cristãs daquela época: muitos abraçaram um ateísmo radical- que via estaticamente a religião como a causa de todos os males sociais- e, por isso, a julgavam como algo que devia ser definitivamente eliminado.

Mas as realidades mudam, e mudam igualmente aqueles que participam dessas realidades e das visões das mesmas. E, com freqüência, as elites no poder se renovam e se adaptam às circunstâncias vigentes . Se há idéias difundindo-se na sociedade, e ameaçando o domínio das elites, estas usualmen­te reagem de várias maneiras. Assim, por exemplo, podem desenvolver estratégias para assimilar, desprestigiar ou banir qualquer idéia firme e definida que pareça abalar o domínio exercido por elas.

Um exemplo que gosto de citar a esse respeito é o do PRI (Partido Revolucionário Institucional) , que detém o poder político no México há quase setenta anos. Este Partido mexi­cano realizou uma "obra-prima" de apropriação, reinterpreta­ção de todo o rígido e tradicional linguajar revolucionário, socialista, anticapitalista e antiimperialista - "desarmando"

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assim intelectualmente até agora os partidos que lhe fazem oposição- com a complacência durante muitos anos tanto dos gringos como dos soviéticos!

O "congelamento" de nosso conhecimento da realidade é, portanto, muitas vezes, uma "necessidade". Mas, certamente, essa "necessidade" implica riscos para qualquer esforço liber­tador.

Necessidade e limites das teorias da opressão

Um dos motivos para querer entender, clara e definitiva­mente, como e por que as coisas são como são, pode ser o fato de nos sentirmos oprimidos pela própria realidade e, portanto, com o premente desejo de mudá-la. Quando surge essa necessidade de compreender uma realidade opressiva para transformá-la, é comum elaborar, discutir, buscar ou aceitar uma teoria explícita que satisfaça tal necessidade.

Rosa dos Santos, uma telefonista nascida em Recife, PE, em 1919, é um destes casos. Rosa foi aposentada em 1980, a pedido pessoal, com a esperança de uma velhice tranqüila, depois de ter trabalhado 40 anos em uma empresa no Rio de Janeiro. No começo, o benefício dava para ela ir vivendo apertadamente. Mas, mesmo assim, conseguia levar uma vida "normal", como ela mesma conta, "sem pedir esmola a nin­guém". Com o passar dos anos, contudo, para sua desagradá­vel surpresa, a mensalidade paga pela Previdência comprava sempre menos coisas. Em 1991, teve que começar a trabalhar na rua, como vendedora ambulante. Poucos meses antes, envergonhada, tinha pedido a um dos filhos, casado, que a deixasse viver com ele, pois não podia mais pagar aluguel. Em pouco tempo, a dependência, a insegurança e a vergonha se apoderaram de Rosa dos Santos.

Nessa situação, enquanto ia vendendo bijuteria em uma das ruas do Rio, Rosa encontrou-se com uma manifestação de aposentados que pediam aumento de 147% para a reposição da inflação. Rosa guardou as coisas e se juntou à manifestação. Foi depois assistir a uma reunião de aposentados, promovida por um Partido da oposição e, a partir desse dia, sua vida

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Carly
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mudou radicalmente. Começou a ler mais a fundo os jornais, a participar de reuniões e manifestações e a falar de política e economia com outros aposentados -muitas vezes tratando de convencê-los a ler, fazer reuniões e protestar.

A vida de Rosa ganhou novo sentido: tomou-se muito mais ativa e otimista, "apesar de não ver sua economia melhorando em nada" . No meio de todo esse processo, Rosa se convenceu de uma coisa: primeiro, a corrupção adminis­trativa nas altas esferas do Governo é a causa de não haver recursos para melhorar a pensão dos aposentados; segundo, a única maneira de solucionar essa situação era ou votar em cidadãos honestos nas próximas eleições ... ou esperar que militares honestos dessem, enfim, outro golpe contra essa democracia corrompida.

Para superar circunstâncias opressivas, é necessário ela­borar - para lhes dar um nome - "teorias da opressão e da libertação": idéias mais ou menos claras que nos expliquem por que as coisas vão mal e como seria possível sair das dificuldades em que nos metemos. E precisa haver gente que compartilhe essas teorias.

Por um lado, tal tipo de teorias é necessário para nos dar a sensação psicológica de que, apesar de nossos fracassos, isolamento e fraqueza, há sem dúvida uma saída. Isto é, tais teorias se fazem necessárias, pelo menos, para sobreviver às dificuldades, manter um certo sentido da vida, não desesperar nem perder a razão. São necessárias, de certa forma, para não sucumbir totalmente à opressão, mantendo viva a chama da esperança.

Sem essa esperança, muito poucas pessoas poderiam continuar lutando por sua sobrevivência e de seus entes queridos. Ainda mais: sem essa esperança, dificilmente al­guém faria algum esforço para conseguir mudanças e melho­ras em sua vida pessoal ou na de sua comunidade. Os Alcoólicos Anônimos, as Igrejas Pentecostais e grupos radicais como o Sendero Luminoso- cada um a seu modo bem distinto e específico - podem ilustrar o papel esperançoso que é cumprido por diversas "teorias da opressão e da libertação".

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Mas, por outro lado, então, "teorias da opressão e da libertação" são também necessárias para estimular, sustentar e impulsionar esforços práticos que procuram superar, de fato, condições opressivas. As lutas e vitórias latino-americanas pela independência, a democracia, o voto para as mulheres ou a reforma agrária foram possíveis - precisamente e entre outros fatores - graças a idéias e teorias nacionalistas, inde­pendentistas, liberais, democráticas, socialistas, sufragistas etc.

Muitas dessas teorias conseguiram exprimir, em uma linguagem clara e acessível ao homem comum, o mal-estar e as expectativas de grandes setores da população. Deste modo, tais teorias estimularam a comunicação, a confirmação recí­proca, a aglutinação e a mobilização de multidões. Através de uma ou de várias dessas teorias, o povo vai descobrindo interesses comuns, explicações e responsáveis pela opressão, razões e caminhos para se revoltar, aliados e esperanças para a vitória.

Ora, a mesma capacidade que tem uma teoria para expli­car a opressão e dar estímulo a lutas de libertação - como ocorreu em muitos países da Europa Oriental com o marxismo -pode facilmente tomar-se uma "faca de dois gumes". Vamos ver como.

Compartilhar com outras pessoas uma teoria é viver, constantemente, um processo de confirmação recíproca: ("Você tem razão!"; "Que bom encontrar alguém que pense como eu!"; "Agora sim, estou entendendo o que acontece"). E isto é ainda mais evidente em minorias marginalizadas ou perseguidas e que, por isso mesmo, tendem a ser muito mais "fechadas" ("fechadas" por se abrirem muito pouco a outras visões da vida diferentes da sua; e "fechadas" também por terem uma coesão interna muito forte , com pouca abertura às relações com gente diferente).

Em suma, uma teoria explícita, que alimente as esperan­ças e o sentido da vida das pessoas oprimidas - quando compartilhada longa e fortemente dentro de um grupo-, tende a ser tomada não mais como uma teoria e sim como "a

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realidade real". Em tal situação, o grupo que compartilha essa teoria elabora constantemente "confirmações" da mesma, tanto nas vitórias como nas derrotas, e rechaça quase qualquer tentativa de criticar ou transformar sua teoria. Quando nos identificamos profundamente com uma certa visão da realida­de, opomos resistência a abri-la, enriquecê-la, transformá-la ou substituí-la ... mesmo quando a experiência e a opinião "exteriores" nos insinuem a necessidade de rever nossas teorias. Mais (e pior ainda!): como vemos toda a realidade através da teoria que compartilhamos, então, qualquer expe­riência ou opinião contrária à nossa teoria, nós vamos inter­pretá-la através da mesma teoria .. . e chegaremos até a vê-la corno mais uma confirmação de nosso modo de ver as coisas!

Na esquerda, sem dúvida, ocorrem coisas semelhantes. Muitos grupos marxistas latino-americanos partidários da luta armada vêem em toda derrubada de uma democracia uma prova de que o poder não se pode conquistar pacificamente: nas vitórias democráticas, confirmações de que a democracia só serve à burguesia; nas derrotas da luta armada, retrocessos momentâneos no único caminho que leva ao triunfo popular; e em toda crítica a essa visão estreita e fechada, uma traição. Como se diz na minha terra: "Si no te pela el chingo, te pela el sin nariz" (algo parecido com o nosso coloquial: "Se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come" -Nota do Trad.).

Também no seio das elites capitalistas se podem perceber dinâmicas análogas. Os neoliberais das três Américas alimen­tam a firme certeza de que apenas a privatização de todas as estatais pode estimular uma prosperidade econômica que consiga acabar com a miséria. Citam como exemplos os chamados "Tigres asiáticos" (Cingapura, Coréia do Sul, For­mosa), países que, supostamente, com menos recursos e maior pobreza que os nossos, conseguiram ,;modernizar-se" e acabar com a pobreza em poucos anos, graças à "privatiza­ção". Quando se objeta a eles que esses três países construí­ram esse "desenvolvimento" sob uma ditadura militar, com muitas vítimas, alguns reconhecem que é verdade, mas é que "primeiro abriram a economia, para depois decidir -se pela

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democracia política" 1. Se alguém lhes recorda que em Formosa as quatro maiores empresas -siderúrgica, petroquímica, naval e metalmecânica - são estatais, desprezam ou desconfiam desse dado. Quando se lhes aponta que Cuba conseguiu sem privatização satisfazer as necessidades básicas da população, reagem condenando a existência ali de uma ditadura militar! De novo: não existe jeito algum de "abrir" uma teoria tão "fechada" da realidade.

Para alguns grupos religiosos bem sucedidos entre setores mais pobres , a "crise mundial" e todos os sofrimentos atuais são resultado (isto é, efeito e castigo) de nossos pecados individuais e anúncio do juízo final. Somente serão salvos aqueles que se unirem a um desses grupos, aceitarem sua mensagem e viverem conforme suas regras . Se, em algum de seus ritos de cura, uma pessoa fica curada de alguma doença, isso confirma fortemente o caráter sagrado do grupo e de sua visão da realidade . Se, ao contrário, uma pessoa não se cura fisicamente de alguma doença, isto é interpretado como cura espiritual, presença do demônio, castigo ou primeiro passo para a verdadeira cura divina. Se muitas pessoas se incorpo­ram ao grupo, isto confirmará o resto em seu compromisso. No caso de várias pessoas abandonarem o culto, isto poderá ser visto como influência de Satanás. Dificilmente se admitirá a necessidade de ver as coisas de outro modo. Caso extremo foi o do grupo religioso norte-americano levado por James Jones para a Guiana, grupo que optou por um suicídio coletivo ao invés de mudar seu estilo de vida e suas crenças.

Claro que não é fácil, muito menos num quadro de miséria e perseguição. ver nossas teorias apenas como mapas provi­sórios de uma parcela da realidade: mapas que só valem a pena enquanto a realidade não muda muito e enquanto não

1. Gifford Pinchot III, segundo a nota "Americano critica ação estatal" (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro 04/10/91, p. 7: Negócios Semelhantes idéias já foram expressas diversas vezes. entre muitos outros, por Michael Novak, um intelectual católico neoconservador norte-americano, duro crítico da teologia latino-americana da libertação.

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dispomos de mapas melhores para nos orientar em direção às metas que nos interessam. Mas se por isso resistimos à crítica e à transformação de nossas "teorias da opressão e da liber­tação": estas teorias podem deixar de ser ferramentas para superar nossas condições opressivas e converter -se em obs­táculos para a nossa libertação.

E quem é responsável por aquilo que nos oprime?

A sensação de opressão, de insegurança, de injustiça, de medo de perder os entes queridos, afeto, propriedades, em­prego, respeito, a própria vida ou o sentido da mesma muitas vezes parecem nos levar à busca de quais seriam as causas de nossos males ... com a esperança, certamente, de que esta seja a maneira de começar a nos libertar daquilo que nos atormenta.

A busca das raizes de nossa miséria, insegurança e sofrimento pode ser levada por muitos trilhos diferentes . Um desses trilhos é o de achar em si mesmo a causa das próprias aflições: às vezes, o caminho mais "fácil" e autodestrutivo para aqueles que sofreram maus-tratos em sua infância, mas, geralmente, o mais difícil para quem intui sua própria respon­sabilidade. Outra saída é ver na própria dor um merecido castigo - de Deus, natureza, sorté ou leis econômicas - por pecados, erros, faltas ou defeitos puramente pessoais (como a escassa inteligência, a covardia, a preguiça, a inferioridade etc.).

Indo além de nossa própria responsabilidade - mas tam­bém além de nosso alcance, de nossa capacidade de mudar as coisas - é comum rastrear a procedência de nossos pesares em forças incontroláveis: o destino, o carma, os astros, a má sorte, "os tempos", a crise mundial..., mas também "o período histórico", a providência divina, as leis do mercado ou a superioridade daqueles que detêm o poder nas mãos .

Enfim, outro método para situar a procedência de nossos males é tentar encontrar fora de nós mesmos - mas dentro de nossa capacidade de influir sobre a realidade - os fatores que provocam o sofrimento de que nos sentimos vitimas inocentes. Aqui poderíamos situar muitas explicações que definem, con-

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cebem, constroem um outro, um inimigo pessoal ou coletivo, mas humano e vulnerável, como o principal causador das próprias calamidades.. e, portanto, como alguém que deve ser de algum modo vencido, para que terminem nossos sofri­mentos (a burguesia, os comunistas, o imperialismo, os imi­grantes etc.).

Praticamente todas essas formas de compreender as raí­zes da opressão e da miséria humanas podem ser - e foram -manejadas por elites poderosas para consolidar seu próprio domínio sobre outros setores sociais, acho eu. Somente algu­mas dessas hipóteses, em compensação, se mostraram aptas a promover bem sucedidos movimentos de libertação entre os oprimidos.

Uma das maneiras dos oprimidos definirem as causas de suas desditas e penúrias coletivas é, precisamente, encontran­do e definindo um inimigo. Assim, as forças patriotas de várias regiões da América Latina do século XIX encontraram o inimigo que deviam derrotar: "Espanhóis e canários" -como dizia o Decreto de Guerra de Morte, assinado por Simón Bolivar "( .. . ) mesmo que fossem inocentes" . É claro que, em certos casos, definir um "eles" e um "nós" , aqueles como "inimigos" e estes como "aliados", pode servir para que os oprimidos consigam atingir seus objetivos apesar de fortes obstáculos reais: as guerras de independência e as lutas democráticas contra os ditadores parece que o são.

No entanto, uma definição demasiadamente estrita de "inimigos" e "aliados" pode facilmente - sobretudo a longo prazo- provocar confusões, novas injustiças e graves derrotas. Por quê? Porque, por um lado, os "inimigos" estão vivos, podem mudar, ter conflitos internos, dividir-se e enfraquecer­se - qualquer um pode ver as vertiginosas mudanças de Gorbachov e de outros "inimigos comunistas" do Ocidente na Europa Oriental: mas também a mudança obtida por Bush, fazendo de velhos amigos, como Noriega e Sadam Hussein, figadais inimigos.

Por outro lado, "no están todos los que son ni son todos los que están", como reza o adágio (aqui não estão todos os que são, nem são todos aqueles que estão). Isto é, nem todas

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as pessoas que entram na nossa definição de "inimigos" estão exclusiva e totalmente contra nossos interesses e ideais . Nem tampou.co nenhum dos "nossos" é sempre e apenas uma pessoa santa e inocente, total e exclusivamente dedicada à "causa", sem nenhuma fraqueza nem ambigüidade de qual­quer tipo (e parece que os poderosos conhecem e aproveitam essa humana realidade com mais eficácia que os oprimidos) . Apontar ameaçadoramente "inimigos" à direita e à esquerda - a acolher como aliados somente aqueles que se submetem cem por cento a nossas exigências - pode levar exatamente àquilo que não queremos: aumentar o número e a coesão de nossos "inimigos", reduzindo ao mínimo os nossos "aliados".

Somente se pode conseguir coincidências e cooperação com os "outros" mediante aproximação e diálogo respeitosos, relativas concessões e a capacidade de enriquecer, flexibilizar e relativizar nossa idéia de quem é nosso "inimigo" atual e quem nosso "aliado" potencial (e em que, por que e até que ponto este é "inimigo" e aquele pode ser nosso "aliado").

Como podemos ver, neste terreno como em muitos ou­tros2, o conhecimento da realidade se torna parte da própria realidade e chega até a modificar o conhecido: ao "conhecer" alguém como aliado - inclusive alguém que se imagina ser nosso "inimigo"- isto influenciará nossa conduta diante dessa pessoa ou grupo. Isto, por sua vez, condicionará a percepção que ela terá de nós . E, continuando assim, esta dinâmica pode levar até a transformar o "inimigo potencial" em um "aliado real".

Por este motivo, gosto de falar, por exemplo, em construir a realidade, para me referir ao processo de conhecer o real: primeiro, porque quando conhecemos - da mesma forma que

2. Já vai fazer quase um século que os teóricos mais avançados da Física (Werner Hmsenberg e Albert Einstein, entre outros) vêm insistindo no fato de o conheci­mento humano não ser urna apreensão passiva - puramente "interna" - da realidade~ mas uma mtervenção ativa que modifica a realidade e que, por conse­gumte, nao nos perm1te falar de uma realidade "independente" do conhecimento humano nem de um conhecimento abstratamente "objetivo".

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procedemos ao desenhar um mapa - estamos já de al•;rum modo modificando e inventando a realidade (eliminando, se­lecionando, hierarquizando, completando etc.). Além disso, porque uma vez construída uma certa imagem clara e fixa da realidade- um certo "mapa", um "conhecimento" do real­esta mesma visão contribuirá para que reconstruamos o real através de nossa ação (ação orientada por aquele "mapc." do real).

Isto é parte daquilo que eu quero sugerir quanto ao conhecimento das raízes de nossas opressões: talvez seja muitas vezes inevitável construir um "inimigo" para entender a opressão e ser bem sucedido na luta contra ela. Talvez. Não estou absolutamente seguro. Mas certamente estou seguro quanto a um ponto: nenhum conceito de "inimigo" ou de "aliado" esgota completamente a realidade dos conflitos so­ciais. Todo "aliado" - como também todo"inimigo" -é uma realidade infinitamente mais variegada, mutável, rica e com­plexa que qualquer conceito ou teoria que se faça a respeito.

Da mesma forma, se aquilo que de verdade nos interessa -muito mais que construir teorias perfeitas, ter sempre razão ou ganhar os debates - é contribuir para superar relações de opressão, eu sugeriria, então, rever crítica e constantemente os conceitos e as teorias com que pretendemos conhecer as raízes e as saídas dessas relações de opressão. Em particular, gostaria de propor que se reveja criticamente toda idéia que reduza os "inimigos" a uma realidade fixa e totalmente exterior a "nós", assim como toda teoria que idealize o "nós" e construa os "aliados" de uma maneira estática e idealizada. Tais idéias e teorias, parece-me, podem contribuir muito mais para a consolidação de nossas opressões e para a criação de novas injustiças que para levar a uma saída dos atoleiros em que nos achamos neste final de milênio.

O conhecimento não será coisa de intelectuais?

Acabo de ler em um jornal que a quinina- base dos poucos remédios eficazes contra a malária ou o paludismo - "é conhecida pelos europeus desde 1630, quando os índios da América do Sul, autores da investigação original, ensinaram

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aos missionários jesuítas que essa substância curava febres" 3.

Diante desse comentário, receio que muita gente diria como Manolo. a respeito de Maximina: "O que é que um índio pode saber de medicinal?"

Um dos problemas do conhecimento humano é que, com demasiada freqüência, desprezamos nossa própria capacidade - e a de outras pessoas e comunidades - de participar ativa e criativamente nas atividades intelectuais, isto é, nas tarefas de construção, crítica e transformação do conhecimento. Ha­bitualmente, pensamos que são apenas os peritos, cientistas, intelectuais, e outros profissionais que verdadeiramente co­nhecem ou que são, pelo menos, aqueles que sabem o que na verdade é mais importante.

Noutras palavras , hoje, de modo geral, renunciamos à responsabilidade de conhecer e entregamos essa responsabi­lidade às mãos dos peritos. Delegamos aos especialistas o poder de decidir o que é o certo, o seguro, o verdadeiro, aquilo que se deve fazer. Aceitamos que os profissionais - políticos, engenheiros, médicos, teólogos- sejam remunerados bem por cima do comum dos mortais (não somente em dinheiro mas também em prestígio, poder, estabilidade, segurança 'etc.), para assumirem essa responsabilidade. Inclusive, participa­mos constante e inconscientemente em campanhas para man­ter os "não profissionais" fora dos terrenos do saber (por exemplo, repetindo coisas como: "Será que esses índios po­dem saber alguma coisa de medicina?").

Por que será que fazemos tudo isso?

Em parte, claro, por preguiça: é mais fácil que outros decidam o que é que se deve crer e fazer. Em suma: caso se enganem, já temos alguém a quem culpar... e se acertam, todos sairemos ganhando. Em parte, também, porque "é assim que todo o mundo pensa", e parece melhor evitar os inume­ráveis perigos de nadar contra a correnteza (como se diz

3. Cf. "Ação do quinina é revelada depois de séculos de uso", em: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro , 22/01/92, p . 1-7.

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proverbialmente: "Dónde va Vicente? Donde vala gente!" -"Aonde vai Vicente? Vai com a gente!").

Há porém outras razões para essa "entrega do conheci­mento" aos profissionais que, a meu ver, são próprias de sociedades onde o poder está concentrado em poucas mãos.

Faz apenas alguns anos, Graciano, um amigo sacerdote, me contou uma experiência que teve numa paróquia peruana. Tinha sido marcada uma noite de estudos bíblicos. Depois da leitura de uma passagem dos Evangelhos, Graciano pediu ao povo que fizesse a partilha de opiniões sobre aquele texto. Uma por uma, todas as pessoas foram entrando em animada troca de idéias sobre a passagem bíblica - exceto um senhor, já idoso, que estava sentado bem atrás de todos, calado e com a cabeça inclinada. Querendo ouvir a opinião dele, Padre Graciano lhe pediu que participasse. Várias pessoas que estavam na reunião se voltaram e insistiram com ele para que dissesse seu ponto de vista. Mas o ancião cobriu o rosto e começou a soluçar. Graciano, pensando que o tinha ofendido ou aborrecido sem querer, aproximou-se e pediu-lhe descul­pas, perguntando em que poderia ajudá-lo. "Não foi nada, Padre - disse o ancião. É que esta é a primeira vez na minha vida que alguém me pede a opinião sobre uma coisa impor­tante!"

Para participar de maneira aberta, ativa e criadora na responsabilidade coletiva de construir, criticar e transformar nosso conhecimento, deve-se atender a uma série de requisi­tos: tempo, energia física, espaços apropriados (como uma casa ou um quintal tranqüilos, uma sala de aula, um templo, um salão de teatro ou cinema), prática habitual (da expressão oral, leitura ou escrita, por exemplo), talvez alguns recursos materiais (lápis, papel, câmara fotográfica, computador ou violão, segundo nossas possibilidades, capacidades e inclina­ções) e, sem dúvida, reconhecimento coletivo bem como sua conseqüência: uma boa dose de autoconfiança, de auto-esti­ma e de fé em si mesmo.

Ora, a maioria das pessoas, em nossos países da América Latina, muitas vezes enfrenta escassez desses recursos. Ou seja, a grande maioria de nosso povo tem que enfrentar duros obstáculos para desenvolver seu potencial intelectual, sua

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capacidade de contribuir para a construção do conhecimento. E, apesar de tudo isso, muita gente nossa exerce essa capa­cidade ... embora somente no pequeno círculo de alguns pou­cos familiares e vizinhos ou, mais reduzidamente ainda em seu próprio espírito, em silêncio. .. '

Seja como for, a maioria das pessoas, talvez todas, têm necessidades, educativas, recreativas, psicológicas, profissio­nais, habitacionais, sanitárias, religiosas , comunicacionais etc., que exigemproduçãointelectual, isto é, trabalho criativo de elaboração, crítica, e transformação de conhecimentos . O que acontece então quando as pessoas que vivem essas necessidades carecem de recursos para satisfazê-las mediante suas próprias capacidades?

