fatos novorum: aplicabilidade do artigo 462 do cpc nos tribunais de superposiÇÃo

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FOLHA DE IDENTIFICAÇÃO DO AUTOR ZULMAR DUARTE DE OLIVEIRA JUNIOR Advogado Consultor Jurídico do Estado de Santa Catarina Professor do Centro Universitário Barriga Verde (UNIBAVE) Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pelo Centro de Ensino Superior Sul Brasileiro (CESULBRA).

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FOLHA DE IDENTIFICAÇÃO DO AUTOR

ZULMAR  DUARTE  DE  OLIVEIRA  JUNIOR  

Advogado

Consultor Jurídico do Estado de Santa Catarina

Professor do Centro Universitário Barriga Verde (UNIBAVE)

Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pelo Centro de Ensino Superior Sul

Brasileiro (CESULBRA).

FATOS NOVORUM: APLICABILIDADE DO ARTIGO 462 DO CPC NOS

TRIBUNAIS DE SUPERPOSIÇÃO

1. Exposição do fato e do direito; 2. Demonstração do cabimento do recurso

interposto; 3. Divergência jurisprudencial entre os Tribunais de

Superposição; 4. Razões recursais; 5. Considerações finais; 6. Referências.

1. Exposição do fato e do direito1.

É sobremaneira um desafio escrever para uma coletânea que pretende, no

fechamento de um quartel de século da existência do Superior Tribunal de Justiça, passar

em revista sua exegese sobre o atual Código de Processo Civil.

No tema, dourando de maior importância à análise, o Superior Tribunal de

Justiça alia, no relativo ao Código de Processo Civil, a autoridade do argumento ao

argumento de autoridade2, pois, certo ou errado, uniformiza o entendimento sobre o

sentido e alcance3 daqueles preceptivos4.

É o adágio hoje renhido quanto ao Supremo Tribunal Federal, mas aplicável ao

Superior Tribunal de Justiça no concernente ao plano infraconstitucional, qual seja, o

direito de errar por último.

E aí, no perscrutar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça,

defrontamo-nos com um tema em que destoa daquela propugnada por outros Tribunais de

Superposição, também uniformizadores, exatamente no tocante ao Código de Processo

Civil.

                                                                                                                         1 Código de Processo Civil (CPC), artigo 541, inciso I. 2 Lembremos de ARISTÓTELES: “Amicos Platos, sed magis amica veritas”. 3 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 16. ed. Forense: Rio de Janeiro, 1997. p. 1. 4 Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), artigo 105, inciso III.

Demais disso, virtuosamente o entendimento esposado pelo Superior Tribunal

de Justiça, além de mais adequado à temática, é daqueles que vivifica o epíteto autógrafo

de Tribunal da Cidadania.

Não fosse suficiente, em feliz coincidência, a matéria ocupa uma bela

passagem do Manual de Direito Processual Civil, do Professor ARRUDA ALVIM5, nas

páginas dos qual, nos idos de 1999, enamorei-me definitivamente pelo direito processual.

Pois bem, o presente artigo vai tratar do artigo 462 do Código de Processo

Civil, no que permite a abertura do sistema processual para a vida, aspirando um

provimento jurisdicional mais rente à fugidia realidade.

Para tanto, honrando o Superior Tribunal de Justiça, expõe-se o tema na

perspectiva metodológica de um recurso especial, chave recursal que, por excelência, abre

às portas de entrada do Tribunal para uniformização jurisprudencial, inclusive na disciplina

processual.

2. Demonstração do cabimento do recurso interposto6

O leitor informado depreende que o artigo 462 do Código de Processo Civil

permite a consideração no processo do fato jurígeno superveniente, com os reflexos daí

decorrentes, entre eles, o (in)sucesso de determinada pretensão.

Oportuno se torna dizer, a questão ora suscitada está atada num dos pontos

mais sensíveis ao processo civil, qual seja, a relação entre o processo e a vida, entre o

regrado e o arbitrário.

Precisamente, pelo desenrolar vertiginoso da vida até a morte, que a tudo e a

todos alcança indistintamente, o fator tempo, por vezes, tem influência sobre a pretensão

judicializada, razão porque determinadas alterações são impostas à cognição dos órgãos

jurisdicionais.

Deveras, o próprio direito romano, conquanto com vacilações, admitia que o

adimplemento posterior a litiscontestatio absolvia o réu — adimplemento post acceptum

judicium —, como versado por GAIO, em suas Institutas, IV, 114:

Falta que consideremos cuál debe ser el deber (officium) Del ‘iudex’ en el caso de que antes de que el assunto quede juzgado, pero depués de haber aceptado el juicio, el demandado diera satisfacción al actor.

                                                                                                                         5 ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil: processo de conhecimento. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 1997. v. 2. 6 CPC, artigo 541, inciso II.

En esto caso debe absolver o antes bien condenar? Nuestros maestros estiman que debe absolver, sin interesar de qué clase de juicio se trate, y por ello se dice vulgarmente que para Sabino y Cássio, todas las acciones contienen la posibilidad de la absolución (omnia iudicia absolutória esse). 7

Verdade seja, a ideia foi absorvida e reproduzida pelos ordenamentos

processuais modernos, em maior ou menos extensão, os quais regulam, em alguma medida,

o influxo do tempo sobre o objeto do processo, mormente pelo advento de fatos

constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos.

