formaÇÃo continuada: divulgaÇÃo e didaticidade do conceito de letramento

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ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 1 DINÂMICAS ENTRE UNIVERSIDADE E ESCOLA PÚBLICA: DESAFIOS DO LETRAMENTO PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES CLÁUDIA LEMOS VÓVIO COORDENADORA Clecio Bunzen (Unianchieta) Daniel Revah (Unifesp) Emerson de Pietri (USP) RESUMO Há mais de 25 anos o campo educacional brasileiro vive um processo de mudanças substantivas, tanto nas políticas públicas e sua implementação como na organização de currículos e orientações para as práticas pedagógicas, que abrangem desde questões relativas aos objetos de ensino privilegiados e às orientações de como ensiná-los, até aspectos relacionados com a organização do trabalho docente. Normatizações do processo de ensino-aprendizagem e mudanças na organização da educação básica emolduram esse contexto, o que, nas vozes de muitos professores, resulta numa situação de incerteza que os desestabiliza frente ao novo que se coloca. A aproximação da Universidade à escola pública a fim de contribuir com a qualidade da educação tem sido apontada como uma via estratégica para responder a essa demanda, por meio da construção de diálogos que articulem teoria e prática, tanto na formação inicial do professor quanto no exercício profissional da docência. O painel aqui proposto apresenta três experiências de aproximação da Universidade à educação pública e discute o sentido e o resultado dessas ações. A primeira, intitulada “Formação continuada: divulgação e didaticidade do conceito de letramento”, discute o processo de vulgarização do conceito de “letramento” em textos recentes, produzidos pela Rede Nacional de Formação Continuada de Professores de Educação Básica (SEB/MEC). A segunda, intitulada Desafios do Letramento na alfabetização, discorre sobre as ações desenvolvidas em parceria entre o curso de Pedagogia da Universidade Federal de São Paulo e a Escola Municipal Vicente Ferreira Silveira, em Guarulhos (São Paulo), envolvendo alunos e docentes do curso de Pedagogia e alunos, professores e direção dessa escola pública “. E a terceira, de título “Formação para a docência e a pesquisa em contextos de heterogeneidade e prescrição”, tematiza os modos como professores em formação inicial conferem coerência às elaborações de suas experiências de estágio supervisionado em salas de alfabetização. Palavras-chave: Formação de professores; alfabetização; letramento; ensino e pesquisa

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ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010

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DINÂMICAS ENTRE UNIVERSIDADE E ESCOLA PÚBLICA: DESA FIOS DO LETRAMENTO PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

CLÁUDIA LEMOS VÓVIO

COORDENADORA

Clecio Bunzen (Unianchieta) Daniel Revah (Unifesp)

Emerson de Pietri (USP) RESUMO Há mais de 25 anos o campo educacional brasileiro vive um processo de mudanças substantivas, tanto nas políticas públicas e sua implementação como na organização de currículos e orientações para as práticas pedagógicas, que abrangem desde questões relativas aos objetos de ensino privilegiados e às orientações de como ensiná-los, até aspectos relacionados com a organização do trabalho docente. Normatizações do processo de ensino-aprendizagem e mudanças na organização da educação básica emolduram esse contexto, o que, nas vozes de muitos professores, resulta numa situação de incerteza que os desestabiliza frente ao novo que se coloca. A aproximação da Universidade à escola pública a fim de contribuir com a qualidade da educação tem sido apontada como uma via estratégica para responder a essa demanda, por meio da construção de diálogos que articulem teoria e prática, tanto na formação inicial do professor quanto no exercício profissional da docência. O painel aqui proposto apresenta três experiências de aproximação da Universidade à educação pública e discute o sentido e o resultado dessas ações. A primeira, intitulada “Formação continuada: divulgação e didaticidade do conceito de letramento”, discute o processo de vulgarização do conceito de “letramento” em textos recentes, produzidos pela Rede Nacional de Formação Continuada de Professores de Educação Básica (SEB/MEC). A segunda, intitulada Desafios do Letramento na alfabetização, discorre sobre as ações desenvolvidas em parceria entre o curso de Pedagogia da Universidade Federal de São Paulo e a Escola Municipal Vicente Ferreira Silveira, em Guarulhos (São Paulo), envolvendo alunos e docentes do curso de Pedagogia e alunos, professores e direção dessa escola pública “. E a terceira, de título “Formação para a docência e a pesquisa em contextos de heterogeneidade e prescrição”, tematiza os modos como professores em formação inicial conferem coerência às elaborações de suas experiências de estágio supervisionado em salas de alfabetização. Palavras-chave: Formação de professores; alfabetização; letramento; ensino e pesquisa

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FORMAÇÃO CONTINUADA: DIVULGAÇÃO E DIDATICIDADE DO CONCEITO DE

LETRAMENTO

Clecio Bunzen (Unianchieta)

RESUMO Este trabalho tem por objetivo discutir a formação do professor de língua materna, com enfoque na divulgação do conceito de “letramento” por materiais impressos produzidos por acadêmicos para os professores das séries iniciais, inseridos em processos de formação contínua. Voltamos nossa atenção para o possível impacto dos estudos do letramento na educação, no intuito de compreender a perspectiva que denominamos de letramento curricular (Bunzen, 2009). Nossa análise toma como corpus três textos didáticos produzidos por Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação (CEALE, CEEL e CEFIEL) com o intuito de apresentar e discutir os conceitos de alfabetização e letramento. Focalizaremos, assim, o âmbito das políticas públicas de educação, uma vez que os textos produzidos nessa instância apresentam um forte caráter de divulgação/difusão de propostas de mudança nas práticas escolares. O conceito de “letramento” tem sido constantemente utilizado como uma proposta “inovadora” para organização curricular, distanciando-se de outras abordagens para o ensino da língua escrita. Nossa análise demonstra que o conceito de letramento é ora utilizado como mais próximo do conceito de alfabetismo (Rojo, 2009) e ora é mobilizado como um objeto de pesquisa sobre as práticas sociais, ambos com implicações didático-metodológicas específicas. As análises sugerem que as estratégias didáticas para discussão do conceito de letramento ainda são poucas em alguns materiais de formação, uma vez que há um maior espaço para a reflexão sobre o processo de alfabetização. Além disso, ressalta-se que os materiais preferem assumir uma perspectiva teórica uniforme/monológica e não dão visibilidade aos conflitos epistemológicos que envolvem os conceitos durante a formação continuada dos professores. Palavras-chave: Formação de professores, alfabetização e letramento.

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Introdução

Durante o século XX, assistimos a um aumento significativo de impressos (livros, revistas,

jornais) de formação profissional produzidos no cenário brasileiro. Para além da cultura do

impresso, os textos em gêneros específicos para a formação docente têm circulado também

em diferentes mídias como o rádio, a televisão e o meio digital. A TV Futura (lançada em

1997) e programas como Um Salto para o Futuro podem servir aqui como exemplos para

demonstrar o crescimento de modalidades interativas de formação continuada, no contexto

específico de Educação à distância. Os programas televisivos, assim como as revistas

pedagógicas (Nova Escola, Pátio, Educação, Presença Pedagógica), procuram os

especialistas da academia para travarem um diálogo - no sentido bakhtiniano do termo -

com os professores em formação contínua/permanente ou inicial. Esse diálogo, que não

exclui o conflito de vozes e de apreciação valorativa (axiológica) sobre o mundo e os

discursos, funda-se muitas vezes na “midiatização do aparente fracasso das práticas

escolares de ensino de línguas e das políticas públicas para educação” (Matencio, 2008,

p.543).

Nas últimas três décadas, presenciamos também um boom de textos de divulgação

científica e textos didáticos para professores em formação inicial e continuada. No geral,

são textos produzidos por pesquisadores na esfera científica para circular na esfera escolar,

uma vez que tem os professores como interlocutores principais. Com base na noção de

campo de Bourdieu, Andrade (2004, p.19) tece pertinentes comentários sobre essa relação

interlocutiva do discurso de formação:

a noção de campo como espaço onde se criam interesses para

certos agentes permitiu pensarmos no campo universitário e sua

especificidade de, como forma de distinção, produzir leituras

destinadas ao professor. No campo escolar, por sua vez, o

professor pode distinguir-se pelo ato de buscar a universidade

como lugar de formação. No campo intermediário entre

universidade e escola, a formação passa a ter agentes que se

identificam como formadores, muitas vezes se inserindo nesse

campo completamente ou apenas parcialmente.

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Ao comentar sobre os discursos de divulgação científica e didáticos, Rojo (2008, p.589)

lembra que a própria concepção de di-vulgação aponta para “ação de dar ao vulgo (à plebe,

aos pobres, aos trabalhadores, aos que falam a língua vulgar – o povo) os bens do

conhecimento”, com destaque para a emergência da ciência moderna no século XVIII –

conhecido como o século das luzes. A autora indica a organização da Enciclopédia como

um dos textos que permitiram a divulgação de temas e conceitos científicos para o povo. Se

a divulgação científica nasce com o Enciclopedismo, como aponta Rojo (2008), ela

atualmente circula em diferentes espaços e mídias com diferentes objetivos.

Nesse contexto de divulgação dos conhecimentos para os professores, tem crescido o

interesse pelos estudos dos suportes materiais que permitem a circulação de discursos e

apropriação de saberes pedagógicos, tais como a imprensa periódica especializada em

educação (Frade, 2002) e as coleções dirigidas a professores (Andrade, 2004, Carvalho,

2007); assim como dos cursos de formação continuada de professores (Signorini, 2007,

Kleiman e Martins, 2007).

De forma bastante pertinente, Matencio (2008) aponta para o fato de que os conflitos entre

os saberes científicos e suas formas de divulgação para os professores são raramente

questionados, como se houve um forte impacto da produção acadêmico-científica na escola

via políticas públicas curriculares. Como formadores de professores não temos, como

destaca Andrade (2004, p.21), “abordado com seriedade a nossa própria responsabilidade

pela situação da escola e dos docentes [...]”, uma vez que muitas vezes “realizamos a tarefa

científica de pesquisadores sobre a escola considerando que, uma vez publicada, está terá

necessária e diretamente efeitos de melhoria dessa escola”.

Nosso objetivo no presente trabalho, é justamente refletir sobre o discurso de formação

(Andrade, 2004) em impressos pedagógicos produzidos por três Centros de Formação

Continuada do MEC (CEALE, CEEL, CEFIEL). Para realizar tal discussão, analisaremos

como o conceito de “letramento” é apresentado pelos autores dos textos (pesquisadores,

universitários, produtores de conhecimento voltados à formação) para os professores em

contexto de formação continuada. Do ponto de vista da produção, nos interessa aqui

especificamente os discursos de divulgação científica de cunho didático, uma vez que são

produzidos por especialistas com o objetivo de divulgar os conceitos científicos e ensiná-

los por meio de explicações, reformulações, analogias, exemplificações. No corpus

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selecionado, daremos atenção especial para as explicações e atividades/exercícios

propostos para os professores em formação contínua.