Parece-me que acontece o seguinte : a maioria de nosso povo se vê constantemente forçada, para satisfazer suas próprias necessidades, intelectuais e profisssionais, a recorrer àqueles que tiveram tempo, energia, espaço, prática, recursos, reconhecimento e auto-estima para chegar a se tornar "peri­tos", "intelectuais" ou "profissionais" reconhecidos e seguros de si mesmos I

Isto não constituiria problema, se a elite intelectual e profissional tivesse, sempre, interesses coincidentes, comple­mentares ou, ao menos, compatíveis com a maioria dos trabalhadores "não profissionais" e suas famílias. Mas nem sempre isto acontece: todos sabemos que, com freqüência , os hábitos ligados ao dinheiro, poder, fama e outros privilégios, levam muitos profissionais - engenheiros, médicos, advoga­dos, sacerdotes, economistas, escritores, políticos etc. - a perceberem, apresentarem e manipularem a realidade contra as aspirações de seus clientes, público, leitores, pacientes etc.4

4. Segundo pesquisa do Dr. John Wennberg, da Faculdade de Medicina da Universi­dade de Darthmouth, nos EUA. somente "cerca da metade das 230 mil operações (de ponte de safena), realizadas anualmente nos EUA. tinham indicação inequívo­ca" ("Estudo nos EUA revela má prática da medicina", Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 10/12/91. p. 1-13). Pesquisas semelhantes mostram que mais da metade - cerca de 90%, segundo Vicky Hufnagel, especialista da Califórnia- das 700 mil extirpações do útero (histerectomia), praticadas anualmente em mulheres norte­americanas. são desnecessárias ou, pior ainda, contra-indicadas.

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Além disso, assim como as fábricas das diferentes marcas de cigarro competem ferozmente entre si para nos convencer, cada uma, que seu produto é "o melhor", com menor teor de nicotina, assim também as diferentes profissões (e seus dife ­rentes "especialistas") competem entre si para tentar nos vender suas próprias idéias e "serviços" importantes. Tragica­mente, assim como as fábricas de cigarros não dão a mínima para a saúde dos fumantes, boa parte de nossos "peritos" e "especialistas" tampouco está ligando muito para aquilo que acontece com seus clientes, pacientes etc.: o que lhes inte­ressa é o lucro, a vantagem profissional, o benefício que poderão obter com nossas necessidades e dificuldades.

E tomo a insistir: aqui não se trata de bondade ou maldade pessoal. Não! Mas é assim que funciona o sistema profissional em nossas sociedades urbanas ocidentais da atualidade. Pro­fissional que funcionar com outra "lógica" tende a perder o respeito e a autorização da própria corporação profissional. .. e às vezes chega a perder os clientes!

Parte do problema, então, ao entregarmos o nosso poder intelectual aos "peritos", estamos constantemente alimentan­do o perigo de esse poder ser usado contra nossos próprios interesses . Por exemplo, para proveito privado dos "peritos".

Mas outra parte do problema- talvez a mais relevante para o tema destas reflexões - é que a construção, crítica e transformação de nossas visões do mundo, de nossos conhe­cimentos a respeito da realidade, são feitas sem nosso contro­le, sem nossa participação. Pior ainda, aquilo que geralmente aceitamos como "conhecimento" - e que inúmeras vezes governa nossos estudos, trabalho, alimentação e saúde - foi elaborado por gente que não conhece nem compartilha (e tantas vezes nem respeita!) as condições de vida da maior parte do povo. Dizendo com palavras simples: as cabeças que pensam por nós, independentemente de suas intenções, par­tem de perspectivas e de interesses que raras vezes são os nossos, os da maioria do povo.

Nos diversos movimentos e esforços para a transformação da vida em comunidade surgem, também, novas necessidades intelectuais. Por exemplo, compreender em que e por que a

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sociedade atual pode e deve ser transformada: definir em que aspectos seria necessário aprofundar as tradições e em que aspectO$ superá-las, desenvolvendo símbolos, ritos e outras expressões culturais para manifestar e consolidar as expecta­tivas de uma vida melhor.

Essas necessidades exigem trabalho intelectual: pesqui­sar, comparar. imaginar, criar, organizar, escrever, comunicar. E como tampouco nesses movimentos toda a gente desenvol­ve suas capacidades e inclinações, aí também se tomam muitas vezes necessários também intelectuais: pessoas e grupos dotados de experiência, inclinados e dedicados ao trabalho de construir, criticar e transformar os conhecimentos da comunidade. Gente que recolha, articule e comunique visões da realidade que contribuam para a realização das necessidades e esperanças dos oprimidos.

Claro que, quando surgem intelectuais no meio desses movimentos, surgem todas as ambigüidades acima mencio­nadas. A possibilidade de utilizar a própria capacidade e a produção intelectual para compensar carências econômicas, afetivas ou de poder é uma tentação permanente. Transfor­mar-se no "doutorzinho" da comunidade. Exigir privilégios inacessíveis para a maioria. Recusar a crítica fraterna . Isolar -se e colocar-se acima dos outros. Usar a pressão e as organiza­ções populares para interesses puramente individuais. Eis algumas das tentações permanentes de qualquer intelectual compositor, escritor , cantor, médico, jornalista, advogado, contabilista - que pense em colocar as suas capacidades a serviço de movimentos de libertação dos oprimidos.

Mas não é preciso ficar assustado: todo remédio, quando mal tomado, pode provocar efeitos colaterais ... e assim acon­tece também com os intelectuais e o trabalho intelectual. A coisa talvez esteja em saber "administrar o remédio cuidado­samente", avaliando periodicamente, em diálogo comunitário, os efeitos .. . para ver se realmente são aqueles desejados. Em caso contrário, para ver o que se pode fazer então.

Contexto prático e conhecimento teórico

Como saber se um conhecimento é ou não "verdadeiro"? E o que significa, na realidade, um conhecimento "verdadei-

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ro"? Eis aí um dos mais antigos problemas do conhecimento humano (ao qual não pretendo dar uma resposta - e muito menos uma "solução definitiva" -nestas reflexões).

Com freqüência, os filósofos tendem a "resolver" o proble­ma do conhecimento, como se a "verdade" ou a "falsidade" fossem características de "puras idéias" expressas em pala­vras. separando assim o conhecimento da atividade n_a qual esse conhecimento foi gerado. Assim, por exemplo, uao dls­cutir se é verdadeira ou não a idéia segundo a qual "a humanidade progride sempre". Mas raramente se interroga­rão: "Verdadeira , em que sentido? Até que ponto? Desde quando? Onde surgiu essa idéia? Com que conseqüências? Para quem?" Muitos filósofos, inclusive, preocupados em referir toda "verdade" à experiência material. às vezes pensam essa experiência como se fosse sempre uma e a mesma para todos e quaisquer seres humanos - de qualquer gênero. idade. cultura, condição física, social, econômica, política ou religiosa - e sem perguntar coisa alguma a respeito da própria expe­riência que levou a produzir certos conhecimentos.

Talvez antes de fazermos aquelas primeiras perguntas -como saber se um conhecimento é ou não "verdadeiro"? Que significa, na realidade, um conhecimento "verdadeiro"? -poderíamos então fazer outro tipo de perguntas e alimentar outras preocupações. Por exemplo: Por que reduzir o conhe­cimento a frases e idéias separadas do contexto humano real e concreto onde se produz esse conhecimento e onde ele "funciona"? Talvez tivesse mais sentido recordar que todo conhecimento é parte de um processo social, da dinâmica de uma coletividade humana concreta .

Nessa perspectiva, a questão não é tanto nem principal­mente conhecer uma "verdade" abstrata. no vácuo, verdade separada da dinâmica humana real onde se procura prod_uzi~ conhecimentos do próprio ambiente. Não! Aqui a questao e sobretudo procurar entender qual o sentido, o significado que tem esse esforço para conhecer a realidade na comunidade onde se realiza esse esforço. Que mudanças reais esse novo conhecimento introduz com relação a outras maneiras ante­riores de ver a realidade? Aonde parece levar o fato de ver a

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realidade dessa nova maneira? Até que ponto esses conheci­mentos podem contribuir para que seus autores alcancem o que almejavam com eles? Que conseqüências - previstas ou não, agradáveis ou indesejáveis, destrutivas para outros, irre­versíveis ou não - resultam aparentemente desses conheci­mentos?

Neste sentido, a coisa já não é tão esquemática e abstrata como determinar a verdade ou a falsidade "em geral" de um conhecimento. Agora nos achamos diante do problema real, prático, de saber onde, como e para que surge nosso conhe­cimento: face a face diante do desafio de enfrentar responsa­velmente as conseqüências práticas de nosso modo de perceber a realidade; diante do desafio de avaliar até que ponto nosso conhecimento nos facilita ou dificulta alcançar aquilo que buscávamos ao procurar conhecer a realidade.

Claro que esta outra perspectiva, como qualquer outra, pode ser simplificada, caricaturada e ridicularizada, menos­prezando aquilo que poderia ter de fecundo. Pessoalmente, penso que de fato, muitas vezes e com razão, nós seres humanos, certamente damos enorme importância às conse­qüências práticas do conhecimento como um, ao menos, dos cn1:érios para distinguir o "verdadeiro" do "falso". Creio inte­res ante pensar um pouco mais sobre este ponto5

.

A vida, a alegria, a esperança, o medo, a dor e a morte são parte central da existência humana. Essas coisas têm algo

5. Esta maneira de conceber as relações entre conhecimento e contexto prático foi geralmente associada com a escola filosófica anglo-saxônica do pragmatismo Charles S. Peirce, George Herbert Mead, William James e John Dewey são geralmente considerados como as principais figuras do pragmatismo contemporâ­neo de língua inglesa Anthony Biasi me mostrou que Thorstein Veblen e Charles Wright Mills aplicaram o pragmatismo como critério de ética social (Veblen distinguindo entre classes parasitas e classes produtoras; Mills julgando o conhe­cimento sociológico em termos de sua utilidade para nos libertar de certas "arapucas". Marx. de certo modo. também representa um "pragmatismo de esquerda", onde a "práxis revolucionária" é critério de conhecimento. (Muitos ficarão chocados com esta aproximação. sobretudo marxistas de idiomas como o castelhano e o português. onde a palavra "pragmatismo" tem conotações sobretudo negativas).

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a ver com a vida prática, cotidiana, e com as metas, conquis­tas, esforços, decepções, frustrações e fracassos que marcam a vida cotidiana. O conhecimento não é uma realidade alheia a essas preocupações concretas, práticas, da vida real. Pelo contrário, eu chegaria a sugerir que o esforço para conhecer a realidade está entremeado com os e,:;forços vitais da vida diária, influindo e recebendo a influência dessa luta diária.

A economista que é promovida em seu emprego por ter contribuído para aumentar os lucros da empresa, sentirá que sua maneira de ver a economia é "correta" e que aqueles que lhe diziam o contrário estavam enganados. O médico e pai de família que vê fracassarem todos os seus esforços, e os dos colegas, para diagnosticar e curar sua filha doente, pode começar a duvidar seriamente da validade e eficácia de seus conhecimentos, ainda mais se a filha acaba sendo salva por um "curandeiro". A estudante de engenharia que consegue montar um motor mais eficiente aplicando certas teorias físicas, verá confirmada a confiança em tais teorias. O pastor de uma igreja, descobrindo que os líderes dessa religião vivem uma vida de farra e desperdício com o dinheiro que recolhem pregando o contrário, pode ter uma crise de fé e até abandonar definitivamente sua religião.

Isto é, quer gostemos quer não, uma das maneiras de julgar a validade de uma teoria, doutrina ou ponto de vista, ocorre devido a suas conseqüências práticas, por seus frutos. E isto acontece desde a cozinha até a física nuclear, passando pela teologia, a política e a bacteriologia. Mais ainda muitas vezes chegamos até a condenar, rejeitar ou cobrir de ironia uma maneira de pensar sem conhecê-la bem e sem sequer estudá-la. porque. na prática, repetidas vezes, os partidários dessa visão se comportam de uma forma que nos parece contrária a nossos objetivos. valores ou expectativas.

E, creio eu, é natural que isso ocorra: queremos viver uma vida boa tal como nos ensinaram a concebê-la, e tendemos a rejeitar, inclusive sem exame. qualquer idéia ou doutrina que pareça ameaçar a possibilidade de viver como queremos. Assim, chamamos geralmente "verdadeiro" aquilo que nos parece contribuir para alcançarmos nossos propósitos.. . e

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"falso" aquilo que parece, ao contrário, impedimento frustran­te de nossos esforços e necessidades.

Claro que, infelizmente, isto faz com que, às vezes, per­camos boas oportunidades para entrar em contato com ma­neiras de ver a vida e com pessoas extremamente desafiadoras, inovadoras e interessantes. E, pior, isso talvez nos leve a desprezar, marginalizar, excluir ou perseguir, e às vezes até eliminar, seres humanos cujo único "defeito" (cri­me?) é serem diferentes, pensarem diferente e viverem de outra maneira que a "nossa".

. Em todos os casos , aqui desejo sugerir que existe relação Importante e complexa entre aquilo que denominamos "co­nhecimento" (ou conhecimento "verdadeiro" ou "válido") e a experiência prática do poder que esse conhecimento parece nos proporcionar. Noutras palavras: quando experimentamos que um conhecimento nos dá maior capacidade de atingir a meta que nos propomos, tendemos a reconhecer a tal conhe­cimento "maior verdade", "mais validade" que a outros conhe­cimentos que não afetam - ou afetam negativamente - nosso poder de alcançar nossas metas.

A situação dos grupos sociais mais oprimidos - aqueles que se acham dia a dia convivendo com a morte prematura de seus entes queridos e vendo sua própria vida constante­mente em perigo- estabelece essa relação entre conhecimen­to e poder de uma maneira, talvez, mais grave e problemática que em outros grupos. A meta prática, bastante concreta, de sobreviver materialmente, não pode ser menosprezada pelos grupos mais oprimidos na hora de discernir o que é o mais certo e o que parece, ao contrário, falso. Mas essa definição do certo e do falso em função da vida/sobrevivência dos oprimidos entra fatalmente em choque com os conhecimentos construídos na perspectiva dos poderosos.

Vejamos, por exemplo, a teoria econômica neoliberal. Segundo esta, a intervenção do Estado na economia para impedir o aumento do desemprego e a deterioração dos salários é uma aberração. Esta intervenção deve ser evitada a todo o custo, pois, segundo o argumento dos neoliberais produz maiores males que aqueles que deseja corrigir). Tal

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teoria, na perspectiva daqueles que não sofrem fome ou falta de um teto, pode brilhar como obviamente correta. Afinal de contas, para quem tem muito dinheiro, o desemprego e a fome de uns quantos desconhecidos é um mal muito menor que a redução de seus lucros anuais. Todavia, do ponto de vista dos que padecem com salários arrochados e instabilidade no emprego, tal teoria pode facilmente ser considerada como falsa. Afinal, sua aplicação aumentará os riscos de morte para essa pessoa, seus familiares, amigos, colegas e vizinhos.

Por outra parte, submetidos a interesses de minorias fortes e poderosas, os mais fracos podem acabar aceitando como verdadeiro aquilo que lhes é imposto pelos mais fortes - coisa que geralmente é benéfica para os poderosos, mas prejudicial para os mais vulneráveis.

Assim, por exemplo, as companhias que produzem detri­tos nocivos para o meio ambiente ou para o homem (resíduos tóxicos, radioativos etc.) procuram sistematicamente comuni­dades pobres para lhes oferecer dinheiro e emprego ·em troca de terrenos para sepultar esse lixo contagioso . Nessa busca, tanto as companhias como as comunidades pobres podem produzir e interpretar toda a informação a seu alcance no sentido, por exemplo, de que, "bem manipulados e enterrados, esses detritos não representam perigo algum para a saúde humana'' . Em sentidos bem diferentes, ambas as partes po­dem ter claro interesse prático em ver como certa essa opinião. A longo prazo, porém, talvez não apenas os mais fracos mas também os mais poderosos ou seus descendentes se conver­tam em vítimas de terem aceito como "verdadeiro" aquilo que parecia prometer benefícios práticos a curto prazo.

Gostaria então de sugerir, primeiro, que é enganador estabelecer um debate sobre o conhecimento e sobre os critérios de verdade do conhecimento - como se conhecer fosse uma atividade puramente intelectual, teórica, contem­plativa, sem nenhuma relação com a prática, com o contexto e com as metas e os interesses concretos daqueles que procuram conhecer a realidade que os envolve. Essa maneira abstrata de ver o conhecimento de modo geral é característica de intelectuais que sentem resolvidas suas preocupações

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materiais fundamentais ... e, no fundo, ignoram ou desprezam aqueles que dedicam a maior parte de seu dia para tentar resolver urgências práticas da vida cotidiana.

Mas gostaria também de acrescentar, em segundo termo, que reduzir o problema da verdade a uma simples relação do conhecimento com o sucesso prático imediato é igualmente enganador e sinal de preguiça: significa esquecer, entre outras coisas, que todo "sucesso" é parcial, provisório; que toda "vitória" esconde um inevitável potencial de retrocesso e fracasso ... e que o esforço para conhecer- a fim de poder servir à busca da boa vida- tem que ir além, sem abandoná-la, da grave e central preocupação pelo triunfo de nossos esforços cotidianos.

Ampliar nossos critérios de verdade

Nos debates filosóficos, muitas outras coisas foram consi­deradas, além do sucesso, como critérios para distinguir o conhecimento verdadeiro do que não o é. Porém, minha impressão é que há muitos colegas filósofos demasiadamente obsessionados por encontrar um só critério de verdade e, além disso , preocupados em ver a verdade como algo predominan­temente intelectual e estático.

Permitam-me, então, exprimir a esse respeito algumas "grosserias" e uma série de conseqüências das mesmas. Primeira grosseria: até hoje - e talvez isto seja muito bom -ninguém conseguiu resolver a questão: o que é o "conheci­mento verdadeiro" e como se pode reconhecê-lo de modo realmente claro e satisfatório para todo o mundo. E nem sequer para a maioria dos especialistas em "teoria do conhecimento". Segunda grosseria: se o tema do "conhecimento verdadeiro" é algo que toca profundamente nosso interesse de viver e viver uma vida boa, não podemos deixar sua solução para um punhado de especialistas que, além disso, levam uma vida bem distante e diferente da maioria do povo comum. Conse­qüências: primeira, não se deve ter nenhuma vergonha -mesmo que não sejamos "peritos" - de nos intrometer a sério e muitas vezes neste debate sobre o que seja "conhecimento" e "verdade" . Segunda: ninguém se deve deixar levar arrogan-

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temente pela ousadia de "achar a solução definitiva", e sim manter a humilde disponibilidade para criticar e transformar em comunidade as suas "soluções" (a partir do contato com outras perspectivas, de "peritos" ou não, e de sua experiência, investigações e imaginação criadora).

Dito isso, gostaria de encerrar agora esta parte de minhas reflexões propondo algumas idéias para repensar o tema dos famosos "critérios de verdade". Noutras palavras, desejaria sugerir algumas maneiras que me parecem provocativas para pensar sobre este assunto: o que é um "conhecimento verda­deiro" e como reconhecê-lo e distingui-lo do "falso"?

Em primeiro lugar, voltaria a lembrar algumas idéias que sugeri na primeira parte do livro, apresentando-as agora como perguntas: Não é certo que aquilo que admitimos como "conhecimento verdadeiro" usualmente nós o aceitamos por­que "todo o mundo" parece fazê-lo? Não é verdade que existem teorias que não criticamos - embora suspeitemos que são falsas - por temor ao desprezo ou à perseguição? Não receamos que reconhecemos como verdadeira uma opinião porque é "dos peritos", ou "daqueles que mandam", ou sim­plesmente porque sentimos que não sabemos nada do assunto e quem a exprime fala "com tanta perfeição" que não nos atrevemos a discuti-la? Se estes são - com freqüência, de fato, talvez inconscientemente - nossos critérios de verdade, a primeira coisa que colocaria, então, seria refletir criticamente sobre eles.

Mas, além disso, proporia ampliar e multiplicar nossos critérios de verdade. Isto é, entre outras coisas, em lugar de reduzir nossos conhecimentos a um só modelo (o "científico", por exemplo), reconhecer e respeitar muitas formas e cami­nhos do conhecer, vários tipos de "verdade", uma pluralidade de maneiras de compreender, reconhecer e conhecer o que é "verdadeiro". Tomar-nos capazes de apreciar, sem hierarqui­zar, as complexas diferenças e relações entre diversos "tipos" de conhecimento: empírico, moral, artístico, técnico, místico, lógico, amoroso etc.

Gostaria também de apontar como pode ser fecundo flexibilizar e aprofundar nossos critérios de verdade, até o

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J II HIL<l 1 nos tornarmos capazes, por exemplo, de ver o vu1dadeiro no falso e vice-versa; de captar como aquilo que numa perspectiva é verdadeiro, pode ser falso em outra; ou como o verdadeiro pode se tornar falso e vice-versa; ou, ainda, como verdadeiro e falso talvez não sejam termos excludentes ("ou um ou outro"), mas notas que aparecem entremeadas, com intensidades e proporções variáveis; e como aquilo que desejamos dizer com "verdadeiro" e "falso" varia conforme muitos fatores; ou, também, como aquilo que queremos dizer com "verdade" e "falsidade" tem muito a ver com aquilo que denominamos "bondade/maldade", "justiça/injustiça" , "bele­za/feiúra" .. . isto é, tem muito a ver - embora esta relação seja muito complexa - com os nossos valores, com aquilo que julgamos importante, com nosso desejo de viver, e de viver uma vida boa.

Desta maneira, por exemplo, poderíamos chegar a imagi­nar aquilo que chamamos de "verdade" como tarefa coletiva: não como algo dado de uma vez por todas e para sempre, nem como algo meramente teórico ou da pura intimidade pessoal, e sim como algo sempre por se refazer e sempre relacionado com a vida humana em comunidade - com as tradições, os esforços, as necessidades, as mudanças e a criatividade das sociedades humanas.

A verdade poderia ser pensada, entre outras coisas, em relação comareapropriação coletiva do conhecimento. Poder­se-ia, por exemplo, conceber que um conhecimento será tanto "mais verdadeiro" quanto mais profunda e amplamente houver sido assimilado pela comunidade humana, quanto mais dona e senhora desse conhecimento for a coletividade; e, ao con­trário, quanto mais privado, secreto e elitjsta for um conheci­mento, "menos verdadeiro" será. Neste sentido, por exemplo, uma mesma teoria - sem mudar nem um "i" de suas palavras -poderá tornar-se "mais verdadeira" ou "menos verdadeira" conforme for reapropriada em maior ou menor escala pel~ coletividade humana.

De maneira semelhante, poderíamos pensar na autonomia intelectual como outro critério de verdade: um conhecimento será então tanto "mais verdadeiro" quanto mais estimular as

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pessoas e comunidades que o compartilham a pensarem por sua própria conta; quanto mais as ajudar a sentirem-se espi­ritualmente livres diante desse conhecimento, para criticá-lo, enriquecê-lo, transformá -lo criativamente.

Igualmente, a consolidação da vida boa compartilhada poderia ser apreciada como um dos mais elevados critérios de verdade - hoje, mais ainda, se reconhecemos a profundidade dos questionamentos dos movimentos feminista, indigenista, ecologista e pacifista. Neste sentido, um conhecimento será de novo tanto "mais verdadeiro" quando mais for compatível com, vinculado a, e inspirador de esforços para nutrir e consolidar a vida boa compartilhada nas comunidades huma­nas: quanto mais estimular, portanto, a solidariedade, o res­peito à pluralidade, à diversidade e aos direitos das minorias; a participação democrática nas decisões que afetam a exis­tência própria; o carinho e o cuidado pela vida em todas as suas formas; o desfrute sensual da vida em comum. E, ainda mais, tanto "mais falso" será um conhecimento quanto, quan­do e onde promover iniciativas que redundem sistematica­mente na deterioração e destruição da vida pessoal e coletiva: atitudes , condutas e instituições autoritárias; racismo, ma­chismo ou qualquer outra forma de discriminação e desrespei­to contra pessoas ou grupos; exploração ou abuso de certas pessoas por outras; resolução violenta dos contenciosos e conflitos.

Duas objeções , me parece, podem se erguer contra esta proposta de ampliar os critérios de verdade até o ponto que apontei- e vou tomá-las bastante a sério . Uma diz assim: em nossas comunidades humanas atuais, onde existem conflitos muito profundos entre grupos diferentes, o que seria "mais verdadeiro" para um grupo seria ao mesmo tempo "menos verdadeiro" para outro. Eu sugeriria que existe aqui uma parcela de verdade, que, aliás, é parte da tragédia de nossas divisões e nossos conflitos sociais contemporâneos. E diria que, precisamente, o sonho de boa parte da humanidade, de chegar a acordos mínimos que nos permitam levar a vida em paz e harmonia aponta para a idéia segundo a qual nossas verdades seriam mais verdadeiras se fossem parte de um

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mundo diferente e melhor: se essas verdades ajudassem a superar em vez de provocar, manter, justificar e "aperfeiçoar" as "artE;ls" da guerra, a dominação, a destruição do meio ambiente. Ou, noutras palavras, vivemos em um mundo tão contaminado de falsidade (isto é, de destruição do autentica­mente verdadeiro: a vida, a ternura, o desfrute solidário da existência), que nossas pobres e humildes verdades só pode­rão ser "realmente verdadeiras", só poderão chegar a ser provadas e mostrar-se verdadeiras, se porventura contribuí­rem - e na medida em que contribuírem - para transformar este mundo em um mundo verdadeiro (isto é, apto para acolher, estimular e nutrir a vida, a ternura, o desfrute solidário da existência) .