A Ordenança Processual Civil alemã (ZPO), no § 268 estabelece:

A demanda não se considera modificada quando, sem alterar os fundamentos da mesma: (...) 3º no lugar do objeto primitivamente pedido, por causa de transformações ocorrida posteriormente, se peça outro ou se prejudique.

À sua vez, estatui o artigo 663 do Código de Processo Civil lusitano89:

(Atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes) 1. Sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão. 2. Só são, porém, atendíveis os factos que, segundo o direito substantivo aplicável, tenham influência sobre a existência ou conteúdo da relação controvertida. 3. A circunstância de o facto jurídico relevante ter nascido ou se

                                                                                                                         7 GAYO. Institutas. Texto traducido, notas e introduccion por Alfredo Di Pietro. Cuarta Edicion. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1993. 8 O Supremo Tribunal de Justiça português decidiu sobre a interpretação do preceptivo: “I - A atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, nos termos da última parte do nº1 do artigo 663 do Código de Processo Civil, pressupõe a alegação desses factos pelas partes através de articulados supervenientes, ou que eles sejam notórios. II - A ampliação da matéria de facto nos termos do nº3 do artigo 729 do Código de Processo Civil só pode incidir sobre factualidade já trazida ao processo, designadamente através de articulados supervenientes. III - A indemnização por danos futuros decorrentes de incapacidade permanente deve ser avaliada como dano patrimonial e corresponder a um capital produtor de rendimento que a vítima não irá auferir e que se extinguirá no final do tempo provável da sua vida activa. IV - No cálculo da indemnização referida em IV a equidade funciona como elemento corrector do resultado que se atinja com base nos factos provados, eventualmente trabalhados com o recurso a tabelas financeiras ou outro elementos adjuvantes, que, por isso, nunca poderão ser arvorados em critérios únicos e infalíveis”. (Processo no 03B4271, número convencional JSTJ000, relator FERREIRA GIRÃO). 9 O projeto de Novo Código de Processo Civil português repete a disposição sem inovação substancial, como dá conta o artigo 611.o da proposta. Disponível em: https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZGVmYXVsdGRvbWFpbnxpcHBjaXZpbHxneDozMTZmMTFjZTlhNjQ2YjY1 Acesso em: 30-jan-2013.

haver extinguido no decurso do processo é levada em conta para o efeito da condenação em custas”.

Ponto está, o legislador processual civil brasileiro também versou sobre a

influência do tempo no processo de forma expressa no artigo 462 do Código de Processo

Civil10, in verbis:

Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento da lide, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença.

Nessa ordem de raciocínio, com a inserção do mencionado preceptivo na

legislação processual civil, pretende-se, às claras, que:

os parâmetros (legais e fáticos), para a decisão, devem ser aqueles existentes no momento da sentença, o que vale como regra geral se, entre o momento da postulação e o instante da sentença, houver alteração de um e outro. Isto implicará que, verificada a existência de direito superveniente (art. 462), será o momento da sentença aquele em que tal fato ou regra jurídica supervenientes deverão ser considerados e aplicados.11

À obviedade, em tal operação, de recepção desses fatos novos supervenientes,

jamais se poderá admitir a violação ao postulado do perpetuatio libelli, tal qual

estratificado nos artigos 264 e 294 do Código de Processo Civil. Ora, se se tratar de novo

fato constitutivo, não alteração do preexistente, o que se tem é uma demanda diversa (CPC,

artigo 301, §§ 1o, 2o e 3o).

Mutatis e mutandis, ensinava CHIOVENDA:

A proibição de mudar no curso da lide a causa petendi não exclui o direito de valer-se de uma causa superveniens, desde que seja a mesma causa afirmada em princípio como existente (supra, nº 38); pois uma coisa é a afirmação duma causa petendi (que se deve ter em conta no princípio do litígio), outra é a sua subsistência efetiva (que se deve ter em conta no encerramento da discussão).12

                                                                                                                         10 À sua vez, o projeto de Novo Código de Processo Civil explicita em duas oportunidades: “Art. 505. Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao órgão jurisdicional tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão. Parágrafo único. Se constatar de ofício o fato novo, o órgão jurisdicional ouvirá as partes sobre ele antes de decidir” e “Art. 955. Se o relator verificar a ocorrência de algum fato superveniente ao pronunciamento recorrido, ou de alguma questão cognoscível de ofício ainda não examinada, que deva ser levado em conta na decisão do recurso, deverá ouvir as partes no prazo de cinco dias”. 11 ALVIM, op. cit., p. 658. 12 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituição de direito processual civil: as relações processuais; a relação ordinária de cognição. Tradução de Paolo Capitanio. Anotado por Enrico Tullio Liebman. Campinas: Bookseller, 1998. v.1, p. 435.

Portanto, numa compreensão rasa do preceptivo que não ultrapassa os lindes da

exegese semântica, a alteração do fato constitutivo, modificativo, impeditivo ou extintivo

do direito, após a propositura da demanda e antes da sentença, impõe ser considerada pela

última.

