formaÇÃo continuada: divulgaÇÃo e didaticidade do conceito de letramento
TRANSCRIPT
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
1
DINÂMICAS ENTRE UNIVERSIDADE E ESCOLA PÚBLICA: DESA FIOS DO LETRAMENTO PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
CLÁUDIA LEMOS VÓVIO
COORDENADORA
Clecio Bunzen (Unianchieta) Daniel Revah (Unifesp)
Emerson de Pietri (USP) RESUMO Há mais de 25 anos o campo educacional brasileiro vive um processo de mudanças substantivas, tanto nas políticas públicas e sua implementação como na organização de currículos e orientações para as práticas pedagógicas, que abrangem desde questões relativas aos objetos de ensino privilegiados e às orientações de como ensiná-los, até aspectos relacionados com a organização do trabalho docente. Normatizações do processo de ensino-aprendizagem e mudanças na organização da educação básica emolduram esse contexto, o que, nas vozes de muitos professores, resulta numa situação de incerteza que os desestabiliza frente ao novo que se coloca. A aproximação da Universidade à escola pública a fim de contribuir com a qualidade da educação tem sido apontada como uma via estratégica para responder a essa demanda, por meio da construção de diálogos que articulem teoria e prática, tanto na formação inicial do professor quanto no exercício profissional da docência. O painel aqui proposto apresenta três experiências de aproximação da Universidade à educação pública e discute o sentido e o resultado dessas ações. A primeira, intitulada “Formação continuada: divulgação e didaticidade do conceito de letramento”, discute o processo de vulgarização do conceito de “letramento” em textos recentes, produzidos pela Rede Nacional de Formação Continuada de Professores de Educação Básica (SEB/MEC). A segunda, intitulada Desafios do Letramento na alfabetização, discorre sobre as ações desenvolvidas em parceria entre o curso de Pedagogia da Universidade Federal de São Paulo e a Escola Municipal Vicente Ferreira Silveira, em Guarulhos (São Paulo), envolvendo alunos e docentes do curso de Pedagogia e alunos, professores e direção dessa escola pública “. E a terceira, de título “Formação para a docência e a pesquisa em contextos de heterogeneidade e prescrição”, tematiza os modos como professores em formação inicial conferem coerência às elaborações de suas experiências de estágio supervisionado em salas de alfabetização. Palavras-chave: Formação de professores; alfabetização; letramento; ensino e pesquisa
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
2
FORMAÇÃO CONTINUADA: DIVULGAÇÃO E DIDATICIDADE DO CONCEITO DE
LETRAMENTO
Clecio Bunzen (Unianchieta)
RESUMO Este trabalho tem por objetivo discutir a formação do professor de língua materna, com enfoque na divulgação do conceito de “letramento” por materiais impressos produzidos por acadêmicos para os professores das séries iniciais, inseridos em processos de formação contínua. Voltamos nossa atenção para o possível impacto dos estudos do letramento na educação, no intuito de compreender a perspectiva que denominamos de letramento curricular (Bunzen, 2009). Nossa análise toma como corpus três textos didáticos produzidos por Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação (CEALE, CEEL e CEFIEL) com o intuito de apresentar e discutir os conceitos de alfabetização e letramento. Focalizaremos, assim, o âmbito das políticas públicas de educação, uma vez que os textos produzidos nessa instância apresentam um forte caráter de divulgação/difusão de propostas de mudança nas práticas escolares. O conceito de “letramento” tem sido constantemente utilizado como uma proposta “inovadora” para organização curricular, distanciando-se de outras abordagens para o ensino da língua escrita. Nossa análise demonstra que o conceito de letramento é ora utilizado como mais próximo do conceito de alfabetismo (Rojo, 2009) e ora é mobilizado como um objeto de pesquisa sobre as práticas sociais, ambos com implicações didático-metodológicas específicas. As análises sugerem que as estratégias didáticas para discussão do conceito de letramento ainda são poucas em alguns materiais de formação, uma vez que há um maior espaço para a reflexão sobre o processo de alfabetização. Além disso, ressalta-se que os materiais preferem assumir uma perspectiva teórica uniforme/monológica e não dão visibilidade aos conflitos epistemológicos que envolvem os conceitos durante a formação continuada dos professores. Palavras-chave: Formação de professores, alfabetização e letramento.
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
3
Introdução
Durante o século XX, assistimos a um aumento significativo de impressos (livros, revistas,
jornais) de formação profissional produzidos no cenário brasileiro. Para além da cultura do
impresso, os textos em gêneros específicos para a formação docente têm circulado também
em diferentes mídias como o rádio, a televisão e o meio digital. A TV Futura (lançada em
1997) e programas como Um Salto para o Futuro podem servir aqui como exemplos para
demonstrar o crescimento de modalidades interativas de formação continuada, no contexto
específico de Educação à distância. Os programas televisivos, assim como as revistas
pedagógicas (Nova Escola, Pátio, Educação, Presença Pedagógica), procuram os
especialistas da academia para travarem um diálogo - no sentido bakhtiniano do termo -
com os professores em formação contínua/permanente ou inicial. Esse diálogo, que não
exclui o conflito de vozes e de apreciação valorativa (axiológica) sobre o mundo e os
discursos, funda-se muitas vezes na “midiatização do aparente fracasso das práticas
escolares de ensino de línguas e das políticas públicas para educação” (Matencio, 2008,
p.543).
Nas últimas três décadas, presenciamos também um boom de textos de divulgação
científica e textos didáticos para professores em formação inicial e continuada. No geral,
são textos produzidos por pesquisadores na esfera científica para circular na esfera escolar,
uma vez que tem os professores como interlocutores principais. Com base na noção de
campo de Bourdieu, Andrade (2004, p.19) tece pertinentes comentários sobre essa relação
interlocutiva do discurso de formação:
a noção de campo como espaço onde se criam interesses para
certos agentes permitiu pensarmos no campo universitário e sua
especificidade de, como forma de distinção, produzir leituras
destinadas ao professor. No campo escolar, por sua vez, o
professor pode distinguir-se pelo ato de buscar a universidade
como lugar de formação. No campo intermediário entre
universidade e escola, a formação passa a ter agentes que se
identificam como formadores, muitas vezes se inserindo nesse
campo completamente ou apenas parcialmente.
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
4
Ao comentar sobre os discursos de divulgação científica e didáticos, Rojo (2008, p.589)
lembra que a própria concepção de di-vulgação aponta para “ação de dar ao vulgo (à plebe,
aos pobres, aos trabalhadores, aos que falam a língua vulgar – o povo) os bens do
conhecimento”, com destaque para a emergência da ciência moderna no século XVIII –
conhecido como o século das luzes. A autora indica a organização da Enciclopédia como
um dos textos que permitiram a divulgação de temas e conceitos científicos para o povo. Se
a divulgação científica nasce com o Enciclopedismo, como aponta Rojo (2008), ela
atualmente circula em diferentes espaços e mídias com diferentes objetivos.
Nesse contexto de divulgação dos conhecimentos para os professores, tem crescido o
interesse pelos estudos dos suportes materiais que permitem a circulação de discursos e
apropriação de saberes pedagógicos, tais como a imprensa periódica especializada em
educação (Frade, 2002) e as coleções dirigidas a professores (Andrade, 2004, Carvalho,
2007); assim como dos cursos de formação continuada de professores (Signorini, 2007,
Kleiman e Martins, 2007).
De forma bastante pertinente, Matencio (2008) aponta para o fato de que os conflitos entre
os saberes científicos e suas formas de divulgação para os professores são raramente
questionados, como se houve um forte impacto da produção acadêmico-científica na escola
via políticas públicas curriculares. Como formadores de professores não temos, como
destaca Andrade (2004, p.21), “abordado com seriedade a nossa própria responsabilidade
pela situação da escola e dos docentes [...]”, uma vez que muitas vezes “realizamos a tarefa
científica de pesquisadores sobre a escola considerando que, uma vez publicada, está terá
necessária e diretamente efeitos de melhoria dessa escola”.
Nosso objetivo no presente trabalho, é justamente refletir sobre o discurso de formação
(Andrade, 2004) em impressos pedagógicos produzidos por três Centros de Formação
Continuada do MEC (CEALE, CEEL, CEFIEL). Para realizar tal discussão, analisaremos
como o conceito de “letramento” é apresentado pelos autores dos textos (pesquisadores,
universitários, produtores de conhecimento voltados à formação) para os professores em
contexto de formação continuada. Do ponto de vista da produção, nos interessa aqui
especificamente os discursos de divulgação científica de cunho didático, uma vez que são
produzidos por especialistas com o objetivo de divulgar os conceitos científicos e ensiná-
los por meio de explicações, reformulações, analogias, exemplificações. No corpus
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
5
selecionado, daremos atenção especial para as explicações e atividades/exercícios
propostos para os professores em formação contínua.
2. A Rede Nacional de Formação Continuada: esfera de produção
A Rede Nacional de Formação Continuada de Professores da Educação Básica (doravante
RNFC), do Ministério da Educação e Cultura (MEC), tem como objetivo, segundo
informações disponíveis no site do programa federal, contribuir para “a melhoria da
formação de professores e alunos”. A Rede Nacional é composta por Centros de Pesquisa e
Desenvolvimento da Educação, mantidos por professores-formadores-pesquisadores que
coordenam e elaboram programas de formação continuada para os estados e municípios,
em cinco áreas temáticas: (a) Alfabetização e Linguagem; (b) Ensino de Ciências Humanas
e Sociais; (c) Artes e Educação Física; (d) Educação Matemática e Científica; (e) Gestão e
Avaliação da Educação. Destacamos aqui ainda alguns dos objetivos da RNFC: (i)
“contribuir com a qualificação docente no sentido de garantir uma aprendizagem efetiva e
uma escola de qualidade para todos”; (ii) “desencadear uma dinâmica de interação entre os
saberes pedagógicos produzidos pelos Centros, no desenvolvimento da formação docente e
pelos professores de sistemas de ensino, em sua prática docente”.
Para a Rede Nacional de Formação Continuada, a formação não deve ser vista como uma
correção de um curso precário, uma vez que apostam na necessária reflexão permanente do
professor. Por outro lado, os Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação
encontra-se em instituições com tradições em ensino e pesquisa, situadas em diversas
regiões do Brasil. Na área temática Alfabetização e Linguagem, nosso interesse de
pesquisa, as universidades responsáveis pelos Centros de Pesquisa são: UFPE, UFMG,
UNICAMP, UEPG, UNB. Os Centros, de forma geral, têm priorizado a produção de
diversos materiais para os professores (jornais, sites, cadernos de estudo, vídeos), além dos
materiais didáticos elaborados para o funcionamento dos cursos, com dinâmicas e formatos
específicos. Desta forma, os textos de divulgação científica de caráter didático que iremos
analisar foram produzidos por três Centros de Pesquisa (CEEL, CEALE e CEFIEL) para
professores-alfabetizadores que trabalham com as séries iniciais. Esses centros e suas
produções podem ser inseridos no que Dornelles (2007) chama de espaço acadêmico
central – em contraposição aos espaços periféricos.
