estética e ideologia no marxismo

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Revista Aproximação — Segundo semestre de 2014 — Nº 8 http://ifcs.ufrj.br/~aproximacao 12 ESTÉTICA E IDEOLOGIA NO MARXISMO Guilherme Celestino Graduando em Filosofia na UFRJ Resumo: O contexto de uma sociedade de consumo determina decisivamente o modo como se dá a produção e a recepção das obras de arte. A tradição da crítica cultural marxista nos abre uma perspectiva de investigação estética que situa a produção cultural na sua dimensão social e nos compromissos ideológicos que por ela são estabelecidos. A base dessa tradição crítica é a análise de Marx da mercadoria vinculada ao fenômeno do fetichismo, e a crítica ideológica que visa a apreender os elementos culturais responsáveis pela dominação política. Neste breve ensaio, busca-se apreender tal dinâmica segundo a conceituação dos pensadores da Escola de Frankfurt, empreendida sobretudo na primeira metade do século XX. Buscaremos também constatar como em alguns pontos seus conceitos precisam ser atualizados e/ou reformulados para dar conta da dinâmica da produção cultural no contexto atual de capitalismo global. Palavra-chave: Estética. Cultura de massa. Fetichismo da mercadoria. Ideologia. Abstract: The context of a consumer society decisively determines how the production and reception of works of art. The tradition of Marxist cultural critique opens up a research perspective that places aesthetic cultural production in its social and ideological commitments. The basis of this critical tradition is Marx's analysis of the commodity that binds to the phenomenon of fetishism, and ideological critique that aims to learn the cultural elements responsible for political domination. Keywords: Aesthetics. Mass culture. Commodity fetishism. Ideology. Introdução Vivemos hoje em uma sociedade de consumo, onde o hábito de consumir faz parte de nosso cotidiano; a maneira como realizamos nossas necessidades dependem diretamente do consumo, mas também a maneira como nos relacionamos com aqueles objetos que não têm serventia prática, as obras de arte, também passam a fazer parte dessa dinâmica do consumo. A arte no mundo de hoje passa a ser, em grande parte, "mercadoria cultural". Um tipo privilegiado de mercadoria, mas ainda assim uma mercadoria. Contudo, o que nos permite pensar que a cultura, em especial a arte, possa se tornar um produto mercadológico de consumo? O que se “perde” de experiência

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ESTÉTICA E IDEOLOGIA NO MARXISMO

Guilherme Celestino

Graduando em Filosofia na UFRJ

Resumo: O contexto de uma sociedade de consumo determina decisivamente o modo como se dá a produção e a recepção das obras de arte. A tradição da crítica cultural marxista nos abre uma perspectiva de investigação estética que situa a produção cultural na sua dimensão social e nos compromissos ideológicos que por ela são estabelecidos. A base dessa tradição crítica é a análise de Marx da mercadoria vinculada ao fenômeno do fetichismo, e a crítica ideológica que visa a apreender os elementos culturais responsáveis pela dominação política. Neste breve ensaio, busca-se apreender tal dinâmica segundo a conceituação dos pensadores da Escola de Frankfurt, empreendida sobretudo na primeira metade do século XX. Buscaremos também constatar como em alguns pontos seus conceitos precisam ser atualizados e/ou reformulados para dar conta da dinâmica da produção cultural no contexto atual de capitalismo global.

Palavra-chave: Estética. Cultura de massa. Fetichismo da mercadoria. Ideologia.

Abstract: The context of a consumer society decisively determines how the production and reception of works of art. The tradition of Marxist cultural critique opens up a research perspective that places aesthetic cultural production in its social and ideological commitments. The basis of this critical tradition is Marx's analysis of the commodity that binds to the phenomenon of fetishism, and ideological critique that aims to learn the cultural elements responsible for political domination.

Keywords: Aesthetics. Mass culture. Commodity fetishism. Ideology.