Por isso, em parte, submeto ao debate esta idéia de ampliar os critérios de verdade no sentido descrito . Porque, enquanto as coisas continuarem andando deste jeito, julgo eu, o que é qualificado como "verdadeiro" por aqueles que têm maior riqueza e poder- inclusive o poder sobre a informação, a educação, a pesquisa e os meios de comunicação de massa - continuará sendo, na esmagadora maioria dos casos , suici­dariamente afirmado como tal por boa parte do gênero huma­no.

Outra objeção não de menor peso poderia sugerir que estou misturando e confundindo dois planos que deveriam permanecer distintos e separados: um plano "teórico-cognos­citivo" (ao qual pertenceria toda a discussão sobre o conheci­mento e os critérios de verdade) e um plano "prático-ético" (no qual sem dúvida se inscreveria toda a temática daquilo que é bom ou mau para a vida e as comunidades humanas). Eu responderia a esta segunda objeção em várias partes. Primeiro, creio que efetivamente é importante distinguir (e não confundir) aquilo que realmente acontece (e de que podería­mos ter ou não conhecimento verdadeiro) e aquilo que ideal­mente deveria ser ou desejaríamos que acontecesse. De fato, já chamei antes a atenção para o perigo de que nossos valores e interesses nos façam ver as coisas de modo equivocado. No entanto, julgo igualmente interessante relacionar (sem separar totalmente) o estudo daquilo que "realmente é" com a reflexão

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sobre aquilo que "idealmente deveria ser", isto é, os valores e interesses que de fato e de direito marcam e dão sentido à vida humana toda (inclusive o conhecimento da realidade e o conceito de verdade que possuímos). De fato, eu insinuaria que uma das tragédias da filosofia, teologia, política e ciência modernas foi a separação demasiadamente radical do proble­ma do conhecimento e da verdade (a "epistemologia") com respeito ao problema do bem e da felicidade (a ética). E eu iria ainda mais longe, observando que talvez essa separação seja um sintoma e alimento, ao mesmo tempo, de um dos "males da modernidade" : o homem moderno pode ser capaz de viver segundo um conhecimento supostamente verdadeiro ... mas totalmente indiferente aos estragos que nossa vida possa acarretar para nós mesmos, para outros seres humanos e para nosso meio ambiente.

Exemplificando: em muitas faculdades de medicina, di­reito e economia, a "ética" se reduz, quando muito, a uma matéria separada das outras (umas poucas horas por semana durante um semestre, no máximo). Assim, muitos médicos, advogados e economistas se acostumam a lidar o resto da carreira com assuntos de vida ou morte para outras pessoas ... , como se as "verdades" já estivessem estabelecidas para sem­pre e não houvesse mais necessidade de refletir profundamen­te sobre o caráter ético das mesmas!

Por este motivo, mesmo reconhecendo a importância destas e de outras objeções possíveis, iria encerrar este ponto estabelecendo a necessidade de refletir e discutir mais inten­samente as conexões entre nosso desejo de conhecimento -e de conhecimento "verdadeiro" - e nosso desejo de viver e de viver uma vida boa em comunidade, em paz e ternura .. . sem violência nem opressão.

BREVE SÍNTESE DO ASSUNTO

Nesta parte do livro, portanto, abordamos alguns aspectos das relações entre conhecimento e poder - pondo especial ênfase nas conexões entre conhecimento, dominação e esfor­ços de libertação dos oprimidos.

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Como vemos, trata-se de algo complexo. Tendemos a fixar nosso conhecimento da realidade em idéias simples e firmes, pois isto ,pode nos ajudar a comunicá-las e mobilizar outras pessoas em tomo delas, mas correndo o risco de que as elites reinterpretem essas idéias em seu próprio favor ou, simples­mente, correndo o risco de que, mudando a realidade, fique­mos com uma visão anacrônica das coisas.

Precisamos de teorias para compreender e tentar transfor­mar a realidade, desde a realidade dos átomos e das células até a de nossas economias e religiões . Todavia, muitas vezes acontece - sobretudo se muitos compartilham conosco essas teorias, e mais ainda se este compartilhar esteve imbuído de satisfações e conquistas - que acabamos tomando essas teorias como se elas fossem "a realidade real e verdadeira" recusando-nos a ver as coisas de qualquer outra maneira. '

O papel das teorias nas lutas dos oprimidos, e os riscos concomitantes, pode ser apreciado nos processos de "cons­trução de inimigos e aliados". Aí, teoria e realidade se mistu­ram a tal ponto que chegam praticamente a se confundir uma com a outra.

Nos movimentos coletivos de transformação da sociedade emerge a exigência de intelectuais: grupos e pessoas concen­trados na construção, crítica e transformação do conhecimen­to. Sem seu concurso, dificilmente esses movimentos podem avançar. A presença dos intelectuais , contudo, está cheia de ambigüidades: desde a tendência a lhes entregar todo o poder sobre a informação. comunicação, criação e transformação de conhecimentos... até a possibilidade de usarem esse poder contra os interesses dos grupos que lho entregaram.

Por essas e muitas outras razões, os oprimidos devem colocar o sucesso de seus próprios esforços libertadores como um importante critério para discernir aquilo que deve ser aéeito provisoriamente como conhecimento e aquilo que, ao

, contrário, deve ser questionado. Claro que todo sucesso é apenas parcial e encerra uma possibilidade constante de fracasso. Dp.í a necessidade de ir muito além · do simples sucesso como critério de verdade.

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Finalmente, vimos que dada a complexidade da vida humana e a importância do conhecimento para ela, é interes­sante pensar em ampliar. multiplicar. aprofundar e flexibilizar nossos critérios de verdade. É possível que o conceito de "verdade" que temos habitualmente- e sua separação dema­siadamente radical da questão ética- seja uma das coisas que. em nosso conhecimento, constitua sintoma e fator de deterio­ração da vida humana em condições de opressão.

Mais uma vez, gostaria de sugerir que a realidade - e o esforço para conhecê-la - é algo infinitamente mais rico, variável e complexo do que geralmente imaginamos. Talvez por isso, também nesta parte, são muito mais numerosos os problemas levantados que os resolvidos . Vamos em frente.

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4. COMO EXPRIMIMOS E COMPARTILHAMOS

O CONHECIMENTO?

Até os anos setenta, quem governou na Espanha por quatro décadas foi um ditador militar católico, o General Francisco Franco ("Caudilho de Espanha pela graça de Deus", como rezava seu título oficial).

Apesar do radical anticomunismo de seu governo, era possível imprimir e vender, nos últimos anos de seu mandato, alguns autores marxistas. Nem todos, porém os mais difíceis de se ler: Lukács, Kosik, Adorno etc. Mas não a qualquer preço: o governo se arrogava o direito de fixar os preços e era, então, quase impossível achar livros marxistas baratos. Nem de qualquer tamanho: muitas vezes, os livros marxistas me­nores eram proibidos ou somente acessíveis como parte de volumosas e caras compilações. Assim, escritos marxistas mais fáceis de ler (de Lênin, Engels, Gramsci ou do próprio Marx) não havia. Ou apareciam em forma acessível só para um pequeno grupo de intelectuais.

De fato, quem tivesse dificuldades para ler castelhano -lembre-se que na Espanha há milhões de pessoas que falam outros idiomas: catalão, basco e galego entre os principais­só clandestinamente poderia ter acesso à literatura socialista. Franco, apesar de galego, dirigiu uma repressão sistemática a línguas e culturas da península ibérica diferentes da castelha­na: não era, portanto, possível, em Barcelona, publicar obras marxistas em catalão ... mas tampouco era possível celebrar em Orense a missa em galego ou festejar em Loyola um casamento com roupas e danças tradicionais bascas, ou contar histórias em aragonês às crianças de uma escolinha de Sara­goça.

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Marta era colega minha do curso secundário no Colégio "Leal" de Caracas. Uma das matérias nos era ministrada por um amáyel professor, já de idade. Muitas vezes, o professor corrigia a maneira de falar e de escrever de Marta: "Isto não se escreve assim, Marta", "Vocês sempre pronunciam mal o 'v', Marta", "Como vocês falam mal aqui o Espanhol".

Um dia em que Marta estava muito aborrecida porque fora mal em diversas matérias, o professor - que parecia de mau-humor - tornou a corrigi-la, na sala de aula, diante de todo o mundo: "Minha filha , pronuncie os essesl Quando é que você vai aprender a falar sua própria língua?" Foi a gota d'água que entornou o copo . Marta saiu chorando da sala e foi embora para casa.

Passados uns dias, a maioria dos alunos percebeu que o professor tinha mudado de atitude. Fomos então perguntar a Marta o que tinha acontecido. "Falei com mamãe", disse-nos ela. "Ela é professora de Lingüística na Faculdade. Veio falar com o professor e foi bastante enérgica com ele". Pergunta­mos: "O que ela disse a ele?" "Quase nada", disse Marta. "Perguntou se ele, por acaso, não sabia que o castelhano era apenas uma das várias línguas espanholas e era visto até poucos séculos antes como um latim mal falado, próprio de camponeses analfabetos .. . e que, assim, como na Espanha tinham revolucionado o latim, que ele deixasse em paz os venezuelanos fazerem o mesmo com este seu dialeto ibérico" .

Quase todos os seres humanos nascemos ouvindo e aprendendo um idioma. Este idioma se torna algo tão familiar e espontâneo, tão inconscientemente entranhado em nosso ser, que chegamos a assumi-lo como se fosse uma realidade natural e eterna. Por isso, de modo geral, refletimos pouco sobre a linguagem, sua história, sua variedade, suas mudanças e a importância de tudo isso . E, exceto quando fizemos o esforço de conhecer e entender a fundo uma cultura diferente com outra língua, pouco pensamos acerca do fato de cada língua se achar ligada, também, a uma maneira peculiar de ver e compreender o mundo.

Um dos pontos que eu quero frisar aqui é, justamente, a importância da linguagem no conhecimento da realidade. E

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vice-versa: a influência daquilo que conhecemos sobre a nossa maneira de falar acerca do mundo (consigo mesmo e com os outros).

Claro, somente acerca desta questão se podem escrever, e já se escreveram, inúmeros volumes (como também sobre qualquer uma das matérias que estamos abordando até aqui). Eu apenas gostaria, de novo, de abordar meia dúzia de aspectos relativos aos vínculos entre linguagem e conheci­mento. E gostaria de insistir, mais uma vez, em ver este assunto em relação com vários dos problemas que nos atingem mais gravemente, hoje, na América Latina. Assim, então, vou começar abordando a linguagem como instrumento de conhe­cimento da realidade, enfatizando como a língua, ao mesmo tempo em que abre possibilidades, fixa limites, não apenas à nossa capacidade de conhecer a realidade, mas também à nossa habilidade para agir nela. A seguir vou passar a vista no problema de como os processos de dominação social vêm muitas vezes acompanhados de uma espécie de "política da linguagem", política que aponta precisamente para o controle da capacidade coletiva de conhecer e transformar a realidade.

Mais adiante, vou compartilhar algumas reflexões sobre o modo como o silêncio - que poderia parecer apenas ausência de linguagem - pode ter significações sumamente diversas, conforme as circunstâncias. Este é um ponto que acrescentei a meu esquema inicial como outros muitos, graças a críticas e sugestões de meus estudantes de São Paulo.

Depois, vou me referir aos esforços de "reapropriação criadora" da linguagem por parte dos grupos oprimidos. Nes­ses processos, é possível achar, parece-me, uma das múltiplas maneiras como se exprimem e de~envolvem lutas de liberta­ção.

Já quase para encerrar, e em íntima relação com o ponto anterior, vou criticar dois pólos entre os quais vacilam, tantas vezes, muitos esforços de libertação da linguagem: "elitismo" e "populismo", para denominá-los de algum jeito. E, além desse aparente dilema, vou insinuar algumas alternativas factíveis.

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Enfim, vou concluir esta parte de minhas reflexões sobre o conhecimento meditando sobre outras importantes "lingua­gens" difE2rentes da prosa verbal- ling_uagem corporal,_ símbo­los religiosos etc. e seu papel em relaçao com o conhec1mento.

ALGUMAS DIMENSÕES DO PROBLEMA

A linguagem como instrumento de construção do mundo

Muita gente sabe que Colombo chegou à América em 1492, que as pirâmides do Egito ainda existem e ficam perto do deserto, que a água poluída possui organismos microscó­picos que podem fazer mal à saúde humana e que torturar fisicamente um nenê é um dos piores crimes que se podem cometer.

Como é que tomamos conhecimento daquilo que aconte­ceu antes de nascermos? Como chegamos a saber aquilo que acontece em lugares onde nunca estivemos? Que tipo de investigação fizemos para nos informarmos sobre aquilo que não podemos perceber por nossos sentidos? Qual o caminho que temos de percorrer para chegarmos a conhecer as normas, crenças, símbolos e ritos que reconhecemos como válidos?

Gostaria de sugerir que, como aqueles e em muitos outros casos, talvez a maior parte do que conhecemos, nós o conhe­cemos através da linguagem. Chegamos à maioria de nossos conhecimentos não por experiência própria nem por investi­gações pessoal e direta : nós os adquirimos quase sempre por experiências comunicadas (experiência alheia e indireta, ex­periência de outras pessoas, que nos foi participada oralmente ou por escrito)

Se a maior parte daquilo que conhecemos nos foi trans­mitida, eu me atreveria a dizer então que, ao menos em nosso mundo contemporâneo, a linguagem não é somente _nossa principal ferramenta de transmissão de conhecimento. E tam­bém nosso primeiro instrumento de conheômento.

Conhecemos o mundo, em primeiro lugar, através das palavras dos outros ... e, em seguida, através de nossas pró­prias palavras : aquelas com as quais dizemos a nós mesmos

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aquilo que vemos, recordamos, ouvimos, suspeitamos, sabe­mos, desejamos e sonhamos.

A única experiência, sem linguagem para se exprimir, ficaria somente no nível de uma "impressão pessoal", dificil­mente comunicável, que ainda não seria conhecimento pro­priamente dito. Não quero dizer com isto que as "impressões pessoais" sejam alguma coisa "inferior" ao conhecimento, nem que não possa haver conhecimento baseado, por exem­plo, nos sentimentos e nas instituições. Em absoluto! Certa­mente, uma grande parte daquilo que conhecemos se fundamenta, ao menos em parte, em nossas emoções. Aquilo que desejo dizer é isto: aquilo que sentimos só conseguirá se tornar conhecimento propriamente dito se, entre outras coisas, conseguirmos exprimi-lo, de alguma forma, em palavras.

A linguagem, portanto, nos permite ou facilita formular aquilo que intuímos, suspeitamos, descobrimos ou sabemos; possibilita-nos relacioná-lo com outras coisas e ir assim mais longe do que o já sabido ; capacita-nos a refletir, difundir, controlar e discutir nossos conhecimentos.

No tempo próprio, de algum modo, a linguagem específica de que dispomos define possibilidades, tendências e limites do nosso conhecimento. Há, por exemplo, línguas e idiomas indígenas da África, Ásia, América e do Oceano Pacífico que não permitem falar do indivíduo como alguém separado e distinto de sua comunidade (não possuem pronomes equiva­lentes aos nossos "eu", "me", "mim", "comigo", "meu", "mi­nha", "meus" ou "minhas"). Sendo assim, essas línguas obrigam as "pessoas" que não conhecem outros idiomas a pensar e agir como membros de um todo maior, tendo sempre em conta o resto de sua comunidade1

1. Maurice Leenhardt, antropólogo europeu, estudou como uma cultura da Melanésia criou um termo novo "Do-Kamo", para exprimir uma experiência nova (a experiên­cia do "eu" individual - experiência provocada e interpelada inconsciente e constantemente pela linguagem e pela conduta de professores, sacerdotes, antro­pólogos, policiais e outras autoridades ocidentais). Cf. seu livro: Do-Kamo.

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Nota

Há idiomas, em outras comunidades indígenas, que in­cluem em sua própria construção gramatical o sujeito do conhecimento (indicando se aquilo que alguém afirma o sabe por experiência própria e direta ou se o sabe por informação de alguém que teve experiência direta dos fatos narrados): nesses idiomas só é pensável, então, afirmar uma coisa que foi vivida ou pela própria pessoa que fala ou por alguém que esta conhece pessoalmente. Denomino essas línguas "idiomas responsáveis", porque nelas sempre fica claro como é que se sabe o que se sabe ... diversamente de nossas línguas moder­nas, que qualifico de "não-responsáveis", pois nelas alguém pode afirmar "Deus existe" ou então "os economistas sabem qual é a solução", mas não toma o incômodo de informar como é que chegou a saber essas coisas de tamanha importância.

Uma velha amiga, que trabalhou como missionária no Tibete durante anos, me contava coisas muito interessantes que ela aprendeu a esse respeito com os tibetanos. Para os tibetanos, "converter-se " a outra religião pode ser compreen­dido como "subir a um nível superior", mas sem jamais abandonar a religião familiar: os termos para falar de "aban­dono" das tradições religiosas ancestrais qualificam esse gesto como algo criminoso, pecaminoso. Por isso, os tibetanos sentem enorme dificuldade para entender essa feia obsessão cristã de os pressionar a pecarem contra a comunidade e, no entanto, muitos ainda se convertem ao Cristianismo ... mas sem nunca renegar a própria religião anterior. Para os tibeta­nos, "alma" se identifica intimamente com a idéia de "sete" (as almas, portanto, são sete no Tibete). Por isso, eles 'não conseguem entender a idéia ocidental cristã de "salvar a alma" (qual das sete?) . A idéia de "pecado", por sua vez, se acha associada à idéia de quebra da harmonia cósmica e/ou da harmonia comunitária. Quando os missionários ocidentais chegaram pregando coisas, como masturbar-se é um "peca­do", a pergunta das pessoas era esta: de que modo isso destrói a harmonia cósmica ou comunitária ... ? E os missionários não eram capazes' de se explicar satisfatoriamente!

Cada cultura, através , entre outras coisas, de sua língua, contempla, organiza, constrói o mundo, a realidade, de um

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modo todo seu e diferente do de qualquer outra cultura qualquer outra língua. Cada linguagem define possibilidades' tendências e limites tanto de nossos pensamentos como d~ nossos atos: faz-nos ou nos impede de associar certas coisas com outras (positiva ou negativamente); impele-nos a imagi­nar , desejar ou rejeitar certas coisas a partir de outras; confir­ma-nos certos comportamentos como aconselháveis, inibindo porém outros como perigosos ou intoleráveis.

De certa maneira, a linguagem marca profundamente nossas possibilidades e nossas inclinações , tanto para conhe­cer como para transformar a realidade.

Controle da linguagem e dominação

Essa importância da linguagem, para conhecer e transfor­mar ~ realidade, acarreta profundas conseqüências para as relaçoes de poder entre as pessoas e as comunidades huma­nas.

Quando os europeus invadiram a África e a América (séc. XV), duas lucrativas empresas floresceram então: a do comér­cio e a da utilização de escravos africanos. Alguns milhões de afncanos de centenas de culturas e idiomas diferentes foram transportados durante os quatro séculos seguintes para as Américas.

Diversas "políticas lingüísticas" surgiram, então, nestas plagas americanas. Uma foi muito comum entre aqueles que eram donos de muitos escravos, por exemplo, para cultivar cana-de-açúcar, café, tabaco ou algodão. Consistia em com­prar escravos de idiomas diferentes, para que não pudessem se comunicar entre si em uma língua desconhecida para os donos. Outra política adotada foi a de castigar os escravos que falassem em seu próprio idioma, obrigando-os a se comunicar exclusivamente na língua dos patrões. Também foi proibido que os escravos aprendessem a ler ou escrever. Assim além de se evitar que ficassem a par de coisas que poderi~m ser prejudiciais para muitos proprietários (por exemplo, decretos rems ou eclesiásticos condenando a difundida prática de mutilar fisicamente os escravos rebeldes e seus cúmplices),

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dificultava-se a comunicação entre escravos (e, por conse­guinte, protestos e rebeliões coletivas).

Controlar a linguagem compartilhada por uma comunida­de humana é, com efeito, um dos mais eficientes instrumentos para dominá-la. Por isso, um dos esforços importantes em muitas tentativas de dominação consiste em controlar, reduzir e (se necessário) substituir a língua dos oprimidos . Afinal de contas, assim é mais fácil controlar, reduzir ou eliminar tam­bém a capacidade dos oprimidos para verem sua própria situação como injusta e superável ... e para acharem que é possível e desejável realizar ações coletivas no sentido de transformar essa situação.

A Bíblia é um conjunto de escritos sagrados que enfeixou e alimentou muitas rebeliões contra todo tipo de opressão. Já desde os tempos antes de Cristo, os imperadores romanos temiam as revoltas da oprimida população judaica e favore­ciam as autoridades que estimulassem uma interpretação conservadora da tradição bíblica. A crucificação de Jesus e a perseguição dos primeiros cristãos obedeceram, em boa parte, a esse temor (hoje, acostumados a separar e a contrapor "judeus" e "cristãos", tendemos a esquecer que Jesus, os apóstolos e a maioria de seus primeiros seguidores eram judeus).

Passados pouco mais de duzentos anos, o imperador Constantino o Grande se fez cristão, o Cristianismo se tornou a religião oficial do Império e os líderes da Igreja passaram de perseguidos a poderosos dentro do Império. Nasceram então "políticas lingüísticas" sumamente interessantes com relação à Bíblia. Por um lado, os dirigentes eclesiásticos começaram a definir que textos (da antiga tradição judaica e das novas Igrejas cristãs) tinham que ser aceitos pelos cristãos corno revelados por Deus e que outros, ao contrário, teriam que ser rejeitados corno "apócrifos". Corno de muitos textos se acha­vam versões diferentes, começou-se então a estabelecer quais as versões que deveriam ser aceitas como legítimas e quais não. E assim, no decorrer de alguns séculos, no meio de muitos conflitos, foi definido um "cânon" da Bíblia (isto é, uma norma

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oficial estipulando que versões de que textos cornpunlltllll o conjunto dos Livros Sagrados para as Igrejas Cristãs).

Corno o latim se tornou a língua oficial do Império romano e das elites eclesiásticas, o cânon da Bíblia foi integralmente traduzido para o latim e se desenvolveram outras "políticas lingüísticas". O latim, língua da minoria culta que sabia ler e escrever, passou a ser quase o único idioma em que a Bíblia podia ser transcrita ou lida. Conseqüência? Os setores popu­lares da Europa, durante cerca de mil anos, não conheceram outra Bíblia senão aquela que era lida e pregada nos púlpitos das igrejas pelos sacerdotes, poucos, que sabiam ler latim e que se dignavam de traduzi-la do púlpito para as línguas populares. E, mesmo então, muitas vezes eram os textos mais inócuos e as interpretações mais conservadoras que domina­vam a pregação eclesiástica. Deste modo se garantiu, durante mil anos, que poucas leituras ou interpretações "subversivas" das tradições judeu-cristãs fossem difundidas entre aqueles que sofriam opressão nas mãos dos latifundiários cristãos na Europa medieval ou na América colonial.

Mas existem caminhos muito mais sutis de exercer o controle sobre a linguagem dos oprimidos, reduzindo assim as possibilidades de bem sucedidas revoltas coletivas. Um desses caminhos é fixar e ensinar como "a fala correta" a maneira como as elites de um país falam e escrevem o idioma que compartilham com as camadas populares. "Corrigir", desqua­lificar, zombar ou cobrir de ridículo os usos populares de uma língua são parte dessa "política lingüística": assim se reforçam quase inconscientemente as idéias complementares de "su­perioridade" das elites e de "inferioridade" das classes popu­lares . Desse modo, se consolida a pressuposição de que se alguém tem mais poder e riqueza é por ser mais capaz, por saber mais, ser mais inteligente; enquanto o que tem menos poder é porque é mais ignorante, estúpido ou preguiçoso (e se alguém quer viver melhor, isto é, como os mais poderosos, tem que aprender a vestir-se, comportar-se e falar como eles ... e se não o consegue, não deve queixar-se de seu "azar"). Por isso, talvez seja importante começar a refletir criticamente acerca daqueles a quem se "corrige" o uso da língua, como, quando, onde e com que efeitos.