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
6
Espaços acadêmicos centrais são [...] compreendidos como aqueles
responsáveis pela “larga escala” de produção e distribuição dos
saberes que exercem hegemonia em campos disciplinares
específicos. A condição de centralidade desses espaços resulta
primordialmente de sua infra-estrutura material e simbólica:
possuem recursos para a distribuição dos saberes que produzem e
também para dialogarem com variados espaços acadêmicos em
escala local e global (Dornelles, 2007, p. 117).
Os textos em diversos gêneros (artigos, verbetes, entrevistas, documentários), produzidos
pelos Centros de Pesquisa, são aqui compreendidos como produzidos por espaços
acadêmicos centrais que em rede divulgam, didatizam e legitimam saberes acadêmicos-
científicos sobre o ensino de língua(gem). A didatização, como mostram algumas pesquisas
(Bunzen, 2009; Signorini, 2007; Dornelles, 2007), aponta para um processo dialógico entre
saberes e demandas de inovação que tem se estabelecido no cenário nacional de reformas
educacionais desde a década de 70. Nessa lógica da divulgação científica para formação
dos professores, nos interessa aqui perceber como o conceito de “letramento” está sendo
didatizado para os professores. Conforme Signorini (2007, p. 223):
[...] a questão da inovação no ensino da língua acaba sendo uma
questão de fluxo e gerenciamento da informação “de qualidade”,
ou mais adequada, ou “necessária”, ou “mais atual”, através da
transmissão (ou transposição) de conteúdos disciplinares, de
aquisição de maior competência nesses conteúdos, portanto uma
questão de formação (ou de melhor formação) lingüística dos
agentes institucionais encarregados de introduzir e fazer funcionar
a inovação, sobretudo o professorado.
3. Alfabetização e Letramento
Na coleção Alfabetização e Letramento, produzida pelo Centro de Alfabetização, leitura e
escrita (CEALE), um dos cadernos de formação é dedicado à exploração dos conceitos de
alfabetização e do letramento. A coleção, composta de cadernos impressos, volta-se para a
“formação teórica do professor e discute conceitos fundamentais para a compreensão do
que sejam os processos de alfabetização e letramento” (p.7). Essa reflexão teórica
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
7
encontra-se a serviço da reflexão da ação pedagógica, articulando a teoria com situações
escolares.
As primeiras palavras da coleção já apontam para um discurso de mudanças/inovações
didáticas e pedagógicas no ensino da língua portuguesa. Tais mudanças curriculares
normalmente assinalam alterações nos objetos de ensino a serem ensinados, nos métodos e
metodologias de ensino, na organização do trabalho pedagógico e no processo de avaliação.
Por essa razão, o conceito de letramento é normalmente categorizado como um “novo
conceito” (p.11) que será apresentado “sob um ponto de vista teórico” (p.11). Vale a pena
perceber esse movimento discursivo que procura responder ao professor-leitor do texto
como alguém que espera “respostas práticas e não teóricas”(p.11). A introdução do caderno
volta-se para essa relação teoria versus prática para justificar o porquê da escolha da
realização de um “exame teórico” dos conceitos de alfabetização e letramento. Vejamos um
dos principais argumentos apresentados pelos autores:
[...] uma adequada reflexão sobre diretrizes metodológicas, bem
como uma consciente tomada de decisões, em sala de aula,
pressupõe, dentre outros fatores, o conhecimento dos
fundamentos teóricos que deram origem a essas diretrizes
metodológicas, que podem dar base a decisões em sala de aula,
que podem justificar direções seguidas. [...] Assim, conhecimentos
de natureza teórica são um elemento para a construção de uma
atuação autônoma de qualquer professor e, por isso, devem
integrar sua formação. (Soares e Batista, 2005, p.11, destaque
nosso)
Os dois fragmentos ressaltam aspectos da autonomia do professor para compreender as
mudanças curriculares, ou seja, a reflexão conceitual e teórica permitiria, na visão dos
autores, uma maior reflexão e consciência da prática pedagógica. Essa autonomia volta-se
também para uma representação do professor-leitor em formação contínua que precisa
dominar conceitos e referências teóricas para realização de leituras específicas.
O discurso da formação, como analisa Andrade (2004), volta-se justamente para esse
movimento de apresentação de conceitos e definições de forma didatizada para os seus
leitores. O texto didático que compõem os cadernos da coleção Alfabetização e Letramento
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
8
é constituído basicamente de explicações didáticas, intercaladas de atividades. O conceito
de letramento é apresentado para os professores sempre em contraposição ao conceito de
alfabetização, por essa razão encontramos títulos (“o que diferencia alfabetização e
letramento?”) e atividades que acentuam essa forma, em certo sentido dicotômica, de
compreender os dois processos:
Com base nas duas questões anteriores, você já pode tentar
formular, por inferência, as diferenças entre estes dois processos
– alfabetização e letramento. Responda à pergunta seguinte e
guarde sua resposta: ao final deste Caderno, você voltará a ela, e
poderá verificar se acertou, nas inferências feitas neste momento
inicial. Qual é a diferença entre alfabetização e letramento?
(Soares e Batista, 2005, p.16).
Essa atividade formativa, apresentada na primeira seção do caderno, tem como objetivo
mobilizar os conhecimentos prévios dos professores, mas parte de uma concepção teórica
de que é possível estabelecer diferenças entre os dois processos. Os professores devem ser
capazes de compreender e distinguir os conceitos de alfabetização e letramento,
compreendidos, em uma primeira instância, como dois processos. Em uma segunda
instância, o conceito de alfabetização é mobilizado como “o ensino e o aprendizado de uma
tecnologia de representação da linguagem humana, a escrita alfabético-ortográfica”, que
envolve um conjunto de conhecimentos e procedimentos (como distinguir o escrito de
outros sistemas de representação), assim como determinadas capacidades motoras e
cognitivas.
As seções 2 e 3 (no total de 30 páginas) são dedicadas a exploração do conceito de
alfabetização que antecede as discussões sobre letramento. A seção 4 (no total de 05
páginas) dedica-se a explicar para o professor o surgimento do conceito de letramento. No
geral, parte-se do pressuposto de que o conceito de letramento é uma “ampliação
progressiva do próprio conceito de alfabetização” (p.47) e que essa ampliação deve-se a
necessidades sociais e políticas, como os Censos que procuram medir o grau de
analfabetismo da população.
Diferentemente do que ocorre com o conceito de alfabetização, os autores procuram utilizar
sinônimos utilizados pela mídia ou por avaliações desenvolvidas por institutos e ONGs
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
9
brasileiros para que os professores compreendam o conceito de letramento: “na imprensa e
em muitas pesquisas, a expressão alfabetismo funcional é usada como sinônimo de
letramento” (p.48) ou “o termo alfabetismo, utilizado pelo INAF, é sinônimo de
letramento”. A didatização do conceito via sinonímia aponta para a compreensão do
conceito de letramento como alfabetismo, ou seja, um “conjunto de competências e
habilidades, tanto de leitura como de escrita” (Rojo, 2009, p. 74). Nessa primeira
apresentação do conceito, os autores mantêm o foco no aspecto mais individual e
psicológico do conceito de alfabetismo, no sentido dado por Rojo (2009). A discussão
conceitual perde, em certo sentido, sua força elucidativa, pois o enfoque passa a ser a
discussão sobre as “capacidades e conhecimentos envolvidos no letramento”(p.49), que
apontam para o uso da linguagem escrita em práticas sociais específicas. Essa perspectiva
do letramento-alfabetismo, fica mais evidente nas atividades formativas que solicitam que
os professores comparem os “níveis de letramento” e respondam: “o que significa ter um
nível de letramento alto?” ou “o que significa ter um nível de letramento baixo?”(p.50).
Letramento é compreendido, em grande parte das explicações e atividades, como a
capacidade de ler e de produzir textos com competência, contrapondo-se ao conceito de
alfabetização que seria a capacidade de “codificar” e “decodificar”. Os autores definem o
letramento como: “o conjunto de conhecimentos, atitudes e capacidades envolvidas no uso
da língua em práticas sociais e necessários para uma participação ativa e competente na
cultura escrita”. A atividade 9 (p.51) faz com que os professores retomem as diferenças
entre e reformule, acrescente ou explore diferenças entre os conceitos. Percebemos pouco
espaço para que os professores explicitem possíveis semelhanças entre os conceitos, assim
como poucas indicações de aprofundamento da temática ao longo das páginas dedicadas ao
conceito de letramento.
4. Alfabetização e Letramento: conceitos e relações
Nossa segunda análise terá como foco o artigo inicial e as atividades do guia didático que
compõem o livro “Alfabetização e letramento: conceitos e relações”(Santos e Mendonça,
2005), produzido pelo Centro de Estudos em Educação e Linguagem (CEEL). O livro,
composto por 08 artigos, e o guia didático (com atividades formativas para cada capítulo)
se insere nas ações propostas para o CEEL para os cursos de formação docente,
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
10
especificamente na problemática da relação entre alfabetização e letramento. Na
apresentação do livro, lemos que
a construção desse livro resulta, portanto, do esforço de produção
de um material pedagógico para formação de professores na área
de língua portuguesa que contribuísse para articular e sistematizar
a discussão acerca dos conceitos de alfabetização e letramento,
buscando estabelecer sua relação com o processo de escolarização
(Santos e Mendonça, 2005, p. 8).
O artigo que abre a coletânea – Conceituando alfabetização e letramento – , de autoria de
Eliana Alburquerque, aposta novamente no movimento discursivo de explicar para os
professores os conceitos e suas relações. O artigo composto por 12 páginas não apresenta
subdivisões e ancora-se essencialmente na estratégia didática de trazer depoimentos de
autores brasileiros (como Graciliano Ramos) e de professoras sobre a alfabetização, com o
intuito de discutir os dois conceitos. No início do artigo, o conceito de letramento é
apreciado como “novo” e situado nas discussões da década de 90, contrariamente ao
conceito de alfabetização, compreendido como um conceito “conhecido e familiar” (p.11).
Os depoimentos são utilizados como uma estratégia didática para que o professor reflita
sobre as experiências de alfabetização em ambiente escolar e familiar que aconteciam até as
décadas finais do século XX. Os anos 80, situa a autora, foram responsáveis por um
conjunto de reflexões de diferentes campos (Psicologia, História, Sociologia, Pedagogia)
sobre o estudo da leitura e seu ensino, destacando em seu artigo as contribuições sobre a
psicogênese da língua escrita (Ferreiro e Teberosky, 1994). O conceito de letramento é
apresentado para os professores da seguinte forma:
Nos últimos vinte anos, principalmente a partir da década de 1990,
o conceito de alfabetização passou a ser vinculado a outro
fenônemo: o letramento. Segundo Soares (1998), o termo
letramento é a versão para o português da palavra de língua inglesa
literacy, que significa o estado ou condição que assume aquele que
aprende a ler e a escrever. (Albuquerque, 2005, p.16).
A interpretação da autora baseia-se nas discussões de Soares (1998), que aponta para a
definição de letramento como “estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e a
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
11
escrever”. Conforme Rojo (2009), essa definição aproxima-se mais do conceito de
“alfabetismo”, por enfocar questões mais individuais e psicológicas da aprendizagem da
leitura e da escrita. O dicionário Houaiss (2001) é também utilizado pela autora para definir
o conceito de letramento: “conjunto de práticas sociais que denotam a capacidade de uso de
diferentes tipos de material escrito”. Assim, o conceito de letramento aponta novamente
para as questões de competências e habilidades.