Introdução

Vivemos hoje em uma sociedade de consumo, onde o hábito de consumir faz

parte de nosso cotidiano; a maneira como realizamos nossas necessidades dependem

diretamente do consumo, mas também a maneira como nos relacionamos com aqueles

objetos que não têm serventia prática, as obras de arte, também passam a fazer parte

dessa dinâmica do consumo. A arte no mundo de hoje passa a ser, em grande parte,

"mercadoria cultural". Um tipo privilegiado de mercadoria, mas ainda assim uma

mercadoria. Contudo, o que nos permite pensar que a cultura, em especial a arte, possa

se tornar um produto mercadológico de consumo? O que se “perde” de experiência

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estética genuína e da capacidade criativa da arte quando a ordem do mercado se torna

determinante para ela? E, por outro lado, nesse mundo do consumo, como seria possível

uma arte que não esteja submetida e possa lhe fazer resistir e fazer crítica?

Bem, essas questões nos levam a dois domínios teóricos que se cruzam: um

primeiro que tenta responder como funciona o sistema capitalista, que reduz todo tipo

de relação social e humana à forma da mercadoria que pode ser denominado por

economia política; e um segundo que busca dar conta dos aspectos históricos e sociais

determinantes dos modos de vida e uma sociedade, ou seja, o que faz uma determinada

cultura ser de determinado jeito, o que define uma crítica social que no caso marxista é

sempre uma crítica ideológica. O primeiro campo se confunde com a investigação que

Marx faz em O Capital sobre as bases econômicas da sociedade e se prolonga na

tradição que hoje chamam de marxismo, entendido como crítica á economia política. O

segundo seria um campo mais amplo, que estuda o que Marx e Engels chamam, de

Ideologia, e envolve a dimensão cultural relacionada intimamente com a base

econômica, e por isso tende a envolver outros campos epistemológicos como o do

inconsciente psicanalítico, a forma estética segundo uma teoria literária, e outras

tendências que divergem entre os teóricos da sociedade. Da intercessão dos dois temos

uma linhagem de crítica cultural de inflexão marxista.

A crítica cultural de maneira geral diz respeito à apreciação e à análise de obras

culturais que buscam apreender seus significados mais relevantes segundo determinados

pontos de vista. No caso, com a tradição marxista, a crítica cultural assume, através da

leitura de obras culturais e artísticas, uma função de leitura do próprio tempo presente

no qual se insere a obra. A função crítica nesse sentido não se restringe à análise e

percepção das qualidades estéticas de uma obra, sua pertinência e valor artístico etc.

Deste modo, a interpretação de um filme, peça de teatro ou romance, assume um papel

de diagnóstico do mundo onde aquela obra é feita e recebida por determinado público.

Escola de Frankfurt, uma retomada crítica

Para a teoria crítica social desenvolvida pela Escola de Frankfurt, a arte pode ser

analisada a partir da sua inserção na sociedade de consumo. Assim, antes de pensar a

significação estética e artística de uma obra, deve-se enfocar a ideologia que a produziu

e que, querendo ou não, ela tende a reproduzir. Os frankufurtianos são bem coerentes à

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ideia marxista de que um produto qualquer sempre leva consigo as marcas do sistema

que o engendrou. O grande mérito de Adorno, Horkheimer, Benjamim e Marcuse está

no que eles conseguiram diagnosticar na atualidade histórica (deles), a saber, a íntima

correlação entre a ascensão do totalitarismo na Europa e o rápido desenvolvimento dos

estúdios de Hollywood. Em ambos os casos há a emergência de um tipo de sociedade

onde os meios de comunicação de massa ganham um papel decisivo, constituindo um

lugar em que tanto se forja esteticamente um gosto, como se favorece a dominação

política seja em regimes de exceção ou democráticos.

A arte, nesse contexto, aparece segundo os ditames da cultura de massa que

acaba favorecendo a consolidação do totalitarismo, assim como da sociedade de

consumo (o que para muitos autores são duas faces do mesmo sistema, o capitalismo).

