fiódor dostoiévski e gilbert keith chesterton

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1 Fiódor Dostoiévski e Gilbert K. Chesterton António Campos Sociedade Chesterton Portugal Março 2015

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Fiódor Dostoiévski e Gilbert K. Chesterton

António Campos

Sociedade Chesterton Portugal

Março 2015

2

Índice

Capítulo I - Fiódor Dostoiévski………………………………………….………..3

Capítulo II – Eu, Fyodor Mychailovich…………………………………………10

Capítulo III – Chesterton, Os Amigos e…Dostoiévski………………………..18

Capítulo IV – Dostoiévski e Chesterton………………………………………..25

Capítulo V – O Homem Comum ………………………………………………..31

O Solipsista……………………………………………………………..31

Do Caminho Largo ao Caminho Estreito………………………….....34

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Capítulo I - Fiódor Dostoiévski (1821-1881)

Hoje, 22 de Dezembro, levaram-nos até à praça Semionovskaya, onde nos leram a

todos a sentença de morte, nos permitiram beijar a cruz e nos enfiaram as camisas

brancas para irmos ao encontro da morte. Amarraram os três primeiros ao poste e

executaram-nos. Executavam três a três, eu era o sexto; tinha um minuto de vida.

Ouviu-se um toque militar de retirada e comunicaram-nos que Sua Majestade Imperial

nos concedia a vida.

Acusado de atentar contra a segurança do Estado, Dostoiévski foi privado do seu título

de nobre, da sua graduação militar (tenente) e dos seus direitos civis. Cumpriu a sua

condenação em Omsk, no presídio militar, entre Janeiro de 1850 e Fevereiro de 1854.

Serviria como soldado raso na Sibéria até 1859. Em 1860 publicaria Memórias da

Casa dos Mortos:

“Vivíamos amontoados todos numa barraca. No Verão havia uma intolerável

proximidade; no Inverno um frio insuportável. A sujidade, no chão de madeira podre,

tinha cerca de três centímetros de altura, fazendo-nos escorregar e cair. Pulgas,

percevejos e baratas pululavam; estavam no seu meio. As janelas tinham três

centímetros de espessura de gelo. Do tecto, goteiras e correntes de ar. Dormíamos

sobre tábuas nuas e estendíamos sobre nós os sobretudos de pele de ovelha que

deixavam os pés destapados. Passávamos a noite toda a tiritar”.

Na prisão de Omsk, uma dúzia de prisioneiros pertenciam à nobreza; os restantes,

rudes e agrestes, tinham-lhes um ódio infinito:

“Receberam-nos com hostilidade e alegravam-se com a nossa desgraça. Eram cento

e cinquenta inimigos que nunca se cansavam de nos atormentar. Era inimaginável a

miséria de todo o primeiro ano na prisão. A contínua aversão com que me tratavam,

por eu ser fidalgo, envenenou toda a minha vida”.

Um dia, deitado naquele chão infecto, Dostoiévski lembrou-se de um episódio da sua

infância: tinha nove anos e ouviu um grito de alerta de um lobo a rondar o bosque.

Desatou a correr para fora do bosque, em direcção a um rude camponês que estava a

lavrar para o seu pai. Marey interrompeu o seu trabalho, sorriu para a criança

atemorizada e trémula e, como uma mãe, fez sobre ela o sinal da cruz. Assegurou-lhe

que não existia lobo nenhum, que fosse para casa descansado e que a partir dali

nunca o perderia de vista.

Esta recordação, “foi Deus quem contemplou lá do alto a ternura delicada, quase

feminina de um rude camponês, profundamente ignorante, que não poderia ter olhado

para mim com mais amor, ainda que eu fosse seu filho único”, originou uma mudança

radical na sua atitude para com os colegas de prisão:

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“Levantei-me do soalho e vi aqueles

desgraçados com um olhar

radicalmente diferente. Todo o ódio e

todo o rancor se desvaneceram do

meu coração”.

Descobriu que a maioria dos

camponeses era muito melhor do que

ele suspeitava:

“Era gratificante descobrir o ouro por

baixo da dura cerviz. Alguns deles

eram fantásticos. A um moço

condenado por assaltar nos

caminhos, ensinei-lhe a ler e a

escrever; encheu-me de agradecimentos. Outro chorava ao despedir-se de mim;

costumava dar-lhe umas moedas…uma ninharia”.

Impressionou-o particularmente o impacto do Natal, quer nos presos quer na

população civil: “Muito poucos se embebedavam e todos se comportavam com

seriedade. Os presos sentem que pela observância do Natal estão em contacto com o

género humano e com o resto do mundo. Não havia na cidade uma única mãe de

família que não enviasse alguma coisa que tivesse preparado, como saudação

natalícia”.

Pouco depois de ter entrado para a prisão, uma menina dos seus dez anos aproximou-

se e colocou-lhe uma moeda na mão:

- Toma este Kopeck em nome de Cristo!

Dostoiévski guardou a moeda como um tesouro durante muitos anos. De futuro opor-

se-á a todos os que tentam substituir a caridade cristã por uma mera ética.

Experimentou o cristianismo em circunstâncias que teriam suprimido qualquer moral:

“Antes de entrar na prisão, umas mulheres aproximaram-se, benzeram-se e

entregaram-nos o Novo Testamento, o único livro permitido na prisão. Mantive-o

debaixo da almofada nos meus quatro anos de trabalhos forçados. Com ele ensinei a

ler um prisioneiro”.

A partir desta experiência, nunca mais entenderá Cristo como um conhecimento

teórico ou uma ideia sublime. Cristo seria a pessoa mais bela, razoável, profunda,

compreensiva, viril e perfeita – nada há de melhor, nem pode haver! Dostoiévski

morrerá com 60 anos, mas terá vivido séculos de tormento: “Deus açoitou-me toda a

vida!”, dirá Kirilov.

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Tolstoi vive na órbita

de Schopenhauer, quer

atingir o nada, o

niilismo, a não

violência, a paz

totalitária, o sincretismo

religioso: “Sinto que

não posso viver, já não

possuo desejos, a vida

é absurda”. “A base do

mal é a propriedade”,

indica o latifundiário

burguês Tolstoi, que

viria a tornar-se o ícone

da juventude.

“A base do mal é a

morte, mesmo a de animais", afirma o vegetariano Tolstoi. A base do mal é o prazer,

pelo que devemos procurar o asceticismo: “aquele que fita uma mulher, mesmo a

própria esposa, já cometeu adultério”, indica o Tolstoi dos 13 filhos e das várias

infecções venéreas. “No camponês, no mujique, está a verdadeira virtude”, indica o

milionário novelista.

Tolstoi indica um caminho mas nunca é capaz de o seguir. “Os sentimentos da nossa

sociedade resumem-se a três: o orgulho, a sensualidade e o cansaço de viver”. Tolstoi

via-se ao espelho: por várias vezes pensou no suicídio, mas apenas Ana Karenina o

executou. Apaixona-se por Rousseau, passa a trazer a sua fotografia num medalhão:

“A solução para o problema individual não é bastante, ela deve servir toda a

humanidade”. Tolstoi quer mudar o mundo, funda uma religião, mas aparta-se do

homem. Tolstoi via o homem como um ser tão negativo, que chegou a defender a

extinção total da humanidade pela prática do celibato universal.

Morre afogado no seu drama: “ Tanto dinheiro, luxo e celebridade. Para que me

serviram? Quanto ao mal, à indigência à minha volta, nada pude fazer!”. Um dos

maiores novelistas de sempre morre, em 1910, no drama de não se poder evadir de

um conforto material que ele condena. Tudo na sua vida foi uma estranha mistura do

estúpido e do sublime.

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Dostoiévski encontra o

seu verdadeiro mundo

no abismo do coração

humano. As suas

personagens, de carne

e osso, vivem sempre

a inquietação do

espírito: tímidos,

medrosos, humilhados,

confusos,

desassossegados…Permanentemente, perante o mistério, procuram a verdade, aos

tropeções: “Quem sou? Que faço neste mundo? Que posso esperar de Deus?”-

Dostoiévski transporta a angústia da criatura concreta perante o silêncio de Deus. O

seu mundo situa-se no céu da religião, obcecado pelos problemas eternos.

Dostoiévski não quer mudar o mundo, quer tentar compreender o caminho do ser

humano.

“Preciso de Deus porque é o único ser a Quem sempre se pode amar”. Alioscha e Ivan

Karamazov exprimem o pêndulo entre a fé e a incredulidade. Precisar de Deus e não o

ver claramente, eis o suplício. Mas o Deus do silêncio também fala: fala pelo exemplo

das pessoas santas, pela beleza da natureza e, sobretudo, pelas páginas bíblicas.

Quando Nietzsche nasce, o super-homem estava na moda. Kant tinha falado do

homem numénico, o legislador supremo; Hegel tinha falado dos mais fortes que se

deveriam impor pela força. Em 1865, tinha Nietzsche 21 anos, surge Rodian

Raskolnikov: vive em Crime e Castigo desde então, decidido a provar à machadada a

sua condição de super-homem. Quer provar que um homicídio é equivalente a um

espirro ou a um passeio:

“O meu crime? Que crime? Será crime matar um parasita vil e nocivo? Tenho a

consciência tranquila”.

Raskolnikov segue o caminho do seu criador e termina na prisão. A sobreposição

autobiográfica não termina aqui. É também na prisão que mudará dramaticamente.

Um dia tem um sonho em que uns estranhos micróbios provocam uma estranha forma

de loucura: o infectado fica convencido que está na posse absoluta da verdade. A

epidemia alastra e provoca discussões intermináveis, pois ninguém admite ceder. As

relações sociais e familiares dissolvem-se e o mundo torna-se um manicómio. Os

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homens infectados têm raciocínios lógicos, mas subjectivos, que não guardam relação

com a realidade das coisas.