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Enfim, quero mencionar rapidamente duas coisas a mais, que podem habitualmente funcionar como "políticas lingüís­ticas" de controle dos oprimidos. Uma é "falar esquisito", usar uma linguagem deliberadamente obscura e confusa para se mostrar como o maior conhecedor de um assunto e, deste modo, conquistar ou consolidar maior poder em um setor especial. Outra, semelhante, é usar uma linguagem de "pen­to", quando falar com gente "não perita" no campo de espe­cialização próprio : boa maneira para se fazer calar a pessoa que não é "especialista" , para lhe impedir que critique a teona ou a prática do "especialista" e, assim, em última análise, lhe impor os interesses do "perito", inclusive contra os do "clien­te", "estudante" ou "paciente" do próprio "especialista". Creio que o leitor destas linhas poderá recordar experiências con­cretas onde se colocou às vezes de um lado, às vezes do outro, em "políticas lingüísticas" como aquelas aqui apontadas.

A comunicação silenciosa

Claro que, em certo sentido, para dominar melhor, os poderosos têm interesse em silenciar boa parte das vozes dos oprimidos: as vozes de dor, protesto, denúncia, anúncio de um mundo diferente ou convocação à luta coletiva por uma vida welhor. Se o conseguem, mediante repressão, propaganda, prêmios etc., o silêncio dos oprimidos significará, ao menos por algum tempo, uma vitória dos poderosos: um obstáculo para que os oprimidos construam um conhecimento da reali­dade adequado a suas próprias tradições, necessidades, aspi­rações e esperanças

Assim temos o "silêncio cúmplice" daqueles que calam aquilo que conhecem pelas recompensas do silêncio ou por medo das conseqüências de falar; o "silêncio imposto" me­diante o fechamento de meios de comunicação, o encarcera­mento ou a eliminação física de pessoas; o "silêncio submisso" daqueles que acreditam mais na palavra dos poderosos que na de seus iguais ou, até mesmo, em sua própria experiência. Nesses casos, torna-se mais difícil construir um conhecimento da realidade que vá além dos interesses e dos limites impostos pelos poderosos.

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Todavia, o silêncio não é sempre nem necessariamente um obstáculo para o conhecimento nem um instrumento de opressão. No silêncio e mediante o silêncio podem ocorrer profundas formas de comunicação de experiências, sentimen­tos, conhecimentos etc.2 Isso o sabe muito bem quem vive ou recorda relações de longa e intensa intimidade com outra pessoa (na maternidade, amizade, namoro, relações familiares etc.). Faz também parte da experiência daqueles que encon­tram impedimentos para se comunicar pelos canais ordinários: pessoas surdas, mudas, cegas, paralíticas ou parcialmente incomunicáveis.

Na Venezuela, em diversas prisões de mulheres, existem janelas gradeadas pelas quais as presas podem passar as mãos e se comunicar com quem está na rua. Poucos são os dias de visita "oficial" para as prisioneiras. Floresceu então outra forma de "visita": da rua. A distância e o montão de gente não permitem que as presas falem com os "visitantes" lá fora. Com o correr dos meses, porém, cada mulher presa- em combinação com seu visitante particular- desenvolve toda uma linguagem manual para ter longas conversas privadas entre a janela e a distante rua de frente. Assim se torna menos dura e menos l~riga para essas mulheres e para seus companheiros a espera pelos dias de visita "oficial" face a face.

Existe o silêncio da escuta: contrapartida indispensável de uma verdadeira comunicação, mas, também, requisito do diálogo autêntico, o único que possibilita, mediante a crítica, transformação e apropriação criadoras que gerem conheci­mentos. Existe o silêncio da contemplação: capacidade de conhecer, no silêncio e no encantamento , a beleza, o valor, o sagrado, a bondade ou, mais simplesmente, a própria vida.

E, do mesmo modo, existem muitas formas em que o silêncio pode exprimir com maior ou menor eloqü8ncia, um

2. Observe-se. neste sentido, corno cresceu nas últimas décadas a produção de textos sobre comunicação não-verbal, expressão corporal etc.

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ponto de vista dos oprimidos, suas reivindicações e esperan­ças. Por exemplo, o silêncio aparentemente submisso, inclu­sive acompanhado de um leve assentimento de cabeça e de um grunhido semelhante a um "sim" mas que, no fundo, é bem compreendido por uma pessoa familiarizada com a situa­ção, significa algo assim como: "Embora eu não esteja de acordo, não tenho por enquanto força para resistir. Talvez depois, ainda veremos" .

Ou ainda o silêncio glacial. de resistência desafiadora ou agressiva, anunciando tempestade. Ou, também, o silêncio deliberado de protesto diante da palavra dominada, como os desfiles de pessoas amordaçadas denunciando a falta de liberdade de imprensa. Ou, finalmente, o silêncio "tático" daqueles que percebem que falar abertamente pode ser um suicídio, e resolvem esperar ativa ou pacientemente por dias melhores . E esse silêncio pode ser ou não acompanhado pela criação sigilosa de novos espaços. meios e formas de comu­nicação entre os subjugados.

Na América, os povos indígenas e afro-americanos. mas também muitas vezes as mulheres, os camponeses. e muitas pessoas que trabalham como operários e empregados, se viram obrigados a cultivar uma enorme gama desses "silêncios eloqüentes" . sobretudo nas relações com os grupos e as pessoas que ocupam posição de maior poder.

Para uma reapropriação criativa da linguagem

Nossa relação com a linguagem é, ao mesmo tempo, sintoma e sustentáculo de nossos vínculos com a realidade, inclusive de nosso modo de conhecer o real.

Podemos ter uma posição rígida e submissa diante da linguagem: pensar que cada palavra tem um sentido único, claro e permanente, e que os dicionários e os eruditos aí estão para nos ensinar o que significam e como devemos usar essas palavras.

Uma atitude como esta, parece-me, vai sempre acompa-. nhada de uma concepção hierárquica e autoritária da realida­de: todas as coisas e pessoas já têm seu lugar exclusivo e

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inalterável, devendo as inferiores se submeter sempre às superiores. Além disso. esta posição irá propiciar que vejamos o conhecimento de maneira análoga: existe somente uma maneira correta de conhecer a realidade, conhecida pelos peritos/especialistas; se aprendermos com eles, alcançaremos a verdade, que é também imutável e única.

Recordo aqui uma dura e breve troca de palavras que ocorreu. em 1971. num grupo de estudantes latino-americanos na Europa. Helena e Ângelo discutiam sobre a conveniência ou não de um sistema democrático multipartidário. A uma certa altura, Ângelo argumentou que, "Em O Estado e a Revolução Lênin afirma que ... " "Pára! -interrompeu-o brus­camente Helena. - Eu quero saber o que é que você pensa a respeito; não Lenin, mas você!" Esse encontrão me fez ver que. muitas vezes, em vez de pensarmos com nossas próprias cabeças, recorremos a outras pessoas e a suas palavras para dar uma resposta definitiva às nossas preocupações.

Claro, esta não é a única maneira de ver as relações entre linguagem. realidade e conhecimento. De fato me parece que esse modo rígido e submisso de se situar diante da linguagem é contraproducente para aqueles que desejam conhecer a realidade para transformá-la, no intuito de superar relações sociais opressivas.

Uma língua - cada idioma - pode ser vista como uma criação humana em permanente transformação, cheia de vida e das complexidades e tensões que fazem parte da vida. Assim, a linguagem pode ser compreendida como um conjun­to dinâmico de ferramentas para exprimir, comunicar e trans­formar a experiência humana. Além disso. podemos compreendê-la como uma dimensão da vida humana comu­nitária, entretecida complexamente com as outras dimensões dessa mesma vida: uma dimensão que exige, possibilita e, ao mesmo tempo, limita a participação criativa, em seu próprio devir, daqueles que compartilham a mesma língua.

Julgo que se compreendêssemos assim a linguagem di­nâmica e participativamente, seria mais fácil integrá-la em

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esforços eficazes de transformação libertadora de nossas vi­das3.

Participar ativa e coletivamente na reapropriação criativa da linguagem compartilhada pode impulsionar nossa capacl­dade de conhecer de modo novo a realidade dentro da qual se sofre opressão e que se procura transformar.

Examinemos agora alguns casos históricos, para ilustrar aquilo que estou sugerindo com esta idéia.

Quando a Espanha e Portugal invadiam as Américas- por volta dos séculos XV e XVI- estava se alastrando pela Europa a Reforma Protestante. Uma das grandes mudanças introdu­zidas pela Reforma, no tempo em que a imprensa começava a se difundir foi a tradução de Bíblia para as línguas populares européias (~lemão, francês, inglês, italiano, português etc.). Isto colocou a Bíblia inteira - pela primeira vez em mil anos -ao alcance de muitos ouvidos populares (como poucos sabiam ler, muitos pregadores liam em voz alta, em línguas "vulgares", textos bíblicos em grande parte desconhecidos até então). Em poucos anos, milhares de camponeses se apropriaram da linguagem bíblica como fundamento e símbolo de suas -~spe­ranças de vida melhor ... e se lançaram contra o~ latlfund1anos, que os tinham explorado durante muitas geraçoes nas chama­das "guerras camponesas" anabatistas da Alemanha e da Boêmia.

O caso da Revolução Sandinista na Nicarágua (1979-1991) pode ser visto, também, pelo ângulo da reapropriaç~o criativa de uma linguagem compartilhada. Neste caso, a lmguagem das tradições socialista, democrática, cristã e sandinista, no castelhano próprio desse país centro-americano. A Frente Sandinista conseguiu, em poucos anos, criar um ideário pró­prio e original, capaz de reivindicar muitas aspirações centrais dos nicaragüenses dos anos 80; articulá-las com elementos

3. Parece-me que uma boa parte dos esforços do m~~imento de al~a~e;,ização ~e adultos, animado por Paulo Freire e conhecido como consctent!zaçao , educ~çao libertadora" ou ainda "pedagogia do oprimido", vai precisamente nesta dtreçao.

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importantes das quatro tradições citadas; criticar nessas tra­dições aspectos repugnantes para significativos segmentos da população da Nicarágua e da opinião pública internacional; e, finalmente, exprimir esse conjunto de idéias em uma lingua­gem e em formas de comunicação originais dos setores popu­lares da Nicarágua. Com esse ideário, a Frente Sandinista contribuiu para uma bem sucedida mobilização popular contra a ditadura somozista e, a seguir, para uma democracia plura­lista e participativa com uma economia mista e mais autôno­ma.

A isso eu denominaria "reapropriação criativa" de uma linguagem compartilhada pelos oprimidos : a linguagem bíbli­ca camponesa alemã e tcheca dos séculos XV e XVI, em um caso; e, noutro, o castelhano político-religioso popular nicara­güense dos anos 70-90, deste século XX.

A "reapropriação criativa" da linguagem pelos oprimidos poderia ser compreendida simplesmente como uma "aprendi­zagem". Segundo esta ótica, os pobres são pobres porque não tiveram educação suficiente, ou para "subir" na escala social (visão "de direita") ou então para se "insurgir" contra o sistema (visão "de esquerda"). Em qualquer desses casos, o acento vai cair no aprender algo preexistente, algo ensinado por outros: aqueles que "já sabem"

Nestas linhas, o que desejo sugerir é algo bem diferente: o conhecimento é algo sempre por fazer, refazer, criticar e transformar. A linguagem é um dos principais instrumentos para construção, comunicação, crítica e transformação do conhecimento. Para deliberadamente transformar a realidade, segundo valores e objetivos compartilhados por uma comuni­dade, é preciso transformar também ao mesmo tempo nosso conhecimento da realidade (isto é, nossa visão do mundo juntamente com a linguagem na qual a exprimimos).

Ora, acredito que se nos relacionamos passiva e submis­samente com o conhecimento e com a linguagem já existentes (por exemplo, dedicando-nos a "aprendê-los" ou a "ensiná­los"), dificilmente poderemos contribuir para transformar nos­sa realidade além do contexto dos valores dominantes em nossa sociedade.

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Por isso, se aquilo que se busca é superar relações de opressão, parte do que teria que fazer é retomar a linguagem que herdap1os do passado (com as idéias nela expressas) e "apossar-nos" crescentemente dela: criticá-la coletivamente, transformá-la criativamente, enriquecê-la ativamente .. . até conseguir com autonomia ver e dizer nossa realidade a partir de nossa experiência de opressão e à luz de nossa esperança de libertação.

Neste sentido, parece-me que uma tarefa libertadora pri­mordial é esta: a reapropriação criadora da linguagem por parte daqueles que sofrem opressão.

Marginalização, libertação e linguagem

Com certeza. todas as pessoas que lerem estas linhas terão ouvido e lido expressões como "águas negras" (inclusive referindo-se a águas contaminadas com substâncias de cor branca) e "águas brancas" (esta última expressão até para aludir a águas não contaminadas, embora tenham cor muito escura às vezes , como as do Rio Negro, perto de Manaus, AM). Igualmente, ouvimos insultos, como: "Só podia ser índio (negro)!"- usada apenas para ações reprováveis- assim como um sem-número de piadas onde os índios e afro-americanos são cobertos de desprezo e ridículo. Da mesma forma, fazem­se injúrias e brincadeiras de mau-gosto à custa de outros setores com pouco poder e desprezados pelas elites: lavrado­res , mulheres . homossexuais , operários, habitantes das peri­ferias urbanas, gente de fora da capital, trabalhadores imigrados, inválidos, anciãos, analfabetos etc.

Poucas expressões similares se encontram com relação aos grupos poderosos. E as poucas que encontramos invaria­velmente cobrem de ridículo membros da elite , precisamente por não serem 100% como deveriam ser. isto é, por apresen­tarem, ainda que distante, algum traço de parentesco que os identifique com grupos menos poderosos da sociedade.

Estas são formas com as quais, através da linguagem, manifestamos e consolidamos, em geral de modo inconscien­te, as relações de dominação que caracterizam nossas socie­dades .

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A esmagadora maioria das comunidades humanas que conhecemos viveu, durante gerações, a submissão de alguns de seus setores (com freqüência maioritários) debaixo do poder de outros grupos (concidadãos ou estrangeiros) Essas condi­ções opressivas, habitualmente, marcam a linguagem daque­les que nelas se acham envolvidos: graçolas, ofensas , elogios e, em geral expressões emocionalmente fortes (até mesmo galanteios e palavras de amor) recorrem repetidamente às relações de poder como uma de suas principais fontes de sentido4

.

Por tudo isso, um dos muitos terrenos em que hoje se travam lutas pela auto-estima, pela emancipação e autonomia de setores oprimidos é justamente o da linguagem.

Com efeito, poder-se-ia afirmar que a linguagem tem um papel-chave nos processos de libertação. Se nosso modo de falar da realidade (linguagem) se mantém o mesmo em que se gestou em harmonia com circunstâncias opressivas, isso re­forçará (em nós e naqueles que nos rodeiam) uma visão conservadora dessas condições de opressão. Por conseguinte, nosso modo de agir diante da realidade tenderá, apesar de nossas intenções em contrário, a confirmar e consolidar as condições opressoras que desejamos alterar . Esta é uma hipótese compartilhada pela maioria daqueles que criticam o racismo, o machismo, o classismo e outros "ismos" que infestam nossa linguagem cotidiana.

Poderíamos , pelo contrário, procurar constantemente -em comunidade - a crítica e a transformação da linguagem cotidiana, a fim de que esta exprima uma visão mais aberta, flexível, humilde e igualitária da humanidade. Tal esforço,

4. O fenômeno e muito mais grave e mais profundo do que poderia parecer à primeira vista. Foi analisado e denunciado sempre com maior vigor nas últimas décadas. a partir do campo da filosofia e da lingüístisa (Michel Foucault, Luce lrigaray, Noam Chomsky) , passando pela antropologia e pela teologia (James Cone . Elisabeth Schüssler-Fiorenza), até a psicologia e as ciências políticas (Caro] Gilligan, Imma­nuel Walerstein). Foi, sobretudo, a partir dos movimentos e estudos feministas, negros e indígenas que esta preocupação se tornou mais aguda e desenvolvida.

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sendo persistente e coletivo, pode contribuir para difundir, aprofundar e disseminar esta mesma visão da realidade. E, nesta dinâmica, é bem mais provável que proliferem iniciativas práticas pàra modificar a realidade no sentido apontado.

Neste sentido, eu insinuaria que uma "libertação da lin­guagem" poderia fazer parte de qualquer esforço emancipador que pretenda ser eficaz. Mais ainda, se aquilo que se procura é, precisamente, construir, discutir, comunicar, criticar e mo­dificar um conhecimento da realidade para transformá-la.

Linguagem popular: elitismo x populismo

Aqui me vem à mente a lembrança de uma experiência que tive nos EUA convidado como palestrista por alguns grupos de latinos que vivem ali desde a juventude. Acontece que, desde as primeiras palestras, tratando de temas seme­lhantes aos deste livro, observei que algumas pessoas na audiência pareciam não compreender bem o que eu estava querendo dizer. Primeiro pensei que era questão de idioma e então explicava as mesmas idéias tanto em castelhano como em inglês. Como a coisa não ia melhor, pensei que estava falando muito complicado: procurei falar mais clara, simples e ordenadamente- usando exemplos, chistes e alguns desenhos e esquemas no quadro-negro. A coisa melhorou, mas não muito . O estranho para mim é que eu nunca tinha experimen­tado essa situação - nem com latino-americanos na América Latina nem com estadunidenses nos EUA Assim, dediquei­me intensamente, durante alguns dias, a conversar informal­mente com as pessoas do grupo dos latinos e com alguns dos líderes da instituição que patrocinava encontros e palestras como a minha.

À medida que os dias iam passando, comecei a compreen­der o problema. A maioria dos assistentes nunca tinha lido nem escrito castelhano: era o idioma da casa materna, do afeto e dos conflitos da infância e adolescência. Mas era também uma linguagem desprezada fora de casa pela Igreja, exército, escola, policia, oficinas, comércio, empregadores etc. e, às vezes, até mesmo dentro de casa (por familiares desesperados

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em se adaptarem e subirem nesse novo país onde se viam desprezados).

Quase todos os que tinham dificuldades com minhas palestras falavam, liam e escreviam normalmente o inglês, excetuando alguns que nunca tinham podido ir à escola porque trabalhavam desde crianças . Mas o inglês era para eles uma língua 1mposta: a língua estrangeira e obrigatória da escola, da igreja, do exército, do emprego, do comércio e da televisão. Nem no castelhano (do lar, infantil, analfabeto e desprezado) nem no inglês (estrangeiro, arrogante, metalizado e imposto), havia entre eles a experiência de discutir política, religião e problemas sociais, éticos e filosóficos.

Todo um mundo de linguagem e, portanto , de conheci­mento comum à maior parte dos latino-americanos da Amé­rica Latina e a boa parte dos estadunidenses dos EUA lhes era ainda alheio .

Como estimular, num caso como este, uma "reapropriação crítica", uma certa "libertação da linguagem"? Embora eu não possua a resposta, é preciso, parece-me, partir da linguagem real, at\,lal, dos oprimidos, tal como é falada, escrita, lida e entendida por eles.

Poderíamos, claro, partir da linguagem das elites ou da gíria particular de certas "minorias críticas" (filósofos existen­cialistas, teólogos da libertação, políticos socialistas, escrito­ras feministas, historiadores afrocentristas, sociólogos marxistas, antropólogos indigenistas etc.). De fato , acredito que é isto o que mais comumente se faz.

O problema, em minha opinião, é que isto pode agravar a situação. Isto pode confirmar, sem que ninguém o queira nem o procure, aquilo que todos os dias, através de milhares de aspectos da vida, a maior parte dos marginalizados está acostumada a ouvir: que eles não sabem falar, não entendem a própria situação nem são capazes de transformá -la ... que são os outros que falam como se deve falar, conhecem adequada­mente a realidade e sabem como melhorá-la .. . que os margi­nalizados são ignorantes, estúpidos e incapazes .. . e que devem, portanto, deixar-se levar, passiva e submissamente,

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pelas elites (sejam estas de "esquerda", "centro" ou "direita"; profissionais , políticas, econômicas ou religiosas; ateístas, muçulmar:as, católicas ou protestantes).

A uma "política libertadora" desse tipo eu daria o nome de "elitista". Não tanto por surgir, geralmente, de gente nascida nos setores mais ricos da sociedade ou educada em seus moldes. Mas, sobretudo, por obedecer ao preconceito de que apenas minorias seletas sabem o que "as massas" devem pensar, dizer e fazer, preconceito que, a meu ver, estimula passividade, submissão e autodestruvidade entre os margina­lizados, consolidando ao mesmo tempo o poder, as atitudes e a conduta das elites (e, portanto, as condições opressivas)

Por isso, quero insistir: para articular uma certa "libertação da linguagem", é preciso, parece-me, partir da linguagem real, atual, dos oprimidos, tal qual é falada, escrita, lida e entendida por eles.

Contudo, existe uma outra tendência oposta ao "elitismo" e que me parece interessante analisar com respeito aos esfor­ços de "libertação da linguagem".

A "linguagem real e atual dos oprimidos" é, comumente, como já observamos, uma linguagem profundamente marcada pela opressão: linguagem construída sob a influência das elites, cheia de mecanismos de imitação e adaptação aos valores dominantes; de muitas formas, veículo de opressão e, muitas vezes, transpirando autodesprezo e ressentimento. Além disso, a linguagem popular é, com freqüência, uma linguagem parcialmente "empobrecida": faltam-lhe os termos e as expressões capazes de exprimir a realidade em muitas de suas nuances (informativa, tecnológica, cultural etc.) às quais somente as elites têm acesso contínuo e constante.

Investigar, recuperar, valorizar, reivindicar e difundir a linguagem popular- a "linguagem real e atual dos oprimidos" - é, julgo eu, uma forma de superar as nossas tendências "elitistas". Mas ficar somente nisto é esquecer- e consolidar por omissão- que a linguagem popular é, ao menos parcial­mente, produto e instrumento de processos de dominação social.

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A isso eu daria o nome de "populismo " : uma valorização ingênua, acrítica, do "popular". Valorização freqüentemente feita a partir das elites e usualmente útil para promover uma harmonia entre as elites e o povo sem mudar em nada as relações de opressão entre ambos .

Mas acontece que a linguagem popular é, em parte, fruto de um processo de expropriação material e espiritual que muitas vezes deixa os oprimidos sem recursos para ampliá-la, enriquecê-la, criticá-la e refazê-la. Assim, a "linguagem real e atual dos oprimidos" , muitas vezes, apresenta obstáculos para captar, exprimir e comunicar a complexidade dinâmica da realidade. Por isso justamente, essa linguagem, tal e qual, é muitas vezes insuficiente para alimentar a capacidade crítica e transformadora dos setores socialmente marginalizados.

Por isso, além de investigar, recuperar, valorizar, reivindi­car e difundir a linguagem popular, talvez pudéssemos pensar em um trabalho coletivo feito dentro e por parte dos próprios setores populares, que inclua, sempre de novo, a análise crítica e a transformação criadora da linguagem popular.

A meu ver, porém, só isso não basta. A linguagem das elites deve também ser ativamente levada em conta. A lingua­gem das elites não é só instrumento de dominação. É também ferramenta de expressão, comunicação e controle da realidade sobre a qual as elites exercem conhecimento e dominação. Eis justamente o que facilita à linguagem das elites ser igualmente instrumento de dominação ... e tornar-se norma do sistema educacional, critério de seleção social e profissional e referên­cia comum entre aqueles que falam o mesmo idioma de maneiras diferentes .

Linguagens populares e linguagens elitárias constituem, no fundo, "dialetos" de um mesmo idioma. Para "dominar melhor", as elites precisam não só conhecer seu próprio "dialeto", mas precisam também de intelectuais versados na linguagem popular, com a capacidade e a vontade de trans­mitir os valores e interesses das elites aos setores populares na linguagem destes setores.

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Igualmente, para "resistir melhor" à dominação - e para aumentar as possibilidades de bom sucesso nos esforços para transformar a situação de dominação - os setores populares necessitam, também, da linguagem das elites . Qualquer crian­ça dos setores populares sabe disso, desde que tenha concluí­do o curso fundamental ou tenha tido experiências equivalentes do poder da linguagem das elites . Em geral, esse saber se traduz e se limita a "aprender a falar e a escrever como os ricos, para poder subir individualmente na vida", muitas vezes "esquecendo" e desprezando a própria linguagem po­pular .

Parece-me necessário ir ainda muito mais longe, e se tornar, por assim dizer, socialmente bilíngüe: reapropriar -se crítica e criativamente da própria linguagem popular, fazen ­do-se dono orgulhoso desta e desenvolvendo todas as suas potencialidades libertadoras ... e , ao mesmo tempo , reapro­priar-se crítica e criativamente do dialeto dominante, apren­dendo a usá-lo como uma espécie de "segundo idioma" que aumente sempre mais as possibilidades de conhecimento da realidade, para transformá-la.

Para além da prosa escrita

Você não acha bastante aborrecidos quase todos os dis­cursos dos políticos? E o que me diz dos sermões dominicais? E dos panfletos da esquerda? E que acha das análises econô­micas da maior parte dos jornais?