Totalitarismo entende-se aqui qualquer forma de regime que suprime as liberdades

individuais em nome de um projeto nacional, ou de uma máquina burocráticas, como foi

o caso da Alemanha de Hitler, a Itália de Mussolini, e a União Soviética de Stalin.

O enfoque da Escola de Frankfurt dado às formas artísticas ressalta nelas a

função ideológica que introjeta no indivíduo a organização social. Contudo, se a Escola

converge na orientação geral da crítica cultural das obras de arte, não podemos dizer o

mesmo quanto às teorias desses autores, que situam suas análises em perspectivas

divergentes, embora essas não cheguem a formar grandes contradições.

Para ficar num exemplo dessa divergência, tomemos Adorno e Benjamim.

Ambos, estando muito bem situados no seu tempo histórico, discutiam o significado

cultural das vanguardas, discordando explicitamente em alguns pontos: Adorno

querendo defender a autonomia da obra de arte, o que se conquista a seu ver na maior

parte das vezes por propostas que expressamente se afastam da "comunicabilidade"4,

forma que os meios de comunicação de massa praticam formatando seus conteúdos; já

Benjamim tende a ver a vanguarda no engajamento popular da arte5. Ambas as posições

não fazem sentido no contexto atual nosso, quando a chamada alta cultura não faz mais

fronteira com a cultura de massa, e não tem nada que seja "popular" ou "folclórico" que

não esteja vinculado ao circuito econômico global. A questão atual da orientação da (((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((4 Cf. “O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição”. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987b. 5 Cf. "O autor como produtor. Conferência pronunciada no Instituto para o Estudo do Fascismo, em 27 de abril de 1934". In: Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 120-136. [Obras Escolhidas, v. 1]

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produção está mais em como constituir políticas públicas que favoreçam certos níveis

das indústrias (gravadora VS casa de shows), certos tipos de produção (majors VS

independentes), formas de circulação (distribuidoras VS internet) e por aí vai. A própria

formação estética do artista, no contexto pós-modernista, evita que um circuito erudito

não esteja permeado pelo popular etc.

O filósofo contemporâneo Zizek retoma os princípios desse pensamento através

de uma crítica contundente, atacando algumas premissas comuns a esses pensadores,

não por mostrá-las infundadas, mas por mostrar como são insuficientes do ponto de

vista filosófico para dar conta de uma crítica da ideologia6. Se ele estiver certo,

Frankfurt foi capaz de perceber apenas as condições negativas do domínio ideológico do

capitalismo, como no caso que nos interessa: a função narcotizante da indústria cultural

que produza conformismo; distração das massas pelo cinema (e mídia em geral),

fortalecida pelo culto aos ídolos pop e da política; a erotização da repressão etc. Todavia

eles não conseguem deixar claro, no caso específico do nazifascismo, o que faz adesão

efetiva, algo da própria estrutura ideológica que faz com que tais sujeitos não apenas

temam, se equivoquem, sejam manipulados etc., mas antes o que faz com que desejem

ativamente, como sujeitos efetivos. o domínio do nazifascismo. A crítica de Zizek é que

os pensadores da Escola de Frankfurt não concebem um sujeito (inconsciente) da

ideologia.

Ao enfocar o aspecto "narcotizante" que produz o "conformismo social", Adorno

ressalta um aspecto cognitivo, diferente de Benjamim que traz a própria questão da

recepção estética do cinema que facilita a dominação, e que também não é exatamente

congruente com Marcuse ao enfocar um aspecto propriamente libidinal da conformação

social. Em todo caso, a arte está na cultura industrial com a função de nos educar para

aceitar líderes e modos de vida. Educação cognitiva, educação estética e educação

erótica. Zizek está em consonância com esses autores ao dizer que o cinema é arte

definitiva, porque é capaz de nos ensinar como desejar. A questão é diferenciar qual

educação estimula a dominação e qual estimula nossa liberdade, pois para Zizek, o

(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((6 Cf. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. Nesse seu livro de estreia, que reproduz basicamente sua pesquisa no doutorado, Zizek tem como um dos objetivos principais retomar o pensamento da Escola de Frankfurt, especialmente a partir de duas noções "dessublimação repressiva" e "mundo administrado", buscando superar os impasses que limitaram tais teorizações quanto a uma teoria da ideologia, partindo da hípótese Lacan-Hegel que articula a dialética da ideologia segundo o modelo da "significação retroativa" da clínica psicanalítica.