Com isso, far-se-á uma acomodação do fio de prumo decisório ao horizonte da

vida, na sua cambiante realidade, permitindo que o provimento jurisdicional não se torne

uma irrealidade, um projeto irreal.

Assim, o artigo 462 possibilita, numa primeira leitura, que as sentenças

judiciais sejam rentes à realidade, possibilitando que alterações empíricas ocupem no

processo o lugar e espaço que têm na vida.

Todavia, cogita-se, será essa a melhor exegese do artigo 462 do Código de

Processo Civil, no que encontra no dístico linguístico “sentença” um limitador topológico

para sua incidência, isto é, para a abertura do processo aos fatos da vida, constitutivos,

modificativos, impeditivos ou extintivos.

Noutras palavras, quiçá mais claras, a interpretação literal do dispositivo

esvazia outras possibilidades hermenêuticas, confinando o sentido e alcance do artigo 462

do Código de Processo Civil aos lindes de resistência semântica do vocábulo “sentença”.

Diversamente disso, poderia o dispositivo ser compreendido mais largamente,

extravasando a literalidade do enunciado, possibilitando que, antes do trânsito em julgado,

independentemente do momento procedimental, as alterações empíricas nos fatos

constitutivos, modificativos, impeditivos e extintivos ao direito sejam levadas em

consideração pelo órgão jurisdicional.

Esse é o quadro que justifica o presente artigo e demonstra, por assim dizer, o

cabimento do recurso.

3. Divergência jurisprudencial entre os Tribunais de Superposição13

A nosso pensar, grassa atualmente divergência entre os Tribunais de

Superposição, aqui entendidos como àqueles predestinados à uniformização do

                                                                                                                         13 CPC, artigo 541, parágrafo único.

ordenamento (v.g. STF, STJ, TST e TSE14), sobre o sentido e alcance do artigo 462 do

Código de Processo Civil.

Tenha-se presente que a constatação parte de uma tendência expressada pelos

precedentes preponderantes e mais recentes dos respectivos Tribunais, porquanto o objeto

do presente artigo não é um estudo de casos.

Por via de consequência, podemos dizer, com certa margem de segurança,

enquanto o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Superior do Trabalho conferem uma

interpretação mais alargada ao artigo 462 do Código de Processo Civil, o Supremo

Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral propugnam exegese inversa.

Precisamente, o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral

restringem a aplicação do artigo 462 no argumento da necessidade irrestrita de observância

do prequestionamento.

Em rápidas pincelas, o prequestionamento15 é um pressuposto de

admissibilidade dos recursos augustos e angustos, os extraordinários, especiais e de revista,

ligado à circunstância da necessidade de que a pretensão recursal de vilipêndio ao

ordenamento (infra)constitucional tenha sido debatida na origem.

O próprio signo linguístico já direciona corretamente o raciocínio,

prequestionamento é a indispensabilidade da parte previamente questionar, “pré-

questionar”, a violação do preceptivo (supra)legal.

Justamente, ao abrigo da imperiosa e prévia submissão da questão aos tribunais

inferiores, o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral entendem por

incognoscíveis, no ar rarefeito de Brasília, na via não oxigenada do extraordinário e do

especial, fatos jurídicos supervenientes.

A esse respeito, expressivo o acórdão prolatado pelo Supremo Tribunal

Federal:

                                                                                                                         14 Na exposição, seguir-se-á a ordem de aparição na Constituição dos referidos Tribunais, no capítulo relativo ao Poder Judiciário (artigo 92 e seguintes). Ainda, por razões óbvias, exclui-se deliberadamente do âmbito de análise do Superior Tribunal Militar. 15 Não se põe em questão a constitucionalidade do prequestionamento, uma vez que reconhecida numa miríade de casos pelo Supremo Tribunal Federal, que aplica reiteradamente os enunciados de súmula nos 282 e 356 de sua jurisprudência. Anote-se, o Ministro Alfredo Buzaid anotou ter o prequestionamento derivado da lei judiciária norte-americana de 24.9.1789 — writ of error (ERE 96.8002, relator Ministro Alfredo Buzaid, RTJ 109/299).

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. FATO NOVO. GED. CARÁTER GERAL. 1. A jurisprudência do Supremo é firme no sentido de ser inaplicável na fase extraordinária o disposto no artigo 462 do Código de Processo Civil. Precedentes. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 490076 AgR, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 05/06/2007, DJe-047 DIVULG 28-06-2007 PUBLIC 29-06-2007 DJ 29-06-2007 PP-00126 EMENT VOL-02282-12 PP-02436 RT v. 96, n. 865, 2007, p. 128-129).

