ensaios sobre suárez e descartes

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ANDRÉ RANGEL RIOS Ensaios sobre Suárez e Descartes Iacobo Berolinensi et Flori Granati EDIÇÃO ONLINE Rio de Janeiro Setembro, 2006

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ANDRÉ RANGEL RIOS

Ensaios sobre

Suárez e Descartes

Iacobo Berolinensi et Flori Granati

EDIÇÃO ONLINE Rio de Janeiro Setembro, 2006

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Copyright © 2005 by André Rios Publicação original como coletânea: Ensaios sobre Suárez e Descartes (ensaios). Booklink, 2005

Sendo vedado qualquer lucro comercial, autorizo que, até dezembro de 2007, esta edição online seja copiada eletronicamente ou em papel, seguindo-se as diretrizes do creative commons, explicitadas no site abaixo.

http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.0/ ______________________________________________________

Rios, André Rangel, 1958- Ensaios sobre Suárez e Descartes / André Rangel Rios – Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2006. 200 p.

Edição do Autor – Online, setembro, 2006

1. Filosofia Moderna. 2. Crítica e interpretação. 3. Filosofia. I. André Rangel Rios.

_______________________________________________________

DO MESMO AUTOR

A Ilha dos Prazeres (romance). Uapê, 1997 Nada ou Isto não é um Livro (romance). Garamond, 2001 Mediocridade e Ironia (ensaios). Caetés, 2002. Celebridade Intelectual e Pensamento Crítico (ensaios). Booklink, 2005 Ensaios sobre Suárez e Descartes (ensaios). Booklink, 2005 Kant em Coma (romance). 7 Letras, 2006

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Sumário Prefácio 4 I - Suárez Racionalidade Substancial e Racionalidade Acidental em Francisco Suárez (1548 – 1617) 6 Suárez e a Doutrina das Formas Substanciais 23 A Questão dos Universais: Suárez e o Nominalismo 41 Conceito Objetivo, Denominação Extrínseca e Entia Rationis em Francisco Suárez (1548 – 1617) 56

1. O conceito formal enquanto ato mental e enquanto imago 2. A doutrina da denominação extrínseca 3. A denominação extrínseca e os entia rationis 4. A denominação extrínseca e os possíveis

Tradução de DM 2,1,1 Adequação e Proposições de Verdade Perpétua. Alguns meandros e impasses na teoria da verdade em Francisco Suárez 97

I. Introdução: o juízo II. A Disputação 8 sobre a verdade (seções 1 e 2) III. A relação predicamental IV. A Disputação 8 sobre a verdade (seção 2) V. Falsidade e conotação (Disputação 9) VI. As proposições de verdade perpétua (DM 31,12,38-47)

II - Descartes Três Molduras das Meditações de Descartes 158 Meditações Hidrópicas 165 III - Questões de Metodologia Sobre a Função do Discurso sobre o Ser na Filosofia Medieval 189

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Prefácio

As pesquisas apresentadas nestes artigos se desenvolveram desde a minha tese de doutorado sobre a scientia conditionata e os futura contingentia em Suárez (sob a orientação de Ludger Honnefelder) até meu último projeto sobre as negociações narrativas nas Meditationes de Descartes. No Brasil, para o desenvolvimento dos artigos aqui reunidos, foi importante o apoio do CNPq, da Comissão de Filosofia Medieval (em especial de Luis Alberto De Boni), da instituição onde atuo (Departamento de Ciências Humanas e Saúde do Instituto de Medicina Social da UERJ) e da bolsa Prociência da UERJ. Parte dos artigos foi publicada na Veritas, revista que há cerca de duas décadas tem apoiado eficazmente as pesquisas em Filosofia Medieval e Escolástica.

Decidi por não modificar o conteúdo dos artigos já publicados. Realizei

basicamente apenas alterações ou correções menores na pontuação e na linguagem. Visto que algumas vezes os artigos aqui incluídos referem-se uns aos outros, assinalei, geralmente entre colchetes, que o artigo referido se encontra no livro. Também pus por extenso as referências a artigos que, no momento da publicação original, estavam ainda no prelo.

Agradeço em especial a ajuda de Rafael Marcelo Viegas e Cecília Leal

no trabalho de edição deste livro. Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2005

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Suárez

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Racionalidade Substancial e Racionalidade Acidental em

Francisco Suárez (1548-1617) ∗

O homem é animal rationale. A seguir buscarei caracterizar, a partir dos textos de Francisco Suárez, no que consiste para o homem o racional, isto é, o intelectual. De certa maneira, discutirei no que consiste o intelecto humano. De início posso indicar que é, em seu exercício próprio, num acidente, numa qualitas, a saber, na potentia intellectiva, que consiste a racionalidade do homem, isto é, é pela potência intelectiva que o homem se distingue dos

animais1. Sem dúvida, enquanto se trata de uma qualitas, trata-se de um acidente que, portanto, pressupõe uma substância para suportá-lo. Porém, essa qualitas pressupõe, como seu suporte, um tipo determinado de substância, a saber, uma substância que possa operar as potências racionais. É o mesmo caso do acidente da quantidade, que só pode inerir em um tipo determinado de substância, a saber, em uma substância material, pois só substâncias que têm matéria podem, através do acidente da quantidade, serem extensas. Há, na própria substância material, uma quantitas substantialis, em si inextensa, que é uma aptidão a tornar-se extensa com o acidente da quantidade. Assim, há também na substância composta racional humana algo como uma racionalidade potencial; racionalidade potencial que só se torna ato com o exercício das potências que inerem nessa substância. E é essa racionalidade substancial que, para Suárez, promove a simpatia, a coordenação das potências da alma e, de acordo com a attentio substantialis, permite um exercício mais ou menos adequado dessas potências. Para melhor discutir a potência intelectiva em Suárez e para melhor compreendê-la dentro de sua metafísica e de sua psicologia, começarei por apresentar, em linhas gerais, como se desenvolve para Suárez o processo cognitivo.

Uma descrição do processo cognitivo em Suárez tem que partir da pressuposição de que o homem é um composto de matéria e forma, no caso, é um composto de matéria e alma. Evidentemente, não poderei me deter em uma

discussão sobre o conceito de matéria na Escolástica e de suas aporias2.

Publicado originalmente em Luis Alberto De Boni (org.) Lógica e Linguagem na Idade Média, Porto Alegre, Edipucrs, 1995, p. 267-282. 1 Deixarei de lado neste artigo a questão de como o homem se distingue dos anjos. Sobre os diferentes significados de potentia cf. o prólogo da disputatio 43. 2 Sobre o conceito de matéria, ou seja, sobre a causalidade material cf. a disputatio 13. Comentei a relação entre matéria e forma substancial no texto Suárez e a Forma

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Também não posso me deter nos problemas inerentes ao conceito de alma e de sua interrelação com a matéria. Porém, é necessário destacar, ao menos, que a alma tem uma quádrupla função: ela é (1) a forma da matéria, (2) a forma organizadora e vivificante da matéria, (3) o princípio que gere as funções vitais superiores, (4) e ainda o “lugar” do pensamento e da intencionalidade. Para dar conta dessa pluralidade de funções da alma, travou-se várias disputas na Escolástica sobre a unidade ou pluralidade da alma (forma corporeitatis, alma vegetativa, alma animal e alma racional). Suárez defende a unicidade da alma. A alma vegetativa e a alma animal são as portadoras das potências naturais tais como as potentia nutritiva, augmentativa, generativa etc. Ambas funcionam intimamente relacionadas com a matéria que elas informam, vivificam e transformam. A alma racional, porém, funciona separada da matéria. Sendo assim, embora o corpo não seja para Suárez, tal como para Descartes, algo somente material e mecânico, se poderá observar que é árduo, também para ele, explicar como uma coisa material, a saber, sua species exterior, apreendida

pelos sentidos e conduzida até o sensus interior, é “purificada”1 da matéria para passar como species intelligibilis para a alma racional

Como nosso objetivo é discutir o racional no homem, não exporei as

potências próprias à alma vegetativa2. Farei, a seguir, uma breve apresentação do processo cognitivo em Suárez baseando-me principalmente no seu comentário ao De anima.

***

O objeto material emite species exteriores. Tais espécies exteriores não são imateriais ou espirituais, são apenas corporeamente mais sutis e dependem diretamente da coisa que os produz. Essas espécies exteriores são recebidas nos respectivos órgãos dos sentidos que lhes são adequados, isto é, são recebidas pela potentia visiva, pela potentia olfativa etc. Porém, nos sentidos que recebem as espécies exteriores o que se tem são as species impressae do objeto

Substancial, que li em uma conferência na USP em novembro de 1992 [ver mais abaixo neste livro: ‘Suárez e a Doutrina das Formas Substanciais’]. Nesse texto, indico que em Suárez há uma série de teorias menores que têm um papel fundamental na estruturação de sua metafísica como, por exemplo, a teoria da denominatio extrinseca e a dos modos intrínsecos. Aí indico também que teoria da matéria em Suárez, bem como na Escolástica em geral, parece se sustentar nem tanto por solucionar uma série de problemas, mas porque sua aporias estão em estreita relação com outras aporias da metafísica, da teologia, da física, da biologia ou da lógica. 1 O termo “purificar” e seus derivados não são utilizados no texto por Suárez. Suárez também não usa nenhum equivalente. Decidi recorrer a este termo, pois pareceu-me assim facilitar a exposição. 2 Sobre este tema cf. De anima livro 2.

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material dependentes da causalidade do objeto material. A species impressa é transportada para o sensus interior onde se terá uma species sensata (também chamada species interior ou phantasma). Aqui uma questão é qual a relação entre a espécie exterior e essa species sensata no sensus interius (ou interior), pois, enquanto a espécie exterior só existe dependendo do objeto que a produz, a species sensata pode persistir independentemente do objeto exterior. Para Suárez, a espécie exterior não causa a espécie sensata, sendo elas genericamente distintas. A espécie exterior é recebida no sensus exterior (nos órgãos externos de percepção) e tem-se a espécie impressa no sentido exterior, mas não há, para o Suárez do De anima, uma causalidade efetiva dessa espécie impressa sobre o sensus interior para o surgimento da espécie sensata ou phantasma, mas o phantasma resultaria no sentido interior pela própria eficiência do sentido interior. Mas como se daria então esse efeito coordenado de constituição de uma espécie interior ou phantasma em referência à espécie exterior (ou, mais exatamente, à espécie impressa no sentido exterior), se essa espécie impressa no sentido exterior não causa eficientemente o phantasma no sentido interior? Essa coordenação, essa harmonia, se dá segundo Suárez, porque tanto o sentido exterior quanto o sentido interior estão enraizados na mesma alma, o que leva a

que haja uma sympathia potentiarum1. A argumentação de Suárez no De anima negando que a espécie impressa no sentido exterior exerça causalidade sobre o sentido interior leva também a que ele postule haver um sensus agens o qual produziria – regido, é claro, pela sympathia potentiarum – os phantasmata no

sentido interior2. Nas DM, Suárez se mostrará contrário à doutrina do sentido

agente3. Essa recusa é, por assim dizer, local, não impedindo em nada que ele

1 Cf. De anima l. 3 c. 9 n. 10. O tema da sympathia potentiarum é discutido por Ludwig, J. Das akausale Zusammenwirken (sympathia) der Seelenvermögen in der Erkenntnislehre des Suárez, München, Karl Ludwig Verlag, 1929. 2 Suárez discute apenas brevemente o sentido agente cf. De anima l. 3 c. 9 n. 14: ...respectu sensuum interiorum necessario esse ponendum aliquem sensum agentem species intentionales. Suárez reconhece que Aristóteles não o menciona, porém indica que Aristóteles por vezes omite muitas coisas. Suárez também admite que Tomás de Aquino na Sth I q. 79 a. 3 ad 1 parece negar algo como um sentido agente; contudo, talvez, contemporiza Suárez, Tomás de Aquino estivesse se referindo apenas a uma imediata recepção das espécies provenientes dos objetos exteriores, isto é, não estaria excluindo em definitivo o sentido agente. Nas DM, Suárez abandonará a doutrina do sentido agente. O que vemos no seu De anima é o rastro de uma discussão própria a época do Renascimento – cf. Schmitt p. 474-475. 3 DM 18,8,40: De efficientia vero specierum sensibilium in sensibus internis mediis externis, alia est ratio et longe diversa, nam hic revera propria efficientia intervenit, quae per medium fieri debet, ut ab oculo dicuntur species visibiles tendere usque ad sensum communem per nervum opticum; haec enim actio talium specierum non est proprie vitalis aut immanens, sed est proveniens ab extrinseco, mediis illis instrumentis

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siga recorrendo à doutrina da sympathia potentiarum para discutir o interrelacionamento de outras potências vitais e intelectivas.

Recapitulando. O objeto material emite sua espécie exterior que é recebida no sentido exterior e que pela operação harmônica de um sentido agente terá como correspondente uma espécie interior ou phantasma no sentido interior. O phantasma é uma similitudo do objeto material e é ainda algo material. Sendo algo material, o phantasma não pode causar efetivamente a produção de uma species intelligibilis imaterial, pois – sendo ela imaterial e, portanto, mais pura e nobre – a espécie inteligível não pode ter como causa algo material e, assim, inferior. A causa eficiente da espécie inteligível, diz Suárez, é o intelecto agente, que, por estar enraizado na mesma alma – e, portanto, sendo regido pela sympathia potentiarum –, produz a espécie inteligível correspondente ao phantasma presente no sentido interior. Ou seja, o objeto material emite uma espécie exterior que também é material e que é recebida pelos sentidos exteriores como uma espécie impressa sensível e ainda material. Essa espécie impressa do sentido exterior sofre uma primeira “purificação” ao passar ao sentido interior. No sentido interior, como espécie interior ou phantasma, embora não deixando de ser material, ela já não depende mais da

causalidade do objeto externo para ser mantida como existente1, podendo, inclusive, ser composta com outras espécies interiores para produzir espécies compostas que podem também dizer respeito a objetos inexistentes ou

impossíveis tal como, por exemplo, a uma montanha de ouro2. Cabe observar aqui que não é só o sentido exterior da visão que recebe espécies impressas, pois também o tato, ao receber o calor, transmite pelos nervos ao cérebro (que é onde se localiza o sentido interior) não o calor, mas a sua espécie impressa. Tal é o caso também do olfato, da audição e da olfação. A recepção da espécie impressa sensível no sentido exterior, seu transporte ao cérebro e sua “purificação” ao ser recebida no sentido interior é um processo comum aos animais e aos homens. Propriamente humano é, porém, a “purificação” da espécie interior ou phantasma de sua materialidade quando o intelecto agente produz a espécie inteligível. Essa espécie – que é, então, imaterial – é por sua vez apresentada pelo intelecto agente ao intellectus possibilis.

Temos assim que o intelecto agente, por motivo da existência do phantasma de uma coisa material no sentido interior, embora sem sofrer uma ação de causalidade eficiente desse phantasma, é levado a produzir a espécie

et ideo per medium proprie diffunditur sicut aliae actiones naturales. Cf. Ludwig p. 35 e sgs. 1 De anima l. 3 c. 9 n. 8: ...species exterior pendet in fieri, et esse ab objecto suo, non item interior. 2 De anima l. 3 c. 9 n. 11.

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inteligível de um objeto material singular. Essa espécie inteligível é apresentada ao intelecto possível. Essa espécie inteligível é então já apta a “informar” um ato de conhecimento, levando à produção de um conceptus formalis da coisa individual. Uma outra possibilidade, porém, é que, com base nessa espécie inteligível, digamos, p. ex., com base na espécie inteligível de Pedro, o intelecto possível pode abstrair o universal “homem”. Uma questão é, porém, se o intelecto possível para proceder a essa universalização o faz diretamente, ou seja, se ele pode proceder à abstração do universal “homem” tomando por base apenas uma coisa singular, ou se ele o faz após comparar várias coisas singulares. Para Suárez, intelecto possível pode abstrair com base em uma só

espécie inteligível da coisa singular e obter, assim, o universal1 enquanto universale metaphysicum; e, se o intelecto possível proceder por comparação, o

que se obterá será um ens rationis, a saber, o universale logicum2. O intelecto agente procede à abstração da espécie inteligível. O intelecto possível procede à abstração da natura universalis ou universale metaphysicum enquanto uma espécie inteligível comum a vários entes singulares. Ou seja, para Suárez o

conhecimento de coisas singulares não chega a ser propriamente um problema3. O intelecto conhece uma coisa individual formando um conceito próprio e distinto dessa coisa, e isso diretamente, isto é, sem recorrer a qualquer ato reflexivo. Quanto ao aforisma de que o intellectum esse universalium, sensum autem singularium, Suárez indica que deveria ser interpretado como dizendo que os sentidos conhecem só coisas singulares, enquanto o intelecto conhece,

além das coisas singulares, também as universais4. Recapitulemos mais uma vez o que foi apresentado até agora. O objeto

material emite a espécie exterior, que é apreendida no sentido exterior e vai ao sentido interior como phantasma. A presença do phantasma no sentido interior incita o intelecto agente a produzir a espécie inteligível; esta é apresentada ao intelecto possível, o qual ou simplesmente a recebe, ou, por vezes, submete-a a mais uma abstração para produzir uma espécie inteligível da natura universalis. A espécie inteligível (de uma coisa singular ou de um universal) “informa” o ato de conhecimento do intelecto possível levando à produção do conceito formal, que é aquilo através do que algo é conhecido ou visado. A coisa

1 DM 6,6,11; cf. Rios p. 86. 2 Sobre os universais em Suárez cf. Rios §5. [Cf. mais acima neste livro ‘A Questão dos Universais: Suárez e o Nominalismo’] 3 Pode-se dizer que com Duns Scotus há uma recolocação da questão dos universais, pois depois dele a questão já não será mais a de como a partir do universal se conhece o singular, mas a de como partindo-se do singular se conhece o universal. Cf. Kretzman p. 463 e sgs. 4 De anima l. 3 c. 3 n. 9.

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conhecida através do conceito formal, enquanto é conhecida, isto é, enquanto é denominada extrinsecamente pelo conceito formal, é o conceptus objectivus. Temos assim um resumo de todo o processo de conhecimento desde a apreensão da coisa pelos sentidos até o referir-se a ela pelo intelecto que a conceitualizou. Agora discutirei brevemente o que são ontologicamente a espécie inteligível, o intelecto agente, o intelecto possível, o conceito formal e o conceito objetivo, bem como os conceitos a eles correlatos tais como

denominatio extrinseca, habitus scientiarum e entia rationis1. Ao predicamento da qualitas pertencem: (1) a espécie inteligível e a

ciência, pois são habitus2; (2) o intelecto agente e o intelecto possível, pois são

potentiae3; (3) o conceito formal, pois enquanto resultado de uma ação é uma

passiva qualitas4. Os acidentes são acrescidos às substâncias para suprir alguma

imperfeição ou defeito. A qualidade é instituída para complementar intrinsecamente a perfeição da substância criada em sua existência e em sua ação. A quantidade é dada à substância corpórea para o efeito peculiar, em conseqüência de ter massa corpórea, que é o de suas partes terem extensão e impenetrabilidade. As relações (se é que chegam a ser algo) não são algo que

subsiste por si, mas apenas resultam5 das substâncias ou dos acidentes que constituem os seus extremos. Os acidentes da ação e da paixão são apenas a via, o caminho, para o seu termo. Os outros quatro acidentes (ubi, quando, situs e habitus) constituem, antes, uma adjacência do que são propriamente um

complemento à substância. Assim, o ‘onde’ é um modus6 conseqüente à limitação da substância. A ‘posição’ é um modo do ‘onde’. O ‘quando’ só se

1 Neste artigo não discuto, porém, o estatuto ontológico da qualitas. É o próprio Suárez que não o faz, de um modo detido, nas disputationes sobre a qualidade. A questão do estatuto ontológico das qualidades pressupõe a discussão da teoria dos modos intrínsecos em Suárez (sobre os modos intrínsecos cf. Alcorta). Porém, em Suárez, no caso da qualidade, bem como no caso da quantidade ou mesmo no do suppositum as conclusões são devidas não só a uma discussão puramente filosófica, mas também são levadas em conta em suas argumentações posições teológicas, a saber, os dogmas da Transubstanciação e da Trindade. Já apresentei em outro texto uma discussão da denominação extrínseca e dos entia rationis; cf. Rios §§ 4, 5 e 6 [Ver também, mais abaixo neste livro, ‘Conceito Objetivo, Denominação Extrínseca e Entia Rationis em Francisco Suárez’]. 2 DM 42,5,16. 3 De anima l. 4 c. 8. 4 DM 2,1,1. Rios § 3. 5 Sobre o acidente da relação (disputatio 47) e a teoria suareziana da resultantia cf. Rios §10 [Ver sobretudo, mais abaixo neste livro, ‘Adequação e Proposições de Verdade Perpétua. Alguns meandros e impasses na teoria da verdade em Francisco Suárez’]. 6 Sobre a teoria dos modos intrínsecos em Suárez cf. Alcorta

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distingue ratione da coisa temporal. E o ‘hábito’ enquanto décimo predicamento, isto é, enquanto “vestimenta”, e não enquanto qualidade, é apenas uma denominação extrínseca.

Essa breve exposição dos nove acidentes indica a qualidade como o acidente de maior, por assim dizer, consistência ontológica, como um complemento intrínseco e enobrecedor da própria substância, portanto, como

“o mais perfeito de todos os acidentes”1. É esse privilégio ontológico da qualidade que explica por que as diferenças das coisas, quando não podem ser

assinaladas pela própria essência, são geralmente assinaladas pelas qualidades2. A qualidade divide-se em quatro espécies: <1> hábito ou disposição, <2>

potência natural e impotência, <3> qualidade passiva, <4> figura3.

<1> O hábito enquanto espécie da qualidade4 é aquilo que proporciona

facilidade para uma ação5, a saber, para uma ação humana, pois só são capazes de hábito as potências que ou são racionais ou de algum modo participam da

razão6. <2> A potência é o princípio próximo e conatural ao agente criado

instituído para que algo seja feito7. <3> Para esclarecer o que seja a passiva qualitas, é necessário lembrar que a palavra passio tem vários sentidos. Suárez destaca dois. Num primeiro sentido, passio refere-se a um predicamento próprio; é quando se trata de alguma mutação ou recepção em uma coisa e tal alteração é ocasional, ou seja, nesse sentido, passio seria mais o fazer-se de uma mudança, o próprio alterar-se (digamos, o estar “sofrendo” uma passio), do que o seu resultado enquanto algo duradouro. Porém, num segundo sentido, quando se trata de algo que intrinsecamente é para ser feito ou causado por uma passio alcançando um resultado mais permanente, pode-se então dizer que é uma qualitas passiva. A densidade e a rarefação são exemplos de qualitates

1 DM 12,1,5. 2 DM 42,1,8. 3 A discussão de Suárez do predicamento da qualidade é minuciosa e extensa. Ele dedica às qualidades cinco disputationes (42 a 46). 4 Sobre os diferentes sentidos de habitus cf. DM 42,3,2-4. 5 A definição completa de hábito está em DM 44,1,6: ...est enim qualitas quaedam permanens, et de se stabilis in subjecto, per se primo ordinata ad operationem, non tribuens primam facultatem operandi, sed adjuvans et facilitans illam. 6 DM 44,1,9: ...solum esse <habitus> in viventibus intellectualibus, et proxime tantum esse in potentiis elicitiviis actuum imanentium, et quae rationales sint, vel aliquo modo rationem participent. 7 DM 42,3,10: Strictius vero juxta usum philosophorum sumi solet potentia pro principio proximo, connaturali agenti creato ad aliquid agendum, et hoc modo semper este aliquod accidens, nam forma substantialis non est pricipium proximum, sed principale...

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passivae1. <4> A figura é um modo da quantidade, isto é, todo o corpo material que tem, portanto, extensão, tem, como algo que resulta de sua disposição

quantitativo-extensional, uma figura2. A potência capaz de receber hábitos tem que ser tanto ativa, isto é, apta a

agir por si mesma, quanto passiva, isto é, apta a receber predisposições

facilitando a sua ação ou facilitando alguns aspectos de sua ação3. Só potências simultaneamente ativas e passivas, bem como participantes da razão, são receptivas de hábitos. Desse modo, toda a potência apta a receber um hábito tem que ser de algum modo indiferente, isto é, tem que ter uma certa indeterminação para o seu agir, não podendo ser uma potência que age por necessidade e sempre de uma mesma maneira, isto é, não pode ser uma

potência cuja a ação seja meramente natural4. Sendo assim, são apenas quatro as potências capazes de receber hábitos: a vontade, a potência intelectiva, o apetite sensitivo e a fantasia ou cogitativa.

Que a vontade é capaz de hábitos é evidente, uma vez que a vontade é uma potência livre e, assim, indiferente em sua ação. O problemático aqui é, porém, esclarecer como se dá o interrelacionamento entre vontade e intelecto.

O intelecto (ou potência intelectiva) é, porém, também capaz de hábitos, pois, embora não seja do mesmo modo indiferente como é a vontade, participa ainda assim de algum modo de tal indiferença. Mas como o ato da potência intelectiva, isto é, da razão enquanto potência, pode ser indiferente? Como afinal o intelecto participa da indiferença?

Que o intelecto, isto é, que a potência racional seja indiferente, Suárez

esclarece, primeiramente, com três breves argumentos5. Em primeiro lugar, a indiferença da razão se mostra, indica Suárez, quando se julga acerca de coisas que não chegam a ser evidentes; tal é o caso quando se forma um julgamento com base em opiniões e crenças. É por isso, inclusive, que se pode observar o quanto é difícil demover homens de conclusões às quais eles chegaram com base em crenças e opiniões que neles estão fortemente arraigadas. Em segundo lugar, mesmo quando por parte dos objetos se mostra evidente uma verdade acerca deles e, assim, o juízo esteja naturalmente determinado, ainda assim freqüentemente o intelecto se debate com grande dificuldade para demonstrar a verdade, de modo que pelo uso e pelo exercício o intelecto pode adquirir nesses casos facilidade para julgar. Em terceiro lugar, prossegue Suárez, nos hábitos

1 DM 42,3,14. 2 DM 42,3,15. 3 DM 44,1,10. 4 DM 44,1,15. 5 DM 44,1,12.

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práticos, sobretudo nas artes, tal facilitação pela prática é evidente. O que cabe aqui observar a respeito desses argumentos algo sucintos é que eles não chegam a atingir o problema onde ele é de fato mais espinhoso. No primeiro argumento, o que está em questão não é a indiferença da razão, mas sua obstrução, a saber, a sua obstrução por uma vontade viciosa. No terceiro argumento, no caso das artes, o que está em questão não é em si a indiferença da razão, mas a capacidade de coordenação da razão com outras potências da ordem do corporal. Apenas o segundo argumento é que diz respeito à questão da indiferença, no caso, a potência intelectiva seria indiferente a agir mais rapidamente ou mais lentamente. Contudo, um dos problemas principais relativos à indiferença da potência intelectiva não é abordado na extensão que mereceria, a saber, a participação da vontade (da vontade em si e não dela no

caso particular de ser viciosa) no assensus que constitui o juízo1. Na disputatio 44 sobre os hábitos, sectio 4, Suárez discutirá mais longamente essa questão. Não posso no âmbito deste presente texto deter-me nos detalhes desse debate. Deixo aqui apenas indicado que a questão da indiferença da potência intelectiva

não ficará suficientemente esclarecida em Suárez2. Quanto ao apetite sensitivo no homem, Suárez diz que ele não funciona

de um modo meramente natural como nos demais animais, pois está submetido

ao intelecto e à vontade, participando assim da indiferença deles3. Da mesma maneira, a fantasia ou cogitativa é capaz de hábito, a saber, por estar submetida ao intelecto e à vontade.

Há que se observar, contudo, que para Suárez a potência intelectiva é una, embora tenha várias denominações diferentes de acordo com o aspecto sob o qual o intelecto é considerado. Assim, quando se trata do conhecimento dos

1 Para uma discussão mais detalhada da questão da verdade e do juízo em Suárez cf. Rios §§ 9, 11 e 12 [Cf. também, mais acima neste livro ‘Adequação e Proposições de Verdade Perpétua. Alguns meandros e impasses na teoria da verdade das proposições em Francisco Suárez’]. Sobre o assentimento no ato da fé, cf. Schlagenhaufen. A posição de Suárez nos permite concluir que a indiferença da potência intelectiva vai sendo posta de lado na medida em que se vai adquirindo mais hábitos, ou seja, se de início uma pessoa tem poucas evidências quanto a determinadas verdades, na medida em que ela adquire hábitos, ela passa a ter cada vez mais facilmente mais evidências a respeito delas, ou seja, o crescimento dos hábitos tende a levar a uma evidência total (o que seria, de certa maneira, a própria dissolução dos hábitos). 2 Notar que o que está aqui em questão não é a indiferença própria a uma decisão racional, onde o que o problema consiste em explicar o relacionamento entre vontade e razão, mas trata-se de uma indiferença que seria própria à razão mesma em seu exercício. 3 Aqui há a questão da relação entre o “meramente natural” e o intelecto. O intelecto é também de certo modo natural e, portanto, o governo do intelecto sobre os apetites naturais e a busca de prazeres naturais não são antinaturais, ao menos até quando não incide exagero.

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primeiros princípios (o que é possibilitado por ação do intelecto agente)1, sem que intervenham inferências lógicas ou discurso, fala-se simplesmente em

intellectus2. Quando se trata do ato de se chegar a conclusões através de raciocínios, fala-se em ratio (a connexio e o assensus são atribuições do

intelecto possível)3. Desse modo, o intelecto agente e o intelecto possível também são potências que são partes da mesma potência intelectiva, embora

difiram entre si. Não diferem, porém, realmente, mas apenas formalmente4. O intelecto agente é apenas ativo e não produz conhecimento, isto é, não

produz um ato de conhecimento, mas apenas as espécies inteligíveis; é, portanto, como que um auxiliar do intelecto possível, que recebe dele as

espécies inteligíveis5. O intelecto possível é tanto passivo quanto ativo. É passivo por receber do intelecto agente as espécies inteligíveis (as espécies inteligíveis são hábitos que, porém, não são como os outros hábitos causados pela repetição dos atos) e por receber os demais hábitos que são causados pela repetição dos atos. É ativo porque pode universalizar as espécies inteligíveis relativas às coisas singulares e porque é a potência da qual emana o ato que é “informado” pelas espécies inteligíveis recebidas do intelecto agente; além disso, é ativo porque ele procede às conexões entre os termos formando as proposições e por dar o assenso aos primeiros princípios e às conexões. No processo de formação e crescimento dos hábitos, o caráter ativo/passivo do intelecto possível adquire uma significativa circularidade: o ato de conhecimento do intelecto possível é também o ato cuja repetição leva ao surgimento e ao aumento do hábito da ciência; é, portanto, um processo de auto-inscrição.

O intelecto possível é, a princípio, desnudado de formas; enquanto ele está “nu”, ele é “impotente” para o conhecimento. Só quando ele é fecundado

com o sêmen6 das espécies inteligíveis produzidas pelo intelecto agente, torna-

1 De anima 4,8,10. 2 De anima 4,10,6. 3 De anima 4,8,10. 4 De anima 4,10,7. 5 A doutrina da sympathia potentiarum, segundo a qual a produção das espécies inteligíveis se dá por uma harmonia entre as potências, ou seja, dado o phantasma a espécie inteligível pode ser produzida independentemente no intelecto, leva a um enfraquecimento do papel do intelecto agente, o qual na alma separada se torna totalmente supérfluo. Cf. Schmitt p. 515. 6 Essas metáforas sexuais para explicar o que seria ao mesmo tempo o mais típico, mas também o mais assexuado no ser humano, têm certa tradição na Escolástica. As razões da sexualização do assexuado por excelência é uma questão a ser pesquisada. DM 2,1,1: ...conceptus, quia est veluti proles mentis. De anima l. 3 c. 2 n. 22: Nam species sunt quaedam veluti objectorum semina potentiae cognoscitivae tamquam utero mandata ad formandos conceptus, unde et nomina ipsa conceptus, spiritualis generationis, et

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se ativo, isto é, desenvolve a sua potência. Ou seja, a potência intelectiva em sua unidade primeira é impotente. É com sua cisão que ela se desenvolve como potência. Esse cisão se dá pela inscrição dela nela mesma, a saber, pela inscrição das espécies inteligíveis pelo intelecto agente no intelecto possível. Essa inscrição inicial possibilita dois tipos de auto-inscrição: (1) a universalização das espécies inteligíveis singulares e conseqüente reinscrição dessas como espécies inteligíveis universais; (2) a inscrição dos hábitos das ciências como conseqüência dos atos de conhecimento do próprio intelecto possível. Como resto e, portanto, resultado desses processos de inscrições e reinscrições, tem-se os conceitos formais – ou verbum mentis – que são também acidentes, ainda que acidentes de uma outra espécie da qualidade, a saber, da qualidade passiva, isto é, da terceira espécie da qualidade. Os conceitos formais são aquilo pelo que algo é intencionado, isto é, aquilo pelo que algo é designado. A coisa designada, enquanto é designada pelo conceito formal, é o conceito objetivo. O conceito

objetivo é, pois, uma denominação extrínseca do conceito formal1. Sendo o conceito objetivo o ser-designado da coisa pelo conceito formal, o conceito objetivo não pode ter senão o mesmo estatuto ontológico que a coisa da qual ele é conceito, ou seja, se a coisa designada é real, ele é real, se é um ens rationis, ele também será um ens rationis.