2. A Rede Nacional de Formação Continuada: esfera de produção

A Rede Nacional de Formação Continuada de Professores da Educação Básica (doravante

RNFC), do Ministério da Educação e Cultura (MEC), tem como objetivo, segundo

informações disponíveis no site do programa federal, contribuir para “a melhoria da

formação de professores e alunos”. A Rede Nacional é composta por Centros de Pesquisa e

Desenvolvimento da Educação, mantidos por professores-formadores-pesquisadores que

coordenam e elaboram programas de formação continuada para os estados e municípios,

em cinco áreas temáticas: (a) Alfabetização e Linguagem; (b) Ensino de Ciências Humanas

e Sociais; (c) Artes e Educação Física; (d) Educação Matemática e Científica; (e) Gestão e

Avaliação da Educação. Destacamos aqui ainda alguns dos objetivos da RNFC: (i)

“contribuir com a qualificação docente no sentido de garantir uma aprendizagem efetiva e

uma escola de qualidade para todos”; (ii) “desencadear uma dinâmica de interação entre os

saberes pedagógicos produzidos pelos Centros, no desenvolvimento da formação docente e

pelos professores de sistemas de ensino, em sua prática docente”.

Para a Rede Nacional de Formação Continuada, a formação não deve ser vista como uma

correção de um curso precário, uma vez que apostam na necessária reflexão permanente do

professor. Por outro lado, os Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação

encontra-se em instituições com tradições em ensino e pesquisa, situadas em diversas

regiões do Brasil. Na área temática Alfabetização e Linguagem, nosso interesse de

pesquisa, as universidades responsáveis pelos Centros de Pesquisa são: UFPE, UFMG,

UNICAMP, UEPG, UNB. Os Centros, de forma geral, têm priorizado a produção de

diversos materiais para os professores (jornais, sites, cadernos de estudo, vídeos), além dos

materiais didáticos elaborados para o funcionamento dos cursos, com dinâmicas e formatos

específicos. Desta forma, os textos de divulgação científica de caráter didático que iremos

analisar foram produzidos por três Centros de Pesquisa (CEEL, CEALE e CEFIEL) para

professores-alfabetizadores que trabalham com as séries iniciais. Esses centros e suas

produções podem ser inseridos no que Dornelles (2007) chama de espaço acadêmico

central – em contraposição aos espaços periféricos.

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Espaços acadêmicos centrais são [...] compreendidos como aqueles

responsáveis pela “larga escala” de produção e distribuição dos

saberes que exercem hegemonia em campos disciplinares

específicos. A condição de centralidade desses espaços resulta

primordialmente de sua infra-estrutura material e simbólica:

possuem recursos para a distribuição dos saberes que produzem e

também para dialogarem com variados espaços acadêmicos em

escala local e global (Dornelles, 2007, p. 117).

Os textos em diversos gêneros (artigos, verbetes, entrevistas, documentários), produzidos

pelos Centros de Pesquisa, são aqui compreendidos como produzidos por espaços

acadêmicos centrais que em rede divulgam, didatizam e legitimam saberes acadêmicos-

científicos sobre o ensino de língua(gem). A didatização, como mostram algumas pesquisas

(Bunzen, 2009; Signorini, 2007; Dornelles, 2007), aponta para um processo dialógico entre

saberes e demandas de inovação que tem se estabelecido no cenário nacional de reformas

educacionais desde a década de 70. Nessa lógica da divulgação científica para formação

dos professores, nos interessa aqui perceber como o conceito de “letramento” está sendo

didatizado para os professores. Conforme Signorini (2007, p. 223):

[...] a questão da inovação no ensino da língua acaba sendo uma

questão de fluxo e gerenciamento da informação “de qualidade”,

ou mais adequada, ou “necessária”, ou “mais atual”, através da

transmissão (ou transposição) de conteúdos disciplinares, de

aquisição de maior competência nesses conteúdos, portanto uma

questão de formação (ou de melhor formação) lingüística dos

agentes institucionais encarregados de introduzir e fazer funcionar

a inovação, sobretudo o professorado.

3. Alfabetização e Letramento

Na coleção Alfabetização e Letramento, produzida pelo Centro de Alfabetização, leitura e

escrita (CEALE), um dos cadernos de formação é dedicado à exploração dos conceitos de

alfabetização e do letramento. A coleção, composta de cadernos impressos, volta-se para a

“formação teórica do professor e discute conceitos fundamentais para a compreensão do

que sejam os processos de alfabetização e letramento” (p.7). Essa reflexão teórica

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encontra-se a serviço da reflexão da ação pedagógica, articulando a teoria com situações

escolares.

As primeiras palavras da coleção já apontam para um discurso de mudanças/inovações

didáticas e pedagógicas no ensino da língua portuguesa. Tais mudanças curriculares

normalmente assinalam alterações nos objetos de ensino a serem ensinados, nos métodos e

metodologias de ensino, na organização do trabalho pedagógico e no processo de avaliação.

Por essa razão, o conceito de letramento é normalmente categorizado como um “novo

conceito” (p.11) que será apresentado “sob um ponto de vista teórico” (p.11). Vale a pena

perceber esse movimento discursivo que procura responder ao professor-leitor do texto

como alguém que espera “respostas práticas e não teóricas”(p.11). A introdução do caderno

volta-se para essa relação teoria versus prática para justificar o porquê da escolha da

realização de um “exame teórico” dos conceitos de alfabetização e letramento. Vejamos um

dos principais argumentos apresentados pelos autores:

[...] uma adequada reflexão sobre diretrizes metodológicas, bem

como uma consciente tomada de decisões, em sala de aula,

pressupõe, dentre outros fatores, o conhecimento dos

fundamentos teóricos que deram origem a essas diretrizes

metodológicas, que podem dar base a decisões em sala de aula,

que podem justificar direções seguidas. [...] Assim, conhecimentos

de natureza teórica são um elemento para a construção de uma

atuação autônoma de qualquer professor e, por isso, devem

integrar sua formação. (Soares e Batista, 2005, p.11, destaque

nosso)

Os dois fragmentos ressaltam aspectos da autonomia do professor para compreender as

mudanças curriculares, ou seja, a reflexão conceitual e teórica permitiria, na visão dos

autores, uma maior reflexão e consciência da prática pedagógica. Essa autonomia volta-se

também para uma representação do professor-leitor em formação contínua que precisa

dominar conceitos e referências teóricas para realização de leituras específicas.

O discurso da formação, como analisa Andrade (2004), volta-se justamente para esse

movimento de apresentação de conceitos e definições de forma didatizada para os seus

leitores. O texto didático que compõem os cadernos da coleção Alfabetização e Letramento

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é constituído basicamente de explicações didáticas, intercaladas de atividades. O conceito

de letramento é apresentado para os professores sempre em contraposição ao conceito de

alfabetização, por essa razão encontramos títulos (“o que diferencia alfabetização e

letramento?”) e atividades que acentuam essa forma, em certo sentido dicotômica, de

compreender os dois processos:

Com base nas duas questões anteriores, você já pode tentar

formular, por inferência, as diferenças entre estes dois processos

– alfabetização e letramento. Responda à pergunta seguinte e

guarde sua resposta: ao final deste Caderno, você voltará a ela, e

poderá verificar se acertou, nas inferências feitas neste momento

inicial. Qual é a diferença entre alfabetização e letramento?

(Soares e Batista, 2005, p.16).

Essa atividade formativa, apresentada na primeira seção do caderno, tem como objetivo

mobilizar os conhecimentos prévios dos professores, mas parte de uma concepção teórica

de que é possível estabelecer diferenças entre os dois processos. Os professores devem ser

capazes de compreender e distinguir os conceitos de alfabetização e letramento,

compreendidos, em uma primeira instância, como dois processos. Em uma segunda

instância, o conceito de alfabetização é mobilizado como “o ensino e o aprendizado de uma

tecnologia de representação da linguagem humana, a escrita alfabético-ortográfica”, que

envolve um conjunto de conhecimentos e procedimentos (como distinguir o escrito de

outros sistemas de representação), assim como determinadas capacidades motoras e

cognitivas.

As seções 2 e 3 (no total de 30 páginas) são dedicadas a exploração do conceito de

alfabetização que antecede as discussões sobre letramento. A seção 4 (no total de 05

páginas) dedica-se a explicar para o professor o surgimento do conceito de letramento. No

geral, parte-se do pressuposto de que o conceito de letramento é uma “ampliação

progressiva do próprio conceito de alfabetização” (p.47) e que essa ampliação deve-se a

necessidades sociais e políticas, como os Censos que procuram medir o grau de

analfabetismo da população.

Diferentemente do que ocorre com o conceito de alfabetização, os autores procuram utilizar

sinônimos utilizados pela mídia ou por avaliações desenvolvidas por institutos e ONGs

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brasileiros para que os professores compreendam o conceito de letramento: “na imprensa e

em muitas pesquisas, a expressão alfabetismo funcional é usada como sinônimo de

letramento” (p.48) ou “o termo alfabetismo, utilizado pelo INAF, é sinônimo de

letramento”. A didatização do conceito via sinonímia aponta para a compreensão do

conceito de letramento como alfabetismo, ou seja, um “conjunto de competências e

habilidades, tanto de leitura como de escrita” (Rojo, 2009, p. 74). Nessa primeira

apresentação do conceito, os autores mantêm o foco no aspecto mais individual e

psicológico do conceito de alfabetismo, no sentido dado por Rojo (2009). A discussão

conceitual perde, em certo sentido, sua força elucidativa, pois o enfoque passa a ser a

discussão sobre as “capacidades e conhecimentos envolvidos no letramento”(p.49), que

apontam para o uso da linguagem escrita em práticas sociais específicas. Essa perspectiva

do letramento-alfabetismo, fica mais evidente nas atividades formativas que solicitam que

os professores comparem os “níveis de letramento” e respondam: “o que significa ter um

nível de letramento alto?” ou “o que significa ter um nível de letramento baixo?”(p.50).

Letramento é compreendido, em grande parte das explicações e atividades, como a

capacidade de ler e de produzir textos com competência, contrapondo-se ao conceito de

alfabetização que seria a capacidade de “codificar” e “decodificar”. Os autores definem o

letramento como: “o conjunto de conhecimentos, atitudes e capacidades envolvidas no uso

da língua em práticas sociais e necessários para uma participação ativa e competente na

cultura escrita”. A atividade 9 (p.51) faz com que os professores retomem as diferenças

entre e reformule, acrescente ou explore diferenças entre os conceitos. Percebemos pouco

espaço para que os professores explicitem possíveis semelhanças entre os conceitos, assim

como poucas indicações de aprofundamento da temática ao longo das páginas dedicadas ao

conceito de letramento.

4. Alfabetização e Letramento: conceitos e relações

Nossa segunda análise terá como foco o artigo inicial e as atividades do guia didático que

compõem o livro “Alfabetização e letramento: conceitos e relações”(Santos e Mendonça,

2005), produzido pelo Centro de Estudos em Educação e Linguagem (CEEL). O livro,

composto por 08 artigos, e o guia didático (com atividades formativas para cada capítulo)

se insere nas ações propostas para o CEEL para os cursos de formação docente,

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especificamente na problemática da relação entre alfabetização e letramento. Na

apresentação do livro, lemos que

a construção desse livro resulta, portanto, do esforço de produção

de um material pedagógico para formação de professores na área

de língua portuguesa que contribuísse para articular e sistematizar

a discussão acerca dos conceitos de alfabetização e letramento,

buscando estabelecer sua relação com o processo de escolarização

(Santos e Mendonça, 2005, p. 8).