- Que havemos de fazer com um super-homem mentalmente desequilibrado? Para

além da moral e da consciência situa-se o abismo da loucura. Valerá a pena pagar

pelo super-homem o preço de um psicopata? – questiona Dostoiévski.

Nietzsche responderia mais tarde à sua pergunta. Mas, contrariamente a Nietzsche,

Raskolnikov encontra a sua redenção. Na forma em que a maioria dos homens

encontra a sua. Sónia tinha um passado duvidoso, mas um coração de ouro:

- Derramaste sangue!

Quando sente o seu amor por ela, percebe que ela tem toda a razão. Não existem

argumentos, nem discussão, nem faz falta a lógica. Uma coisa tão natural como o

amor corrige a razão e destrói as argumentações lógicas do super-homem. Rodian

sabia que a toda a palavra, outra se lhe poderia opor; mas não encontrou palavras que

se comparassem às de Sónia.

- Porque é que tu rezas? - pergunta-lhe. Ele pensou que Sónia o aborreceria falando-

lhe continuamente nas escrituras.

- Cala-te! Que seria de mim sem Deus? Faz tudo por mim - responde Sónia, baixando

o olhar.

Sónia teve que se vender para suportar a sua vida miserável, mas a sua vitória não é

intelectual, não é baseada em argumentos, mas na grandeza do seu coração. Era

essa grandeza de coração que lhe permitia abandonar-se a si mesma e partilhar o

destino dos outros. Foi essa mesma grandeza que fez com que Sónia nunca lhe tenha

tocado nas escrituras. Ele mesmo lhe tinha pedido o livro, mas não o tinha aberto.

Apenas pedira a Sónia que lhe lesse a passagem de Lázaro em que Cristo demonstra

o seu poder sobre a morte. Mantinha o livro sob a almofada:

- Será possível que a crença dela seja também a minha? Poderei eu ter uma fé

diferente da dela?

Deus ama e perdoa aquele que aceita o sofrimento da sua vida. Diz-lhe Sónia:

- Aceita o sofrimento. Tens que fazer isso para te salvares. Depois vem a mim que eu

carregarei a tua cruz e então rezaremos e caminharemos juntos.

Ippolit, de O Idiota; e

Kirilov, de Os

Demónios, justificam o

suicídio, porque “o

homem é o senhor do

próprio destino”.

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Suprimido Deus, o homem torna-se o único senhor do seu destino, a última instância

de apelo.

Sem a convicção na imortalidade da alma, o vínculo do homem em relação à vida

diminui, e a perda do vínculo e do sentido último da vida conduz inevitavelmente ao

suicídio. Estes comandantes da nova era trouxeram a noite sobre a Rússia mas

também a sede pelo seu Deus.

A imortalidade, ao prometer a vida eterna, sujeita o homem mais fortemente à Terra.

Se a crença na imortalidade da alma é tão necessária à vida humana, é porque ela

espelha a própria natureza do ser humano, provando que a imortalidade existe. Nesta

crença reside a própria vida e a primeira fonte de verdade e de consciência geral para

a humanidade.

Um Deus que perdoa os seus filhos é um Deus que transborda de alegria. Dostoiévski

e os seus personagens não só estão convencidos disso, como se emocionam com

isso:

- Entrai também vós bêbados. Entrai vós os de carácter fraco e dissoluto. – dirá. Sois

uns brutos e levais a marca da besta, mas vinde a Mim.

Então os sábios e os prudentes perguntarão porque os acolhe.

- Acolho-os porque nenhum deles se julgava digno desta honra.

- Então abrirá os braços para nos acolher e nós lançar-nos-emos neles a chorar.

Dostoiévski foi um dos autores mais rotulados. Tudo lhe assenta: ateu, agnóstico, um

dos fundadores do existencialismo. Talvez seja mais sensato ouvir as palavras do

próprio Dostoiévski do que ouvir aquilo que os entendidos dizem que ele disse:

“Os ignorantes troçaram do obscurantismo e do carácter retrógrado da minha fé. Mas

esses imbecis nem sequer concebem uma negação de Deus tão forte como a que eu

manifesto no romance (Os Irmãos Karamazov). Em toda a Europa não se encontra

uma expressão tão forte de ateísmo. Portanto, eu não creio em Jesus Cristo como

uma criança. Foi pela prova da dúvida que consegui o meu hossana.”

Nicolai Berdyaev (1874-1948) diria, em Solidão e Sociedade, “a filosofia…é a

percepção criativa, pelo espírito, do real significado da existência humana”.

9

Notas:

1 - Berdiaeff, Nikolai. O Espírito de Dostoiévski. Editora Panamericana Lda, Rio de

Janeiro, 1926.

2 - Queiroz M: Leon Tolstoi (1828-1910): Oitenta vidas que a morte não apaga. Ed. O

Público, 1997.

3 - http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/7752/4951

4 - José Ramón Ayllón. Dez Ateus que Mudaram de Autocarro. Ed. Gráfica de

Coimbra, 2010.

5 – Thomas H, Thomas D L: Fyodor Dostoyevsky, Living Biographies of Famous

Novelists. Arden Library,1982.

6 - http://en.wikipedia.org/wiki/Fyodor_Dostoyevsky

7 - O Sentido da História. Höderlin, Dostoievski e Nietzsche.

www.erealizacoes.com.br/renegirard

8 - http://wearetime.blogspot.com.br/2013/09/ensaios-de-

interpretacaodostoievskiana.html

9 - http://www.biography.com/people/leo-tolstoy-9508518?page=1

10 – http://wearetime.blogspot.com.br/2014/01/dostoievski-sobre-o-

conservadorismo.html

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Capítulo II - Eu, Fyodor Mikhailovich

“Na verdade, na verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer,

fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto.” Jo 12:24.

A minha família era originária da Lituânia, católicos,

de sangue escandinavo, muito pobres. Emigraram

para a Ucrânia e trocaram a sua religião pela religião

ortodoxa. Era uma tribo de intelectuais nómadas à

procura de alimento e das respostas últimas para os

eternos problemas das almas. O meu pai era médico

e trabalhava num hospital de indigentes, a nossa

casa era-lhe sobranceira. Um muro alto separava a

nossa casa do jardim dos doentes. No Inverno, o

vento gélido de Moscovo sibilava e congelava os

corpos semi-adormecidos e enrolados nos bancos do

jardim; no Verão, o vento continental quente trazia-

me a falta de asseio, os velhos que se consumiam na

doença e na decadência e as crianças estropiadas

que sorriam, num sorriso desdentado e simples,

como os farrapos que vestiam.

Percebi o terrível paradoxo da vida: uma natureza poética e bela na qual se desenrola

o sofrimento humano.

O meu pai surpreendeu-me uma noite a esgueirar-me para o jardim dos doentes.

Furioso, fechou o portão e ordenou-me que jamais o voltasse a abrir:

- Constrói um muro à volta de ti mesmo. Conserva-te a salvo do contágio dos colegas.

Mas eu não deixava de sentir compaixão por todo aquele sofrimento. Decidi dar-me

uma sova por dia para partilhar o sofrimento dessas pobres almas. Sofrimento no meio

da beleza. É necessário sentir dor para que se possa entrar num jardim.

Aos dezasseis anos o meu pai inscreveu-me na Escola de Engenharia de São

Petersburgo. Foi um choque. Eu era um totó, mas era tomado por um snob. A mulher

era para mim um ser tão estranho e esquivo como uma doninha e tão fascinante e

belo como uma marta. Em contrapartida, os meus colegas já sabiam tudo o que há

para saber sobre mulheres e sexo. Escarneciam de mim, da minha timidez e

embaraço, da minha pele alba e cerácea. A minha companhia eram os meus sonhos,

sonhos de algo grande e belo, sonhos de escrever um drama romântico.

Esqueci os conselhos do meu pai e juntei-me a esses rapazes. Bebíamos vodka,

recitávamos Putschkin e pecávamos com as mulheres. O meu pai invariavelmente

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recusava os meus pedidos de dinheiro. A morte do meu pai deixou-me órfão,

mergulhei nas trevas da noite.

A noite encontrava-se povoada de sombras, visões aterrorizadoras e fantasmagóricas.

Agora que conhecia a cabeça do povo russo, queria conhecer-lhe o coração sofredor.

Parece que um homem solta a língua à frente de um copo de vodka, mas eu olho de

soslaio, sou tímido e tenho cara de poucos amigos. Como ouvir um homem, com a

cabeça baixa e os ouvidos bem abertos? Numa partida de bilhar! Eu era um péssimo

jogador: perdia dinheiro, mas ganhava sabedoria.

E assim surgiu Gente Pobre. Homens feitos pela metade, idiotas com olhos bonitos e

membros retorcidos. Eu não via sentido para a sua vida. A obra foi um sucesso, muito

pela mediação do poeta Nekrasov e do crítico literário Bielinski, que adorava o

realismo e considerou o livro o primeiro do género na Rússia. Voltei pois para os

intelectuais e Bielinski abriu-me as portas de par em par.

Os intelectuais eram a chave do progresso do homem; eles mudariam a face da

Rússia, derrubariam o Czar e ergueriam uma república de homens livres. Não era

nenhum Deus, mas sim o Homem, o resgate da humanidade. Será a razão que nos

levará do sofrimento ao êxtase. Entrei para uma comunidade hermética e iniciática, o

Círculo Petrashevski, um grupo de fanáticos radicais, inimigos do Czar. Nikolai

Spechniev inspirou-me para escrever Os Demónios, onde é Nikolai Stavróguin. A

organização permaneceu secreta até após a queda do regime, pois só se tornou

conhecida em 1922. Já não ia às reuniões há 3 meses quando fui preso, em 1849.