São duas questões distintas, a saber, (1) a questão de como é produzido o conhecimento a partir dos sentidos externos e (2) a questão de como esse conhecimento intenciona ou designa as coisas. O primeiro problema é um problema psicológico; o segundo, um problema semântico. Assim, por um lado, o conceito formal considerado na discussão psicológica é o termo do processo de produção do conhecimento (e, na série de acidentes que se processam na alma, o conceito formal é o último deles), de modo que o conceito formal é uma pluralidade; por exemplo, há tantos conceitos formais de Biblioteca Nacional quanto há pessoas atualizando em suas almas um pensamento sobre a Biblioteca Nacional. Por outro lado, o conceito formal pode também ser considerado no contexto da discussão semântica; nesse caso, retomando o exemplo acima, para que todas essas pessoas estejam se referindo à mesma coisa, a saber, à mesma Biblioteca Nacional, é necessário que essa pluralidade

partus in hac materia passim usurpata eidem analogiae attestantur; nimirum, quia ut semen in se organa, vel potentias formaliter non habet, sed vim effective formatricem organorum in foetu... A respeito do recebimento de espécies materiais Suárez também fala, em De anima l. 3 c. 2 n. 33: ...requiritur organum nudum, ac purum... 1 DM 2,1,1. Para um comentário detalhado desta passagem cf. Rios § 3. [Ver sobretudo, mais abaixo neste livro, ‘Conceito Objetivo, Denominação Extrínseca e Entia Rationis em Francisco Suárez’.]

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de conceitos formais seja de algum modo algo de uno; semanticamente, o

conceito formal de uma mesma coisa tem que ser uno1. A potência intelectiva é ativada ao ser “fecundada” com as espécies

inteligíveis2. Mas ela é ativada para quê? Para “usar” as espécies inteligíveis, isto é, para conectá-las e organizá-las, pois o homem só se torna sábio e prudente pela facilidade com que usa tais espécies de modo conveniente (“ex facilitate et

promptudine utendi convenienter his speciebus”)3. Ao fazê-lo, a potência intelectiva adquire hábitos que são a facilitação, em certa medida duradoura, para o uso conveniente das espécies. A ratio, isto é, a razão em sentido estrito, é o “uso conveniente”. Enquanto não há o que ser usado, não há atividade da razão, isto é, não há uso e ordenação. Somente cindida, a potência intelectiva humana é racional, isto é, ela é racional somente quando parte do intelecto, enquanto intelecto agente, inscreve espécies no intelecto possível e este último, por sua vez, reage ordenando-as. Desse modo, essa cisão é uma, por assim dizer, “queda no tempo” na medida em que, com ela, passa a haver tanto uma inscrição de marcas no intelecto possível quanto uma ordenação delas como anterior e posterior.

A abstração das espécies sensíveis possibilita também uma, como estive chamando, “purificação” da quantidade extensiva concreta, de modo que o que permanecerá no intelecto possível será apenas a quantidade abstrata das correlações; um resultado disso é a geometria cujas demonstrações sobre o papel não são mais do que um auxílio impreciso do que, a rigor, está sendo demonstrado em abstrato.

Contudo, o essencial do processo de abstração pelo intelecto agente é que ele se dá com base na insuficiência, isto é, na finitude do conhecimento intuitivo humano; finitude que se caracteriza pela impossibilidade de uma intuição plena e simultânea de todas as coisas, isto é, pela necessidade de partir de intuições parciais e sucessivas para se chegar ao conhecimento das coisas. Sucessividade que é percebida pela fantasia apenas de modo implícito (in actu exercito), mas que no intelecto pode ser percebida reflexivamente (in actu significato). A potência intelectiva é, assim, sob esse aspecto, o suplemento da intuição precária; o suplemento onde, através de inscrições sucessivas e de séries de

1 Discuti o problema semântico da referência em Suárez em Rios §§ 2 a 11 [ver, neste livro, ‘Conceito Objetivo, Denominação Extrínseca e Entia Rationis em Francisco Suárez’]. 2 Como o essencial para a discussão nesta parte final do presente artigo é a questão da relação entre o que resulta da atividade do intelecto agente e do intelecto possível, deixarei de lado a intelecção dos primeiros princípios porque ela é apenas uma especificação da atividade do intelecto agente, tendo, no contexto deste debate, o mesmo papel que as espécies inteligíveis resultantes dos objetos materiais. 3 DM 44,4,6.

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ilações, se busca estabelecer um conhecimento que supere a transitoriedade. Entretanto, a potência intelectiva, enquanto não for marcada pelas espécies inteligíveis, é atemporal; é “inocente” do antes e do após. Com a sua fecundação, ela decai em uma proliferação de espécies e de hábitos que só pode cessar com a visio beatifica. E a visio beatifica é que é, sem dúvida, a meta desejada; mas ela é, na Escolástica, sempre um tema difícil de ser explicado, porque ela seria uma dádiva, mas ela só pode ser de fato uma dádiva, se ela não trouxer consigo a supressão do propriamente humano no homem, ou seja, se ela não tornar supérfluo esse suplemento das intuições parciais humanas que consiste no intelecto agente e no intelecto possível. Afinal, o que diferencia, por um lado, o homem do animal e, por outro, o homem de Deus, é que o homem recorre a abstrações para, ao suplementar a insuficiência de suas intuições parciais, chegar a um conhecimento que seja verdadeiro. Ou seja, o homem, essencialmente, é o suplemento.

O homem é essencialmente suplemento. O curioso aqui é que também se pode dizer: o homem é o que é suplementado pelas intuições parciais. Afinal, o intelecto não fecundado, se é vazio de espécies, é também auto-suficiente, inocente da sucessividade e, portanto, de certo modo, pleno e mesmo eterno ou,

melhor dizendo, atemporal1. O intelecto torna-se humano – e racional – com a recepção de sucessivas intuições parciais. Com as espécies inteligíveis e com o uso delas é que o intelecto passa a ser “parasitado” por hábitos.

Assim, a qualidade, a saber, a potência intelectiva, enquanto uma qualidade da segunda espécie das qualidades, é o acidente mais importante, mais nobre de todos. Pode-se dizer que o humano, de certa maneira, é fundamentalmente o intelecto agente, o intelecto possível e os hábitos. “O

acidente mais perfeito de todos” (perfectissimum omnium accidentium)2 é a qualidade, afirma Suárez e a Escolástica em geral, ou seja, é em algumas espécies da qualidade que está o suplemento mais importante para a essência do homem. Mas há uma pré-condição para que essa suplementação seja possibilitada ou requerida. É que a substância material seja no tempo. A temporalidade é algo de tão íntimo ao homem (bem como de qualquer coisa que efetivamente seja) que ela não se distingue senão ratione de sua própria

entidade3. Assim, o quando, a temporalidade, não é ontologicamente nada que seja acrescido à essência do homem. Porém, é apenas sob esse aspecto que ela é ontologicamente “inferior” à qualidade. Antes, a temporalidade é a condição de

1 Em Suárez, pode-se diferenciar o significado de “aeternum” e de “perpetuum”. “Eterno” só cabe dizer de Deus. Aqui, porém, o que está em questão é antes uma atemporalidade. 2 DM 44,1,5. 3 Cf. disputatio 50 De quando, et in universum de durationibus.

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possibilidade para que qualquer complemento seja requerido. Nesse sentido, a temporalidade é ontologicamente reduzida, mas, diga-se, não por ser ínfima, mas por ser íntima, por pertencer intrinsecamente à realização da essência. E mais: ela é intrínseca a todos os demais predicamentos. Os animais têm percepção do tempo, mas apenas in actu exercito. Só o homem tem consciência

do tempo in actu significato1. O tempo é assim duplamente constitutivo do humano: dele, enquanto substância material, e dele, enquanto autoconsciência da sucessividade no tempo. Contudo, Suárez – ainda que ele não negue a sua extrema importância – não concede uma relevância especial ao predicamento do quando ou à análise do tempo. A análise da temporalidade e de sua insuficiente tematização, bem como de sua relação, na história do pensamento ocidental, com a estrutura cognoscitiva é o que Heidegger veio a considerar como um dos fios condutores para a destruição da metafísica. Do ponto de vista de Heidegger, Descartes não teria vindo abalar tal impensado. Sem pretender aqui contestar Heidegger ou convocá-lo para o nosso debate, quero só indicar que uma das mudanças fundamentais de enfoque entre Descartes e a Escolástica é que, para Descartes, o tempo passa a ser compreendido como estando em uma relação algo diversa com o intelecto. O cogito cartesiano desde o início das Meditações está lançado no tempo ou, ao menos, numa certa sucessividade. O cogito não tem a mesma suposta inocência atemporal do intelecto escolástico placidamente desnudado das formas. Na Escolástica, a perda da inocência temporal do intelecto não é compreendida como constituindo uma experiência, isto é, nem a temporalização do intelecto, nem a sucessividade do raciocínio no intelecto são vivenciadas como uma experiência que reverta sobre o próprio posicionamento do intelecto. É como se a temporalidade compreendida como mera sucessividade não fosse constitutiva do intelecto e retroativa sobre a experiência do intelecto em relação a ele próprio. Ou seja, a perda da inocência é, na Escolástica, só relativa: nela entende-se que o intelecto cai no tempo, mas ele não é assimilado como um constituinte essencialmente transformador do seu modo de operação enquanto consciência auto-reflexiva. Digo relativa porque, embora – como foi acima indicado – a temporalidade enquanto consciência do tempo in actu significado seja algo de próprio ao homem, embora na lógica escolástica o tema do tempo seja extensamente considerado, embora na teologia seja atribuída à história um caráter salvífico, a tematização de um caráter existencial, de uma indeterminação existencial intrínseca a uma consciência que é no tempo só é

1 De anima l. 3 c. 12 n. 8: ...sensum posse cognoscere praeteritum in concreto, seu in actu exercito, considerando scilicet rem, quae praeterit, non rationem formalem praeteriti, sicut etiam percipit rem praesentem in actu exercito: considerare autem formaliter, et signate temporum differentias proprium esse intellectus.

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encontrada em textos da Escolástica por meio de alguma violência hermenêutica por parte do leitor moderno. Também não atribuo ao cogito cartesiano uma indeterminação existencial, nem digo que o cogito perca de todo a sua inocência atemporal, digo apenas que essa, por assim dizer, não-perda é diferente. Para a Escolástica e, assim, para Suárez, a inocência atemporal do intelecto nunca é totalmente perdida.

Podemos, então, dizer que o intelecto humano é passivo e ativo; temporal e atemporal; individual (são processos psicológicos individuais que resultam em conceitos formais individuais) e social (os conceitos formais têm que ser semanticamente unos); substancial (a alma racional onde as potências racionais se “enraízam”, isto é, o “lugar” destas potências e o que coordena estas potências é constituinte essencial da substância) e acidental (a potência intelectiva suplementa a substância, suplementam-se entre si as potências racionais e seus hábitos, e são todos estes suplementos “acidentais” suplementados por uma dimensão semântica da qual participa a denominatio extrínseca); pleno (pois a princípio é estático e atemporal, logo sem carências ou demandas) e vazio (pois as espécies inteligíveis o tornam carente de mais espécies inteligíveis): sexualizado e assexuado (masculino e feminino); autônomo (independe da causalidade da matéria) e sincrônico (atua em correlação com a presença do phantasma); intuição e raciocínio; não material e não puramente semântico (é alma, isto é, é algo que informa intimamente a matéria e a atualiza, ou seja, é algo “físico”, e é algo que, embora culmine causando uma qualidade passiva que é algo individual e “físico”, é também semanticamente uno); não meramente natural (tal como as potências vitais) e não essencialmente antinatural e perverso (embora o intelecto seja a possibilidade dos vícios e das perversões); voluntativo/indiferente (é sujeito a hábitos e julga com participação da vontade) e involuntário/ilativo (julga forçado pelas evidências).

Resumindo: O intelecto humano é passivo e ativo; temporal e atemporal; individual e social; substancial e acidental; sexualizado e assexuado; pleno e vazio; autônomo e sincrônico; intuição e raciocínio; não material e não puramente semântico; não meramente natural e não essencialmente antinatural; voluntativo/indiferente e involuntário/ilativo.

Mas o que suporta essas contraposições? Qual é o solo comum que permite que haja tais contraposições? São contraposições, de fato, diversas. Todas remetem, porém, à alma, à simpatia entre as suas potências, que a attentio da alma possibilita, ou mesmo simplesmente à alma racional em sua posição de receptáculo tanto da matéria informe quanto da potência intelectiva. Essa alma, que seria mais que a alma animal, que seria de certa maneira o receptáculo do que vai além do meramente natural, isto é, o receptáculo do intelecto e da vontade, ou seja, é a alma que assimila o natural, naturaliza o voluntativo-racional e que possibilita a desnaturalização do meramente natural.

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Essa alma-receptáculo é o “lugar” onde as contraposições se invertem, onde o suplemento torna-se o essencial e o essencial, suplemento.

O homem é animal racional; ele é animal “e” racional. Ele é animal racional no que nessa definição está, em silêncio, incluído – ou intrometido – este “e”. Este “e”, ele próprio, difícil de definir ou de explicar, de “localizar”, deixa, porém, os seus rastros no pensamento de Suárez. Tais rastros estão em sua doutrina da simpatia entre as potências e da atenção substancial, em sua difícil doutrina da denominatio extrinseca (e conseqüentemente na do conceito formal/conceito objetivo e na dos entia rationis), em sua doutrina do juízo (disputatio 8) em sua concepção da libertas indifferentiae e da scientia futurorum contingentium, em sua compreensão do acidente da quantidade em sua relação com uma quantidade que seria intrínseca à substância... Impossível querer enumerar todos os lugares onde se encontram os rastros deste “e”. Deste

“e” que não é acidental, mas que possibilita todos os acidentes1. Propriamente, este “e” não tem lugar; ele é, porém, o lugar onde co-pertencem matéria e forma, essência e existência, raciocínio e vontade, individualidade e universalidade. Ou seja, lugar físico, metafísico, psicológico e semântico. Lugar para o qual não há

um lugar, uma disputatio própria entre as 54 que constituem as DM2. BIBLIOGRAFIA Alcorta, J. I.: La téoria de los modos en Suárez. Madrid 1949 Bordeus, R.: Du troisième genre au cinquième corps. Notes sur la critique du

Timeu de Platon dans le premier livre du traité De l’âme d’Aristote in: Rev. Phil. de la Fr. et de l’Étranger, n. 2 (avril-juin) 1993

Derrida, J.: Khôra. Paris, Galilée, 1993 Doyle, J. P.: Prolegomena to a Study of Extrinsic Denomination in the Work of

Francis Suarez, S. J., in: Vivarium 22, 2 (1984) p. 121-160 Kretzman, Norman (ed.) The Cambridge History of Later Medieval Philosophy.

Cambridge, Cambridge Univ. Pr., 1982

1 O que também está em questão é o próprio “lugar” do lugar, isto é, a questão do espaçamento. 2 A questão que este texto em sua parte final veio a indicar é uma que remete, a princípio, ao problema da relação entre o De anima de Aristóteles e o Timeu. No De anima 406b-407a, Aristóteles critica explicitamente o Timeu 30a, onde está em questão a alma do mundo. Ao final deste meu texto, porém, estive perguntando pelo “lugar”, o que inequivocamente remete à chora do Timeu 48e-53b e a põe implicitamente em relação ao De anima III cc. 4-5. O que fica como tarefa é pesquisar estes e outros possíveis pontos de contato entre esses dois textos, bem como suas conseqüências para a tradição subseqüente até Suárez e após ele. Como uma bibliografia inicial indico: Bordeus e Derrida.

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Ludwig, J.: Das akausale Zusammenwirken (sympathia) der Seelenvermögen in der Erkenntnislehre des Suárez. München, Karl Ludwig Verlag, 1929

Rios, André Rangel: Die Wahrheit der Aussagesätze und das göttliche Wissen von zukunftig Kontingentem bei Francisco Suárez. Berlin 1991 (Tese de Doutorado)

Schlagenhaufen, F. Die Glaubensgewissheit und ihre Begründung in der Scholastik in: Die Zeitschrift für katholische Theologie Bd. 56 (1937) p. 313-595

Schmitt, C. B. (ed.): The Cambridge History of Renaissance Philosophy. Cambridge, Cambridge Univ. Pr., 1988

Suárez, Francisco Opera omnia. Paris, ed. M. André e C. Berton, 1856-78 ____De anima in vol. 3 p. 467-800 ____Disputationes Metaphysicae [ = DM] in vol. 25/26 (p. ex.: DM disputatio 2, sectio 1, número 1 = DM 2,1,1)

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Suárez e a Doutrina das Formas Substanciais ∗∗∗∗

As Disputationes Metaphysicae (1597) [DM] seriam a primeira obra de grande envergadura da tradição filosófica a buscar expor de um modo completo a metafísica segundo a ordo doctrinae [DM Ad lectorem]. Haveria nas DM uma ordenação coerente e fundamentada dos temas que constituem as disputationes. As disputationes são por sua vez subdivididas em sectiones. Há intérpretes que vêem na sistematicidade das DM um avanço na direção da autonomização da metafísica frente à teologia.

Tratados versando somente sobre metafísica já existiam, contudo, desde muito. Mesmo os comentários sobre a Metafísica de Aristóteles sempre buscaram apresentar o seu pensamento de um modo mais ou menos ordenado; esses comentários purgavam as repetições e adiavam discussões prematuras, de modo que se desenvolviam, por vezes, segundo uma sistemática talvez não tão menos satisfatória que as das DM. Além disso, distinguir a discussão filosófica da teológica não pode ser visto, no século XVI, como uma novidade para a escolástica.

A relevância das DM está talvez é na incorporação da discussão metodológica do século XVI e na extensão e qualidade de sua discussão dos temas fundamentais do aristotelismo escolástico.

No entanto, se poderia dizer ainda que as DM são uma aparatosa demonstração de poder, uma auto-afirmação da escolástica jesuítica e, assim, da escolaridade católico-eclesial.

A trama discursiva dos séculos XVI/XVII é, como nós bem sabemos, complexa. Porém, é certo que as DM não representam então o canto dos cisnes da escolástica, que, tal como supõem alguns livros de história da filosofia, com o cartesianismo, teria tido de conformar-se com uma aposentadoria compulsória. O aristotelismo escolástico fez ainda muita história bem após as DM.

Este artigo foi publicado originalmente na Revista Veritas, Porto Alegre, Edipucrs, Setembro 1996, vol. 41, n. 163, p. 525-539. Inicialmente, porém, este texto não foi escrito com a intenção de ser publicado. Ele deveria apenas servir como um apoio para a exposição oral que realizei na USP em novembro de 1992 por ocasião de um colóquio sobre as formas substanciais. Devido à inexistência quase absoluta de publicações sobre Suárez no Brasil decidi, entretanto, retrabalhá-lo e publicá-lo como artigo. Estando, contudo, ocupado em diversas outras pesquisas nem sempre pude ir além de completar as referências bibliográficas que já haviam sido deixadas indicadas no manuscrito. Ainda assim, há no texto inúmeras referências bibliográficas indiretas que não pude acrescentar por extenso.

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As DM se inserem na complexa urdidura dos atritos intrajesuíticos (Suárez vs. Vázquez), dos embates intracatólicos (Suárez vs. Báñez), da intolerância religiosa (católicos vs. protestantes), das animosidades políticas (colonização, cristianização e jus gentium; Belarmini vs. Jaime I) e dos confrontos epistemológicos (Aristotelismo vs. atomismo; vitalismo vs. mecanicismo). Com as DM, Suárez está desenvolvendo e consolidando suas argumentações e conceitos engajando-se não só em vários debates relativos a questões da metafísica e da física, mas também em polêmicas teológicas e político-eclesiásticas. Há que se notar também que seu latim correto, seu discreto cultivo das bonae litterae, vale tanto como uma crítica à escolástica medieval quanto como uma apropriação do prestígio do Renascimento.

Considerando-se, no entanto, de um modo mais amplo o multifacético movimento intelectual europeu (e colonial: pois já há então universidades no Novo Mundo), talvez se deva dizer que as DM não são uma obra das mais inovadoras. As DM não reforçam a divisão entre metaphysica generalis e metaphysica specialis. Nelas a separação entre filosofia e teologia é, na verdade, por vezes não observada: tanto Suárez discute longamente temas teológicos (como a transubstanciação) como chega a remeter para tratados de teologia temas que ele próprio diz serem filosóficos (por exemplo, a questão da scientia conditionata). Ao contrário de escotistas como Mastrius, ele inclui a doutrina das causas na metafísica. Além disso, Suárez não se submete de modo rigoroso à sempre tão louvada sistematicidade de sua obra, isto é, à ordo doctrinae.

Nas DM, a ordem das disputações é a seguinte: Disp. 1: A natureza da filosofia primeira (pode ser vista como uma introdução geral às DM) Disp. 2: O objeto da metafísica (trata-se aqui, pois, de se estabelecer o fundamental da metafísica) Disp. 3-11: passiones entis Disp. 12-27: as causas Disp. 28: a divisão entre ens finitum e infinitum Disp. 29-30: Deus

Disp. 31-53: sobre o ente finito Disp. 31: sobre o ente finito em geral Disp. 32: a divisão do ente finito em substância e acidente Disp. 33-36: sobre a substância criada material e imaterial Disp. 37-53: sobre os acidentes

Disp. 54: sobre os entia rationis

Essa sistematicidade está, porém, rompida em vários momentos. As rupturas mais evidentes são, a meu ver, as seguintes: (1) A inclusão da

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disputação 7 sobre as distinções no meio da série das disputationes sobre as passiones entis. (2) A inclusão de uma extensa discussão sobre a verdade das proposições ou do conhecimento na disputação 8 que deveria versar apenas sobre a verdade transcendental. (3) A inclusão, ao final das DM, da disputação 54 sobre os entia rationis os quais Suárez reconhece explicitamente como não pertencentes ao objeto da metafísica.

Contudo, sabe-se que as DM foram bem divulgadas na Europa, inclusive entre os protestantes. Após um primeiro momento – luterano – de hostilidade à escolástica; a escolástica – com apoio de Melanchton – acabou por entrar nas universidades protestantes. Por essa via é que as DM acabaram por ser lidas na Alemanha dos séculos XVII e XVIII. Porém, aqui há que se chamar também atenção para um outro fato. Suárez é muito pouco citado por autores tidos como significativos tais como Descartes, Malebranche ou Leibniz. Apenas Wolff o cita com freqüência. Influências palpáveis de Suárez são, ao final, difíceis de serem delimitadas. Suárez parece ter sido lido, fora da escolaridade escolástica católica, basicamente como um manual completo e mesmo criativo, isto é, parece ter sido lido sempre em partes, quase como se as disputações independessem umas das outras. Os jesuítas à parte, não se pode falar, no século XVII, de um suarezianismo tal como se fala de um cartesianismo.

Porém, Suárez é, sem dúvida, uma presença importante no final do século XVI e no XVII. É certo que é difícil determinar qual tenha sido o seu papel na história do pensamento filosófico. Contudo, também não é claro em que sentido a filosofia é histórica, ou mesmo o que seja filosofia. Em todo caso, os que valorizam a importância de Suárez parecem por vezes ter algum interesse nisso: ou querem afirmar uma certa continuidade entre a escolástica e a modernidade e, ao mesmo tempo, uma certa dependência da modernidade em relação à escolástica, ou querem simplesmente afirmar a escolástica e sugerir que ela detém uma certa perenidade (ultimamente, porém, isso só acontece raramente). Mas há também aqueles que apenas estariam buscando ver as vicissitudes dos séculos XVI e XVII de um modo mais nuanceado, embora aqui também sempre se possa supor que esses pesquisadores estejam sendo movidos por alguma interpretação do que seja a modernidade e, conseqüentemente, de como tenha sido o seu surgimento e constituição. Pode-se mesmo dizer que qual relevância se venha a atribuir a Suárez e às suas DM depende sempre de como

se está interpretando ou tendendo a valorizar a modernidade1. Antes de comentar a teoria suareziana das formas substanciais, gostaria

ainda de retornar à questão das rupturas na sistematicidade das DM. Se

1 Poder-se-ia discutir aqui por que e em que medida Heidegger no Sein und Zeit § 6 e nos Grundprobleme der Phänomenologie § 10 se refere com certa reverência a Suárez. Qual o “interesse” de Heidegger em relação à escolástica?

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abstrairmos as interrupções para digressões teológicas, podemos dizer que as principais rupturas de ordem filosófica são: (1) a doutrina das distinções, (2) a verdade do conhecimento e (3) os entia rationis.

O que quero destacar é que a sistematicidade das DM não dá conta de subsumir principalmente três doutrinas ‘marginais’ que são, no entanto, fundamentais para a compreensão da maioria das disputações: (i) a doutrina

das distinções (e consequentemente a dos modi1: os modi reales dizem respeito à distinctio modalis), (ii) a doutrina da denominatio extrinseca e (iii) a doutrina dos entia rationis. Cabe aqui indicar que dessas a mais ‘rebelde’ é a doutrina da denominatio extrinseca e que as duas outras doutrinas não são compreensíveis sem uma referência fundamental à doutrina da denominatio extrinseca.

Em todo caso, enquanto Suárez dedica algumas passagens à doutrina dos modi intrinseci e uma disputação inteira aos entia rationis, a doutrina da denominatio extrinseca permanece, em sua obra, obscura, não discutida e não sistematizada. Ela, porém, é que reincidentemente ameaça a sistematicidade das DM.

A impossibilidade de que tratemos aqui da questão da denominação extrínseca, questão que, aliás, já tratei de um modo mais extenso, embora não de todo satisfatório, em um outro texto, me leva a contentar-me apenas com essas indicações e de concluir dizendo que dois são os motivos básicos para as repetidas rupturas na sistematicidade das DM: (a) problemas internos ao próprio discurso metafísico que vêm a se manifestar principalmente na ‘rebeldia’ das denominationes extrinsecae e (b) a não-separação clara por Suárez entre filosofia e teologia (comentando abaixo o texto da disputação sobre a quantidade, veremos que Suárez lança mão com a mesma naturalidade tanto de argumentos de caráter teológico quanto de argumentos propriamente filosóficos).

Mas detenhamo-nos ainda um pouco exatamente no momento em que a sistemática das DM é rompida pela primeira vez de um modo mais relevante, a saber, detenhamo-nos na disputação 7 sobre os vários gêneros de distinções.

Suárez aceita as seguintes distinções: 1) A distinctio realis : é a que ocorre entre duas coisas (rei a re – DM 7,1,1) reciprocamente independentes e assim realmente distintas uma da outra.

1 A teoria suareziana dos modi, isto é, dos modi intrinseci ou modi reales, não deve ser relacionada à doutrina escotista dos modi intrinseci. A doutrina de Suárez á um desenvolvimento de uma teoria dos modi que Fonseca em parte propõe [cf. DM 7,1,19] e que parece remeter, em última instância, a Durandus a Sancto Porciano.

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2) A distinctio rationis: é a que não pré-existe nas coisas (non est in rebus – DM 7,1,1) antes da atividade do intelecto. Há dois tipos de distinção de razão:

2.1) a distinctio rationis ratiocinantis, que se deve de fato apenas à atividade do intelecto: seria, pois, uma distinção feita pela razão enquanto ela raciocina por ela própria. 2.2) a distincito rationis ratiocinata, que, embora também se deva à atividade do intelecto, além disso, se deve a uma ‘ocasião’ dada pela coisa: seria, pois, uma distinção feita pela razão enquanto ela é levada a raciocinar de uma determinada maneira.

3) A distinctio modalis: é uma distinção atual, ex natura rei e anterior à atividade do intelecto, mas que não é tanta quanto a distinção entre duas coisas. Trata-se aqui da distinção entre a coisa e o seu modo. Teremos, assim, que, a

seguir, considerar brevemente a teoria suareziana dos modos1.

Antes, porém, de expormos a doutrina dos modi, convém notar que as distinctiones rationis são entia rationis, ou seja, elas resultam de atos reflexos do intelecto, no caso, reflexos sobre denominationes extrinsecae. Suárez não define em nenhum lugar de suas obras o que seja a denominatio extrinseca. Nem por isso o conceito de denominatio extrinseca pode deixar de ser considerado como um conceito básico para ele. Já na disputação 2 sobre o conceito objetivo de ser, isto é, sobre o objeto da metafísica, a denominatio extrinseca se mostra um conceito fundamental. É ao esclarecer o que seja o conceptus objectivus que Suárez deixa a denominatio extrinseca entrar em cena: “...conceptus objectivus, conceptus quidem per denominationem extrinsecam a conceptu formali...”[DM 2,1,1].

O que temos é que o conceito objetivo é uma denominação extrínseca. Mas em que sentido propriamente? Em Suárez, a denominação extrínseca é tanto o referir quanto o ser referido, ou seja, é tanto o ver quanto o ser visto, tanto o denotar quanto o ser denotado. Suárez deixa essa expressão valer, ora em um sentido ativo, ora em um sentido passivo. É exatamente nessa oscilação que ela funciona, que ela percorre todas as DM e que ela possibilita muitas articulações essenciais a essa obra. A própria doutrina da denominação extrínseca permanece, porém, não sistematizada, não tematizada e, portanto, não discutida. As razões disso não cabe, porém, discutir aqui. Retornemos, assim, à apresentação da doutrina suareziana dos modos.

Para Suárez, há modos substanciais e modos acidentais. Os modos substanciais são três: - modus unionis, que une a materia e a forma substancialis.

1 A principal publicação sobre o tema, apesar de suas muitas limitações, é a de Alcorta.

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- modus subsistentiae, que é a substantia prima, que se une intrinsecamente com a essentia ou natura. - modus dependentiae, que é próprio a toda substância criada, que, enquanto tal, depende da criação divina.

Os modos acidentais são vários e, sem buscar ser exaustivo, vou enumerá-los ao indicar resumidamente como Suárez entende os acidentes: 2. quantitas: realmente distinto da substância = modus inhaerentiae 3. qualitas:

3.1. habitus e dispositio → modus in ordine ad naturam subjecti

3.2. potentia e impotentia → modus secundum actionem et passionem

3.3. passiva qualitas → modus secundum actionem et passionem

3.4. figura → modus secundum quantitatem1 4. relatio: distinctio rationis da realidade do fundamento (resultantia naturalis) 5. actio: distinctio rationis ratiocinata [DM 49,1,8] do termo da ação que é o modus intrinsecus da passio 6. passio: modus intrinsecus de dependência da ação 7. quando: distinctio rationis da existência do fundamento 8. ubi: modus intrinsecus (resultantia naturalis) 9. situs: distinctio rationis do ubi

10. habitus: denominatio extrinseca2

Para esclarecer o que Suárez entende como modus realis, o mais prático é comentar os modi que dizem respeito ao nosso tema de hoje.

A matéria e a forma são cada uma uma substância incompleta. A matéria pode, para Suárez, inclusive subsistir sem a forma. Como se dá a união entre a matéria e a forma? O modus unionis é que as une; as une sem, porém, ser uma terceira coisa entre elas. Se fosse uma terceira coisa independente, ter-se-ia ainda que explicar como a matéria e a forma se unem a essa terceira coisa. A união entre matéria e forma é, assim, algo de positivo que se acrescenta a ambas, mas não seria algo de totalmente diferente.

A quantidade é um acidente que enquanto tal é realmente diferente da substância na qual ela inere. Não é, porém, a quantidade enquanto tal que inere na substância diretamente, mas isso ocorre por meio do modus inhaerentiae. A quantidade é, assim, um acidente com entidade própria que pode continuar existindo mesmo se for separado da substância, ou seja, a inerência não é 1 Cf. DM 42,1,1 e DM 42,5,5. 2 Sobre a relatio e o habitus (enquanto décimo predicamento) cf. Rios. Sobre a resultantia naturalis cf. Elorduy e Rios.