Assume destaque no artigo também o fato de que as crianças e adultos não-alfabetizados
participam de práticas específicas de letramento e desenvolvem “uma série de
conhecimentos sobre os gêneros que circulam na sociedade”. No entanto, apenas essa
vivência ou o domínio do sistema alfabético não garantem as competências e habilidades
necessárias para “ler e produzir os gêneros de texto”. Por esse motivo, a escola precisa
garantir tanto a apropriação do sistema de escrita alfabético (entendido pela autora como
alfabetização) como o ensino da leitura e da escrita no contexto de práticas sociais
(letramento). A ideia central novamente é a formação de leitores e escritores competentes,
mesmo que não se apresente uma discussão sobre o conceito de competência mobilizado e
suas relações com os estudos do letramento. A defesa do artigo é que os professores
precisam garantir um trabalho pedagógico e sistemático de reflexão sobre o sistema de
escrita alfabético (alfabetização) e um trabalho com a leitura e produção de diferentes
textos (letramento). O professor que consegue unir tais práticas estaria desenvolvendo uma
prática de “alfabetizar letrando” (p.20), concepção central bastante utilizada ao longo do
livro.
No guia didático, as questões de alfabetização recebem um destaque bem maior do que o
conceito de letramento. No geral, os professores discutem sobre o conceito de letramento
em dois momentos. Na atividade 4 (p.11) que solicita que os professores em grupos
selecionem quatro frases-chave do artigo para discussão sobre os conceitos de alfabetização
e letramento. Essas frases serão expostas em um painel que é retomado na atividade de
sistematização que finaliza o conjunto de atividades:
Agora, após todas as discussões realizadas, observem o painel
montado coletivamente e elaborem, em grupos, uma definição
para letramento e outras para alfabetização. Socializem no
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
12
grande grupo e acrescentem ao painel, para finalizar os trabalhos
deste capítulo. (Guia didático, 2005, p.13).
5. Preciso ensinar o letramento? Não basta ensinar a ler e a escrever?
O terceiro texto didático que analisaremos é um livro que foi produzido pelo Centro de
Formação de Professores do Instituto de Estudos da Linguagem (CEFIEL), de autoria de
Ângela Kleiman. O título do livro feito em formato de pergunta retórica é respondido logo
na introdução da obra, em que a autora afirma que “quando se ensina uma criança, um
jovem ou um adulto a ler e a escrever, esse aprendiz está conhecendo as práticas de
letramento da sociedade; está em “processo” de letramento”(p.5). Entendido aqui também
como um processo, o texto didático explora exemplos e imagens para que o professor-leitor
compreenda o conceito de letramento, assim como propõe atividades para serem realizadas
pelos professores cursistas (em cursos semipresenciais à distância). Na compreensão da
autora, o conceito de letramento surge como “uma forma de explicar o impacto da escrita
em todas as esferas da atividade e não somente as atividades escolares”, distanciando-se
assim da concepção de letramento como uma ampliação do conceito de alfabetização.
O fascículo também tem um caráter introdutório do conceito de letramento, uma vez que
um dos cursos ministrados pelo CEFIEL é “Letramento nas séries iniciais”. O conceito de
letramento não é apresentado como “novo”, mas como um conceito que já faz parte do
discurso escolar. Partindo do pressuposto que o conceito entrou na escola por diversas
fontes e textos diversos (livros didáticos, propostas curriculares), a autora afirma que “isso
tem causado muita confusão”. Tal “confusão” faz com que a autora organize o seu texto
didático em dois grandes momentos: discussão sobre o que não é letramento para depois
apresentar o que é letramento, com destaque para as implicações do conceito para as
práticas escolares. Essa escolha deve-se a uma tentativa de não “marcar uma ruptura sobre
os saberes do professor mas para tomá-los como ponto de partida da discussão”(p.7).
As dúvidas dos docentes são representadas por imagens em que professoras discutem
determinadas questões que são retomadas pelo texto didático. Na seção O que não é
letramento, por exemplo, encontramos quatro imagens de uma professora em interação com
outros sujeitos e objetos que traz para o texto a voz do professor, como um sujeito que tem
dúvida e está confuso no processo de apropriação dos conceitos. Na primeira imagem, duas
professoras olham assustadas para uma produção infantil, enquanto uma delas fala com um
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
13
tom de indignação e espanto: “como vai poder ler e escrever se não foi totalmente letrado”.
A estratégia didática utilizada pela autora é a da negação do conceito: “letramento não é
método”, “letramento não é alfabetização”, “letramento não é uma habilidade”. Suas
explicações são seguidas de exemplos e discussões, mas assume uma perspectiva diferente
dos dois cadernos anteriores em relação ao próprio conceito de alfabetização. Em primeiro
lugar, porque assume mais claramente que o conceito de alfabetização é “complexo e tem
muitos significados”. Em segundo lugar, porque compreende a alfabetização como uma
prática de letramento, uma prática que se realiza em eventos de letramento específicos na
escola ou fora dela (especialmente na esfera doméstica). As atividades apontam assim para
que o professor reflita sobre o conceito de “prática”:
Uma prática consiste em atividades com um objetivo em
determinada situação. Como a realização da atividade pode
precisar de tecnologias (lápis e papel, as diferentes mídias),
habilidades especiais e saberes, estes também fazem parte da
prática. Algumas atividades (e os saberes que as sustentam) que
tradicionalmente fazem parte da prática de alfabetização das
crianças na escola são: leitura em voz alta (que exige a capacidade
de decodificação); ditado (que envolve conhecimento ortográfico);
rimar palavras (que envolve a consciência fonológica); rodinha de
leitura (que envolve a capacidade de organização textual). Você
poderia mencionar outras práticas de leitura escolar?
(Kleiman, 2005, p. 13).
A atividade parece-nos que procura mobilizar os conceitos de alfabetização e letramento
atrelados ao conceito de prática social, por isso a questão mais do que solicitar uma questão
procura explicar para o professor o que é uma prática e seus elementos: tecnologias,
habilidades etc. Neste momento, observa-se uma tentativa de não criticar didática e
pedagogicamente os saberes dos professores, mas fazer com que compreendam que as
práticas escolares de ensino da leitura e da escrita são práticas sociais. Observa-se assim
uma perspectiva inicial mais descritiva do que prescritiva ou avaliativa.
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
14
Ao explicitar o conceito de letramento para os professores, a autora recorre também a uma
interpretação histórica do conceito no cenário brasileiro, vendo o conceito de letramento
mais atrelado a um objeto de pesquisa: as práticas sociais.
Na metade da década de 80, no Brasil, vários pesquisadores que
trabalhavam com as práticas de uso da língua escrita em diversas
esferas da atividade sentiram falta de um conceito que se
referisse a esses aspectos sócio-históricos dos usos da escrita,
sem as conotações sobre o ensino e escola associadas à palavra
“alfabetização”. Emergiu, então, na literatura especializada, o
termo letramento para se referir a um conjunto de práticas de uso
da escrita que vinham modificando profundamente a sociedade,
mas amplo do que as práticas escolares de uso da escrita,
incluindo-as, porém. É importante salientar que, ao fazer ciência é
crucial nos referirmos aos conceitos científicos inequivocamente.
O novo assunto ou “objeto de pesquisa” – as práticas sociais de
uso da escrita (o letramento) – refletia as transformações nas
práticas letradas tanto dentro como fora da escola, lembrando que
aí estão incluídas as tecnologias de escrita. (Kleiman, 2005, pp. 21-
22, destaque nosso).
6. Algumas considerações finais
A análise do material para formação de professores mostra que a polêmica e as diferentes
concepções do conceito de letramento (ora tratado como competência de leitura e escrita
ora como um conjunto de práticas sociais) são praticamente minimizadas no discurso de
formação. Desta forma, o professor parece ser novamente colocado à margem das
discussões acadêmicas que priorizam as diversas concepções de letramento, incluindo
autores estrangeiros e sua apropriação pelos autores brasileiros. No entanto, esses
professores estão recebendo informações de diversas fontes e precisa compreender as
diferentes perspectivas de compreender o conceito no Brasil.
Outra questão que nos pareceu central é o espaço dedicado aos conceitos de “alfabetização”
e “letramento”. Em algumas obras – como Soares e Batista (2005) – o enfoque é para as
questões do processo de alfabetização, deixando o conceito de letramento em segundo
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
15
plano tanto do ponto de vista das explicações, discussões e atividades, quanto do ponto de
vista conceitual. Além disso, as atividades e recursos didáticos são bem mais presentes e
aprofundados na explicação do conceito de alfabetização do que do conceito de
“letramento”. Em Kleiman (2005), ocorre o inverso: letramento é o termo central que
abarca o conceito de alfabetização, mas não há uma discussão específica sobre o processo
de alfabetização do ponto de vista da aquisição do sistema de escrita alfabético. As
indicações bibliográficas e atividades didáticas propostas – especialmente por Soares e
Batista (2005) e Alburquerque (2005) – apontam também para um pouco espaço para a
discussão e apropriação do conceito, o que nos faz refletir sobre os modos com que os
professores estarão se apropriando desses conceitos nos cursos de formação.
Referências bibliográficas
ALBUQUERQUE, E. Conceituando alfabetização e letramento. In: Carmi Santos e
Mendonça (Org.) Alfabetização e letramento: conceitos e relações. Belo Horizonte:
Autêntica, 2005.
ANDRADE, L. Professores-leitores e sua formação. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
BUNZEN, C. Dinâmicas discursivas na aula de português: os usos do livro didático e
projetos didáticos autorais. Tese de Doutorado. Unicamp, 2009.
CARVALHO, M. Uma biblioteca pedagógica francesa para a Escola Normal de São Paulo
(1882): livros de formação profissional e circulação de modelos culturais. In:
BENCOSTTA, M. (Org.) Culturas escolares, saberes e práticas educativas: itinerários
históricos. São Paulo: Cortez, 2007.
DORNELLES, C. A gente não quer ser tradicional, mas...Conservadorismo e inovação na
formação de professores de português como língua materna. In: SIGNORINI, I. (Org.)
Significados da inovação no ensino de Língua Portuguesa e na formação de professores.
Campinas, SP: Mercado de Letras, 2007.
FRADE, I. Revistas pedagógicas: qual é a identidade do impresso? In: BATISTA, A. A. e
GALVÃO, A. (Orgs.) Leitura: práticas, impressos, letramentos. Belo Horizonte:
Autêntica, 2002.
MATENCIO, M. Gêneros do discurso e apropriação de saberes: (re)conhecer as práticas
linguageiras em sala de aula. Linguagem em Discurso, v.8, n.3, 2008.
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
16
KLEIMAN, A. É preciso ensinar o letramento? Não basta ensinar a ler e a escrever?
Campinas, SP: CEFIEL, 2005.
KLEIMAN, A; MARTINS, M. Formação de professores: a contribuição das instâncias
administrativas na conservação e na transformação de práticas docentes. In: KLEIMAN, A
e CAVALCANTI, M. (Orgs.) Linguistica Aplicada: suas faces e interfaces. Campinas,
Mercado de Letras, 2007.