Poupado ao

fuzilamento, fui

deportado para a

Sibéria. Na primeira

paragem do comboio,

uma mulher entregou-

me uma bíblia e uma

nota de 25 rublos. Com

ela comprei tabaco,

sabão, pão branco e

roupa branca. As

minhas mãos

habituadas à caneta

conheciam agora as agruras do trabalho forçado. Na prisão tinha-se revelado a minha

epilepsia da qual tinha ataques periódicos. É verdade que o Freud afirmou mais tarde

que se tratava de uma histeria, por complexo da morte de meu pai. A sua afirmação

leviana expressa apenas a sua própria circunstância e não contém qualquer

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fundamento científico. Um homem esquece sempre que as palavras que profere nos

dizem mais sobre o emissor do que sobre o destinatário. No entanto, ele tirou proveito

material da fantasia que escreveu, Dostoiévski e o Parricídio.

A verdade é que a terrível experiência da prisão colocou-me na rota do transcendente.

Passei a compreender que o Homem não conseguia redimir os irredimíveis, não

conseguia encontrar um sentido para a vida dos brutos e dos miseráveis. Além disso

não encontrava equilíbrio entre o crime e a maldade do homem nem entre o castigo

imposto pelos tribunais e a vontade de Deus. Deus salva muitos daqueles a quem os

homens punem. Deus salva tanto o justo como o pecador. Desta experiência

resultou Memórias da Casa dos Mortos, o volte face.

A mudança profunda que sofri após os dez anos na Sibéria descrevo-a em O Diário de

um Escritor na boca do mujique Marei: Sou filho da descrença e da dúvida, até ao

presente e mesmo até à sepultura. Que terrível sofrimento me causou, e me causa

ainda, a sede de crer, tanto mais forte na minha alma quanto maior é o número de

argumentos contrários que em mim existe! Nada há de mais belo, de mais profundo,

de mais perfeito do que Cristo. Não só não há nada, mas nem sequer pode haver.

Saído da prisão, em 1854, ainda na Sibéria, fui obrigado a servir como soldado por

mais quatro anos. Apaixonei-me pela mulher do comandante, Maria Dmitrievna

Issaïeva. Ela era uma loira bonita, de média estatura e delgada, exaltada e ardente. O

marido estava à morte. Já contava trinta e cinco anos e era a primeira vez que estava

apaixonado. Mas pensava que deveria viver como celibatário e que jamais me deveria

casar. O marido morreu em 1857 e nós casámos. Voltei à Rússia. Maria entretanto

adoeceu com tuberculose, a doença de seu marido, a sua face estava irreconhecível.

Lembrei-me da minha infância e do jardim dos doentes. Os sãos de um lado do muro,

os doentes do outro lado…os doentes devem morrer, os sãos sobreviver.

Em Dezembro de 1859 permitiram-me regressar a São Petersburgo.

Publico Humilhados e Ofendidos. Entretanto, Memórias da Casa dos Mortos tornou-se

um grande sucesso.

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Os anos de 1862-63 trazem-me viagens pelas cidades europeias e…Apolinaria

Pankratievna Suslov. Esta jovem estudante marxista escrevera-me uma carta de amor

no final de uma conferência. Ela era friamente voluptuosa. Até no amor era uma

atormentadora. Seria capaz de cometer um crime com a maior indiferença. Era por

vezes gélida, como o gelo do Inverno, no entanto nunca vi mulher tão sensual.

Entretanto escrevo Crime e Castigo, onde descrevo o super-homem, Raskolnikov.

Apolinária escorraça-me, atormenta-me, obriga-me a seduzi-la e a odiá-la. Ela trai-me

e eu imploro-lhe continuamente que não me exclua da sua vida; de joelhos, em

lágrimas, peço-lhe que não me exclua do seu quarto.

Recebo entretanto a notícia de que a minha mulher, Maria Dmitrievna, está nas

últimas. Resolvo voltar a São Petersburgo. Contrato uma estenógrafa e secretária para

acelerar o termo de Crime e Castigo. Ana Gregorievna sentiu-se particularmente

impressionada naquela manhã ao ver-me escrever ao lado da minha esposa

moribunda. Maria morre em 1864 e logo depois o meu irmão Mikhail. Fico com os seus

quatro filhos a cargo, bem como com o meu irmão alcoólico, Nikolai, para já não falar

em dívidas na ordem dos 25 mil rublos. Edito Cadernos do Subterrâneo, que exerceria

uma influência marcante em Nietzsche, Tolstoi e Sartre.

Lembro-me desse rapaz alemão, o Nietzsche, pelas comparações que se fizeram

comigo. Até disseram que eu iniciei o existencialismo e o niilismo. Quando eu

terminei Crime e Castigo esse rapaz tinha 21 anos. Ainda andava na sua fase

pessimista. Alguns dizem que ele partilha comigo, como princípio de partida, a ideia de

que o homem é livre de determinar o seu destino, embora essa liberdade lhe acarrete

angústia e sofrimento. Entretanto, eu não compreendo como se é livre num

determinismo de eterno retorno.

Mas a diferença maior não se encontra no ponto de partida, mas sim, no ponto de

chegada: é que enquanto eu chego ao homem-Deus, i.e., Cristo, ele deifica o homem

e inventa a sua fantasia do super-homem, o monstro que quer ser Deus. Eu não

necessito odiar o homem nem matar Deus. Eu mantenho o homem sem ser dissolvido

em Deus e Deus sem engolir o homem. A minha obra tem uma tendência para

construir e não para destruir, o meu estado de alma impele-me para a afirmação e não

para a negação. Eu creio que o homem e o seu destino passam pelo destino da

liberdade e o seu preço: a purificação e a libertação. Sem liberdade o homem não

existe. O caminho da liberdade é o caminho do sofrimento que deve ser percorrido

pelo homem. Eu concebo a relação do homem com Deus, com todas as angústias da

acção das trevas. Eu compreendo a natureza do niilismo, mas eu sou anti-niilista.

Esse rapaz leu o meu livro, Cadernos do Subterrâneo, que comprou numa livraria em

Nice e que o influenciaria profundamente. Mas ele nunca fala dos momentos negativos

da sua experiência, pelo contrário, afunda-se neles. Essa é a sua loucura. Ele dirá que

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eu exprimo, de um modo que ninguém alguma vez fez, as oscilações do mundo

moderno, da consciência humana, entre a exaltação e a depressão. Fá-lo apenas para

deixar clara a sua participação. Mas eu fugi da minha loucura, por meio da força

satírica, pela porta da religião. Ele deixou-nos a sua ilusão, que ainda vivemos. A

ilusão em que cada um se sente plenamente vitorioso num universo em que todos se

encontram derrotados e perdidos. Por isso ficou demente. As descrições clínicas que

ficaram dos médicos de Nietzsche são atrozes e apavorantes; por isso geralmente se

omite que ele teve a pior das derrotas: morreu louco!

Em 1865 sai Crime e Castigo e, em vinte e seis dias, escrevo O Jogador, para Ana

Gregorievna. Ela tinha vinte e quatro anos, eu mais vinte:

- Fyodor Mikhailovich, duas montanhas não poderão unir-se, mas dois seres humanos

sim.

Casei-me de novo. Para fugir aos credores fomos viver para Dresden, Genebra, Milão,

Florença e novamente Dresden. Em 1868 morre a minha primeira filha, Sónia. Fico

arrasado. Publico O Idiota:

O príncipe Myshkin é epiléptico como eu, idiota como eu. Este príncipe é um simplório,

confiante na natureza humana, apesar da malícia humana. Há uns patifes que lhe

batem e o roubam e ele não ergue um dedo para os deter. Recusa ser “esperto” diante

dos expedientes humanos, tudo perdoa porque acredita na bondade humana. É isso

que exaspera os adversários. Apercebem-se que ele não é um tolo, apenas vive num

nível superior ao deles. Também, como eu, ele teve uma paixão por uma decaída.

Uns jovens sentam-se na minha mesa à hora em que tomo chá. Querem derrubar o

Czar e estabelecer uma república como a americana ou a francesa. Eu replico:

- Parem! Para regenerar o mundo não precisamos de um acto de violência, mas de

uma acção grandiosa, de uma grande revolução interior.

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Perguntam-me como é possível insuflar em todos os homens a inspiração que os leve

a praticar essa acção grandiosa, essa revolução interior.

- Porque precisam vocês de todos os homens? – respondo eu. Não compreendem o

poder que pode ter um homem justo? Apareça um nessas condições e todos o

seguirão.

Em 1879, escrevo Os Irmãos Karamasov, uma obra-prima. Nele relato o caminho da

dúvida até à fé, na conversa entre Aliosha, o místico, o seu irmão Ivan, cínico e

prático, e o pai de ambos, Fiódor:

- Pela última vez, Ivan, e de forma categórica, Deus existe ou não?

- Em absoluto, não!

- Então quem é que troça do mundo?

- Provavelmente, o diabo – gracejou Ivan.

Nele relato o Deus da alegria, nas palavras do terceiro dos irmãos, Dimitri, o

apaixonado impulsivo, positivista:

- Que grande é a ciência que explica tudo. No entanto falta-lhe Deus. Não matei o meu

pai mas aceito a expiação. Estaremos acorrentados, privados de liberdade, mas da

nossa dor ressuscitaremos para a alegria sem a qual o homem não pode viver nem

Deus existir, pois é Ele quem a concede: é o seu grande privilégio. Um condenado

pode passar menos sem Deus do que um homem livre.

Nele relato o Deus do perdão, na conversa entre o starets Zósima e a camponesa

homicida:

- Há três anos que sou viúva. Era impossível viver com o meu marido. Era velho e

batia-me muito.

- (…) Não temas. Enquanto houver arrependimento, Deus tudo perdoa. O amor tudo

redime e tudo salva. Se eu, que sou um pecador como tu, me emocionei e senti

piedade de ti, com mais razão a sentirá o Senhor.