O entendimento tem sido perfilhado pelo Tribunal Superior Eleitoral, em

decisões recentes, ao interpretar tanto o artigo 462 do Código de Processo Civil, quanto o

artigo 11, § 10, da lei no 9.504, de 30 de setembro de 1997:

ELEIÇÃO 2012. REGISTRO DE CANDIDATURA. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. QUITAÇÃO ELEITORAL. APRESENTAÇÃO EXTEMPORÂNEA DE CONTAS DE CAMPANHA. ELEIÇÕES 2008. CONDIÇÃO DE ELEGIBILIDADE. AUSÊNCIA. AFRONTA. ARTIGO 11, § 10, DA LEI Nº 9.504/97. INOVAÇÃO DE TESE. FUNDAMENTO NÃO ATACADO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 182 DO STJ. DESPROVIMENTO. 1. A alegação de afronta ao § 10 do artigo 11 da Lei nº 9.504/97 constitui inovação recursal, inadmissível nesta instância especial. 2. Incide a Súmula 182 do STJ quando o agravante deixa de se voltar contra fundamento suficiente da decisão agravada, consubstanciado, no caso, na deficiência de fundamentação do recurso especial. 3. Segundo orientação deste Tribunal, a quitação eleitoral é condição de elegibilidade, razão pela qual não se aplica a ressalva prevista no artigo 11, § 10, da Lei das Eleições, que se refere exclusivamente às causas de inelegibilidade. 4. Agravo regimental desprovido. (Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 24109, Acórdão de 25/09/2012, Relator(a) Min. LAURITA HILÁRIO VAZ, Publicação: PSESS - Publicado em Sessão, Data 25/09/2012 )

Em contraponto, o Superior Tribunal de Justiça tem ampliando as hipóteses de

incidência do dispositivo, não se submetendo ao jugo do prequestionamento, como dá

conta recentíssimo julgado:

PROCESSO CIVIL. DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ART 462 DO CPC. DIREITO SUPERVENIENTE. ERROR IN PROCEDENDO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL CIVIL DECORRENTE DA PRÁTICA DE ATO ILÍCITO. PENHORA DE BEM DE FAMÍLIA. LEI 8.009/1990. INTERPRETAÇÃO ESTRITA. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. (...). 4. É dever do magistrado, no momento de proferir a sentença, levar em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, a superveniência de fato ou direito novo, nos termos do art. 462 do

CPC, incorrendo em error in procedendo o Tribunal que, ignorando tal providência, prolata acórdão que dá ensejo à coexistência de duas decisões inconciliáveis - uma no processo de execução, determinando a impenhorabilidade do bem de família, e outra nos embargos, estabelecendo a possibilidade de excussão desse mesmo bem. (...). (REsp 1074838/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 23/10/2012, DJe 30/10/2012).

Outrossim, o Tribunal Superior do Trabalho, em idêntica exegese, editou

enunciado de súmula de sua jurisprudência no 394, donde se extrai:

ART. 462 DO CPC. FATO SUPERVENIENTE (conversão da Orientação Jurisprudencial nº 81 da SBDI-1) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005 O art. 462 do CPC, que admite a invocação de fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito, superveniente à propositura da ação, é aplicável de ofício aos processos em curso em qualquer instância trabalhista. (ex-OJ nº 81 da SBDI-1 - inserida em 28.04.1997)

Portanto, sobre a mesma questão de direito, sem descurar e esmiuçar as

particularidades de cada um desses Tribunais, tem-se soluções diversas, notadamente sobre

o sentido e alcance do artigo 462 do Código de Processo Civil.

O que importa reter, neste passo, é que o STF e o TSE restringem,

circunscrevem, a aplicação do dispositivo às instâncias anteriores, somente aceitando sua

discussão se previamente prequestionado, isto é, se o recurso mesmo já aponta a má

aplicação do art. 462 do Código de Processo Civil pelos juízos de piso inferior.

Nesta linha, os referidos Tribunais, salvo quando atuam em revisões

ordinárias16, somente tratariam da alteração dos fatos constitutivos, modificativos,

impeditivos e extintivos se apresentados na instância anterior, realizando assim juízo de

correção de sua consideração pelo respetivo tribunal e, pois, a (in)existência de vilipêndio

ao artigo 462. Aliás, tal compreensão, no relativo ao STF, inviabiliza qualquer debate

sobre o tema na Corte Suprema, já que não predestinada constitucionalmente ao debate da

legislação infraconstitucional. Quando muito, somente discutira a (não) recepção17 do

dispositivo pela atual Constituição, mercê do controle de constitucionalidade.

                                                                                                                         16 Por exemplo, julgando recurso ordinário em mandado de segurança (CRFB, artigo 102, inciso II). 17 “O fato de o novo ordenamento ser constituído em parte por normas do velho não ofende em nada o seu caráter de novidade: as normas comuns ao velho e ao novo ordenamento não pertencem apenas materialmente ao primeiro; formalmente, são todas normas do novo, no sentido de que elas são válidas não mais com base na norma fundamental do velho ordenamento, mas com base na norma fundamental do novo. Nesse sentido falamos de recepção, e não pura e simplesmente de permanência do velho no novo. A recepção é ato jurídico com o qual um ordenamento acolhe e torna suas as normas de outro ordenamento, onde tais normas permanecem materialmente iguais, mas não são mais as

Noutro giro, mas ao redor do mesmo epicentro, o STJ e o TST autorizam a

submissão da alteração factual, na vez primeira, quando aberta sua competência pelo

manejo dos recursos especialíssimos (v.g. especial e revista), independentemente do

prequestionamento.