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cinema pode trabalhar nesses dois sentidos antagônicos dependendo da capacidade

poética de seus realizadores.

Crítica da ideologia e do fetichismo da mercadoria

Os esforços no sentido de apreender a dimensão ideológica na produção artística

e cultural tem sua origem no tipo de análise que o próprio Marx inaugura ao criticar a

ideologia liberal presente na filosofia de seu tempo7. Assim como o pensamento

marxista, o pensamento liberal é de certo modo revolucionário, ele produz uma teoria

vinculada ao mundo e nos diz como deve ser o funcionamento do Estado legítimo numa

sociedade juridicamente estruturada. A teoria liberal quer ao mesmo tempo explicar o

funcionamento da sociedade e influenciar a produção de um Estado de Direito;

concretamente, os liberais apoiam as revoluções burguesas que destituíram do poder a

monarquia absolutista.

Porém, como diz no Manifesto Comunista, a burguesia se constituiu como classe

de maneira revolucionária, mas interrompe sua revolução num ponto: se ela foi capaz de

tornar mais igualitário os processos de tomada do poder político nos governos,

conduzindo para construção dos estados nacionais, não o foi tão radical quanto aos

meios de produção. A crítica ideológica se torna uma ferramenta teórica fundamental;

por ela é preciso mostrar as contradições dos liberais em ato. Basicamente, a

argumentação liberal se apoia numa compreensão da "natureza humana", e a crítica

marxista se empenha em mostrar como os atributos atribuídos ao homem são de fato

pertencentes a uma classe, a dos que dominam e exploram a classe trabalhadora.

Não basta a análise marxista dizer que há a exploração baseada na expropriação

do trabalhador, mas que se tal fenômeno é tão difícil de perceber, grande parte disso é

porque ele está sendo constantemente sendo ocultado (freudianamente dizendo,

recalcado) especialmente pelo discurso ideológico da filosofia liberal que, por cinismo

ou ingenuidade, faz da propriedade privada um dado da natureza humana. Mas Marx

pensa que a forma de transformar as coisas depende primeiramente em desmistificar a

compreensão de propriedade, mostrar como ela foi construída historicamente, e que,

portanto está em constante transformação e assim, não precisa se manter inabalável e

pode ser modificada. (((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((7 Cf. A Ideologia Alemã. São Paulo: Hucitec, 1989.

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A crítica assim evidencia que ninguém é capaz de formular uma teoria

metafísica sem apoio na realidade concreta. Um filósofo em seu pensamento abstrato

sobre como funciona mecanismos da realidade suprassensível acaba por reproduzir, por

exemplo, a maneiro como o trabalho funciona e é concebido socialmente. Há um

processo "oculto" que opera pelos indivíduos, nas suas escolhas individuais, que,

todavia não refletem o seu discurso consciente. Esse processo é propriamente

inconsciente. A teoria crítica da cultura busca apreender esse inconsciente político que

opera na vida dos sujeitos, e se manifesta sobejamente pelos mais variados tipos de arte

e por tudo que é vinculado aos meios de comunicação de massa.

A crítica cultural que podemos ver na Escola de Frankfurt, nos Estudos Culturais,

no Pós-modernismo e na Escola Eslovena está afinada com a tarefa de Marx na sua

crítica ideológica da filosofia liberal, associando ao discurso que está sendo analisado as

condições econômicas e sociais que sustentam esse mesmo discurso e como esse

mesmo discurso, num nível formal abstrato, tende pelo menos a reproduzir as dinâmicas

das relações sociais que servem de base. Ir ao cinema nunca é um ato sem significação

política, um filme tende a nos levar a dar assentimento ao modo de vida da classe

dominante quando tem um discurso reacionário, ou nos leva a questionar esse modo de

vida, quando progressista.