O artigo que abre a coletânea – Conceituando alfabetização e letramento – , de autoria de

Eliana Alburquerque, aposta novamente no movimento discursivo de explicar para os

professores os conceitos e suas relações. O artigo composto por 12 páginas não apresenta

subdivisões e ancora-se essencialmente na estratégia didática de trazer depoimentos de

autores brasileiros (como Graciliano Ramos) e de professoras sobre a alfabetização, com o

intuito de discutir os dois conceitos. No início do artigo, o conceito de letramento é

apreciado como “novo” e situado nas discussões da década de 90, contrariamente ao

conceito de alfabetização, compreendido como um conceito “conhecido e familiar” (p.11).

Os depoimentos são utilizados como uma estratégia didática para que o professor reflita

sobre as experiências de alfabetização em ambiente escolar e familiar que aconteciam até as

décadas finais do século XX. Os anos 80, situa a autora, foram responsáveis por um

conjunto de reflexões de diferentes campos (Psicologia, História, Sociologia, Pedagogia)

sobre o estudo da leitura e seu ensino, destacando em seu artigo as contribuições sobre a

psicogênese da língua escrita (Ferreiro e Teberosky, 1994). O conceito de letramento é

apresentado para os professores da seguinte forma:

Nos últimos vinte anos, principalmente a partir da década de 1990,

o conceito de alfabetização passou a ser vinculado a outro

fenônemo: o letramento. Segundo Soares (1998), o termo

letramento é a versão para o português da palavra de língua inglesa

literacy, que significa o estado ou condição que assume aquele que

aprende a ler e a escrever. (Albuquerque, 2005, p.16).

A interpretação da autora baseia-se nas discussões de Soares (1998), que aponta para a

definição de letramento como “estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e a

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escrever”. Conforme Rojo (2009), essa definição aproxima-se mais do conceito de

“alfabetismo”, por enfocar questões mais individuais e psicológicas da aprendizagem da

leitura e da escrita. O dicionário Houaiss (2001) é também utilizado pela autora para definir

o conceito de letramento: “conjunto de práticas sociais que denotam a capacidade de uso de

diferentes tipos de material escrito”. Assim, o conceito de letramento aponta novamente

para as questões de competências e habilidades.

Assume destaque no artigo também o fato de que as crianças e adultos não-alfabetizados

participam de práticas específicas de letramento e desenvolvem “uma série de

conhecimentos sobre os gêneros que circulam na sociedade”. No entanto, apenas essa

vivência ou o domínio do sistema alfabético não garantem as competências e habilidades

necessárias para “ler e produzir os gêneros de texto”. Por esse motivo, a escola precisa

garantir tanto a apropriação do sistema de escrita alfabético (entendido pela autora como

alfabetização) como o ensino da leitura e da escrita no contexto de práticas sociais

(letramento). A ideia central novamente é a formação de leitores e escritores competentes,

mesmo que não se apresente uma discussão sobre o conceito de competência mobilizado e

suas relações com os estudos do letramento. A defesa do artigo é que os professores

precisam garantir um trabalho pedagógico e sistemático de reflexão sobre o sistema de

escrita alfabético (alfabetização) e um trabalho com a leitura e produção de diferentes

textos (letramento). O professor que consegue unir tais práticas estaria desenvolvendo uma

prática de “alfabetizar letrando” (p.20), concepção central bastante utilizada ao longo do

livro.

No guia didático, as questões de alfabetização recebem um destaque bem maior do que o

conceito de letramento. No geral, os professores discutem sobre o conceito de letramento

em dois momentos. Na atividade 4 (p.11) que solicita que os professores em grupos

selecionem quatro frases-chave do artigo para discussão sobre os conceitos de alfabetização

e letramento. Essas frases serão expostas em um painel que é retomado na atividade de

sistematização que finaliza o conjunto de atividades:

Agora, após todas as discussões realizadas, observem o painel

montado coletivamente e elaborem, em grupos, uma definição

para letramento e outras para alfabetização. Socializem no

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grande grupo e acrescentem ao painel, para finalizar os trabalhos

deste capítulo. (Guia didático, 2005, p.13).

5. Preciso ensinar o letramento? Não basta ensinar a ler e a escrever?

O terceiro texto didático que analisaremos é um livro que foi produzido pelo Centro de

Formação de Professores do Instituto de Estudos da Linguagem (CEFIEL), de autoria de

Ângela Kleiman. O título do livro feito em formato de pergunta retórica é respondido logo

na introdução da obra, em que a autora afirma que “quando se ensina uma criança, um

jovem ou um adulto a ler e a escrever, esse aprendiz está conhecendo as práticas de

letramento da sociedade; está em “processo” de letramento”(p.5). Entendido aqui também

como um processo, o texto didático explora exemplos e imagens para que o professor-leitor

compreenda o conceito de letramento, assim como propõe atividades para serem realizadas

pelos professores cursistas (em cursos semipresenciais à distância). Na compreensão da

autora, o conceito de letramento surge como “uma forma de explicar o impacto da escrita

em todas as esferas da atividade e não somente as atividades escolares”, distanciando-se

assim da concepção de letramento como uma ampliação do conceito de alfabetização.

O fascículo também tem um caráter introdutório do conceito de letramento, uma vez que

um dos cursos ministrados pelo CEFIEL é “Letramento nas séries iniciais”. O conceito de

letramento não é apresentado como “novo”, mas como um conceito que já faz parte do

discurso escolar. Partindo do pressuposto que o conceito entrou na escola por diversas

fontes e textos diversos (livros didáticos, propostas curriculares), a autora afirma que “isso

tem causado muita confusão”. Tal “confusão” faz com que a autora organize o seu texto

didático em dois grandes momentos: discussão sobre o que não é letramento para depois

apresentar o que é letramento, com destaque para as implicações do conceito para as

práticas escolares. Essa escolha deve-se a uma tentativa de não “marcar uma ruptura sobre

os saberes do professor mas para tomá-los como ponto de partida da discussão”(p.7).

As dúvidas dos docentes são representadas por imagens em que professoras discutem

determinadas questões que são retomadas pelo texto didático. Na seção O que não é

letramento, por exemplo, encontramos quatro imagens de uma professora em interação com

outros sujeitos e objetos que traz para o texto a voz do professor, como um sujeito que tem

dúvida e está confuso no processo de apropriação dos conceitos. Na primeira imagem, duas

professoras olham assustadas para uma produção infantil, enquanto uma delas fala com um

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tom de indignação e espanto: “como vai poder ler e escrever se não foi totalmente letrado”.

A estratégia didática utilizada pela autora é a da negação do conceito: “letramento não é

método”, “letramento não é alfabetização”, “letramento não é uma habilidade”. Suas

explicações são seguidas de exemplos e discussões, mas assume uma perspectiva diferente

dos dois cadernos anteriores em relação ao próprio conceito de alfabetização. Em primeiro

lugar, porque assume mais claramente que o conceito de alfabetização é “complexo e tem

muitos significados”. Em segundo lugar, porque compreende a alfabetização como uma

prática de letramento, uma prática que se realiza em eventos de letramento específicos na

escola ou fora dela (especialmente na esfera doméstica). As atividades apontam assim para

que o professor reflita sobre o conceito de “prática”:

Uma prática consiste em atividades com um objetivo em

determinada situação. Como a realização da atividade pode

precisar de tecnologias (lápis e papel, as diferentes mídias),

habilidades especiais e saberes, estes também fazem parte da

prática. Algumas atividades (e os saberes que as sustentam) que

tradicionalmente fazem parte da prática de alfabetização das

crianças na escola são: leitura em voz alta (que exige a capacidade

de decodificação); ditado (que envolve conhecimento ortográfico);

rimar palavras (que envolve a consciência fonológica); rodinha de

leitura (que envolve a capacidade de organização textual). Você

poderia mencionar outras práticas de leitura escolar?

(Kleiman, 2005, p. 13).

A atividade parece-nos que procura mobilizar os conceitos de alfabetização e letramento

atrelados ao conceito de prática social, por isso a questão mais do que solicitar uma questão

procura explicar para o professor o que é uma prática e seus elementos: tecnologias,

habilidades etc. Neste momento, observa-se uma tentativa de não criticar didática e

pedagogicamente os saberes dos professores, mas fazer com que compreendam que as

práticas escolares de ensino da leitura e da escrita são práticas sociais. Observa-se assim

uma perspectiva inicial mais descritiva do que prescritiva ou avaliativa.

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Ao explicitar o conceito de letramento para os professores, a autora recorre também a uma

interpretação histórica do conceito no cenário brasileiro, vendo o conceito de letramento

mais atrelado a um objeto de pesquisa: as práticas sociais.

Na metade da década de 80, no Brasil, vários pesquisadores que

trabalhavam com as práticas de uso da língua escrita em diversas

esferas da atividade sentiram falta de um conceito que se

referisse a esses aspectos sócio-históricos dos usos da escrita,

sem as conotações sobre o ensino e escola associadas à palavra

“alfabetização”. Emergiu, então, na literatura especializada, o

termo letramento para se referir a um conjunto de práticas de uso

da escrita que vinham modificando profundamente a sociedade,

mas amplo do que as práticas escolares de uso da escrita,

incluindo-as, porém. É importante salientar que, ao fazer ciência é

crucial nos referirmos aos conceitos científicos inequivocamente.

O novo assunto ou “objeto de pesquisa” – as práticas sociais de

uso da escrita (o letramento) – refletia as transformações nas

práticas letradas tanto dentro como fora da escola, lembrando que

aí estão incluídas as tecnologias de escrita. (Kleiman, 2005, pp. 21-

22, destaque nosso).

6. Algumas considerações finais

A análise do material para formação de professores mostra que a polêmica e as diferentes

concepções do conceito de letramento (ora tratado como competência de leitura e escrita

ora como um conjunto de práticas sociais) são praticamente minimizadas no discurso de

formação. Desta forma, o professor parece ser novamente colocado à margem das

discussões acadêmicas que priorizam as diversas concepções de letramento, incluindo

autores estrangeiros e sua apropriação pelos autores brasileiros. No entanto, esses

professores estão recebendo informações de diversas fontes e precisa compreender as

diferentes perspectivas de compreender o conceito no Brasil.