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essencial a ela, é algo que é acrescido a ela no ato da união ou inerência com a substância. Isso é particularmente importante para que se explique a transubstanciação, pois a substância pão é desintegrada, vindo a substância corpo de Cristo ocupar o seu lugar; porém, os acidentes do pão são mantidos e passam a inerir na substância corpo de Cristo.

A quantidade é, assim, um acidente com uma grande independência entitativa da substância. Os outros acidentes não possuem a mesma independência ontológica. Na verdade, Suárez dá aos acidentes bem mais, por assim dizer, densidade ontológica que outros filósofos da escolástica. Principalmente os seis últimos predicamentos sempre foram questionados a respeito do status ontológico que lhes caberia, ou mesmo se eles chegavam a ser propriamente entes, isto é, se afinal não se poderia, de um ponto de vista ontológico, reduzir todos esses predicamentos a apenas os da quantidade, da qualidade e da relação. Os textos mais conhecidos nessa linha de discussão foram: o pseudo-Agostinho Categoriae decem, o Liber de sex principiis de Gilbertus Porretanus e o Liber sex principiorum atribuído a Alberto Magno. Para Ockham, ontologicamente positivo é apenas a qualidade: ele não considera a quantidade algo distinto da substância. Ao contrário, em Suárez ontologicamente “fraco” é o décimo acidente, o do habitus, que não é mais do que uma denominação extrínseca, isto é, ele não é propriamente algo de real. Além disso, para Suárez, a relatio e o quando distinguem-se apenas ratione do fundamento, isto é, são algo real, mas não constituem enquanto tais nada que é acrescentado à coisa já existente.

É na disputação 40, sectio 2, que Suárez discute sua posição de que a quantidade se distingue realmente da substância. Aqui ele contesta a posição dos nominalistas de que a quantidade não difere realmente da substância. É importante destacar que os dois principais argumentos de Suárez [DM 40,2,8 e DM 40,2,14] são explicitamente baseados na teologia dogmática, a saber, nos dogmas acerca da eucaristia.

Para Suárez, na transubstanciação os acidentes são mantidos

independentes da substância pão1. Deus pode, segundo Suárez, manter uma substância material existindo retirando-lhe o acidente da quantidade [DM 40,2,21], ou mesmo conservar a mesma substância em diversos ubi. O fulcro do argumento de Suárez contra os nominalistas está em que eles não chegam a “salvar o mistério” a não ser recorrendo a milagres contínuos (“mysterium tamen nullo modo salvari posset, nisi fingendo continua miracula” – DM 40,2,13). E, se os nominalistas argumentam – tal nos relata cuidadosamente

1 Não se trata propriamente de uma annihilatio da substância do pão (e, portanto, da matéria primeira que ele inclui), mas de uma desitio substantiae; digamos que se trate de uma “desintegração” da substância pão.

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Suárez [DM 40,2,3] – que não se deve acrescentar distinções sem necessidade (“...quia rerum distinctio introducenda vel asserenda non est sine ratione aut necessitate cogente...”), Suárez de certo modo contrapõe que a sua própria posição exige menos milagres para explicar a eucaristia; ao menos ele pensa que sua posição não precisa recorrer aos – pelo visto embaraçosos – “milagres contínuos”. Economizar milagres divinos parece, portanto, tornar uma posição mais plausível do que economizar distinções ontológicas.

O que ocorre na eucaristia é, segundo Suárez, que a substância pão é transubstanciada em corpo de Cristo enquanto uma carapaça de acidentes, suportados pelos acidentes da quantidade, se mantém intacta. Fica mantida a extensão do pão, a figura (qualidade da quarta espécie) como modus da quantidade, o ubi desses acidentes, bem como o quando e eventuais passiones.

Suárez visa com sua teoria da quantidade e da substância propor uma metafísica estritamente compatível com a dogmática católica, a saber, com uma dogmática cujas formulações e determinações foram reelaboradas décadas antes das DM pelo concílio de Trento, mas que, como se sabe, desde os seus primórdios se constituiu baseada em uma terminologia forjada pela própria tradição greco-latina em seu processo de apropriação pelo cristianismo.

A dificuldade com a qual se defronta Descartes no que ele busca propor uma metafísica que venha a superar a escolástica é a de como dar conta dos dogmas do catolicismo do qual ele seria fiel devoto. Descartes acaba por renunciar às formas substanciais no que ele, por assim dizer, “desobjetiviza” as qualidades e substancializa a quantidade. A questão que pode ser colocada é a de se o cartesianismo chegou a dar uma explicação que compatibilizasse a renúncia às formas substanciais com a transubstanciação. A crer pelo Dictionnaire de Théologie Catholique, até o século XX a igreja católica nutriu desconfiança a respeito da possibilidade de uma doutrina cartesiana acerca da eucaristia.

Mas não é só o dogma da eucaristia que apoia a doutrina das formas substanciais. É toda uma série de conceitos que de um modo mais ou menos estreito se ligam a essa doutrina. Acabamos de abordar rapidamente a doutrina dos predicamentos. Mas a psicologia de então, o conceito de vida, o conceito de matéria, a compreensão dos fenômenos astronômicos, ou mesmo o conceito de método científico estão de alguma maneira compatibilizados com o conceito de formas substanciais. Não que todos esses conceitos e doutrinas se harmonizem sem atritos, ao contrário, há problemas por toda a parte. Problemas, aliás, sempre os houve e para eles nunca se deixou de constituir a devida disputatio. Muitos problemas permaneceram com soluções insatisfatórias. Contudo, a escolástica nem por isso esmoreceu e, em todo caso, conseguiu até juntar forças e reafirmar-se no século XVI mantendo sua vitalidade por todo o século XVII.

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É na disputatio 15 que Suárez expõe a sua doutrina das formas substanciais. Ele não busca nessa disputação propor nenhuma inovação significativa dentro da tradição escolástica. Suárez define a forma substancial [DM 15,5,1] como a forma que unindo-se à matéria primeira constitui uma substância da qual ela é o elemento específico. Em suas palavras: “substantia simplex, incompleta, quae ut actus materiae cum ea constituit essentiam substantiae completae”. Na verdade, pode-se dizer que sua exposição sobre as formas substanciais se inicia na disputação 13 sobre a matéria, isto é, sobre a causa material. A demonstração da existência da matéria é pressuposta logo no início da disputação sobre as formas substanciais. O conceito suareziano de matéria afasta-se do de Tomás de Aquino no que Suárez não aceita propriamente que a matéria seja uma potência pura (para ele a materia prima é uma potência pura somente em relação à possibilidade de receber as diversas “informações” das formas substanciais, mas não enquanto toda a sua atualidade viria da forma) e aproxima-se de Duns Scotus no que aceita que Deus pode manter a matéria independentemente da forma, embora recuse a doutrina da forma corporeitatis que ele atribui também a Duns Scotus. A forma corporeitatis seria a doutrina que postula que a matéria sempre está “informada”, mas que haveria uma forma extremamente simples que seria a que ficaria “informando” a matéria quando se buscasse destituí-la de todas as formas substanciais mais complexas.

A primeira sectio da disputação sobre a matéria coloca a questão de se é evidente para a razão natural a existência da matéria primeira. A primeira evidência alegada por Suárez é a de que no que se constata a mudança nas coisas também se constataria a constância de um substrato [DM 13,1,4]. Isso seria experimentalmente constatável (“experimento constat”). Mas a evidência que ele considera principal é a que diz respeito às coisas que são geradas ou que perecem (“res generabiles et corruptibiles”), ou seja, os processos de geração de novas coisas e de mudança das coisas geradas que crescem e morrem são também evidências experimentais da substância primeira (“evidens experientia” – DM 13,1,5). Ainda mais porque também é evidente que um mesmo substrato suporta, em momentos diferentes, contrários. Isso sugere, portanto, uma materia prima indiferentemente receptiva de formas diversas. A existência da matéria primeira é conquistada por um misto de observação e argumentação racional. Trata-se para Suárez, sem dúvida, de uma certeza “científica”, ou seja, de uma certeza de grau correspondente ao que pode ser conquistado pela Física, no caso aqui, indo algo mais além, pela metafísica no que ela considera o conceito de causa de um modo algo mais universal do que o faz o físico. Ou seja, não se chega à conclusão da existência da matéria primeira senão por meio de uma negotiatio da razão. Suárez não usa aqui o termo negotiatio, mas é como

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negotiatio que Zabarella entende a exposição de Aristóteles sobre a matéria primeira que ele comenta da seguinte maneira:

A matéria é, portanto, descoberta por meio da geração, embora de início não se saiba ainda que ela é causa da geração: pois ainda ignora-se o que seja a matéria; por isso Aristóteles, que quis ensinar-nos o conhecimento dos princípios não só de um modo confuso, mas também tão distintamente quanto é possível para a filosofia da natureza, começou por investigar as condições próprias à matéria que ele havia descoberto... Ele ensinou-nos primeiramente como ela difere da privação: pois a função da matéria é suportar contrários e recebê-los; a função dos contrários é se repelirem desta matéria; assim, a matéria permanece sob ambos os contrários e não perece... a matéria deve, portanto, segundo a sua natureza, carecer de todas as formas e lhe ser possível tudo receber; esta é, sem dúvida, a natureza da matéria: nada ser em ato e tudo em potência [esta, porém, não é exatamente a posição de Suárez]. <J. Zabarella 1607a col. 488 De rebus naturalibus citado in Schmitt p. 692>

Na sectio 2, Suárez defenderá a unidade da materia prima e contestará a

pluralidade da matéria proposta na teoria atomista de Leucipo e Demócrito. Contestará também que haja vários elementos materiais como propôs Empédocles. Para Suárez, só há uma materia prima receptiva a todas as formas. Essa matéria primeira não é nenhuma substância íntegra, mas uma substância incompleta, foi criada por Deus e não é corruptível; pois é somente uma substância composta que pode se corromper retornando a um estado anterior; por exemplo, um ser vivo pode tornar-se um ser inanimado, mas a matéria primeira não tem a que estado retornar. A matéria não exclui, portanto, todo o ato podendo existir – sustentada por Deus – independentemente de uma forma substancial, mas tende intrinsecamente a receber formas substanciais, de

modo que normalmente está sempre composta com alguma forma substancial1. Quanto ao conceito que podemos ter da matéria, Suárez indica que tal conceito só pode ser obtido por analogia com a matéria das coisas artificiais. O conceito da matéria primeira só pode, portanto, para nós, ser conhecido de um modo em

1 Suárez evidentemente não aceita a doutrina da individualização pela matéria. Para ele o princípio de individuação se distingue ratione da entidade que ele individualiza.

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parte negativo e confuso [DM 30,6,4]. Deus, porém, que criou a matéria, tem

em si a idéia da matéria [DM 13,6,1]1. Gostaria de destacar ainda dessa discussão sobre a materia prima três

coisas. <1> Primeiramente que na discussão da materia prima Suárez por vezes parece pressupor que já aceita que há formas substanciais. De fato, o conceito de matéria como potência a receber todas as formas pressupõe que há formas a serem recebidas. Por isso, quando na disputatio 15 Suárez pressupõe a demonstração da matéria primeira, ele está, de certo modo, argumentando circularmente. Contudo, isso é aceitável pois não se trata aqui de uma argumentação dedutiva, mas de, como já indiquei, uma negotiatio que baseia-se na “experiência” (“experimento constat”) e que vem a ser confirmada exatamente na medida em que houver uma compatibilidade entre as diversas doutrinas correlatas, no caso entre o conceito de matéria e o de forma substancial. <2> Além disso, é interessante indicar que a preocupação de Suárez em refutar o atomismo não parece ser mera retórica acadêmica; nela transparece um empenho particularmente intenso. A respeito disso, é conveniente lembrar que as doutrinas atomistas que pressupõem o espaço vazio (o vácuo) são refutadas também na disputação sobre o ubi na qual Suárez argumenta contra a possibilidade da existência de espaços vazios no mundo. <3> Por fim, cabe assinalar que o tema dos minima naturalia que Alberto Magno sugere no século XIII, que Buridan retoma no século XIV, argumentando que uma substância abaixo do seu minimum naturale se torna instável, e que volta a ser tema de discussão no século XVI, sendo então discutido e aceito até por Francisco Toleto (tio de Suárez) não é comentado pelo próprio Suárez. No século XVII, Sennert buscará conciliar essa teoria aristotélica dos minima com o atomismo de Demócrito. Ou seja, nem tudo que é da escolástica está contido nas enciclopédicas DM.

Na sectio 1 da disputação 15, Suárez busca demonstrar a existência da forma substancial. Para isso, ele inicia sua argumentação referindo-se à substância racional, isto é, ao homem. A alma racional, diz Suárez, é substância e não acidente tanto que ela pode ser separada do corpo e permanecer por si só (afinal ela é imortal [15,1,6]. Ao contrário da sectio 1 da disputação 13 sobre a existência da matéria primeira, aqui Suárez já de início chega a um tema teológico, a saber, ao da imortalidade da alma. É certo que também há filósofos que concluíram – supostamente apenas baseados na razão natural – que a alma é imortal, tal como Platão. Contudo, com o advento do cristianismo o tema da imortalidade da alma não mais deixará de ter um incontestável

1 Há ainda vários aspectos da discussão sobre a matéria que – por razão da necessária brevidade – estou deixando inteiramente de lado, tal como a questão da matéria dos corpos celestiais.

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comprometimento teológico. É Suárez mesmo quem cuida de lembrá-lo (“ut docet fides”), ainda que ele afirme também o caráter racional de tal crença (“et est etiam evidens lumine naturali”). A alma racional é de tal modo intrínseca ao corpo e, assim, o vivifica, sendo também através dela que o homem entende e raciocina, que, se a alma fosse extrínseca ao corpo, seria como se um outro raciocinasse e não o próprio homem. Essa forma substancial racional é o pressuposto para a geração e nutrição do homem; permanecendo ainda após a sua morte [15,1,7].

O segundo argumento de Suárez para demonstrar as formas substanciais baseia-se em vários indícios observados nos acidentes e na atividade dos entes naturais [15,1,8]. Trata-se aqui também de uma argumentação baseada nos “experimentos” (“experimento constat”). O primeiro indício que ele relata é a água que depois de esquentada, removendo-se o agente que a aqueceu, retorna a sua friúra anterior. Trata-se aqui da idéia de que a água supostamente teria intimamente um princípio que leva a que ela, após aquecida, logo esfrie. Suárez

pensa que o princípio que leva a água a se resfriar assim só pode ser a forma1. A discussão desse indício é surpreendentemente complexa (também é surpreendente que ela esteja um livro de metafísica, pois a discussão é basicamente física) e não podemos segui-la aqui. Mas podemos mencionar que a discussão dos indícios recorre ainda ao argumento da inseparabilidade dos acidentes como a correlação entre calor e rarefação [15,1,13] e a subordinação das propriedades que sugerem a subsistência da forma substancial [15,1,14].

O terceiro argumento de Suárez para demonstrar a forma substancial é a análise das suas causas, isto é, apenas da causa final, da eficiente e da material, pois a causa formal da forma substancial é ela mesma. Dessas três causas, Suárez considera como mais relevante a análise da causa final. A finalidade da forma substancial é completar a essência do ente natural; sem ela nada na natureza atingiria o seu grau de perfeição, pois a matéria apenas é um ente muito imperfeito (“valde imperfectum ens”). Além disso, a matéria enquanto primum subjectum é uma e a mesma em todas as coisas, logo não pode consistir apenas nela a essência de todas as coisas naturais, porque, se assim o fosse, tudo não diferiria senão a partir dos acidentes, o que repugna à beleza do universo, à qual se deve a extrema variedade das espécies. Essa variedade é também evidenciada pelas mútuas gerações e atividades das coisas naturais, tal como já se demonstrou em um outro lugar.

E, por fim, Suárez alega que esse ato que completa a essência da coisa material não pode ser somente um ato acidental. <1> Primeiramente, porque de

1 DM 15,1,8: ...ergo signum est esse in aqua aliquod intimius principium a quo iterum manat intensio frigoris, sublatis extrinsecis impedimentis; illud autem principium non potest esse nisi forma substantialis...

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um ato e de uma potência de ordem diferentes não se pode chegar a que uma essência se complete de um modo uno. <2> Depois, porque como a matéria é uma potência substancial ela não pode ser desdobrada por um ato acidental. <3> Em terceiro lugar, se se supusesse que esse ato fosse acidental, então se poderia perguntar do que ele seria um acidente. Do composto de matéria e forma não poderia a forma ser um acidente, já que isso seria o mesmo que dizer que a brancura é acidente do branco. <4> Mas se esse ato advém apenas à matéria, há que se perguntar por que chamá-lo de acidente. <4.1> Talvez porque se possa dizer que a matéria por vezes ocorre junto com esse ato e por vezes não. Mas isso não é suficiente, senão se poderia dizer também que a alma racional é um acidente do corpo (reparar aqui que essa demonstração da forma substancial recorre também à alma racional que é já – desde o primeiro argumento – tida como uma incontestável evidência de que há formas substanciais). <4.2> Ou talvez porque tal forma dependeria da matéria para existir, pois em si seria uma entidade imperfeita e diminuta; mas isso também não é propriamente suficiente para que digamos que esse ato é um acidente, pois partes substanciais podem depender de outras partes assim como, aliás, a própria matéria de certo modo depende da forma, ou seja, há vários modos de dependência que não são repugnantes para uma natureza incompleta. <4.3> Ou talvez ainda porque se diga que um acidente tem uma entidade de ordem inferior que a substância como um todo. Mas dizer isso é gratuito e sem fundamento, já que é absurdo dizer que o ato da forma, ao qual a matéria está intrinsecamente ordenado, seja inferior ou menor do que o ato da matéria. Sendo assim, pode-se concluir que repugna à finalidade da forma dizer que ela não pode compor uma essência substancial que conste do sujeito substancial (matéria) e do ato da forma – alegando-se erroneamente que esse seria meramente acidental – pois é exatamente a forma que dá o grau último e a completude da essência.

Trata-se, nessa demonstração da existência e da necessidade da forma substancial, tal como na demonstração da existência de uma matéria primeira, não de uma demonstração propter quid, mas de uma negotiatio da razão. Parte-se de observações (“experimento”) e chega-se a conclusões que são por sua vez compatíveis com outras conclusões anteriores.

Nessa disputatio, Suárez segue abordando outros temas tradicionais da discussão escolástica sobre as formas substanciais. Busca esclarecer a relação da forma com a matéria e como a forma enquanto causa formal exerce a sua

causalidade; depois, acaba por refutar a doutrina da pluralidade das formas1.

1 Foi, na verdade, no século XIII que o debate sobre a pluralidade ou unidade da forma substancial, em particular no homem (teria o homem uma forma corpórea, uma alma animal e uma alma racional?), foi mais aguçado.

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Suárez defende a unidade da forma substancial; aqui também a sua argumentação – como quase sempre – é minuciosa e exaustiva. É impossível expô-la hoje aqui. Considerações finais

A discussão de Suárez a respeito da matéria primeira e da forma

substancial é bem composta e bem conduzida, abordando quase todos os problemas que a tradição escolástica propunha sobre o tema. Não se trata, porém, das disputationes de maior destaque nas DM; nelas não há nenhuma posição de maior relevância. Suárez tende nelas a seguir Duns Scotus, o que também não é propriamente uma novidade. O que nessas disputationes é mais sintomático para uma análise do pensamento de Suárez é o fato de ele as ter incluído (elas e toda a série de disputações sobre as causas) nas DM. Aqui se evidencia o seu conceito de metafísica como amplo e caminhando contra a proposta esboçada por Benedito Pereira, a saber, a de separar a metaphysica generalis da metaphysica specialis. Nisso Suárez se afasta da escola escotista, que tende a excluir a física da metafísica.

O importante é notar que as suas discussões da matéria primeira e da forma substancial são não somente compatíveis como ainda estão em harmonia com todas as outras disputações. Não se pode dizer que nessas disputações haja propriamente qualquer ruptura da sistematicidade das DM. As rupturas estão, como indiquei, em outro lugar. Apenas as conseqüências das rupturas estão presentes, a saber, no recurso à teoria dos modos, teoria que está intimamente relacionada com a teoria das distinções, que por sua vez pressupõe a doutrina da denominatio extrinseca.

Um aspecto que não cheguei a abordar com ênfase foi a questão do suppositum, a saber, a do relacionamento entre essência e suppositum, entre substantia secunda e substantia prima. Tal é o tema da disputação 34.

Mas por hoje tudo isso talvez tenha sido suficiente para indicar que a afirmação de que o aristotelismo seria uma forma de pensamento mais próxima do senso comum é problemática; afinal, a complexidade da substância vista como um composto físico ou vista como um composto metafísico (e aqui talvez a sutileza dos problemas seja ainda muito maior) parece ser muitas vezes maior do que o senso comum poderia imaginar. A complexidade da substância é, em todo caso, bem maior na escolástica do que os estudantes de filosofia hoje, em sua maioria, chegam a se dar conta.

Visto isso, gostaria de propor duas séries de questões para a discussão. A primeira série diz respeito ao relacionamento entre filosofia e teologia. A segunda série diz respeito ao significado, por assim dizer, epistemológico da recusa da doutrina das formas substanciais por Descartes.

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Na discussão por Suárez das formas substanciais e da estrutura da substância em geral, pode-se observar repetidas interferências do discurso teológico no discurso filosófico. As principais interferências estão relacionadas com: 1) a transubstanciação 2) a imortalidade da alma e a possibilidade de sua existência separada do corpo 3) a encarnação de Jesus 4) a Trindade.

Os itens 3 e 4 dizem respeito a considerações acerca da substantia prima. Não apresentei hoje o tema da substantia prima, mas basta dizer que trata-se de interferências da mesma ordem que a transubstanciação.

O que quero destacar aqui é que o discurso teológico não necessariamente implica a fé. Pode-se mesmo dizer que, baseando-se na exegese atual, é absurdo supor que os primeiros cristãos, e mesmo o próprio Jesus, tinham fé na imortalidade da alma (eles acreditavam na ressurreição), que acreditavam que o suppositum do homem Jesus era divino e não humano e criado ou que o pão consagrado não era pão, mas a substância do corpo de Jesus na qual ineririam os acidentes do pão. Crer nessas coisas não deve, portanto, ser acriticamente tomado como sendo fé.

Além disso, seria um ato de fé crer que há uma continuidade da fé, isto é, crer que os católicos hoje – ou da época pós-tridentina – têm a mesma fé que os cristãos seguidores de Jesus é já um ato de fé. Como poderia um filósofo afirmar tal continuidade?

Do mesmo modo, – ainda que se aceitasse que há de fato algo como a fé e que ela tem sido a mesma – não haveria porque aceitar o pressuposto de que, na Idade Média e “na sua extensão barroca” nos séculos XVI e XVII, houvesse uma prática mais autêntica da fé do que, por exemplo, atualmente, pois o que havia era um determinado tipo de discurso teológico com suas concomitantes práticas, ou melhor, uma determinada rede discursiva teológica. Antes, temos como resultado da discussão exegética do século XIX – quando o cristianismo confrontou-se e assimilou a filologia moderna (e mesmo contribuiu para que ela se desenvolvesse) – que exatamente o pensamento metafísico com seus múltiplos conceitos e distinções teria sido para o cristianismo um desvio perdurando por séculos, soterrando em uma longa noite metafísica a mensagem originária do evangelho. Os séculos da metafísica teriam sido os séculos de maior opressão, de maior desentendimento da fé. Sob essa ótica, se poderia mesmo dizer que a Idade Média e a escolástica foram como que o apogeu desse desentendimento. O discurso teológico escolástico seria assim o desentendimento da fé.

Então, se teria de recusar também as interpretações da escolástica que vêem nela um conflito entre razão e fé. Nem a teologia implicaria assim tão

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simplesmente a fé (aceitando-se que tal coisa exista), nem ela estaria em contraposição com a razão. Trata-se afinal de teologia. (Além disso, há muitos temas mesmo da metafísica, mas também da física e da lógica e semântica, que pouca relação têm com o discurso teológico.)

Notar também que o discurso teológico tanto pode ser um discurso que estimula a fé, como um que bloqueia a fé, como um que leva ao desespero. Pode também ser um discurso produtor de um certo tipo de ilusões. Com efeito, no tempo de Suárez, as discussões teológicas acerca da predestinação levaram muitos ao desespero. Assim nos narra Lessius:

Causa conscribendi huius Disputationis <sc. De praedestinatione et reprobatione> fuit, quod longo usu deprehenderim, multorum animos, praedestinationis consideratione valde perturbari. Scio quosdam inde in gravissimos melancholiae affectus incidisse: alium studium pietatis, et statum Religionis abiecisse: alios paene per totam vitam in anxietate versari, praedestinatinem Dei suspectam semper habentes. Tenuit etiam ea res me aliquot annis perplexum... Gravissima profecto est ista animi afflictio, et interdum tanta, ut homines ad desesperationem et mortem spontaneam adigat.

Falta que se empreenda uma análise do discurso teológico sem o

pressuposto de que ele seja um “discurso da fé”. A teologia escolástica é, na verdade, uma complexa rede discursiva, estimuladora e controladora de outros discursos. Foi já com os ditos Pais da Igreja e os concílios, sem deixar de nisso destacar Agostinho, que a teologia começou a assumir a posição de rede discursiva controladora e estimuladora de outros discursos sociais. Foi talvez só no século XIX que a rede discursiva científica veio em grande estilo assumir esse papel: esse talvez tenha sido o grande triunfo da ciência no século XIX.

É inclusive importante notar a interferência do discurso teológico no próprio “discurso da fé”, quer dizer, no discurso de Paulo Apóstolo (a rigor, não creio que se deva dizer que Paulo tinha uma teologia), a saber, quando, por exemplo, Tomás de Aquino comenta a crucificação de Jesus e dá várias explicações racionais e razoáveis para isto que o próprio apóstolo Paulo disse ser môria (cf. SthIII q. 46 a. 4 ou o comentário In epistolam I ad Corintios c. 1 lectio 3). Que a radicalidade do discurso paulino parece ficar em grande parte neutralizada não há dúvida; que a neutralização não chega a se mostrar total é, porém, também possível de se perceber. (E como afinal abordar a questão de

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que a fé excede toda a neutralização da teologia?)1 Em todo caso, não se pode deixar de constatar uma clara heterogeneidade entre esses dois discursos. (E quanto ao discurso teológico de Agostinho?)

Mas finalizemos esta conferência esboçando a segunda série de questões: as questões epistemológicas. Formularei essas questões aqui como que em contraponto às posições de Thomas Kuhn ou, ao menos, fazendo uso de alguns de seus conceitos. Quanto à teoria das formas substanciais e ao seu abandono ao longo do século XVII não se pode falar em crise, uma vez que a doutrina das formas substanciais sempre foi tida como problemática e sempre se buscou reformulá-la. Não se pode também falar em perda de evidência, pois a evidência sempre foi parcial, isto é, a explicação da relação entre corpo e alma sempre exigiu engenhosas discussões; e também não se pode dizer que tais explicações tenham chegado a estar no domínio de um suposto senso comum: o que sustentava a doutrina das formas substanciais parece nem tanto ter sido um suposto caráter de evidência, mas antes a sua inter-relação (inter-relação eivada de problemas não resolvidos) com outros discursos. Não se pode falar que se ergueu um novo – por assim dizer – paradigma, pois as formas substanciais continuaram sendo consideradas e aceitas (ao menos na medicina e saberes correlatos). E, por fim, não se pode falar que o novo “paradigma” (o paradigma cartesiano) resolveu mais problemas ou problemas mais cruciais, pois o novo paradigma não resolvia os problemas teológicos nem se mostrou produtivo para a discussão na medicina e saberes correlatos

Ao terminar, quero deixar para o debate a questão da hegemonia do discurso da teologia na Idade Média e no início da Era moderna. Há que se questionar até que ponto se dá uma tal hegemonia. Há que se pôr de lado o preconceito, sem dúvida, ingênuo de que se trata de um período que foi mais cristão que os subseqüentes. A hegemonia do discurso teológico deve ser discutida como sendo a hegemonia de um discurso. O que leva a que um discurso se imponha como hegemônico em uma época? Quais as estratégias específicas ao discurso hegemônico próprio à teologia escolástica? Qual a relação deste discurso hegemônico com a fé? (Há que se discutir também a própria questão do que seja ou não a fé.) Quais as relações do discurso teológico com os discursos científicos, bem como com os demais discursos de então?

1 Tomás de Aquino por mais que ostentasse um certo tom bem característico de clareza e simplicidade em suas explicações, inclusive nas explicações de mistérios divinos, sempre entendeu que tais mistérios são inalcançáveis para a razão humana. Há que se discutir melhor a retórica de Tomás de Aquinas e analisar como ele lida com o que excederia os limites do racional (cf. In epist. I ad Corintios c. 1 lec. 3: “excessum humanae virtutis”, “inquantum excedit sensum humanum”, “quia superexcedit sapientiam humanam”).

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BIBLIOGRAFIA Alcorta, J. I.: La téoria de los modos en Suárez, Madrid 1949 Elorduy, Eleuterio: ‘La acción de resultancia en Suárez’, in: Anales de la

Cátedra Francisco Suárez, n. 3 fasc. 1-2, 1963 p. 45-71 Lessius, Leonardus: De praedestinatione et reprobatione, in: id. Opuscula,

Antuerpiae 1626 Rios, André Rangel: Die Wahrheit der Aussagesätze und das göttliche Wissen

von zuküftig Kontingentem bei Francisco Suárez, Berlin, Diss., 1991 Schimitt, C. B./ Skinner, Q./ Kessler, E. (eds.): The Cambridge History of

Renaissance Philosophy Cambridge, Cambridge Univ. Press, 1988 Suárez, Francisco: Opera omnia, ed. c. Berton, Paris

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A Questão dos Universais: Suárez e o Nominalismo ∗∗∗∗

Apresentarei neste artigo uma análise da questão dos universais na obra de Suárez. Esta análise possibilitará estabelecermos alguns importantes aspectos da relação de Suárez com o Nominalismo. Toda a compreensão dos

universais em Suárez se baseia em sua doutrina das denominações extrínsecas1. Como veremos, as recorrentes “hesitações” do texto suareziano quanto à questão do estatuto ontológico da denominatio extrinseca e do conceptus objectivus retornam na discussão do universale metaphysicum.

* * * Com base nos textos de Suárez, pode-se, partindo-se de um ponto de vista estritamente ontológico, subdividir os conceitos objetivos do seguinte

modo2. (1) Há os conceitos objetivos que são individuais: dentre os quais há (1.1) conceitos objetivos que são entes reais e (1.2) os conceitos objetivos que são entia rationis. (2) E, além disso, há os conceitos objetivos que são comuns ou universais: dentre os quais haveria (2.1) os conceitos objetivos universais referentes a entes reais e (2.2) os referentes a entia rationis. É certo que Suárez

quase nunca fala em conceitos universais de entes fictícios3, de modo que em (2) ele praticamente só discute o subgrupo (2.1), ou seja, a doutrina suareziana dos

Publicado originalmente em Veritas, Porto Alegre, Edipucrs, setembro 1998, vol. 43, n. 3, p. 671-682. 1 Embora o presente artigo possa ser compreendido se lido isoladamente, recomendaria a leitura prévia do meu artigo ‘Conceito Objetivo, Denominação Extrínseca e Entia Rationis em Francisco Suárez’ in: Veritas, Setembro 1997 [incluído mais abaixo neste mesmo livro]. 2 Sobre o conceito objetivo, o conceito formal, a denominação extrínseca e os entia rationes, ver, mais abaixo neste livro, ‘Conceito Objetivo, Denominação...’. 3 DM 6,7,2: Quod ideo in ipsis entibus rationis, quae per reflexionem et multiplicem operationem intellectus confinguntur, potest intellectus eo progredi, ut ab his etiam abstrahat rationes universales et communes, et universale conficiat etiam in rebus fictis, quae vera entia non sunt, quomodo dicunt dialectici, genus secundo intentionaliter sumptum, esse quoddam universale specificum, commune multis generibus, quae in intentione seu ratione generis solo numero differunt; et sic de aliis. O que temos aqui é uma argumentação de Suárez onde ele visa mostrar que é apenas “permissive” que os universais (no caso, aqui se trata do universale metaphysicum) podem ser considerados entes reais. Não conheço nenhuma outra passagem onde Suárez aborde a questão dos universais de entes de razão.