O homem, e não o mundo, é o meu objecto. Esse anjo-demónio, sábio na sua loucura,

louco na sua sabedoria. Aos meus idiotas, sábios, criminosos, santos, eu faço as

grandes perguntas da vida. Os homens quando estão zangados falam em fraternidade

e humanidade…Quando cometeram crimes inventaram a justiça; para manter os

códigos da justiça inventaram a guilhotina. Entretanto apareceram uns homens que

começaram a meditar em como podiam ser tão unidos entre si que cada um, sem

deixar de se amar a si próprio acima de tudo, não se atravessasse no caminho dos

outros. Por essa ideia foram feitas várias guerras. Chorei por eles. Ele virá, o Deus-

homem, a quem o mundo tratou malevolamente de Idiota. Ele virá, esse Idiota-

Salvador, a esta terra onde o Homem parece real e é espectral e onde Deus parece

espectral e é real.

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Chegámos a 9 de Fevereiro de 1881, tenho 60 anos. Ocorre-me que não se deve

zombar da vida nem temer a morte. Uma estranha caquexia tem-se apoderado de

mim. A tuberculose é a doença que recebi por herança do comandante da guarnição

da Sibéria, por meio de Maria, a minha primeira mulher. Ana, a minha segunda mulher,

e os meus filhos colocam círios em volta do meu cadáver. O significado da vida não

está na transmissão de coisas materiais de geração em geração, mas sim na

transformação do homem, de bruto em anjo, de pecador em santo.

Amai-vos uns aos outros, nada mais. Não seria preciso fazer mais; todo o mundo é

capaz de compreender. Trata-se da verdade antiga, repetida milhões e milhões de

vezes, e que, entretanto, não criou raízes em lugar nenhum. É necessário continuar a

repeti-la.

Sou bastante fraco em filosofia (mas não no meu amor a ela; no meu amor a ela sou

forte).

Notas:

1 - Berdiaeff, Nikolai. O Espírito de Dostoievski. Editora Panamericana Lda, Rio de

Janeiro, 1926.

2 - Queiroz M: Leon Tolstoi (1828-1910): Oitenta vidas que a morte não apaga. Ed. O

Público, 1997.

3 - http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/7752/4951

17

4 - José Ramón Ayllón. Dez Ateus que Mudaram de Autocarro. Ed. Gráfica de

Coimbra, 2010.

5 – Thomas H, Thomas D L: Fyodor Dostoyevsky, Living Biographies of Famous

Novelists. Arden Library,1982.

6 - http://en.wikipedia.org/wiki/Fyodor_Dostoyevsky

7 - O Sentido da História. Höderlin, Dostoievski e

Nietzsche. www.erealizacoes.com.br/renegirard

8 - http://wearetime.blogspot.com.br/2013/09/ensaios-de-

interpretacaodostoievskiana.html

9 - http://www.biography.com/people/leo-tolstoy-9508518?page=1

10 – http://wearetime.blogspot.com.br/2014/01/dostoievski-sobre-o-

conservadorismo.html. www.erealizacoes.com.br/renegirard

18

Capítulo III - Chesterton, os amigos e…Dostoiévski

“Tudo é bom e belo porque é verdadeiro…Uma vez que a Palavra é para toda a

criação, e toda a criatura e toda a pequena folha obedecem à Palavra, cantando

louvores a Deus, chorando as mágoas a Cristo, sem terem de tal consciência plena,

alcançam esse desiderato pelo mistério da sua existência sem pecado.”

F. A. Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov, 1879

“O homem é mais ele próprio, mais humano, quando a alegria é o seu traço

fundamental, e a tristeza é apenas superficial. A melancolia deve ser um interlúdio,

uma moldura leve, transitória e inocente da mente; a gratidão deve ser o ritmo

permanente da alma…A alegria é o mecanismo tumultuoso pelo qual todas as coisas

vivem.”

G.K. Chesterton, Ortodoxia, 1908

É curioso como quem descobre Chesterton (1874-1936), descobre outros autores de

língua inglesa como Stevenson (1850-1894) ou Dickens (1812-1870), autores de

língua francesa como Vítor Hugo (1802-1885) e autores de língua russa, como Tolstoi

(1828-1910) ou Dostoiévski (1821-1881). De Stevenson, Chesterton disse que ele

parecia ter sempre a palavra certa na ponta da sua caneta como um homem que joga

mikado.1 "Talvez o ponto que Stevenson melhor sublinhou é que nós devemos admirar

a virtude (o Bem) pelo seu próprio valor intrínseco e beleza, e não pelo valor que se

lhe atribui numa dada época ou num dado local".2 Stevenson diria sobre Dostoiévski:

“Raskolnikov é, sem sombra de dúvida, o melhor livro que eu li nos últimos dez anos.

Muitos pensam que é maçudo; Henry James não o conseguiu acabar: pela minha

parte, o que eu posso dizer é que ele quase acabou comigo”.3

19

De Vítor Hugo, Chesterton escreveu: “A verdade é que Hugo representa todas as

coisas últimas e fundamentais: o amor, a ira, a compaixão, a reverência, o ódio e,

consequentemente, entre outras coisas, a vaidade”.4 Se pensarmos que Hugo não era

cristão, nem possivelmente baptizado, que fez experiências ocultas para contactar

com a sua falecida filha Leopoldine, que era um deísta, como a maioria dos

intelectuais franceses da sua era, que afirmou que Paris devia mudar de nome em sua

honra, entendemos melhor o mundo maravilhoso de G. K. Chesterton. Chesterton não

esqueceu que Hugo salvou a catedral de Notre Dame de Paris e a Sainte Chapelle da

demolição, após terem sido armazéns de farinha. Mas, Chesterton sobretudo não

esqueceu Jean Valjean, Cosette, Os Miseráveis, essa obra extraordinária que ilumina

a alma humana para sempre. Sem a ler, ninguém poderá jamais avaliar correctamente

Vítor Hugo.

Thomas Merton sintetiza essa atitude: “Nós somos suficientemente sensatos para

perceber que um autor pode ser profundamente bíblico no seu trabalho sem ser crente

ou um frequentador da igreja e nós também percebemos que no nosso tempo é muitas

vezes um artista só e isoladamente, enfrentando os problemas da vida sem a

consolação da religião, que realmente sofre, em toda a sua profundidade, os

problemas existenciais da criatura humana”.5 Chesterton concluiria profeticamente

sobre Hugo: “…Hugo é uma figura distante e vaga, um autor polémico e pouco

conhecido. No entanto, ele foi, sem sombra de dúvida, um dos maiores homens de

letras que alguma vez existiram na Europa; o dia do seu retorno ao triunfo intelectual

estará longe com efeito, mas é certo”.4 A West End e a Broadway, com Les

Misérables, fariam jus a estas palavras.

Vós que chorais, vinde a este Deus, porque Ele chora.

Vós que sofreis, vinde a Ele, porque Ele cura.

Vós que tremeis, vinde a Ele, porque Ele sorri.

Vós que passais, vinde a Ele, porque Ele perdura.

(Vítor Hugo, Écrit au bas d’un crucifix).

20

De Tolstói, Chesterton criticaria a sua falta de fé na bondade humana; no valor da

vida; na dicotomia farisaica entre o que dizia e o que fazia; na adoração da

humanidade vilipendiando homens, mulheres e crianças, o homem concreto; no

puritanismo contra os pequenos pecados dos homens num homem a quem não

faltavam pecados; a descrença dos valores da Pátria ou da família. Tudo reside, para

Chesterton, no equilíbrio entre a lógica e o misticismo, ausente em Tolstoi: “Na

verdade, desde que o tempo é tempo, o misticismo manteve a sanidade no homem. O

que enlouqueceu o homem foi a lógica. A única coisa que manteve o homem longe

dos extremos do convento e do navio pirata, do clube nocturno e da câmara de gás, foi

o misticismo” – a crença de que a lógica nos pode enganar e de que as coisas não são

o que parecem. Tudo isto pode ser encontrado no livro que lhe dedicou6 e no livro

anterior, Twelve Types.7 Mas, também para ele, Chesterton deixou a sua apreciação

final, cheia de cavalheirismo: “Não sabemos o que fazer a este pequeno e ruidoso

moralista que habita num canto de um homem grande e bom”.

Para Dickens, Chesterton citou Dante, paradoxalmente: “abandonai todo o desespero,

vós que entrais aqui” (nas obras de Dickens).8 E ainda “A camaradagem e a alegria

não são interlúdios na nossa viagem…antes, a nossa viagem é um interlúdio na

camaradagem e na alegria, que, por meio de Deus, durarão para sempre. A estalagem

não aponta para a estrada, mas a estrada para a estalagem. E todas as estradas

apontam finalmente para uma última estalagem, onde encontraremos Dickens e todas

as suas personagens. E quando bebermos de novo, será pelos grandes jarros da

taberna do fim do mundo”.9 “Dickens era mais preciso quando era mais fantástico…Ele

exagerava quando tinha encontrado uma verdade, para a exagerar…Em certo sentido,

só a verdade pode ser exagerada, nada mais pode suportar a pressão”.

É sabido que Dostoiévski tinha em Vítor Hugo, o herói literário da sua juventude. Foi

mesmo convidado a ir ao Congresso Internacional de Escritores de Língua Francesa,

presidido por Hugo, mas não compareceu por problemas de saúde. Enviaria uma nota

21

em que dizia. “Ao grande poeta cujo génio exerceu sobre mim uma enorme influência

desde a minha infância”. Dostoiévski escreveria sobre Hugo: “A ideia de Hugo é a

ideia básica da arte do século XIX…Esta ideia é cristã e profundamente moral; a sua

fórmula é a da regeneração dos homens caídos, esmagados injustamente pela força

das circunstâncias e pelo poder do preconceito social. Esta ideia é da justificação dos

párias da sociedade, humilhados e repelidos por todos”. Esta admiração não o impediu

de criticar Hugo quanto às suas descrições de origem burguesa, quer dos

personagens republicanos, quer dos personagens amorosos. Escreveria a uma sua

leitora, Sofia Lurye: “É onde os seus seres miseráveis emergem que nós podemos

observar a humanidade, o amor e a magnanimidade de Vítor Hugo”.10

Dostoiévski, chamou a Dickens o seu mestre e também lhe chamou “o grande cristão”.