ROJO, R. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola, 2009.
SIGNORINI, I. Letramento e inovação no ensino e na formação do professor de língua
portuguesa. In: SIGNORINI, I (Org.) Significados da inovação no ensino de Língua
Portuguesa e na formação de professores. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2007.
SOARES, M. BATISTA, A. Alfabetização e Letramento: caderno do formador. Belo
Horizonte: Ceale/Fae/UFMG, 2005.
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
17
DESAFIOS DO LETRAMENTO NA ALFABETIZAÇÃO
Cláudia Lemos Vóvio e Daniel Revah
Universidade Federal de São Paulo
RESUMO
Esta comunicação apresenta e discute uma experiência do curso de Pedagogia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp. Trata-se de uma iniciativa cujo objetivo é o de estabelecer aproximações entre a universidade e a escola pública e construir diálogos que articulem teoria e prática na formação inicial e no exercício profissional da docência. Nessa experiência, com início em 2008 e ainda em curso, já participaram docentes e graduandos da Unifesp, bem como alunos, professores e equipes gestoras da escola. O trabalho foi realizado em duas etapas. A primeira etapa, em análise nesse trabalho, compreendeu ações desenvolvidas em parceria no âmbito da unidade curricular Práticas Pedagógicas Programadas do curso de Pedagogia, durante o segundo semestre de 2008. E a segunda, em 2009, teve início com a implementação das atividades de Programa de Residência Pedagógica desse mesmo curso. Essa aproximação e parceria envolveu, portanto, a formação inicial dos graduandos do curso de Pedagogia, a formação contínua do corpo docente e equipe gestora da escola a partir das problemáticas indicadas por esse conjunto de profissionais e, de modo amplo, a melhoria da qualidade da educação pública. Algumas questões discutidas são as possibilidades de trabalho coletivo na escola, as formas de (re)organização dos espaços e tempos de aprendizagem, e ainda, as formas possíveis de encarar a necessidade de uma “formação continuada” dos professores em serviço. Além disso, abordam-se as mudanças visíveis nas representações do conjunto de professores envolvidos sobre as possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, bem como dos próprios docentes da Unifesp frente aos atuais desafios de melhoria da educação pública. Palavras-chave: Formação de professores; alfabetização; letramento; ensino e pesquisa
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
18
Introdução
Esta comunicação apresenta alguns resultados da parceria estabelecida entre o curso de
Pedagogia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e a Escola Municipal Vicente
Ferreira Silveira (doravante Escola Municipal), no município de Guarulhos, no estado de
São Paulo. Trata-se de uma iniciativa cujo objetivo é o de estabelecer aproximações entre a
universidade e a escola pública e construir diálogos que articulem teoria e prática na
formação inicial e no exercício profissional da docência. Nessa experiência, com início em
2008 e ainda em curso, já participaram docentes e graduandos da Unifesp, bem como
alunos, professores e equipes gestoras da escola. O trabalho foi realizado em duas etapas. A
primeira compreendeu ações desenvolvidas em parceria no âmbito da unidade curricular
Práticas Pedagógicas Programadas do curso de Pedagogia, durante o segundo semestre de
2008. E a segunda, em 2009, teve início com a implementação das atividades de Programa
de Residência Pedagógica desse mesmo curso. Essa aproximação e parceria envolvem,
portanto, a formação inicial dos graduandos do curso de Pedagogia, a formação contínua do
corpo docente e equipe gestora da escola a partir das problemáticas indicadas por esse
conjunto de profissionais e, de modo amplo, a melhoria da qualidade da educação pública.
O presente texto sistematiza o processo e os principais resultados da primeira etapa e está
assim organizado: inicialmente, é apresentado o contexto no qual transcorreram as
atividades e se estabeleceu a parceria entre Unifesp e Escola Municipal; a seguir, é descrita
e discutida dessa etapa do trabalho realizado.
1. O contexto: a formação de professores e a escola pública
O novo campus de Ciências Humanas da Unifesp começou a funcionar no município de
Guarulhos em 2007, com quatro cursos (Ciências Sociais, Filosofia, História e Pedagogia) e
cerca de 40 docentes. O curso de Pedagogia iniciou suas atividades nesse mesmo ano, com
uma proposta curricular definida pelos primeiros docentes concursados, substituindo outra
provisória. O fato de se tratar de um curso novo possibilitou implementar um currículo que
contemplou, de um lado, as discussões acumuladas no debate acadêmico em relação à
formação inicial de professores e, de outro, as novas exigências feitas aos cursos de
Pedagogia na legislação específica. Ganhou relevância um tipo de formação que tomou
como base a docência, a pesquisa e a reflexão sobre a prática pedagógica, bem como a
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
19
relação entre teoria e prática, tendo em vista, sobretudo, os variados âmbitos institucionais
onde a educação se efetiva. Deu-se particular importância à formação do pedagogo tendo
como escopo a escola pública, com a sua complexa rede de relações, envolvendo o local
onde se situa, a população que atende, a sua posição no sistema de ensino. A dimensão
prática e reflexiva dessa formação foi concretizada no curso de Pedagogia pelos novos
docentes de vários modos, especialmente por meio de duas unidades curriculares de caráter
prático: Práticas Pedagógicas Programadas e o Programa de Residência Pedagógica.
A unidade curricular Práticas Pedagógicas Programadas, que já constava na proposta
provisória, foi redefinida como um espaço de aprendizagem interdisciplinar construído na
perspectiva da articulação entre os estudos teóricos das diferentes disciplinas e as práticas
educacionais desenvolvidas em ambientes diferentes da escola ou, respeitando alguns
limites, na escola pública, pois os graduandos ainda não deveriam participar de atividades
em sala de aula. Essa unidade curricular é obrigatória somente nos quatro primeiros
semestres do curso, envolve até 60 horas e supõe um trabalho de preceptoria por parte dos
docentes do curso de Pedagogia, com grupos de no máximo 10 estudantes. Em cada
semestre, os estudantes escolhem a linha temática que desejam desenvolver a partir de um
leque de possibilidades oferecidas pelos docentes1. Cada linha supõe o estudo de
determinados temas e o desenvolvimento de habilidades e instrumentos necessários à
pesquisa e às ações que serão implementadas2.
O Programa de Residência Pedagógica3 substitui o clássico estágio dos cursos de
Pedagogia, ocorrendo nas escolas públicas localizadas no município de Guarulhos. Nessa
unidade curricular, os estudantes de Pedagogia permanecem, a cada semestre, por até 80
horas consecutivas nas dependências de uma escola pública, acompanhando o trabalho de
um professor, inclusive na hora-atividade, e o da equipe de gestão. Divididos em grupos
pequenos, os residentes são acompanhados e orientados durante todo o período da
1 Por exemplo: “Memória e história das escolas de Guarulhos”, “Qualidade da escola pública na perspectiva da população atendida”, “Ações de Educação inclusiva: a constituição dos sujeitos nas práticas sociais”, “Observatório Virtual da Educação em Guarulhos”, “Rede de ações educativas não escolares no bairro dos Pimentas” 2 Os estudantes, por exemplo, elaboram questionários para a realização de entrevistas, diários de campo, usam dados estatísticos, produzem relatórios de pesquisa, folders, portfólios, visitam escolas públicas, centros de juventude, presídios, hospitais e outros ambientes onde são desenvolvidas ações de caráter educativo ou que se relacionam de algum modo com elas, como é o caso das diretorias de ensino ou locais onde podem ser coletadas informações sobre o sistema de ensino. 3UNIFESP. Manual do Programa de Residência Pedagógica. Guarulhos : Unifesp, 2009. (2ª Versão).
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
20
residência na escola-campo e também, antes disso, para planejar a entrada nesse ambiente,
e, posteriormente, para produzir relatórios, sistematizando essa experiência.
O trabalho desenvolvido pela Unifesp junto à Escola Municipal teve início, em 2008, no
âmbito da unidade curricular Práticas Pedagógicas Programadas, na linha “Práticas
escolares no ensino inicial da escrita”, sob a coordenação da Profa. Dra. Claudia Lemos
Vóvio, Prof. Dr. Daniel Revah e Prof. Dr. Thomas Massao Fairchild, e sua continuidade,
em 2009, tem se dado no âmbito do Programa de Residência Pedagógica no Ensino
Fundamental. Na primeira etapa foi articulada, à formação continuada dos docentes do
período matutino e intermediário da escola, a formação inicial de 15 graduandos, limitando
a participação destes à observação de reuniões de estudo e trabalho com os docentes da
escola, semanalmente. Nessas reuniões, foram planejadas as ações que seriam
desenvolvidas com as crianças da escola na área do ensino da língua escrita. Já a segunda
etapa abarcou a formação continuada do conjunto de professores da escola e a formação
inicial teórico-prática de 30 residentes. Professores, equipe gestora e residentes
participaram de reuniões, com periodicidade semanal, sob a coordenação de dois docentes
da Unifesp4, durante o horário diário de trabalho coletivo (Hora-Atividade), com o objetivo
de definir o conjunto de aprendizagens necessárias para a alfabetização. Nessas reuniões
foram discutidas as práticas pedagógicas desenvolvidas junto ao denominado ciclo de
alfabetização (três primeiros anos do ensino fundamental), sistematizando-se coletivamente
a progressão de aprendizagens adequadas a esse ciclo. Além disso, no período, os
residentes foram acompanhados na escola por docentes do curso de Pedagogia5,
participando do cotidiano das salas de aula e planejando e executando um conjunto de
atividades pedagógicas em colaboração com o professor-formador.6
2. O estabelecimento de uma parceria entre Escola e Universidade
Em junho de 2008, a diretora da Escola Municipal procurou o curso de Pedagogia da
Unifesp para consultar sobre a possibilidade de realizar uma palestra sobre o tema que mais
4 Profa. Dra. Cláudia Lemos Vóvio (responsável pelas unidades curriculares Alfabetização e Letramento, Fundamentos Teóricos e Práticos de Língua Portuguesa, Residência Pedagógica em Ensino Fundamental, Residência Pedagógica em Educação de Jovens e Adultos e Práticas Pedagógicas Programadas) e Prof. Dr. Daniel Revah (responsável pelas unidades curriculares de Filosofia da Educação, Residência Pedagógica em Ensino Fundamental e Práticas Pedagógicas Programadas). 5 São preceptores do Programa de Residência Pedagógica no Ensino Fundamental o Prof. Dr. Antonio Carlos Pinheiro, a Profa. Dra. Claudia Lemos Vóvio, o Prof. Dr. Daniel Revah, a Prof. Dr. Wagner Valente e a Profa. Dra. Vanessa Moretti.
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
21
preocupava o conjunto da escola: a alfabetização. A problemática que se observava e para a
qual se buscavam soluções dizia respeito ao número de crianças que chegava ao fim desta
etapa da escolarização sem o domínio do sistema de escrita, com pouca autonomia para ler
com compreensão e para produzir textos segundo intenções comunicativas.