Outra questão que nos pareceu central é o espaço dedicado aos conceitos de “alfabetização”

e “letramento”. Em algumas obras – como Soares e Batista (2005) – o enfoque é para as

questões do processo de alfabetização, deixando o conceito de letramento em segundo

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plano tanto do ponto de vista das explicações, discussões e atividades, quanto do ponto de

vista conceitual. Além disso, as atividades e recursos didáticos são bem mais presentes e

aprofundados na explicação do conceito de alfabetização do que do conceito de

“letramento”. Em Kleiman (2005), ocorre o inverso: letramento é o termo central que

abarca o conceito de alfabetização, mas não há uma discussão específica sobre o processo

de alfabetização do ponto de vista da aquisição do sistema de escrita alfabético. As

indicações bibliográficas e atividades didáticas propostas – especialmente por Soares e

Batista (2005) e Alburquerque (2005) – apontam também para um pouco espaço para a

discussão e apropriação do conceito, o que nos faz refletir sobre os modos com que os

professores estarão se apropriando desses conceitos nos cursos de formação.

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Mendonça (Org.) Alfabetização e letramento: conceitos e relações. Belo Horizonte:

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KLEIMAN, A. É preciso ensinar o letramento? Não basta ensinar a ler e a escrever?

Campinas, SP: CEFIEL, 2005.

KLEIMAN, A; MARTINS, M. Formação de professores: a contribuição das instâncias

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DESAFIOS DO LETRAMENTO NA ALFABETIZAÇÃO

Cláudia Lemos Vóvio e Daniel Revah

Universidade Federal de São Paulo

RESUMO

Esta comunicação apresenta e discute uma experiência do curso de Pedagogia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp. Trata-se de uma iniciativa cujo objetivo é o de estabelecer aproximações entre a universidade e a escola pública e construir diálogos que articulem teoria e prática na formação inicial e no exercício profissional da docência. Nessa experiência, com início em 2008 e ainda em curso, já participaram docentes e graduandos da Unifesp, bem como alunos, professores e equipes gestoras da escola. O trabalho foi realizado em duas etapas. A primeira etapa, em análise nesse trabalho, compreendeu ações desenvolvidas em parceria no âmbito da unidade curricular Práticas Pedagógicas Programadas do curso de Pedagogia, durante o segundo semestre de 2008. E a segunda, em 2009, teve início com a implementação das atividades de Programa de Residência Pedagógica desse mesmo curso. Essa aproximação e parceria envolveu, portanto, a formação inicial dos graduandos do curso de Pedagogia, a formação contínua do corpo docente e equipe gestora da escola a partir das problemáticas indicadas por esse conjunto de profissionais e, de modo amplo, a melhoria da qualidade da educação pública. Algumas questões discutidas são as possibilidades de trabalho coletivo na escola, as formas de (re)organização dos espaços e tempos de aprendizagem, e ainda, as formas possíveis de encarar a necessidade de uma “formação continuada” dos professores em serviço. Além disso, abordam-se as mudanças visíveis nas representações do conjunto de professores envolvidos sobre as possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, bem como dos próprios docentes da Unifesp frente aos atuais desafios de melhoria da educação pública. Palavras-chave: Formação de professores; alfabetização; letramento; ensino e pesquisa

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Introdução

Esta comunicação apresenta alguns resultados da parceria estabelecida entre o curso de

Pedagogia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e a Escola Municipal Vicente

Ferreira Silveira (doravante Escola Municipal), no município de Guarulhos, no estado de

São Paulo. Trata-se de uma iniciativa cujo objetivo é o de estabelecer aproximações entre a

universidade e a escola pública e construir diálogos que articulem teoria e prática na

formação inicial e no exercício profissional da docência. Nessa experiência, com início em

2008 e ainda em curso, já participaram docentes e graduandos da Unifesp, bem como

alunos, professores e equipes gestoras da escola. O trabalho foi realizado em duas etapas. A

primeira compreendeu ações desenvolvidas em parceria no âmbito da unidade curricular

Práticas Pedagógicas Programadas do curso de Pedagogia, durante o segundo semestre de

2008. E a segunda, em 2009, teve início com a implementação das atividades de Programa

de Residência Pedagógica desse mesmo curso. Essa aproximação e parceria envolvem,

portanto, a formação inicial dos graduandos do curso de Pedagogia, a formação contínua do

corpo docente e equipe gestora da escola a partir das problemáticas indicadas por esse

conjunto de profissionais e, de modo amplo, a melhoria da qualidade da educação pública.

O presente texto sistematiza o processo e os principais resultados da primeira etapa e está

assim organizado: inicialmente, é apresentado o contexto no qual transcorreram as

atividades e se estabeleceu a parceria entre Unifesp e Escola Municipal; a seguir, é descrita

e discutida dessa etapa do trabalho realizado.

1. O contexto: a formação de professores e a escola pública

O novo campus de Ciências Humanas da Unifesp começou a funcionar no município de

Guarulhos em 2007, com quatro cursos (Ciências Sociais, Filosofia, História e Pedagogia) e

cerca de 40 docentes. O curso de Pedagogia iniciou suas atividades nesse mesmo ano, com

uma proposta curricular definida pelos primeiros docentes concursados, substituindo outra

provisória. O fato de se tratar de um curso novo possibilitou implementar um currículo que

contemplou, de um lado, as discussões acumuladas no debate acadêmico em relação à

formação inicial de professores e, de outro, as novas exigências feitas aos cursos de

Pedagogia na legislação específica. Ganhou relevância um tipo de formação que tomou

como base a docência, a pesquisa e a reflexão sobre a prática pedagógica, bem como a

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relação entre teoria e prática, tendo em vista, sobretudo, os variados âmbitos institucionais

onde a educação se efetiva. Deu-se particular importância à formação do pedagogo tendo

como escopo a escola pública, com a sua complexa rede de relações, envolvendo o local

onde se situa, a população que atende, a sua posição no sistema de ensino. A dimensão

prática e reflexiva dessa formação foi concretizada no curso de Pedagogia pelos novos

docentes de vários modos, especialmente por meio de duas unidades curriculares de caráter

prático: Práticas Pedagógicas Programadas e o Programa de Residência Pedagógica.

A unidade curricular Práticas Pedagógicas Programadas, que já constava na proposta

provisória, foi redefinida como um espaço de aprendizagem interdisciplinar construído na

perspectiva da articulação entre os estudos teóricos das diferentes disciplinas e as práticas

educacionais desenvolvidas em ambientes diferentes da escola ou, respeitando alguns

limites, na escola pública, pois os graduandos ainda não deveriam participar de atividades

em sala de aula. Essa unidade curricular é obrigatória somente nos quatro primeiros

semestres do curso, envolve até 60 horas e supõe um trabalho de preceptoria por parte dos

docentes do curso de Pedagogia, com grupos de no máximo 10 estudantes. Em cada

semestre, os estudantes escolhem a linha temática que desejam desenvolver a partir de um

leque de possibilidades oferecidas pelos docentes1. Cada linha supõe o estudo de

determinados temas e o desenvolvimento de habilidades e instrumentos necessários à

pesquisa e às ações que serão implementadas2.

O Programa de Residência Pedagógica3 substitui o clássico estágio dos cursos de

Pedagogia, ocorrendo nas escolas públicas localizadas no município de Guarulhos. Nessa

unidade curricular, os estudantes de Pedagogia permanecem, a cada semestre, por até 80

horas consecutivas nas dependências de uma escola pública, acompanhando o trabalho de

um professor, inclusive na hora-atividade, e o da equipe de gestão. Divididos em grupos

pequenos, os residentes são acompanhados e orientados durante todo o período da

1 Por exemplo: “Memória e história das escolas de Guarulhos”, “Qualidade da escola pública na perspectiva da população atendida”, “Ações de Educação inclusiva: a constituição dos sujeitos nas práticas sociais”, “Observatório Virtual da Educação em Guarulhos”, “Rede de ações educativas não escolares no bairro dos Pimentas” 2 Os estudantes, por exemplo, elaboram questionários para a realização de entrevistas, diários de campo, usam dados estatísticos, produzem relatórios de pesquisa, folders, portfólios, visitam escolas públicas, centros de juventude, presídios, hospitais e outros ambientes onde são desenvolvidas ações de caráter educativo ou que se relacionam de algum modo com elas, como é o caso das diretorias de ensino ou locais onde podem ser coletadas informações sobre o sistema de ensino. 3UNIFESP. Manual do Programa de Residência Pedagógica. Guarulhos : Unifesp, 2009. (2ª Versão).

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residência na escola-campo e também, antes disso, para planejar a entrada nesse ambiente,

e, posteriormente, para produzir relatórios, sistematizando essa experiência.

O trabalho desenvolvido pela Unifesp junto à Escola Municipal teve início, em 2008, no

âmbito da unidade curricular Práticas Pedagógicas Programadas, na linha “Práticas

escolares no ensino inicial da escrita”, sob a coordenação da Profa. Dra. Claudia Lemos

Vóvio, Prof. Dr. Daniel Revah e Prof. Dr. Thomas Massao Fairchild, e sua continuidade,

em 2009, tem se dado no âmbito do Programa de Residência Pedagógica no Ensino

Fundamental. Na primeira etapa foi articulada, à formação continuada dos docentes do

período matutino e intermediário da escola, a formação inicial de 15 graduandos, limitando

a participação destes à observação de reuniões de estudo e trabalho com os docentes da

escola, semanalmente. Nessas reuniões, foram planejadas as ações que seriam

desenvolvidas com as crianças da escola na área do ensino da língua escrita. Já a segunda

etapa abarcou a formação continuada do conjunto de professores da escola e a formação

inicial teórico-prática de 30 residentes. Professores, equipe gestora e residentes

participaram de reuniões, com periodicidade semanal, sob a coordenação de dois docentes

da Unifesp4, durante o horário diário de trabalho coletivo (Hora-Atividade), com o objetivo

de definir o conjunto de aprendizagens necessárias para a alfabetização. Nessas reuniões

foram discutidas as práticas pedagógicas desenvolvidas junto ao denominado ciclo de

alfabetização (três primeiros anos do ensino fundamental), sistematizando-se coletivamente

a progressão de aprendizagens adequadas a esse ciclo. Além disso, no período, os

residentes foram acompanhados na escola por docentes do curso de Pedagogia5,

participando do cotidiano das salas de aula e planejando e executando um conjunto de

atividades pedagógicas em colaboração com o professor-formador.6

2. O estabelecimento de uma parceria entre Escola e Universidade

Em junho de 2008, a diretora da Escola Municipal procurou o curso de Pedagogia da

Unifesp para consultar sobre a possibilidade de realizar uma palestra sobre o tema que mais

4 Profa. Dra. Cláudia Lemos Vóvio (responsável pelas unidades curriculares Alfabetização e Letramento, Fundamentos Teóricos e Práticos de Língua Portuguesa, Residência Pedagógica em Ensino Fundamental, Residência Pedagógica em Educação de Jovens e Adultos e Práticas Pedagógicas Programadas) e Prof. Dr. Daniel Revah (responsável pelas unidades curriculares de Filosofia da Educação, Residência Pedagógica em Ensino Fundamental e Práticas Pedagógicas Programadas). 5 São preceptores do Programa de Residência Pedagógica no Ensino Fundamental o Prof. Dr. Antonio Carlos Pinheiro, a Profa. Dra. Claudia Lemos Vóvio, o Prof. Dr. Daniel Revah, a Prof. Dr. Wagner Valente e a Profa. Dra. Vanessa Moretti.