Não é tanto que não se compreendam. Podem até estar elaborados em uma linguagem bem clara, bem "popular" . Nem tampouco é necessário que mintam ou falem de coisas sem importância. Podem até trazer, com bastante freqüência infor­mações graves e corretas. Mas, sem dúvida, em geral lhes falta humor, amor, afeto, realidade. Não têm variedade, colorido, imaginação, vida real. Que acha?

Penso que uma boa parte da dificuldade de todos esses "discursos" é que confiam demasiadamente na palavra falada, na prosa, na abstração intelectual, nos dados frios da estatís­tica e na argumentação "lógica" como veículos "superiores e privilegiados" do conhecimento. Mas acontece que este veí-

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culo do conhecimento não é mais que "o dialeto de uma tribo particular" . O grande problema, entretanto, é que esta "tribo particular", normalmente, está mais perto dos poderosos do que dos marginalizados .. . o que lhe dá , com freqüência, ares superiores e estilos de vida privilegiados. E isso contribui para que vejam seu peculiar "dialeto" (a gíria ou o jargão dos peritos e dos especialistas, dos intelectuais) como língua "superior" e "privilegiada" para comunicar, discutir e reconstruir o conhe­cimento humano.

Mas, por acaso, você conhece a música de Mercedes Sosa, de Chico Buarque , de Rubén Blades, de Juan Luiz Guerra e 4:40? Ou as caricaturas de Ouino, Zapata ou Gila? E o que acha da poesia de Gioconda Belli, os romances de Rubem Fonseca, as meditações do Dom Hélder Câmara, os filmes de Oliver Stone, as crônicas de Marina Colasanti, os livros de Alice Walker? Não existe em tudo isso - com mais freqüência até que na "prosa verbosa" de muitos de nossos "peritos" -conhecimento, estímulo à pesquisa, recuperação da história, articulação de teorias, crítica das "evidências" predominantes, e por vezes até "vigilância" e "rupturas epistemológicas"?

O que acontece, a meu ver, é que as linguagens humanas -e as formas de exprimir, comunicar, criticar e transformar o conhecimento - são infinitamente mais ricas do que essa "prosa verbal", do que o "discurso verboso". Inclusive a própria palavra humana apresenta uma variedade muito maior que a "prosa verbosa": poesia, quadrinhas , mito, canção, máxima, "repente", metáfora, parábola, "rap", "galerón", anedota, con­to, oração, piada, meditação, fábula, ironia, sátira ... um sem­número de outras maneiras de utilizá-la. E, junto com a palavra, ou indo além dela, há outras formas de expressão e comunicação, outras "linguagens" que podem também servir para difundir, avaliar e transformar os nossos conhecimentos: teatro, marionetes, festa, simbologia religiosa, dança, música, "descarrego", caricatura, pintura, escultura, tato, gestos, olha­res, e infinitas combinações de todos esses elementos!

Para mim, "libertação da linguagem" são os milhares de esforços atuais para reconstruir e multiplicar - a partir de realidades opressivas -linguagens capazes de anunciar novas

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maneiras de viver: abertas, flexíveis, humildes, pluralistas, fraternas, igualitárias, participativas, cooperativas. Uma liber­tação assim da linguagem, parece-me, vai além de exercícios intelectuais ' abstratos feitos sobre "a prosa verbosa". Faz-se também com a palavra "em toda a sua diversidade- mas indo para além dela: nos mais variados âmbitos e nos mais diversos canais onde as pessoas procuram se encontrar, se exprimir, se amar e se conhecer umas às outras : onde vão desfrutar, celebrar, curar, nutrir, multiplicar, defender, proteger, comu­nicar e dar sentido, em comunidade, à vida humana.

Uma autêntica libertação das linguagens populares, da palavra dos oprimidos, passa por muitas das formas de com­partilhar, criticar e enriquecer o conhecimento que se acham hoje entre as pessoas do povo comum. Quando são libertado­ras, esses esforços contribuem para quebrar os grilhões que prendem a palavra popular - bem como a experiência e a sabedoria populares - num lugar subalterno e desprezado dentro de nossas comunidades. E, analogamente, assim se podem criar pontes tensas e problemáticas sem dúvida, para um autêntico diálogo entre as comunidades populares e os mais diversos especialistas. Assim, oxalá muitas tentativas de libertação da linguagem popular alimentem a vida das comu­nidades marginalizadas de nossas Américas .

BREVE SÍNTESE DO ASSUNTO

Conhecemos nossa realidade- sabendo ou não- median­te a linguagem que herdamos das gerações pretéritas e que aprendemos no dia-a-dia com as pessoas com quem convive­mos. Esta nossa linguagem nos serve, portanto, embora às vezes não o percebamos, de ferramenta para conhecer o mundo que nos cerca: instrumentos de expressão, transmis­são, discussão, crítica e transformação dos conhecimentos que vamos construindo em comunidade. A linguagem, então, além de possibilitar o conhecimento, também o orienta e lhe coloca limites. Existem coisas que não sabemos dizer - embora as experimentemos profundamente - ou que somos incapazes de compreender porque nossa linguagem não é ainda capaz de formulá-las claramente. Coisas existem às quais prestamos

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atenção porque nosso idioma leva a isto . E há conhecimentos que só são possíveis porque dispomos das palavras para dizer aquilo que nossa experiência nos indica.

Por tudo isso, quando em uma comunidade ocorrem tentativas de dominação de um grupo humano por outro, a linguagem entra imediatamente em jogo: para justificar, ques­tionar, esconder ou denunciar a violência em curso. Se essas tentativas de subjugação saem vitoriosas, por diversas gera­ções, então nosso próprio modo de ver e dizer a realidade -mediante a linguagem tanto dos poderosos como dos margi­nalizados- se transformará .. . e tenderá muitas vezes a expri­mir e confirmar de algum modo essa vitória. Por conseguinte, também a oposição ao domínio e os impulsos para se libertar dessa dominação, se acham intimamente vinculados à lingua­gem. A linguagem de uma comunidade- em parte fruto da resistência à opressão, mas também marcada pela própria dominação - é, então, ferramenta necessária e potencial obstáculo para que os marginalizados consigam perceber, dizer, discutir, transformar suas condições de vida.

Eu chegaria a falar, portanto de uma "libertação da lin­guagem", para me referir aos esforços hoje presentes em numerosas comunidades latino-americanas para recuperar, difundir, multiplicar, expandir, aprofundar e refletir crítica e criativamente, em comunidade e com orgulho, as formas de expressão dos oprimidos; as maneiras mais características deles de definir, dizer, recordar, suportar, dissimular, refletir, chorar , meditar, ridiculizar , denunciar, enaltecer, alegrar , anunciar e celebrar a própria vida.

Existe, porém, algo mais. "Libertação da linguagem" seriam, também, todos os esforços dentro e fora dos setores oprimidos para detectar, denunciar, criticar e superar todas as facetas opressivas de nossa linguagem atual, isto é, todas as maneiras como a nossa linguagem, em toda a sua imensa variedade, inclusive indo para além das palavras, inspira e reafirma atitudes , relações e comportamentos violentos, auto­ritários , abusivos, discriminatórios e destruidores.

Talvez por aí haja caminhos para que um dia possamos ver e dizer a realidade de um modo que inspire paz, justiça e ternura.

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5. PARA REPENSAR AQUILO QUE ENTENDEMOS POR

"CONHECIMENTO"

Nos anos 80, quando Ronald Reagan era o Presidente dos EUA, um pequeno escândalo agitou a mídia e a política mundiais: graves decisões econômicas, políticas e militares do Governo mais poderoso do planeta só eram tomadas por Reagan depois de consultar Jeanne Dixon, astróloga particular e amiga íntima da Primeira Dama. Amigos e assessores da Presidência- em uma variedade surpreendente -confirmaram a notícia, recusaram-se a opinar a esse respeito ou simples­mente disseram que tudo não passava de especulação. A própria Jeanne Dixon viu aumentar as vendas de seus escritos e serviços, ao passo que muitos jornais e revistas do mundo inteiro se dedicaram a reportar coisas semelhantes em muitos governantes do presente e do passado.

Há mais de trinta anos, se me não falha a memória, li na revistaLife uma reportagem feita no Haíti. O jornalista narrava sua visita a uma operária da capital desse país caribenho. A uma certa altura da entrevista, a mulher pediu que lhe desse licença por alguns instantes , dirigiu-se ao quintal da casa e ficou por um breve lapso de tempo com as mãos postas sobre o tronco de uma árvore ali plantada. Quando ela entrou novamente em casa, o jornalista, espantado, lhe perguntou o que havia acontecido. A mulher respondeu que seu marido havia saído fazia não muito tempo, para ir ao mercado fazer compras . E ela esquecera de lhe pedir certas mercadorias. Por isso, tinha ido até a árvore. O jornalista, confuso, pediu que a mulher lhe explicasse o que é que a árvore tinha a ver com aquilo. "É que não temos telefone" -disse-lhe a entrevistada com toda a naturalidade.

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Claro que o repórter da Life prolongou sua entrevista até que o marido voltasse para casa ... e, com efeito, trazia consigo, entre outras coisas, as mercadorias mencionadas pela esposa.

Sempre que se estabelece uma boa discussão sobre este assunto , do conhecimento humano, surgem perguntas como as seguintes : Será que não podemos ter certeza definitiva de nada? Porventura, o conhecimento científico não é algo com­provado, irrefutável e em constante progresso? E onde vai parar a verdade? Será tudo relativo, tudo indiferentemente igual, será que todo o mundo tem razão? E o erro, e a mentira onde é que ficam? Que relação há entre o conhecimento científico e outras formas de conhecimento?

Na última parte destas reflexões sobre o conhecimento humano e sobre sua relação com a transformação de condições injustas, vou abordar, embora rapidamente, algumas destas perguntas cruciais.

Quero que fique bastante claro, mais uma vez, que não pretendo nem quero "esgotar" o tema do conhecimento nem todas as suas possíveis facetas. Não. O que pretendo é abordar alguns aspectos do problema do conhecimento; sobretudo aqueles que me parecem mais graves e urgentes na atual conjuntura latino-americana.

Também gostaria de deixar igualmente explícito que nem sequer sobre esses poucos aspectos do problema do conheci­mento estou pensando em dizer aqui "a última palavra". Tampouco. Gostaria apenas , sobre estas dimensões do conhe­cimento, de propor algumas idéias provocadoras para estimu­lar a dúvida, a abertura, o pluralismo, a curiosidade, a investigação, a reflexão crítica, a discussão e a imaginação criativa.

Tenho a convicção de que no tema do conhecimento humano - como em muitíssimos outros - escasseia e é necessário, precisamente, isto: abertura, pluralismo, curiosi­dade, investigação, reflexão, crítica, discussão e criatividade coletivas. O que está sobrando, e muitas vezes embotando, é, ao contrário, um dos extremos contrários seguintes (e como é fácil, às vezes, passar de um destes extremos para o outro!)

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Por um lado, abundam certezas irrefletidas, fechamento, dog­matismo, medo de se arriscar em terreno desconhecido, pas­sividade, conformismo e incapacidade para discutir essas coisas a fundo e a sério, intensa e extensamente. E, por outro lado, sobretudo nos últimos anos de crise, multiplicam-se as dúvidas paralisadoras, as incertezas autodestrutivas, a confu­são, o caos, a resignação, a indecisão, o medo.

Dito isto, portanto, vamos entrar em um conjunto de problemas que me parecem por demais importantes para ficarem fora das reflexões compartilhadas aqui (e alguns dos quais foram abordados somente em parte ao longo dos capí­tulos anteriores, mas sem maior desenvolvimento).

Entre estes está, como veremos primeiramente, o tema das ciências, da "verdade", do "progresso" e do "método" científico. A seguir, iremos nos referir ao papel das emoções e dos sentimentos- e sua relação com a razão- no conheci­mento humano. Mais adiante, abordaremos o assunto da "atividade" e "relatividade" do conhecimento . Em seguida, refletiremos sobre várias propostas para pensar o conhecimen­to de forma um tanto fora do comum: como conhecimento daquilo que (ainda) não existe; como pré-juízo (conhecimento anterior à experiência efetiva); como re-conhecimento (r eco r­dação de uma coisa previamente experimentada); como co­nhecimento (empreitada coletiva/mutirão); e como des-conhecimento (ignorância ativa e muitas vezes necessá­ria).

Depois de termos transitado por esses espinhosos terre­nos, vamos entrar em outros igualmente difíceis de abordar. Assim, adentraremos nas razões pelas quais o conhecimento se acha necessariamente em transformação constante. Fala­remos das dificuldades para continuar mantendo uma concep­ção da verdade como única, universal, permanente e absoluta e iremos propor algumas possíveis alternativas. Depois abor­daremos o tema da separação entre conhecimento e realidade, entre indivíduo e contexto, entre subjetividade e objetividade: distinções muitas vezes úteis, mas artificiais, e que pode ser importante não as ver como se fossem simplesmente distin­ções "reais". Por fim, concluiremos esta última parte propondo

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Carly
Realce

I' urna compreensão do conhecimento como reconstrução frag­mentána, parciahzada, imaginativa e provisória da realidade .

Ficamos, mais uma vez, com a convicção de ser muito mais aquilo que ficará por dizer que o que diremos; serão também mais numerosos os problemas levantados que os resolvidos; e, às vezes, muitas coisas ficarão mais confusas que antes. Oxalá tudo isso provoque novas perguntas, buscas, debates e maneiras de ver a realidade.

VÁRIOS ASPECTOS DO TEMA

As ciências modernas: utilidade e idolatria

Desde antes do século XVIII, certas formas de conheci­mento cada vez mais populares na Europa começaram a ser vistas, sempre mais, como superiores a todas as outras; como se estas possuíssem a chave daquilo que as religiões haviam prometido, mas postergado para "a outra vida": a felicidade e a libertação humanas.

Essas formas de conhecimento recolhiam muita coisa das matemáticas árabes ; da alquimia européia medieval; de uma parte das tradições filosóficas inglesas, chinesas e gregas; da confiança no progresso técnico, alimentada pela revolução industrial inglesa; da fé anticlerical da Ilustração européia -particularmente acentuada na Revolução francesa - no poder da razão humana, livre das peias da religião e, em geral, do otimismo da burguesia liberal urbana européia, certa do ine­vitável progresso da humanidade rumo a tempos de maior racionalidade, liberdade e felicidade.

A mistura desses elementos heterogêneos impulsionou energicamente- sobretudo na Europa, a partir do século XVIII - a experimentação em laboratórios, a construção e o uso de aparelhos para a minuciosa observação dos fenômenos (teles­cópios, microscópios etc.), a invenção de complexas ferramen­tas, úteis para a produção industrial (máquina a vapor, teares mecânicos etc.), a elaboração de teorias novas sobre o cosmos, a matéria e a vida (a física de Newton, a química de Lavoisier, a teoria da evolução de Darwin etc.), e ensaios de aplicação

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do cálculo matemático- então concebido como absolutamen­te racional e infalível- a todas essas atividades.

Todas estas atividades eram usualmente consideradas -na Europa antes do século XVIII - como "parte" da filosofia, da teologia, da medicina, da arte militar ou, mais simplesmen­te do trabalho humano. Pouco a pouco, porém, as universi­d~des e a imprensa começaram a mostrar cada vez maior confiança e atenção específica a esse conjunto de tarefas. Assim, estas começaram a adquirir um perfil próprio, temas, jargão, métodos, metas, livros, especialistas, aplicações úteis, prestígio, prêmios etc . E assim, lentamente, foram constituin­do um conjunto de novas formas de conhecimento, relativa­mente independentes umas das outras: astronomia, geologia, física, biologia, química etc.

Na Europa, até relativamente uns poucos séculos, era o latim o idioma comum dos intelectuais, como já dissemos. Em latim "saber" se diz "scire". Daí veio a palavra "scientia", que signÚicava "as coisas sabidas". E de "scientia" nasceu a palavra "ciência" em português (e termos semelhantes em outras línguas).

Esta palavra, "ciência", como todas as palavras, tem uma história: aquilo que se queria dizer com ela foi variando através dos séculos. Ainda no século XIX, a palavra "ciência" signifi­cava pura e simplesmente o saber, o conhecer, as coisas sabidas e conhecidas1 Mas, no último par de séculos, "ciên­cia" veio a significar as formas de conhecimento que começa­ram a adquirir prestígio e independência , sobretudo na Europa, a partir do século XVIII : química, física, biologia, geologia, astronomia, e qualquer outra com traços análogos a estas.

Destas formas modernas de conhecimento - as ciências -uma de modo especial se tornou como modelo, norma ou

1. E era, habitualmente, sinônimo de "filosofia", como acontece em alemão com as palavras "wissen" (saber} e "Wissenschaft" (ocupar-se com o saber), e em holan­dês, "wyzen" e "wysbegeerte", com sentidos semelhantes ao alemão, só que "wysbegeerte" significa. ainda hoje, algo parecido com "filosofia".

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protótipo: a física Assim, até hoje existe a tendência a considerar uma disciplina tanto mais científica quanto mais se assemelhar à física, e tanto menos ciência quanto menos se assemelhar a ela.

E quais são os traços marcantes da física? Na verdade, a resposta a essa pergunta depende do especialista a que se interrogar. No entanto, muitos serão unânimes em dizer que os atributos seguintes são fundamentais para se caracterizar uma ciência moderna: clara definição dos termos a usar, preferivelmente com relação a dados observáveis e relações matematicamente formuláveis , experimentação repetida, co­municável a outros especialistas e por eles repetível, uso de instrumentos de altíssima precisão para a medição quantita­tiva dos elementos envolvidos na experimentação, formaliza­ção matemática dos resultados da investigação experimental, construção de teorias capazes de predizer comportamentos futuros de realidades análogas, e assim por diante ...

A estas "regras do jogo" -habitualmente presentes entre os especialistas em física - dá-se geralmente o nome de "método científico" . E o conjunto das disciplinas que mantêm uma certa semelhança e interação com a física é muitas vezes englobado sob o nome de "a ciência", no singular.

Todavia "a ciência", na realidade, nunca existiu. O que existe de fato são ciências, no plural: disciplinas diversas, cada uma com suas especialidades, escolas universitárias, textos, prêmios, teorias, vocabulário e discussões próprias; em rela­ção variável, conflitiva e complexa com outras ciências, outros métodos científicos e outras formas de conhecimento.

"O método científico", no singular. não existe tampouco: existem regras, noções, técnicas e pautas que vão emergindo, entrando em conflito com outras, impondo-se parcial e gra­dualmente, por fim tomando-se "paradigmas normais", duran­te alguns anos ou mesmo décadas, entre a maioria dos cultores de uma ou várias disciplinas2 Tais normas variam conforme a

2. Veja-se o texto clássico de Thomas S. Kuhn: The Structure ofScientific Revolutions, Chicago, The University of Chicago Press, 19702

. 210 p. (dele existem traduções · para o português e para o castelhano).

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disciplina, época e região da qual se trata. Mais ainda: como sublinhou, com muitos outros, o físico, matemático e historia­dor das ciências, Paul Feyerabend3

, os grandes descobrimen­tos, invenções, mudanças na história das ciências geralmente são o resultado de revisão e superação críticas dos métodos científicos até então consagrados em certa época, disciplina ou região .

As ciências e os métodos científicos, através de sua história, contribuíram para estimular, entre outras coisas po­sitivas (em meu ponto de vista) as seguintes : atenção cuida­dosa àquilo que realmente acontece ao nosso redor , independentemente de nossas intenções conscientes, nossas crenças e nossos sentimentos; tendência à observação siste­mática, ao confronto, comparação e experimentação repetida sob condições tanto parecidas como diferentes, a fim de nos certificarmos da validade de nossas conclusões; abertura de­liberada à discussão com outras pessoas, à reflexão crítica em grupo e à renovada revisão dos resultados de nossas pesqui­sas . Ao que me parece, é necessário apreciar devidamente todas essas características e aproveitá-las em qualquer esforço para melhorar as condições da vida humana no mundo con­temporâneo.

As ciências são, além disso , extraordinariamente úteis e importantes no mundo de hoje . Diretamente ou não, as ativi­dades econômica, política, médica, militar, educacional e comunicacional- isto é, as nossas condições de vida ou morte - dependem amplamente da produção científica. E desta depende também, em grande parte, a sorte das aspirações humanas por justiça e paz duradouras.

Esses fatos poderiam bastar para nos convencer de que as ciências são coisa séria e que devem ser levadas a sério. E acredito que há muita coisa nas ciências - e nos métodos

3. Veja-se seu interessantíssimo ensaio Contra o Método (a versão original revista tem o título: Against Method, London-New York, Verso 1988, 296 p ), que foi uma fonte inspiradora constante para mim. desde 1977 até estas reflexões de 1992.

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científicos - que se deve aproveitar em qualquer tentativa de transformação das sociedades atuais.

Esses fatos não deveriam nos cegar para outro fato-chave do mundo de hoje: aquilo que alguns denominam "cientificis­mo" e que eu chamaria de "idolatria da ciência" . Quero me referir à atitude ingênua- mas profundamente comum e aceita -segundo a qual o único conhecimento válido é o "científico": supostamente universal, acumulativo, permanente, assim como absolutamente verdadeiro e bom. Segundo esta posição, além disso, tal conhecimento só poderia ser controlado e Julgado pelos cientistas propriamente ditos e jamais por pes­soas comuns e leigas no assunto, nem sequer através de representantes democraticamente eleitos. Esta idolatria da ciência compartilha o preconceito de erigir a física- sobretudo a newtoniana - em modelo e critério de ciência, do que é científico (e, portanto, digno de atenção e de crédito) e, inclusive, do que é verdadeiro. Segundo esta perspectiva, as ciências humanas (sociologia, antropologia, psicologia etc.) seriam uma espécie de "subciências" sem maior validade. Nesta linha, cada ciência deve se dedicar especificamente a seu próprio objeto (com seus métodos, vocabulário e especia­listas próprios) sem se intrometer em outros campos e sem permitir que nenhum estranho se intrometa em seu próprio. E a esta especialização fragmentária das ciências vem se ajuntar algo pior: as preocupações éticas, ecológicas, sociais, religio­sas e políticas não teriam razão nem direito algum de perturbar a atividade científica (nem os cientistas precisariam se inco­modar com estas preocupações "anticientíficas").

Essa idolatria da ciência me preocupa pelo menos por dois motivos. Um: esta é a imagem das ciências divulgada pela maior parte das escolas , meios de comunicação, empresas e exércitos que conheço (de "esquerda", "direita" ou seja lá o que for'). Dois: julgo que tal imagem das ciências contribui para que muita gente não queira ver nem fazer nada diante da grave contribuição das mesmas ciências para o armamentis­mo, a destruição do meio ambiente, a miséria crescente e a endêmica violência do mundo contemporâneo

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O trágico, penso eu, é que, enquanto muitos cientistas multiplicam iniciativas e recursos para salvar, curar e facilitar a vida humana, ao mesmo tempo, cada ano, se dedica uma fatia maior dos recursos científicos mundiais - especialistas, aparelhos. dinheiro. formação e pesquisa - para apoiar e proteger militarmente as aventuras econômicas e o estilo de vida de ínfimas minorias abastadas dos países mais poderosos do planeta.

As ciências são uma criação humana recente, cada vez mais decisiva com relação a quem de nós, como. quando e onde vamos viver ou morrer . Todos nós , seres humanos , temos necessidade e direito de intervir de maneira deliberada, orga­nizada, contínua e crítica nas atividades humanas que afetam a qualidade de nossas vidas e de nossas mortes: inclusive (sobretudo?) nas atividades científicas. quer sejamos cientis­tas ou não. E hoje há algo mais: vivemos tempos em que fontes financeiras e exigências militares fazem das ciências - cres­centemente - armas destruidoras nas mãos de poderosas minorias, em lugar de ferramentas a serviço da vida- cada dia mais ameaçada- da maioria dos seres humanos.

Razão, emoções e conhecimento

Y.Z. era um militante consagrado à luta pela mudança social em um país latino-americano - velho e caro amigo de algumas pessoas que conheço. Quando o prenderam, em meados dos anos 60, conquistou a profunda admiração de seus companheiros de prisão e de partido (e mesmo de muitos funcionários da polícia!) por suportar torturas indizíveis duran­te mais de um mês, sem denunciar nenhum dos companhei­ros. Nem o sofrimento nem o terror conseguiram dobrar seus valores e princípios.

Passado o período de tortura, recebeu um tratamento melhor, inclusive com a permissão de receber visitas da esposa e de outras pessoas. Um dia ficou sabendo que sua esposa estava convivendo com um companheiro de partido Confuso, chamou a polícia política e informou aos policiais tudo aquilo que não havia revelado debaixo de tortura (gente amiga dele

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- do mesmo partido - sofreu então prisão, clandestinidade, tortura e inclusive morte, por causa de seu ato).