Dado o contexto atual de redefinição desta etapa da escolarização básica, tal problemática
não difere daquela observada em muitas outras escolas públicas brasileiras e refletida nos
resultados de avaliações do sistema de ensino, que focalizam a leitura e a compreensão de
textos e o domínio do sistema de escrita por alunos do ensino fundamental. Há mais de 25
anos o campo educacional, especificamente o processo de alfabetização, passa por um
processo de mudanças substantivas, tanto nas políticas públicas e sua implementação como
na organização de currículos e orientações para as práticas pedagógicas, que abrangem
desde questões relativas aos objetos de ensino privilegiados e às orientações de como
ensiná-los, até aspectos relacionados à organização do trabalho docente. Normatizações do
processo de ensino-aprendizagem7 e mudanças na organização da educação básica
emolduram esse contexto, o que, nas vozes de muitos professores, resulta numa situação de
incerteza que os desestabiliza frente ao novo que se coloca (Kleiman, 2001). Portanto, a
demanda feita ao corpo docente do curso de Pedagogia tem como pano de fundo esse
contexto de incertezas e a necessidade de “reinvenção” do processo de alfabetização que o
caracteriza (Soares, 2005; Mortatti, 2006).
Como resposta à demanda inicial, o docente8 destacado para atendê-la fez uma
contraproposta: ouvir as questões postas no cotidiano desses professores para, a partir
delas, delinear o trabalho a ser desenvolvido na escola. Esse processo teve início com uma
reunião, em maio de 2008, e um levantamento das demandas e expectativas do conjunto de
professores (na verdade, professoras) e equipe gestora. A partir desse levantamento, foi
criada a linha temática “Práticas escolares no ensino inicial da escrita”, na disciplina
Práticas Pedagógicas Programadas, possibilitando assim a matrícula de graduandos
interessados nessa temática e no acompanhamento do trabalho que seria desenvolvido na
Escola Municipal. Em colaboração com as professoras do turno matutino e intermediário,
6 Chama-se de professor-formador ao docente da escola que recebe o residente. 7 Por exemplo: Parâmetros Curriculares Nacionais, as Matrizes de competências que orientam a elaboração de itens da Prova Brasil, Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) que avalia e distribui os livros didáticos para as escolas públicas.
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
22
foram propostos colaborativamente experimentos pedagógicos que viessem ao encontro das
questões e das necessidades formativas indicadas pelo conjunto da escola. Por parte dos
docentes da Pedagogia foi planejada uma ação formativa que contraria aquelas que se
pretendem prescritivas ou aquelas que colocam as práticas pedagógicas sob escrutínio de
pesquisadores, ou, ainda, aquelas que simplesmente avaliam a ação docente que ocorre na
escola (Ghanen e Vóvio, 2003). O intuito foi o de contribuir para a reflexão sobre as
questões cotidianas que "afligiam" essas professoras e para a busca de soluções coletivas,
apoiadas em saberes pedagógicos e aqueles advindos da experiência de todos os
participantes, incluindo a dos próprios docentes da Unifesp9.
A demanda inicial foi transformada coletivamente em uma ação de longo prazo. Os
encontros de formação tiveram lugar na escola, semanalmente, e ocorreram na Hora-
Atividade, durante o segundo semestre de 2008. Alguns encontros aglutinaram o conjunto
de docentes de cada período e, em outros, as professoras foram reagrupadas em função dos
experimentos conduzidos. Desses encontros participaram 15 graduandos.
3. A aproximação à escola e aos professores
Nos primeiros encontros, com a intenção de descobrir as questões que inquietavam as
professoras da escola, foram realizadas algumas reuniões, nas quais os docentes da Unifesp
apresentaram suas intenções, discutindo de que modo a Universidade faria parte do
cotidiano daquela escola e solicitando informações sobre o modo como cada uma
organizava sua rotina (o tempo dedicado a cada área e objeto de ensino, a distribuição das
áreas na semana e os tipos de atividade desenvolvidos). Percebeu-se logo que essa não seria
a forma pela qual seria apreendido o modo como os objetos de ensino relacionados à leitura
e à escrita estavam sendo abordados, pois poucas informações foram obtidas.
No entanto, várias professoras trouxeram nessas primeiras reuniões uma questão central: o
que fazer com as turmas heterogêneas? O termo “heterogêneo”, naquele contexto,
qualificava a variação observada quanto à autonomia dos alunos para ler e escrever e para
participar das atividades planejadas. Não se referia, portanto, à diversidade social, de
gênero, de renda, etária, também presentes nas turmas. Explorando coletivamente essa
questão, pode-se compreender a que problemática ela se relacionava. Já que a formação de
8 Professor Daniel Revah. 9 Dois deles atuaram na alfabetização, na formação inicial e contínua de professores de redes públicas e privadas e na elaboração de subsídios pedagógicos.
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
23
turmas homogêneas tão almejadas no campo educacional não passa de uma situação
idealizada e dificilmente alcançada, uma nova pergunta foi elaborada por esse coletivo de
formação: "o que fazer com as crianças não alfabetizadas ou que, naquele momento do ano
letivo, ainda não estavam alfabetizadas?” Questão premente, sobretudo para as professoras
dos anos finais, cuja preocupação básica referia-se à compreensão do sistema alfabético por
parte dessas crianças, mas também ao desenvolvimento simultâneo de atividades
desafiadoras para as que já liam e escreviam com autonomia. Lidar com essa
heterogeneidade, que basicamente concernia a dois grupos de alunos, constituía o principal
problema a ser enfrentado.
Segundo o conjunto das professoras, esse era um problema para o qual não se contava com
condições de trabalho adequadas e, principalmente, não se sabia como solucionar. Esse
problema tornava-se mais explícito no cotidiano da escola à medida que todas as
professoras, independente da série em que se encontravam, a cada três meses, aplicavam
atividades de “sondagem10”, nas quais verificavam as hipóteses de escrita11 que as crianças
revelavam, por meio de um ditado de cinco palavras (selecionadas em função de um campo
semântico e da variação do número de sílabas) e de uma frase.
Observando os registros dessas sondagens duas constatações instigaram a todos: (i) a de
que as crianças que não dominavam o sistema de escrita alfabético, na maior parte dos
casos, eram classificadas em hipóteses que não correspondiam às escritas esboçadas por
elas nesses “testes”, prevalecendo a tendência de “subestimar” o que as crianças
demonstravam saber em suas produções, e (ii) a não utilização das informações registradas,
para estabelecer planos de ação e metas para a escola e para cada turma.
Nesse processo de aproximação, tomando por base esses registros, foram organizadas
informações sobre a condição de alfabetização de todos os alunos, por ano e turno. Esse
quadro objetivava tornar visíveis, de um lado, o número total de crianças alfabetizadas e
não alfabetizadas na escola e, de outro, o número de crianças não alfabetizadas em anos
finais do ensino fundamental, nas quais tal realidade não correspondia às expectativas
pedagógicas colocadas. Esse retrato objetivo do problema permitiu observar que cerca de
um terço das crianças que cursavam os anos finais ainda não sabiam ler e escrever
10 Seguindo orientações didáticas advindas da Secretária Municipal de Guarulhos e prescrições de cursos de formação continuada tais como Letra e Vida e Pró-Letramento, oferecidos à rede municipal. 11 A esse respeito, consultar Ferreiro, 2001.
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
24
convencionalmente, o que, segundo as professoras, as impedia de participar das atividades
planejadas. E, ainda, constatou-se que para um número expressivo de crianças não se
abordavam aprendizagens voltadas ao desenvolvimento de capacidades necessárias para
torná-las alfabetizadas, por meio de metodologias e atividades específicas. Outros aspectos
também se colocavam no horizonte desse grupo. Algumas professoras expressavam o
desejo de reagrupar as crianças não alfabetizadas, delegando a outros a tarefa de alfabetizá-
las. E algumas colocavam sob suspeita quaisquer possibilidades de mudanças na rotina, na
elaboração de atividades ou de ordem metodológica devido ao momento em que se
encontravam no período letivo, meados do segundo semestre, e as condições de trabalho.
Com esses dados, levando-se em conta as restrições de tempo, de infra-estrutura e outras
condições materiais, os docentes da Unifesp formularam uma proposta diretamente voltada
para as crianças dos anos finais e da qual todas as professoras poderiam tomar parte. O
experimento consistia na reorganização dos alunos dos quarto e quinto anos a fim de
realizar dois tipos de oficinas: uma de jogos de alfabetização12, voltados à apropriação do
sistema de escrita alfabético; a outra de "contação de histórias", voltada à ampliação do
repertório de leituras literárias pelas crianças e à proficiência leitora. A nova dinâmica
implicaria reagrupar as crianças duas vezes por semana, enturmando alunos de anos
diferentes, e redistribuir as professoras, que passariam a trabalhar com os novos grupos,
demandando uma etapa de planejamento e a garantia de condições materiais necessárias.
4. O experimento: novos grupos e atividades para aprender a ler e a escrever
Os critérios estabelecidos para organizar os novos agrupamentos era o indicado pelas
professoras: as crianças não alfabetizadas frequentariam as oficinas de jogos de
alfabetização e as crianças alfabetizadas frequentariam as oficinas de contação de histórias.
Em cada turno, uma professora e a coordenadora pedagógica ou a coordenadora de ciclo
ficaram responsáveis pela oficina de jogos de alfabetização e duas professoras ficaram
responsáveis pelas oficinas de “contação de história”. A periodicidade das oficinas foi
definida coletivamente, levando-se em conta as atividades e projetos nos quais a escola
estava envolvida, os espaços disponíveis e os tempos pedagógicos e de alimentação. Todos
os problemas operacionais foram solucionados coletivamente, com apoio da equipe gestora.
12 Baseadas nas proposições de Leal, Albuquerque e Leite, 2005; e Batista et. al. 2005
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
25
Durante oito semanas, duas vezes por semana, as crianças deixavam sua sala de aula e
dirigiam-se a outras, reorganizadas em seu espaço, mobiliários e materiais. Todos estavam
desafiados diante dos novos agrupamentos, novas professoras e novas atividades, o que,
segundo as professoras, diferia muito do cotidiano experimentado até então. À medida que
todos se preparavam para experimentar a alternativa pedagógica das oficinas, produzia-se
uma nova compreensão sobre o processo de alfabetização, os objetos de ensino a serem
focalizados e como são ensinados, bem como sobre a aprendizagem da leitura. Além disso,
planejar e estabelecer uma rotina a fim de receber as crianças e mobilizarem-nas para as
atividades previstas emergiam como necessidades intrínsecas a essa nova organização.
A oficina de jogos de alfabetização possuía um caráter lúdico, sendo todas as atividades
realizadas sem o mobiliário da sala e quaisquer materiais escolares convencionais. Os jogos
foram selecionados a fim de promover a reflexão sobre os princípios reguladores do
sistema de escrita alfabético e cada oficina seguia uma dinâmica que conjugava atividades
coletivas e em pequenos grupos e a intervenção constante de duas docentes nas propostas.