Ele confessou à sua sobrinha ter lido Dickens na prisão e os dois homens realmente

encontraram-se em Londres em 1862, onde tiveram oportunidade de discutir a

dualidade intrínseca à natureza humana. Ambos, contrariamente a Tolstói, sentiram o

espírito de Rousseau, como retratado por Shakespeare em King Lear: o príncipe das

trevas é um cavalheiro! Viam em Rousseau um aristocrata burguês, um filósofo, que

criticava o amor-próprio ou o sentir individual, nutrindo um ódio ao indivíduo concreto

que se traduziu em misantropia, acompanhada por uma adoração platónica à

humanidade (Rousseau abandonou os seus cinco filhos com Thérèse Le Vasseur na

“roda”).

Quer Dostoiévski quer Dickens compreenderam e retrataram este tipo de

personalidade, repugnante e mesquinha, egoísta e diletante, nas suas obras. Tal como

criticaram o utilitarismo, recusando que uma teoria filosófica ou política, assente no

puro interesse individual, pudesse ser o sustentáculo de qualquer ética.11 Existia ainda

um poderoso factor que identificava estes dois homens: Dostoiévski esteve preso; o

pequeno Dickens, de doze anos, todos os domingos atravessava a ponte de

Blackfriars a caminho da prisão de Marshalsea para visitar os seus pais, que se

encontravam detidos (o pai detido e a mãe e filhos mais novos a viver na prisão, como

era hábito na época). O pequeno Charles vivia com uma amiga da família e trabalhava

dez horas por dia numa fábrica, a pintar e rotular potes de graxa preta, num local

imundo e cheio de ratos. Dickens escreveria mais tarde: “É incrível como alguém pode

ser um pária numa idade tão jovem”.12

22

Chesterton diria que Dickens, sabia melhor que ninguém que o sentido fundamental da

fraternidade humana só poderia existir no âmbito de uma verdadeira religião.1 O papel

da Polónia na queda do muro de Berlin dar-lhe-ia razão.

Chesterton referiu-se a Dostoiévski, publicamente, por duas vezes: uma em 191213 e

outra em 1934.14 Claro que todo o ambiente de Crime e Castigo o envolvia, pelo

menos desde 1908, tal como acontecia com os seus amigos, admiradores e

promotores de Dostoiévski, Gissing15 e Edward Garnett,16 com quem ele escreveu um

ensaio sobre Tostoi, em 1903, e Maurice Baring, que escreveu vários livros sobre a

sua permanência na Rússia, entre os quais, Landmarks in Russian Literature, metade

do qual é dedicado a Dostoiévski. Em 1910, o teatro Garrick apresenta a dramatização

de Crime e Castigo sob o título de A Lei Não Escrita, cuja tremenda popularidade torna

Dostoiévski conhecido em toda a Inglaterra.3 É neste ano que é publicada a primeira

história de O Padre Brown, A Cruz Azul. É possível que Crime e Castigo tenha

influenciado Chesterton em obras como as histórias do Padre Brown, O Homem Que

Era Quinta-feira (1908), O Homem Que Sabia Demais (1922) e O Poeta e os

Lunáticos (1929). Mark Knight afirma que Chesterton terá conhecido o trabalho do

escritor russo entre 1898 e 1906.15

Ambos partilham o gosto pelas histórias de detectives,17 o uso do grotesco18,19,20 e das

personagens metafóricas, o recurso aos duplos,21,22 o fascínio pela insanidade23 e a

centralidade na liberdade humana, o livre arbítrio.21

Muitos alegam que o paralelo Chesterton – Dostoiévski não assenta num pressuposto

sólido.24 Por um lado, Chesterton nunca escreveu romances com a profundidade e a

densidade psicológica de Dostoiévski; por outro lado, nos contos policiais, Raskolnikov

não encontra paralelo em Flambeau. Adicionalmente, personagens com um cunho

existencialista, frio e desvinculado, como Raskolnikov em Crime e Castigo, Ivan em Os

Irmãos Karamazov e o homem subterrâneo em Cadernos do Subterrâneo, não têm

23

paralelo em Chesterton (aquela gratidão pela existência que vemos no Innocent Smith

de Manalive), mas sim uma espécie de revolta pela existência e uma vitimização. O

homem subterrâneo admite que só quis humilhar e abusar de Lisa: “Era só pelo poder,

eu queria sentir o poder, esse fascínio de um jogo. Eu queria as tuas lágrimas, a tua

humilhação, sentir-te destroçada, era isso que eu queria.”

O culminar do tributo de Chesterton a Dickens vem com uma espécie de bandeira: “Há

grandes homens que fazem com que todos se sintam pequenos, mas o verdadeiro

grande homem é aquele que faz com que todos se sintam grandes”.9 Ora, esta frase

poderia ter sido aplicada a Dostoiévski por Chesterton e todo o esforço deste artigo

consistirá em defender esta tese.

Notas:

1 – G. K. Chesterton. The Victorian Age in Literature. Henry Holt and Co., 246, London,

1917.

2 – G. K. Chesterton. Twelve Types: A Collection of Mini-Biographies:

Stevenson.1902. IHS Press, Norfolk, VA, 2002.

3 - Helen Muchnic. “Dostoevsky English Reputation 1881-1936”. New York, Octagon

Books, 62-110, NY, 1969.

4 - G. K. Chesterton. “Victor Hugo, Pall Mall Magazine,1902”, reprinted in A Handful of

Authors: Essays on Books and Writers, ed. Dorothy Collins, Sheed and Ward, 1953.

5 – Thomas Merton. Opening the Bible, Collegeville, Minnesota: The Liturgical Press,

and Philadelphia, Pennsylvania, Fortress Press, 1970.

6 – Gilbert K. Chesterton, George H. Perris, Edward Garnett. Leo Tolstoy, Hodder and

Stoughton, 1903.

7 – Chesterton. Twelve Types: A Collection of Mini-Biographies, 1902. Leo Tolstoy.

IHS Press, Norfolk, VA, 2002.

8 – G. K. Chesterton, Charles Dickens, 1906.

9 - G. K. Chesterton. The Flying Inn, 1914.

24

10 – Kenneth A. Lantz. The Dostoevsky Encyclopedia. Greenwood Press, 2004.

11 – http://payingattentiontothesky.com/tag/dostoevsky-and-dickens/

12 – J. Forster. The Life of Charles Dickens [1872–1874]. Diderot Publishing London

2006.

13 - G. K. Chesterton, The Collected Works, Illustrated London News, 269-70, 1911-

1913. Ignatius Press, SF, 1988.

14 – G. K. Chesterton, “Revolutionists and Revivalists of the 19th Century”, The

Listener (14 November 1934), 836.

15 – George Gissing. Born in Exile, Hogarth Press, London, 1985.

16 – Mark J. Knight. "Dostoevsky & England." English Literature in Transition, 1880-

1920, 43.4: 471-474, 2000.

17 - Anthony Cross. “A People Passing Rude. British Responses to Russian Culture”.

Open Book Publishers, 2012.

18 - John Coats, “The Return to Hugo, A Discussion of the Intellectual Context of

Chesterton’s View of the Grotesque”. ELT, 1880-1920, 25:2, 1982.

19 – Mark J. Knight, “The Concept of Evil in the Fiction of G. K. Chesterton: With

Special Reference to his Use of Grotesque. University of London, PhD Thesis, 1999.

20 – Donald Fanger. “Dostoevsky and Romantic Realism: A Study of Dostoevsky in

Relation to Balzac, Dickens and Golgol. University of Chicago Press, Chicago, Il, 228-

240, 1965.

21 – Mark Knight. “Chesterton, Dostoevsky and Freedom”, English Literature in

Transition 1880-1920, 43.1: 37-50, 2000.

22 - Dmitri Chizhevsky. “The Theme of the Double in Dostoevsky”, Dostoevsky: A

Collection of Critical Essays, ed. Rene Wellek, New Jersey: Prentice-Hall, 1962.

23 – Russell Kirk. “Chesterton, Madmen and Madhouses”, Myth, Allegory and Gospel,

ed. John Warwick Montgomery, Minnesota: Bethany, 1974.

24 – Gary Wills. Chesterton: Man and Mask, Sheed and Ward, NY, 1961.

25

Capítulo IV - Dostoiévski e Chesterton

Aqueles que alegam não existir paralelo entre Chesterton e Dostoiévski apoiam-se em

diferenças no que respeita à complexidade (mas não à dualidade) das personagens, à

atmosfera psicológica e à densidade dos ambientes. Outra grande diferença existe,

nas histórias de detectives, na descrição do criminoso, não existindo em Dostoiévski

um paralelo para Flambeau ou em Chesterton um paralelo para Raskolnikov.

É verdade que as descrições de Chesterton, quer de personagens quer de ambientes,

são mais pobres, mas ele próprio admite que o que o preocupa são as ideias e não a

descrição dos seus portadores: “Resumindo, eu não sou um romancista, porque eu

vejo os conceitos e as ideias nus, e não vestidos, numa espécie de baile de máscaras,

como homens e mulheres”, Autobiografia. O seu irmão Cecil já tinha escrito em 1908

que Chesterton via apenas ideias onde os outros escritores viam pessoas. Mas, aquilo

que as personagens de Chesterton e de Dostoiévski descrevem não são

simplesmente ideias ou pessoas; o que elas descrevem são tipos: o céptico, o místico,

o agnóstico, o revolucionário, o cientista, o louco, o cínico, o excêntrico, o homem

comum. Ambos confrontam estes tipos, as diferentes tonalidades da alma humana,

ora expondo-os ora percorrendo com eles a viagem, do desespero à esperança.