Neste contexto, presente a desinteligência nas soluções, necessário dirimir a

divergência, para que um só entendimento prevaleça, uma só ótica, uma só voz, qual seja,

aquela que extraia adequadamente os sons e dê amplitude ao artigo 462 do Código de

Processo Civil.

4. Razões recursais18

Na gama de possibilidades hermenêuticas, a melhor exegese do texto, na nossa

ótica, é a que empresta ao dispositivo legal a virtuosidade de incidir durante toda a

pendência do processo, propriamente a litis pendentia19.

E aí, o dístico linguístico “sentença” constante no dispositivo legal não deve

servir como limite às suas potencialidades, isto é, a possibilidade do fato superveniente ser

considerado após a prolação do provimento jurisdicional de primeiro grau.

Isso porque, faz muito que demonstrada à inexatidão do método de

interpretação verbal ou filológico:

Até mesmo na expressão literal das idéias e dos vocábulos ficam infinitamente aquém do pensamento, sem por isso prejudicarem em nada a fidelidade e a integridade da sua reprodução no espírito do interlocutor. Provocam apenas a reconstrução do pensamento, para a qual fornecem o ponto de apoio. A letra não traduz a idéia, na sua integridade: provoca, em alheio cérebro, o abrolhar de um produto intelectual semelhante, jamais idêntico, ao que a fórmula é chamada a exprimir. Eis porque a todos se antolha deficiente, precária, a exegese puramente verbal.20

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 mesmas com respeito à forma.” (BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: UNB, 1999. p. 177). 18 CPC, artigo 541, inciso I. 19 “Antes de tudo, há que se considerar que o termo litispendência é usado, fundamentalmente, em dois sentidos, o primeiro mais amplo do que o segundo, a saber: 1.º) entende-se, no sentido amplo, litispendência com sendo processo, em ato, produzindo todos os efeitos; 2.º) no sentido mais restrito, entende-se por litispendência, meramente, um dos efeitos produzidos pelo processo, no sentido de um primeiro processo inibir um segundo cuja lide seja idêntica, levando o segundo à sua extinção, sem julgamento de mérito (art. 301, § 1.º, e art. 267, V).” (ALVIM, op. cit., v. 1, p. 323/324). 20 MAXIMILIANO, op. cit., p. 117/118.

Não restam dúvidas, só aparentemente a palavra possui rigidez, decorrente de

sua forma exteriorizada, uma vez que, durante o tempo, retrata realidades sucessivas. É por

natureza elástica e dúctil, variando a significação com a evolução.

Obviamente, tal consideração não pode servir de empeço, entre as acepções

variegadas, na fixação do que pretende exprimir a expressão normativa, seu sentido

jurídico correto, mas demonstra a precariedade do método filológico.

Inadequado seria olvidar, que igualmente caído o brocardo in claris cessat

interpretatio21, tendo em linha de conta inexistir expressão significativa não passível de

interpretação. A palavra não exprime bem a realidade, não retrata o pensamento com

exatidão, deixando sempre margem para dúvidas, pois sob o invólucro verbal jazem

diferentes possibilidades.

ULPIANO já atestava: “Quamvis sit manifestissimum edictum praetoris,

attamen non est negligenda interpretatio ejus” — embora claríssimo o edito do pretor,

contudo não se deve descurar da intepretação respectiva.

Bem observou NÉVITON GUEDES22:

                                                                                                                         21 “Mas, observando bem, a raiz do equívoco há pouco levantada está em considerar como suficiente a si mesma a enunciação da norma como juízo lógico. Somente então se conclui que, quanto a enunciação é clara, não há necessidade de mais nada: ‘in claris non fit interpretatio’. E é justamente nisso que reside o erro. Pois, argumentando dessa forma, esquece-se de que, nesse caso, não se trata de um juízo com função meramente cognoscitiva (por exemplo, de um juízo histórico), mas de um instrumento forjado para disciplinar a vida de relação. E então é preciso ver em cada caso como esse instrumento funciona e se é útil para o objetivo a que deveria corresponder: ou seja, se consegue resolver o problema prático, cuja solução ele representa. Não basta simplesmente verificar aquilo que a lei diz: um intérprete que se limitasse a levar em conta a fórmula legislativa porque é ‘escrita assim’ ou o costume porque é praticado de tal maneira e prescindisse de indagar qual avaliação normativa constitui seu ratio iuris mostraria ter uma noção bastante mísera do sentido da lei e não cumpriria sua tarefa. A lógica do direito é algo muito mais elevado do que uma pobre lógica formal de cada proposição legislativa; e é tarefa do intérprete espiritualizá-la, considerando como imanente a ela o momento teleológico e percebendo a coerência de todo o sistema. A própria argumentação por analogia tem caráter essencialmente teleológico.” (BETTI, Emilio. Interpretação da lei e dos atos jurídicos. Tradução Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 231). 22 CARNELUTTI, em livro datado de 1914, já tinha percebido agudamente sobre o testemunho: “Se o depoimento é uma representação proporcionada pelo homem, ou seja um ato seu consistente em representar um fato, se concreta em uma manifestação da idéia de que a testemunha tem do próprio fato. Por uma razão psicológica elementar, esta manifestação quase nunca tem lugar mediante a reprodução (representação) analítica de todos os elementos objetivos sobre os quais formaram a idéia, senão mediante uma ou mais representações sintéticas dos próprios elementos, ou seja, mediante uma ou mais definições ou julgamentos. Medeia nisso uma necessidade derivada da própria formação da linguagem, que é meio de representação dos fenômenos mediante a expressão das idéias, ou seja das generalizações daqueles: por exemplo, se a testemunha narra ao juiz haver visto um cavalo, não reproduz assim analiticamente os elementos do fato percebido, senão que sintetiza o próprio fato no julgamento: a besta que vi era um cavalo; e inclusive se espontaneamente ou a requerimento do juiz descendesse a uma análise maior, esta resultaria sempre de uma série de definições menores: a besta,