Adorno, por exemplo, está interessado em sua crítica da música em entender o

que significa dizer nos dias de hoje que se “gosta” de uma música. Ele percebe que

quando você pergunta a alguma pessoa se ela gosta de alguma música, ela responde:

"sim, é claro, ela é bem famosa". Há certo esquema no chamado "gosto médio" do

público onde ser bom se torna sinônimo de ser célebre. No fundo, o sujeito do gosto

médio reflete sem mediações simbólicas aquilo que lhe é imposto pelo mercado. A

crítica de Adorno é mostrar como a própria estética das produções culturais é pré-

moldada pela Indústria Cultural que está interessada não só em vender ominosamente

seus produtos, mas em manter o estado de coisas, educando o gosto das massas.

Não só Adorno, mas também a escola de Frankfurt em geral, constrói um sólido

campo de análise e crítica da sociedade a partir de certos princípios teóricos marxistas.

Vimos em linhas gerais como se estrutura sua crítica á ideologia, vamos acrescentar a

isso a sua análise da mercadoria – como um determinado produto do trabalho humano é

capaz de se equivaler a todos os outros de modo que possamos lhe atribuir um “preço”?

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Marx observou que o principal fator que dinamiza e estrutura a economia é a

"mercadoria" na medida em que esta em sua "forma" estabelece padrões que

determinam as formas sociais concretas, isto é a maneira como os indivíduos vão se

relacionar em sociedade, e também a maneira como esses próprios indivíduos vão

enxergar o mundo desde o ângulo predeterminado por essa "forma social". O problema

que se forma também nessa dinâmica entre estrutura econômica (questão econômico-

política), relações sociais (questão sociológica), e visões de mundo (questão cultural) o

processo de reificação e alienação.

Temos a reificação quando se trata do que é abstrato ou subjetivo por natureza,

"como se fosse" algo concreto e objetivo, e alienação quando o tratamento que a "coisa"

nos obriga a assumir é uma perspectiva descolada da realidade da própria coisa. Por

exemplo, o "fetiche" provocado pela "forma mercadoria": espontaneamente sabemos

que o valor de troca de uma mercadoria deriva das flutuações de mercado que conferem

um preço que representa certa quantidade de trabalho que a originou, ou seja, que o

"preço" é uma resultante de um complexo sistema social; porém, quando consumimos

um produto "não queremos nem saber" do que se trata, podemos verbalmente expressar

que o valor de uma mercadoria é o trabalho social reificado, mas não dá para pensar isso

enquanto tomamos uma coca-cola e a desejamos por aquilo que ela é e vale em si,

naquela lata, seus três reais.

Lidamos como se o custo de uma lata de coca estivesse todo materializado

naquele ato de comprá-la, a consumimos porque de algum modo acreditamos que seu

valor transcende aos R$3,00 investidos. Por outro lado, o gozo que obtemos não deixa

nunca desaparecer sob si o dinheiro investido, sem, todavia revelar o trabalho que a

originou. Da mercadoria emerge um fetiche, resultando da reificação social, e por sua

vez o ato de consumo da mercadoria instaura um campo de miragem, da onde se passa a

enxergar o mundo desde os valores invertidos que a complexa dialética capitalista

impõe entre valor de uso e valor de troca. Essa miragem chama-se ideologia, e a crítica

cultura pretende atravessá-la num sentido não apenas teórico, mas também prático e

político.

A grande contribuição da Escola de Frankfurt está em perceber a reificação da

sensibilidade no sujeito moderno. (Um resultado catastrófico do projeto de emancipação

do homem chamado "iluminista"). Não se trata apenas do trabalho produtivo que é

expropriado pela ordem do capital, mas a própria produção subjetiva, nossas formas de

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ver, sentir, compreender o mundo são apropriadas pela lógica mercantil. Benjamim:

perda da aura, estetização da política.