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preocupava o conjunto da escola: a alfabetização. A problemática que se observava e para a

qual se buscavam soluções dizia respeito ao número de crianças que chegava ao fim desta

etapa da escolarização sem o domínio do sistema de escrita, com pouca autonomia para ler

com compreensão e para produzir textos segundo intenções comunicativas.

Dado o contexto atual de redefinição desta etapa da escolarização básica, tal problemática

não difere daquela observada em muitas outras escolas públicas brasileiras e refletida nos

resultados de avaliações do sistema de ensino, que focalizam a leitura e a compreensão de

textos e o domínio do sistema de escrita por alunos do ensino fundamental. Há mais de 25

anos o campo educacional, especificamente o processo de alfabetização, passa por um

processo de mudanças substantivas, tanto nas políticas públicas e sua implementação como

na organização de currículos e orientações para as práticas pedagógicas, que abrangem

desde questões relativas aos objetos de ensino privilegiados e às orientações de como

ensiná-los, até aspectos relacionados à organização do trabalho docente. Normatizações do

processo de ensino-aprendizagem7 e mudanças na organização da educação básica

emolduram esse contexto, o que, nas vozes de muitos professores, resulta numa situação de

incerteza que os desestabiliza frente ao novo que se coloca (Kleiman, 2001). Portanto, a

demanda feita ao corpo docente do curso de Pedagogia tem como pano de fundo esse

contexto de incertezas e a necessidade de “reinvenção” do processo de alfabetização que o

caracteriza (Soares, 2005; Mortatti, 2006).

Como resposta à demanda inicial, o docente8 destacado para atendê-la fez uma

contraproposta: ouvir as questões postas no cotidiano desses professores para, a partir

delas, delinear o trabalho a ser desenvolvido na escola. Esse processo teve início com uma

reunião, em maio de 2008, e um levantamento das demandas e expectativas do conjunto de

professores (na verdade, professoras) e equipe gestora. A partir desse levantamento, foi

criada a linha temática “Práticas escolares no ensino inicial da escrita”, na disciplina

Práticas Pedagógicas Programadas, possibilitando assim a matrícula de graduandos

interessados nessa temática e no acompanhamento do trabalho que seria desenvolvido na

Escola Municipal. Em colaboração com as professoras do turno matutino e intermediário,

6 Chama-se de professor-formador ao docente da escola que recebe o residente. 7 Por exemplo: Parâmetros Curriculares Nacionais, as Matrizes de competências que orientam a elaboração de itens da Prova Brasil, Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) que avalia e distribui os livros didáticos para as escolas públicas.

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foram propostos colaborativamente experimentos pedagógicos que viessem ao encontro das

questões e das necessidades formativas indicadas pelo conjunto da escola. Por parte dos

docentes da Pedagogia foi planejada uma ação formativa que contraria aquelas que se

pretendem prescritivas ou aquelas que colocam as práticas pedagógicas sob escrutínio de

pesquisadores, ou, ainda, aquelas que simplesmente avaliam a ação docente que ocorre na

escola (Ghanen e Vóvio, 2003). O intuito foi o de contribuir para a reflexão sobre as

questões cotidianas que "afligiam" essas professoras e para a busca de soluções coletivas,

apoiadas em saberes pedagógicos e aqueles advindos da experiência de todos os

participantes, incluindo a dos próprios docentes da Unifesp9.

A demanda inicial foi transformada coletivamente em uma ação de longo prazo. Os

encontros de formação tiveram lugar na escola, semanalmente, e ocorreram na Hora-

Atividade, durante o segundo semestre de 2008. Alguns encontros aglutinaram o conjunto

de docentes de cada período e, em outros, as professoras foram reagrupadas em função dos

experimentos conduzidos. Desses encontros participaram 15 graduandos.

3. A aproximação à escola e aos professores

Nos primeiros encontros, com a intenção de descobrir as questões que inquietavam as

professoras da escola, foram realizadas algumas reuniões, nas quais os docentes da Unifesp

apresentaram suas intenções, discutindo de que modo a Universidade faria parte do

cotidiano daquela escola e solicitando informações sobre o modo como cada uma

organizava sua rotina (o tempo dedicado a cada área e objeto de ensino, a distribuição das

áreas na semana e os tipos de atividade desenvolvidos). Percebeu-se logo que essa não seria

a forma pela qual seria apreendido o modo como os objetos de ensino relacionados à leitura

e à escrita estavam sendo abordados, pois poucas informações foram obtidas.

No entanto, várias professoras trouxeram nessas primeiras reuniões uma questão central: o

que fazer com as turmas heterogêneas? O termo “heterogêneo”, naquele contexto,

qualificava a variação observada quanto à autonomia dos alunos para ler e escrever e para

participar das atividades planejadas. Não se referia, portanto, à diversidade social, de

gênero, de renda, etária, também presentes nas turmas. Explorando coletivamente essa

questão, pode-se compreender a que problemática ela se relacionava. Já que a formação de

8 Professor Daniel Revah. 9 Dois deles atuaram na alfabetização, na formação inicial e contínua de professores de redes públicas e privadas e na elaboração de subsídios pedagógicos.

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turmas homogêneas tão almejadas no campo educacional não passa de uma situação

idealizada e dificilmente alcançada, uma nova pergunta foi elaborada por esse coletivo de

formação: "o que fazer com as crianças não alfabetizadas ou que, naquele momento do ano

letivo, ainda não estavam alfabetizadas?” Questão premente, sobretudo para as professoras

dos anos finais, cuja preocupação básica referia-se à compreensão do sistema alfabético por

parte dessas crianças, mas também ao desenvolvimento simultâneo de atividades

desafiadoras para as que já liam e escreviam com autonomia. Lidar com essa

heterogeneidade, que basicamente concernia a dois grupos de alunos, constituía o principal

problema a ser enfrentado.

Segundo o conjunto das professoras, esse era um problema para o qual não se contava com

condições de trabalho adequadas e, principalmente, não se sabia como solucionar. Esse

problema tornava-se mais explícito no cotidiano da escola à medida que todas as

professoras, independente da série em que se encontravam, a cada três meses, aplicavam

atividades de “sondagem10”, nas quais verificavam as hipóteses de escrita11 que as crianças

revelavam, por meio de um ditado de cinco palavras (selecionadas em função de um campo

semântico e da variação do número de sílabas) e de uma frase.

Observando os registros dessas sondagens duas constatações instigaram a todos: (i) a de

que as crianças que não dominavam o sistema de escrita alfabético, na maior parte dos

casos, eram classificadas em hipóteses que não correspondiam às escritas esboçadas por

elas nesses “testes”, prevalecendo a tendência de “subestimar” o que as crianças

demonstravam saber em suas produções, e (ii) a não utilização das informações registradas,

para estabelecer planos de ação e metas para a escola e para cada turma.

Nesse processo de aproximação, tomando por base esses registros, foram organizadas

informações sobre a condição de alfabetização de todos os alunos, por ano e turno. Esse

quadro objetivava tornar visíveis, de um lado, o número total de crianças alfabetizadas e

não alfabetizadas na escola e, de outro, o número de crianças não alfabetizadas em anos

finais do ensino fundamental, nas quais tal realidade não correspondia às expectativas

pedagógicas colocadas. Esse retrato objetivo do problema permitiu observar que cerca de

um terço das crianças que cursavam os anos finais ainda não sabiam ler e escrever

10 Seguindo orientações didáticas advindas da Secretária Municipal de Guarulhos e prescrições de cursos de formação continuada tais como Letra e Vida e Pró-Letramento, oferecidos à rede municipal. 11 A esse respeito, consultar Ferreiro, 2001.

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convencionalmente, o que, segundo as professoras, as impedia de participar das atividades

planejadas. E, ainda, constatou-se que para um número expressivo de crianças não se

abordavam aprendizagens voltadas ao desenvolvimento de capacidades necessárias para

torná-las alfabetizadas, por meio de metodologias e atividades específicas. Outros aspectos

também se colocavam no horizonte desse grupo. Algumas professoras expressavam o

desejo de reagrupar as crianças não alfabetizadas, delegando a outros a tarefa de alfabetizá-

las. E algumas colocavam sob suspeita quaisquer possibilidades de mudanças na rotina, na

elaboração de atividades ou de ordem metodológica devido ao momento em que se

encontravam no período letivo, meados do segundo semestre, e as condições de trabalho.

Com esses dados, levando-se em conta as restrições de tempo, de infra-estrutura e outras

condições materiais, os docentes da Unifesp formularam uma proposta diretamente voltada

para as crianças dos anos finais e da qual todas as professoras poderiam tomar parte. O

experimento consistia na reorganização dos alunos dos quarto e quinto anos a fim de

realizar dois tipos de oficinas: uma de jogos de alfabetização12, voltados à apropriação do

sistema de escrita alfabético; a outra de "contação de histórias", voltada à ampliação do

repertório de leituras literárias pelas crianças e à proficiência leitora. A nova dinâmica

implicaria reagrupar as crianças duas vezes por semana, enturmando alunos de anos

diferentes, e redistribuir as professoras, que passariam a trabalhar com os novos grupos,

demandando uma etapa de planejamento e a garantia de condições materiais necessárias.

4. O experimento: novos grupos e atividades para aprender a ler e a escrever

Os critérios estabelecidos para organizar os novos agrupamentos era o indicado pelas

professoras: as crianças não alfabetizadas frequentariam as oficinas de jogos de

alfabetização e as crianças alfabetizadas frequentariam as oficinas de contação de histórias.

Em cada turno, uma professora e a coordenadora pedagógica ou a coordenadora de ciclo

ficaram responsáveis pela oficina de jogos de alfabetização e duas professoras ficaram

responsáveis pelas oficinas de “contação de história”. A periodicidade das oficinas foi

definida coletivamente, levando-se em conta as atividades e projetos nos quais a escola

estava envolvida, os espaços disponíveis e os tempos pedagógicos e de alimentação. Todos

os problemas operacionais foram solucionados coletivamente, com apoio da equipe gestora.

12 Baseadas nas proposições de Leal, Albuquerque e Leite, 2005; e Batista et. al. 2005

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Durante oito semanas, duas vezes por semana, as crianças deixavam sua sala de aula e

dirigiam-se a outras, reorganizadas em seu espaço, mobiliários e materiais. Todos estavam

desafiados diante dos novos agrupamentos, novas professoras e novas atividades, o que,

segundo as professoras, diferia muito do cotidiano experimentado até então. À medida que

todos se preparavam para experimentar a alternativa pedagógica das oficinas, produzia-se

uma nova compreensão sobre o processo de alfabetização, os objetos de ensino a serem

focalizados e como são ensinados, bem como sobre a aprendizagem da leitura. Além disso,

planejar e estabelecer uma rotina a fim de receber as crianças e mobilizarem-nas para as

atividades previstas emergiam como necessidades intrínsecas a essa nova organização.