Aliás, Karl Larenz já, há muito, havia denunciado a ingenuidade de se afirmar como totalmente objetivo um juízo que pretende aplicar textos legais (plano das abstrações) a fatos concretos (plano da realidade). A começar pelos textos legais, que só se transformam em normas pelo filtro subjetivo e sempre (pré)conceituoso da interpretação e hermenêutica dos tribunais, também os fatos submetidos ao Judiciário não passam de “interpretação de interpretação” — o juiz interpreta os fatos a partir da interpretação feita pelas testemunhas, peritos, procuradores e advogados. Assim, tudo num juízo de “mera” subsunção abre-se a alguma avaliação subjetiva.23

Com isso obviamente não estamos dizendo que se deva colocar à margem a

nomogênese, já que indispensável a recognição da avaliação primeva, latente na letra da

lei, sua razão jurídica de existência. Mas é preciso mais, temos que superar essa relação

inicial e colher a norma na sua fase atual de amadurecimento.

Melhor ainda, partindo do enunciado legal, cumpre-lhe dar sentido conducente

com o sistema processual como um todo (interpretação sistemática) e, também, com sua

finalidade, com seu destino (teleológica).

Oportuno se torna dizer, uma das melhores formas de conhecer os atos

normativos é compará-los com outros do mesmo repositório legislativo, presente que por

umas normas se conhecem o sentido e o alcance das demais — interpretação sistemática.

Possui todo corpo órgãos diversos; porém a autonomia das funções não importa em separação; operam-se, coordenados, os movimentos, e é difícil, por isso mesmo, compreender bem um elemento sem conhecer os outros, sem os comparar, verificar a recíproca interdependência, por mais que à primeira vista pareça imperceptível. O processo sistemático encontra fundamento na lei da solidariedade entre os fenômenos coexistentes. Não se encontra um princípio isolado, em ciência alguma; acha-se cada um em conexão íntima com outros. O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio. De princípios jurídicos mais ou menos gerais deduzem corolários; uns e outros se condicionam e restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de modo que constituem elementos autônomos operando em campos diversos.24

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 que vi tinha quatro patas, era alta, com as orelhas curtas etc”. (CARNELUTTI, Francesco. A prova civil. Traduzido por Lisa Pary Scarpa. Campinas: Bookseller, 2001. p. 162/163). 23 GUEDES, Néviton. Da irracionalidade à hiper-racionalidade nas decisões. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-jan-14/constituicao-poder-irracionalidade-hiper-racionalidade-decisoes Acesso em: 27-jan-2013. 24 MAXIMILIANO, op. cit., p. 128.

Também, a hermenêutica sobre a norma envolve o desvelar de sua verdadeira

razão (ratio essendi), a conjuntura da mesma, as circunstâncias específicas atinentes ao

objeto da norma, o impulso exterior à emanação do texto, suas causas mediatas e

imediatas25.

Isso porque, como assentou o Ministro CARLOS AYRES BRITTO, na Ação

de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 95, o para quê normativo condiciona o

quê normativo.

A este respeito, irrepreensível a lição de LARENZ:

Os fins que o legislador intenta realizar por meio da lei são em muitos casos, ainda que não em todos, fins objectivos do Direito, como a manutenção da paz e a justa resoluçãoo dos litígios o <<equilíbrio>> de uma regulação no sentido da consideração optimizada dos interesses que se encontram em jogo, a protecção dos bens jurídicos e um procedimento judicial justo. Além disso, todos nós aspiramos a uma regulação que seja << materialmente adequada>>. Só quando se supuser essa intenção da parte do legislador se chegará, por via da interpretação, a resultados que possibilitam uma solução <<adequada>> também no caso concreto.26

Assim, ao aplicar a norma à milímoda de variantes apresentadas pela vida,

submetendo essa vida real às prescrições legislativas, necessário perquirir seus objetivos,

os quais servirão como verdadeira baliza normativa.

Em uma frase: “Não se deve ficar aquém, nem além do escopo referido”.27

A par disso, ouso dizer que a interpretação sistemática do Código de Processo

Civil aponta para uma ampliação do alcance do seu artigo 462, no que o repositório

processual, por diversas vezes, em repto quiçá inalcançável, objetiva adequar os comandos

jurisdicionais à realidade.