O principal efeito estético que é buscado pela cultura de massa e indústria

cultural é o do divertimento, do prazer pela dispersão. Podemos traçar um parelho da

situação da vida contemporânea com a antiguidade clássica. Toda educação grega

clássica está voltada para uma orientação da vida emocional e dos prazeres estéticos no

sentido de desenvolver uma atitude contemplativa e reflexiva, apoiando-se muitas vezes

nas tecnologias subjetivas (como escrita sistemática de cartas, exercícios espirituais etc.)

que desenvolvem maneiras de evitar a dispersão do pensamento. Com o advento da

Indústria cultural, observa-se a fixação de prazeres exclusivos do entretenimento que

estruturalmente se afastam daqueles prazeres e emoções ligados às virtudes e

contemplação. A cultura de massa para um senso clássico é aquela que deseduca.

Atualização da crítica no contexto da Globalização

A grande questão comum nos autores da Escola de Frankfurt é "como é possível

haver o estético numa sociedade comandada pelo capital?"; questão que se desdobra em

duas: "onde encontramos a genuína produção artística?" e "o que faz tão difícil

encontrá-la na era do capitalismo?". O comum é esse projeto de uma teoria estética

colocar-se como fonte da crítica desfetichizante, da crítica da cultura de massa. Mas,

hoje, após o fim da arte parece que esses temas se tornaram obsoletos em alguns

aspectos. Não que esses pensadores tenham deixado de ser fundamentais para as

discussões da arte, hoje. Mas a visão completamente negativa, alienante da cultura de

massa como indústria cultural, reprodutibilidade técnica, ou cultura dessublimadora,

mostra como a tecnologia e a dominação política produzem formas reificantes de

cultura.

Hoje, na era da globalização, muitas vezes a posição frankfurtiana acaba se

revelando por demais unilateral e pouco sensível às nuances da produção de

comunicação e arte que são possíveis pelos diversos tipos de mídias de massa. Convém,

portanto, entender que os meios de comunicação e a cultura de massa assumem um

papel mais amplo no mundo de hoje, o que circunscreve as propostas estético-políticas

da Escola de Frankfurt no seu contexto histórico. Por outro lado, as análises

frankfurtianas apresentam incongruências conceituais situadas nos limites de suas

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abrangências: a análise do fetichismo, restando à crítica cultural atual superar alguns

impasses dessa tendência teórica. Jameson, ao trazer a conceituação de Adorno8, revela

como o aspecto "negativo" dessa é ainda bastante atual, porém sua caracterização

positiva é problemática. Ao mostrar como a cultura de massa trabalha no sentido da

conservação do status quo, a chamada arte séria não pode ser considerada algo tão

separado e autônomo como gostaria Adorno.

Adorno recorre basicamente à análise do fetichismo da mercadoria estética,

destacando o uso manipulatório com que a indústria cultural opera a lógica da

apreciação da obra de arte na cultura de massa. A arte no contexto da cultura de massa

se vincula estruturalmente ao entretenimento, que não passa de um dispositivo onde

levas de trabalhadores “repõem suas energias” sem se dar conta que estão sendo

restringidos a gostar de coisas preparadas não só para lhes agradar, mas para lhes educar

as formas de se sentir agradecido. O rádio é um exemplo do autoritarismo disfarçado de

liberalidade, pois quando ligamos um rádio temos a “liberdade” de escolher a estação no

dial, não nos damos conta que a programação, todavia, é decidida de maneira impositiva

e violenta.

Algo que também avança à exploração imagética de simbolismos inconscientes,

reforçando os recalques que sustentam o status quo. Benjamin fala da estetização da

política, de como a obra de arte no contexto massivamente tecnológico da produção e

reprodução de imagens pelos meios técnicos, onde ela perde sua raiz na tradição e

desloca seu valor de culto para "seu redor", o ídolo, a vedete, o ditador. E, em Marcuse,

há a percepção da perda do caráter afirmativo da cultura, desenvolvida no mecanismo

da dessublimação repressiva da libido. Em cada uma das análises estamos às voltas com

uma dimensão onde a reificação avança: o prazer estético, o olhar contemplativo, o

desejo sexual.