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universais e do processo de constituição dos universais basicamente diz respeito aos universais relativos a entes reais. Primeiramente, cabe aqui resumir como Suárez entende o surgimento dos conceitos objetivos que se referem a um indivíduo. Os sentidos externos recebem as impressões das coisas externas e as conduzem ao sensus communis onde é processado o phantasma. O intellectus agens “purifica” o fantasma de sua materialidade física obtendo a species intelligibilis que ele dá, tal como um sêmen, ao intellectus possibilis. O intelecto possível forma – uma vez que ele, por meio da species intelligibilis, “informa” (isto é, “amolda”) o ato mental – o conceito formal. Por meio do conceito formal, o intelecto humano denota a coisa. Assim, surge junto à coisa denotada o conceito objetivo correspondente

ao conceito formal denotante1. Porém, o conhecimento de indivíduos não possibilita ainda nem a ciência nem a linguagem. Os universais é que são exatamente o que tornam possível que haja tanto linguagem quanto ciência. Para Suárez, as ciências não se ocupam nem só com as palavras (voces) nem propriamente com os indivíduos, mas com os conceitos objetivos, a saber, tanto com os conceitos objetivos comuns quantos com os que se referem às coisas individuais. Dizer que as ciências se ocupam com conceitos, isto é, com conceitos objetivos, não quer dizer que as ciências se ocupam apenas com uma dimensão semântica ou intencional, pois, se assim o fosse, não haveria nenhum conhecimento que, em última instância, viesse propriamente a atingir as coisas. Ou seja, o conceito objetivo enquanto objeto da ciência é algo que “bruxuleia” entre coisa e conceito. A questão mais importante aqui, portanto, é a de como, após a “purificação” dos fantasmas em species intelligibiles pelo intelecto agente, surge, devido à atividade do intelecto possível, o universal. Para Suárez, é

apenas o intelecto possível que é apto a constituir os universais2. A questão que Suárez propõe nesse debate é a de se o universal surge com base numa abstração procedida diretamente a partir de uma só species intelligibilis ou por meio do recurso a comparações dentre várias delas. Há, para Suárez, pressupostos metafísicos que são importantes para se compreender por que ele responde aceitando a abstração direta, isto é, a partir de uma só species intelligibilis. Tais pressupostos são os seguintes: (i) Há só coisas individuais (sejam elas coisas individuais meramente possíveis ou de fato

1 Sobre a teoria do conhecimento em Suárez, cf. Müller e Rios ‘Racionalidade Substancial e Racionalidade Acidental em Francisco Suárez (1548-1617)’ [incluído mais acima neste livro]. 2 DM 6,5,4.

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existentes)1. (ii) Essas coisas são individuadas devido à própria entidade delas2, ou seja, antes mesmo delas serem efetivamente causadas pela onipotência divina elas já estão individuadas através de sua própria entidade, a saber, através de sua aptitudo ad esse (quer dizer, através de sua possibilidade ou essência anterior à criação). (iii) Essas coisas individuais são também essencialmente unitárias, isto é, suas “partes” ontológicas não são realmente

distintas3, o que implica que não pode haver um universal in re realmente distinto da coisa ou das coisas. (iv) Consequentemente, o universal, enquanto algo que participa de muitas coisas, só pode existir actu se tal se der apenas

objetivamente no intelecto4; junto às coisas o que há são apenas semelhanças5. (v) Uma vez que não há, de um modo ontologicamente positivo, espécies ou

1 DM 5,1,4: ...res omnes, quae sunt actualia entia, seu quae existunt, vel existere possunt immediate, esse singulares ac individuas. Dico immediate, ut excludam communes rationes entium, quae ut sic non possunt immediate existere, neque habere actualem entitatem, nisi in entitatibus singularibus et individuis, quibus sublatis, impossibile est aliquid reale manere...; DM 6,1,10: ...extra individua nihil potest habere existentiam realem, sine qua nullum potest verum ens reale, vel actu, vel potentia... 2 DM 5,6,1: ...omnem substantiam singularem, neque alio indigere individuationis principio praeter suam entitatem, vel praeter principia intrinseca quibus eius entitas constatat; idem: ...revera non potest fundamentum unitatis ab ipsa entitate distingui. 3 DM 6,1,2: ...negamus enim omnem distinctionem, quae in re ipsa quovis modo actu esse possit ante mentis functionem. 4 DM 6,7,2: ...universale actu solum habet esse objective in intellectu; esse autem objective in intellectu, non solum veris entibus, sed etiam fictis convenire potest... Aqui Suárez não está dizendo que os universais são sempre entia rationis; antes, ele está dizendo que eles por vezes são entia rationis, a saber, quando se trata do universale logicum ou secunda intentio objectiva, e que por vezes eles são – ainda que apenas “permissive” – entia realia, quando se trata do universale metaphysicum ou secunda intentio formalis. 5 A similitudo não é, porém, evidentemente, o universal ou a unitas universalis na coisa. A similitudo não é universal; ela inclusive existe na coisa independentemente de qualquer intelecto. DM 6,2,13: ...haec revera non est unitas <sc. naturae universalis>, sed similitudo tantum; nihil enim vere unum et in re indivisum est a parte rei in hac et in illa humana natura, sed solum in hac est aliquid simile est in altera natura; haec autem non est realis unitas, sed similitudo. Unde solum possunt res plures dici a parte rei ejusdem naturae, id est similis: haec enim identitas, cum dicatur esse inter res distinctas, non potest in re ipsa quidpiam esse praeter similitudinem, ratione cujus dicuntur etiam participare, seu habere eamdem similitudinis, formaliter quidem ex vi dictae similitudinis, formaliter autem per rationem, nam definitio opus rationis est (cf. também DM 6,4,11). Pode-se ainda indicar que a semelhança não é nada além da própria entidade da coisa; ela consiste apenas em uma aptitudo, a saber, em uma aptitudo que não é propriamente positiva, mas que consiste apenas em uma não-repugnância para ter outras coisas como semelhantes (DM 6,5,3: ...sed solum est non repugnantia in ipsis etiam individuis, ut habere possint alia sibi similia).

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gêneros, Deus, ele próprio, não tem idéias para espécies e gêneros; ele também

as conhece com base nos indivíduos possíveis1. Antes de que eu retorne à questão da abstração direta do universal, é necessário comentar uma passagem de Suárez que pode confundir um leitor desatento:

Principio statuendo est natura illas, quas nos universales et communes denominamus, reales esse, et in rebus ipsis vere existere; non enim eas mente fingimus, sed apprehendimus potius, easque in rebus esse intelligimus, et de illis sic conceptis definitiones tradimus, demonstrationes efficimus, et scientiam

inquirimus.2 Pela maneira como Suárez se exprime nessa passagem, tem-se primeiramente a impressão de se ler uma recusa taxativa do nominalismo tradicional. Logo abaixo, porém, Suárez abranda suas palavras e esclarece que ele basicamente só é contrário ao modus loquendi dos nominalistas. Segundo os nominalistas, os universais in significando e os conceitos universais in repraesentando seriam apenas vozes (voces solum), de modo que as definições

e as ciências só se ocupariam com palavras3. Porém, segundo Suárez, os nominalistas, de fato, talvez não tenham uma posição diferente da dele (in re

fortasse non dissident a vera sententia)4. Concluindo diz Suárez:

...nam eorum <sc. dos nominalistas> rationes huc solum tendunt, ut probent universalitatem non esse in rebus, sed convenire illis prout sunt objective in intellectu, seu per denominationem ab aliquo opere intellectus, quod verum

est...5

1 Suárez, De divina substantia lib. 3 c.5 n.11; vol. 1 p. 212b: Concipiendo <sc. no que Deus apreende...> ergo singularia prout in se sunt, in eis videt similitudinem, quam inter se habent, vel integram et specificam, vel imperfectam et genericam et eodem modo, sicut non producit genera, vel species nisi in individuis, ita per eorum ideas illa producit. 2 DM 6,2,1. 3 Idem: ...Nominalibus..., qui voces solum aiunt esse universales in significando, et conceptus universales in repraesentando, et circa hos proxime versari definitiones et scientias, ut videre licet in Ocham, in 1, distinct. 2, quaest. 4, et Quodlib. 5, quaet. 12 et 13; et Gabr. ..., quos late impugnat Fonseca... 4 Idem: Et merito reprehendi sunt <sc. Nominales> quoad aliquos loquendi modos, nam in re fortasse non dissident a vera sententia... 5 Idem (grifado por mim).

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Suárez se distancia dos nominalistas no que ele afirma que há universais nas coisas, mas deles se aproxima no que ele só atribui os universais às coisas em função de uma denominação extrínseca. O universal em uma coisa não é senão uma presentificação intencional correspondendo a uma denominação extrínseca de um conceito formal universal. Nada é propriamente acrescentado à coisa, sendo que essa presentificação intencional só se dá enquanto o ato mental denota através de seu conceito formal a coisa ou as coisas. Cabe destacar aqui quatro importantes questões com as quais Suárez se ocupa em sua doutrina dos universais: (i) Se os universais são apenas palavras. (ii) Se os universais são entia rationis ou algo real na coisa. (iii) Quais são então os três tipos de universais. (iv) Dado que há três tipos de universais, qual é o tipo mais fundamental e quais, e sob que circunstâncias, se pode falar em universais que são entia rationis e que são realmente nas coisas. Suárez, porém, não se ocupa, ao menos explicitamente, com a questão de por que não se deve atribuir aos universais um estatuto ontológico intermediário. O certo é que ele recusa um tal estatuto ontológico intermediário, a saber, ele o recusa tanto para os universais quanto para qualquer outra entidade. No caso dos universais, ele rejeita que se os hipostasie de qualquer modo que seja; ele diz que só em função

da eternidade do intelecto divino é que se pode falar em universais eternos1.

Como já indiquei em um outro texto2, o que pode ser entendido como ontologicamente indefinido em Suárez é o estatuto ontológico da denominação extrínseca. Não que ele próprio entenda que a denominação extrínseca é ontologicamente indefinida; ele propõe que ela seja de alguma maneira

redutível, ou à realidade de seu fundamento ou à da coisa denominada3. Porém, se a sua posição quase programática rejeitando qualquer domínio intermediário

entre o nada e o real (non enim medium datur inter esse fictum et reale)4, é, por um lado, afirmada com clareza, ela, por outro lado, nunca deixa de vir acompanhada por uma argumentação eivada de hesitações e reservas. A denominação extrínseca, ou seja, a dimensão semântico-intencional que ela inclui, tanto é quanto não é, embora ela não chegue a ser dita nada. Assim, o conceito objetivo (que é o que corresponde, junto à coisa, à denominação extrínseca) tem, por um lado, tanta realidade quanto a coisa denotada tem realidade; por outro lado, não é senão objetivamente no intelecto. Ele é tanto a coisa apreendida quanto a apreensão (conceito) objetiva dessa coisa. O que é 1 DM 6,8,7: ...ideo existimo universalia non posse dici aeterna illo modo, nisi in ordine ad aliquem intellectum, qui aeternus sit... 2 Rios Conceito Objetivo... 3 Idem p. 731 e segs. 4 Suárez De anima lib. IV c. 3 n. 26 (Opera Omina)

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para nós importante, no momento, é que essa “oscilação” própria à sua doutrina do conceito objetivo também se encontra em sua doutrina dos universais, pois a universalidade dos universais também deve ser considerada uma denominação extrínseca. Retornemos agora à questão do surgimento dos universais. Cabe lembrar

que as relações predicamentais (que só podem ocorrer entre duas coisas atuais)1 não são indispensáveis para o surgimento dos universais. Pode-se vir também a forjar universais com base em coisas possíveis. As coisas possíveis guardam

umas a respeito das outras as mesmas proporções que as coisas atuais2. Embora a não atualidade das coisas possíveis exclua uma condição essencial para o surgimento de relações predicamentais de semelhança, não fica excluído o

surgimento de conotações3 de semelhança. Cada coisa, atual ou possível, difere totalmente de uma outra coisa e é por si mesma totalmente individualizada. Em si, uma coisa, uma vez que ela é por si própria totalmente individualizada, não tem nada em comum com qualquer outra coisa por mais semelhante que essa outra coisa possa ser com ela. Ao menos até que algum intelecto se ponha a agir, não há nas coisas, que são individuadas e independentes, qualquer universalidade. A universalidade que Suárez “expulsa” assim energicamente das coisas “ressurge” por em volta das coisas como conotações. Contudo, as conotações não são ontologicamente algo e não acrescentam qualquer realidade às coisas. Não são, portanto, nada de positivo, o que não impede que as conotações de semelhança, isto é, a conveniência entre as coisas (similitudo aut convenientia) seja o que assegure a unidade do conceito formal e possibilite ao intelecto que ele abstraia o conceptus objectivus communis. Sendo assim, fica esclarecido que não é certo dizer que o intelecto abstraia o universal da coisa, mas, antes, deve-se dizer que ele constitui (facit) os universais com base nas

semelhanças e por meio das denominações extrínsecas4. Esse “constituir” não é,

1 Sobre a doutrina de Suárez a respeito das relações predicamentais cf. Rios Die Wahrheit... § 10 [ver mais abaixo neste livro: ‘Adequação e Proposições de Verdade Perpétua. Alguns meandros e impasses na teoria da verdade em Francisco Suárez’]. 2 DM 6,3,7: ...eadem est proportio rerum possibilium inter se, quae est existentium inter se... 3 As conotações têm de ter na metafísica de Suárez o mesmo estatuto ontológico das denominações extrínsecas; as conotações, de um ponto de vista ontológico, seriam em última instância denominações extrínsecas dotadas de reciprocidade. Sobre isso: Rios Die Wahrheit... §§ 10- 11 [ver também ‘Adequação e Proposições de Verdade Perpétua. Alguns meandros e impasses na teoria da verdade em Francisco Suárez’]. 4 DM 6,3,11: ...ad unitatem conceptus formalis, satis esse ut ex parte objecti supponatur unitas fundamentalis conceptus objectivi, quae consistit in similitudine seu convenientia plurium singularium in unitate formali; nam hoc satis est ut intellectus sua vi et efficacia intelligendi possit abstrahere conceptum objectivum communem; unde quoad hanc praecisionem talis objecti communis et universalis, intellectus non

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porém, nada além de uma explicitação por meio de uma denominação extrínseca (ou seja, trata-se, em última instância, de uma explicitação

semântica)1. Vendo-se assim, pode ser que se pense que o surgimento dos universais se dá antes por meio de comparações do que por meio de uma abstração direta. Contudo, Suárez indica que uma operação reflexiva pressupõe uma operação

direta (operatio reflexa supponit directam)2. Sua posição é a de que uma natura communis pode ser abstraída de uma coisa sem qualquer comparação

com outras3 e que a comparação só é imprescindível para a constituição do

universale logicum, que é, aliás, um ens rationis4. Para nós hoje, de fato, é difícil compreender por que Suárez preferiu, na formação dos universais, a abstração em detrimento à comparação. Para nós hoje, de certo modo, não chega a ser incômodo que aceitemos processos infinitos que têm como conseqüência inclusive que a origem se torne longínqua e inacessível; Foucault veio mesmo a considerar que esse distanciamento (“recul”) da origem é uma das

características constitutivas da épistème moderna5. Mas para Suárez, por exemplo, a hipótese de que tudo o que nós dizemos ou apreendemos se liga a uma cadeia infinita de interpretações e, assim, de que nunca alguém veio a apreender ou a dizer algo de um modo totalmente destituído de preconceitos é inaceitável. Para ele, ao contrário, é necessário que haja uma origem. A aceitação de processos ad infinitum não é algo satisfatório para ele, pois um

supponit objectum suum, sed facit, seu potius confert illi statum illum praecisionis per extrinsecam denominationem 1 Cf. a última frase da citação acima: ...seu potius confert illi statum illum precisionis per extrinsecam denominationem. 2 DM 6,7,2: Quia vero cognito intellectus incipit necessario a realibus entibus, tum quia operatio reflexa supponit directam, tum etiam quia ficta entia non concipiuntur, nisi per aliquam habitudinem, vel proportionem ad vera entia, ideo recte etiam dicitur, ea universalia esse entia realia, quae per directam operationem intellectus abstrahi possunt. 3 DM 6,6,11: Primo enim abstrahi potest natura communis per puram praecisionem naturae ab uno inferiori absque ulla comparatione, vel superioris conceptus ad aliquem inferiorem, vel ipsorum inferiorum inter se, ut quando a solo Petro simpliciter praescindo individuantes proprietates, et sisto in humanae naturae consideratione. 4 Loc. cit. n. 10: At vero loquendo de relatione universalitatis prout a nobis concipitur ad modum relationis secundum esse, haec non potest resultare per solam abstractionem, sed eo modo quo est, fit per comparationem, quia, ut suppono, haec relatio non est realis, sed rationis; ergo non est in natura ipsa dum absolute et abstracte cogitatur, quia ex vi illius actionis, illa non refertur per intellectum, quia intellectus nondum comparat illam ad sua inferiora, neque etiam refertur realiter, ergo nondum est talis relatio. Loc. cit. n.12: ...haec comparatio ut sic non pertinet ad constituitionem universalis, sed ad considerationem cujusdam relationis mutuae inter ipsa particularia. 5 Foucault Les mots... cap. IX, VI “Le recul et le retour de l’origine” p. 339 e sgs.

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escolástico parte do princípio de que o que tem de ser esclarecido é o início, isto é, a origem, após a criação do mundo, do conhecimento e da linguagem. Dizer, assim, que nós abstraímos os universais devido a termos sempre já um background de conceitos gerais os quais tanto nos possibilitam a abstração quanto também podem vir a nos desencaminhar (um preconceito qualquer, errôneo mas ensinado pela tradição, pode nos levar a apreender um coisa de um modo falso) é, para Suárez, inaceitável. Para ele, há que ser possível indicar um momento no tempo onde tudo se inicia, de onde se parte do zero. Esperar de Suárez que ele aceite o postulado de uma relação dinâmica entre os conhecimentos já adquiridos e a consumação de juízos verdadeiros é incongruente com o que se tem como pressuposto em sua época. Mas, uma vez que aceitemos que, para Suárez, há que se buscar um início determinado no tempo e que uma tal origem é considerada indispensável para ele, então podemos compreender melhor que ele privilegie a abstração direta. É, de fato, para nós, estranho aceitar que se possa, conhecendo-se apenas um indivíduo, digamos, o indivíduo Pedro, sem compará-lo com os demais homens, vir a abstrair o universal Homem. No entanto, essa é a doutrina de Suárez. Analisemos agora uma importante passagem do De anima de Suárez:

Segundo o manuscrito de Suárez: Primum [sc. a natureza universal] est realiter in ipsa natura et cognoscitur ab intellectu directa cognitione, quae solet dici prima intentio seu conceptus formalis; et natura sic cognita solet dici prima intentio objectiva.

Segundo a edição de B. Alvarez: Primum [sc. a natureza universal] realiter datur in natura, seu ipsa est natura, cognosciturque ab intellectu directa cognitione, quae solet dici prima intentio, seu conceptus formalis: natura vero sic cognita

prima intentio objectiva, sive objectivus conceptus .1 (o grifo é meu)

Compreendo essa passagem do seguinte modo. Se nós apreendemos Pedro enquanto homem, então o conceito formal “homem” denota, por um lado, Pedro extrinsecamente e, por outro, surge uma relação transcendental, a saber, enquanto essa denotação, isto é, esse conhecimento, de fato é adequado à coisa. Mas, na medida em que nós consideramos Pedro apenas sob a designação “homem” e a designação “homem” é empregada apenas a respeito do indivíduo Pedro sem qualquer pretensão à universalidade, embora o conceito “homem”

1 Citado em Elorduy p. 351-352.

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inclua uma certa universalidade, nós podemos falar em uma prima intentio formalis (isto é, conceptus formalis), que conhece (denota) a coisa, e de prima intentio objectiva (isto é, conceptus objectivus). Suárez não usou em seu manuscrito o termo conceptus objectivus, e Elorduy pensa que Alvarez o interpolou de um modo errôneo. Não vejo, porém, aqui nenhum problema maior. Elorduy entende o conceito objetivo como sendo um terceiro gênero de realidade, ou seja, um gênero autônomo de realidade (“un tercer genero de

realidad”)1 e não crê que seja correto compreender o conceito objetivo apenas como aquilo junto à coisa a que o ato mental alcança. Elorduy propõe uma interpretação de Suárez que não chega a diferenciar suficientemente a posição

de Suárez da de Caetano2. Segundo Caetano, – assim creio poder resumir essa discussão – o conceito objetivo seria a mesma coisa que vim a reconhecer em

Suárez como sendo o conceito formal enquanto “imago”3, isto é, o conceito formal enquanto se está considerando o seu conteúdo semântico-intencional. O que Elorduy parece nem de longe estar se dando conta é que o conceito objetivo de Suárez “oscila” entre conceito e coisa. Elorduy busca dar uma solução para esse “oscilar” no que ele fala em um terceiro reino de realidade. Com isso, ele pratica uma violência ao texto e ao pensamento de Suárez, pois todo o cuidado de Suárez foi o de evitar “dar uma solução” para essa questão; não que ele não tenha dito com clareza qual seja a sua posição (para ele a denominação extrínseca pode ser reduzida, ou à realidade de seu fundamento, ou à da coisa denotada), mas ele sempre argumentou com reservas e lacunas. Suárez não só negou em seu texto qualquer coisa como um terceiro reino de realidade quanto não chegou a dar uma solução à questão; antes, ele manteve em algumas argumentações a ambigüidade. Sem dúvida, é também ambígua a forma como Suárez mantém a ambigüidade ou duplicidade de sua discussão sobre o conceito formal e o conceito objetivo, mas foi só através de duplicidades e da aceitação/dissimulação dessas duplicidades com outras duplicidades que a metafísica pode manter o seu projeto de fechamento. Elorduy, digamos ingenuamente, crê no projeto de fechamento e crê que o postulado de um terceiro reino de realidade vai possibilitar a Suárez realizá-lo de um modo mais seguro e livre de duplicidades. Mas a destruição das duplicidades tornaria o próprio projeto de fechamento inviável, pois o fechamento só se dá enquanto projeto sempre incompleto (sempre recorrendo a suplementos). A originalidade e a força do pensamento de Suárez está no modo como ele, ao não solucionar, soluciona a questão do estatuto ontológico do conceito objetivo (e da

1 Elorduy p. 373. 2 Loc. cit. p. 348-351. 3 Cf. Rios Conceito objetivo... p. 721 e sgs.

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denominação extrínseca), enfim no modo como ele indica o fechamento, mas nunca o conclui. Elorduy não reconhece a duplicidade da doutrina de Suárez sobre o conceito objetivo/conceito formal como sendo incontornável; ele buscou em todos os cantos da obra de Suárez uma passagem que lhe desse base para eliminar essa duplicidade (não me parece que ele tenha procurado ver, tal como fiz, que essa duplicidade surge em várias outras passagens), ele crê ter achado tal trecho nesse manuscrito. Para Elorduy, o discípulo Alvarez teria desvirtuado a obra do mestre, introduzindo nela uma duplicidade inaceitável. Mas não será que é o discípulo Elorduy que está desvirtuando a obra do mestre ao querer retirar dela uma duplicidade incontornável? Penso que o fato de Suárez não ter usado o termo conceptus objectivus nessa passagem em seu manuscrito, isto é, num texto não estabelecido por ele em sua forma definitiva, não tem nada de particularmente significativo e que prima intentio objectiva e conceptus objectivus são termos sinônimos para Suárez. Desse modo, temos, em um primeiro momento, por um lado, o conceito objetivo “homem” no que ele diz respeito à coisa, isto é, na medida em que ele só se refere ao indivíduo Pedro, e, por outro, o conceito formal “homem” no intelecto (não é importante se o conceito formal está só em um ou em mais intelectos, pois Suárez pressupõe tacitamente que os conceitos formais “homem”, ainda que ontologicamente numerosos, são semântico-

intencionalmente unitários)1. Mas há ainda que se esclarecer como o conceito “homem” é apreendido em sua universalidade. Isso se dá por meio de reflexão. Há aqui dois modos de reflexão, sendo que o primeiro modo é um pressuposto

para o segundo modo2. Primeiro modo de reflexão: No que são comparados vários indivíduos (conferendo Petrum cum Paulo) a respeito da natura humana (tal comparação só pode ocorrer com base no primeiro momento em que o intelecto agiu diretamente) e no que, por meio dessa comparação, a semelhança desses indivíduos, na medida em que são homens, vem a ser explicitada, surge a secunda intentio formalis que consiste na generalidade desses indivíduos no conceito “homem”, isto é, na denominação extrínseca desse conceito “homem” a respeito dos diferentes indivíduos. Esse primeiro modo de reflexão é, porém, só

1 Rios Conceito objetivo... p. 725 e sgs. 2 DM 6,6,10: Quia nihil obstat quod eidem naturae possit per intellectum convenire duplex ratio universalitatis, absoluta, scilicet, et respectiva, et quod illae per diversas operationes intellectus fabricentur, et quod una, scilicet, quae absoluta est, sit proximum fundamentum alterius, scilicet, relativae.

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uma reflexividade in actu exercito1 e, consequentemente, não produz nenhum ens rationis.

Segundo modo de reflexão: No que se ficcionaliza2 que algo corresponde ao predicado “homem” junto aos indivíduos, surge o universal explicitado em sua universalidade como uma coisa que persiste objetivamente frente ao intelecto. Nesse segundo modo de reflexão, trata-se de uma reflexividade in actu signato, de modo que ela produz entia rationis. Enquanto a secunda intentio formalis consiste em uma notitia praecisiva vel comparativa, isto é, enquanto ela é o conhecer in actu exercito a denominação

extrínseca de um conceito formal comum3, a secunda intentio objectiva consiste

em uma notitia magis reflexa4, isto é, ela é o conhecer in actu signato do denotar de um conceito formal comum; o que, consequentemente, produz entia rationis. Creio que assim fica bem esclarecido que Suárez não aceita o aparente paralelo entre conceptus formalis/ conceptus objectivus, por um lado, e secunda intentio formalis/ secunda intentio objectiva, por outro lado. A secunda intentio objectiva não corresponde à secunda intentio formalis tal como o conceptus objectivus corresponde ao conceptus formalis. A secunda intentio objectiva é constituída, isto é, ficcionalizada, por meio de uma reflexão in actu signato que a produz enquanto um ens rationis. O conceito objetivo surge por meio de uma denotação direta e extrínseca do conceito formal, ou seja, ele não é propriamente nem causado ontologicamente nem ficcionalizado. Suárez distingue três gêneros de universais: (1) O universal da prima intentio objectiva junto à coisa, isto é, do conceito objetivo enquanto ele diz respeito a um indivíduo; esse universal é também chamado de universale physicum ou in re. (2) O universal da secunda intentio formalis ou universale metaphysicum ou ante rem, que é, a saber, um reale aliquid. (3) O universal da secunda intentio objectiva ou universale logicum ou post rem, que é uma

relatio rationis, isto é, um ens rationis.5

1 Sobre a reflexividade in actu exercito e in actu signato ver mais abaixo ‘Adequação e Proposições de Verdade Perpétua. Alguns meandros e impasses na teoria da verdade em Francisco Suárez’. 2 Uso “ficcionalizar” como tradução de fingere. Notar que fingere não é necessariamente “imaginar”; “imaginar” é apenas um tipo de “ficcionalizar”. Sem dúvida, um ente imaginado é um ens rationis, mas há ainda outros tipos de entia rationis que não são imaginados tais como o matrimônio entre duas pessoas, a relação de senhor e escravo etc. 3 DM 6,6,10-11 e DM 6,7,2. 4 DM 6,6,12. 5 Suárez De anima lib. 4 c. 6 nn. 22-23 e DM 6,8,3-4.

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O universale physicum não é propriamente um universal. A ele não cabe nenhuma universalidade. Sem dúvida, ele é algo real na coisa, mas não é algo universal uma vez que ele é exatamente tão individual quanto a coisa na qual ele

está e da qual ele só se distingue ratione1. A universalidade só se dá, para Suárez, objetivamente no intelecto, isto é, ou em 2, enquanto um conceito

objetivo, ou em 3, enquanto um ens rationis2. O universale logicum não é, contudo, propriamente o objeto da lógica. O lógico (dialecticus) tem a tarefa de conduzir a atividade do intelecto a respeito de definições, distinções, argumentações e demonstrações, sendo que ele vem então a levar em conta as denotações que se devem aos atos mentais. Certamente, porém, a discussão de como se dá o surgimento desses universais e qual seja o seu estatuto ontológico é uma questão tanto para os metafísicos

quanto para os físicos3. O lógico ocupa-se apenas com o modus sciendi. Diferindo da lógica, as outras ciências se ocupam com conceitos objetivos sob os quais estão incluídos, tanto os conceitos objetivos que se referem isoladamente a indivíduos, quanto os conceitos objetivos universais que se referem a vários indivíduos ao mesmo tempo. Os conceitos objetivos não desempenham aí um papel unívoco; eles são tanto aquilo através do que o intelecto humano alcança as coisas quanto as coisas mesmas. Com o conceito objetivo “homem”, nós não conhecemos, nem o indivíduo Pedro, nem todos os indivíduos de toda a história do mundo na totalidade deles, embora isso que chegamos a conhecer deles não seja uma ficção, mas algo verdadeiro. O conceito objetivo possibilita que nós, apesar da finitude de nosso intelecto, cheguemos a um conhecimento

1 DM 6,8,3: Rursus universale physicum dici potest natura ipsa universalis prout in rebus existit; et hoc modo non sumitur universale formaliter, ut universale est, sed solum materialiter, pro natura, quae potest abstrahi et universalis denominari. Dicitur autem hoc universale physicum, quia cum sit in rebus ipsis singularibus contractum, subjectum est mutationi, et accidentibus sensibilibus a quibus physica consideratio incipit. 2 DM 6,7,2-3: Dupliciter enim diximus, naturam posse denominari universalem, primo, denominatione absoluta, ac si universaliter subsisteret; secundo, denominatione respectiva. Priori modo non est universalitas ens rationis, tanquam aliquid proprie confictum a ratione, sed solum tanquam denominatio extrinseca proveniens ab actu rationis... Posteriori autem modo loquendo de universali relative, seu de relatione universalitatis, satis ex dictis constat universale non esse ens reale, quia illa relatio non est realis, sed rationis. 3 DM 6,8,4: Universale autem logicum dicitur ipsum universale in actu, quod per operationem intellectus consurgit; nam quia dialectici munus est operationes intellectus dirigere in ordine ad definitiones et argumentationes, seu demonstrationes recte et ordinate conficiendas, quae potissime traduntur de rebus universaliter conceptis, et inter se comparatis et coordinatis, ideo necesse est ut intentiones rationis seu denominationes inde consurgentes consideret, quanquam non ita hoc est proprium dialecticis, quin magis proprie ac per se possit ad metaphysicum pertinere; et aliquo etiam modo ad physicum.

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verdadeiro. Embora nós, ao contrário do que acontece com Deus, não possamos conhecer, nem cada indivíduo exaustivamente, nem a totalidade dos indivíduos também exaustivamente, isto é, em todas as situações possíveis em todos os mundos possíveis, nós podemos formular – por meio de representações intencionais adequadas dos indivíduos e universalizações pertinentes – proposições verdadeiras e, assim, constituir domínios científicos. Nosso conhecimento seria assim incompleto, mas não seria falso. Toda a discussão da verdade das proposições, bem como a discussão dos universais (que são pressupostos para a formação de grande parte das proposições), pressupõe e visa fundamentar a possibilidade de uma verdade, a saber, da verdade do conhecimento humano, que não é tão completa quanto a que Deus tem com sua intuição infinita, mas que não é menos verdadeira apesar da incompletude.

Como indico num outro artigo1, a aceitação da verdade das proposições, isto é, da verdade que o intelecto humano chega a alcançar, como tão verdadeira quanto a verdade do conhecimento divino não vai sem “duplicidades”; “duplicidades” que também estão relacionadas às “duplicidades” do conceito formal/conceito objetivo. A duplicidade da doutrina suareziana do conceito formal/conceito objetivo leva a que ele negue formalmente que haja uma dimensão semântica autônoma, mas que aceite nas argumentações conceder certa autonomia quer ao conceito formal quer ao conceito objetivo. Assim, o conceito formal, ora é pensado como sendo uma qualidade inerente ao intelecto, ou seja, haveria tantos conceitos formais quanto há intelecto, ora é pensado como sendo algo de comum às várias coisas que são denotadas através dele. Suárez quase nunca se preocupou em esclarecer esse seu pressuposto tácito de que há uma unidade semântica na pluralidade física dos conceitos formais. Pode-se dizer que ele nunca se viu obrigado a fazê-lo, ou seja, é porque a duplicidade de fato funciona em suas argumentações que ele só poucas vezes se vê obrigado a “hesitar”. E há só uma passagem em que Suárez, fugidiamente, indica o processo de abstração e as semelhanças como as garantias últimas da unidade do conceito formal. Mas não creio que isso possa ser tido como satisfatório, pois afinal o processo de abstração é algo “físico” que se dá em diferentes processos. O que foi dito até agora nos permite concluir que a origem da universalidade dos universais está no universale metaphysicum. Nós devemos considerar a universalidade do universale logicum como secundária em relação à universalidade do universale metaphysicum. O universale metaphysicum surge não de uma comparação entre conceitos que se referem a indivíduos, mas

1 Ver, mais abaixo neste livro, ‘Adequação e Proposições de Verdade Perpétua. Alguns meandros e impasses na teoria da verdade em Francisco Suárez’.