Uma roda de conversa dava início às atividades, com a descrição do que seria feito naquele
encontro. A seguir, um desafio coletivo era proposto, envolvendo várias capacidades13
relacionadas à alfabetização. De volta à roda, as professoras apresentavam os jogos que
envolviam o reconhecimento de nomes, letras, fonemas e sílabas, atividades de análise de
fonológica, de formação e decomposição de palavras, identificação de palavras, entre
outros, e organizavam a turma em pequenos grupos. Também, em vários momentos, eram
compartilhadas as estratégias usadas pelas crianças para ganhar um jogo ou para solucionar
situações-problema. Ao final, coletivamente, todos comentavam sobre suas aprendizagens.
A oficina de “contação de história”, por sua vez, trazia como desafio às crianças do quarto e
quinto anos: a leitura em voz alta ou a apresentação de histórias retiradas de livros de
literatura infantil para os alunos do Estágio II (com cinco anos) e do Ano Inicial (primeiro
ano do ensino fundamental). O acervo foi previamente selecionado pelo conjunto de
professoras e docentes da Unifesp. Na primeira oficina, foram explicados os objetivos e o
modo como transcorreria esse trabalho. Nas cinco turmas, formaram-se trios, cada um deles
deveria selecionar um livro considerado interessante para as crianças pequenas da escola.
Seguiu-se uma sequência de atividades distribuídas pelas oito semanas, na qual todos se
13 Sobre as capacidades envolvidas na alfabetização consultar Batista et. al., 2005.
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
26
apropriaram das histórias, planejaram a apresentação, produziram fantasias, cenários e
adereços, ensaiaram a contação, produziram coletivamente um convite dirigido às crianças
pequenas. Todo o processo gerou grande expectativa para esses agrupamentos, bem como
ampliou o repertório de práticas de leitura, mobilizou-os no sentido de melhorarem seu
desempenho na leitura em voz alta.
5. Os encontros de formação
Com a proposição das oficinas, os encontros de formação transformaram-se em espaço de
planejamento14, de discussão sobre a nova rotina instalada, de reflexão sobre as práticas
empreendidas, de pesquisa e estudo15, de estabelecimento de mudanças em planos de
trabalho em função de imprevistos, de trocas de experiência e de busca de soluções
coletivas para problemas enfrentados no cotidiano das oficinas. Planejar as oficinas,
registrar seu andamento e apresentar os resultados obtidos ao longo do desenvolvimento
deste projeto tornaram-se uma necessidade e não uma prescrição diante do fazer docente.
A dinâmica estabelecida reagrupou as professoras. As professoras dos anos iniciais e as
responsáveis pelas oficinas de jogos trabalharam juntas nos encontros com uma docente da
Unifesp, enquanto as professoras dos anos finais do ensino fundamental responsáveis pela
oficina de contação de histórias passaram a trabalhar com os outros dois docentes da
Unifesp. Alguns encontros foram dedicados a reuniões coletivas, nas quais todas as
professoras de um mesmo turno compartilharam o processo em curso.
6. Avaliação da parceria: diante do inesperado
As práticas pedagógicas relacionadas à apropriação do sistema de escrita e à aprendizagem
da leitura foram alteradas em função de experimentos apoiados em conhecimentos teóricos
e em alternativas criadas para problemas locais (daquela escola e de grupos específicos de
alunos) identificados e interpretados pelas professoras. Nesse processo, a alfabetização foi
abordada de maneira indissociável da ampliação do repertório de práticas de letramento dos
alunos, de modo a considerar as várias dimensões envolvidas nos usos sociais da escrita e
sem perder de vista o seu sentido para as crianças. Não se tratou de um processo de
formação produzido para os docentes ou que visava verificar/avaliar o fazer pedagógico,
14 Foram oferecidos modelos de planos de ensino para ambas as oficinas, elaborados pelos docentes da Unifesp e adaptados e implementados por elas de acordo com as expectativas e realidades locais.
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
27
mas de um processo formativo construído com a escola e a universidade. Durante a
preparação, concretização e avaliação desses experimentos, todos, professoras da Escola
Municipal e do curso de Pedagogia, da Unifesp, foram desafiados ao diálogo e à reflexão
contínua sobre o próprio fazer, incentivados à proposição criativa a fim de adaptar
propostas ou alterá-las em função do inesperado ou do contexto dos novos agrupamentos.
“Eu não esperava” foi um enunciado comum a muitas professoras durante as reuniões de
desenvolvimento do projeto e também da avaliação final. Ela denota uma significativa
mudança de lentes como que se observavam o processo de aprendizagem. Não se esperava
tamanho envolvimento das crianças nas atividades propostas, nem tampouco os avanços de
alguns alunos que se tornaram particularmente visíveis. Por vezes, surgiram novos
posicionamentos sobre alunos, daqueles que quase nada se esperava, mas que emergiam na
nova dinâmica instalada, fazendo com todos repensassem suas visões sobre o processo de
aprendizagem em curso. Novos discursos sobre o fazer pedagógico e sobre as crianças,
novos olhares para a ação educativa e novas formas de se perceberem e de perceber uns aos
outros foram produzidas.
Nesse processo modificaram-se também posturas das professoras e suas representações
sobre as possibilidades de aprendizagem das crianças. Tais mudanças foram produzidas à
medida que vivenciavam novas formas de ensinar, de organizar rotinas e os espaços da sala
de aula e da escola, que vislumbravam novos objetos de ensino e que obtinham respostas
positivas das crianças a esses investimentos, tidas como “inesperadas”, para a maior parte
delas. As professoras tornaram-se agentes capazes de organizar de maneira intencional e
criativa o processo de aprendizagem, responsáveis pelo desenvolvimento de um projeto que
envolveu toda a escola (Kleiman, 2006).
Para os docentes da Unifesp esse enunciado, “não esperava”, também adquiriu uma
dimensão nova, especialmente na sistematização desse processo. Tanto seu
desenvolvimento como os resultados foram além das expectativas postas, ainda mais
considerando que a demanda da escola poderia ter se esgotado num evento pontual. Nas
representações dos docentes também incidem os discursos que pouco valorizam as
possibilidades e o próprio trabalho docente na escola pública, principalmente em condições
15 Além de variado conjunto de livros de literatura infanto-juvenil, as professoras entraram em contato com jogos de regras variados, estudaram sobre o objeto de ensino em questão, o sistema de escrita alfabético (Faraco, 2000) e sobre a alternativa de jogos (Leal, Albuquerque e Leite, 2005)
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
28
adversas como as do caso em tela (a ação teve início nos meses finais do período letivo,
outubro a dezembro, embora formalmente apoiados por toda a equipe docente, ficou em
evidencia o envolvimento parcial por parte de algumas professoras, por exemplo). No
entanto, houve mudanças ao longo de todo percurso. Nesse sentido, coube à direção da
escola um papel importante, ao apoiar essas iniciativas, abrir espaços para discussão,
afastando-se quando necessário e insistindo em desenvolver o projeto, mesmo quando
surgiam falas colocando sob suspeita os possíveis ganhos dessa ação. A direção, as
professoras, os docentes apostaram no desenvolvimento do projeto em condições e tempo
pouco favoráveis.
O trabalho ocorreu como descrito porque não resultou de uma imposição da equipe gestora
nem de assessores externos. Não foi um processo isento de tensões, mas elas foram
trabalhadas e permitiram avançar na efetivação da proposta. O mais importante, porém,
deve ser situado nas próprias crianças e na posição das professoras diante delas. Mesmo as
que tinham dúvidas ou suspeitavam das possibilidades abertas pelo experimento, foram
desafiadas a colocarem em jogo suas visões e representações. Também os docentes da
Unifesp acreditaram no potencial das professoras e nas possibilidades de um trabalho
conjunto, do qual inclusive participaram, acompanhando oficinas. Acreditar nesse potencial
(das crianças, das professoras e do trabalho conjunto), avivado com propostas desafiadoras
para todos (alunos, docentes da escola e da Unifesp, equipe gestora), foi talvez o resultado
mais importante desse trabalho. Ou pelo menos, é o que a expressão “eu não esperava”
deixou em evidencia.
Em relação aos estudantes da Pedagogia, além da oportunidade de entrar em contato com
outras possibilidades de atuação do pedagogo na escola, aproximaram-se das dificuldades
próprias do contexto escolar, participando como observadores do planejamento de ações
pedagógicas na área do ensino da língua.
Referências Bibliográficas
BATISTA, A. A. G. (Org.) Capacidades da alfabetização. Belo Horizonte :
Ceale/FaE/UFMG, 2005.
FARACO, C. A. Escrita e alfabetização. São Paulo : Contexto, 2000.
FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo : Cortez, 1985.
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
29
KLEIMAN, A. Letramento e formação do professor: quais as práticas e exigências no local
de trabalho? In:______. A formação do professor: perspectivas da Lingüística Aplicada.
Campinas : Mercado de Letras, 2001.
________. Processos identitários na formação profissional: o professor como agente de
letramento. In: CORRÊA, M. E BOCH, F. (Orgs.). Ensino de Língua: Letramento e
Representações. Campinas : Mercado de Letras, 2006.
LEAL, T. F.; ALBUQUERQUE, E. B. C. de, LEITE, T. M. R. Jogos: alternativas didáticas
para brincar alfabetizando (ou alfabetizar brincando?) In: MORAIS, A. G.;
ALBUQUERQUE, E. B. C de; LEAL, T. F. (Orgs.) Alfabetização: apropriação do sistema
de escrita alfabético. Belo Horizonte : Autêntica, 2005, p. 111-123.
MORTATTI, M. R. L. História dos métodos de alfabetização no Brasil. Conferência
proferida durante o Seminário "Alfabetização e letramento em debate", promovido pelo
Departamento de Políticas de Educação Infantil e Ensino Fundamental da Secretaria de
Educação Básica do ,Ministério da Educação, realizado em Brasília, em 27/04/2006.
SOARES, M. B. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de
Educação. no. 24. Jan/Fev/Mar/Abr/, 2004.
UNIFESP. Manual do Programa de Residência Pedagógica. Guarulhos : Unifesp, 2009.
(2ª Versão)
VÓVIO, C. L. ; GHANEM, E. . La Formación de Educadores en Educación Básica.
Decisio (CREFAL), v. 5, p. 40-43, 2003.
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
30
FORMAÇÃO PARA A DOCÊNCIA E A PESQUISA
EM CONTEXTOS DE HETEROGENEIDADE E PRESCRIÇÃO
Émerson de Pietri
(FE/USP)
RESUMO Tematizam-se, neste trabalho, as relações entre o professor em formação inicial e os saberes e práticas que encontra em salas de aula de alfabetização onde realiza seu estágio supervisionado. O objetivo é o de observar os modos como o professor em formação inicial elabora suas experiências no momento de textualizá-las, ao produzir seu relatório de estágio, buscando conferir coerência ao que vivencia em contexto caracterizado pela heterogeneidade e por mecanismos de controle dos sentidos. No contexto em que atuam, os professores em formação inicial desenvolvem atividades de ensino e de pesquisa, o que os posiciona num lugar diferenciado, possibilitando não apenas se apropriar de práticas e saberes que constituiriam sua formação para a docência, mas também se distanciar dos fatos que observam e produzem, para considerá-los analiticamente. A análise dos textos evidencia a relação entre pesquisa de base etnográfica, participante, e os movimentos do professor em formação inicial em suas tentativas de compreender os saberes e práticas existentes em sala de aula como função das condições de sua produção. São encontrados, no trabalho interpretativo do professor em formação inicial, fatores internos e externos à escola, o que inclui a formação do professor-regente, as condições materiais de trabalho, e os aspectos organizacionais, a que se relacionam as ofertas e demandas das instâncias oficiais responsáveis pelo ensino. São caracterizados três modos de diálogo entre a voz do professor em formação inicial e a do professor-regente: aquele em que a voz do pesquisador e do professor regente se confundem; outro, em que se percebe a contraposição de vozes no próprio discurso do professor em formação; e, por fim, aquele em que o professor em formação inicial utiliza de estratégias metaenunciativas na elaboração de seu texto, considerando as vozes presentes em sala de aula em função das condições de produção específicas do contexto analisado.