Um dos maiores pontos de encontro entre Chesterton e Dostoiévski reside

precisamente nas histórias de detectives, não exactamente do lado do criminoso –

embora em ambos exista uma noção de que o crime tem uma origem perfeitamente

racional, entendível por qualquer ser humano – mas mais propriamente do lado do

investigador. Em Crime e Castigo, a investigação conduzida por Porfirii

Petrovich encontra paralelo nos heróis detectivescos de Chesterton. Os detectives de

Chesterton continuam o arquétipo iniciado com Petrovich: O investigador que decifra

crimes por uma combinação de incongruência, perspicácia, intuição e surpresa, além

dos métodos policiais mais convencionais, sempre evitando deduções fantasiosas e

tácticas sensacionalistas, ou uma postura egoísta, tão ao gosto de Conan Doyle.

26

Em Dostoievski e Chesterton, o crime resolve-se por uma intermitência de pretensão e

reconhecimento. No início, quer o detective quer o criminoso se representam

equivocamente: o criminoso alega inocência, o detective apresenta-se como

incompetente e caótico. O criminoso interpreta incorrectamente a atitude do detective

como genuína; o detective interpreta correctamente a atitude do criminoso como falsa.

No momento do desenlace, finalmente, o criminoso avalia correctamente o detective e,

num momento suspenso no tempo, ambos os homens experimentam um período de

admiração mútua. Este clímax psicológico final também influenciou Michael Mann, que

o incluiu no argumento do filme “Heat”, com Al Pacino (como polícia) e Robert de Niro

(como assaltante), que experimentam um interlúdio de auto-reconhecimento mútuo.

Os detectives de Dostoiévski e de Chesterton decifram o caso por intuição, mais do

que por evidência, porque entendem sempre o motivo do crime e se colocam sempre

no lugar do criminoso, tentando pensar como ele. Na verdade, subentendem que uma

distância muito curta separa a virtude do crime, no sentido em que um homem normal

sob determinadas circunstâncias pode ser um marginal, tal como um criminoso pode

encerrar em si mesmo um homem perfeitamente normal.

Em O Segredo do Padre Brown, o padre explica a Mr. Chase como resolve o crime:

"Bem vê, eu próprio os assassino, por isso sei como foi feito”. O padre explica que ele

partilha a natureza humana com o criminoso e portanto compreende-o. Em O Martelo

de Deus: “Eu sou um homem e portanto tenho todos os demónios no meu coração”. É

exactamente por essa partilha de uma natureza caída, essa identificação, que é

possível propor ao criminoso uma saída, a conversão. Esta recusa radical do dualismo

que observamos em Chesterton e Dostoiévski é uma das facetas mais radicalmente

diferentes da narrativa do vilão que é habitual observar no mundo moderno.

27

Ambos colocam os seus detectives como pessoas muito comuns, num tempo em que

o arquétipo do detective era uma personagem seca e áspera. Porfirii é um polícia

comum, o padre Brown é um sacerdote, Horne Fisher é um secretário, Gabriel Gale é

um poeta, Gabriel Syme é um amador profissional, um diletante. Os quatro detectives

de Chesterton juntam-se a Porfirii Petrovich como defensores do comportamento

humano.

Chesterton escreveu em 1901:

“As histórias de detectives recordam-nos que a civilização é a mais fantástica das

partidas e a mais romântica das rebeliões.” E ainda: “O agente de justiça é uma figura

poética e original. O romance policial é, portanto, o maior romance do homem”.

É curioso que dois outros escritores de contos policiais, como Dickens e Stevenson,

apenas tenham visto Crime e Castigo como uma narrativa de um estranho crime e de

uma estranha ingenuidade do detective. Para compreender a extensão do drama

psicológico, a inovação literária e estilística e o realismo social de Dostoiévski, era

necessário a esses dois escritores criar uma Sónia inglesa, coisa de que não foram

capazes, ou por conformismo ou porque simplesmente ela não existe. No nível

filosófico, o único escritor inglês que aprecia a vastidão do universo dostoievskiano é

G.K. Chesterton.

Ambos procuram a essência da pessoa e, só depois, reconstituem os limites físicos do

ser humano em torno dessa essência. Ambos criam caricaturas de pessoas; ambos

escrevem como um jornalista que cria uma narrativa, num movimento de fluxo variável

ao longo do livro. E, sobretudo, usam o exagero, a hipérbole, de um modo original e

criativo.

28

O uso da alegoria encontra-se, em Dostoiévski, na história da “conversão” de

Raskolnikov e na analogia com a história da ressurreição de Lázaro ao fim de quatro

dias (para a mentalidade judaica o prazo em que a alma se encontra necessária e

definitivamente separada do corpo); na história do Príncipe Mishkin; na luta entre o

ideal aético, puramente estético de Oscar Wilde (a arte pela arte ou o egoísmo, o

carpe diem) e os ideais ético e religioso; ou ainda na alegoria inversa da luta entre o

ideal empirista e racional grego de sair da caverna para a realidade ou o ideal místico

russo, representado pelo homem subterrâneo, de fugir da realidade para fora da

racionalidade, numa espécie de egoísmo circular em progressão concêntrica em

círculos lógicos perfeitos, cada vez mais pequenos e mais subterrâneos ou, por

oposição, com Lisa, na área do sentimento e da religião.

Chesterton diria no seu ensaio sobre Oscar Wilde: “Ele por vezes fingia que a arte é

mais importante do que a moralidade, mas isso era apenas fachada. A moralidade ou

imoralidade é mais importante do que a arte para ele e para toda a gente”. A

conversão de Wilde no leito de morte daria um ênfase particularmente dramático a

estas palavras de Chesterton.

Sobre o valor da alegoria, diria Chesterton: “Toda a grande literatura sempre foi

alegórica porque nós temos uma visão da existência, goste-se ou não, que altera, ou

melhor, que engloba tudo aquilo que escrevemos ou que afirmamos, goste-se ou não.

A Ilíada é grande porque a vida é uma batalha, a Odisseia é magnífica porque a vida é

uma viagem, o Livro de Job é tremendo porque a vida é um enigma”. Diz Gabriel Gale

em O Poeta e os Lunáticos: “Eu duvido que qualquer verdade possa ser dita excepto

por uma parábola”.

Existe uma pequena história em O Poeta e Os Lunáticos chamada O Pássaro Azul,

em que Gabriel Gale pergunta a um dos amigos: “Algum dia foste um triângulo

isósceles?” Gale interroga-se quão claustrofóbico será estar rodeado de linhas rectas

e se será preferível estar dentro de um círculo. Parece irrelevante, mas não é.

Curiosamente, Gale está a colocar-se na mente de um anarquista russo (!), que tem a

fixação por explodir todas as barreiras – existe obviamente aqui um paralelo com o

homem subterrâneo, que quer fazer explodir todos os limites, matemáticos e lógicos,

para se poder conhecer a si próprio e só assim ser verdadeiramente livre – a neurótica

centralidade no “Eu”, que tanto influenciaria Nietzsche e Freud.

Gale interroga-se sobre o que é a liberdade. E conclui que, em primeiro lugar, é a

capacidade que alguém pode ter de ser ele próprio. Mas para Gale, em oposição ao

homem subterrâneo, a capacidade de ser ele próprio, que é a liberdade, consiste na

auto-limitação. Nós encontramo-nos limitados pelos nossos corpos e pelas nossas

mentes; se sairmos de nós, deixamos de ser nós próprios para ser…provavelmente

coisa nenhuma. Como o pássaro que, liberto da gaiola, não tem qualquer hipótese de

sobrevivência num meio hostil ou, como o peixe que, partido o aquário, termina a sua

existência.

29

Esta tentativa de romper as barreiras geométricas também encontra paralelo na

tentativa de Raskolnikov abolir as barreiras éticas. Mas, tal como o anarquista que

Gale descreve, Raskolnikov não consegue sobreviver sem limites bem definidos, após

se ter soltado da “jaula” da sociedade. Também o homem subterrâneo, quando pensa

que atingiu o conhecimento de si, ao se separar de todos, encontra o inevitável

paradoxo: “Quem sou eu? Se ao menos eu fosse um preguiçoso, se não fizesse

rigorosamente nada, todos poderiam dizer que eu era um preguiçoso.”

Entretanto, do fundo da sua extrema solidão, dessa radical infelicidade e separação,

desse desespero, ele ainda se crê superior a todos os outros homens!

Mas Dostoievski colocou-o no seu devido lugar: subterrâneo, ou seja, abaixo de nós.

Este é um argumento incontornável que desacredita um preconceito muito comum: o

de que Dostoiévski foi um dos fundadores do existencialismo.

Cadernos do Subterrâneo foi publicado em 1864, dez anos após a saída de

Dostoiévski da prisão, onde ocorreu a sua conversão. Crime e Castigo seria publicado

apenas dois anos depois. Nele, também se encontra uma prostituta redentora, não

Lisa, mas Sónia ou Sónetchka Marmeládova.

A ideia errada de um Dostoiévski existencialista assenta no conceito de que Lisa não

converteu nem resgatou o homem subterrâneo; de que neste livro não é expressa a

ideia de que a natureza humana só pode ser modificada por meio de uma fé religiosa.

Esse foi também o equívoco de Nietzsche, que chamou a Doistoiévski "O grande

psicólogo".

A explicação de Dostoiévski não necessita de palavras mais compridas, uma vez que

remete aos sensores a amputação, mais do que a omissão, dessa ideia:

30

“Era melhor não publicar o penúltimo capítulo (onde a ideia é expressa) do que

publicá-lo com as frases esfaceladas e contradizendo-se a si próprias. Porcos de

censores! Onde escarneço de tudo e blasfemo a fingir, deixam passar; mas onde

concluí disso a necessidade da fé em Cristo, proibiram!”

Lord Ivywood de The Flying Inn, é um dos retratos feitos por Chesterton deste mesmo

tipo de insanidade circular:

“Eu fui onde Deus não se atreveu a ir”, afirma Ivywood no momento da sua ruína,

ecoando um defunto Nietzsche.