Jameson aponta como a Escola de Frankfurt não consegue fugir às suas

determinações históricas no debate acerca da relação entre meios de comunicação de

massa e produção estética. Hoje, na era da globalização não se trata de opor à reificação

estética uma estética autêntica que pouco a pouco desaparece sob o avanço do capital.

Para Jameson, tais autores são competentes ao descrever os aspectos negativos do

processo de reificação estética: alienação do prazer estético, do olhar na imagem (((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((((8 “Reificação e Utopia na Cultura de Massa”, In: Revista Crítica Marxista, vol. 1, no 1, São Paulo: Brasiliense, 1994.

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reproduzida mecanicamente, do conteúdo utópico na repressão dessublimadora da libido

sexual – mas não o positivo, que seria a produção estética afinada com as

transformações sociais e que são capazes de estimular a crítica e o florescimento de

ideologia.

Adorno quando fala do que foge à reificação, acaba produzindo uma estética

bastante conservadora em certos pontos. Para Jameson, a globalização econômica

trouxe o paradigma da pós-modernidade na cultura, a produção estética nunca é algo

completamente alienante, tampouco ela poderia ser completamente "afirmativa"

somente através da alta cultura (Adorno, Horkheimer, Marcuse) ou do engajamento

político da arte (Benjamin). Jameson, buscando-se afinar com a dominante cultural da

pós-modernidade, defende uma teoria estética não mais vinculada a qualquer forma de

“realismo” que ainda seria valorizado no “modernismo”, apostando assim nas propostas

híbridas que caracterizam parte da produção significativa em arte contemporânea.

Jameson valoriza as experiências da videoarte, justamente por serem capazes de

explorar as fronteiras da especificidade do meio – questão que seria intransponível para

a teoria estética de Adorno que insistia que um meio “musical” que jamais poderia ser

traduzido em um “pictórico”, por exemplo.

***

“Indústria Cultural” aparece como uma noção crítica que tende a dar conta da

cultura nas sociedades de consumo ou capitalistas. Fala, por um lado, como essa

indústria a formatar os bens culturais de modo a educar/doutrinar a sensibilidade de seus

consumidores segundo determinada lógica cultural, por outro, como tende veicular a

essa forma um conteúdo ideológico que propicie a dominação política e reproduza

socialmente as condições dessa dominação. Algo que se dá a céu aberto nos regimes

totalitários, quando por meio da comunicação de massa desenvolvem a adoração ao

líder político, configurando o que se convencionou chamar de “dogmatismo amoroso”,

como o que ocorre nos regimes democráticos, onde o comportamento consumista é

ensinado não por meio de propaganda explícita, mas da comunicação midiática em geral.

A questão para esses autores é de como filmes, canções, programas de rádio e tv,

aparentemente inocentes são capazes de educar para o consumismo e fortalecer certas

ideologias políticas. Diferentes respostas diriam Adorno, Jameson e Zizek, mas todos

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concordam em que “sim, a arte educa e deseduca”, mas discordam no “como” isso se dá.

O foco de Adorno é a modificação doutrinária da sensibilidade – a formação do gosto

pela indústria do entretenimento que “amortece os sentidos e o pensamento crítico” e a

trincheira que a arte de vanguarda faz em resistência a esse processo. Jameson aponta

para a questão da “dominante cultural”, enquanto Zizek se centra na “interpelação

ideológica”.

Na era da globalização, vive-se sob o domínio de uma lógica cultural outra que a

do modernismo, onde a maneira de Adorno fundar sua crítica entre vanguarda e cultura

de massa deixa de fazer sentido, na medida em que esses polos deixam de existir, ao

menos em estado “puro”.

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