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diretamente do processo de abstração e deve, assim, ser compreendido como sendo um conceito formal. O problema aqui é que, se Suárez afinal entende o conceito formal como sendo algo físico na alma, então ele (para evitar um conflito muito claro entre a pluralidade de conceitos em diferentes almas e a unitária universalidade semântica do universal) ainda tem de indicar um outro lugar onde se possa dizer que está a universalidade dos universais. E, de fato, ele propõe que o universal é uma denominação. A secunda intentio formalis tem de ser compreendida como sendo um conceptus formalis communis (na medida em que esse conceito é considerado apenas segundo a sua face semântica, isto é, na medida em que ele é um conteúdo semântico), que é conhecido in actu exercito. Ontologicamente a intentio secunda também não é nada mais do que uma denominatio extrinseca. Uma denominação extrínseca, na medida em que ela é algo semântico, não é nem um ens reale nem um ens rationis, embora Suárez, apesar das “hesitações”, busque reduzir a denominação extrínseca, ou à realidade do fundamento, ou à realidade da coisa denotada. Contudo, a discussão minuciosa dos universais que Suárez empreende nas DM o levou a conceder – de um modo bem discreto (ou seja, trata-se aqui de mais uma “hesitação” sua) – que o universale metaphysicum não é, nem algo que existe atualmente (non dicunt aliquid existens realiter), nem é um ens rationis (nec proprie dicuntur aliquod ens rationis). Mas não se deve aqui forçar o texto de Suárez e querer entender que ele esteja aceitando um terceiro reino de realidade. Como já disse, não é mais do que uma das suas ocasionais “hesitações”. Com efeito, como mostrei, no texto do De anima, onde Elorduy indevidamente quer impor a Suárez a aceitação de um terceiro reino de

realidade, a posição de Suárez, quando ele fala que o universal é reale aliquid1, vai exatamente na direção contrária. Suárez se aproxima dos nominalista no que ele recusa aceitar que os universais – ou que qualquer outra entidade – existam efetivamente, assim como que haja um estatuto ontológico intermediário entre os entia realia e os entia rationis. Ele se aproxima dos nominalistas também no que ele, por vezes, tende a reconhecer o próprio ato mental como o suporte do sentido. Porém, as argumentações de Suárez deixam um rastro de “oscilações” entre a recusa e a tolerância em permitir uma dimensão semântico-intencional autônoma. Já

mostrei em outros textos2 que essa “oscilação” ou “hesitação” (pode-se usar várias palavras aqui) não é casual nem é o resultado de uma argumentação

1 É interessante notar que a passagem a que me refiro em De anima lib. 6 c. 3 n. 24 não deixa de ter sua parcela de “hesitação”. Analiso essa passagem em Conceito objetivo... p. 734-735. 2 Sobretudo em Rios Conceito Objetivo...

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contraditória que poderia ser melhorada, mas que se trata de uma “contradição” necessária, no sentido em que ela vem a possibilitar a sistematicidade, isto é, o fechamento da metafísica de Suárez. BIBLIOGRAFIA

Elorduy, E.: El concepto objectivo en Suárez, in: Pensamiento 4, Número especial (1948) 335-423

Foucault, M. Les mots et les choses Paris, Gallimard, 1966

Müller, H. J.: Die Lehere vom verbum mentis in der Spanischen Scholastik. Untersuchungen zur historischen Entwicklung und zum Verständnis dieser Lehre bei Toletus, den Conimbricensern und Suárez (Tese de Doutorado em Filosofia) Münster 1968

Rios, A. R. ‘Conceito Objetivo, Denominação Extrínseca e Entia Rationis em Francisco Suárez (1548-1617)’ in: Veritas Porto Alegre, Edipucrs, v. 42, n. 3, Setembro 1997, p. 719-750

Rios, A. R. ‘Racionalidade Substancial e Racionalidade Acidental em Francisco Suárez (1548-1617)’ in: L. A. De Boni (org.) Lógica e Linguagem Idade Média Porto Alegre, EDIPUCRS, 1995 pp. 237-252

Rios, A. R.: Die Wahrheit der Aussagesätze und das göttliche Wissen von zukünftig Kontingentem bei Francisco Suárez. Berlin 1991 (Tese de Doutorado)

Suárez, Franciscus: Opera omnia, ed. c. Berton, Paris Abreviação: DM = Suárez, Disputationes Metaphysicae, Opera omnia Vols. 25-26 DM 8, 2,3 = DM disputação 8, seção 2, número 3

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Conceito Objetivo, Denominação Extrínseca e Entia

Rationis em Francisco Suárez ∗∗∗∗

§1 - O CONCEITO FORMAL ENQUANTO ATO MENTAL E ENQUANTO IMAGO/ DM 2,1,1/ O conceito formal enquanto imago é a significatio/ Conceito formal, conceito

objetivo e som vocal/ o intermediário interdito: a denominação extrínseca1

O conceito de conceptus objectivus é um dos conceitos fundamentais do

pensamento de Suárez. O conceptus objectivus entis é nada menos que o objeto da metafísica. A doutrina do conceito objetivo/conceito formal é discutida

principalmente na disputatio 2 sobre o conceito de ser2. DM 2,1,1 é uma das passagens mais citadas de Suárez. É exatamente para

explicar o que Suárez entende por conceito objetivo e por conceito formal que se recorre a ela. Daqui resultam também interpretações sempre algo insuficientes do pensamento de Suárez. Primeiro, porque basear-se em apenas uma passagem para interpretar o pensamento de um filósofo é, obviamente, um procedimento em geral condenável e, além disso, porque essa passagem, tal como todas em filosofia que dizem respeito a questões fundamentais, não é livre de problemas. Há que se ressaltar, de início, que nesse trecho Suárez se expressa de uma maneira algo rude. Ele destitui o conceito formal de todo valor

Publicado originalmente em Veritas, Porto Alegre, Edipucrs, Setembro 1997, vol. 42, n. 3, p. 719-750. 1 Cf. tradução completa de DM 2,1,1 no fim deste texto. [DM 2,1,1 leia-se: Suárez Disputationes Metaphysicae in Opera omnia vols. 25 e 26; disputação 2, seção 1, número 1.] Cabe aqui um esclarecimento prévio. Suárez fala em denominatio extrinseca. Segundo o seu sentido próprio em Suárez, a palavra denominatio deveria ser traduzida por “denotação” e não por “denominação”. O que está em questão é o referir ou o denotar e não o “indicar algo pelo nome” ou o “dar um nome a alguma coisa”. O “dar nome a alguma coisa” ou o “indicar algo pelo nome” pressupõem um denotar mental que ocorreria sem recurso à linguagem oral ou escrita. O ato de dar nome às coisas (e conseqüentemente a linguagem oral e escrita em geral) é um ato reflexivo que se apoia sobre essa denotação, por assim dizer, pré-linguística. O ato de dar nome, enquanto um ato reflexivo, é um ens rationis. A denominação extrínseca, ou melhor, a denotação extrínseca – como veremos – não é um ente de razão. Quero, porém, deixar claro que, por uma certa comodidade, não me preocupei em traduzir sempre denominatio por “denotação”; muitas vezes usei “denominação”. Também usei promiscuamente ora o verbo correspondente “denotar” ora o verbo “denominar”. Resumindo, o que está em questão é o ato não reflexivo de “denotar coisas” e não o ato reflexivo de “dar nomes às coisas”. 2 Cf. Honnefelder <2> p. 214-246.

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semântico. Com base apenas no que Suárez diz nesse trecho, teríamos de admitir que o conceito formal não é nada além de um ato do intelecto, isto é, seria algo de individual, algo existindo individualmente na alma de cada indivíduo. Suárez diz:

...conceptus formalis dicitur actus ipse... ...formalis <sc. conceptus> semper est vera ac positiva res et in creaturis qualitas menti inhaerens... ...conceptus formalis semper est res singularis et individua, quia

est res producta per intellectum, eique inhaerens...1 Comentando essa passagem, Revius criticará Suárez ao indicar que,

segundo o próprio Suárez no título dessa sectio (conceptus formalis omnibus

entibus communis)2, o conceptus formalis entis teria de estar em relação com todas as coisas. Porém, o que Suárez está dizendo é que o conceito formal é um acidente na alma, a saber, uma qualidade da terceira espécie da qualidade (passio et passiva qualitas). Revius comenta:

Individuum <sc. o conceito formal é um indivíduo> si in se ut qualitas consideratur, at, ut est omnibus communis, minime, nullum enim individuum est omnibus commune. ... neque enim hic considerandus est conceptus mentis ut in se est, sed ut repraesentat sive, ut alii loquuntur, non ut est in ratione rei, sed in ratione imaginis. (v. G. Camerar. Select. Disp. p. 3 q. 2) in se est qualitas et quidem tertiae speciei. quid hoc ad rem de qua agitur? quaeritur enim de conceptu omnibus entibus communi. si conceptus omnibus communis in sua natura, id est,

ut qualitas consideratur, jam omne ens erit qualitas.3 Há em DM 2,1,1 uma redução do conceito formal enquanto representação

intencional ao ato mental enquanto algo de individual, isto é, enquanto algo de “físico” na alma (embora a alma, para Suárez, não seja algo material, ela é algo que existe na natureza e, com efeito, o estudo da alma e suas funções faz parte

1 DM 2,1,1. 2 O título completo desta sectio 1 da disputação 2 é: Utrum ens in quantum ens habeat in mente nostra unum conceptum formalem omnibus entibus communem. 3 Jacobus Revius p. 24.

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da Física, desse modo convém dizer que seus acidentes – e assim o conceito formal – seriam algo que, digamos, “fisicamente” inerem na alma). Tal redução não explica, ou mesmo torna enigmática qualquer explicação de como um conceito formal pode estar em relação com diversas coisas ao mesmo tempo. Dizer que o conceptus objectivus entis é um ato mental individual não esclarece o que há que se compreender quando se fala em um conceito formal de ser (ens). Afinal, o que tem que ser esclarecido é o estar em relação do ato mental com a coisa que ele denota, não o caráter “físico” e individual de tal fato. Em outras palavras, Suárez tem que esclarecer como os sons vocais vêm, através dos conceitos formais, a ser algo denotante. O que os sons vocais expressam

(digamos, o que neles assume a função semântica do sentido fregeano)1 são para Suárez os conceitos formais – ...voces exprimunt conceptus formales

mentis...)2. Suárez retornará mais tarde, ainda nessa sectio 1, a essa questão e enfraquecerá essas duras afirmações iniciais. Ele não mais tratará o conceito formal apenas in ratione rei, mas in ratione imaginis, tal como, aliás, Revius exige na passagem que citei de seu comentário das DM. Suárez diz então:

...sumit enim mens illa omnia solum ut sic, format unam imaginem unica repraesentatione formali repraesentantem id

quod est, quae imago est ipse conceptus formalis...3 ...hic conceptus <sc. formalis> est per modum cujusdam simplicis imaginis naturaliter repraesentantis id, quod per

vocem ad placitum significatur...4 (Grifado por mim) O sentido de uma palavra é, portanto, o conceito formal. O conceito

formal é aquilo através do que uma voz, um som vocal, se torna algo denotante, ou seja, aquilo, através de que é atribuído por convenção um sentido a um som

vocal5. Numa comunidade lingüística, uma palavra é usada de um modo unitário porque ela foi fixada em um conceito formal enquanto este é uma imago unitária (imago unica). Se Suárez fala em 2,1,1 do conceito formal como

1 Essa comparação de Suárez com Frege foi empreendida de um modo breve e limitado por Hickman. Indiquei em Rios <1> passim as inúmeras dificuldades de tal comparação. 2 DM 2,2,23. 3 DM 2,1,11. 4 DM 2,1,13. 5 DM 2,1,13: ...quia, ut dixi, hic conceptus prior est voce, et impositione ejus ad res tali modo significandas. Nam licet quoad nos conceptus saepe formentur mediis vocibus, qui ex se parit vocem qua exprimitur, et est origo impositionis...

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sendo uma pluralidade de qualidades em diversos intelectos, ele se refere na passagem que acabei de citar, ao contrário, ao caráter unitário do conceito formal enquanto imago. Como, porém, essas qualidades, dispersas em vários intelectos, podem ser algo de unitário, não o esclarece Suárez, e não o esclarece não só aqui, mas também em qualquer outra de suas obras. Nessa seção 1, ele se ocupa apenas da questão da unidade do conceptus formalis entis; aqui ele pressupõe tacitamente que também os outros conceitos formais têm tal caráter unitário.

O conceito formal enquanto imago é, assim, algo unitário (unam imaginem unicam) que é anterior às palavras (hic conceptus prior est voce), logo ele, de certo modo ao menos, independe das palavras e pode denotar, se for o caso, várias coisas, ou seja, o conceito formal é também algo unitário e que pode, por vezes, referir-se a várias coisas, isto é, que pode ser comum a várias coisas. Tal é o caso do conceptus formalis entis, que é o fundamento da impositio da palavra “ens”. Vejamos agora as seguintes passagens de Suárez:

(1) ...vox, ens, non solum materialiter est una, sed etiam unam

habet significationem ex primaeva impositione sua...1 (2) ...huic voci <sc. ens> respondere etiam in mente unum conceptum formalem, quo immediate et adaequate concipitur

quod per hanc vocem significatur.2 (3) ...nomen ens, ex propria et primaeva impositione, habet significationem communem omnibus entibus, ut patet, tum ex communi usu, et apprehensione talis vocis, tum ex formali vel quasi formali significato ejus, quod est esse, quod de se commune est, et intrinsecum omnibus realibus entibus; tum denique quia illa impositio orta est ex unico conceptu

formali entis ut sic.3 (Grifado por mim)

Ao som vocal (vox) “ens” é atribuída uma determinada significatio com

base em um único (isto é, unitário) conceito formal (ex unico conceptu formali entis). O som vocal “ens” tem, assim, uma única significatio (unam habet significationem) correspondendo a ele também um conceito formal. O conceito

1 DM 2,1,9. 2 DM 2,1,9. 3 DM 2,2,24.

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formal enquanto imago é a significação unitária que é atribuída a um som vocal. Retomemos aqui a comparação entre Suárez e Frege contrapondo a significatio unitária ao Sinn de Frege. Ambos são anteriores ao som vocal e inalteráveis. Contudo, enquanto Frege claramente separa o sentido (o Sinn) do ato mental, Suárez não distingue tão incisivamente o conceito formal enquanto significatio do ato mental enquanto algo físico. O conceito formal é a significatio, e a significatio (do som vocal “ens”) é comum a todas as coisas, ou seja, denota, do mesmo modo, todas as coisas. Essa significatio é um denotar, um ‘referir-se a’. A significatio de um som vocal é o conceito formal enquanto este denota o que a ela corresponde. Para Suárez, um som vocal refere-se a uma pluralidade de coisas de um modo unitário apenas se há um ato mental que assume a função de denotar. Suárez não reconhece explicitamente que haja algo de semântico que independa do ato mental, isto é, que seja, por assim dizer, algo de transcendental.

Retornando agora para DM 2,1,1, temos de conceder que Suárez, de fato, se expressa aí de um modo por demais duro, uma vez que ele, afinal, entende o conceito formal como sendo não só algo de físico e individual, mas também como tendo funções semânticas. No entanto, uma vez que Suárez não caminha em direção a aceitar o semântico como sendo algo de transcendental, resta a ele tentar reduzir a significatio, ou ao fundamento denotante (isto é: ao conceito formal enquanto um ato mental), ou às coisas denotadas (isto é: ao conceito objetivo enquanto aquilo que nas coisas corresponde ao denotar do ato mental).

Contudo, Suárez diz também que há denominationes extrinsecae e

connotationes1 que são independentes dos atos mentais. Como veremos mais abaixo, o predicamento do habitus, p. ex., consiste em uma denominação extrínseca que independe dos atos mentais.

Vejamos agora como Suárez em DM 2,1,1 esclarece o conceito objetivo:

Conceptus objectivus dicitur res illa, vel ratio, quae proprie et immediate per conceptum formalem cognoscitur seu repraesentatur; ut, verbi gratia, cum hominem concipimus, ille actus, quem in mente efficimus ad concipiendum hominem, vocatur conceptus formalis; homo autem cognitus et repraesentatus illo actu dicitur conceptus objectivus, conceptus quidem per denominationem extrinsecam a conceptu formali, per quam objectum ejus concipi dicitur, et ideo recte dicitur objectivus, quia non est conceptus ut forma intrinsece terminans conceptionem, sed ut objectum et materia circa

1 Não discutirei aqui a questão da connotatio. Sobre isso cf. Rios <1> §§ 9- 11.

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quam versatur formalis conceptio, et ad quam mentis acies

directe tendit...1 ( O grifo é meu) Nessa passagem, o que temos é que o conceito objetivo é esclarecido com

recurso ao conceito formal. O conceito objetivo consiste em uma denominação extrínseca do conceito formal. Particularmente conspícuas são, porém, as oscilações: “res illa, vel ratio” e “cognoscitur seu repraesentatur”. Ou seja, nessa passagem é dito do conceito objetivo que ele, por um lado, é a coisa (res illa) ou o objeto (objectum et materia circa quam), mas que, por outro lado, ele é o conhecimento (ratio). Portanto, do conceito objetivo, ora é dito que ele é o conhecimento próprio e imediato, ora que ele é apenas a representação de algo.

Além disso, enquanto o conceito formal é dito ser sempre uma coisa positiva e individual, a saber, uma qualidade inerindo no intelecto, o conceito objetivo por vezes não é positivamente uma coisa, dado que nós apreendemos conceitualmente também as privações e outros entia rationis.

Há também, sempre ainda segundo essa passagem, tanto os conceitos objetivos que apresentam – e, portanto, são – uma coisa individual, quanto os que apresentam algo universal e confuso, como, p. ex., homo, substantia etc. Assim, o conceito objetivo só é existente se ele é o conceito objetivo de uma coisa existente realmente, de outro modo ele não é.

O conceito objetivo é, conseqüentemente, por vezes a própria coisa existente, por vezes só o conceito (a saber, se a coisa não existe); por vezes uma

coisa positiva, por vezes uma coisa “ficcionalizada”2 (ou seja: por vezes uma coisa existente, por vezes uma não existente); por vezes uma coisa individual, por vezes algo universal ou confuso.

Visto desse modo, há que se dizer que o próprio conceito de conceito objetivo é um conceito equívoco, pois entre o ens reale e o ens rationis não é possível a analogia e, ainda menos, a univocidade. Essa equivocidade do conceito objetivo se deve a que o conceito formal pode denotar tanto coisas reais quanto coisas só pensadas (rationis). Essa denotação surge por sua vez por meio de uma forma própria ao conceito formal que é extrínseca à coisa denotada ou que é pensada como sendo extrínseca a ela e que, portanto, tem a mesma

1 DM 2,1,1. 2 Uso o verbo “ficcionalizar” a palavra latina “fingere”. “Fingere” não é apenas “imaginar”. “Imaginar” é apenas um tipo de “fingere”, ou seja, um tipo de – segundo a minha tradução – “ficcionalizar”. Ou seja, enquanto um ente imaginado é apenas um ens rationis, há os outros entia rationis que são “ficcionalizados”, mas que não são primariamente imaginados, tais como o matrimônio entre duas pessoas, a relação de senhor e escravo etc. Imaginar-se casando ou imaginar-se um senhor de escravo é produzir entes de razão apoiando-se nos entes de razão “ficcionalizados” anteriormente, a saber, a instituição do matrimônio ou a da escravidão.

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realidade do conceito formal, de modo que o denotar do conceito formal (ao menos enquanto só se considera esse denotar com base na forma que denota algo, digamos assim, com base na forma denotante) não pode ser o fundamento da equivocidade do conceito de conceptus objectivus, sobretudo porque – como acabamos de ver acima – o conceito formal enquanto algo denotante é unitário. Resumindo: o conceito de conceito objetivo é equívoco, (1) porque apreende-se conceitualmente tanto entia realia quanto entia rationis e (2) porque o conceito objetivo – uma vez que sua realidade é a mesma que a da coisa apreendida – é ora algo real ora não é nada.

No entanto, haveria de se conceder ainda que também o conceito de conceptus formalis é equívoco. Afinal, o conceito formal, ao menos nos textos de Suárez, é tanto algo de “físico” (isto é, algo da ordem do ôntico) quanto algo semântico (isto é, algo que cumpre funções semânticas). Enquanto algo físico, ele pode ser uma pluralidade de qualidades espalhadas em diversos intelectos; enquanto algo semântico, ele é o sentido unitário de uma palavra. Esse é evidentemente também o caso do próprio conceito formal de conceito formal.

Retornemos ao texto da Disputação 2. O que podemos por ora concluir é que – uma vez que Suárez não reconhece as conseqüências do distinguir o conceito formal enquanto algo físico e enquanto algo semântico – sua argumentação nessa Disputação resultará confusa. Primeiramente, Suárez afirma, áspera e firmemente, que o conceito formal é tão-somente algo físico e que o conceito objetivo não tem como realidade senão a própria realidade da coisa denotada. Entre a realidade físico-psicológica do ato mental e a realidade (ou não-realidade) da coisa denotada Suárez não deixa nenhum espaço para que se aceite uma realidade intermediária para o semântico. Ou seja, Suárez não deixa espaço para que se aceite uma, por assim dizer, dimensão semântica autônoma ou com uma realidade específica. Pouco mais tarde, porém, – ainda na mesma seção 1 – Suárez reabilita a unidade da significatio e atribui tal unidade ao conceito formal. Na seção 2, ele chega mesmo a provar, e nisso ele se baseia na então já aceita unidade semântica do conceito formal, que ao conceito formal de ente (enquanto algo denotante e não meramente físico) corresponde, junto às coisas, um conceito objetivo de ente. Esse conceito objetivo de ente – ao contrário do que, em vista de DM 2,1,1, se poderia esperar – é também unitário.

Para Suárez, há, a princípio, somente indivíduos. Entre os indivíduos inclui-se também os conceitos formais enquanto qualidade, os quais inerem em diversos intelectos individuais. Esse individualismo não pode, porém, propor uma semântica satisfatória. É somente quando Suárez – sem o haver nunca fundamentado de um modo explícito – admite em sua metafísica significações unitárias e as atribuir aos conceitos formais que, por meio desse contrabando (contrabando, se nem tanto de uma semântica, ao menos de elementos indispensáveis para a formulação de uma semântica) se torna possível que

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Suárez fale do apreender do intelecto e do comunicar esse apreender a outros intelectos individuais.

É somente por meio da aceitação tácita de uma dimensão semântica que se torna possível a Suárez compreender o objeto da metafísica como sendo o conceptus objectivus entis. Apenas com sua peremptória afirmação de que o conceito formal é uma qualidade inerente a cada intelecto, Suárez não parece ter conseguido ir muito longe. A rigor, ele deveria era ter se ocupado do processo físico de constituição dessa qualidade, ou seja, ele deveria haver discutido o papel do intelecto agente e do intelecto possível para esclarecer como de processos físico-psicológicos pode resultar algo que seja físico e que seja, ao mesmo tempo, semanticamente unitário. Em todo caso, com base somente num inflexível pressuposto de que o ato mental é algo físico e disperso em uma pluralidade de almas, essa discussão nunca resultaria no esclarecimento de como de algo físico surge algo com um caráter semântico. No entanto, ainda que tal discussão resultasse em algum sucesso, ela traria consigo um outro inconveniente: estar-se-ia buscando na física o fundamento da metafísica, quando a metafísica, enquanto ciência primeira, não deveria fundar-se na física ou dela ser deduzida. Em todo caso, como vimos, Suárez não reduz na Disputação 2 a semântica à física; ele fala em DM 2,1,1 como se isso fosse possível, mas depois recorre ao semântico sem buscar reduzi-lo ao físico. O que, ao contrário, Suárez de certa maneira faz é fundar a metafísica na dimensão semântica. Mas isso também não ocorre de um modo explicitado. Ou seja, as seções 1 e 2 da Disputação 2 acabam por resultar em uma peculiar mistura de análise semântica e especulação metafísica. Suárez deixa entremeada, ou antes, emaranhada a discussão do objeto da metafísica e a do sentido da palavra “ens”. Só o que ainda se poderia dizer, embora com certo risco, é que, nessa Disputação 2, em primeira linha, a discussão focaliza a questão do sentido do ser, e só então vai à questão do ser enquanto ser. É, pode-se dizer, para contemporizar essa preponderância dada à questão do sentido da palavra “ens” que Suárez diz:

Haec enim tria, conceptus formalis, objectivus, et vox, proportionem inter se servant, et ideo ab uno ad aliud saepe argumentamur, non quidem vitiosum circulum commitendo, sed de unoquoque sumendo quod nobis notius, aut ab aliis

facilius concessum videtur.1 Propriamente falando, o mais originário é o conceito formal enquanto

imago (ou seja, enquanto significatio). É, afinal, através da imago/significatio

1 DM 2,2,24.

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que a coisa é conhecida e denotada: ela é o fundamento do dar sentido (impositio) a um som vocal. Conhecer consiste, em última instância, em adquirir conceitos formais. É através de conceitos formais que se vem a apreender as coisas e a compreender as palavras. Mas baseado em que é que Suárez vem a afirmar que se pode compreender melhor o conceito formal de ser quando se dá atenção ao uso comum da palavra (ex usu communi)? Afirmar isso não é conceder que o sentido de uma palavra pode ser um outro diferente daquele que se pôs em relação com o meu conceito formal individual que inere na minha alma? Com base nessa passagem, pode-se concluir que, para Suárez, o sentido de um conceito formal ou de uma palavra não pode ser atribuído nem aos conceitos formais individuais, nem só ao uso da palavra, nem àquilo que é denotado, mas a algo que conserva juntos estes três. O que, frente a esses três, pode ser considerado como autônomo e que os conserva interrelacionados é o conceito formal enquanto imago/significatio. Ou seja, visto assim, tem-se que a metafísica de Suárez baseia-se fortemente nos resultados de sua discussão do sentido da palavra “ens”, sendo que, ao discutir o sentido da palavra “ens”, Suárez pressupõe elementos próprios a uma semântica sem nunca vir a fundamentar a admissão deles.

Suárez propõe no seu De anima: “non enim medium datur inter ens

fictum et reale”1. Tal tese, pode-se dizer, programática é repetida por ele, de um

modo menos sucinto, em outras passagens de suas obras2. Suárez proíbe aqui, ou ao menos, ele se proíbe aqui de aceitar uma realidade intermediária entre os entes reais e os conceituais ou fictícios. Essa interdição vai de par com sua aceitação da existência somente de indivíduos. A sua doutrina dos entia rationis parece ter sido elaborada tendo como uma das finalidades dar conta de todas as entidades que tradicionalmente vinham como que reivindicando um estatuto ontológico especial. Porém, já no início de sua metafísica, quando ele ainda está por esclarecer a sua compreensão do objeto da metafísica, surgem como que assombrações. Primeiro, ele afirma duramente que o conceito formal é algo físico e que o conceito objetivo é a coisa apreendida. Mas, entre o ato mental e o objeto, se interpõe a denominação extrínseca desse ato mental. Qual o estatuto ontológico da denominação extrínseca? Depois, ele atribui ao próprio conceito formal um caráter semântico unitário sem nunca pôr em discussão as contradições que surgem ao longo das seções 1 e 2 frente às suas afirmações iniciais em DM 2,1,1. O que estive aqui indicando é que esse intermediário interdito é que possibilita a própria discussão da Disputação 2. Esse intermediário interdito é, primeiramente, a denominação extrínseca; depois,

1 Suárez De anima lib. 4 n. 26. 2 Cf. DM 54,2,12: ...vel admittenda erunt alia genera entium, quae nec realia sint nec rationis.

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porém, Suárez passa a falar também no conceito formal como imago e como significatio. É a denominação extrínseca e suas concomitantes dificuldades que, a seguir, têm que ser melhor discutidas. §2 - A DOUTRINA DA DENOMINAÇÃO EXTRÍNSECA/ A denominação extrínseca enquanto denotar e enquanto ser-denotado/ A redução repetidamente tentada da denominação extrínseca (enquanto denotar) ao seu fundamento e da denominação extrínseca (enquanto ser-denotado) à coisa denotada/ A redução ontológica do predicamento do hábito à realidade de seus correlatos constitutivos/ DM 54,2,10-14/ De anima lib. 6 c.3 n.24

Há que se começar indicando que, em Suárez, denominatio extrinseca

pode significar tanto o denotar quanto o ser-denotado. Suárez, porém, nunca explicitou essa duplicidade da expressão “denominação extrínseca” e, ao que parece, ele próprio nem sempre se mostrou consciente de tal duplicidade. É necessário, contudo, que prestemos atenção a essa duplicidade para que possamos compreender devidamente certas argumentações de Suárez.

Essa duplicidade da expressão “denominação extrínseca” pode ser evidenciada sem dificuldade na doutrina suareziana dos universais. Para Suárez, o universal surge de uma abstração direta do intelecto possível e não por meio de atos mentais comparativos. O resultado do processo de abstração é um conceito formal. Esse conceito formal seria, porém, – segundo DM 2,1,1 – algo físico-individual e não universal. Universal seria o seu denotar, isto é, o seu conteúdo denotante enquanto denota várias coisas. O universal seria, desse

modo, uma denominatio extrinseca ab actu rationis1. Esse universal é o que recebe o nome de universale metaphysicum; a princípio, ele não é um ens rationis. Com base nessa denominação extrínseca é que o intelecto pode “ficcionalizar”, isto é, constituir ficcionalmente (ou seja, reflexivamente) entia rationis. O intelecto pode, portanto, “ficcionalizar” o universal, tanto como algo que persistiria separadamente e que não seria então capaz de distribuir entre várias coisas o ser delas, quanto como algo que como um acidente ineriria nas

coisas2. Trata-se assim, no primeiro caso, de uma hipóstase ficcional (isto é, resultante de um ato mental reflexivo) do próprio denotar do ato mental e, no segundo caso, de uma hipóstase ficcional do ser-denotado da coisa (como se

1DM 6,7,2. 2DM 6,7,3: ...concipitur enim natura communis ut apta ad existendum in multis, et sic concipi potest ut habens relationem aptitudinis ad communicandum illis suum esse; potest item concipi ut actu existens in illis, et ut sic habens relationem actualem, seu rei actu se communicantis multis. Sicut enim in accidente intelligimus relationem aptudinalis, vel actualis, vel actualis inhaesionis, ita eam possumus fingere vel excogitare in natura universali ut communicabili, vel ut communicata multis.

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esse ser-denotado fosse algo que aderisse a essa coisa). Tais hipóstases ficcionais evidenciam, portanto, que a compreensão da denominação extrínseca em Suárez, ora a aproxima do ato mental denotante, ora a aproxima do objeto denotado.

Mas o que é uma denominação extrínseca? Suárez não nos propõe dela nenhuma definição. Doyle apresentou e comentou grande quantidade de textos relativos à denominação extrínseca vindo, ao final, a concluir que Suárez não chegou elaborar uma doutrina da denominação extrínseca completa e de fato

consistente1. Penso que essa incompletude não é casual, isto é, que ela não é algo que poderia ter sido contornada com mais atenção e trabalho, antes penso que essa incompletude na doutrina e essa duplicidade na expressão “denominação extrínseca” são exatamente uma falha na sistematicidade das DM, falha que possibilita a sistematicidade das DM. Retornaremos no final deste artigo a essa questão.