As emoções humanas - muitas vezes repentinas e impre­visíveis, sobretudo em situações traumáticas -podem alterar por inteiro nossa percepção da realidade e, com ela, boa parte de nossos valores, princípios, costumes e razões. Veja-se, então, o renascimento do nazismo em tantos países neste final de século.

Parte da tragédia do "cientificismo" -a idolatria da ciência - é sua exagerada confiança na razão humana ... como se a capacidade de examinar "fria, lógica e objetivamente" os fatos pudesse, por si só, descobrir o sentido da existência humana e nos apontar o caminho para a boa vida em comunidade. Infelizmente, as coisas não são assim tão simples: a razão humana não é tão poderosa, nem tão confiável, nem tão independente de outras dimensões da existência como gosta­riam os racionalistas mais intolerantes (e existem muitos deles, inclusive em partidos "opostos"). E, além disso, a razão não existe em abstrato, no vácuo, fora da realidade social concreta: existem modos concretos em que diferentes culturas, em épocas diferentes, entendem e vivem a capacidade humana de refletir, tirar conclusões, colocar e resolver problemas, organizar meios em relação a fins etc. E em cada cultura, a maneira de compreender aquilo que em português chamamos de "razão" varia e muda muito sob um sem-número de influências.

Isto porém r,ão quer dizer que a razão "não exista", que seja "má" ou que devamos "prescindir" dela. Simplesmente quer dizer que - como acontece com muitos remédios indis­pensáveis para a saúde- é preciso tomá-la com moderação e cuidado, acompanhada de outros elementos (se não, "seu uso isolado e exagerado pode ser nocivo para a saúde" ... tão prejudicial como, por outro lado, uma overdose de irraciona­lismo) .

Parece-me que boa parte - talvez a maioria - das decisões mais graves que tomamos durante a vida são decisões em que não entra apenas a razão. Nas situações de maior felicidade,

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como também nas maiores tragédias, de pouco ou nada nos serve a pura razão. Repetidas vezes experimentamos que nas coisas mais importantes da vida- além da e às vezes até contra a razão- pesam muito mais as relações, tradições, emoções e crenças. Muitas vezes nos consideram a nós mesmos e muitos outros com orgulho e fama de "racionais", opinando ou vivendo (às vezes às escondidas) de maneiras radicalmente opostas àquelas que parecem ditadas pela razão. Diante des­ses fatos, uma fértil hipótese das ciências diz, precisamente, que nossos modos de sentir, pensar e agir estão enormemente condicionados - de maneira inconsciente - por nossas expe­riências afetivas, sobretudo infantis .

Eu já havia sugerido algo a esse respeito na secção sobre o modo como a experiência influi em nosso conhecimento. Quero agora insistir sobre um aspecto específico do tema: o da razão e suas relações com nossa vida emocional, afetiva, sentimental. O que desejo com isto- que fique aqui bem claro -não é me unir à destrutiva moda irracionalista de despresti­giar ou atacar a razão. De modo algum. O que desejo aqui é situar a razão em uma perspectiva mais abrangente e equili­brada, em relação com o conhecimento, a comunidade e a pessoa.

Por um lado, temos uma capacidade racional - pessoal e coletiva- de extrapolar nossas evidências, ir além de nossas particularidades, tomar distância com respeito a nossos pró­prios motivos e emoções, analisar criticamente nossa conduta, colocar-nos na perspectiva de outra pessoa ou comunidade e entrar em humilde diálogo com elas, rasgar o véu de costumes e consensos enganadores, comparar, sopesar, avaliar, tirar conclusões etc. Sem dúvida, esta capacidade é, com enorme freqüência, muito útil para sair de atoleiros irracionais (por exemplo, quando medo, atração, raiva ou costume nos levam a comportamentos destrutivos contrários a nossos próprios valores, ideais, interesses e/ou propósitos) .

Por outro lado, porém, relações, sentimentos, valores, normas e interesses são dimensões fundamentais da existên­cia humana que, a miúdo, se situam acima da razão. Essas dimensões estão relacionadas com profundos vínculos fami­liares, amorosos, comunitários, nacionais, religiosos, étnicos,

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lingüísticos que podem, inclusive. ser fonte de conhecimentos dificilmente acessíveis à pura razão. Com base nesses víncu­los, além disso, pode ter profundo sentido limitar e questionar certas pretensões aparentemente "racionais".

Por exemplo, a luta de uma comunidade para se manter em seu antigo território (contra aqueles que desejam expro­priá-lo para explorar uma mina de urânio ali subjacente) pode parecer "irracional" segundo certas perspectivas: por exem­plo, do ponto de vista de uma companhia privada que cobiça a concessão do Estado para explorar aquele território; a partir do ponto de vista de um Estado interessado em aumentar a riqueza mineral do país; a partir do ponto de vista de um grupo de cientistas desejosos de recursos para a experimentação em física nuclear; ou na perspectiva dos desempregados de uma cidade próxima, ansiosos para encontrar novas fontes de trabalho.

Para a comunidade ameaçada de expulsão do seu territó­rio, todavia, essa luta pode ser vivida como prioridade gravís­sima - de vida ou até de morte - que exige reconhecimento e respeito dos poderes externos a essa comunidade.

Muitas lutas e organizações econômicas, políticas, religio­sas e sindicais, de camponeses, indígenas e, em geral, de grupos oprimidos (minoritários ou não) são com freqüência, precisamente, resultado de vínculos, relações e necessidades que entram em conflito com as exigências supostamente racionais dos mais poderosos.

Tais dimensões e relações - embora relativamente inde­pendentes e acima da razão - não são necessariamente irracionais, contrárias ou alheias à razão. Não, elas são fre­qüentemente examinadas, refletidas criticamente e até in­fluenciadas enriquecedoramente por nossa capacidade racionaL Mas a razão humana- como sugeriram Marx, Nietzs­che e Freud - está sempre pronta a "racionalizar", isto é, a justificar como "racionais" condutas na realidade baseadas em afetos, emoções e interesses dificilmente confessáveis (como o interesse da riqueza, fama, vitória eleitoral, afeto etc., em dirigentes e movimentos que se apresentam como altruístas e dedicados a causas superiores).

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Isto - entre outros fatores - contribuiu para a moda atual de um cínico irracionalismo individualista: "Tudo o que eu quiser e puder é válido; ninguém tem o direito a me pedir contas nem razões disso!" Parece-me que aí- como em muitas outras instâncias - a razão tem um importante desafio ao qual deve responder, refletindo, por exemplo, como toda a nossa vida é possível tão-somente graças ao trabalho de outros, com os quais temos, assim, comunicação, vínculo e responsabili­dade ética irrenunciáveis . Claro que, de novo, nossos valores, lealdades. sentimentos e interesses contribuirão para orientar e estimular essa capacidade crítica: não necessariamente num "círculo vicioso", mas, oxalá, numa fecunda dialética de inte­ração recíproca onde os vínculos e sentimentos profundos estimulem a atividade da razão e, por outro lado, a capacidade racional de pensar criticamente contribui para superar as dinâmicas afetivas que nos levam a destruir outros seres humanos e a nós mesmos.

Conhecimento: reconstrução imaginativa de relações

Vamos tomar uma coisa qualquer (por exemplo, uma planta) e analisá-la, procurando conhecê-la a fundo e em detalhes. Aparentemente. nossa atenção se dirige a um objeto isolado. Todavia. refletindo sobre aquilo que estamos fazendo: vendo formas, cores, tamanhos. sentindo odores, sabores, sensações tácteis; imaginando origens. processos, resultados; classificando, comparando. recordando, associando, disso­ciando. Em algo aparentemente tão simples como procurar identificar uma planta, entra de cheio sem que nos demos claramente conta, nossa capacidade de imaginar relações.

Com freqüência, conhecer é concebido como a capacida­de passiva de captar "adequadamente" coisas isoladas. Uma antiga e interessante teoria medieval, sob a influência de Aristóteles (séc. IV aC), definia o conhecimento, precisamente, como "a adequação da mente à coisa"; e outra teoria, muito mais recente (a de Lênin), definia o conhecimento como "o reflexo mental da realidade".

Eu gostaria de propor. aqui, diversamente, a possibilidade de conceber o conhecimento como - entre outras coisas -imaginação relacionadora. O conhecimento não seria, portan-

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to, capacidade passiva de captar isoladamente as coisas "tais quais elas são" . Seria, antes, uma habilidade marcadamente ativa de intervir na realidade imaginando relações entre os elementos-que surgem da experiência (coletiva ou individual)4

.

E ainda, o conhecimento interviria ativamente na realidade fazendo tentativas e ensaios para ver até que ponto essas relações imaginadas são capazes ou não de dar conta da experiência do real.

Mais, ainda, poderíamos pensar que não existem propria­mente "coisas independentes" para conhecer: somente "pon­tos de uma rede" de relações em que estamos ativamente implicados (e por isso podemos "captá-los" e nos interessar por conhecê-los). Nossas conexões com a realidade - assim como a própria realidade - estão em constante processo de mudança.

As coisas, portanto, não "são" simplesmente, nem são apenas "objetos" separados entre si e de nós: as "coisas" estão sendo em ligação conosco. E é nessa rede dinâmica de vínculos- da qual somos parte- que criativamente procura­mos imaginar como é que surgem e mudam esses laços. Também nessa rede - da qual participamos - experimentamos nossas teorias, para ver se ainda resultam interessantes, fe­cundas ou úteis.

Tendemos a - ou ao menos compartilhamos - o desejo de conhecer a realidade de maneira global, universal, radical e definitiva. Além disso, talvez seja esta inclinação, essa aspi­ração, que nos impulsiona a jr sempre mais além do ponto que atingimos, a não nos contentarmos com aquilo que suspeita­mos ser de algum modo conhecimento parcial, parcializado,

4. Já faz algumas décadas que os físicos sugerem não existir maneira alguma de conhecer a realidade sem modificá-la de algum modo (por isso, todo conhecimento é conhecimento de alguma realidade já modificada pelo próprio conhecimento) e aquilo que conhecemos é sempre a relação entre o "observador" com o fenômeno "observado"- e não "objetos" separados dos ."sujeitos". Infelizmente, o que hoje em geral é considerado como "ciência" nas escolas, jornais e emissoras de televisão passa bem longe disso .

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hipotético e provisório. Esse ímpeto nos move ao afã investi­gador e à criatividade intelectual características da humani­dade. No entanto, às vezes acreditamos (talvez porque o desejamos tanto e porque a pesquisa é cansativa) ter chegado: conseguimos alcançar o conhecimento global, universal, radi­cal e definitivo (e que aqueles que pensam de maneira dife­rente estão enganados e devem, por isso, ser educados, convertidos, censurados ou eliminados). E aqui talvez seja mais necessária que nunca a consciência de que não é verdade: a variedade, riqueza e metamorfose da realidade são infinitas e inesgotáveis; a capacidade humana de conhecer é, também, de uma diversidade, exuberância e variabilidade imensas; o conhecimento faz parte da vida e, como a vida, só se detém (e talvez somente na aparência) com a morte.

Já sei que não é fácil pensar nestes termos quando a maneira como aprendemos a pensar a experiência cotidiana vai muitas vezes em direção bem diversa (para "coisas" que "são/estão" "fora" de qualquer relação entre si e conosco; onde "conhecer" é ver as coisas "assim como são", sem nada modificar; e onde "verdade" quer dizer a descrição correta e imutável de como as coisas "são"). Mas este livro é, justamen­te, uma tentativa de pensar o conhecimento de modo mais dinâmico, aberto, relaciona!, crítico e criativo.

Na verdade, quando alguém se refere ao conhecimento assim como estamos fazendo, com freqüência surge uma pergunta, entre receosa e incriminadora: "Ah! então tudo é relativo?" Eu diria por enquanto que, em certo sentido, me parece que sim: se por "relativo" entendemos não estar isolado dos outros, não bastar-se a si mesmo nem existir por si só (ou seja, não ser portanto, "absoluto", no estrito sentido do termo), estar em relação com outras coisas e depender de tais relações. Se estamos de acordo em que nada existe isoladamente, que tudo se acha ligado a todo o resto, neste sentido, "tudo é relativo". E eu acrescentaria que todo conhecimento é relacio­nal: por um lado, enquanto todo conhecimento emerge a partir e a propósito de uma experiência, de uma prática na qual nos vinculamos com o ambiente que nos envolve e conosco mesmos; por outro lado, porque conhecer é sempre imaginar

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laços entre diversos elementos de nossa experiência que queremos conhecer; e, além disso, porque todo conhecimento pode imaginar outras conexões que as concebidas até então e ser questionado e transformado a partir de outras relações . Isto é: nem nós mesmos nos isolamos do resto do cosmo para conhecer, nem aquilo que conhecemos está afastado dos outros elementos do mundo, nem o nosso conhecimento se elabora no vácuo. Neste sentido, então, eu diria que na certa, com toda a evidência, todo conhecimento é "relacionar ou "relativo".

Mas , se por "relativo" queremos dizer o mesmo que "falso", "ilusório", "mentiroso" ou "indiferente", então eu diria que não posso aceitar que tudo seja relativo. Para a comuni­dade que, numa seca, imagina e tenta diversas possibilidades para achar água em certo lugar, e encontra e consegue sobreviver, tal conhecimento não é de modo algum "indiferen­te" (mesmo que, com o passar do tempo, a água acabe, a comunidade se mude e esse conhecimento deixe então de ser relevante). Para quem novamente se encontra, na alegria, com uma pessoa amada, que julgava ter desaparecido, o conheci­mento do amor entre ambos não é de modo algum "ilusório" (ainda que, depois de muitos anos esse amor possa ceder lugar ao ódio ou ao ressentimento). Para uma família que perde a casa ou o emprego, tranqüilidade e estima sob as medidas políticas de um novo Governo, não pode haver nada de "falso" no perceber a maldade desse regime (mesmo que, para a maioria de seus compatriotas , as coisas sejam bem diferentes) . Enfim, para uma comunidade indígena que conseguiu com­bater com êxito uma certa doença durante gerações, não existe nada de "enganador" no conhecimento que comparti­lham acerca das virtudes curativas de certas plantas locais (ainda que os livros oficiais de medicina apresentem esse conhecimento como "superstição").

Conhecimento relativo, portanto, não precisa significar conhecimento "que tanto faz, seja verdadeiro ou falso" : certos conhecimentos são radicalmente vitais, cruciais e urgentes (para uma comunidade ou para uma pessoa), mesmo que sejam conhecimentos passageiros, incompletos, interessados

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e sumamente conjeturais. Outros conhecimentos, em com­pensação, por mais permanentes, detalhados, desinteressados e fundamentados que sejam, às vezes deixam a maioria das pessoas totalmente apática. Talvez isso ocorra, precisamente, porque esses conhecimentos não se relacionam com as neces­sidades e os interesses mais prementes de uma comunidade ... Ao contrário, talvez, do que acontece com os primeiros.

O conhecimento daquilo que (ainda) não é

Estamos acostumados a dizer que o conhecimento o é da realidade, ou seja, daquilo que existe ou existiu realmente. Ao menos à primeira vista, parece absurdo falar do conhecimento daquilo que nunca existiu, certo? No entanto, muitas formas do conhecimento humano - incluindo aí todas as ciências -trabalham muitas vezes sobre aquilo que nunca existiu.

Amiúde escutamos que o prestígio das ciências modernas se deve a duas coisas: a seu "poder de previsão" e sua contribuição para fabricar inventos sumamente úteis. Mas o que são as previsões ou predicções da física, química, meteo­rologia, astronomia e geologia? E, de modo geral, que são as previsões? São afirmações sobre aquilo que ainda não foi mas que, se supõe, será no futuro, ao menos sob certas condições. É claro que as ciências não acertam sempre suas previsões: por isso, muitas teorias sofrem revisão e outras caem por terra, repetem-se ou submetem-se ao crivo da crítica certas expe­riências. Mas, até agora, nada disso foi capaz de desanimar os esforços de previsão dos cientistas (pelo contrário, isto serve de estímulo para continuar pesquisando sem cessar).

E o que são as invenções, senão artefatos - teóricos ou materiais- que nunca existiram antes, mas que foram "conhe­cidos" antes de existir na imaginação criadora dos seus inven­tores?

Quando afirmamos que as coisas podem ser de outro jeito, quando nos esforçamos por educar nossos filhos de forma diferente de todas as conhecidas, quando elaboramos uma nova teoria acerca de um fenômeno, quando tomamos as necessárias precauções diante de uma possível inundação na época das chuvaradas, quando inventamos uma nova solução

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para algum antigo problema, em todos esses casos estamos afirmando - e exercendo - a capacidade humana de conhecer aquilo que nunca foi, aquilo que ainda não é.

Existem comunidades vivendo problemas cada vez mais sérios e devastadores, para cuja solução parecem inúteis muitos dos conhecimentos predominantes. Aí talvez seja mais importante e urgente, que noutras circunstâncias, o exercício o desenvolvimento dessa capacidade humana de conhecer aquilo que ainda não existiu jamais antes: capacidade de criativamente imaginar, com base na experiência, que coisas serão factíveis dentre as desejáveis e que nunca foram antes. Dessa capacidade é que se alimentam os ideais e utopias que possibilitam mudanças, descobertas e invenções.

Também, infelizmente, da afirmação dogmática de algu­mas utopias como inevitáveis e obrigatórias surgiram políticas de terror e extermínio: a da coroa espanhola na África e na América, a de Stálin na União Soviética, a de Hitler na Alemanha e países vizinhos, a dos EUA no VietÁã e no Iraque, a de Pol Pot no Cambodja. Ao mesmo tempo, aquilo que esses regimes mais recearam é o conhecimento daquilo que nunca foi ainda: o sonho compartilhado de um alvorecer feliz depois desse real pesadelo.

O que "não é", aquilo que "não existe" ainda, não é algo simples: pode-se imaginá-lo como imenso "saco" onde entram muitas coisas bastante diversas: o que foi, o que nunca mais tornará a ser, o esquecido, aquilo que não queremos ver, o temido, o odiado, o almejado, aquilo que julgamos impossível, o que parece a ponto de ocorrer, o que procuramos dar à luz, o que suspeitamos que vai custar grande esforço ... e inúmeras coisas mais. O conhecimento- vou sugeri-lo como hipótese­é construído também com essa matéria-prima, e não apenas com a experiência material direta daquilo que já existe.

Com este ponto tem muita coisa a ver uma interessante tradição religiosa - constatável em certos filões do Judaísmo, do Budismo e do Cristianismo - comumente denominada "teologia negativa". Segundo essa tendência, não podemos conhecer aquilo que Deus é, mas apenas aquilo que Ele não

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é: o conhecimento da transcendência, da divindade, somente pode proceder por negações, exclusões, dissociações, nunca por afirmação. Esta corrente de pensamento parte de uma atitude profundamente humilde perante o sagrado na vida e no universo: a realidade de Deus é muito mais rica, profunda, variada e dinâmica do que aquilo que o entendimento humano é capaz de captar e a linguagem humana capaz de significar. Portanto, resta ao conhecimento teológico - além do caminho místico do silêncio contemplativo e o artístico da metáfora -a via de imaginar reflexivamente aquilo que Deus não é.

Gostaria de encerrar este tópico sublinhando que a imensa maioria dos matemáticos contemporâneos entende as mate­máticas não como conhecimentos estritamente "exatos" e "definitivos", mas, antes, como obras do engenho criativo humano. Capacidade desse engenho humano - também pre­sente nas matemáticas - é imaginar aquilo que ainda não é e propô-lo para que, de algum modo, se tome real.

Conhecer como pré-juízo, re-conhecimento e co-nhecimento

Quero agora sugerir outra maneira de repensar o tema do conhecimento humano, estreitamente relacionada com algo q~e d~ssemos antes: a maior parte daquilo que hoje sabemos, nos nao a alcançamos por experiência direta nossa, pessoal, mas por experiência alheia comunicada.

Quando Germano, um exilado, foi estudar em Paris , logo teve a impressão de que os funcionários do comércio e de repartições públicas, eram extremamente grosseiros e antipá­ticos. Toda vez que entrava em uma loja ou repartição, e se encontrava diante de um funcionário atarefado, que parecia não tê-lo visto entrar, Germano tomava a iniciativa do cum­primento em seu melhor francês, e da maneira mais educada possível. Sistematicamente, era tratado grosseira e rudemen­te. Comentando esse fato com Marlene- também exilada, mas residindo há mais tempo em Paris- esta lhe disse o seguinte: "Comigo também aconteceu a mesma coisa, no começo. Um dia, numa fila enorme, no correio, comecei a observar o

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tratamento de clientes e funcionários e me pareceu descobrir o seguinte : quando um cliente saúda antes do funcionário cumprimentá-lo, o empregado se sente interrompido, pressio­nado e menosprezado pelo cliente. O funcionário vê o cliente como descortês e mal-educado, mesmo que lhe fale com bons modos e sorrindo, e contra-ataca para se defender e afirmar sua dignidade .. . o truque consiste em esperar que o emprega­do ou funcionário dê primeiro os bons dias". Germano experi­mentou o "truque" diversas vezes e ficou maravilhado com os ótimos resultados obtidos assim.

Na vida real , no dia-a-dia, funcionamos baseados em uma série de pré-juízos (pré-conceitos): juízos prévios a toda expe­riência direta daquilo que julgamos. Percebemos e julgamos o desconhecido, em geral, a partir do já conhecido (e, tantas vezes, aquilo que vemos como realmente novo e diferente, nós imediatamente o classificamos como "mau" ou "bom", e não como simplesmente diferente). Muitos dos nossos pré-juízos são "hereditários", recebidos do ambiente, da geração anterior ou dos meios de comunicação.

De fato, o conhecimento humano não se constrói no vácuo, não começa nunca "a partir do zero". Desde o momento em que começamos a experimentar o mundo em nosso redor - provavelmente já desde o útero materno - recebemos um mundo pré-fabricado, pré-construído: mundo e imagem do mundo dentro dos quais nos situamos e a partir dos quais percebemos qualquer novidade. Por isso, conhecer é sempre, de certo modo, memória, recordação, lembrança, re-conheci­mento: se algo se parece com o já conhecido, nós o re-conhe­ceremos, imaginaremos e classificaremos como familiar, como coisa sabida (e nos comportaremos perante esse "algo" de modo a demonstrar que já aprendemos por experiência, direta ou comunicada, como "devemos" nos comportar). Se, ao contrário, experimentamos algo que nos é difícil re-conhecer, é possível que o identifiquemos com alguma coisa estranha que vivemos no passado (e nos comportemos em conseqüên­cia) . Mas é também possível que essa experiência estimule

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nossa curiosidade e inventividade, dando origem a uma ma­neira nova, em parte ao menos, de ver a realidade.

Dizer que o conhecimento é sempre, de certa forma, pré-juízo e re-conhecimento é o mesmo que frisar, mais uma vez, que conhecer não é tarefa meramente individual. É sempre, também, um trabalho comunitário, tarefa coletiva.

Por isso gosto de brincar com a palavra e dizer que conhecimento é sempre co-nhecimento: sabedoria alcançada a partir do esforço comum de numerosas gerações e muitos povos. Conhecemos a partir de dentro de um mundo, uma mentalidade e uma linguagem que herdamos das gerações passadas. EI}lbora nosso conhecimento se dirija contra esse mundo, essa mentalidade e esse idioma herdados do passado, eles continuarão sendo matéria-prima, ponto de partida e referência obrigatória e constante de nosso conhecimento.

Conhecemos, além disso, em diálogo com nossos seme­lhantes. Os problemas que nos colocamos, os conceitos em que os exprimimos, os procedimentos a que recorremos, a maneira como os comunicamos, as respostas que esperamos ... tudo isto é parte do mundo que outros construíram e nós herdamos. O conhecimento é possível graças ao trabalho preliminar de milhares e milhares de semelhantes nossos. Com eles travamos uma conversa constante, que pode ser pública, consciente e solicitada, mas que também pode ser feita sob a forma de um monólogo interior inconsciente, observando certas "regras do jogo", fruto de gerações, que ultrapassam a pura individualidade. Conhecer, portanto, é co-nhecer: procu­rar num esforço comum entender aquilo que de nossa realida­de nos interessa.