A este respeito, expressivos os artigos 146, parágrafo único, 303, inciso I, e

517, todos do Código de Processo Civil, os quais, em conjunto com o próprio artigo 462,

abrem brechas no sistema à recepção de fatos supervenientes.

Na mesma toada, conquanto relativos a momento diverso, pós trânsito em

julgado, podem ser alinhados os artigos 471, 475-L, VI, 485, 741, 746 e 1.111 do Código

                                                                                                                         25 MAXIMILIANO, op. cit., p. 152. 26 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 6. Ed. Tradução de José Lamego. Liboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012. p. 469. 27 MAXIMILIANO, op. cit., p. 152.

de Processo Civil, que, em última análise, visam adaptar o provimento jurisdicional

transitado em julgado à vida cambiante.

Todavia, poder-se-ia contrapor que o argumento comprovaria demais, provaria

contra a própria tese, uma vez que as flexões do sistema processual aos fatos, como acima

alinhadas, seriam normas de exceção, tudo a confirmar a regra.

A despeito da correção do axioma exceptiones sunt strictissimoe

interpretationis28, não me convenço da sua aplicação ao tema, tendo em linha de conta que

a interpretação teleológica também conforta o entendimento ampliado.

Bom é dizer, na nossa concepção, o que se pretende com o artigo 462 do

Código de Processo Civil, por mais inglório que seja o resultado, é aproximar o

provimento jurisdicional da realidade por si recortada e sobre a qual pretende operar com

eficácia.

Sabido e consabido que o sistema processual acomoda as contingências do

processo cognitivo no postulado da segurança jurídica, alheando-se, no mais das vezes29,

sobre o resultado alcançado no processo judicial após algum tempo (trânsito em julgado).

É que o julgamento, no que pretende construir o futuro de um passado ou

reconstruir o passado de um futuro30, trabalha com meras verossimilhanças31 e, embora

aspire, nem sempre coincide com a realidade.

                                                                                                                         28 “Trata-se, porém, de ius singular, quando a disciplina do caso constitui uma interrupção da consequencialidade lógica e político-legislativa dos princípios, um desvio de suas diretivas gerais, de modo a colidir com ela e excluí-la: uma anomalia, cuja extensão, mesmo não sendo impensável, abriria uma brecha mais larga na normalidade e aumentaria a desarmonia com a logica dos princípios e com o propósito de coerência racional que se pode extrair dela, mesmo sendo ditada pela avaliação de uma utilitas, de um interesse de relevância social, ainda que transitório (de onde resulta o caráter contingente e provisório) ou bem circunscrito.” (BETTI, op. cit., p. 112/113). “Trata-se também de uma exceção segundo a matéria quando a lei derrogou em relação a determinados casos, as mais das vezes estritamente delimitados, uma regra que procura conseguir validade no sentido mais amplo possível, porque a sua realização pareceu ao legislador, inclusivamente nesses casos, pouco prática ou oportuna e, devido a isso, acreditou poder aqui renunciar a ela. Tem de evitar-se aqui que, mediante uma interpretação excessivamente lata das disposições excepcionais, ou mediante a sua aplicação analógica, o propósito de regulação do legislador se transmude afinal no seu contrário.” (LARENZ, op. cit., p. 503). 29 Existe em hipóteses restritas a possibilidade de rescisão da coisa julgada (CPC, artigo 485). 30 CARNELUTTI, op. cit., p. 190. 31 “Aller Beweis ist richtig verstanden nur Wahrscheinlichkeitsbeweis: todas as provas, se enxergasse com detalhe, não são mais do que provas de verossimilitude. Esta afirmação de relativismo processual, feita quanto ao processo civil por um grande jurista, pode valer igualmente, não só para o processo penal, senão, mesmo fora do campo mais diretamente processual, para todo juízo histórico a respeito de fatos que se dizem acontecidos: quando se diz que um fato é verdadeiro, se quer dizer em substância que tem conseguido, na consciência de quem como tal o julga, aquele grau máximo de verossimilitude

Em rápido e genérico raciocínio, a norma jurídica, enquanto mandato

hipotético, supõe determinada situação e estatui. O fim do processo seria então a

comprovação da identidade ou diferença entre a situação suposta na norma e aquela

delineada entre as partes.

Nada obstante, existem limites jurídicos à comprovação dos fatos, alterando

sua construção puramente lógica para uma busca regrada, juridicamente limitada, pelo que

a verdade obtida no processo é meramente formal32 — verossimilhança.

Posta assim a questão, a coincidência é meramente contingente, nem sempre

alcançada, muito menos necessária. O processo cognitivo no processo judicial visa a

estabelecer uma razoável segurança no provimento jurisdicional, a fim de que, na maioria

dos casos, corresponda à realidade.

Agora, isso não impede que a construção do sistema processual se faça atrelado

a tal objetivo ótimo, bem como àquele seja permeável a realidade, visando, tal qual

espelho, captá-la mais fielmente possível, no que à luz para o espelho encontra como

paralelo a prova no processo judicial.