“Eu estou acima do ridículo super-homem tanto quanto ele está acima do mero

homem. Onde eu caminho, nos céus, nenhum homem colocou o pé antes de mim;

encontro-me sozinho no jardim. O que se passa comigo pode ser descrito como a

cena de alguém que colhe solitariamente as flores de um jardim; e eu ficarei com esta

flor para mim…”.

Trata-se do “Eu, e nada mais do que eu!”.

Este orgulhoso solipsista, este lunático, é o maior inimigo do homem, da sua vida e do

seu espírito – é um espelho de uma opção antiga, ocorrida antes do tempo.

Chesterton expressa-a quase visualmente em 1900, por ocasião da morte de

Nietzsche, em The Wild Knight and Other Poems, The Mirror of Madmen:

“Eu sonhei com o Céu, tudo era branco como a geada,

A calma esplêndida de um hospedeiro vivo;

Numerosos coros de faces voltadas lá estavam, alinhados.

Subitamente gelou-me o sangue, porque todas as faces eram o meu rosto”.

Encontram-se, nestas alegorias, a universalidade do pensamento de Dostoiévski, a

inteligência de G. K. Chesterton e a intemporalidade de ambos.

31

Capítulo V - O Homem Comum

Não será estranho que o escritor inglês mais conhecido como o mestre do

paradoxo sinta fascínio por um escritor cuja popularidade reside ela própria num

paradoxo: como é que Dostoiévski tem tanto sucesso em captar o coração dos seus

leitores, em lhes enlevar o espírito, se lhes fala continuamente de tumulto e de

revolta? A resposta só pode ser de raiz filosófica. Chesterton e Dostoiévski partilham a

abordagem do homem comum e a do seu oposto, o solipsista racionalista (que pensa

que o universo existe apenas dentro e a partir de si) com as suas múltiplas máscaras:

o intelectual, o filantropo, o revolucionário redentor, o chefe icónico, o cínico no afecto,

o prático que idolatra o dinheiro. No fundo, as duas metades do cérebro humano, em

maior ou menor grau presentes em cada um de nós e na sociedade em geral.

Terminado o milénio, no século XVI, o homem ficou "livre", entregue a si próprio. Estas

duas metades parecem combater entre si, sem uma aparente intervenção de uma

verdade superior. É exactamente a tradução deste facto que parece caracterizar estes

dois escritores. Eles não têm uma personagem principal, mas duas; por vezes mais. E

insistem em que todas são, não só humanas (mesmo quando aparentemente

inumanas), mas perfeitamente compreensíveis, racional ou afectivamente.

O SOLIPSISTA

Encontramo-lo, com Doistoiévski, em Raskolnikov de Crime e Castigo, em Ivan de Os

Irmãos Karamasov, em Stavróguin de Os Demónios, em O Homem Subterrâneo de Os

Cadernos do Subterrâneo. Encontramo-lo, com Chesterton, em Lord Ivywood de A

Taberna Errante, no professor Lúcifer de A Bola e a Cruz, em Buck de Napoleão de

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Notting Hill, encontramo-lo em Gregory e no professor de Worms, projecções de G. B.

Shaw, em O Homem Que Era Quinta-feira ou em Simon Wolfe de O Poeta e os

Lunáticos.

Mas, quer em Chesterton quer em Dostoiévski, estes solipsistas apenas triunfam por

um tempo antes da ruína, ou em alternativa, encetam o caminho da conversão.

Stravógin suicidou-se, o Homem Subterrâneo ficou só. Raskolnikov iniciou com Sónia

uma forma de conversão, Dimitri aceitou a prisão e a conversão.

Diz o Innocent Smith em Manalive: “Em certas épocas torna-se necessário uma outra

espécie de sacerdotes, os poetas, para lembrar aos homens de que eles ainda não

estão mortos. Os intelectuais entre os quais vivo nem sequer estão suficientemente

vivos para recearem a morte. O homem são sabe que a vida serve para aprender

como morrer, mas para estes pequenos ratos brancos a morte é a única possibilidade

de aprenderem a viver.”

O solipsista é o mais louco de todos os lunáticos e o maior inimigo quer do corpo quer

da alma, como a disseminação das ideologias e os massacres do século XX

demonstraram, chamasse-se ele, Adolf, Vladimir, Leon, Ossip ou Mao.

Uma forma de solipsismo mais refinada, a do filantropo, intelectual burguês ou

professor, é a adulação da humanidade em abstracto e a indiferença perante o

indivíduo concreto. Em 1902, escrevia Chesterton na Pall Mall Magazine, num artigo

chamado Vitor Hugo:

"Se existe uma verdade fundamental sobre a democracia genuína, é que a

democracia genuína se opõe ao conceito de multidão. A democracia genuína baseia-

se fundamentalmente na existência do cidadão, e a melhor definição de “as massas

populares” é a de um corpo de mil homens em que não existe um cidadão. Hugo

defendeu o conceito de que a democracia girava à volta do cidadão como as religiões

ancestrais giravam em torno da alma…Portanto, a sua figura mais sublime, o seu tipo

de humanidade, não era nem o rei nem o republicano, mas um homem numa ilha

deserta.”

Hugo, se fosse possível, teria acrescentado: “Os braços de uma mãe são feitos de

ternura e os filhos dormem profundamente neles.”

Não será por acaso que os sofismas modernos, como o kantismo, o egoísmo, o

desconstrucionismo e outras formas de solipsismo, são completamente omissos,

perversos ou desdenhosos perante a maior imagem do ser humano: a mulher que é

mãe.

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Por seu turno, diria Dostoiévski em Os Irmãos Karamasov:

"Gosto da humanidade, mas eu próprio me admiro: quanto mais gosto da humanidade

em geral, menos gosto das pessoas em particular. Muitas vezes sonho com a ideia

apaixonada de servir a humanidade e, se calhar, seria mesmo capaz de subir ao

calvário pela humanidade, se tal fosse necessário; mas, ao mesmo tempo, sou

incapaz de conviver com alguém no mesmo quarto por dois dias.

Digo-o por experiência.

Mal alguém fica perto de mim, logo a sua personalidade me oprime o amor-próprio e

me constrange a liberdade. Sou capaz de detestar, de um dia para o outro, a melhor

das pessoas: odeio este porque come devagar ao almoço, odeio aquele porque está

constipado e não pára de assoar o nariz. Basta as pessoas tocarem-me ao de leve

para me tornar inimigo delas. Entretanto, sempre me sucedeu que, quanto mais

detestei as pessoas em particular, mais glorioso era o meu amor pela humanidade em

geral.”

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DO CAMINHO LARGO AO CAMINHO ESTREITO - O REGRESSO AO

HOMEM COMUM

- A Conversão:

O homem comum de Chesterton e o camponês de Dostoiévski exprimem uma e

mesma ideia: a conversão dos homens instruídos, pelo seu regresso à condição de

homens simples. Desse ponto de vista, esta ideia de camponês ou de homem comum

tem quase um sentido mitológico, uma atitude e um viver prático. É a vida prática de

um dia a dia esforçado, que deixa pouco espaço à leitura, mas que afasta o homem da

dúvida pela constatação do fundamental: é necessário trabalhar, o amor pelos filhos e

pela mulher são a maior realidade da vida, o homem é um ser limitado, existe a morte.

Os miseráveis de Vítor Hugo, os personagens de Dickens e os tipos de Dostoiévski,

pelos seus dramas, sofrimentos e heroísmo, transformam a mente dos seus leitores.

Mas o que é este homem comum? Ele é um homo sciens, mera parte da natureza, tal

como uma pedra, um cacto ou um camelo ou é um homo sapiens, aquele homem que

na visão de Dr. Johnson ou de Milton – duas grandes influências em Chesterton –

possui a experiência do Bem inteligível, a visio Dei, que está disponível e cuja busca é

obrigatória e inevitável, não apenas para os místicos, especialistas ou crentes, mas

para todos os homens em vários graus, desde que possuam a vontade genuína de

encetar essa busca. Esta é uma atitude que pode perfeitamente ser adoptada por um

intelectual ou um homem rico se fizer a viagem de volta ao mais importante da vida: as

coisas primeiras.

- O Caminho Estreito:

O caminho da conversão de Dostoiévski inicia-se na história do camponês Marey e

obtém o reconhecimento no seu epitáfio, a parábola do grão de trigo, que é contada

em Jo 12:24: “Se o grão de trigo lançado à terra não morrer, não dá fruto.” Chesterton

e Dostoiévski várias vezes tomaram o paradigma do livro de Job: o Deus que não

responde às nossas perguntas, mas tem, Ele próprio, perguntas para as quais não

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encontramos respostas. Ambos vivem assombrados pela sensação de que, para o

Criador do Universo, a dúvida ou a capacidade de duvidar é um atributo ainda maior

do que o conhecimento da própria verdade. Ele próprio, o guardião do livre-arbítrio

humano, à custa do seu próprio sofrimento.

Ambos, Chesterton e Dostoiévski, usam o exercício da dúvida para conduzir o homem

a Cristo. A referência é sempre indirecta, não ritual, profana. Depois vem o enlevo do

coração e o homem comum de Chesterton ou o camponês de Dostoiévski são a voz

do intelectual convertido, do professor, do sábio, que se tornou um homem comum.

Afinal, esta é a última condição, insuspeitada, de ser acima de sábio, flutuando, livre

do peso do orgulho, do lastro da auto-suficiência.

Esta dualidade da alma humana, expressa por estes dois escritores, não é produto da

imaginação, uma vez que ela teve uma realização concreta, por meio da conversão,

em muitos inimigos do espírito. Foi o caso da conversão tardia de Voltaire (que seria

na verdade um grande tormento) ou de um grande escarnecedor de Chesterton, Oscar

Wilde; foi o caso de Charles Péguy, de Paul Claudel (um admirador de Chesterton), de

T. S. Eliot ("In my begining is my end; in my end is my begining") e de W. H. Auden; foi

o caso dos "poetas malditos": Baudelaire, Verlaine e Rimbaud. Outros, pelo contrário,

acabaram loucos como Nietzsche (os relatórios dos médicos que o tratavam são

aterradores) ou entregues ao seu solipsismo e tenebrosa eugenia, como Shaw.