O conhecimento como des-conhecimento e exagero

Faz alguns anos, uma amiga, à qual eu falava sobre a necessidade de ser equânime e sereno ao procurar conhecer a nossa realidade, me pediu que imaginasse a seguinte situa­ção: Estamos num cinema, à noite, assistindo a um filme muito comentado. Existem mais ou menos 500 outras pessoas na sala. De repente, olhando para o chão, debaixo da cadeira de um espectaQ.or que acaba de se levantar, uma pessoa percebe

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um objeto que lhe parece uma bomba-relógio. O que faz? Examina calmamente o objeto, "equânime e sereno" , antes de ousar emitir uma opinião a esse respeito? Espera calmamente uma ocastão mais propícia para se ocupar do assunto e, nesse meio tempo, volta a se concentrar na projeção do filme? Toma distância "objetiva, fria e racionalmente" do assunto, reconhe­cendo que este é apenas um objeto qualquer entre milhões, a que não é preciso dar maior importância? Coloca o valor de sua própria vida "entre parêntesis" e reconhece que no final das contas, o conhecimento objetivo não tem nada a ver com os atos e decisões humanos?

Não I - tive que reconhecer. Qualquer pessoa em são juízo procuraria fazer - mesmo que aos berros e às carreiras - que a multidão saísse do recinto quanto antes, sob pena que essa coisa explodisse e matasse todo o mundo. E quem é que teria a idéia de pedir- em nome da "equânime e serena objetividade científica", por exemplo - que continuemos quietos em nossas cadeiras para discutir o assunto a partir de várias perspectivas e levando em conta a riqueza infinita do real (que vai além de nossas vidas e nossas bombas) ... nós mandaríamos essa pessoa para o manicômio, e sairíamos correndo para salvar a vida I

Conhecer é algo que, muitas vezes, só é possível se sublinhamos, enfatizamos, ressaltamos - isto é, se exagera­mos uma mínima parte da própria realidade. Mas ainda: diante de realidades cruciais e urgentes para uma comunidade ou pessoa, conhecer exige concentração e solicitude, ocupando­se quase que exclusivamente naquilo que parece grave e decisivo . Nesses casos, uma atitude "equânime, tolerante e serena" pode simplesmente equivaler ao suicídio : tal foi o trágico destino de muitas comunidades indígenas na América e na África, de judeus na Europa no tempo dos nazistas, de socialistas democráticos na Hungria em 1956, dos moradores do Bairro San Miguelito, na cidade do Panamá, durante a invasão ianque em 1989 .. . e não precisamos continuar I

O mesmo acontece quando esbarramos com algo inédito e importante ou com algo já sabido, mas que de repente adquire grandeza decisiva. Nesses casos tendemos, muitas vezes, a não ligar, a não prestar atenção a esse desafio. Aí,

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para chamar a atenção dos outros e estimulá-los a participar no esforço de conhecer a novidade e agir em conseqüência, faz-se necessário exagerar, repisar, gritar aos quatro ventos aquilo que por "antigo" ou "absurdo" tende a permanecer invisível e despercebido.

Nestes e noutros sentidos, conhecer é também des-conhe­cer, ignorar, passar por cima de boa parte da realidade. Quando exageramos, enfatizamos e gritamos aos quatro ven­tos um aspecto qualquer da realidade , ao mesmo tempo, quer saibamos ou não, desviamos a atenção de outros aspectos . Quando construímos uma teoria, descuidamos um número imenso de outras possíveis teorias acerca do mesmo assunto . Quando pesquisamos alguma coisa, deixamos de pesquisar e de prestar atenção a milhares de outras coisas e relações que podem estar bem diante dos nossos olhos. Quando estamos dando importância a uma dimensão do real, querendo ou não, nós a tiramos e negamos outras dimensões. Para concentrar nossos sentidos em um ponto do real, temos que agir como se o resto da realidade não existisse.

Assim funciona, pelo visto, o conhecimento humano: tem vantagens , riscos e também aspectos de menor importância, segundo as circunstâncias em que se exercer. Conhecer, portanto, é também des-conhecer, ignorar ou passar por cima, geralmente de modo automático, espontâneo e inconsciente, mas às vezes , também, de maneira sistemática e proposital.

No fundo, se teimássemos em captar "tudo" a partir de "todas as perspectivas possíveis", não somente não veríamos nada, mas ficaríamos loucos ou paralisados para a vida (e não nos bastariam nem mil vidas para começar a ver "alguma coisa". Para poder perceber "algo", é preciso des-conhecer ativamente "todo o resto" , ao menos provisoriamente. E para poder agir, para viver, é também necessário exercer essa "ignorância ativa".

Por outro lado, contudo, essa necessidade de "reduzir" a realidade, para poder ver "alguma coisa", pode nos deixar cegos para outro fato tanto ou mais vital, segundo as ocasiões: que nosso desconhecimento é sempre infinitamente maior que nosso conhecimento. Quando uma pessoa reconhece este fato , torna-se menos arrogante, dogmática, intolerante ou

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Nota
tem a ver com os 7 sabers

fechada. E isso pode estimular constantemente nossa curiosi­dade ou nos levar à inação ou ao cinismo. Depende. E depende de outras coisas que vão além do tema destas páginas: coisas como nossp. infância, nossos valores, nossos afetos e a gravi­dade de nossas necessidades atuais.

O conhecimento em constante transformação

Nós ocidentais, por motivos que não consigo compreender com perfeita clareza, compartilhamos, muitas vezes e entre outros, um preconceito que poderia dificultar a leitura destas reflexões.

Este preconceito é o seguinte : aquilo que é bom, verda­deiro, justo e belo somente é tal se for universal, eterno, imóvel e perfeito. Mas a vida é mudança, mutação, nascimento e morte constante. Talvez por esse motivo inventamos outro preconceito, o do progresso (quer se chame evolução, desen­volvimento, dialética ou como se queira chamá-lo) . De acordo com esse preconceito, só é realmente bom, verdadeiro, justo e belo o que progredir rumo a uma universalidade perfeita, imóvel e eterna. Mas como as crises, ambigüidades e hetero­geneidade da vida tampouco se encaixam perfeitamente ao mito do progresso, muitos ocidentais parecem justificar agora, com isto, uma onda de pessimismo, cinismo e forte egoísmo (ou uma onda de otimismo misturado com egoísmo e cinismo, que ousa afirmar que estamos agora entrando no fim e na perfeição da história).

Por que tanta gente sente tamanha dificuldade para pen­sar todas essas coisas (beleza, verdade, bondade e justiça) como plurais, variadas, cambiantes, relacionais, mutáveis ... vivas como a própria vida?

Mas é o que sugiro, quanto ao conhecimento humano. Gostaria de propor que vejamos o conhecimento como múlti­plo, heterogêneo, dinâmico, relacional: vivo, portanto, como parte que é da própria vida!

Em particular, quero sugerir agora que o conhecimento humano é uma atividade em constante transformação. Não quero dizer com isto, em primeiro lugar. que o conhecimento deveria mudar a cada passo (só depois , quase em último lugar,

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vou sugerir algo neste sentido). Não, o que desejo indicar é que na vida real das diferentes sociedades, atividades, disci­plinas e teorias das quais temos notícias, parece que, de fato, o conhecimento humano está em mutação incessante, cheio de dinamismos, variedades, conflitos e novidades.

Mas não quero insinuar tampouco, em segundo lugar, que o conhecimento evolui, progride ou se acumula constante­mente. (Mas suspeito que isto vai escandalizar mais de uma pessoa que ler esta frase!) O que desejo apontar é algo mais simples: o conhecimento humano se modifica continuamente.

Parece-me claro, certamente, que em algumas socieda­des, épocas e aspectos, dá-se uma tentativa de conhecer mais a fundo e alcançar maior controle da realidade circundante. Quando se consegue isso, penso que ali podemos dizer que, em certo sentido ao menos, há evolução, progresso e acumu­lação de conhecimentos. Em certas ocasiões, inclusive, ocorre que um conjunto maior ou menor de sociedade, por períodos mais ou menos longos, compartilham um certo desenvolvi­mento do conhecimento de certos aspectos da realidade . Mas isso é bastante raro e, de modo geral, não passa de umas poucas gerações e de uma porcentagem pequena da humani­dade toda.

Creio importante sublinhar, porém, que o progresso do conhecimento, da ciência, da técnica é sempre limitado a umas poucas gerações, a algumas comunidades humanas e a certas dimensões do âmbito a que nos estamos referindo. Parece-me importante ter consciência deste item, pois isso pode nos ajudar a preservar uma atitude aberta e humildemen­te respeitosa diante das possíveis facetas negativas daquilo que tendemos a ver como progresso. Depois de tudo, sempre é possível que ao mesmo tempo em que ocorre progresso num aspecto, em outro possa se dar uma estagnação ou até retrocesso. E, além disso, é sempre possível que aquilo que representa progresso para uma comunidade (ou a curto prazo) possa causar prejuízos para outra comunidade (ou até para a mesma comunidade, a médio ou longo prazo) .

Poder-se-ia dizer que - na medida em que nenhuma sociedade consegue satisfação permanente e completa de

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todos e de cada um de seus membros - a humanidade toda compartilha um desejo constante de melhoria, de progresso. Isto poderia indicar que a humanidade tende universalmente ao progresso. tanto no aspecto do conhecimento corno no da técnica. Infelizmente. o único "progresso universal" de que temos notícia até hoje é o definido e imposto por impérios a suas colônias: a destruição, o genocídio precedeu e acompa­nhou esse mesmo progresso. a tal ponto que se poderia dizer que, então, foi também mais universal o retrocesso.

Além disso. depois de muitos períodos de evolução, pro­gresso e acumulação de conhecimentos, freqüentemente vêm períodos de disputas, multiplicação de novas teorias e radical modificação na maneira de ver o mundo. Assim, os especia­listas europeus em ciências da saúde. no século passado viam a medicina tradicional camponesa e indígena como charlata­nice primitiva. Os especialistas contemporâneos nessas mes­mas qiências. no Atlântico Norte, vêem seus colegas do século passado pouco menos do que como açougueiros, grosseiros e ignorantes. E já neste fim de século, graças à psicanálise. ecologia, feminismo, democracia, informação e abertura ao saber médico camponês e indígena, muitos hoje dentre nós avaliamos criticamente a destrutividade e o dogmatismo "cientificistas" da medicina moderna.

A meu ver. não se trata simplesmente de um progresso linear. universal e global do conhecimento humano. Não . As coisas são - penso eu - muito mais ricas. complexas e ambíguas do que sugere esse mito cientificista do progresso. Não estou propondo com isto uma atitude negativa, pessimis­ta ou cínica diante da esperança humana de progresso cog­noscitivo, técnico e moral. Não, muito ao contrário : o que estou sugerindo é. precisamente. que uma atitude aberta, humilde e autocrítica - neste terreno e em outros - pode estimular constantemente curiosidade, criatividade, pesquisa. retificação (e, portanto, um certo progresso) de nossos esforços cognoscitivos. Estou insinuando que a consciência das limi­tações, ambigüidades e perigos de todo progresso humano pode nos ajudar. muito mais que uma ingênua fé no progresso científico-técnico, a prever, avaliar e corrigir a tempo muitas

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das potencialidades destrutivas (de exploração econômica, ecocídio, corrida armamentista, colonialismo etc.). presentes em todo desenvolvimento do conhecimento e da técnica.

Neste sentido, não sou partidário de uma "unificação" do conhecimento humano: ao contrário, aprecio hoje a abertura a uma pluralidade de formas de conhecimento. não simples­mente "complementares". mas reciprocamente desafiadoras, questionadoras. transformadoras e enriquecedoras. Penso que o diálogo respeitoso entre múltiplas maneiras de conceber o mundo, a vida e o progresso pode ser mais esperançoso que a submissão cega a uma só maneira de ver as coisas. Mas significará isto verdadeiro "progresso" para toda a humanida­de? Quem sabe. o que virá, depende de todos e cada um de nós .. e talvez exija, de antemão, um verdadeiro desarmamen­to mundial (pois não são muitas as possibilidades de diálogo quando uma ou diversas partes têm meios para impor pela força suas perspectivas e/ou exterminar outras partes em conflito) .

No final da contas, se a própria realidade está em contínua metamorfose. se os pontos da vista sobre a realidade prolife­ram e estimulam incessantes debates, se cada "resposta" que se propõe para um antigo problema provoca o aparecimento de várias perguntas novas, se nós mesmos- nós que vivemos, amamos a vida e nos interrogamos acerca de seu sentido -estamos constantemente mudando, como íamos esperar que conhecer fosse diferente?

Outra maneira de ver o tema da verdade e do erro

Contou-me uma amiga minha, norte-americana, faz já um bom tempo, o seguinte episódio. Pilotando sozinha um avião, que em dado momento entrou em pane, uma mulher se lança de pára-quedas sobre uma floresta totalmente desconhecida. Ao cair, ficou pendurada nos galhos de uma árvore, pratica­mente impossibilitada de alcançar terra firme.

Depois de algumas horas nessa condição, enxerga, lá embaixo. a alguns metros de distância, um homem muito bem trajado que passeia pela floresta . Desesperada. grita para o homem: "Oi I Por favor, meu senhor! Olhe cá para cima! Aqui!

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Me diga onde estou!?" O homem, surpreendido olha para o alto da árvore e responde à mulher: "Ora .. . a senhora está pendurada numa árvore!" "O senhor é teólogo?", pergunta-lhe a aviadora. ' "Sim, senhora. Mas como é que sabe?" "Pela resposta que me deu: absolutamente verdadeira, mas perfei­tamente inútil!"

A anedota, sem dúvida, poae se aplicar a muitas profis­sões, conforme as circunstâncias. Há quem diga, por exemplo, que as mentiras são de dois tipos: as mentiras "de verdade" e as mentiras estatísticas (estas últimas falando sempre da­quilo que acontece "na média" , mas que , pelo que parece, não acontece com ninguém na realidade) .

O que desejo sugerir é que este assunto da verdade (e do seu contrário, o erro) não é tão simples assim. Por um lado, uma certa tradição intelectual ocidental- dualista e autoritária - nos ensinou a pensar a verdade como radicalmente incom­patível com o erro, sem termo médio algum entre aquela e este. Além disso, essa tradição nos condicionou para que concebamos a verdade como algo principalmente intelectual, mental, cerebral: algo que se refere à realidade e se exprime em palavras, mas, curiosamente não se deixa afetar pelos processos cerebrais, nem pelas mudanças da realidade, nem muito menos pela variedade cultural e lingüística. Segundo esta perspectiva, "a verdade" seria a mesma para todo o mundo (de qualquer época, lugar, idade, sexo, raça, cultura, língua, religião e condição física, emocional ou econômica) , fixa, eterna, praticamente independente de qualquer outra coisa. Tal maneira de conceber "a verdade" me parece típica, sobretudo, de impérios interessados em (e capazes de) sub­meter outras sociedades à sua própria maneira de viver e pensar.

Entretanto, muitos aspectos da experiência dos últimos séculos tornam cada vez mais difícil pensar a verdade dessa maneira. Por exemplo, a informação sobre culturas - vivas e passadas - que vêem a realidade de milhares de maneiras radicalmente diferentes umas das outras; as grandes muta­ções e múltiplas críticas sofridas por praticamente todos os grandes sistemas de pensamento conhecidos; a multiplicação

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de disciplinas, teorias e crenças em constante conflito, com­petindo pelo apoio e pela adesão da maior quantidade possível de cidadãos; a revolta de tantos povos e setores oprimidos que reivindicam o direito e o respeito à sua própria maneira de viver, pensar, falar e morrer. Com tudo isso, fica extremamente difícil reduzir o problema de "a verdade" a fórmulas simples.

Talvez, insisto, falte aqui um pouco de humildade, auto­crítica, e expansão dos horizontes de nosso pensamento. Por que pensar em "a verdade" -singular, abstrata, solitária- e não em "verdades" que oferecem sentido rico a vidas concre­tas de comunidades e pessoas variadas? Por que não conceber as "verdades" como ligadas à busca da boa vida compartilha­da, verdades que surgiram, portanto, de exigências práticas e emocionais e não somente de intelecto? Não podemos, por­ventura, imaginar as "verdades" como esforços radicalmente necessários mas falíveis, finitos e provisórios - que cada comunidade humana realiza, em suas concretas circunstân­cias, para articular e comunicar a percepção de sua própria realidade? Não poderíamos entender que esses esforços não são "indiferentes" nem "ilusórios" - são, isto sim, absoluta­mente graves, urgentes e decisivos para a vida de qualquer comunidade humana e, todavia, não são universais, nem eternos, nem fixos?

Se recolocamos deste modo o problema da verdade, po­deríamos admitir que as "verdades" são, ao mesmo tempo, profundamente cruciais e, mesmo assim, particulares, variá­veis e perecíveis (como nossas próprias vidas , famílias, insti­tuições)? Conseguiríamos introduzir entre "verdade" e "erro" uma infinita gama de possibilidades intermediárias? Conce­deríamos, por exemplo, que a vida se acha cheia tanto de "verdades" inúteis como de "erros" fecundos? Será que nos tornaríamos mais capazes de ver as "verdades" como tendo uma vida insuflada pelas - e ligada às - comunidades para cuja vida essas verdades têm e oferecem significado e sentido? Poderíamos imaginar, então, que existem infinitas verdades e uma infinidade de modos de pensar e exprimir cada verdade?

Chegaríamos inclusive ao humilde respeito - como boa parte de nossas comunidades indígenas, muitas tradições

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religiosas orientais e alguns ramos do judaísmo antigo e moderno - por verdades diferentes das nossas e pelo direito a dizer as nossas de mil maneiras diferentes? Seríamos um dia capazes de-ver essas diferentes verdades e maneiras de ver não como melhores, nem piores, nem iguais, nem indiferentes, mas sim igualmente humanas (igualmente divinas?) e profun­damente diferentes? Seríamos capazes de nos situar nessa perspectiva- humilde, aberta, pluralista, respeitosa e solidária -sem cairmos na sensação de que tudo perde valor e sentido? Poderíamos, ao contrário, apreciar ainda mais profundamente o valor e o sentido de culturas, tradições, crenças, valores e conhecimentos próprios ou diferentes? Poderíamos, inclusive, nos abrir dialogalmente à fecundação recíproca com comuni­dades que compartilham verdades diferentes das nossas? Com isso, nossa vida não se tornaria mais generosa? (Pena que muitos séculos de intolerância armada, por parte das potências colonialistas tenham tornado tão difícil para os poderosos e tão perigoso para os oprimidos entrar em verdadeiro diálogo, humilde e desarmado. Talvez o único jeito de começar a romper esse círculo vicioso seja prosseguido o diálogo entre aqueles que já estão desarmados: povos e setores oprimidos.)

A unidade e a distinção de conhecimento e realidade

Omaira chegou numa sexta-feira a Mérida, para seu novo emprego. No sábado se instalou no apartamento de umas amigas. No domingo foi averiguar qual era o caminho mais curto para ir de casa até a empresa: sete minutos . Bom, era domingo, e quase não havia tráfego! Prudente, ela saiu de casa, na segunda-feira, de automóvel, às 07.30 h- meia hora antes de entrar no escritório, tentando ir o mais depressa que podia. Inútil: chegou ao emprego às 08.02 h. "É sempre assim de manhã", comentou um colega. "Em dias úteis o trânsito é sempre impossível!"). Inconformada, Omaira experimentava cada manhã um caminho diferente. Finalmente, depois de uns dias de tentativas, descobriu um itinerário, por ruas afastadas, duas vezes mais longo que o original. Mas, por ali, conseguia chegar ao emprego em menos de vinte minutos. "Nem sempre o caminho mais curto e fácil é o melhor", comentou depois comigo.

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Passado um mês, em uma reunião de trabalho no alto de uma cobertura do centro da cidade, Omaira olhou para a rua e reconheceu o seu itinerário original. Nas esquinas, os moto­ristas que iam pelas avenidas, querendo chegar o mais rápido possível a seu destino, não davam passagem aos que vinham por ruas laterais. Com isso, o trânsito se engarrafava, escoando muito mais devagar que o necessário . "Que engraçado! Jus­tamente porque cada um quer ir mais depressa para o traba­lho", concluía Omaira, "todo o mundo vai muito mais devagar e chega atrasado ... Quem sabe se as coisas mudariam, se todos viessem um dia olhar a rua daqui de cima".

Essa experiência e essas reflexões de Omaira me parecem úteis para introduzir o tema das relações entre conhecimento e realidade. Seja-me permitido aconselhar, para entrar no assunto, que pensemos conhecimento e realidade ("sujeito" e "objeto") não como coisas separadas, mas nem tampouco, simplesmente, como "uma e a mesma coisa" .

A imagem da realidade - o mapa que desenhamos para guiar nossa conduta - nós a vamos construindo no calor de nossa experiência da própria realidade: os "choques" com os fatos vão nos forçar muitas vezes a incluir, ressaltar, minimizar ou descartar aspectos de nosso "mapa" da mesma. No entan­to, muitos desses "choques" têm a ver com a nossa subjetivi­dade (nossos valores, preconceitos etc .): construímos a realidade, sempre, em relação com aquilo que nos afeta, interessa, atrai ou nela intimida. Noutras palavras, a realidade que conhecemos é, sem dúvida, em um certo sentido, "obje­tividade" que existe independentemente de nós . Mas eu insinuaria que somente a conhecemos enquanto nos afeta e interessa: isto é, em um certo sentido, enquanto começa a fazer parte de nossa "subjetividade". Enquanto eu continuar na convicção de que o melhor caminho entre dois pontos é o mais curto, muitos outros caminhos possíveis continuarão sem existir para mim (e se sou Secretário de Obras Públicas de minha cidade, muitos outros caminhos possíveis não existirão enquanto visões como a minha predominarem em cargos como o meu).

Esta seria uma primeira idéia quanto à diferenciação e à vinculação entre conhecimento e realidade: a única realidade

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que existe para nós é aquela que nos interessa conhecer porque, de certa maneira, nos afeta. Aquilo que não nos afeta "não existe" (para nós), ao menos até que nos sintamos tocados por' isso.

Mas, por outro lado, captar a realidade de uma certa maneira - e não de outra - nos leva a nos comportar ativa e efetivamente de certos modos (e não de outros). E nosso comportamento é algo real, parte da realidade e modificadora desta. Enquanto eu mantiver a convicção de que o melhor caminho entre dois pontos é o mais curto - e que o melhor jeito de percorrê-lo é a toda a velocidade e sem dar passagem a ninguém- continuarei contribuindo para um maior consumo de tempo e combustível, mais contaminação, agressividade, problemas médicos e econômicos na minha cidade. Analoga­mente, ver a natureza como fonte "externa" e inesgotável de "matérias-primas" para a satisfação das necessidades huma­nas, por exemplo, pode contribuir para a destruição da camada de ozônio, o desaparecimento de inúmeras espécies vegetais e animais, mudanças climáticas e graves problemas de estia­gem, inundações e esgotamento de recursos naturais .

Neste sentido, desejo propor uma segunda idéia para meditaçao. Conhecer não é simplesmente um esforço intelec­tual "sobre" a realidade: conhecer é uma ação real, parte da realidade, efetuada "dentro" da realidade e com reais conse­qüências, transformadoras da realidade. Ou, noutras palavras, uma realidade conhecida de uma maneira é outra realidade que não a "mesma" realidade conhecida de outro modo.

Talvez estas idéias sejam mais "verdadeiras" hoje - e quanto a nosso modo de viver hoje na terra - que um século antes .

BREVE SÍNTESE DO ASSUNTO E PROPOSTA DE REDEFINIÇÃO

Abordamos -um pouco às pressas, por vezes um tanto superficialmente - alguns temas de peso dentro da problemá­tica geral do conhecimento. Falamos a respeito das ciências, da verdade, da razão, do papel dos sentimentos no conheci-

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mento , de diversos aspectos da relatividade do conhecimento e, por fim, de uma faceta das relações entre conhecimento e realidade. Apontamos algumas críticas a certas visões hoje predominantes nessas áreas e sugerimos possíveis linhas de reflexão alternativa sobre essas mesmas dimensões. Oxalá, ao menos, isto seja alimento suficiente para a surpresa, curiosi­dade, meditação, reflexão crítica e debate aberto por parte dos que forem ler estas linhas.

Agora, para encerrar esta Quinta Parte, eu gostaria de propor uma redefinição do conhecimento à luz de tudo aquilo que já vimos e insinuamos. Não sei se terá alguma serventia: as "penúltimas palavras" (pois não existem últimas palavras, enquanto houver humanidade viva) serão proferidas por aque­les que lerem, discorrerem e conversarem sobre estas coisas.