Justamente, o artigo 462 do CPC é uma abertura sistêmica do processo judicial

ao real, permitindo a apreensão deste na sua contínua e potenciais transformações. Uma

coisa é admitir que o ser humano, e o processo como um dos produtos de sua atividade,

não é capaz de dar conta da realidade (falibilidade sistêmica). Outra bem diversa é fechar o

processo para esta, permitindo um retrato infiel e, por certo, também ineficaz.

Pois bem, sendo essa a razão subjacente, impõe-se, ainda que em sede de

recursos augustos e angustos, a consideração da alteração superveniente pelos Tribunais de

Superposição, como permite uma adequada compreensão do artigo 462 do Código de

Processo Civil.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 que, em relação aos limitados meios de conhecimento de que o julgador dispõe, basta para lhe dar certeza subjetiva de que aquele fato tem ocorrido.” (CALAMANDREI, Piero. Direito processual civil: estudos sobre processo civil. Tradução de Luiz Abezia e Sandra Drina Fernandez Barbery. Campinas: Bookseller, 1999. v. 3, p. 269-270). 32 “Aqui me contentarei em insistir na idéia de que basta um limite mínimo à liberdade de busca do juiz, para que o processo de busca da realidade degenere em processo formal de determinação; em outras palavras: a medida do limite é indiferente para natureza do processo. A verdade é como água: ou é pura, ou não é verdade.” (CARNELUTTI, op. cit., p. 52).

A fronteira para aplicação do artigo 462 do Código de Processo Civil não deve

se dar no elevador de acesso — pelo andar em que tramita à causa —, mas sim no trânsito

em julgado do provimento jurisdicional, uma vez que:

A litispendência consiste exatamente nessa pendência de aspirações e expectativas; e dura enquanto uma parte, a serviço de suas próprias aspirações, pode pretender um pronunciamento da autoridade judiciária.33

Assim, ao ensejo de arremate voltemos ao que nos trouxe até aqui, correto, a

nosso juízo, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre a aplicação do artigo

462 do Código de Processo Civil também em sede de especial e independentemente do

prequestionamento.

Faço coro com DELLORE:

A interpretação do art. 462 não deve ser gramatical, mas teleológica-sistemática. Nesse contexto, até que proferida a última decisão, o fato superveniente deve ser levado em consideração, de modo que a prestação jurisdicional seja a mais adequada possível.34

Deste modo, a melhor exegese do artigo 462 do CPC é aquela conferida pelo

Superior Tribunal de Justiça, no que permite sua aplicação enquanto pendente o processo

(litispendente), aproximando-o da viva realidade.

Porém, como também observado por DELLORE, ao aplicar o artigo 462 do

CPC, qualquer órgão jurisdicional deve fazê-lo respeitando o contraditório, permitindo o

debate pelas partes da (in)existência de fato superveniente. Ainda, pensamos, quando

ocorrente o fato superveniente, tal deve ser considerado na distribuição das despesas

processuais e na atribuição da reponsabilidade sobre os honorários advocatícios, aplicando

analogicamente o artigo 22 do Código de Processo Civil35.

5. Pleito recursal.

É uma pretensão legítima do sistema processual tencionar operar num plano

ideal, objetivando que o produto da atividade jurisdicional seja imaculado, refletindo sem

dispersão a realidade cuja alteração eventualmente projeta.

                                                                                                                         33 CHIOVENDA, op. cit., p. 78. 34 DELLORE, Luiz. Inf. 509/STJ: Até que momento é possível o reconhecimento do fato superveniente? Disponível em: http://atualidadesdodireito.com.br/blog/2012/12/19/inf-509stj-ate-que-momento-e-possivel-o-reconhecimento-do-fato-superveniente/ Acesso em: 30-jan-2013. 35 O Código de Processo Civil de 1939 tinha disposição específica sobre o tema, mas que infelizmente não foi reproduzida pelo atual Código de Processo Civil. É o § 2o do artigo 66 do Código de Processo Civil ab-rogado: “§ 2º Se a sentença se basear em fato ou direito superveniente, o juiz levará em conta essa circunstância para o efeito da condenação nas custas e nos honorários”.

De outro lado, a vida não fica em suspenso durante o processo judicial,

empacada, invariavelmente estagnada, aguardando o provimento jurisdicional para se

transformar. Ao revés, a realidade retratada na inicial ou na resposta fica rapidamente

desatualizada pelo porvir.

O artigo 462 do Código de Processo Civil é a via de acesso, a ponte, que

permite o trânsito do fato existente na inicial, narrado, para o fato transformado

supervenientemente, objetivando sempre que o provimento jurisdicional reflita o real,

condição da própria realização da eficácia do comando.

Daí porque, a melhor exegese do artigo 462 do Código de Processo Civil é a

que permite a consideração do fato superveniente enquanto pendente o processo

(litispendente), ainda que em sede dos recursos augustos e angustos, observando-se

obviamente o contraditório e distribuindo adequadamente os ônus financeiros do processo.

Deste modo, (requer-se) o entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça

sobre o artigo 462 do Código de Processo Civil, propugnado sua incidência sem peias, é o

mais consentâneo ao preceptivo, reforçando ainda o epíteto de Casa da Cidadania do

Superior Tribunal de Justiça.