A oficina de jogos de alfabetização possuía um caráter lúdico, sendo todas as atividades

realizadas sem o mobiliário da sala e quaisquer materiais escolares convencionais. Os jogos

foram selecionados a fim de promover a reflexão sobre os princípios reguladores do

sistema de escrita alfabético e cada oficina seguia uma dinâmica que conjugava atividades

coletivas e em pequenos grupos e a intervenção constante de duas docentes nas propostas.

Uma roda de conversa dava início às atividades, com a descrição do que seria feito naquele

encontro. A seguir, um desafio coletivo era proposto, envolvendo várias capacidades13

relacionadas à alfabetização. De volta à roda, as professoras apresentavam os jogos que

envolviam o reconhecimento de nomes, letras, fonemas e sílabas, atividades de análise de

fonológica, de formação e decomposição de palavras, identificação de palavras, entre

outros, e organizavam a turma em pequenos grupos. Também, em vários momentos, eram

compartilhadas as estratégias usadas pelas crianças para ganhar um jogo ou para solucionar

situações-problema. Ao final, coletivamente, todos comentavam sobre suas aprendizagens.

A oficina de “contação de história”, por sua vez, trazia como desafio às crianças do quarto e

quinto anos: a leitura em voz alta ou a apresentação de histórias retiradas de livros de

literatura infantil para os alunos do Estágio II (com cinco anos) e do Ano Inicial (primeiro

ano do ensino fundamental). O acervo foi previamente selecionado pelo conjunto de

professoras e docentes da Unifesp. Na primeira oficina, foram explicados os objetivos e o

modo como transcorreria esse trabalho. Nas cinco turmas, formaram-se trios, cada um deles

deveria selecionar um livro considerado interessante para as crianças pequenas da escola.

Seguiu-se uma sequência de atividades distribuídas pelas oito semanas, na qual todos se

13 Sobre as capacidades envolvidas na alfabetização consultar Batista et. al., 2005.

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apropriaram das histórias, planejaram a apresentação, produziram fantasias, cenários e

adereços, ensaiaram a contação, produziram coletivamente um convite dirigido às crianças

pequenas. Todo o processo gerou grande expectativa para esses agrupamentos, bem como

ampliou o repertório de práticas de leitura, mobilizou-os no sentido de melhorarem seu

desempenho na leitura em voz alta.

5. Os encontros de formação

Com a proposição das oficinas, os encontros de formação transformaram-se em espaço de

planejamento14, de discussão sobre a nova rotina instalada, de reflexão sobre as práticas

empreendidas, de pesquisa e estudo15, de estabelecimento de mudanças em planos de

trabalho em função de imprevistos, de trocas de experiência e de busca de soluções

coletivas para problemas enfrentados no cotidiano das oficinas. Planejar as oficinas,

registrar seu andamento e apresentar os resultados obtidos ao longo do desenvolvimento

deste projeto tornaram-se uma necessidade e não uma prescrição diante do fazer docente.

A dinâmica estabelecida reagrupou as professoras. As professoras dos anos iniciais e as

responsáveis pelas oficinas de jogos trabalharam juntas nos encontros com uma docente da

Unifesp, enquanto as professoras dos anos finais do ensino fundamental responsáveis pela

oficina de contação de histórias passaram a trabalhar com os outros dois docentes da

Unifesp. Alguns encontros foram dedicados a reuniões coletivas, nas quais todas as

professoras de um mesmo turno compartilharam o processo em curso.

6. Avaliação da parceria: diante do inesperado

As práticas pedagógicas relacionadas à apropriação do sistema de escrita e à aprendizagem

da leitura foram alteradas em função de experimentos apoiados em conhecimentos teóricos

e em alternativas criadas para problemas locais (daquela escola e de grupos específicos de

alunos) identificados e interpretados pelas professoras. Nesse processo, a alfabetização foi

abordada de maneira indissociável da ampliação do repertório de práticas de letramento dos

alunos, de modo a considerar as várias dimensões envolvidas nos usos sociais da escrita e

sem perder de vista o seu sentido para as crianças. Não se tratou de um processo de

formação produzido para os docentes ou que visava verificar/avaliar o fazer pedagógico,

14 Foram oferecidos modelos de planos de ensino para ambas as oficinas, elaborados pelos docentes da Unifesp e adaptados e implementados por elas de acordo com as expectativas e realidades locais.

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mas de um processo formativo construído com a escola e a universidade. Durante a

preparação, concretização e avaliação desses experimentos, todos, professoras da Escola

Municipal e do curso de Pedagogia, da Unifesp, foram desafiados ao diálogo e à reflexão

contínua sobre o próprio fazer, incentivados à proposição criativa a fim de adaptar

propostas ou alterá-las em função do inesperado ou do contexto dos novos agrupamentos.

“Eu não esperava” foi um enunciado comum a muitas professoras durante as reuniões de

desenvolvimento do projeto e também da avaliação final. Ela denota uma significativa

mudança de lentes como que se observavam o processo de aprendizagem. Não se esperava

tamanho envolvimento das crianças nas atividades propostas, nem tampouco os avanços de

alguns alunos que se tornaram particularmente visíveis. Por vezes, surgiram novos

posicionamentos sobre alunos, daqueles que quase nada se esperava, mas que emergiam na

nova dinâmica instalada, fazendo com todos repensassem suas visões sobre o processo de

aprendizagem em curso. Novos discursos sobre o fazer pedagógico e sobre as crianças,

novos olhares para a ação educativa e novas formas de se perceberem e de perceber uns aos

outros foram produzidas.

Nesse processo modificaram-se também posturas das professoras e suas representações

sobre as possibilidades de aprendizagem das crianças. Tais mudanças foram produzidas à

medida que vivenciavam novas formas de ensinar, de organizar rotinas e os espaços da sala

de aula e da escola, que vislumbravam novos objetos de ensino e que obtinham respostas

positivas das crianças a esses investimentos, tidas como “inesperadas”, para a maior parte

delas. As professoras tornaram-se agentes capazes de organizar de maneira intencional e

criativa o processo de aprendizagem, responsáveis pelo desenvolvimento de um projeto que

envolveu toda a escola (Kleiman, 2006).

Para os docentes da Unifesp esse enunciado, “não esperava”, também adquiriu uma

dimensão nova, especialmente na sistematização desse processo. Tanto seu

desenvolvimento como os resultados foram além das expectativas postas, ainda mais

considerando que a demanda da escola poderia ter se esgotado num evento pontual. Nas

representações dos docentes também incidem os discursos que pouco valorizam as

possibilidades e o próprio trabalho docente na escola pública, principalmente em condições

15 Além de variado conjunto de livros de literatura infanto-juvenil, as professoras entraram em contato com jogos de regras variados, estudaram sobre o objeto de ensino em questão, o sistema de escrita alfabético (Faraco, 2000) e sobre a alternativa de jogos (Leal, Albuquerque e Leite, 2005)

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adversas como as do caso em tela (a ação teve início nos meses finais do período letivo,

outubro a dezembro, embora formalmente apoiados por toda a equipe docente, ficou em

evidencia o envolvimento parcial por parte de algumas professoras, por exemplo). No

entanto, houve mudanças ao longo de todo percurso. Nesse sentido, coube à direção da

escola um papel importante, ao apoiar essas iniciativas, abrir espaços para discussão,

afastando-se quando necessário e insistindo em desenvolver o projeto, mesmo quando

surgiam falas colocando sob suspeita os possíveis ganhos dessa ação. A direção, as

professoras, os docentes apostaram no desenvolvimento do projeto em condições e tempo

pouco favoráveis.

O trabalho ocorreu como descrito porque não resultou de uma imposição da equipe gestora

nem de assessores externos. Não foi um processo isento de tensões, mas elas foram

trabalhadas e permitiram avançar na efetivação da proposta. O mais importante, porém,

deve ser situado nas próprias crianças e na posição das professoras diante delas. Mesmo as

que tinham dúvidas ou suspeitavam das possibilidades abertas pelo experimento, foram

desafiadas a colocarem em jogo suas visões e representações. Também os docentes da

Unifesp acreditaram no potencial das professoras e nas possibilidades de um trabalho

conjunto, do qual inclusive participaram, acompanhando oficinas. Acreditar nesse potencial

(das crianças, das professoras e do trabalho conjunto), avivado com propostas desafiadoras

para todos (alunos, docentes da escola e da Unifesp, equipe gestora), foi talvez o resultado

mais importante desse trabalho. Ou pelo menos, é o que a expressão “eu não esperava”

deixou em evidencia.

Em relação aos estudantes da Pedagogia, além da oportunidade de entrar em contato com

outras possibilidades de atuação do pedagogo na escola, aproximaram-se das dificuldades

próprias do contexto escolar, participando como observadores do planejamento de ações

pedagógicas na área do ensino da língua.

Referências Bibliográficas

BATISTA, A. A. G. (Org.) Capacidades da alfabetização. Belo Horizonte :

Ceale/FaE/UFMG, 2005.

FARACO, C. A. Escrita e alfabetização. São Paulo : Contexto, 2000.

FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo : Cortez, 1985.

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KLEIMAN, A. Letramento e formação do professor: quais as práticas e exigências no local

de trabalho? In:______. A formação do professor: perspectivas da Lingüística Aplicada.

Campinas : Mercado de Letras, 2001.

________. Processos identitários na formação profissional: o professor como agente de

letramento. In: CORRÊA, M. E BOCH, F. (Orgs.). Ensino de Língua: Letramento e

Representações. Campinas : Mercado de Letras, 2006.

LEAL, T. F.; ALBUQUERQUE, E. B. C. de, LEITE, T. M. R. Jogos: alternativas didáticas

para brincar alfabetizando (ou alfabetizar brincando?) In: MORAIS, A. G.;

ALBUQUERQUE, E. B. C de; LEAL, T. F. (Orgs.) Alfabetização: apropriação do sistema

de escrita alfabético. Belo Horizonte : Autêntica, 2005, p. 111-123.

MORTATTI, M. R. L. História dos métodos de alfabetização no Brasil. Conferência

proferida durante o Seminário "Alfabetização e letramento em debate", promovido pelo

Departamento de Políticas de Educação Infantil e Ensino Fundamental da Secretaria de

Educação Básica do ,Ministério da Educação, realizado em Brasília, em 27/04/2006.

SOARES, M. B. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de

Educação. no. 24. Jan/Fev/Mar/Abr/, 2004.

UNIFESP. Manual do Programa de Residência Pedagógica. Guarulhos : Unifesp, 2009.

(2ª Versão)

VÓVIO, C. L. ; GHANEM, E. . La Formación de Educadores en Educación Básica.

Decisio (CREFAL), v. 5, p. 40-43, 2003.