Palavras-chave: Formação de professores; alfabetização; ensino e pesquisa
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
31
Introdução
A formação inicial do professor de língua portuguesa tem como um de seus componentes a
vivência em ambientes de ensino, em instituições escolares, com o objetivo de prepará-lo
para as situações profissionais que desenvolverá quando licenciado.
Consideradas as relações da Universidade com a escola de ensino básico, o estágio
supervisionado pode representar um momento importante para que ensino, pesquisa e
extensão se atualizem nas próprias atividades dos alunos estagiários: a formação do
professor, sua preparação para a pesquisa, e a possibilidade de promover a circulação de
conhecimentos desenvolvidos no interior da Universidade oferecem a esse momento da
formação profissional grande potencial para a crítica, a experimentação e o aprendizado.
Como atividade de ensino, pesquisa e extensão, o estágio supervisionado se distancia da
mera observação das práticas de sala de aula, que configurariam modelos de que se
apropriar, para se aproximar de um processo em que assimilação e distensão, reprodução e
experimentação, apropriação e crítica podem se desenvolver em sua complexidade.
Neste trabalho são observadas experiências de estágio supervisionado segundo proposta de
que o professor em formação realize suas atividades, na escola, assumindo também a
posição de pesquisador. Assim, em sua experiência para a formação docente, o professor
em formação desenvolve um processo de pesquisa qualitativa, participante. Os materiais
coletados em atividades de observação, de cooperação junto ao professor-regente, ou de
regência, constituem fonte para a produção de dados, que, analisados, apresentam-se, com
suas conclusões, no relatório de estágio.
O objetivo do presente trabalho é o de investigar os resultados obtidos com as atividades de
estágio supervisionado, considerando-se que sua realização se faz em contexto
caracterizado pela prescrição, no ambiente escolar, dadas as relações instituição
escolar/aluno estagiário, e pela heterogeneidade, no que se refere aos movimentos dos
sujeitos no tempo e no espaço em que se desenvolvem as atividades de ensino em escolas
públicas do ensino fundamental I.
O material de análise é composto de relatórios de estágio, elaborados mensalmente pelos
alunos participantes de um projeto que insere alunos-pesquisadores em salas de aula de
alfabetização de escolas da rede municipal de São Paulo. A hipótese com que se trabalha é
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
32
a de que o relatório, em seu processo de elaboração, consiste num momento em que o
professor em formação procura conferir coerência às experiências que vivenciou em suas
atividades de estágio.
2. Fundamentação teórica e metodológica
No presente trabalho, são observadas as relações dos alunos-pesquisadores, professores em
formação inicial, com o contexto em que atuam, considerando-se o objetivo das atividades
em que estão envolvidos: produzir conhecimento a partir de suas experiências em salas de
aula de alfabetização, em suas interações com os professores-regentes, no interior de um
programa, elaborado pela Secretaria Municipal de Educação da cidade de São Paulo, que
pressupõe a fundamentação das ações de ensino segundo uma determinada perspectiva
teórica, de inspiração construtivista. Pretende-se, portanto, observar de que modo a
produção do professor em formação inicial se evidencia nos textos produzidos enquanto
aluno-pesquisador, em meio a condições de ensino caracterizadas pelas tentativas de
controle discursivo, que se fazem pela implementação de programa de alfabetização
pautado por uma determinada tendência teórica, e pela circulação de materiais didáticos
distribuídos pelas instâncias oficiais responsáveis pelo referido programa.
Associam-se, enquanto referenciais para a consideração de tal contexto complexo, as
considerações em torno da constituição das disciplinas escolares e sua inserção na cultura
escolar, à questão da etnografia e da consideração das práticas de letramento em função dos
contextos de sua produção. Assim, são tematizadas as tentativas de implementação de
saberes e práticas de ensino pelas instâncias oficiais responsáveis pela Educação e os
modos de apropriação de tal programa em contexto de ensino. Concomitantemente, são
consideradas as elaborações realizadas pelo professor em formação inicial ao desenvolver
pesquisa de caráter etnográfico, participante, observando-se os modos como se posiciona
face às práticas desenvolvidas pelos sujeitos nas salas de alfabetização.
Parte-se do princípio de que os saberes e práticas escolares não são decorrentes de
transposição didática de conhecimentos produzidos em ciências de referência, mas que a
escola se constitui num lugar em que saberes e práticas específicos se produzem (Chervel,
1990). Nesse sentido, ainda que propostas curriculares se materializem em documentos de
referência com base nos quais se promovem estratégias para o controle dos sentidos,
considera-se que, em contexto escolar, tais propostas se desenvolvam de modos diversos,
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
33
em razão de diferentes apropriações. Segundo essa perspectiva epistemológica, ampliam-se
as possibilidades de fontes de pesquisa, produzindo-se dados não apenas a partir de
documentos de referência, mas também de registros em que se reconheçam as vozes dos
sujeitos que atuam em contexto escolar (c.f.: Goodson, 1995).
Realizadas segundo princípios da pesquisa qualitativa participante, de caráter etnográfico,
as atividades em sala de aula demandam do aluno-pesquisador estratégias que lhe
possibilitem estabelecer o diálogo entre as diversas vozes presentes no contexto em que
atua, de modo a que tal diálogo possa se caracterizar pelo contraponto, distanciando-se de
posicionamento que implique em julgamentos relacionados a um suposto progresso social e
a maior desenvolvimento das capacidades cognitivas associados ao domínio da tecnologia
da escrita (Kleiman, 1995).
Em lugar dessa perspectiva, a que Street (2006) denomina “modelo autônomo de
letramento”, trabalha-se segundo perspectiva a que o mesmo autor denomina “modelo
ideológico”, em que se considera que os eventos e as práticas de letramento são
socialmente situadas, colocando em discussão as relações entre os letramentos locais e os
“distantes”, e os modos como essas relações se constroem. Assim, numa perspectiva
etnográfica, ao realizar suas atividades, o professor-pesquisador precisa levar em
consideração os usos de escrita em função dos eventos e práticas de letramento situadas
social, cultural e historicamente, em que se incluem não apenas aquelas encontradas na
escola em que atua, mas também aquelas produzidas externamente a ela, como na
Universidade ou nas instâncias oficiais responsáveis pelo ensino, por exemplo.
3. Análise dos dados
Os dados analisados no presente trabalho foram produzidos a partir de relatórios elaborados
por alunos de Letras e Pedagogia que participam em salas de aula de alfabetização como
alunos-pesquisadores, num convênio entre Universidade e Secretaria Municipal de
Educação da cidade de São Paulo: a proposta é que eles conheçam, compreendam, analisem
e interpretem a realidade de que participam, tomada como objeto de investigação, a fim de
atuarem nesta realidade com ações que promovam alterações positivas, considerando-se os
objetivos pedagógicos propostos.
Nesse sentido, considera-se que o trabalho em Ensino de Língua Portuguesa se caracteriza
não apenas pela observação e compreensão de uma realidade de ensino/aprendizagem, e a
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
34
produção de conhecimento advinda dessas atividades, mas, principalmente, pela necessária
organização de intervenções, no sentido de atuar colaborativamente, sobre os fenômenos
observados. Procura-se, a partir de diagnósticos produzidos, oferecer alternativas de
trabalho que tornem as situações de ensino/aprendizagem satisfatórias.
Trata-se, portanto, de considerar que as atividades de estágio podem proporcionar a alunos
em formação inicial o envolvimento em atividades de pesquisa-ação. A formação do
professor e do pesquisador, na universidade, em sua fase inicial, pode assim se fazer
integradamente, possibilitando que o futuro professor se coloque como pesquisador e
assuma distanciamento que lhe permita analisar o próprio contexto em que atua.
No contexto em que atuam, professores-regentes e alunos-pesquisadores são orientados,
pelas instâncias oficiais responsáveis pelo ensino, a pautarem suas ações em sala de aula
pela concepção de aprendizagem da escrita que fundamenta as políticas públicas para a
alfabetização no município: no caso, as propostas baseadas em idéias construtivistas
apropriadas de trabalhos de Emilia Ferreiro e colaboradores.
Os materiais elaborados e distribuídos, pela Secretaria Municipal de Educação, para
embasar o trabalho do professor-regente em sala de aula, se organizam em torno de
propostas associadas a concepções de caráter construtivista e prevêem um conjunto de
atividades a ser realizado ao longo do ano letivo, dentre as quais se encontram os momentos
de diagnóstico das fases em que se encontram os alunos em processo de alfabetização.
4.1. A voz do professor-regente como recurso para a construção da referência
Nos relatos observados, a professora-regente, personagem principal, ao ser construída
discursivamente em função do contraponto de vozes que constitui o texto produzido pelo
aluno-pesquisador, se apresenta como o elemento de referência para o professor em
formação, condensando em sua figura aspectos heterogêneos, por vezes contraditórios, que
compõem o contexto da sala de aula.
Em seu trabalho de compreensão da realidade em que atua, o aluno-pesquisador, ao tentar
conferir coerência também às relações que percebe se constituírem entre o professor-
regente e as bases teóricas que sustentam o programa oficial de alfabetização em que estão
inseridos, concentra na figura do professor as evidências sobre momentos de tensão entre as
propostas de ensino de inspiração construtivista que fundamentam o programa de
alfabetização de que participam, e aquelas consideradas tradicionais:
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
35
Muitas das atividades são trazidas pela professora da sua própria casa, ou seja, ela
as prepara nos finais de semana segundo o cronograma de toda a semana. O livro
didático destinado aos alunos apresenta pouco conteúdo, às vezes lições repetidas,
então a professora utiliza o que há de relevante nos livros, adaptando as atividades
ao seu programa semanal.
Essa carência de material de apoio só não atinge o andamento do aprendizado
porque a professora prepara muitas atividades de recorte e cole de textos e palavras,
tudo por sua conta (a folha de papel, a impressão). Biblioteca também não há, nem
sala de leitura. O espaço existe, mas faltam livros e professor, assim também ocorre
com a informática, pois também não há professor e no início do ano as máquinas
foram furtadas.
Na voz do aluno-pesquisador se encontra a voz da professora-regente, indiciando o diálogo
desenvolvido entre ambos e que constitui a experiência que o autor apresenta elaborada
discursivamente no relatório: em “muitas das atividades são trazidas pela professora da sua
própria casa, ou seja, ela as prepara nos finais de semana segundo o cronograma de toda a
semana”, na construção em terceira pessoa encontram-se as vozes do aluno-pesquisador,
mas também da professora-regente; a própria acessibilidade à informação evidencia a
existência de um sujeito num plano anterior da cena, que ganha voz na locução do autor do
relatório. A assonância permanece no restante do parágrafo citado e no seguinte, não sendo
possível distinguir de quem são os dizeres ali presentes, se do aluno-pesquisador, se do
professor-regente.