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- A Confissão:

Stavrógin é não só uma espécie de Rousseau, como Rousseau é, ele mesmo, um

Stavrógin, na sua descrença na bondade humana, na sua misantropia. Ambos tentam

contrapor à confissão cristã, como meio de obter a redenção, uma confissão secular,

cheia de impasses e de hesitações. O resultado é a ausência de gratidão e do conforto

da verdade. A revolta em vez da vergonha, esse sentimento tão intrinsecamente

humano que faz a alma mirar-se no espelho de Deus, a observar as suas manchas na

túnica branca. A revolta como a resposta daquele que se recusa mirar-se a esse

espelho. Esse foi afinal o grande motivo porque Chesterton se tornou católico: “Porque

me queria livrar dos meus pecados!”

- Ciência e Sapientia:

Quer Dostoiévski quer Chesterton concretizam a grande missão da mente humana: o

encontro entre as ciências e as humanidades, entre o saber empírico e o

conhecimento que forneceu a definição do método científico, ele próprio fora do âmbito

científico, mas assente numa fé. A fé de que o universo obedece a uma ordem

racional; de que ele é externo à mente humana e de que a mente humana pode

conhecê-lo, porque a razão humana guarda analogia com o ordenamento racional do

universo. Como diria Chesterton, o homem são vê com dois olhos: o olho da ciência e

o olho da fé.

Quando Chesterton refere que “não é natural ver o homem como um produto natural”,

ele joga com o sentido equívoco da palavra natureza: toma natureza no sentido de

encaixado ontologicamente, em oposição à qualidade de ser além da matéria, do

espaço e do tempo, mas presente neles, como é próprio à mente humana e ao espírito

do homem. A natureza do homem em oposição à natureza física, que consiste na

matéria aprisionada no tempo e submetida às leis que o governam, onde se encontra

presente. Estas duas ideias de natureza, constituem na verdade o core da arte,

filosofia e literatura da civilização ocidental, o paradigma das duas ideias de natureza

em King Lear.

Quando fundimos estas duas dimensões da natureza do homem apenas numa, a

natural, no sentido estritamente material, caímos numa contradição: Uma vez que

apenas dependemos de leis mecânicas, o livre-arbítrio, o pensamento racional e a

finalidade tornam-se absurdos. Da impossibilidade de livre arbítrio resultou o

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determinismo; da ausência de finalidade resultaram a religião dos estetas, como Oscar

Wilde e do egoísmo, como Nietzsche; do absurdo do pensamento racional, resultou o

desconstrucionismo.

O absurdo a que chegámos levou os filósofos franceses e os naturalistas a afirmar que

a falta de significado na linguagem faz com que não possamos falar de nada com

significado. Mas a contradição é óbvia: como pode o autor de tão blasfema afirmação

pretender que ela tenha significado, se afirma que todo o discurso não exprime um

significado?

C. S. Lewis, em A Base do Pensamento do

Século XX, indicou-nos o caminho proposto por

Dostoiévski e por Chesterton: “Nem a vontade

nem a razão são produtos da natureza.” Um

camelo e um cacto não são dotados nem de

razão nem de livre-arbítrio, mas apenas, no

caso do camelo, de condicionamento, como

Pavlov já havia demonstrado. O homem

encontra-se na natureza e fora dela, em

simultâneo. Como afirmou o reputado

historiador da ciência, Stanley L. Jaki, em 1970,

“Bacon não foi o fundador de ciência nenhuma;

a ciência funda-se num saber muito anterior a

ele, quer grego quer escolástico, de que se o

universo é racional ele pode ser descoberto pela mente humana.”

Esta ideia de um universo racionalmente inteligível é uma das pedras de toque de toda

a civilização ocidental. Lewis afirmaria em Futilidades: “A menos que tudo aquilo a que

chamamos conhecimento seja uma ilusão, devemos afirmar categoricamente que, ao

pensar, não estamos a traduzir para a razão um universo irracional, mas pelo

contrário, estamos a seguir uma racionalidade que preenche o universo.”

A fé de Chesterton assentava num teísmo cristão racional – a religião no sentido de

uma regra; uma confiança profunda na existência de um padrão externo da realidade.

“O homo sapiens, a glória, a graça e o enigma do mundo, é uma criatura demasiado

valiosa para ser apertada e esmagada nessa pequena cela chamada o universo

científico”. A sua crítica à crença no progresso inevitavelmente virtuoso viria a ter a

sua confirmação nas bombas atómicas, nos Gulag e nas câmaras de gás: “Eu não

gosto de triunfos inevitáveis”.

Ele acreditava em reformas voluntárias e graduais introduzidas por cidadãos comuns

inteligentes. Ele acreditava numa liberdade tangível não numa utopia teórica: “Serei de

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todo incompreendido se se pensar que apelo a um retorno a Atenas ou ao jardim do

Éden, porque eu não quero apanhar o comboio mais barato da utopia. Eu quero

conhecer a largura e não apenas o comprimento do mundo; eu quero sair do comboio

quando ele passar nas antigas planícies da liberdade”.

Estas ideias de partilha de racionalidade entre o homem e o universo, do livre-arbítrio,

da finalidade, da democracia, da natureza bivalente do homem, constituem o senso

comum que é característica do homem comum. Lewis diria: “A igualdade é um termo

quantitativo e como tal o amor é-lhe de natureza estranha.” E ainda: “A verdadeira

razão para a democracia é que o homem é um ser tão falível que não se pode confiar

em nenhum homem que tenha um poder indiscriminado sobre os seus semelhantes.”

Quando Chesterton afirma que “não é senso comum chamar ao homem um ser

oriundo meramente do campo ou do mar”, ele está a fazer o mesmo com a palavra

comum que fez com a palavra natureza. Ele escreve: “As coisas que são comuns,

como a morte ou o primeiro amor, não são, de modo nenhum, um lugar-comum”. (…)

“Nós não vemos um homem correctamente (também significa direito, em grego orthos)

se o vermos como um mero animal. Não é normal. É um pecado contra a luz, contra

essa imensa luz da proporção que é o princípio funcional de toda a realidade.” Este

termo “proporção” encerra toda a doutrina ortodoxa da sapientia et recta ratio, ou a

razão correctamente usada para discernir os objectos e as leis de um universo

inteligível.

Com a sua metafísica de senso comum, Chesterton lutou toda a vida para manter o

conceito tradicional do homem como homo sapiens contra a ameaça de que a ciência

possa desantropomorfizar o homem. Ele escreveu em 1922 que “O credo que

realmente está a cobrar a dízima e a invadir as escolas…é o grande sistema de

pensamento que começou na Evolução e terminou na Eugenia. O Materialismo é, na

verdade, a nossa Igreja”.

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Kierkegaard apontaria a origem, quer liberal quer revolucionária, deste pensamento

materialista: "A mente burguesa caracteriza-se precisamente pela impossibilidade de

pairar acima da realidade do espaço e do tempo. Tem sempre a preocupação pelos

meios sem a consideração pelos fins; o fascínio pela técnica sem a consideração pela

finalidade."

No nosso tempo, apesar dos reveses com os campos de concentração e os Gulags, a

eugenia está de volta. Os desastrosos equívocos do materialismo foram sempre

objecto da crítica de Chesterton e ele sempre afirmou que a Igreja se lhes oporia com

o seu dualismo de senso comum: “A Cristandade, logo no seu início, combateu os

maniqueus porque eles não acreditavam em nada além do espírito; agora tem que

combater os maniqueus, porque eles não acreditam em nada além da matéria.”

Mas a ideia de um homem comum não é equivalente a uma ideia de um homem

vulgar. Lewis diria: “Não existe tal coisa, uma vez que aquilo que nos é comum a

todos, não é de modo nenhum uma coisa comum.” Em 1941, em Oxford, diria: “Não

existem pessoas vulgares. Nunca falámos com um mero mortal. Nações, culturas,

artes, civilizações – são mortais…Mas são imortais aqueles com quem brincamos,

com quem casamos, a quem humilhamos, a quem exploramos. À semelhança do

Santíssimo Sacramento, o teu próximo é o objecto mais sagrado que te é apresentado

aos sentidos.”

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Citando Dante, Paraíso V:19-20, Chesterton afirma a convicção de que ao fazer um

uso correcto da razão em liberdade, o homem se assemelha ao Deus que o dotou de

tal razão. Chesterton considerava uma loucura obscena alterar a percepção do

homem como imagem de Deus para o perceber como um mero produto da matéria:

“Alguma coisa no espírito vil do nosso tempo nos faz inclinar a encontrar uma

explicação material ou mecânica para tudo, para as nossas acções e para as acções

de outras pessoas, quando se sabe que estas geralmente resultam da parte não

mecânica do homem, essa qualidade sagrada da criação: a livre escolha”.

Chesterton jornalista, Dostoiévski engenheiro, Lewis historiador e professor de filosofia

e literatura…filósofos ou não? Diz Étienne Gilson:

“Chesterton é um dos mais brilhantes pensadores que alguma vez existiram, apesar

de não ter sido um académico, nem um filósofo profissional, nem sequer aquilo a que

hoje se chama um intelectual. Ele era apenas um jornalista, em certo sentido, um

jornalista contundente. Ele era um jornalista metafísico, um escritor contundente que

viu a vida como um todo, como ela é. Ele tentou obter para cada um uma visão da vida

à luz de uma filosofia geral. Numa época de especialistas, ele era generalista; numa

época de professores de filosofia, ele era um filósofo; numa época de notícias da

actualidade, ele esforçou-se por apresentar as verdades ancestrais de uma forma

nova, poder-se-ia dizer na forma de uma novela.”