Denominatio extrinseca é uma expressão relativamente comum na Escolástica. Ela se encontra também, p. ex., em Tomás de Aquino quando ele discute os seis últimos predicamentos. Para vários escolásticos, entre os quais se inclui também Vázquez, toda a denominação extrínseca está em dependência de um ato mental. Suárez, ao contrário, entende que, além dessas, há

denominações extrínseca que são anteriores à atividade do intelecto2. Suárez indica ainda que não entende com “denominação extrínseca” propriamente o denominar enquanto dar um nome a alguma coisa (nesse sentido, o denominar é, de fato, sempre o resultado de um ato do intelecto), mas antes as correlações e

habitudines3 nas quais o dar nome às coisas necessariamente se apoia. Uma vez que Suárez não nos oferece, ou não pode nos oferecer, nem uma

definição nem um tratamento sistemático do tema denominação extrínseca buscarei, apoiando-me no artigo de Doyle, apresentar extensivamente os elementos ao longo da obra de Suárez que deveriam poder ser compatibilizados

1 Doyle p. 157: “...it should be evident that extrinsic denomination is in Suárez’s thought an ambiguous item. At times, it seems close to, if not synonymous with, a mere naming from outside. But at other, more frequent, and more important times, it is definitely regarded as a feature of things themselves”. Parece-me que Doyle está aqui de certo modo se referindo à duplicidade da expressão “denominação extrínseca” que indiquei de início. 2 DM 54,2,10. 3 Habitudo é uma expressão geral para qualquer tipo de relação. Habitudo pode então, de acordo com o contexto, ter como tradução palavras diferentes, onde de certo modo essas traduções serão também uma especificação e determinação de seu sentido: relação (isto é, tanto para a relação predicamental, quanto para a relação transcendental, quanto para a relação conceitual), denominação extrínseca, denominação intrínseca, conotação; também se pode recorrer, para a tradução, a palavras terminologicamente neutras: coordenação, disposição, correlação etc.

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em uma doutrina da denominação extrínseca. Os principais elementos teóricos relativos a uma doutrina da denominação extrínseca em Suárez são:

(1) Uma denotação recebe o nome de extrínseca porque ela não

acrescenta nada à coisa, isto é, a coisa nem se altera nem é causada por ela. (Nenhuma coisa é causada ou alterada por meio de uma denominação

extrínseca.)1 (2) A denominação extrínseca não pressupõe que a coisa denotada tenha

que ser real2. (3) A forma em uma coisa que denota uma outra coisa extrinsecamente

tem de ser, nessa primeira coisa, intrínseca. Assim, com o ato de ver, uma coisa é denominada extrinsecamente, a saber, é denominada enquanto o que é visto; além disso, uma coisa (o olho) é denominada intrinsecamente enquanto está

vendo3. (4) Propriamente falando, é a forma denominante ou denotante que se

põe em relação com a coisa denominada e não a coisa denominada com a coisa

denominante4. Não somente há denominações extrínsecas que independem dos atos mentais, mas há também denominações extrínsecas que dependem de atos mentais que são apenas possíveis. Suárez chama essas denominações de denominationes aptitudinales; entre essas se pode citar com particular

1DM 54,2,9: ...talis denominatio nihil ponit in re denominata; ideo enim extrinseca appellatur... DM 31,2,7: ...quae denominatio in re denominata nihil ponit... DM 32,2,14: ...sola extrinseca denominatio nihil rei ponit in re denominata. Cf. Doyle p. 145-153 nn. 2, 3, 4, 5, 7, 30, 32 e 33. 2DM 31,2,7: ...neque etiam supponit, per se loquendo, aliquod reale esse... Cf. Doyle p. 146 n. 11. 3 Suárez De bonitate disp. 1 sec. 2 n. 21 (vol. 4 p. 285): ...forma extrinsece denominans debet prius in aliquo intrinsece reperiri: ...non est tamen necesse ut eamdem denominationem, quam extrinsece alicui tribuit, prius det intrinsece alteri, sed potest dare aliam. Exemplum clarum est in visione quae denominat objectum visum extrinsece: est tamen in potentia, quam non denominat visam, sed videntem: et in actione transeunte constat esse inhaerenter in passo, cui non dat denominationem agentis... Cf. Doyle p. 148 n. 17. 4 DM 47,12,8: ...quia quod extrinsece denominat, potius refertur ad ipsum quod denominat, quam referat ipsum; atque ita actio potius refertur ad agens, quam ipsum referat, quanvis sit occasio vel conditio ut in agente resultet relatio. Cf. Doyle p. 149 n. 19.

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destaque a numeralitas1. As denominationes aptudinales não carecem evidentemente de uma forma denominante existindo em ato.

(5) De um ponto de vista formal, uma denominação extrínseca inclui os

seguintes elementos: (a) a forma denominante ou denotante (forma denominans), (b) a coisa denominada ou denotada (res denominata), (c) o pôr-em-relação (unio) da forma denotante com a coisa denotada e (d) o denotar e o ser-denotado que surgem da união, isto é, do pôr-em-relação do denotante com o denotado. P. ex.: (a) a visão enquanto potência para ver, (b) a parede vista, (c) o direcionamento do olhar para a coisa e (d) o ser-visto; (a) a vestimenta, (b) o

homem, (c) a distância adequada da vestimenta e (d) o estar-vestido (vestitus)2. Temos aqui, portanto, que (c) é a denominação extrínseca enquanto denotar e (d) enquanto ser-denotado. Considerando-se ontológicamente, para Suárez, a denominação extrínseca consta só de dois elementos, a saber, da forma denominante e da coisa denotada (que pode ser um ens rationis). Ou seja, Suárez, para coibir qualquer status ontológico intermediário, tende a reduzir (c) a (a) e (d) a (b).

(6) Há denominações extrínsecas que antecedem aos nossos atos

mentais3. Isso mostra claramente que, em Suárez, as denominações extrínsecas não podem ser confundidas com os entia rationis, pois esses dependem totalmente do intelecto. Assim, uma vez que Suárez não aceita nenhuma realidade intermediária entre os entes reais e os entes conceituais, ele é levado a ter de tentar pôr essas denominações extrínsecas que independem do intelecto

no plano das coisas reais4.

1 DM 41,1,19: Confert tamen illa habitudo <sc. a denominação extrínseca da numerabilidade> seu denominatio aptudinalis, etiamsi connotet ordinem ad facultatem animae, ut numerus, etiam ut numerus, dicatur esse in rebus, quando actu non numeratur seu cogitatur. 2 DM 54,2,14: ...omnia illa revera ita sunt in re, sicut cognoscuntur, scilicet <b> res denominata, <a> forma denominans, et <c> illa qualiscunque unio complens denominationem, quae <d> potius est realis habitudo. DM 53,1,3: <a> Forma igitur est vestis ipsa: <b> subjectum est homo, verbi gratia, qui induitur; <c> unio hic non est alia, nisi circumpositio seu adjacentia indumenti illo modo, qui accomodatus est ad ornamentum, seu tegumentum subjecti quod vestitur; <d> concretum autem est totum hoc, homo vestitus, vel incomplexe, indutum. Também: DM 16,1,24. Ainda neste parágrafo discutirei o predicamento do hábito enquanto denominação extríseca. Cf. Doyle p. 144 n. 1. 3 DM 54,2,9-14. Comento mais abaixo essa passagem. Cf. Doyle p. 149 n. 1. 4DM 54,2,12: ...hae denominationes extrinsecae possunt fundadre aliquod ens vel relationem rationis, si concipiatur tanquam aliquid in re denominata; ipsae tamen praecise sumptae non sunt proprie entia rationis. De bonitate disp. 1 sec. 2 n. 19:

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(7) Por vezes, uma coisa pode ser, sob um certo ponto de vista,

denominada intrinsecamente e, sob um outro ponto de vista, ser denominada extrinsecamente. Esse é o caso, p. ex., dos predicamentos da actio e da passio. A passio é, segundo Suárez, um modus intrinsecus na coisa que sofreu uma alteração e a denomina intrinsecamente como uma coisa alterada, sendo que esse modus não altera a coisa causadora da alteração, de modo que a coisa causadora permanecendo inalterada é apenas extrinsecamente denominada

causadora1. (8) Uma denominação extrínseca pode ser anterior a uma outra. Pode

mesmo haver uma certa ordem entre várias denominações extrínsecas. A denominação extrínseca da verdade transcendental é anterior à do bem. Nesse

caso, inclui-se também o do surgimento dos números cardinais2. (9) Os números cardinais, que, devido a sua serialidade, tornam possível

a ciência da aritmética, surgem por meio de denominações extrínsecas sucessivas das coisas contadas pelo intelecto (na realidade exterior o que há é

apenas uma reunião de coisas ou de acidentes)3. (10) Denominações extrínsecas podem por vezes fundar relationes

rationis inclusive as das intentiones secundae4 da lógica, bem como também outros entia rationis.

...hujusmodi denominationem proprie non esse ens rationis, quod consistit in fictione intellectus sed est in rebus ipsis... Cf. Doyle p. 150 n. 22. 1DM 49,1,8: Dicendum ergo censeo, actionem et passionem in re non esse modos ex natura rei distinctos, sed eamdem dependentiam et emanationem formae ab agente, quatenus subjectum intrinsece afficit, vocari passionem, quatenus vero agens ipsum denominat actu agens, vocari actionem... Cf. Doyle p. 154 n. 35. 2DM 3,2,14: Denique juxta hunc modum, ad veritatem reducitur denominatio amabilis, significabilis; ad bonum reducitur ratio integri, et perfecti, et denominatio amabilis, appetibilis, et similis...Cf. Doyle p. 154 nn. 36 e 38. 3 DM 41,1,2: ...si ternarium hominum secundum se consideres, in nullo eorum est prima unitas, secunda, aut tertia; nulla enim ratio talis ordinis potest eos assignari; ille ergo ordo, si quis est, solum est rationis... DM 41,1,17: At vero constat unitates alicujus numeri secundum se non habere ordinem realem inter se, neque in eis aliquam esse ultimam vel primam; ergo oportet ut haec sumantur aliquo modo ad conceptionem nostram. DM 40,3,8: ...in propria quantitate continua mensuram ut mensuram semper esse per humanum accomodationem, quia nulla est major ratio quod haec res mensuret illam, quam e converso, si res ipsae secundum se spectentur. Cf. Doyle p. 155 nn. 39 e 40. 4 DM 54,2,16: Atque ad hunc modum fiunt omnes similes secundae intentiones per conceptus reflexos supra priores denominationes provenientes ex conceptibus directis,

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(11) Há relationes rationis das quais tanto o fundamento quanto o

correlato se apoiam em denominações extrínsecas. P. ex.: denominar alguém como senhor, ou alguém como escravo, é – para aqueles que assim são denominados – extrínseco, uma vez que nada de real lhes é acrescentado. Dessas denominações surge, porém, uma relatio rationis. Esse também é o caso da relatio rationis que surge entre o homem e a mulher no casamento ou entre o vendedor e o comprador: essas relationes rationis tomam como fundamento as denominações extrínsecas que surgem das vontades dos contratantes no que

a vontade se refere ao que é desejado1. (12) Há também relationes rationis que não são recíprocas e que têm só

uma denominação extrínseca como correlato. É o caso da relação entre uma coisa que é vista com quem a vê (isto é, com o “videns”), onde na coisa o ser-visto é uma denominação extrínseca; é o caso também da relação entre a coisa conhecida e o conhecimento, bem como o caso de Deus frente às coisas criadas; nesse último caso, Deus é denominado pelas coisas criadas como “criador”

apenas extrinsecamente uma vez que a coisa criada nada acrescenta a Deus2. (13) Uma denominação extrínseca pode servir de fundamento para uma

distinctio rationis3.

quae ut diximus, non pertinent ad propriam rationem entis rationis seu ficti, de quo <sc. nesta disputação> tractamus. 1 DM 54,6,6: Unde ad hoc genus <sc. relationum rationis> spectant imprimis relationes omnes, quae in utroque extremo fundantur tantum in denominatione extrinseca, ut est relatio signi ad placitum, quae tam in signo, quam in signato est relatio rationis, sive tale signum sit vox, ut nomen, aut verbum, sive sit res ut sacramentum. Cum enim haec impositio ad significandum nihil rei ponat in signo nisi denominationem extrinsecam, neque etiam in signato, non potest fundare realtionem realem, ut omnes docent. Deinde ejusdem sunt modi relationes domini et servi inter homines, nam illae non fundantur nisi in quadam extrinseca denominatione sumpta a voluntate; et similes sunt aliae multae, ut omnes illae quae oriuntur ex contractibus et voluntatibus humanis, ut inter maritum et uxorem in ratione conjugum, inter ementem et vendentem ex voluntate contrahendi; et sic de aliis. Cf. Doyle p. 155-156 n.42. 2 DM 54,6,7: Rursus ad aliud membrum hujus generis <sc. relationum rationis> pertinent omnes relationes non mutuae, quatenus in uno extremo rationis sunt, ut sunt relatio visi ad videntem, aut visibilis ad visum, aut scibilis ad scientiam, etc. ... Et huc etiam revocari possunt omnes relationes Dei as creaturas existentes, nam etiam illae possent dici fundari in denominatione extrinseca, quia in ipso Deo secundum se non est capacitas, atque adeo nec fundamentum ad tales relationes. Também: DM 47,15,13. Cf. Doyle p. 156 n. 43. 3 DM 7,1,21: ...et sic semper est distinctio rationis, ... quia solum convenit per denominationem extrinsecam, quatenus eadem res objicitur, vel subordinatur diversis conceptibus. Cf. Doyle p. 156 n. 46.

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(14) Um ens rationis pode surgir com base em uma denominação

extrínseca quando a denominação extrínseca é pensada como se ela fosse algo junto à coisa, isto é, como se ela fosse algo aderido e, assim, separável da coisa. Daí se segue que, se uma pessoa pensar um conceito objetivo (ou seja, uma denominação extrínseca) como se ele fosse algo de separável da coisa denominada, então não se estaria mais falando de um conceito objetivo, mas de

um ens rationis constituído ficcionalmente com base nesse conceito objetivo1. (15) Denominações extrínsecas não podem servir de fundamento nem

para relações reais nem para distinções reais2. (16) Também um ens rationis pode servir de forma denominante de uma

denominação extrínseca3. Vistos esses elementos dispersos, pode-se concluir pela dificuldade de

reuni-los em uma doutrina sistematizável. Pode-se, porém, também concluir pela importância dessa doutrina. Suárez recorre à denominação extrínseca não só em sua discussão do objeto da metafísica (cf. §1), mas também, p. ex., ao discutir o tempo (onde ele se refere à numerabilidade), ao discutir os predicamentos da actio e o do habitus, bem como em sua discussão dos universais e dos entia rationis. Enfim, são vários os momentos importantes de sua metafísica nos quais a discussão não caminha senão com recurso à denominação extrínseca. Vimos que esse recurso à denominação extrínseca está relacionado com a recusa de Suárez em admitir uma autonomia e uma

especificidade ontológica a entes que desempenhem funções semânticas4. Para poder explicar, porém, as funções semânticas dos conceitos, Suárez recorre à denominação extrínseca e, em sua teoria da verdade, à conotação. Conseqüentemente, ele fica obrigado a esclarecer qual seja o estatuto ontológico

da denominação extrínseca5. Sua tendência básica é a de alinhar a denominação extrínseca com os entes reais, isto é, sua tendência é a de reduzir

1 Cf. DM 54,2,12. 2 DM 47,10,15: ...ratio mensurae quantitativae non est per se apta ad fundandam relationem realem, cum solum sit extrinseca denominatio rationis. Doyle p. 156-157 n. 44 e 47. 3 DM 11,1,8: ...quod in se malum dicitur, a sola privatione denominari potest.. Cf. Doyle p. 157 n. 49. 4 O que não quer dizer que a aceitação de tais entidades também não viesse a levá-lo a impasses. 5 Sobre a questão da conotação cf. Rios <1> §§ 9 a 12.

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ontologicamente a denominação extrínseca à forma denominante. Tal procedimento não ocorre, porém, sem uma certa vacilação. A rigor, ele não é satisfatório inclusive porque, como podemos ver no item (16) acima, também um ens rationis pode estar no papel de forma denominante, o que implicaria a redução da denominação extrínseca a um ens rationis, o que é inaceitável visto que, como Suárez afirma – cf. (6) acima –, as denominações extrínsecas não são entia rationis (...praecise sumptae <sc. as denominações extrínsecas> non sunt

proprie entia rationis1). Contudo, não se deve pensar também que o recurso à denominação extrínseca se impôs a Suárez só para suprir sua recusa de entidades semânticas; na sua discussão do predicamento do hábito, Suárez está nem tanto preocupado com uma questão semântica, antes é o lugar desse predicamento em sua ontologia que o está ocupando.

O que torna a discussão da denominação extrínseca particularmente relevante é o fato de que ela se encontra dispersa e infiltrada em momentos-chave da metafísica de Suárez. Tal é também o caso da doutrina suareziana dos entia rationis; porém, com a diferença de que, para os entia rationis, Suárez reservou uma disputação inteira ao final das DM. Suárez reconhece que os entia rationis não são propriamente parte do objeto da metafísica, mas parece-lhe que, por completude, é adequado tratá-lo; com efeito, ele o faz até mesmo para melhor excluí-lo da metafísica. Com efeito, Suárez, a rigor, nem inclui nem exclui as denominações extrínsecas de sua metafísica. Elas não chegam a merecer uma disputação só para elas, mas também não acabam por ser claramente banidas, antes há mostras da boa vontade em incluí-las o que se vê, p. ex., na própria Disputação 54 sobre os entia rationis onde as denominações extrínsecas são explicitadamente diferençadas dos entia rationis (podem elas então por isso serem ditas entes reais?). Do mesmo modo, é interessante lembrar que o predicamento do hábito é dito ser uma denominação extrínseca e, com isso, é aceito como sendo um acidente e, portanto, um ens reale (mas não diz também Suárez que o predicamento do hábito quase não é um

predicamento?2). Para caracterizar melhor a atitude vacilante ou oscilante do texto de

Suárez, comentarei a seguir duas passagens das DM: a passagem da Disputação 53 sobre o predicamento do hábito na qual Suárez busca reduzir ontologicamente a denominação extrínseca tanto à forma denominante quanto à coisa denominada; e a passagem da Disputação 54 na qual Suárez diferencia a denominação extrínseca dos entia rationis.

Um homem que dorme de pijama está vestido, ainda que ninguém o esteja observando ao dormir. A roupa não sofre nenhuma alteração por vestir 1 DM 54,2,12. 2 Cf. DM 39 sectio 2.

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alguém, senão uma alteração acidental que diz respeito ao lugar (ubi), isto é, somente o modus intrinsecus do acidente do onde altera-se com o vestir. Mas essa alteração do modus do lugar enquanto alteração de um modus não é uma denominação extrínseca. A denominação extrínseca surge, porém, logo após essa alteração do lugar (statim consequitur illa denominatio), e surge, é claro, sem acrescentar qualquer alteração à roupa, de maneira que a denominação extrínseca do hábito na realidade (in re) difere do modo (modus) e da

ordenação da roupa no lugar1. Concluindo: O hábito, enquanto é uma denominação extrínseca, ontologicamente não difere realmente da forma denominante. Contudo, diz Suárez, quando Deus aniquila o homem (vestido) a

denominação extrínseca desaparece2, o que implicaria que a denominação extrínseca do hábito depende também da realidade da coisa denominada. Temos aqui, portanto, uma inconsistência, pois há denominações extrínsecas, a saber, as dos atos mentais, que denominam não só coisas que existem em ato, mas também coisas possíveis ou somente pensadas (entre as quais inclusive coisas impossíveis).

A respeito da denominação extrínseca de um ato mental denotando uma coisa em ato, Suárez nos deixa pensar que a realidade dessa denominação extrínseca é a mesma da relação predicamental que surge também devido à

semelhança entre a coisa denominada e a forma denominante3. Sendo assim, temos que Suárez esclarece o estatuto ontológico da denominação extrínseca do ato de ver, a saber, de ver algo que existe em ato, indicando que a realidade

dessa denominação é a mesma da da relação predicamental4 que sempre surge nesse caso. O mesmo valeria, segundo ele, para o ato mental do conhecer ou para o do amar quando eles se referem a coisas existentes em ato. Essa explicação não me parece de todo satisfatória, pois Suárez também fala em denominações extrínsecas devidas a denotações oriundas de atos mentais apenas possíveis – tal como é o caso da numerabilidade (ver itens (8) e (9) acima) – e não fica claro qual seja o estatuto ontológico dessas denominações. Mas ainda que aceitemos que essa explicação é satisfatória, resta ainda o problema mais embaraçoso: o do estatuto ontológico das denominações extrínsecas de atos mentais que se referem a entia rationis.

Suárez, como já sabemos, nega que as denominações extrínsecas sejam entia rationis. Além disso, ele diz que, embora haja denominações extrínsecas que se referem a entia rationis, isso não quer dizer que, para que um ens

1 DM 53,1,3. 2 DM 53,1,5. 3 DM 54,2,11 e idem n. 14. 4 Sobre o predicamento da relação em Suárez cf. Rios §10.

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rationis surja, baste uma denominação extrínseca1. Para esclarecer qual seja o estatuto ontológico das denominações extrínsecas referentes a entia rationis, Suárez proporá uma posição contrária à sua (sem, no entanto, dar o nome de quem poderia ser considerado esse seu oponente). Segundo esse oponente, as denominações extrínsecas oriundas de atos mentais, ou seriam entia rationis, uma vez que elas são apenas objetivamente no intelecto, ou seriam alguma coisa a mais que meros entia rationis, pois elas por vezes não são apenas objetivamente no intelecto, a saber, quando denotam coisas em ato, elas têm – segundo Suárez – a realidade do denotado, além do quê, elas nem sempre dependem da atividade do intelecto como é o caso das denominationes extrinsecae aptitudinales. A esse oponente Suárez contesta, primeiramente, dizendo que o que ele afirma implica que teria de haver um gênero de entes que não seriam nem entia realia nem entia rationis. O modo como Suárez expõe esse argumento mostra que ele tem como bem aceita a tese que recusa um estatuto ontológico intermediário. Contudo, Suárez busca ainda tornar seu argumento mais robusto. Com essa finalidade, ele indica (i) que junto a uma coisa real o ser-denominado não causa nenhuma entidade que possa ser

separada dela2, (ii) que o mero referir de um ato mental a uma coisa, uma vez

que tal referir não é um ato reflexivo, não pode causar nenhum entia rationis3 e (iii) que o ens rationis não se caracteriza por ele depender do intelecto, mas porque ele se diferencia do ens reale. Ou seja, Suárez está aqui negando, tanto que as denominações extrínsecas sejam algo intermediário entre os entia realia e os entia rationis, quanto que elas sejam entia rationis. Resta só que elas sejam entia realia; contudo, ele não o afirma claramente. E isto é digno de ser destacado, a saber, que ele não explicita a conclusão que se impõe – ele posterga concluir.

Suárez contesta ainda a esse oponente, argumentando que uma denominação extrínseca de um ato mental não tem ser objetivo (esse

1 DM 54,2,11: Dices, hoc esse peculiare in denominatione sumpta ab actibus intellectus, quod possit cadere etiam in entia rationis, et ideo speciali ratione posse appellari ens rationis; sed hoc satis est, nam inde infertur aliquam denominationem extrinsecam posse extendi ad entia rationis, etiamsi alioqui a forma reali sumatur, non vero e converso hanc denominationem sufficere ad constituendum ens rationis. 2 DM 54,2,12: Declaratur hoc, hoc si ens illud, quod constituitur per denominationem extrinsecam ab actu rationis, habet propriam quandam rationem entis condistinctam ab ente reali, ergo etiam ens visum, aut ens amatum, ut sic, et in universum extrinsece denominatum, habebit quandam rationem entis condistinctam ab ente reali; nam est eadem ratio et proportio, ut ostensum est. 3 Idem: Si autem fiat vis in nomine entis rationis, quod significare videtur peculiarem dependentiam ab actu rationis, facili negotio multiplicare possumus similia seu proportinalia nomina, ut ens imaginationis, aut sensus, aut voluntatis, etc., quae omnia erunt condistincta ab ente reali propter dictam similitudinem rationis.

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objectivum) no intelecto, mas que antes é formalmente no intelecto, a saber, ela é um conceito formal. Suárez difere, então, entre dois significados do esse cognitum, a saber, o esse cognitum é, ou a própria coisa conhecida, ou o conteúdo inerindo no intelecto enquanto conceito formal no que ele é conhecido

reflexivamente1. O que podemos concluir desse segundo argumento é que Suárez, mais uma vez, recusa que possa haver uma realidade intermediária entre o ser no intelecto e o ser das coisas reais. Contudo, Suárez continua sem pronunciar-se com clareza sobre o estatuto ontológico das denominações extrínsecas. Nessa passagem, Suárez não se pronuncia com clareza senão sobre as denominações extrínsecas oriundas de formas reais. Nesse caso, Suárez as alinha aos entia realia, embora ele – ao que me parece – veja-se como que forçado a amenizar o modo de expressar-se. Em vez de dizer diretamente “comprehendi sub entibus realibus”, ele diz “sub latitudine entis realis” e ainda acrescenta uma ponderada restrição: “ao menos pelo lado da forma

denominante”2. Assim, penso poder constatar novamente uma certa reserva, visto que afinal Suárez está exatamente se esquivando do problema de fato incômodo, isto é, o do estatuto ontológico da denominação extrínseca que denota os entia rationis, para mais uma vez falar das denominações que denotam os entia realia.

Essa mesma reserva pode também ser observada em uma breve passagem do De anima quando está em questão qual seja o estatuto ontológico da secunda intentio formalis. A secunda intentio formalis que, para Suárez, consiste em uma denominação extrínseca de um conceito formal não é, nem algo que, sem dúvida, existe em ato como é o caso do universale physicum, nem é um ens rationis como o universale logicum. Suárez entende que a secunda intentio formalis é o universale metaphysicum e contesta, o que não nos surpreende, que esse universal não seja nem um ens reale nem um ens rationis. Então ele conclui:

Universale denique secundo modo <sc. o universale metaphysicum> reale aliquid est, rem tamen extrinsece denominans. (Grifado por mim)

E, por fim, o universal no segundo modo <sc. o universale metaphysicum> é algo de real, que, com efeito, denomina extrinsecamente a coisa.

1 DM 54,2,13; retornarei a essa passagem mais abaixo no §3. 2 DM 54,2,14.

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Suárez parece estar aqui medindo bem as palavras. Ele não diz simplesmente que o universal metafísico é real, mas, antes, que ele é, como que relativizando, algo (“aliquid”) de real. Além disso, o “tamen” confere à segunda frase uma nuance adversativa; nuance que sugere que algo que, afinal deveria ser simplesmente real, na verdade, acaba por ser algo que, de certo modo, contrariaria essa realidade e que, até mesmo, só seria “algo real” enquanto é menos real, isto é, enquanto é apenas uma denominação extrínseca de algo real. Em DM 6,7,2, Suárez diz, também como que relativizando, que os universais

apenas “permissive” podem ser compreendidos como entia realia1. O motivo desse modo de expressar-se reservado é, sem dúvida, sempre o

mesmo. A metafísica de Suárez, para poder desdobrar-se sistematicamente, requer algo de intermediário (ou antes, algo ambivalente, isto é, requer um double bind), de modo que Suárez não pode simplesmente alinhar as denominações extrínsecas aos entes reais. Se ele o fizesse, teria de recorrer a algum outro intermediário. Entretanto, Suárez não aceita que se postule a autonomia e a especificidade ontológica de entes intermediários com funções semânticas. Uma argumentação formal contra essas entidades não é apresentada por Suárez, embora ele certamente conheça a teoria dos complexa significabilia de Rimini. O fato é que ele recusa tais entidades e que ele teria muitos argumentos, quer na tradição escolástica, quer apenas no tomismo para justificar tal recusa. Além disso, Suárez recusa que as denominações extrínsecas sejam entia rationis, pois para Suárez os entia rationis surgem só a partir de atos mentais reflexivos enquanto as denominações extrínsecas não são reflexivas. Não são reflexivas embora sejam, por assim dizer, sólidas o suficiente para suportarem sobre si a visada de um segundo ato mental, a saber, de um ato mental reflexivo do qual então podem surgir entia rationis. Ou seja, as denominações extrínsecas não podem causar um ens rationis, mas são já algo positivo o suficiente para que sobre elas se apoie a produção de entia rationis. Portanto, elas diferem claramente dos entia rationis, embora ainda siga sempre difícil reduzi-las ontologicamente aos entes reais, uma vez que há denominações extrínsecas oriundas de formas denominantes inexistentes e denominações extrínsecas de coisas denominadas inexistentes. A reserva ou a hesitação de Suárez não é só um embaraço frente a questões ontológicas, mas é também o que lhe possibilita agilizar sua metafísica, pois é porque suas argumentações permanecem inconclusas frente ao estatuto ontológico da denominação extrínseca que a denominação extrínseca segue, devido mesmo a essa indefinição, funcionando em sua metafísica, a saber, segue assumindo funções semânticas.

1 DM 6,7,2: Et ideo dicimus, permissive seu indefinite universalia esse entia realia, non tamen necessario et ominio universaliter.

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Assim, a denominação extrínseca deixa atrás de si um rastro de argumentações dúbias. Dubiedade que se deve à duplicidade da própria denominação extrínseca, isto é, à posição de double bind: por um lado, a denominação extrínseca – na metafísica de Suárez – tanto é algo real quanto não é real; por outro lado, a denominação extríseca – na semântica de Suárez – tanto é da ordem de uma dimensão semântica autônoma quanto uma tal dimensão semântica é negada e reduzida ao real (isto é, ora é reduzida à realidade das coisas exteriores, ora à dos atos mentais). Tal duplicidade debilita as argumentações acima expostas: elas podem, assim, ser facilmente questionadas. De fato, tais argumentações poderiam também, sem dificuldade, estar a serviço de demonstrar o contrário do que elas visam concluir.

O argumento de que a aniquilação do homem não altera a vestimenta e que o despir o homem não altera o homem não implica propriamente que a denominação extrínseca do estar-vestido consista na realidade desses correlatos, pois esse argumento pode, ao contrário, implicar que ela exatamente não consiste na realidade deles. Ficaria provado que a denominação extrínseca do hábito não consiste na realidade dos correlatos, pois, se ela consistisse na realidade deles, como Suárez supôs, então, aniquilado um correlato, a outra parte da realidade do hábito também seria aniquilada no outro correlato o que alteraria esse outro correlato; mas, se a aniquilação de um correlato, não altera o outro correlato, o que se pode então concluir é que nem um nem outro correlato do hábito possuem a realidade do hábito, ou seja, que o acidente do hábito, isto é, a denominação extrínseca que o constitui, é algo ontologicamente independente dos correlatos.

O argumento que uma denominação extrínseca não pode causar um ens rationis e que ela difere dos entia rationis não leva necessariamente à conclusão de que, no caso das denominações de coisas reais por atos mentais, a denominação extrínseca seja algo real, a saber, o conceito objetivo junto às coisas reais; pois, se – dada uma coisa não denominada – a denominação não acrescenta nada a essa coisa, então a denominação é ontologicamente nula.

Reparar que a duplicidade da denominação extrínseca se expressa já na impossibilidade de Suárez localizá-la na sistematicidade das DM. À denominação extrínseca não cabe uma disputação própria. Nem ela é tratada sistematicamente no interior de uma disputação. É mesmo duvidoso que ela seja algo a ser discutido na metafísica (ainda que a definição do conceito de ente dependa dela), pois afinal Suárez nunca chega a afirmar dela, sem reservas, que ela seja real. Deveria ela ser tratada em uma semântica? Uma semântica enquanto tal, isto é, autônoma frente à metafísica, não é aceita por Suárez. E deveria ela ser tratada numa psicologia, isto é, no De anima? A temática do De

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anima é, porém, para Suárez, assunto para quem pesquisa a física1; portanto, não se pode esperar que algo que participa da fundamentação da metafísica, como é o caso da denominação extrínseca, venha a ser explicada pela física. Ou seja, a denominação extrínseca não tem um lugar próprio na metafísica, mas está nela por toda a parte, inclusive em seu fundamento. Não está também propriamente nem na metafísica nem numa semântica nem na física, mas participa de todas elas. Por fim, pode-se dizer ainda que a denominação extrínseca está tanto acima da metafísica, pois é um pressuposto nunca realmente esclarecido por ela, quanto abaixo dela, pois de certa forma a denominação extrínseca é remetida à física que, enquanto pesquisa da alma e dos atos mentais psicológicos, é uma ciência inferior à metafísica. §3 - A DENOMINAÇÃO EXTRÍNSECA E OS ENTIA RATIONIS

Uma vez que o objeto adequado para o intelecto humano é o ser,

forçosamente o homem sempre compreende tudo direcionando-se pelo ser (ad

modum entis)2. O intelecto compreende, assim, tanto o que é como algo que é, quanto o que não é como se fosse. Esse é o caso quando dizemos que alguém é cego, pois propriamente ninguém “é” cego, a rigor a cegueira não é nada. À cegueira não corresponde nenhuma entidade real; ela é apenas a carência da

capacidade de ver3. O que se passa é que nosso intelecto é tão fecundo (ex quadam foecunditate intellectus) que, por meio dos entes reais, sempre podemos constituir ficções, a saber, compondo partes das coisas reais; é assim

que chegamos a constituir entia impossibilia como, p. ex., a quimera4. Suárez define o ens rationis como aquilo que só é objetivamente no

intelecto, isto é, o ens rationis é algo que só o intelecto – no que ele pensa –

1 Cf. DM 8, prooemium: ...secunda < sc. o segundo tipo de verdade, isto é, a verdade in cognoscendo que é propriamente a verdade das proposições> ad physicum, quatenus de anima ejusque functionibus considerat. 2 DM 54,1,8: Cum enim objectum adaequatum intellectus sit ens, nihil potest concipere, nisi ad modum entis, et ideo dum privationes aut negationes concipere conatur, eas concipit ad modum entium, et ita format entia rationis. 3 ...ut cum dicimus hominem esse caecum, nam illud esse non indicat aliquid quod sit in homine, sed potius adjuncto tali praedicato ab illo aliquid removet; tamen quia intellectus per modum entis aprehendit illam carentiam visus, ideo illam esse dicit in homine, quod esse significat veritatem propositionis, non existentiam in re. 4 DM 54,1,8: Est tamen.. causa proveniens ex quadam foecunditate intellectus, qui potest ex veris entibus ficta conficere, conjungendo partes quae in re componi non possunt, quomodo fingit chymaeram, aut quid simile, et ita format illa entia rationis, quae vocantur impossibilia, et ab aliquibus dicuntur entia prohibita.