Temos, assim, que a relação do aluno-pesquisador com o contexto em que atua se faz
mediada pela voz do professor-regente, que garante, para o primeiro, o acesso à realidade
em que este participa. Não há contraposição de vozes, mas assonância, em que não é
possível dissociar o que é enunciado por um ou por outro dos participantes da interação.
4.2. As possibilidades de distanciamento e a etnografia
O espaço que se constrói ao organizar-se o contraponto entre as vozes com que dialoga o
aluno-pesquisador possibilita a produção de relatos interessantes, do ponto de vista
etnográfico, quanto ao processo de ensino e de aprendizagem:
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
36
“Outro caso interessante é um menino de 11anos que chegou da Bahia este ano e
nunca freqüentou escola. Está sendo alfabetizado agora. O processo e a conduta da
professora no ensino com ele é igual aos outros, uma vez que ele também está
iniciando do zero. O que observei é que embora ele também esteja sendo
alfabetizado como os outros, ele possui algumas habilidades e competências que o
ajudam no processo de alfabetização, como por exemplo a melhor noção de espaço,
pois desenha, pinta e escreve utilizando corretamente os contornos e delimitações.
Com a matemática, ele já tem experiência com dinheiro, por isso, vai bem nos
cálculos. O que achei importante foi a forma como a professora o recebeu e o trata,
pois ela o recebeu como um pré-adolescente, respeita as diferenças e o ajuda a não
ficar deslocado, incentivando com palavras de carinho e elogio. Não percebo que
sua idade e avanço o inibem no processo de aprendizagem ou relacionamento com a
turma.”
Algumas expressões usadas na construção textual evidenciam o trabalho discursivo do
autor do texto ao focalizar, na cena apresentada, os elementos que considera os mais
relevantes: nas construções “o que observei é que embora ele também esteja sendo
alfabetizado como os outros”, e “o que achei interessante foi a forma como a professora o
recebeu e o trata”, encontra-se referência a outros pontos de vista, sobre os eventos
observados, a que responde o aluno-pesquisador ao construir seu texto. O uso das
construções “o que observei é que” e “o que achei interessante foi”, ao focalizar o que o
escritor deseja colocar em relevo, produz em segundo plano o cenário em que se
desenvolvem os diálogos de que participa o próprio autor.
As duas construções acima destacadas dialogam entre si, o que se percebe ao considerar-se
o uso do “embora” na primeira delas (“O que observei é que embora ele também esteja
sendo alfabetizado como os outros, ele possui algumas habilidades e competências que o
ajudam no processo de alfabetização”): o uso do embora parece indicar um
posicionamento, por parte do autor do texto, de que, por ter outras habilidades que não tem
uma criança de sete anos, talvez o processo de alfabetização do aluno em questão devesse
se fazer de outro modo, respeitadas as especificidades do alfabetizando. A este enunciado,
contrapõe-se o que traz a afirmação sobre o que foi considerado interessante, pelo aluno-
pesquisador, quanto à forma como procedeu a professora em relação ao aluno.
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
37
De tal contraponto, um conjunto de outras vozes, tomadas em segundo plano, se faz
perceber: a que expressa a já referida expectativa de que crianças de idades diferentes
aprendem de modos diferentes, tendo o ensino de considerar as competências e habilidades
que possuem em sua fase de desenvolvimento, dialoga com a que afirma o processo de
alfabetização se fazer de modo semelhante para sujeitos diferentes (o que, no texto, se
encontra expresso na passagem: “O processo e a conduta da professora no ensino com ele é
igual aos outros, uma vez que ele também está iniciando do zero”). Ao afirmar não
perceber dificuldades do aluno observado em sua convivência com os demais colegas da
turma, o autor do texto responde também ao que se afirmaria sobre as dificuldades de
convivência de diferentes num determinado contexto.
4.3. Sobre a necessidade de formação docente
Um dos elementos que chama a atenção nos relatórios analisados se refere ao fato de ser
tematizada a própria questão da formação docente como base para o trabalho em sala de
aula. O aluno-pesquisador aponta a relevância da elaboração teórica para a atuação em sala
de aula como professor e como pesquisador:
“Perceber que para a realização da pesquisa, o embasamento teórico e o
desenvolvimento profissional são critérios muito mais confiáveis do que a opinião
pessoal e muitas vezes emocional, que baseia nosso olhar inicial, permite analisar
aspectos que poderiam ser relevados ou até não notados durante um estágio de curta
duração.”
No mesmo sentido, a falta de formação é associada aos problemas comumente encontrados
nas salas de aula:
“O despreparo do professor é outro elemento que se destaca em situações em que o
descontrole passa a ser realidade dentro de sala de aula. Não querendo assim
desmerecer o papel do professor dentro de sala de aula, nem deixar de destacar que
alguns alunos realmente provocam situações que somente um professor com
controle emocional extremado teria possibilidade de manter-se calmo.”
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
38
Parece que um movimento importante do autor das passagens acima, ao produzir seu texto
(e, com isso, elaborar sua experiência em sala de aula), está na possibilidade de pensar
sobre a situação em que se encontra, que é multifacetada, e relacioná-la com a necessidade
de formação teórica e metodológica, que, agenciada, ajudaria a contemplar essa
multiplicidade. Talvez seja possível perceber na elaboração textual em análise uma
tentativa de distanciamento que se faz contrapondo à realidade da sala de aula uma
determinada perspectiva discursiva que considera a formação do professor um elemento
decisivo para a condução do pedagógico.
Nota-se que esse posicionamento se realiza segundo um processo de avaliação
metaenunciativa (Koch, 2004), que se faz de modo a tomar como objeto das considerações
a própria elaboração discursiva que é feita a respeito do professor: a referência ao
despreparo do professor é retomada na seqüência do texto de modo a ser avaliada enquanto
ato de enunciação. Utilizando-se desses recursos para a construção da referência, o autor
estrategicamente pode se referir a aspectos não especificamente do processo de ensino e
aprendizagem de língua portuguesa, mas de ordem didática e metodológica: o que pode se
configurar em primeiro plano, assim, é a situação de descontrole do professor, associado a
aspectos emocionais. É o que se nota também no relato a seguir:
“O grito como instrumento utilizado frequentemente pelo professor, que
inicialmente provocava repulsa pelo grau de stress provocado, pode agora ser
analisado por outro olhar. A realização de uma aula sem planejamento adequado,
sem uma seqüência didática e até sem material de apoio, provocam constantemente
situações de descontrole tanto por parte do professor como por parte dos alunos.”
O “outro olhar” referido na passagem acima parece indicar a mudança de posição do aluno-
pesquisador, em sua elaboração, no sentido da despersonalização do processo que observa,
deixando de atribuir o descontrole emocional a características pessoais do professor
observado, e associá-lo a fatores encontrados nas condições em que o professor-regente
desenvolve seu trabalho, condições que envolvem também sua formação.
A metaenunciação ofereceria, assim, a possibilidade do distanciamento, e, com ele, a de se
assumir, numa perspectiva etnográfica, maior relativização quanto aos fatores considerados,
isto é: a possibilidade de não julgar o indivíduo professor em sua atitude, mas de
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
39
compreender a situação do sujeito no contexto em que se encontra. Destaca-se, nesse
movimento, o deslocamento que realiza o aluno-pesquisador, quando, no texto acima
apresentado, responde a um suposto desmerecimento do professor-regente com quem
atuava: o uso das negações (“Não querendo assim desmerecer” e “nem deixar de destacar”)
evidencia a construção de um espaço para o próprio pesquisador, contrapondo em seu
discurso duas vozes a que responde em sua elaboração: de um lado, responde a uma
concepção de que observar e analisar o trabalho do professor, assumindo uma postura
crítica, promove a desvalorização do observado por parte do aluno observador; de outro,
responde à necessidade de ser criterioso em seu trabalho de investigação, mostrando em seu
relato fatos que presenciou em sua vivência em sala de aula.
5. Considerações finais
Caracterizar a produção do professor pode demonstrar a potencialidade criativa que
assumiria o ensino de língua materna que não mais pré-concebesse a realidade a se
trabalhar, mas que trabalhasse de acordo com a realidade que se apresenta. Essa postura
concebe o professor como pesquisador e produtor de conhecimentos, pois faz da sala de
aula uma realidade dispersa e fragmentária pedindo para ser conhecida e organizada: rica
em diferenças de pontos de vista, em distâncias a serem percorridas e na reunião da
heterogeneidade, pode representar o fim do ensino homogeneizante, do trabalho
pedagógico submisso às práticas autoritárias.
A análise dos dados mostrou diferentes modos de relação do aluno-pesquisador com o
professor-regente, quando este é tomado como referência para considerar as experiências
vivenciadas em sala de aula. Etnograficamente, os modos como a relação entre os agentes
se constitui implica em posicionamentos diferentes para a observação do contexto de
ensino e pesquisa, e, em conseqüência, em possibilidades distintas de conferir coerência à
elaboração que se faz do que é vivenciado na escola.
A presença e atuação no espaço de sala de aula têm se mostrado requisitos para a formação
inicial e para a formação continuada. Parece ser assim quando se considera a necessidade
de lidar com os inúmeros aspectos que compõem o contexto de ensino, que solicitam muito
mais elementos que a apropriação de um conjunto de saberes teóricos ou metodológicos.
Os relatos analisados acima evidenciam essa necessidade. O contato com o cotidiano da
sala de aula se constrói discursivamente pela interação de sujeitos situados socialmente.
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
40
Compreender os modos de interação pode contribuir para que o professor tenha acesso a
elementos do ensino e da aprendizagem que são específicos da realidade em que atua.
A formação inicial e continuada mais satisfatoriamente se realiza quando resultante das
demandas colocadas pelo trabalho do professor em sala de aula, junto a seus alunos. Essa
complexidade pode levar à busca de textos e discussões para se considerar as
especificidades do trabalho de fato em sala de aula e os modos como as condições de
trabalho promovem as relações dos professores com suas referências teóricas e práticas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHERVEL, André. (1990) História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de
pesquisa. Teoria e Educação. Porto Alegre, nº 2, p. 177-229.
GOODSON, Ivor. (1995) Currículo: teoria e história. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 7ª
edição, 2005. Tradução de Attílio Brunetta.
KLEIMAN, Angela. B. (Org.). (1995) Os significados do letramento: uma perspectiva
sobre a prática social da escrita. Campinas, SP: Mercado de Letras.
KOCH, Ingedore G. V. (2004) Linguagem e cognição: a construção e reconstrução de
objetos-de-discurso. VEREDAS - Revista de Estudos Lingüísticos, Juiz de Fora - MG, v. 6,
n. 1, p. 29-42.
STREET, Brian V. (2006) Autonomous and ideological models of literacy: approaches
from New Literacy Studies. EASA Media Anthropology Network. Disponível em:
http://www.media-anthropology.net/street_newliteracy.pdf. Acesso em 13/12/2009.