Primeiramente, vou propor que se conceba o conhecimen­to como uma reconstrução "mental" de relações "reais" . Re-construção: conhecer é tarefa efetuada a partir de dentro de uma certa visão da realidade, "herdada de" e "comparti­lhada por" ao menos uma parte de nossos semelhantes (reali­dade "pré-fabricada" que é o ponto de partida, a matéria-prima e o ambiente dentro do qual re-conhecemos a realidade). Re-construção: conhecer não é "copiar" a realidade, não é "adequação entre o intelecto e a coisa". É produção humana ativa e criativa de imagens, visões, concepções ou "mapas" da realidade. Re-construção mental: no sentido de que é "na" interioridade, na "subjetividade" comum e pessoal que se elabora e se "assenta" o conhecimento como re-construção do real. Re-construção "mental" de relações reais: pois não são "coisas", "objetos" isolados aquilo que principalmente re­construímos conhecendo: o que re-construímos "mentalmen­te" conhecendo são, antes, vínculos e redes de ligações de que fazemos também parte (os "objetos" poderiam ser análo­gos a "nós" dessa rede, onde se entrecruzam diversas relações ao mesmo tempo). Re-construção "mental" de relações reais : não é por mero capricho abstrato, mas sim porque "tropeça­mos" com relações que nos tocam, nos interessam, nos afetam e chamam nossa atenção, que nos vemos então forçados a produzir esses "mapas" da realidade (isto é, conhecimentos diversos) .

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Carly
Realce
Carly
Realce
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Realce

Indo além, eu gostaria de sugerir que se considere todo conhecimento como se fosse uma reconstrução fragmentária, interessada, imaginária e transitória (da realidade). Reconstru­ção fragm'entária ou parcial: o que conhecemos são sempre "pedaços", "trechos" da realidade, encontrados em nossa experiência e na de nossos semelhantes (o que desconhece­mos talvez seja infinitamente mais que tudo aquilo que pode­ríamos chegar a conhecer ou imaginar, inclusive coletivamente).

Reconstrução interessada ou parcializada: aquilo que co­nhecemos, nós o captamos sempre a partir de um núcleo de interesses, preconceitos, valores, lealdades, emoções, senti­mentos, afetos, vínculos, apreensões, tradições, hábitos, so­nhos e projetos. Estes orientam e limitam tanto nossa atenção (aquilo que contemplamos) quanto a escolha de perspectivas, interlocutores, temas, métodos e recursos (como a fitamos). Podemos, sem dúvida, re-fletir criticamente sobre esse "olhar interessado", em interação dinâmica e criativa com ele, mas nunca totalmente "fora" do próprio contemplar.

Re-construção imaginária, criativa, conjetural ou "hipoté­tica" ou "à base do pressuposto": de novo, procuremos ver o conhecimento não como "coisa", nem "cópia", nem "reflexo" de alguma coisa. Conhecer pode ser concebido, entre outras coisas, como o r!éno esforço humano de imaginar ativa e criativamente (eu me atreveria até a dizer "artisticamente") certas relações, estruturas e processos na realidade. Podemos representar o conhecimento como constante tentativa conje­tural de elaboração de "mapas", metáforas e outros artifícios para entender como é que se articula, funciona, nos toca e como podemos afetar a realidade que nos circunda.

Re-conatrução, enfim, provisória, passageira, transitória : pJr mais que em certas culturas as linhas-mestras de sua visão do mundo se rr.antenham as mesmas ao longo de milhares de anos, não existe conhecimento que se conserve incólume, intacto, sendo incondicionalmente aceito por todos os mem­bros de uma comunidade humana. As constantes transforma­ções da realidade, a multiplicação de perspectivas sobre a re&:.-tdade, oc: conflitos internos das sociedades humanas, os

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desafios e as inovações que caracterizam qualquer experiên­cia, as limitações de nossa capacidade cognoscitiva, assim como a ilimitada criatividade que caracteriza o ser humano, tudo isso- somado com a inesgotável riqueza do real- insinua a transitoriedade de qualquer conhecimento, ciência ou ver­dade. Em outros termos: é sempre possível conhecer "o mesmo" de outro modo que o elaborado até um certo momen­to ... entre outras coisas porque "o mesmo" não é, na realidade, nunca igual.

Tenho perfeita consciência de que esta maneira de con­ceber o conhecimento humano é apenas uma entre a infinida­de de outras concepções passadas, presentes e possíveis no futuro. Não estou absolutamente certo de que este jeito de ver o tema seja o melhor, nem sequer para os valores e interesses com os quais me identifico. Estou, no entanto, convicto de que em tempos de crise e de pessimismo, como aqueles que correm agora na América Latina, quem não se arriscar criati­vamente a se enganar, já está perdido. Prefiro o lema tibetano - "na dúvida, age "-ao ocidental- "na dúvida, abstém-se".

Esta maneira de conceber o conhecimento, entretanto, eu a compreendo como um convite provocador: confrontar a cada passo nossos conhecimentos com a sempre mutável realidade; a dialogar respeitosa e abertamente com toda comunidade ou pessoa que, desarmada e num tom pacífico, queira comparti­lhar visões diferentes da realidade; desencadear toda a nossa inventividade, criatividade e imaginação para colocá-las a serviço de pensar a vida de maneiras mais construtivas, pacíficas, cooperadoras e amorosas que aquelas que parecem predominar hoje no mundo; exercer ousadamente nossa ca­pacidade de reflexão crítica comunitária e pessoal sobre as coisas que parecem hoje ao nosso conhecimento como "óbvias e evidentes ".

Não julgo que se trate de "aumentar" nem simplesmente "substituir" nossos conhecimentos. Menos ainda chegar a uma visão comum e universal da realidade. No melhor dos casos, talvez se trate de algo bem diferente: algo assim como dinamizar, abrir, flexibilizar, criticar, enriquecer e refazer in­cessantemente nosso conhecimento do real dentro do calor,

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tanto de outras comunidades humanas com suas variegadas visões da realidade, como também do cotejo constante com a mutável e infinita riqueza do real. Talvez. Mas vou sublinhar: é difícil fazer isso honestamente quando nossa vida se baseia na dor dos outros. Aí, nosso conhecimento requer arrogância para se impor. Tampouco é fácil, quando, no extremo oposto, nossa vida se acha esmagada pela azáfama cotidiana de procurar manter uma família no meio de escassez e da falta de segurança. Aqui, um "diálogo de conhecimentos" é ao mesmo tempo mais urgente que nunca, mas só praticável contra vento e marés.

O diálogo exige vulnerabilidade recíproca, confiança e ternura: talvez só "fora" ou "por debaixo" da opressão é que seja possível (ou conveniente?) pensar o conhecimento como reconstrução parcial, parcializada, . hipotética e provisória de nossas relações. Porque , talvez, somente aí interessa realmen­te reconstruir a vida de maneira diferente daquela que hoje parece invadir (estaria sendo demasiadamente pessimista?) a morte prematura.

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CONCLUSÕES

Relendo e corrigindo o último Capítulo, senti que, de certo modo, as reflexões sobre o conhecimento que desejei compar­tilhar já estão ali e não é muito aquilo que, agora, desejo ainda acrescentar. Todavia, é um antigo costume que sempre acon­selho ao meus estudantes: devem incluir em todo ensaio algumas conclusões. Seriam como reflexões recapitulando e resumindo o que se disse e/ou portas abertas convidando a pessoa que ler o ensaio a ir mais adiante, além do texto, em uma certa direção .

Vou aqui optar por uma mistura dessas coisas. Primeiro, vou compartilhar - de maneira diferente da que usei na Introdução - algumas facetas do processo do qual surgiram estas reflexões sobre o conhecimento. A seguir, para encerrar, gostaria de convidar para uma reflexão sobre a importância das perguntas mais que das certezas que carregamos nas costas a vida inteira.

DAS CERTEZAS PASSADAS À BUSCA INCERTA DO FUTURO

Nós que vivemos nas Américas, estamos em uma situação dolorosa, inédita e - em muitos sentidos - desconcertante: as ondas da crise do capitalismo já estão chegando a nosso pescoço; a crise do socialismo autoritário revelou que não era muito grande a esperança que se achava por trás de certas bandeiras revolucionárias; os tímidos experimentos de demo­cracia sócio-econômica por parte do Sandinismo na Nicarágua e de Lavalás haitiana parecem sufocadas pela intolerância dos poderosos; os ventos renovadores que sopravam nas Igrejas , a partir do final dos anos 60, parece também que sucumbem diante dos ataques conservadores.

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Grande parte das convicções mais sólidas que animavam muitas pessoas a lutar pela transformação de nossas socieda­des se viram solapadas ou demolidas sob estas transforma­ções.

Em certo sentido, "sabíamos" que, de algum modo, as coisas iriam melhorar agora que todos os países latino-ameri­canos têm democracia política; e "sabíamos" também que, em geral, os povos escolheriam dirigentes progressistas para orientar nossos países durante este final de milênio. Ou, pelo menos, esperávamos que se os escolhidos fossem outros, começaríamos de qualquer maneira a sair do pesadelo que atormenta um continente inteiro. No entanto, os escolhidos foram políticos de nome Collor, Menem, Fujimori e Chamorro que, juntamente com os Pérez e outros. encabeçaram o agravamento da fome, violência, desemprego e corrupção que assolam nossos países. Entrementes, as organizações e lutas populares - assim como as conquistas obtidas por estas no passado - vão perdendo terreno ano após ano.

Muitos dentre nós também "sabíamos" que o socialismo é melhor que o capitalismo e que, por isso, no confronto entre eles sairia ganhando o socialismo. Agora não sabemos mais: não foi apenas a implosão dos socialismos reais que contra­disse nosso "saber". É igualmente o fato da maciça oposição popular ao socialismo onde foi praticado e a descoberta de crimes semelhantes aos que julgávamos que somente oco r­riam no capitalismo (até ecológicos , médicos e de corrupção administrativa).

"Sabíamos" ainda que as Igrejas- sobretudo a Católica­continuariam aprofundando a opção pela libertação dos opri­midos que veio de novo à tona nos anos 60; que as comuni­dades eclesiais de base (CEBs) iriam crescer em número e influência, e que a teologia da libertação se converteria em visão animadora para a maioria dos pastores e ativistas das Igrejas. Vemos porém agora que nas Igrejas predomina sempre mais uma política autoritária e conservadora, tanto para dentro como para fora , que as comunidades de base vão diminuindo em número, energia e apoio institucional; que a teologia da libertação parece incapaz de dar uma resposta que anime a

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esperança em face da atual crise tanto do capitalismo latino­americano como do socialismo mundial; e que, por todos os lados, parecem multiplicar-se e crescer as Igrejas refratárias ao diálogo ecumênico e à preocupação central pelos direitos humanos.

"Sabíamos", finalmente, que as mulheres veriam cada vez mais reconhecidos seus direitos, seriam mais respeitadas em sua dignidade e mais estimuladas em suas capacidades cria­tivas, dirigentes e decisórias.

Ao contrário, agora nos encontramos diante do fato de que as mulheres são a maioria dos pobres e mais pobres que os homens; que em muitos países as leis favoráveis às mulheres foram derrogadas ou se vão transformando em letra morta; e que, desde o Alasca até a Patagônia, a violência de todo o tipo contra as mulheres aumenta nesta última década do século.

De alguma maneira, agora "sabemos que, na realidade, não sabíamos", e muitos nos sentimos hoje perdidos, sem rumo, confusos e desesperados. Alguns de nós receamos perder as razões para continuar lutando (inclusive alguns temem perder as razões para continuar vivendo, pelo muito que deram de suas vidas para as lutas por uma América Latina mais humana) .

Outros de nós nos sentimos atraídos pelo "salve-se quem puder!", inclinados a nos dedicarmos apenas a proteger, desfrutar e se possível melhorar nossa vidinha privada, indivi­dual e familiar. Muitos de nós experimentamos um certo ressentimento pelas perdas irrecuperáveis destes anos de combate (gente querida, relações, família, lar, trabalho, estu­dos, tempo, energia e dinheiro) e que, por vezes, parecem agora absurdas.

Uma peculiar "crise de conhecimento" parece fazer parte da crise geral de nossas sociedades atuais. Dentro desta crise, emergem algumas suspeitas que alimentam muitas de minhas reflexões e que já mencionei nas páginas anteriores.

Por exemplo, suspeitamos que concedemos uma confian­ça ingênua, exagerada, à nossa capacidade de "conhecer o que é tal qual é, simplesmente ". Sentimos agora que essa

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confiança nos leva sistematicamente não só a nos enganar­mos, mas também a pretender impor autoritariamente aos outros aquilo que nos parece correto.

Intuímos que nos deixamos marcar por uma forte inclina­ção a considerar o conhecimento verdadeiro como sendo um só e, portanto, a pensar que outras formas de conceber a realidade são necessariamente erradas e devem ser elimina­das, seja de modo "racional" seja de modo repressivo. Des­confiamos agora de que conhecer uma realidade seja garantia de alcançar de algum modo aquilo que se procura no seio de tal realidade. Começamos a reconhecer que os laços entre conhecimento e sucesso prático são sumamente complexos, variáveis e difíceis tanto de captar como de controlar.

Começamos a suspeitar também que a percepção da realidade através de categorias fechadas, dualistas (verdadei­ro/falso, certo/errado, bem/mal, conservador/progressista etc.) ou mesmo "triádicas" ("capitalismo/socialismo/terceira via), dificulta em lugàr de favorecer tanto a compreensão da realidade como o diálogo com pessoas que compartilham óticas diferentes da nossa.

Algo semelhante ocorre com a visão ingenuamente o ti­mista da história humana como se desenvolvendo por etapas, em uma linha contínua que avança inexoravelmente de menor para maior conhecimento, liberdade, racionalidade, riqueza, felicidade, paz, justiça, cooperação e domínio da natureza. Suspeitamos , de novo , que as coisas são enormemente mais ricas, heterogêneas e complexas que o que é sugerido pelos mitos do progresso, desenvolvimento e evolução.

Finalmente, começamos a questionar o crédito e o poder que outorgamos aos cientistas, à especialização científica e aos "peritos" dos diversos campos. Percebemos que, com isso abdicamos tragicamente tanto de nossa capacidade como de nossa responsabilidade de participar na construção, avaliação e transformação do conhecimento da realidade e das decisões fundamentadas em tal conhecimento e que afetam nossas vidas.

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E tudo isso parece nos indicar que os modos predominan­tes de conhecimento em nossas sociedades ocidentais são mais parte do problema que da solução da atual crise latino­americana. Parece que tais modos de conhecimentos não nos permitem nem compreender a crise nem dela sair. Além disso, começamos a perceber, cada vez com maior clareza, estes modos de conhecimento como destruidores, autoritários e antidemocráticos, estimulando condutas, relações e institui­ções igualmente destruidoras, autoritárias e antidemocráticas.

Mas, de maneira geral, agora que principiamos a tomar consciência destas coisas, não sabemos o que fazer para sair desta "crise de conhecimento", desta incerteza quanto aos caminhos a tomar nos anos vindouros. Às vezes, cada um de nós acredita que esta crise é questão sobretudo pessoal, íntima, particular. E como somos muitos os que estamos na mesma situação, dissimulando nossas perplexidades e nosso desconcerto, não nos atrevemos a dar o primeiro passo para compartilhar, com algumas pessoas de confiança, a busca de caminhos para sair da confusão e da paralisia.

Mas acontece que somos alguns milhões, muitos talvez, compartilhando hoje este desassossego na América Latina. E é bom sabê-lo: isto nos alivia a angústia e a culpa de acreditar que esta "crise de conhecimento" (de não saber mais com certeza nem o que é que está acontecendo, nem por que, nem o que fazer para sair da crise) é algo meramente individual. Além disso , isto nos proporciona a ocasião e os recursos para, em comum, tratar de compreender o que está acontecendo e descobrir os caminhos teóricos e práticos para enfrentar, de maneira nova os novos desafios do presente.

Nossas reflexões tiveram o intuito de ser uma contribuição neste sentido: um jeito de compartilhar desassossegos, dúvi­das, buscas e intuições, minhas, certamente, mas que eu vim descobrindo que são, também, de milhares de outras pessoas que sonham com uma vida melhor para nossos filhos ... um jeito, portanto, de aliviar angústias e culpas pessoais, compar­tilhando-as com outras pessoas que passam por um mal-estar semelhante ao meu .. . um jeito, finalmente, de buscar compa­nheiras e companheiros de caminhada, oferecendo uns aos

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outros apoio, idéias, recursos e força para tentar construir saídas para nossa América. Oxalá que este esforço valha a pena também para muitas outras pessoas além de seu Autor.

PERGUNTAS COMPARTILHADAS, MAIS QUE RESPOSTAS PRÉ-FABRICADAS

Talvez um dos muitos maus costumes ocidentais seja a mania de definir, classificar e julgar outras pessoas e culturas pelas respostas que elas dão a nossas perguntas. Mas, e se nossas perguntas não tiverem o menor significado para essas outras pessoas? Além disso, quem nos garante que nossas perguntas serão entendidas pelos outros da mesma maneira como nós as entendemos? Porventura, uma "mesma" pergun­ta não poderá ser compreendida e respondida de múltiplas maneiras diferentes? E, afinal de contas, quem garante que as conseqüências reais de responder a uma pergunta de certa maneira vão ser as mesmas para pessoas e comunidades diferentes?

Quem sabe, na verdade, seria preciso questionar esse mau costume ocidental de etiquetar, fichar e sentenciar os outros pelas suas respostas às nossas perguntas. Talvez - e isto é mais ou menos o que desejo sugerir para encerrar estas reflexões - o importante, o significativo e decisivo na vida humana, não seja tanto, realmente, as respostas que damos às perguntas dos outros ... mas sim as perguntas, interrogações e questões que orientam nossas vidas e nossos vínculos com o resto da humanidade e de toda a criação. Talvez uma das tragédias das culturas ocidentais (tragédia do cristianismo, liberalismo e socialismo, entre outros movimentos) seja o fato de, com demasiada freqüência, nos aferramos a certas respos­tas que achamos para nossas indagações originais .. e deixa­mos de viver a busca que deu origem a muitas de nossas tradições!

Permitam-me agora os leitores um pouco de ironia! Muitas "perguntas" são "de mentira". Ou seja, não se trata de per­guntas que realmente procurem enriquecer a sabedoria pes-' . . soal nem a vida de uma comunidade, mas s1m procuram co1sas como afirmar ou confirmar o poder de uma pessoa sobre as

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outras. Estas são, por exemplo, as perguntas feitas por alguém que, arrogantemente, está seguro de "possuir a resposta correta" e tenta de duas uma: ou cobrir de ridículo a pessoa interrogada, "provando-lhe" até que ponto está "equivocada", ou "controlar" a pessoa interpelada, vendo "o que e quanto sabe", para assim classificá -la em uma hierarquia e lhe dar instruções de como chegar ao ápice, ficando por cima dos outros .

Muitas de nossas perguntas, aliás, são postiças, artificiais, não são realmente nossas; são apenas as perguntas com que nos bombardeiam dia e noite os meios de comunicação de massa e as elites no poder. São apenas as perguntas a que nos acostumamos por comodidade e/ou medo ... e são, acima de tudo, as perguntas que não nos inquietam, porque já vêm com suas respostas pré-fabricadas e empacotadas. Não são per­guntas que de fato questionam, reanimam ou nutrem nossa vida ou nossos laços com os outros. Não são verdadeiras perguntas!

Eu chamaria de verdadeiras perguntas aquelas vividas como profundamente importantes e urgentes, mas para as quais se julga NÃO ter resposta (e talvez nunca, ninguém teve uma resposta definitiva) São as questões que, por isso mesmo, impelem aqueles que as vivem a procurar outras pessoas, no sentido de ver se estas podem ajudá-las a responder a tais perguntas. Ou para ver se, em comum, conseguem elaborar respostas provisórias, mais ou menos orientadoras , para tais perguntas; ou, ao menos, para ver se, compartilhando com outras pessoas a perplexidade e a angústia próprias, encon­trarão o afeto, a compreensão e a esperança necessárias para uma oração de ação de graças - enquanto se vive a busca incessante de resposta para as questões fundamentais da própria vida.

Acredito que uma das tarefas urgentes de hoje é precisa­mente escutar atenta e humildemente as perguntas que nos vêm dos "outros"- gente de outras regiões, culturas e cama­das sociais - e refletir sobre aquilo que essas interpelações podem trazer para nossas próprias vidas .

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Nota
documentário: oeste | leste. ue fala sobre diferentes formas entre ocidentais e orientais de ver e definir as coisas .
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"Caminhante, não há caminho; faz-se caminho andando!" -diria o poeta espanhol Antônio Machado. Coisa semelhante poder-se-ia dizer com respeito às respostas : Homem perplexo, não há respostas; dão-se respostas andando com certas per­guntas nas costas ! Talvez o que melhor defina a vida de um ser humano qualquer não são suas respostas, mas as pergun­tas que carrega nas costas. As perguntas levam o homem a buscar , criar, pensar, imaginar, inventar, transformar, melho­rar, enriquecer, preocupar-se, ocupar-se, cuidar, dialogar, es­cutar e doar-se. Já as respostas - sobretudo se as levamos demasiadamente a sério, definitiva e peremptoriamente, fe­chando-nos para não ouvir outras tentativas de respostas e perguntas diferentes,- correm muito mais o risco de paralisar, congelar, fechar e impor. Talvez até se possa dizer: "Dize-me o que perguntas, e eu te direi quem és".

Imaginemos uma pessoa que se interroga constantemen­te, por exemplo, dizendo: "Que poderei fazer para tornar mais bela a vida daqueles que me cercam? Que conseqüências negativas para outras pessoas poderiam ter meus valores, crenças e comportamento?"

Provavelmente, aqueles que viverem com tais perguntas, levando-as a peito, e quanto mais a sério e mais profundamen­te as viverem, assumindo as melhores respostas como uma espécie de imperativos transitórios, tanto maior bem e menor dano fará a seus congêneres, que aqueles que vivem aferrados a soluções inquestionáveis .

Recordo aqui a breve autobiografia intelectual do filósofo e historiador britânico Collingwood, Idéia da História. Nesse livro, Collingwood sustenta a interessante idéia segundo a qual toda verdade (e também todo erro) sempre o é em relação com uma pergunta. Uma mesma afirmação pode ser verdadei­ra, falsa, indiferente ou impertinente, conforme a interpelação que se deseja responder com essa declaração. E, neste senti­do , não adianta nada examinar a "verdade" de uma afirmação, de um discurso ou teoria, sem antes examinar - levando-os a sério- quais são as perguntas a que ali se procura dar solução.

Este livro, como o terá notado quem o leu até aqui, não procura tanto insinuar respostas e sim propor, comunicar,

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multiplicar e compartilhar verdadeiras perguntas: perguntas que levo comigo há muitos anos, para as quais não possuo clara nem definitiva solução; enigmas para os quais eu não creio - e talvez até nem deseje - que haja uma resposta única nem concludente : buscas que me ajudam a me manter inquie­to, vivo, investigando, escutando, experimentando, imaginan­do, avaliando e transformando minha própria vida: questões, portanto, que eu prefiro continuar carregando comigo ao invés de "assassiná-las com respostas".

Acredito, espero e desejo a fundo que as autênticas perguntas dos que lerem estas linhas , juntamente com as que se acham nestas reflexões, mais as que puderem surgir do encontro de ambas, sirvam para ajudar a nascer teorias do conhecimento, orientações sócio-políticas, reflexões éticas e ensaios teológicos verdadeiramente democráticos. Ou seja, onde o diálogo comunitário leve a consensos provisórios sempre abertos a revisão e transformação por iniciativa da comunidade afetada por esses consensos - orientados pelo Espírito da Vida, pelo . impulso interior - a cuidar carinhosa­mente da vida, e sobretudo daqueles cuja vida é mais frágil e vulnerável (crianças e oprimidos). Assim seja'

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BIBLIOGRAFIA

Utilizada e recomendada

Julgo importante frisar aqui a importante influência que muitas das obras citadas tiveram em minha maneira de pensar sobre o tema do conhecimento. Isto não quer dizer que eu esteja necessariamente de acordo com tudo aquilo que elas digam, embora certamente eu pense que todos esses trabalhos foram - para mim ao menos - sumamente úteis, férteis e estimulantes .

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tivas ao "neoliberalismo" que marca presença sozinho junto às esperanças dos pobres e domina a política mundial. Mas o A. aposta na mudança do presente quadro. Não apresenta, na verda­de, definições rígidas nem recei­tas prontas, mas dialoga com os leitores, levanta questões vitais, abre pistas de reflexão, rasga ho­rizontes do conhecimento e pede que os intelectuais secundem os movimentos populares na busca de meios para a transformação do status quo.

Os despossuídos têm encon­trado, em todo o mundo, muitas dificuldades para se organizar à margem das elites que se perpe­tuam secularmente no poder. Urge, diz o A., promover uma "libertação da linguagem" , res­tituindo ao povo a fala e ajudan­do-o na "reapropriação do co­nhecimento" . Urge realimentar a chama da esperança, para que o povo não escorregue para o de­sespero. Num esforço conjunto, na partilha das mais legítimas convicções da humanidade, será possível - confia o A. - redese­nhar os mapas para a f esta, para que o povo, vivendo numa reali· dade transformada, vendo reinar, enfim, fraternidade e justiça, in­ta o supremo gosto de celebrar com alegria uma nova ordem so­cial, boa para todos, sem exclu­são de ninguém.