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considera e que em si não possui nenhuma entidade1. Importante nessa definição é a expressão “só objetivamente no intelecto” (tantum in intellectu), pois tanto o ens rationis quanto o ens reale podem ser objetivamente no

intelecto2. A diferença entre ens rationis e ens reale consiste em que o ens reale

não se dá “só” objetivamente no intelecto, mas também é por si mesmo3. Para um ente real, é extrínseco ou acidental se ele também é objetivamente num

intelecto ou não4; para um ens rationis, ao contrário, é essencial que ele seja objetivamente em um intelecto.

Mas se o ens rationis não é um ente real, então ele não é nada. Não

obstante, ele tem uma causa eficiente. O ens rationis é causado pelo intelecto5. Suárez argumenta que um ente de razão tem de ter uma causa eficiente, uma vez

que ele passa a ter um esse objectivum que ele não tinha6. Ou seja, Suárez afirma que o ente de razão tem uma causa eficiente porque ele quer contestar que algo possa ser sem ter uma causa, já que, se algo assim fosse, então esse algo seria eterno. Além disso, Suárez sustenta também que o ente de razão é algo, pois, de alguma maneira (aliquo modo), um conceito formal pode

apreendê-lo ou alcançá-lo (terminetur)7. É certamente bem difícil de esclarecer 1 DM 54,1,6: Et ideo recte definiri solet, ens rationis, esse illud, quod habet esse objective tantum in intellectu, seu esse id, quod a ratione cogitatur ut ens, cum tamen in se entitatem non habeat. 2 DM 54,1,6: Et ideo recte definiri solet, ens rationis, esse illud, quod habet esse objective tantum in intellectu, seu esse id, quod a ratione cogitatur ut ens, cum tamen in se entitatem non habeat. 3 DM 54,1,5: ...non solum inhaesive per suam imaginem, sed etiam objective secundum seipsam. 4 DM 54,1,6: Id autem, quod sic est objective in mente, interdum habet, vel potest habere in se verum esse reale, secundum quod rationi objicitur, et hoc absolute et simpliciter non est verum ens rationis, sed reale, quia hoc esse est quod simpliciter ac per se illi convenit, objici autem rationi est illi extrinsecum et accidentale. 5 DM 54,2,3: ...necessario est... dari aliquam causam efficientem, a qua habet ens rationis ut suo modo sit, quanquam efficientia ejus, ut est realis productio, ad illud non terminetur, ut ad terminum effectionis, sed tantum ut ad objectum ipsius termini producti. 6 DM 54,2,3: Probatur, quia quanvis ens rationis non habeat esse reale, habet tamen esse objectivum, quod tamen non semper habet; ergo quod nunc illud habeat, et non antea, in aliquam causam aliquo modo efficientem referendum est; alioqui nulla ratio sufficiens illius qualiscunque varietatis reddi posset. Item illud esse objectivum, quanvis in ipso ente rationis nihil sit, tamen necessario supponit aliquod esse reale, in quo fundetur, vel a cujus denominatione seu habitudine illud esse objectivum quasi resultet; illa ergo causa, quae efficit tale esse reale, est causa entis rationis. 7 Ib.: ...tota vero illa efficientia, ut ad terminum realis productionis terminatur ad formalem conceptum ipsius mentis, et ibi sistit; inde tamen fit, ut illemet conceptus formalis terminetur aliquo modo, ut ad objectum, ad ipsum ens rationis, quod cogitatur aut fingitur.

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no que consiste exatamente essa terminação ou termo do conceito formal.

Revius não perdeu também aqui a oportunidade de criticar Suárez1. A dificuldade, em minha opinião, consiste aqui em Suárez proceder como se ele acreditasse ser possível reduzir ontologicamente o ens rationis ao ato mental sem deixar nenhum resto. Ele não se dá conta – ou evita se dar conta – de que um ente de razão não pode em sua totalidade ser causado pelo intelecto. O que estou indicando é que o ente de razão pressupõe também algo que excede a causalidade estritamente ontológica. Se toda a causalidade dos entes de razão se reduzisse à causalidade ontológica do ato mental, então nós não poderíamos compreender a Odisséia nem poderíamos contar fábulas para as crianças. Se nós ouvimos a palavra “sereia”, nós a compreendemos porque nós causamos um ente de razão. A palavra “sereia” tem, porém, um sentido unitário, a saber, o sentido pelo qual o nosso intelecto (e conseqüentemente nossa imaginação) se

orienta ao pôr-se em atividade2, ou seja, se cada um de nós imaginasse uma sereia que fosse um ente individual único na alma de cada um, de modo que essas tantas sereias imaginadas não tivessem nada em comum umas com as outras, então cada um estaria entendendo algo totalmente diferente na história; se há um entendimento comum do episódio do canto das sereias, é porque as sereias imaginadas não podem ser reduzidas inteiramente a cada ato mental que as causa em cada alma individual; ao contrário, haveria algo de comum – para além, talvez, desses atos mentais individuais – que possibilita um entendimento unitário entre os leitores.

A doutrina de Suárez sobre os entes de razão pressupõe, portanto, que nós disponhamos de significados unitários. Tais significados não podem ser causados por uma causalidade ontológica efetiva. Porém, Suárez não explicita a pressuposição de que haveria esses significados; antes – como se vê na Disputação 2 – ele também procede como se o significado, isto é, o conceito formal enquanto significatio/imago, pudesse também ser reduzido sem resto ao

ato mental3.

1 Cf. Revius<1> a passagem correspondente. 2 Há que se indicar aqui que é o intelecto que propriamente causa os entia rationis e não a imaginação. A imaginação também causa entia rationis, mas o faz somente porque o intelecto atua conjuntamente causando essa espécie de ens rationis que é o ens imaginabile. DM 54,2,18: Atque ita sane dicendum est, ea entia rationis, quae sunt mere impossibilia, et non habent aliud fundamentum in re, praeter vim potentiae componentis quae in re componi non possunt, etiam posse fingi per imaginationem; tamen, quia imaginatio humana in hoc participat aliquo modo vim rationis, et fortasse nunquam id facit nisi cooperante ratione, ideo haec omnia dicuntur entia rationis, et, simpliciter loquendo, etiam hoc munus rationi tribuitur. 3 Cf. Rios <1>.

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Em outras palavras, podemos dizer que o ens rationis é algo que surge com um conceito formal que não se direciona diretamente para uma coisa mas para um outro conceito formal, sendo que ele não se direciona para um conceito formal enquanto ele é algo físico (isto é, enquanto ele é um ato mental, ou seja, enquanto ele é um movimento na alma), mas enquanto esse conceito formal é uma significatio/imago, isto é, enquanto ele é algo comum a muitos. Um ens rationis pode surgir também quando um conceito formal se dirige não a um outro conceito formal, mas ao que a ele corresponde junto às coisas. É porque Suárez não leva em conta esse elemento, por assim dizer, semântico e comum dos entes de razão, que ele mantém a possibilidade de uma redução sem resto do ente de razão ao ato mental. Assim, ele entende que o ente de razão enquanto

termo ou terminação do conceito formal é apenas um efeito secundário deste1. Suárez, portanto, deixa de lado a questão dessa, por assim dizer,

dimensão semântica – que, entretanto, é sub-repticiamente pressuposta na gênese dos entes de razão –, mas ele se vê obrigado a expor a diferença entre o ens rationis e a denominatio extrinseca. Como já indiquei, o conceito de denominação extrínseca é fundamental no pensamento de Suárez, a saber, ele é de tal modo fundamental que nunca chega a ser explicitado. Minha posição é até mesmo a de que ele não pode explicitá-lo e que a duplicidade da denominação extrínseca, que vai de par com essa inexplicitação, é necessária para a sistematicidade das DM. Seja como for, Suárez não quer deixar os entia rationis sem rédeas. Antes, ele precisa delimitar com clareza os domínios deles, desse não-ser, para que também se possa ter clareza dos limites da metafísica enquanto ciência do ser. É já na Disputação 1 que Suárez indica que dedicará toda uma disputação para os entes de razão. De fato, com esse zelo, ele parece estar dando maior firmeza ao projeto de sua metafísica. Se ele, ainda assim, não consegue dissipar certas dificuldades da doutrina dos entes de razão, é exatamente porque ela se escora nesse, por assim dizer, sem fundo de sua metafísica, que é a denominação extrínseca em sua interação com a face não mental do conceito formal.

Suárez rejeita a opinião de que os entia rationis não seriam nada mais do

que denominações extrínsecas2. Segundo essa opinião, se deveria considerar, junto às coisas, o ser-conhecido como um ens rationis, pois a denominação extrínseca não acrescenta nada à coisa e, conseqüentemente, só existe

1 DM 54,2,4: ...intellectus est causa efficiens entium rationis; efficit autem illa, efficiendo solum aliquam cogitationem, vel conceptum suum, ratione cujus dicitur ens rationis habere esse objectivum in intellectu. 2 DM 54,2,6: Est ergo quorumdam opinio, entia rationis nihil aliud esse quam denominationem extrinsecam, qua res cognita denominatur ab actu intellectus secundum aliquam proprietatem, aut conditionem convenientem illi quatenus cognita est, quae denominatio potest multiplex.

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objetivamente no intelecto1. Dessa opinião, que Suárez rejeita, seguiriam conclusões inaceitáveis: (1) Também o intelecto divino, no que ele conhecesse

coisas, constituiria entes de razão2. (2) Não só o intelecto, mas também a vontade, a visão etc., constituiriam pela sua simples atividade entes de razão, pois o ser-desejado ou o ser-visto são, enquanto são denominações extrínsecas,

também dependentes do ato que por sua intencionalidade denota a coisa3. (3) Os entes de razão não só surgiriam de atos das potências vitais (potentiarum vitalium), mas também das denominações que as coisas têm independentemente do intelecto; nesse caso, o estar-vestido (isto é, o habitus enquanto décimo predicamento, que é, para Suárez, uma denominação

extrínseca) seria um ens rationis4. Contra essa opinião, indica Suárez ainda que ela pressupõe uma regra

totalmente inaceitável, a saber, que uma denominação extrínseca poderia causar

um ens rationis5. Essa regra geral é inaceitável porque há já junto às coisas, independentemente do intelecto, formas denotantes, isto é, denominações extrínsecas, de modo que haveria entes de razão independentes do intelecto.

Ainda que Suárez nunca chegue a esclarecer o estatuto ontológico das denominações extrínsecas, ele considera importante esclarecer por que e como os entia rationis diferem das denominações extrínsecas. Há, sem dúvida, uma certa proximidade entre ambos: as denominações extrísecas podem, p. ex.,

1 Ib.: ...videtur esse illa <sc. opinio>, qua dicitur res esse cognita, nam haec etiam est denominatio extrinseca proveniens ab actu rationis, et non cadit in rem, nisi prout est objective in mente. 2 DM 54,2,7: Et juxta hanc sententiam sequitur primo, entia rationis non tantum resultare suo modo in rebus cognitis per intellectum humanum vel creatum, sed etiam per intellectum divinum, quia etiam prout illi objiciuntur, denominantur cognitae. 3 DM 54,2,8: Secundo sequitur ex praedicta sententia, non solum per intellectum, sed etiam per voluntatem, imo et per visum, et per alios similes actus resultare entia rationis, quia etiam ex illis denominantur objecta secundum aliquod esse, quod in eis nihil est, videlicet, esse volitum, aut esse visum. 4 DM 54,2,9: Tertio infertur ex dicta sententia, non solum dari entia rationis ex vi horum actuum potentiarum vitalium, sed etiam ex aliis rebus vel habitudinis rerum posse consurgere, quia in rebus ipsis ante hos actus inveniuntur aliquae extrinsecae denominationes, quae nihil in eis ponunt, et consequenter etiam erunt entia rationis. Hujusmodi est denominatio, qua columna dicitur dextra vel sinistra animali; item illa quae redundat in objectum ex potentia ut sic, ut esse visibile, vel audibile; denique omnes illae relationes non mutuae, quae ex parte alterius extremi dicuntur esse rationis, aut denominationes extrinsecae ab aliis extremis. Quin potius, a paritate rationis sequitur, denominationem vestiti a veste, locati a loco, imo et agentis ab actione, esse entia rationis, quia est eadem vel proportionalis ratio. 5 DM 54,2,10: Haec igitur corollaria satis, ut opinor, declarant, illam sententiam non posse esse veram quantum ad hanc generalem regulam, quod denominatio extrinseca ut sic constituat ens rationis.

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servir de fundamento para que um ato intelectual reflexivo dirigido a ela constitua ficticiamente um ens rationis. Mas a denominação extrínseca nunca é reflexiva enquanto, ao contrário, um ens rationis sempre resulta de um ato

mental reflexivo1. Suárez expõe com mais clareza como surge um ens rationis ao discutir o

esse cognitum. O esse cognitum pode ser entendido de duas maneiras. Por um lado, o esse cognitum é uma denominação extrínseca (nesse caso, trata-se, junto à coisa, do ser-denotado, ou seja, do ser-conhecido); por outro lado, o esse cognitum é um conhecimento reflexivo do ser-conhecido da coisa conhecida. No primeiro caso, não se trata, é isso que nos diz Suárez, de um mero ser objetivo no intelecto, mas do próprio ser da coisa que está sendo conhecido pelo

intelecto2. No segundo caso, é que se trata do ser objetivo do ato reflexivo no qual o intelecto conhece o seu próprio ato, a saber, conhece o ser-conhecido de

seus conteúdos3. A reflexividade do ato mental da qual surge um ente de razão consiste em

que, ou o ato mental se direciona para um outro ato mental enquanto algo denotante (ou seja, se direciona para o seu conteúdo intencional), ou o ato mental se direciona para o que, junto à coisa, corresponde a este ato mental. Um bom exemplo aqui é o das secundae intentiones. As secundae intentiones surgem do ato mental que não se volta diretamente para uma coisa, mas para as

denominações de um ato mental direto4. Essa é a reflexividade in actu signato, que Suárez, na Disputação 8, discute contrastando com a reflexividade in actu exercito característica do juízo de verdade. Com essa reflexividade in actu signato surge, p. ex., o ens rationis “gênero dos animais”. O que Suárez não menciona aqui é que o ens rationis “gênero dos animais” que eu tenho objetivamente em meu intelecto não surgiu só porque um dos meus atos

1 Não é necessário aqui que eu entre em detalhes sobre a questão da reflexividade in actu signato ou significato e a reflexividade in actu exercito. A reflexividade in actu exercito é a reflexividade própria ao juízo de verdade, é uma reflexividade peculiar que não chega a causar um ens rationis. Sobre essa questão e a questão da verdade em geral em Suárez cf. Rios <1>. DM 54,2,16: ...actus intellectus, quo ens rationis consurgit, est aliquo modo comparativus, vel reflexivus, praesertim quando ens rationis fundatur in actu intellectus. 2 DM 54,2,13: ...illudmet esse quod res habere dicitur, ex eo praecise quod cognoscitur, quod ex vi cognitionis directae non est objective in intellectu, sed potius est formaliter ab actu quo res cognoscitur... 3 Ib.: ...objective autem est in cognitione reflexa, qua intellectus cognoscit se cognoscere, vel potius qua cognoscit rem esse cognitam. 4 Ib.: Atque ad hunc modum fiunt omnes similes secundae intentiones per conceptus reflexos supra priores denominationes provenientes ex conceptibus directis, quae, ut diximus, non pertinent ad proproam rationem entis rationis seu ficti, de quo nunc tractamus.

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mentais reflexivos se direcionou para a denominação de um único conteúdo representacional meu deste cão ou para uma outra denominação de um único conteúdo representacional deste cavalo singular aqui etc., mas que antes esse ens rationis de um gênero surgiu porque o ato mental se voltou para o denotar, isto é, para o conteúdo representacional comum ou universal próprio a um conceptus formalis communis de animal; e mais: não pode se tratar aqui do conceito formal que eu hoje ou que eu agora tenho em minha alma, mas de um conceito formal que cada um tem ou pode ter, a saber, há que se tratar do denotar (isto é, do conteúdo denotativo ou representacional) do conceito formal que, enquanto imago ou significatio, independe da face física e singular do ato mental.

Suárez concebe sua doutrina dos entia rationis certamente com o intuito de resolver alguns problemas semânticos que lhe eram incômodos. Por exemplo, a questão de a que nós nos referimos quando falamos sobre objetos abstratos como gêneros, espécies, entia impossibilia etc. De fato, sua doutrina do ens rationis pode responder bem a essas questões; porém, só o pode após ele haver, contrariamente ao seu discurso explícito, deixado que funcionasse uma, por assim dizer, dimensão semântica, no caso, após ele haver pressuposto significações universais basicamente independentes dos ato mentais individuais. Ou seja, ainda que concedêssemos que Suárez com a sua prometida Disputação 54 teria conseguido “domar” os entia rationis banindo-os para além das fronteiras de sua metafísica, teríamos de reconhecer que essa Disputação 54 antes reforça a duplicidade da denominação extrínseca. Duplicidade da qual, aliás, os próprios entes de razão também dependem, uma vez que eles se

constituem baseando-se em denominações extrínsecas1.

1 Cabe ainda assinalar que Suárez obtém com sua doutrina resultados que são coerentes com outros aspectos de seu pensamento. Pode-se, p. ex., reparar que para ele Deus nunca precisa, para conhecer uma coisa, de causar entes de razão, pois, dado que ele conhece tudo de uma só vez, é mesmo a completude de seu conhecimento que exclui que ele, tal como os homens, tenha de recorrer a atos mentais reflexivos e comparativos para compreender algo [DM 54,2,20-22]. Isso também não quer dizer que Deus não conheça os entes de razão; ele não precisa constituí-los ficcionalmente para conhecer o mundo, mas ele os conhece na medida em que ele conhece o intelecto humano e, portanto, conhece tudo o que o intelecto humano pode causar. DM 54,2,23: Declarari potest, quia Deus comprehendit omnes actiones humanae imaginationis vel rationis; ergo comprehendit omnes fictiones formales (ut ita dicam) quae in his potentiis esse possunt; ergo etiam cognoscit fictiones objectivas quae illis actibus mentis correspondent seu objiciuntur, atque ita cognoscit omnia entia rationis, quae per operationes harum potentiarum quovis modo insurgere possunt. Uma apresentação completa das outras sectiones da Disputação 54 pode ser encontrada no artigo de Yela Utilla. Uma exposição de todas essas seções pouco acrescentaria ao nosso trabalho.

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§4 - A DENOMINAÇÃO EXTRÍNSECA E OS POSSÍVEIS/ O ens reale enquanto ens possibile e o ens in potentia enquanto ens rationis

Sabe-se que Suárez usa a palavra “realis” ora no sentido de “atual”

(“atual” = “em ato”) ora referindo-se a realidade antes de sua efetivação1. Assim, temos, por um lado, que uma relação “real” não é propriamente uma relação “atual” e que, por outro lado, o conceito de ens reale diz respeito às aptitudines ad esse, às quais a princípio não se atribui nenhuma atualidade. Essa ambigüidade se transmite para a palavra “ens”. Sendo assim, é necessário se perguntar o que Suárez em DM 54,1,8 está então dizendo quando ele fala que nós compreendemos tudo “ad modum entis”. Penso que aqui a palavra “ens” refere-se à não-repugnância a ser atualmente e não à própria atualidade. Contudo, nós podemos constituir ficcionalmente entia rationis não só em vista ao ens enquanto mera possibilidade, mas também em vista da própria atualidade. Esse é o caso quando nós falamos do ens in potentia, pois ele é a rigor uma abstração e, conseqüentemente, é um ens rationis. Se nós, p. ex., falamos da essência de Pedro como se ela fosse algo que carece de atualidade, então não estaríamos falando da essência como mera possibilidade, isto é, como não-repugnância a ser atualmente, mas estaríamos falando de uma hipóstase dessa não-repugnância, a qual estaria sendo pensada tal como se ela já fosse algo existindo autonomamente a que a atualidade apenas seria acrescentada como uma parte a mais.

Segundo Suárez, quando nós ouvimos a palavra “ens” nós entendemos primeiramente a não-repugnância a ser atualmente. Essa compreensão primeira é uma denominação extrínseca dessa não-repugnância. Essa denominação certamente não causa essa não-repugnância, mas apenas, por assim dizer, a alcança. Em si mesma essa não-repugnância não consiste nessa denominação; em si ela é mais do que essa denotação semântica. Quando nós, porém, nos permitimos pensar que essa não-repugnância é algo que, para além dessa denotação semântica, persiste no modo de um ente atual, então nós deixamos de falar do ser enquanto objeto da metafísica e passamos a falar de um ens rationis, a saber, passamos a falar da hipóstase da denominação extrínseca da não-repugnância a ser atualmente. 1 Suárez tem, sem dúvida, consciência desta duplicidade, é ele próprio que a indica: ...dicitur talis essentia, antequam fiat, realis, non propria ac vera realitate quam in se actu habeat, sed quia fieri potest realis, recipiendo veram entitatem a sua causa, quae possibilitas (ut statim latius dicam) ex parte illius solum dicit non repugnantiam, ut fiat; ex parte vero extrinsecae causae dicit virtutem ad illam efficiedam (DM 31,2,2). São numerosos os pesquisadores de Suárez que lamentam essa oscilação em sua terminologia (cf. Wells, nota 8). Essa duplicidade de “realis” não é, porém, nenhum descuido. Ela está relacionada com a própria dificuldade do conceito de ser como não-repugnância.

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Desse modo, falar de um esse essentiae que seria intrínseco aos possíveis seria já voltar as costas para a metafísica e passar a ocupar-se com quimeras, a saber, com entidades que não têm nenhuma atualidade, mas que, segundo o que constituímos ficcionalmente, persistiriam tal como os entes atuais. Por outro lado, querer compreender os possíveis como entia rationis porque eles são, de certo modo, só objetivamente no intelecto, seria compreender de uma maneira completamente errônea o que seja um ens rationis. Para o seu surgimento, um ens rationis requer que se hipostasie uma denotação de algo real (que, aliás, não precisa ser atual), ou seja, precisa de um ato reflexivo do intelecto (seja um ato de imaginar ou de “ficcionalizar”). Se nós ouvimos a Odisséia, nós sabemos que nessa narrativa não são todas as palavras que se referem a coisas reais; assim, nós nos esforçamos em constituir ficcionalmente os denotata das palavras que escutamos, por vezes chegamos mesmo a imaginar alguns deles. Se nós escutamos “sereia”, nós, por meio de “peixe” e “mulher”, compomos em um ato reflexivo do intelecto o denotatum ficcional, o qual “sereia” então denomina extrinsecamente. A palavra “sereia” pode assim se referir a um denotatum ficcional. Contrariamente a isso, a palavra “ens” denota, a princípio, não o não repugnante enquanto hipóstase (pois trata-se de uma denotação não reflexiva que não é antecedida por nenhuma outra denotação), mas simplesmente o não repugnante. A denotação da palavra “ens” é como que a própria espontaneidade do denotar; como um denotar espontâneo ao qual todo outro denotar é posterior. O que é denotado por essa denotação extrínseca primeira é o ser enquanto não-repugnância. Ainda que nós tenhamos o costume, ou mesmo que sejamos quase sempre levados a – para além dessa primeira denotação em sua espontaneidade – constituir um ente ficcional como o referente de “ens”, tal ens rationis já então deixou de ser o ens inquantum ens.

Por isso, temos de lidar com o discurso metafísico sempre com muita cautela. É como se tivéssemos uma certa tendência a nos desencaminharmos com hipóstases. Esse objeto – do qual o “em si” se subtrai a cada vez a nossa compreensão – é o objeto da metafísica. O objeto da metafísica é, contudo, o que apreendemos neste ato mental não reflexivo provocado pela palavra “ens”, ou seja, o objeto da metafísica é o conceptus objectivus entis; sendo que este objeto (a saber, o ens), ao ser apreendido no conceptus objectivus entis, não esgota o seu “em si”no tanto em que é apreendido. No entanto, toda a vez que ousamos falar o que é este objeto para além do seu conceptus (tal como se pudéssemos apreendê-lo totalmente), então nos arriscamos a não mais estar falando dele, mas de uma ficção. Esse “oscilar” do ens reale entre apreensibilidade e inapreensibilidade é a sua transcendentalidade. O conceito

de ser é para Suárez, tal como para Duns Scotus, transcendental1.

1 Cf. Rios<1> §1.

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Pode-se aqui colocar a questão de se Suárez consideraria algo como uma dimensão semântica da ordem do transcendental, isto é, se ele aceitaria considerar a denominação extrínseca como algo da ordem do semântico e a consideraria como sendo da ordem do transcendental. Pode-se argumentar nesse sentido, pois, afinal, cada vez que nós nos referimos a uma denominação extrínseca, nós constituímos um ente ficcional e não a alcançamos propriamente. Além disso, temos que as denominações extrínsecas não são entes de razão, pois, se elas o fossem, então não se teria o que se tomar como base para constituir ficcionalmente um ente de razão. As denominações extrínsecas são, assim, tanto inacessíveis quanto constituidoras do processo cognoscitivo. Sem dúvida, pode-se dizer que as denominações extrínsecas são já um esboço de uma transcendentalidade que ainda virá a ser pensada de um modo mais sistemático. Isso, porém, não é dizer muito porque o conceito de transcendental é de todo modo nebuloso e, para além da transcendentalidade do ser, há pouco que se possa de fato apreender como sendo um encaminhamento da futura discussão kantiana do transcendental e há muito – digamos demais – que, sobre isso, se pode inconclusivamente especular. O que é, contudo, importante de ser indicado aqui é que há que se diferençar bem o que seria a transcendentalidade do ser e a transcendentalidade da denominação extrínseca. Não se deve fazer do transcendental – ainda que essa palavra nunca deixe de ser algo obscura – um saco de gatos.

A transcendentalidade do ser é o que possibilita a atualização das coisas (inclusive dos atos mentais). A transcendentalidade da denominação extrínseca é o que possibilita o conhecimento no sentido intencional e, conseqüentemente,

a linguagem1. Não se deveria confundir o “oscilar” do conceptus objectivus entis entre

apreensibilidade/inapreensibilidade do ser com o “oscilar” entre intencionalidade e coisa. Como já indiquei ao discutir a Disputação 2, Suárez também parece haver se confundido aqui. Na Disputação 2, ele começa com uma discussão que se poderia mesmo dizer ser uma discussão semântica do conceito formal de ser e acaba por alcançar o próprio ser. Contudo, Suárez parece não se confundir quando ele discute os universais. Aí ele tem a clareza de que o que o universal “animal” denota junto às coisas não é nenhuma parte dessas coisas. Toda a discussão da distinctio rationis indica que a denominação extrínseca (por meio das quais as distinctiones rationis se tornam possíveis) se devem ao pensamento e, propriamente falando, às coisas. As coisas dependem,

1 O próprio Bolzano diferencia entre o semântico e a possibilidade da coisa: “Ferner muss man die blosse Denkbarkeit einer Sache nie mit der Möglichkeit, nicht einmal mit der sogenannten inneren Möglichkeit, welcher das sich selbst Widersprechende entgegensetzt wird, verwechseln” (vol. 1 § 7 p. 57-58).

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sem dúvida, de sua possibilidade transcendental, mas não de que elas sejam apreendidas conceitualmente. Se um intelecto diferencia junto a uma coisa entre essência e existência, a coisa não se modifica por isso. Se um intelecto se refere à não-repugnância dos possíveis, os possíveis não ganham com isso nada no seu não repugnar.

Sendo assim, temos que a denominação extrínseca do conceito formal constitui o conceito objetivo de ser, mas não o próprio ser, isto é, ela não causa a sua não-repugnância a ser.

O ser é transcendental, não porque a denominação extrínseca que o apreende o seja, mas devido a inapreensibilidade da não-repugnância a ser atualmente.

Não é porque nós podemos nos referir aos possíveis que eles podem existir. Antes, eles podem existir atualmente e, assim, podemos nós nos referir a sua possibilidade. A possibilidade da metafísica e, do mesmo modo, a possibilidade da linguagem é para Suárez, em última instância, diferente da possibilidade das próprias coisas. A possibilidade da linguagem deve-se para Suárez, em última instância, à possibilidade dos atos mentais e à do processo de abstração. Uma vez que para Suárez a intencionalidade (isto é, o conteúdo denotante) do ato mental não difere ontologicamente do seu suporte, ele não reconhece ao ato mental enquanto ele desempenha funções semânticas nenhuma autonomia ontológica. Ao contrário do que faz Suárez, Frege nega a possibilidade de uma redução sem restos do sentido (“Sinn”) ou do pensamento (“Gedanke”) ao ato mental.

É em vista dessas dificuldades que sou reticente frente aos interpretes da escolástica que comparam as “Sätze an sich” de Bolzano com o “formaliter ex se”

de Duns Scotus ou com os possíveis em Suárez1. Apesar da pouca clareza como essas dificuldades são tratadas em Scotus e Suárez, creio haver mostrado que se trata de duas, por assim dizer, transcendentalidades diversas. Não estou dizendo que a “confusão” entre elas duas não tenha ainda que ser cuidadosamente pensada; em todo caso, essa “confusão” não é um “erro” que possa ser solucionado por uma melhor definição das palavras. Antes, tal “confusão” – é isso que estive argumentando – indica duplicidades fundamentais, isto é, próprias ao fundamento que as metafísicas desses pensadores estiveram reivindicando. Cabe, porém, indicar aqui que, enquanto Bolzano (tal como Frege e Meinong) visavam primeiramente problemas semânticos, Scotus e Suárez visavam primeiramente um problema metafísico, a saber, o do fundamento da metafísica.

Doyle pesquisou a doutrina da denominação extrínseca em Suárez porque ele supunha poder relacioná-la com o pensamento de Kant. Ele supunha

1 Cf. Honnefelder <1> p. 433.

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inicialmente que se poderia vir a compreender melhor o apriori kantiano

através de uma análise sistemática dessa doutrina suareziana1. Ele, porém, não conseguiu propor nenhuma análise comparativa entre Suárez e Kant que fosse de fato produtiva. Talvez seu insucesso não tivesse sido completo se ele não o tivesse abandonado tão cedo. O ser enquanto não-repugnância, isto é, os possíveis, são para Suárez objetivamente no intelecto, mas não “somente” objetivamente no intelecto como o são os entia rationis. Para além de ser objetivamente no intelecto, os entia rationis não são nada. Trata-se, porém, de dois “nadas”. Os entia rationis são constituídos ficcionalmente como se eles fossem algo que existisse atualmente ou como se algo lhes faltasse. No entanto, os possíveis são “anteriores” ao ser atualmente ou ao ser ficcionalmente. O ser atualmente deve ser considerado uma contração da não-repugnância. Também o ens in potentia enquanto ens rationis deve ser compreendido como uma contração da não-repugnância. O nada da não-repugância é, contudo, algo real, enquanto o nada dos entia rationis é apenas algo ficcional.

Leiamos com atenção a seguinte passagem de Suárez:

...quia saepe res nullum habet esse in se, quod sit esse existentiae exercitum, praeter esse quod habet intellectui objectum; quomodo Deus habet veram cognitionem eorum quae nunquam futura sunt, sive cognoscuntur ut possibilia tantum, sive ut ea quae futura fuisset, si hoc vel illud accideret; in his autem objectis non potest facile excogitari conformitas rei ut objectae intellectui, ad seipsam ut in se, quia nullum aliud

esse habet in se, praeter illud quod objicitur intellectui.2 Nessa passagem, Suárez está argumentando contra a concepção de

Durandus de que a verdade consiste na conformidade entre o conceito objetivo e a coisa em si mesma. Suárez indica que os possíveis e os futura contingentia não são nada para além dos seus conceitos objetivos (“nullum aliud esse habet in se”). Embora o ser não seja somente objetivamente no intelecto de Deus, o ser é em si nada.