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FORMAÇÃO PARA A DOCÊNCIA E A PESQUISA

EM CONTEXTOS DE HETEROGENEIDADE E PRESCRIÇÃO

Émerson de Pietri

(FE/USP)

RESUMO Tematizam-se, neste trabalho, as relações entre o professor em formação inicial e os saberes e práticas que encontra em salas de aula de alfabetização onde realiza seu estágio supervisionado. O objetivo é o de observar os modos como o professor em formação inicial elabora suas experiências no momento de textualizá-las, ao produzir seu relatório de estágio, buscando conferir coerência ao que vivencia em contexto caracterizado pela heterogeneidade e por mecanismos de controle dos sentidos. No contexto em que atuam, os professores em formação inicial desenvolvem atividades de ensino e de pesquisa, o que os posiciona num lugar diferenciado, possibilitando não apenas se apropriar de práticas e saberes que constituiriam sua formação para a docência, mas também se distanciar dos fatos que observam e produzem, para considerá-los analiticamente. A análise dos textos evidencia a relação entre pesquisa de base etnográfica, participante, e os movimentos do professor em formação inicial em suas tentativas de compreender os saberes e práticas existentes em sala de aula como função das condições de sua produção. São encontrados, no trabalho interpretativo do professor em formação inicial, fatores internos e externos à escola, o que inclui a formação do professor-regente, as condições materiais de trabalho, e os aspectos organizacionais, a que se relacionam as ofertas e demandas das instâncias oficiais responsáveis pelo ensino. São caracterizados três modos de diálogo entre a voz do professor em formação inicial e a do professor-regente: aquele em que a voz do pesquisador e do professor regente se confundem; outro, em que se percebe a contraposição de vozes no próprio discurso do professor em formação; e, por fim, aquele em que o professor em formação inicial utiliza de estratégias metaenunciativas na elaboração de seu texto, considerando as vozes presentes em sala de aula em função das condições de produção específicas do contexto analisado.

Palavras-chave: Formação de professores; alfabetização; ensino e pesquisa

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Introdução

A formação inicial do professor de língua portuguesa tem como um de seus componentes a

vivência em ambientes de ensino, em instituições escolares, com o objetivo de prepará-lo

para as situações profissionais que desenvolverá quando licenciado.

Consideradas as relações da Universidade com a escola de ensino básico, o estágio

supervisionado pode representar um momento importante para que ensino, pesquisa e

extensão se atualizem nas próprias atividades dos alunos estagiários: a formação do

professor, sua preparação para a pesquisa, e a possibilidade de promover a circulação de

conhecimentos desenvolvidos no interior da Universidade oferecem a esse momento da

formação profissional grande potencial para a crítica, a experimentação e o aprendizado.

Como atividade de ensino, pesquisa e extensão, o estágio supervisionado se distancia da

mera observação das práticas de sala de aula, que configurariam modelos de que se

apropriar, para se aproximar de um processo em que assimilação e distensão, reprodução e

experimentação, apropriação e crítica podem se desenvolver em sua complexidade.

Neste trabalho são observadas experiências de estágio supervisionado segundo proposta de

que o professor em formação realize suas atividades, na escola, assumindo também a

posição de pesquisador. Assim, em sua experiência para a formação docente, o professor

em formação desenvolve um processo de pesquisa qualitativa, participante. Os materiais

coletados em atividades de observação, de cooperação junto ao professor-regente, ou de

regência, constituem fonte para a produção de dados, que, analisados, apresentam-se, com

suas conclusões, no relatório de estágio.

O objetivo do presente trabalho é o de investigar os resultados obtidos com as atividades de

estágio supervisionado, considerando-se que sua realização se faz em contexto

caracterizado pela prescrição, no ambiente escolar, dadas as relações instituição

escolar/aluno estagiário, e pela heterogeneidade, no que se refere aos movimentos dos

sujeitos no tempo e no espaço em que se desenvolvem as atividades de ensino em escolas

públicas do ensino fundamental I.

O material de análise é composto de relatórios de estágio, elaborados mensalmente pelos

alunos participantes de um projeto que insere alunos-pesquisadores em salas de aula de

alfabetização de escolas da rede municipal de São Paulo. A hipótese com que se trabalha é

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a de que o relatório, em seu processo de elaboração, consiste num momento em que o

professor em formação procura conferir coerência às experiências que vivenciou em suas

atividades de estágio.

2. Fundamentação teórica e metodológica

No presente trabalho, são observadas as relações dos alunos-pesquisadores, professores em

formação inicial, com o contexto em que atuam, considerando-se o objetivo das atividades

em que estão envolvidos: produzir conhecimento a partir de suas experiências em salas de

aula de alfabetização, em suas interações com os professores-regentes, no interior de um

programa, elaborado pela Secretaria Municipal de Educação da cidade de São Paulo, que

pressupõe a fundamentação das ações de ensino segundo uma determinada perspectiva

teórica, de inspiração construtivista. Pretende-se, portanto, observar de que modo a

produção do professor em formação inicial se evidencia nos textos produzidos enquanto

aluno-pesquisador, em meio a condições de ensino caracterizadas pelas tentativas de

controle discursivo, que se fazem pela implementação de programa de alfabetização

pautado por uma determinada tendência teórica, e pela circulação de materiais didáticos

distribuídos pelas instâncias oficiais responsáveis pelo referido programa.

Associam-se, enquanto referenciais para a consideração de tal contexto complexo, as

considerações em torno da constituição das disciplinas escolares e sua inserção na cultura

escolar, à questão da etnografia e da consideração das práticas de letramento em função dos

contextos de sua produção. Assim, são tematizadas as tentativas de implementação de

saberes e práticas de ensino pelas instâncias oficiais responsáveis pela Educação e os

modos de apropriação de tal programa em contexto de ensino. Concomitantemente, são

consideradas as elaborações realizadas pelo professor em formação inicial ao desenvolver

pesquisa de caráter etnográfico, participante, observando-se os modos como se posiciona

face às práticas desenvolvidas pelos sujeitos nas salas de alfabetização.

Parte-se do princípio de que os saberes e práticas escolares não são decorrentes de

transposição didática de conhecimentos produzidos em ciências de referência, mas que a

escola se constitui num lugar em que saberes e práticas específicos se produzem (Chervel,

1990). Nesse sentido, ainda que propostas curriculares se materializem em documentos de

referência com base nos quais se promovem estratégias para o controle dos sentidos,

considera-se que, em contexto escolar, tais propostas se desenvolvam de modos diversos,

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em razão de diferentes apropriações. Segundo essa perspectiva epistemológica, ampliam-se

as possibilidades de fontes de pesquisa, produzindo-se dados não apenas a partir de

documentos de referência, mas também de registros em que se reconheçam as vozes dos

sujeitos que atuam em contexto escolar (c.f.: Goodson, 1995).

Realizadas segundo princípios da pesquisa qualitativa participante, de caráter etnográfico,

as atividades em sala de aula demandam do aluno-pesquisador estratégias que lhe

possibilitem estabelecer o diálogo entre as diversas vozes presentes no contexto em que

atua, de modo a que tal diálogo possa se caracterizar pelo contraponto, distanciando-se de

posicionamento que implique em julgamentos relacionados a um suposto progresso social e

a maior desenvolvimento das capacidades cognitivas associados ao domínio da tecnologia

da escrita (Kleiman, 1995).

Em lugar dessa perspectiva, a que Street (2006) denomina “modelo autônomo de

letramento”, trabalha-se segundo perspectiva a que o mesmo autor denomina “modelo

ideológico”, em que se considera que os eventos e as práticas de letramento são

socialmente situadas, colocando em discussão as relações entre os letramentos locais e os

“distantes”, e os modos como essas relações se constroem. Assim, numa perspectiva

etnográfica, ao realizar suas atividades, o professor-pesquisador precisa levar em

consideração os usos de escrita em função dos eventos e práticas de letramento situadas

social, cultural e historicamente, em que se incluem não apenas aquelas encontradas na

escola em que atua, mas também aquelas produzidas externamente a ela, como na

Universidade ou nas instâncias oficiais responsáveis pelo ensino, por exemplo.

3. Análise dos dados

Os dados analisados no presente trabalho foram produzidos a partir de relatórios elaborados

por alunos de Letras e Pedagogia que participam em salas de aula de alfabetização como

alunos-pesquisadores, num convênio entre Universidade e Secretaria Municipal de

Educação da cidade de São Paulo: a proposta é que eles conheçam, compreendam, analisem

e interpretem a realidade de que participam, tomada como objeto de investigação, a fim de

atuarem nesta realidade com ações que promovam alterações positivas, considerando-se os

objetivos pedagógicos propostos.

Nesse sentido, considera-se que o trabalho em Ensino de Língua Portuguesa se caracteriza

não apenas pela observação e compreensão de uma realidade de ensino/aprendizagem, e a

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produção de conhecimento advinda dessas atividades, mas, principalmente, pela necessária

organização de intervenções, no sentido de atuar colaborativamente, sobre os fenômenos

observados. Procura-se, a partir de diagnósticos produzidos, oferecer alternativas de

trabalho que tornem as situações de ensino/aprendizagem satisfatórias.

Trata-se, portanto, de considerar que as atividades de estágio podem proporcionar a alunos

em formação inicial o envolvimento em atividades de pesquisa-ação. A formação do

professor e do pesquisador, na universidade, em sua fase inicial, pode assim se fazer

integradamente, possibilitando que o futuro professor se coloque como pesquisador e

assuma distanciamento que lhe permita analisar o próprio contexto em que atua.

No contexto em que atuam, professores-regentes e alunos-pesquisadores são orientados,

pelas instâncias oficiais responsáveis pelo ensino, a pautarem suas ações em sala de aula

pela concepção de aprendizagem da escrita que fundamenta as políticas públicas para a

alfabetização no município: no caso, as propostas baseadas em idéias construtivistas

apropriadas de trabalhos de Emilia Ferreiro e colaboradores.

Os materiais elaborados e distribuídos, pela Secretaria Municipal de Educação, para

embasar o trabalho do professor-regente em sala de aula, se organizam em torno de

propostas associadas a concepções de caráter construtivista e prevêem um conjunto de

atividades a ser realizado ao longo do ano letivo, dentre as quais se encontram os momentos

de diagnóstico das fases em que se encontram os alunos em processo de alfabetização.

4.1. A voz do professor-regente como recurso para a construção da referência

Nos relatos observados, a professora-regente, personagem principal, ao ser construída

discursivamente em função do contraponto de vozes que constitui o texto produzido pelo

aluno-pesquisador, se apresenta como o elemento de referência para o professor em

formação, condensando em sua figura aspectos heterogêneos, por vezes contraditórios, que

compõem o contexto da sala de aula.

Em seu trabalho de compreensão da realidade em que atua, o aluno-pesquisador, ao tentar

conferir coerência também às relações que percebe se constituírem entre o professor-

regente e as bases teóricas que sustentam o programa oficial de alfabetização em que estão

inseridos, concentra na figura do professor as evidências sobre momentos de tensão entre as

propostas de ensino de inspiração construtivista que fundamentam o programa de

alfabetização de que participam, e aquelas consideradas tradicionais:

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Muitas das atividades são trazidas pela professora da sua própria casa, ou seja, ela

as prepara nos finais de semana segundo o cronograma de toda a semana. O livro

didático destinado aos alunos apresenta pouco conteúdo, às vezes lições repetidas,

então a professora utiliza o que há de relevante nos livros, adaptando as atividades

ao seu programa semanal.

Essa carência de material de apoio só não atinge o andamento do aprendizado

porque a professora prepara muitas atividades de recorte e cole de textos e palavras,

tudo por sua conta (a folha de papel, a impressão). Biblioteca também não há, nem

sala de leitura. O espaço existe, mas faltam livros e professor, assim também ocorre

com a informática, pois também não há professor e no início do ano as máquinas

foram furtadas.

Na voz do aluno-pesquisador se encontra a voz da professora-regente, indiciando o diálogo

desenvolvido entre ambos e que constitui a experiência que o autor apresenta elaborada

discursivamente no relatório: em “muitas das atividades são trazidas pela professora da sua

própria casa, ou seja, ela as prepara nos finais de semana segundo o cronograma de toda a

semana”, na construção em terceira pessoa encontram-se as vozes do aluno-pesquisador,

mas também da professora-regente; a própria acessibilidade à informação evidencia a

existência de um sujeito num plano anterior da cena, que ganha voz na locução do autor do

relatório. A assonância permanece no restante do parágrafo citado e no seguinte, não sendo

possível distinguir de quem são os dizeres ali presentes, se do aluno-pesquisador, se do

professor-regente.

Temos, assim, que a relação do aluno-pesquisador com o contexto em que atua se faz

mediada pela voz do professor-regente, que garante, para o primeiro, o acesso à realidade

em que este participa. Não há contraposição de vozes, mas assonância, em que não é

possível dissociar o que é enunciado por um ou por outro dos participantes da interação.

4.2. As possibilidades de distanciamento e a etnografia

O espaço que se constrói ao organizar-se o contraponto entre as vozes com que dialoga o

aluno-pesquisador possibilita a produção de relatos interessantes, do ponto de vista

etnográfico, quanto ao processo de ensino e de aprendizagem:

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“Outro caso interessante é um menino de 11anos que chegou da Bahia este ano e

nunca freqüentou escola. Está sendo alfabetizado agora. O processo e a conduta da

professora no ensino com ele é igual aos outros, uma vez que ele também está

iniciando do zero. O que observei é que embora ele também esteja sendo

alfabetizado como os outros, ele possui algumas habilidades e competências que o

ajudam no processo de alfabetização, como por exemplo a melhor noção de espaço,

pois desenha, pinta e escreve utilizando corretamente os contornos e delimitações.

Com a matemática, ele já tem experiência com dinheiro, por isso, vai bem nos

cálculos. O que achei importante foi a forma como a professora o recebeu e o trata,

pois ela o recebeu como um pré-adolescente, respeita as diferenças e o ajuda a não

ficar deslocado, incentivando com palavras de carinho e elogio. Não percebo que

sua idade e avanço o inibem no processo de aprendizagem ou relacionamento com a

turma.”

Algumas expressões usadas na construção textual evidenciam o trabalho discursivo do

autor do texto ao focalizar, na cena apresentada, os elementos que considera os mais

relevantes: nas construções “o que observei é que embora ele também esteja sendo

alfabetizado como os outros”, e “o que achei interessante foi a forma como a professora o

recebeu e o trata”, encontra-se referência a outros pontos de vista, sobre os eventos

observados, a que responde o aluno-pesquisador ao construir seu texto. O uso das

construções “o que observei é que” e “o que achei interessante foi”, ao focalizar o que o

escritor deseja colocar em relevo, produz em segundo plano o cenário em que se

desenvolvem os diálogos de que participa o próprio autor.

As duas construções acima destacadas dialogam entre si, o que se percebe ao considerar-se

o uso do “embora” na primeira delas (“O que observei é que embora ele também esteja

sendo alfabetizado como os outros, ele possui algumas habilidades e competências que o

ajudam no processo de alfabetização”): o uso do embora parece indicar um

posicionamento, por parte do autor do texto, de que, por ter outras habilidades que não tem

uma criança de sete anos, talvez o processo de alfabetização do aluno em questão devesse

se fazer de outro modo, respeitadas as especificidades do alfabetizando. A este enunciado,

contrapõe-se o que traz a afirmação sobre o que foi considerado interessante, pelo aluno-

pesquisador, quanto à forma como procedeu a professora em relação ao aluno.

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De tal contraponto, um conjunto de outras vozes, tomadas em segundo plano, se faz

perceber: a que expressa a já referida expectativa de que crianças de idades diferentes

aprendem de modos diferentes, tendo o ensino de considerar as competências e habilidades

que possuem em sua fase de desenvolvimento, dialoga com a que afirma o processo de

alfabetização se fazer de modo semelhante para sujeitos diferentes (o que, no texto, se

encontra expresso na passagem: “O processo e a conduta da professora no ensino com ele é

igual aos outros, uma vez que ele também está iniciando do zero”). Ao afirmar não

perceber dificuldades do aluno observado em sua convivência com os demais colegas da

turma, o autor do texto responde também ao que se afirmaria sobre as dificuldades de

convivência de diferentes num determinado contexto.

4.3. Sobre a necessidade de formação docente

Um dos elementos que chama a atenção nos relatórios analisados se refere ao fato de ser

tematizada a própria questão da formação docente como base para o trabalho em sala de

aula. O aluno-pesquisador aponta a relevância da elaboração teórica para a atuação em sala

de aula como professor e como pesquisador:

“Perceber que para a realização da pesquisa, o embasamento teórico e o

desenvolvimento profissional são critérios muito mais confiáveis do que a opinião

pessoal e muitas vezes emocional, que baseia nosso olhar inicial, permite analisar

aspectos que poderiam ser relevados ou até não notados durante um estágio de curta

duração.”

No mesmo sentido, a falta de formação é associada aos problemas comumente encontrados

nas salas de aula:

“O despreparo do professor é outro elemento que se destaca em situações em que o

descontrole passa a ser realidade dentro de sala de aula. Não querendo assim

desmerecer o papel do professor dentro de sala de aula, nem deixar de destacar que

alguns alunos realmente provocam situações que somente um professor com

controle emocional extremado teria possibilidade de manter-se calmo.”

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Parece que um movimento importante do autor das passagens acima, ao produzir seu texto

(e, com isso, elaborar sua experiência em sala de aula), está na possibilidade de pensar

sobre a situação em que se encontra, que é multifacetada, e relacioná-la com a necessidade

de formação teórica e metodológica, que, agenciada, ajudaria a contemplar essa

multiplicidade. Talvez seja possível perceber na elaboração textual em análise uma

tentativa de distanciamento que se faz contrapondo à realidade da sala de aula uma

determinada perspectiva discursiva que considera a formação do professor um elemento

decisivo para a condução do pedagógico.

Nota-se que esse posicionamento se realiza segundo um processo de avaliação

metaenunciativa (Koch, 2004), que se faz de modo a tomar como objeto das considerações

a própria elaboração discursiva que é feita a respeito do professor: a referência ao

despreparo do professor é retomada na seqüência do texto de modo a ser avaliada enquanto

ato de enunciação. Utilizando-se desses recursos para a construção da referência, o autor

estrategicamente pode se referir a aspectos não especificamente do processo de ensino e

aprendizagem de língua portuguesa, mas de ordem didática e metodológica: o que pode se

configurar em primeiro plano, assim, é a situação de descontrole do professor, associado a

aspectos emocionais. É o que se nota também no relato a seguir:

“O grito como instrumento utilizado frequentemente pelo professor, que

inicialmente provocava repulsa pelo grau de stress provocado, pode agora ser

analisado por outro olhar. A realização de uma aula sem planejamento adequado,

sem uma seqüência didática e até sem material de apoio, provocam constantemente

situações de descontrole tanto por parte do professor como por parte dos alunos.”

O “outro olhar” referido na passagem acima parece indicar a mudança de posição do aluno-

pesquisador, em sua elaboração, no sentido da despersonalização do processo que observa,

deixando de atribuir o descontrole emocional a características pessoais do professor

observado, e associá-lo a fatores encontrados nas condições em que o professor-regente

desenvolve seu trabalho, condições que envolvem também sua formação.

A metaenunciação ofereceria, assim, a possibilidade do distanciamento, e, com ele, a de se

assumir, numa perspectiva etnográfica, maior relativização quanto aos fatores considerados,

isto é: a possibilidade de não julgar o indivíduo professor em sua atitude, mas de

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compreender a situação do sujeito no contexto em que se encontra. Destaca-se, nesse

movimento, o deslocamento que realiza o aluno-pesquisador, quando, no texto acima

apresentado, responde a um suposto desmerecimento do professor-regente com quem

atuava: o uso das negações (“Não querendo assim desmerecer” e “nem deixar de destacar”)

evidencia a construção de um espaço para o próprio pesquisador, contrapondo em seu

discurso duas vozes a que responde em sua elaboração: de um lado, responde a uma

concepção de que observar e analisar o trabalho do professor, assumindo uma postura

crítica, promove a desvalorização do observado por parte do aluno observador; de outro,

responde à necessidade de ser criterioso em seu trabalho de investigação, mostrando em seu

relato fatos que presenciou em sua vivência em sala de aula.

5. Considerações finais

Caracterizar a produção do professor pode demonstrar a potencialidade criativa que

assumiria o ensino de língua materna que não mais pré-concebesse a realidade a se

trabalhar, mas que trabalhasse de acordo com a realidade que se apresenta. Essa postura

concebe o professor como pesquisador e produtor de conhecimentos, pois faz da sala de

aula uma realidade dispersa e fragmentária pedindo para ser conhecida e organizada: rica

em diferenças de pontos de vista, em distâncias a serem percorridas e na reunião da

heterogeneidade, pode representar o fim do ensino homogeneizante, do trabalho

pedagógico submisso às práticas autoritárias.

A análise dos dados mostrou diferentes modos de relação do aluno-pesquisador com o

professor-regente, quando este é tomado como referência para considerar as experiências

vivenciadas em sala de aula. Etnograficamente, os modos como a relação entre os agentes

se constitui implica em posicionamentos diferentes para a observação do contexto de

ensino e pesquisa, e, em conseqüência, em possibilidades distintas de conferir coerência à

elaboração que se faz do que é vivenciado na escola.

A presença e atuação no espaço de sala de aula têm se mostrado requisitos para a formação

inicial e para a formação continuada. Parece ser assim quando se considera a necessidade

de lidar com os inúmeros aspectos que compõem o contexto de ensino, que solicitam muito

mais elementos que a apropriação de um conjunto de saberes teóricos ou metodológicos.

Os relatos analisados acima evidenciam essa necessidade. O contato com o cotidiano da

sala de aula se constrói discursivamente pela interação de sujeitos situados socialmente.

ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010

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Compreender os modos de interação pode contribuir para que o professor tenha acesso a

elementos do ensino e da aprendizagem que são específicos da realidade em que atua.

A formação inicial e continuada mais satisfatoriamente se realiza quando resultante das

demandas colocadas pelo trabalho do professor em sala de aula, junto a seus alunos. Essa

complexidade pode levar à busca de textos e discussões para se considerar as

especificidades do trabalho de fato em sala de aula e os modos como as condições de

trabalho promovem as relações dos professores com suas referências teóricas e práticas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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pesquisa. Teoria e Educação. Porto Alegre, nº 2, p. 177-229.

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