Os puros possíveis e os futura contingentia são, por um lado, não só objetivamente no intelecto, mas são para além disso algo que é em si, a saber,

1 Doyle p. 122: “...extrinsic denomination itself, my first hope was that a close examination of Suárez’s text could reveal rules governing its use, rules which, systematically laid out, might in ways adumbrate the Kantian a priori. What I found was that Suárez does observe some conventions, if not actual rules, with regard to extrinsec denomination. I have, however, been unable to find that these conventions in any explicit way anticipate Kant”. 2 DM 8,1,5.

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algo que é e é independentemente de seu conceito objetivo. Por outro lado, eles não são em si nada; eles não são, assim, nada para além de seus conceitos objetivos.

Suárez se mostra consciente dessa “oscilação”. Quando ele, nessa mesma

passagem1, diz que a não-repugnância (os possíveis) não são nada para além do seu estar sendo conhecido (isto é: para além de seu conceito objetivo), ele está dizendo que a não-repugnância (os possíveis) não são o que assim são porque

Deus os conhece, mas ao contrário que Deus os conhece porque eles assim são2. A não-repugnância é o que soergue o ens do nada, mas ela não é nada. Suárez, porém, não indica essa “oscilação” e não a discute.

O tema ser/nada será, no entanto, repetidamente discutido nos séculos

subsequentes3. Hegel refere-se ao ser como o imediato indeterminado (“das unbestimmte Unmittelbare”). Ele diz ainda: “Este ser é o próprio intuir puro e

vazio” (“Dieses Sein ist dies reine, leere Anschauen selbst”)4. Evidentemente, esse problema é tratado em Hegel de um modo bem diferente do que um escolástico poderia sequer supor fosse possível. Certamente, também o objetivo de pôr de lado “o espectro da coisa em si que a filosofia crítica ainda deixou como resto” (“von der kritischen Philosophie noch übriggelassene Gespenst des

Ding-an-sich”)5 é um objetivo estranho a Suárez. A questão do co-pertencimento do ser e do nada também é tratada por

Heidegger em seu texto “Was ist Metaphysik?”: “Das Nichts gibt nicht erst den Gegenbegriff zum Seienden her, sondern gehöhrt ursprünglich zum Wesen

selbst”6.

1 Cf. Suárez vol. 11 Scientia quam Deus habet de futuris contingentibus lib 2 c.5 n. 13 p. 360a e Rios <1> §21. 2 DM 31,6,17: Rursus essentiae creaturarum non ideo tales sunt, aut talem habent connexionem praedicatorum essentialium, quia respiciunt tales rationes vel exemplaria divina, sed potius ideo Deus cognoscit unamquamque rem possibilem in tali essentia et natura, quia talis est cognoscibilis et factibilis, et non alias... 3 Cf. Hübener. 4 Hegel p. 83. 5 Hegel p. 41: “Der konsequenter durchgeführte transzendentale Idealismus hat die Nichtigkeit von der kritischen Philosophie noch übriggelassenen Gespensts des Ding-an-sich, dieses abstrakten, von allem Inhalt abgeschiedenen Schattens erkannt und den Zweck gehabt, ihn vollends zu zerstören”. O idealismo ao qual Hegel está se referindo não é o seu próprio sistema filosófico, antes ele está aqui assumindo como tarefa para o seu pensamento eliminar esse resto que seria a coisa em si kantiana. 6 Heidegger p. 119: “Sein und Nichts gehöhren zusammen, aber nicht weil sie beide – vom Hegelschen Begriff des Denkens aus gesehen – in ihrer Unbestimmtheit und Unmittelbarkeit übereinkommen, sondern weil das Sein selbst im Wesen endlich ist und sich nur in der Transzendenz des in das Nichts hinausgehaltenden Daseins offenbart”.

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Não penso que a repetição dessa questão possa, sem considerações críticas cautelosas, ser considerada uma continuidade. Sem dúvida, há que, a cada vez, se discutir cuidadosamente a própria mudança de significado que essa questão ou, talvez melhor dizendo, que essa aparentemente mesma questão traz consigo. Contudo, essa não é a intenção do presente texto. Mesmo assim, gostaria, ao menos a respeito de Kant e Hegel, de indicar alguns aspectos que me parecem possam ser relevantes em uma posterior discussão; o que indico logo a seguir há ainda que ser melhor investigado. Primeiramente, precisaria lembrar que tais comparações em história da filosofia só podem ter sentido (se é que elas chegam a ter sentido) se se tratar de uma comparação, por assim dizer, estrutural. Comparações entre aspectos isolados (tal como, em última instância, procedeu Doyle) não conduzem a nenhum resultado relevante. Honnefelder, após haver exposto longamente os conceitos fundamentais de Duns Scotus, Suárez e Wolff e de haver então destacado as semelhanças estruturais entre eles, sem deixar de destacar também as divergências, veio, uma vez que tal trajeto o embasava o suficiente, a proceder a uma comparação estrutural entre Duns Scotus (e implicitamente Suárez) e Kant. Honnefelder resume algumas conclusões de sua pesquisa do seguinte modo:

Überblickt man den Strukturaufbau der scientia transcendens bei Scotus und Kant im ganzen, dann wird deutlich, dass den drei Stufen, in denen Scotus “Seiendes” bestimmt, drei wohlbestimmte Stufen bei Kant entsprechen: Dem Begriff des “Seienden” als Subjekt der Metaphysik entspricht der Begriff der objektiven Realität und des transzendentalen Gegenstandes, dem “Seienden”, wie wir es und jetzt als “erstes Objekt des Verstandes” angezeigt finden, die Idee eines Inbegriffs der Realität, einer “omnitudo realitatis”, und schliesslich dem Begriff des unendlichen Seienden das als transzendentales Ideal

erkannte “ens realissimum”.1 Se substituirmos nesse texto Scotus por Suárez, poderemos ver que o

conceptus objectivus entis em Suárez viria a ser posto em paralelo com a realidade objetiva e o objeto transcendental, ou seja, com a coisa em si. Tenho aqui a impressão que pensar que a face ontológica do conceito objetivo corresponde à coisa em si não seria infundado: a coisa em si, por um lado, não é

simplesmente nada2, embora, por outro lado, seja nada e se possa, nesse caso, até considerá-la um ens rationis. A, por assim dizer, face semântica do conceito 1 Honnefelder <3>. Cf. Honnefelder <2> p. 485. 2 Cf. Kant, Prolegomena Akad.-Ausg. vol. 4 p. 288-290.

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objetivo seria próxima à realidade objetiva kantiana. A “transcendentalidade” da face semântica do conceito objetivo (e aqui se teria que ter em vista também o conceito formal) seria, assim, o que nós poderíamos colocar em paralelo com a transcendentalidade kantiana. Contudo, há que se notar que muitas das categorias kantianas pertenceriam, segundo a metafísica de Suárez, às coisas. Além disso, para Suárez, as denominações extrínsecas dos conceitos objetivos surgem, em última instância, dos atos mentais. As categorias kantianas não têm, porém, a princípio, nenhuma relação com um intelecto físico, mas com a apercepção transcendental. Assim, aqui, a comparação parece mais uma vez romper-se. Uma comparação com Hegel tropeçaria em problemas semelhantes. Contudo, como eu disse, estive aqui apenas indicando alguns aspectos a serem melhor pesquisados. Não considero estar trazendo resultados definitivos.

A respeito da passagem de Suárez citada acima, gostaria ainda de destacar que o conceito objetivo (que também é por vezes entendido como um correlato proposicional, isto é, como o correlato de uma composição de

conceitos formais1) correspondente a uma proposição sobre os possíveis ou sobre os futuros contingentes não deve ser considerado como uma “proposition” (no sentido contemporâneo desse termo) ou um “Satz an sich” de Bolzano. Às proposições (no sentido contemporâneo desse termo) atribui-se verdade ou falsidade; ao conceito objetivo não se atribui verdade nem mesmo quando ele corresponde a uma composição de conceitos formais.

Segundo Suárez, só se atribui verdade ao conceito formal (enquanto uma

repraesentatio intentionalis2, isto é, enquanto uma composição de conceitos formais). Atribui-se, porém, verdade ao conceito formal se ele tem um connotatum, ainda que esse connotatum não seja nada para além de seu

conceito objetivo3. Desse modo, temos que concluir que uma proposição, ou seja, que um “Satz an sich” ou o “Gedanke” fregeano não podem ser considerados como correspondendo só ao conceito formal, mas que eles antes corresponderiam ao conceito formal juntamente como o conceito objetivo. Contudo, se nós considerarmos o conceito formal e o conceito objetivo como um bloco único, então falar – como o faz Suárez – da verdade como conotação praticamente não tem mais nenhum sentido; ao menos se se está referindo a coisas que não são em si nada.

1 Cf. Rios <1> §§ 9 e 11. 2 Cf. DM 8,1,6: Consistit <sc. a verdade in cognoscendo> ergo in quadam repraesentatione intentionali, qua, scilicet, fit ut intellectus per actum, vel judicium ita percipiat rem, sicut in se est. 3 Cf. Rios <1> §§ 9 e 11. Notar que o próprio Suárez não usa a palavra connotatum, emprego-a aqui por ela ser cômoda e adequada.

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Gostaria de concluir este texto indicando mais algumas questões a serem tratadas em outros artigos. Os futura contingentia, a saber, tanto os futura contingentia absoluta quanto os futura contingentia conditionata devem ser compreendidos ontologicamente tal como os possíveis. Eles são, por um lado, algo para além de seus conceitos objetivos e, por outro, não são nada. Enquanto isso, os entia rationis são, para Suárez, para além de seus conceitos objetivos, em todos os sentidos, nada mais são do que nada. A questão da não-repugnância é abordada por Suárez detidamente nas Disputações 2 e 31. A aprofundada discussão dessa questão que se encontra em Honnefelder<2> dispensa-me de retomá-la mais uma vez.

Quem compreender e aceitar o que Suárez pensa quando ele fala em não-repugnância pode considerar também a questão referente ao estatuto ontológico dos mundos possíveis como solucionada. No que diz respeito a Suárez, assim eu o diria, a dificuldade consiste antes em compreender o seu conceito de ser do

que em esclarecer o estatuto ontológico dos mundos possíveis1. Os filósofos modernos, que em geral não têm como ponto de partida o conceito suareziano de ser, vêem-se, ao contrário, confrontados com a questão de em que consiste ontologicamente os mundos possíveis.

Não estou aqui propriamente interessado na discussão moderna sobre os mundos possíveis. Ela envolve problemas bem diversos: ela mesma é já um problema diverso, uma vez que ela está relacionada com uma tentativa de reeditar a metafísica, mesmo depois de toda a crítica moderna feita a ela; crítica essa que, a meu ver, impossibilita que se reerga assim tão ingenuamente a metafísica, isto é, que se queira reerguê-la sem se ocupar em nenhum momento com a discussão fenomenológica do tempo.

O que me interessa é destacar a “oscilação”2 do conceito de não-repugnância, do conceito objetivo e do conceito formal. Assim, posso destacar ainda os seguintes pontos importantes a serem aprofundados. (1) Entender melhor o funcionamento dessas “oscilações” na articulação da sistemática das DM; afinal, elas não são imperfeições contornáveis, mas, antes, acompanham toda a fundamentação da metafísica suareziana, bem como embasam o desenvolvimento de seus conceitos mais fundamentais. (2) Discutir quais são propriamente as funções e a necessidade de “oscilações” conceituais não só nas DM, mas – levando-se em conta outros autores – no discurso da metafísica em geral. (3) Pensar como se dão as sucessivas reapropriações dessas “oscilações” 1 Quanto aos os futura contingentia, no que toca à ontologia, Suárez mantém-se próximo a Duns Scotus. Sua divergência com Scotus se deve a ele ter um conceito de liberdade diverso. Cf. Rios<1>. 2 Ao longo deste texto usei várias outras palavras além de “oscilação”. Essas palavras foram: “duplicidade”, “vacilação”, “reserva”, “intermediário”, “double bind”, “hesitação”, “indefinição”e “transcendentalidade”.

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assim como se pode constatar na idea de Descartes com sua realitas objectiva e na “objektive Realität” ou “objektive Gültigkeit” em Kant. BIBLIOGRAFIA

Fontes Primárias

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Francis Suarez, S. J., in: Vivarium 22, 2 (1984) p. 121-160 Hegel, G. W. F.: Wissenschaft der Logik, Frankfurt a. M. 1981 (Werke in

zwanzig Bände vol. 5) Heidegger, M.: Was ist Metaphysik? in: Heidegger, Wegmarken, Frankfurt 1978

p. 103-121 Hickman, L.: Modern Theories of Higher Level Predicates, München 1980 Honnefelder, L.: <1> Ens inquantum ens. Der Begriff des Seienden als solchen

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____: <3> Vernunft und Metaphysik. Die dreistufige Konstituition ihres Gegenstandes bei Scotus und Kant, in: Ioannis Duns Scotus in historia. Acta Sexti Congressus Scotistici Internationalis, Roma

Hübener, W.: Scientia de Aliquo et de Nihilo. Die historischen Voraussetzungen von Leibniz’ Ontologiebegriff, in: Hübener, Zum Geist der Prämoderne, Würzburg 1985, p. 84-100

Kant, I.: Kant’s gesammelte Schriften. Begonnen von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaften, Berlin 1900

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____: <2> Racionalidade substancial e racionalidade acidental Em Francisco Suárez (1548-1617), in: Lógica e Linguagem na Idade Média, Porto Alegre, EDPUCRS, 1995, p. 267-282.

Wells, N. J.: Suarez on the Eternal Truths, I/II, in: The Modern Schoolman, 58 (1980/81), p. 73-104, p. 159-174

Yela Utrilla, J. F.: El ente de razón en Suárez, in: Pensamiento, 4 (1948) p. 271-303

TRADUÇÃO DE DM 2,1,1

Comecemos aceitando a distinção usual entre conceito formal e conceito

objetivo. O conceito formal é dito ser o próprio ato ou, o que dá no mesmo, a palavra

através da qual o intelecto apreende uma coisa ou uma razão comum [algo de comum a muitas coisas]. O conceito formal é dito conceito [conceptus] porque é como a prole da mente. E é dito formal, porque é a forma última da mente, porque formalmente representa para a mente a coisa conhecida e, ainda, porque é o termo intrínseco e formal da concepção mental [sobretudo neste último aspecto o conceito formal difere do objetivo].

O conceito objetivo é dito a coisa ou o conceito que de um modo próprio e imediato é conhecido ou representado pelo conceito formal. Por exemplo, quando concebemos um homem o ato que produzimos na mente para conceber tal homem é chamado conceito formal, enquanto o homem conhecido e representado por este ato é dito conceito objetivo. Trata-se de um conceito, portanto, com base em uma denominação extrínseca de um conceito formal, a saber, do conceito formal através do qual o objeto é dito ser apreendido. Sendo assim, é correto falar em objetivo, pois não se trata de um conceito enquanto uma forma intrínseca concluindo um ato de conhecimento, mas enquanto é objeto, ou seja, a matéria acerca da qual versa formalmente o ato de conhecimento, isto é, o conceito objetivo é o conteúdo para o qual o olhar da mente [a atenção da mente] está diretamente voltado. Por isso, o conceito objetivo é chamado por alguns, entre os quais Averróis, intentio intellecta e por outros ratio objectiva.

Visto isso, podemos enumerar as diferenças entre o conceito formal e o conceito objetivo.

O conceito formal é sempre verdadeira e positivamente uma coisa e no homem é uma qualidade inerindo na mente.

O conceito objetivo, porém, nem sempre é verdadeira e positivamente uma coisa. De fato, por vezes concebemos privações ou coisas semelhantes as quais

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chamamos de entia rationis [entes conceituais], pois estes só têm objetividade [esse objective] no intelecto.

Assim, o conceito formal é sempre uma coisa singular e individual, pois é uma coisa produzida pelo intelecto e que nele inere.

Já o conceito objetivo pode ser por vezes singular e individual, na medida em que ele pode se contrapor à mente [menti objici] e ser apreendido por um ato formal, mas algumas vezes o conceito objetivo é uma coisa universal, confusa e comum. Tal é o caso do conceito objetivo de homem, de substância etc.

Nesta disputação tencionamos precipuamente explicar o conceito objetivo do ser enquanto tal em toda a sua abstração, isto é, tal como quando dizemos que ele é o objeto da metafísica. Mas, por ser isto muito difícil e depender em muito de nossa capacidade de compreensão, iniciaremos com a discussão do conceito formal, pois este – assim nos parece – pode ser melhor apreendido.

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Adequação e Proposições de Verdade Perpétua.

Alguns meandros e impasses na teoria da verdade em

Francisco Suárez ∗∗∗∗

Neste artigo comentarei a teoria suareziana da verdade das proposições. Para isso vou me basear principalmente na Disputatio 8, sobre a verdade, e na 9, sobre a falsidade, da portentosa obra de Suárez, as Disputationes

Metaphysicae1 (DM). Trata-se aqui tanto de um trabalho de análise e interpretação de um texto filosófico de um autor específico quanto da exposição e discussão detalhada de um exemplo disto que se considera seja historicamente a principal teoria da verdade, a saber, a teoria da verdade como adequação. Neste artigo proponho uma análise detalhada das dificuldades e sutilezas dessa teoria. Num autor tão sutil e exaustivo como Suárez, se poderá ter uma visão da extensão dos impasses que essa teoria buscou contornar, bem como das “duplicidades” que ela turvou e nas quais ela se apoiou. Evidentemente, expor impasses e “duplicidades” é uma tarefa árdua, em vista da qual me permiti, por vezes, em prol da clareza, ser repetitivo. Também busquei recapitular discussões minhas empreendidas em artigos anteriores; porém, para evitar que este artigo se estendesse por mais de uma centena de páginas, não pude deixar de, em certa medida, pressupor que o leitor ou leitora tenha conhecimento do meu artigo ‘Conceito objetivo, Denominação Extrínseca e Entia Rationis em Francisco

Suárez’2. Começo o presente artigo (I) com um comentário geral sobre a questão do juízo, onde introduzo alguns dos principais temas a serem discutidos a seguir. Depois, (II e IV) comento as duas primeiras seções da Disputatio 8 sobre a verdade; (III) esse comentário é interrompido por uma breve exposição da concepção suareziana da relação predicamental naquilo que é indispensável para uma compreensão adequada da connotatio. Após concluir essa exposição da connotatio e da sectio 2 da Disputação 8, (V) retorno à questão do juízo abordando, em particular, a questão da possibilidade do erro. Ao final, (VI) discuto o problema das proposições de verdade perpétua. Reservo para um outro texto a discussão mais específica do problema da verdade das proposições

Texto inédito. 1 Suárez Disputationes Metaphysicae in Opera omnia vols. 25 e 26. Vou abreviar as referências do seguinte modo: DM 8,1,1 leia-se: Suárez Disputationes Metaphysicae in Opera omnia vols. 25 e 26; disputação 8, seção 1, número 1. 2 Incluído mais acima neste livro.

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acerca dos futuros contingentes. Trata-se aqui de mais um artigo em que eu, entre outras coisas, pretendo trazer alguns subsídios para a infinita discussão da presença da Escolástica e, em particular, de Suárez na obra de Descartes. I - INTRODUÇÃO: O JUÍZO Na Disputatio 8 sobre a verdade, Suárez deveria, a rigor, prosseguir com a discussão das passiones entis e tratar apenas da verdade enquanto passio entis. Porém, a maior parte da disputação é dedicada à discussão da verdade das proposições ou, como Suárez se expressa, da verdade in cognoscendo. Suárez distingue três tipos de verdade:

...triplicem solere distingui veritatem, scilicet, in significando, et cognoscendo, et in essendo. [DM 8 prooemium] ...costuma-se distinguir a verdade em três tipos: verdade no

significar, no conhecer, e no ser.1 A verdade no significar (in significando) é a verdade que se pode atribuir às palavras faladas ou escritas, ou mesmo aos conceitos quando não se chega a formar um julgamento. Um exemplo clássico é o da frase astra sunt paria, ou seja, “o número dos astros no céu é um número par”, pois, pronunciada esta frase, não se chega a formar um juízo de se ela é verdadeira ou falsa, embora certamente ela seja ou verdadeira ou falsa. A verdade no conhecer (in cognoscendo) é a verdade própria ao intelecto que conhece a coisa e julga que a conhece tal como ela é. A verdade no ser (in essendo) é a verdade enquanto passio entis que seria propriamente o objeto dessa Disputação 8. No início da Disputatio 8 sobre a verdade, Suárez recorre ao que então podia ser entendido como sendo um consenso geral entre os filósofos, a saber, que a verdade das proposições consiste numa certa adequação ou conformidade entre a coisa e o intelecto:

Quoniam vero ratio nominis in principio omnis disputationis necessaria est, supponimus, ex communi omnium consensu, veritatem realem consistere in adaequatione quadam seu conformitate inter rem et intellectum, sive sit conformitas intellectus ad rem, sive rei ad intellectum... [DM 8 prooemium]

1 Todas as traduções são minhas.

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Uma vez que é necessário esclarecer o sentido das palavras no início de todas as disputações, supomos, com base no consenso de todos, que a verdade real consiste numa certa adequação ou conformidade entre a coisa e o intelecto, quer seja na conformidade do intelecto com a coisa, quer seja na da coisa como o intelecto...

De um modo geral, essa posição é comum a todos os filósofos da Escolástica de então. Contudo, sempre que se queira examinar exatamente o que cada um entende por intellectus, res ou conformitas surgem divergências. Nessa tríade, Suárez – posso adiantar – considera intellectus como sendo o ato mental, ou seja, o conceito formal, tomado sobretudo em sua dimensão intencional. Contudo, como já mostrei em um outro artigo, ele não é claro quanto a essa sua aceitação de uma dimensão semântico-intencional no conceito formal; em geral, ele só enfatiza, no conceito formal, seu caráter, digamos assim, “psicológico”, isto é, enquanto ele seria um processo que se dá na alma ou nas almas, a saber, em cada alma individual em que esse conceito formal ocorra. Quanto à res, Suárez a entende como sendo tanto a própria coisa quanto o seu conceito objetivo (isto é, a coisa enquanto ela é conceitualmente apreendida). Já o que seja conformitas é entendido por ele por meio de seu

conceito de conotação (connotatio). Como já indiquei em outro lugar1, Suárez recorre a diversas doutrinas “menores” que, porém, são essenciais para que as DM possam se desenvolver com aparente coerência. Para a discussão da verdade das proposições, são particularmente importantes as doutrinas “menores” relativas ao conceito objetivo/ conceito formal, à denominatio extrinseca, às distinctiones, aos entia rationis e à connotatio. Essas doutrinas são apresentadas em diversas passagens de sua obra. Em geral, são discutidas a partir de algum problema específico e nunca chegam a receber um tratamento exaustivo. Apenas às distinctiones Suárez dedica uma disputação em separado, que, porém, interrompe a série das disputações sobre as passiones entis, ou seja, de um ponto de vista sistemático a doutrina das distinções está fora de lugar. Por sua vez, a doutrina da connotatio tem de ser reunida principalmente com base em diversas discussões desenvolvidas na disputação sobre a relatio. Já indiquei como as doutrinas da denominatio extrinseca e do conceito objetivo não chegam a ter a completude e a coerência que se poderia esperar numa obra em geral minuciosa como são as DM; porém, indiquei também que as contradições dessas doutrinas, a impossibilidade delas serem sistematizadas, é o que possibilita que as DM alcancem uma sistematicidade bem além do que se tinha visto até então na Escolástica. Um outro aspecto importante que cheguei a

1 Ver os quatro primeiros artigos deste livro.

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destacar foi como Suárez “hesita” (e essas doutrinas “menores” estão intimamente relacionadas a essas “hesitações”) em reconhecer uma dimensão semântico-intencional que seja autônoma frente ao ato mental e ao objeto intencionado. É exatamente essa hesitação de Suárez frente a como lidar com o semântico, de qual seja o seu “lugar”, que mais uma vez se apresenta na disputação sobre a verdade. Essa “hesitação” se expressa já na inclusão da discussão da verdade in cognoscendo na disputação que deveria versar apenas sobre a verdade enquanto passio entis (mas não são exatamente essas transgressões da sistematicidade, essa localização arbitrária do que não deveria ter um “lugar”, o que possibilita, nas DM, uma estrutura, em sua aparência, sistemática?). Essa “hesitação” deixa ainda seu rastro na forma cuidadosa como Suárez “busca evitar” qualquer referência clara ao que estou chamando de dimensão semântica quando ele propõe a sua definição de verdade.

...veritatem complexae cognitionis, seu compositionis et divisionis, seu judicii, quo judicamus aliquid esse hoc aut illud, vel non esse (haec enim omnia pro eodem sumimus), esse conformitatem judicii ad rem cognitam prout in se est, ex qua conformitate provenit ut res ipsa judicata dicatur ita esse in se, sicut judicata est [DM 8,1,3] ...a verdade do conhecimento complexo, ou da composição e divisão, ou do juízo, pelo que julgamos que algo é isto ou aquilo, ou não é (pois consideramos tudo isso como sendo o mesmo), é a conformidade do juízo com a coisa conhecida enquanto ela é em si, da qual conformidade provém que a própria coisa julgada seja dita ser em si tal como ela foi julgada.

Nessa passagem, Suárez está atribuindo ao juízo verdade (ou falsidade),

ou seja, ele está considerando que o juízo é o suporte da verdade ou da falsidade. Juízo (judicium) é entendido aqui como sendo o mesmo que conhecimento complexo (complexa cognitio) e composição/divisão (compositio/divisio). É, portanto, bem claro que Suárez não atribui aqui verdade ao conteúdo proposicional, mas ao ato mental, isto é, ao próprio intelecto.

Suárez não distingue entre o conceito formal enquanto conhecimento simples e o conceito formal enquanto uma composição de dois conceitos formais, isto é, enquanto uma proposição. Uma proposição é um conceito formal. Sua atenção se volta principalmente para a questão do juízo consumado ou suspenso. Sendo assim, a mesma “duplicidade”, que discuti em detalhe em

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um outro texto1, própria ao conceito formal suareziano que, ora é considerado como sendo meramente um ato mental e, portanto, como sendo uma qualidade que existiria “fisicamente” inerindo no intelecto, ora é considerado como algo semântico-intencional e, portanto, como algo autônomo em relação aos atos mentais individuais, consistindo, nesse segundo caso, num conteúdo semântico-intencional – e, assim, unitário e autônomo frente à multiplicidade dos atos mentais humanos – que possibilita que esses vários atos mentais alcancem através dele a coisa referenciada. Veremos que para Suárez a verdade, com efeito, não consiste na adequação entre o ato mental, enquanto algo “físico”, e a coisa conhecida, mas entre o ato mental composto enquanto algo semântico-intencional e a coisa intencionada. Quer dizer, Suárez virá a acrescentar algo que, digamos, “flexibilize” os suportes “físicos”, de modo que eles possam, através de uma instância semântico-intencional unitária atingir as coisas em sua pluralidade. Cabe notar que pus a palavra “físico” entre aspas, pois estou me referindo a algo que se dá, ou mesmo inere no que Suárez e a Escolástica entendem como sendo a alma; além do quê, Suárez considera que, embora o que ele entende como sendo a alma não seja algo material, a alma é algo que existe na natureza e, assim, põe o estudo da alma e de suas funções como parte da Física, de modo que convém dizer que os acidentes da alma – e assim o conceito formal – seriam coisas que, digamos, “fisicamente” inerem na alma, ainda que, de maneira alguma, sejam coisas materiais. Ao longo da Disputação 8, pode-se encontrar duas séries de sinônimos: 1. compositio, judicium, complexa cognitio, propositio in mente ultimata (= proposição cujo juízo foi consumado) e propositio ultimata (esta é apenas uma forma resumida da expressão anterior); 2. compositio, propositio in mente non ultimata (proposição cujo juízo não foi consumado, cujo juízo se mantém suspenso) e propositio non ultimata (também uma forma resumida da expressão anterior). À série 1 pode ser atribuída verdade no conhecer (in cognoscendo) e à série 2, apenas verdade no significar (in significando). Estabelecer qual seja a relação entre as séries 1 e 2 é uma questão que requer uma certa atenção pois o ato do juízo não é tido por Suárez como sendo um ato diferente do ato da composição, ou seja, o ato do juízo não é um ato que se soma ao ato da composição. A propositio non ultimata não é, portanto, o objeto do juízo. O ato judicativo verdadeiro é um ato que se volta tanto para as coisas

conhecidas (para as coisas que compõem o estado de coisas2), mas também – e

1 O já referido ‘Conceito Objetivo, Denominação Extrínseca e Entia Rationis em Francisco Suárez (1548 - 1617)’ 2 O que está aqui em questão é a “duplicidade” do conceito objetivo que é, ora a coisa, ora a coisa enquanto conhecida ou denotada. Tal como Suárez não problematiza se o conceito formal simples e o conceito formal composto enquanto proposição são duas

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no mesmo momento – para o seu próprio ato de conhecer as coisas assentido que o que ele conhece é o que as coisas são em si mesmas. Trata-se aqui da distinção fundamental entre reflexividade in actu exercito e in actu significato (ou, o que – abreviando a palavra ao retirar algumas letras – é a mesma coisa, in actu signato). Essa distinção Suárez expõe já no prooemium da Disputação 8.

Um ato mental tem uma reflexividade in actu exercito quando ele no mesmo momento que conhece uma coisa se volta para o seu próprio ato de estar conhecendo a coisa. Um ato mental tem uma reflexividade in actu significato (ou, o que é o mesmo, in actu signato) quando ele toma por objeto um outro ato mental. Recorramos ao exemplo da proposição “Pedro é branco” (Petrus est albus). A proposição “Pedro é branco” é verdadeira ao estar afirmando, no mesmo gesto, que Pedro é branco e que é verdadeiro que Pedro é branco; a própria enunciação “Pedro é branco” é já a afirmação de sua própria verdade. Assim, “Pedro é branco” é verdadeiro in actu exercito, ou seja, o próprio ato que afirma que Pedro é branco afirma, no mesmo ato, que Pedro ser branco é verdadeiro. Porém, a proposição “É verdadeiro que Pedro é branco” (Petrus esse branco est verum) é uma proposição verdadeira in actu exercito que afirma in actu significato que a proposição “Pedro é branco” é verdadeira. Seria como se “É verdadeiro que Pedro é branco” (Petrum esse album est verum) tivesse por objeto a proposição “Pedro é branco” (Petrum esse album) e não o estado de coisas extra-mental, que seria o fato de Pedro ser branco, ao qual “Pedro é branco” se refere. Contudo, todo o problema parece passar por se aceitar ou não uma distinção entre um fato real e independente da percepção mental (no caso um “Pedro ser branco” que seria um estado de coisas – seja lá o que um “estado de coisas” possa ontologicamente ser – no mundo real) e um evento também ontologicamente dúbio (um “Pedro ser branco” que seria um ato mental, ou um conteúdo proposicional tanto independente da mente como destituído de realidade extra-mental). Retomemos, agora, a questão da relação do juízo com a coisa ou com o estado de coisas ao qual ele se refere:

Quare dicendum proprium judicium esse adhaesionem potentiae [sc. da potência intelectiva] ad rem cognitam per actum [sc. pelo ato mental, isto é, pelo conceito formal] ab ipsa elicitum, quocirca res ante apprehensas versatur. Ad cujus intelligentiam notandum est primo tale judicium solum reperiri in divisione et compositine, quoniam non versatur circa rem nude, ac simplici modo, sed circa rem ita esse, vel

coisas diversas ou não, ele também não problematiza se o correlato do conceito formal (da denominatio extrinseca do conceito formal) é diverso quando o conceito formal é simples e quando é composto.

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non esse, quod absque compositione mentali non contingit. [De anima, lib.3, c.6, n.4; vol. 3 p. 673b - o grifo é meu] Por isso pode-se dizer que o próprio juízo é a aplicação da potência intelectiva à coisa conhecida pelo ato mental proveniente dela; esse ato, portanto, diz respeito às coisas apreendidas anteriormente. Para a compreensão disso, há que se notar primeiramente que tal juízo só pode ser encontrado na divisão e composição, pois não diz respeito à coisa nua, por um modo simples, mas à coisa assim como ela é ou não é, o que não se dá sem composição mental.

Chega-se, pois, a um juízo por meio de um ato mental que estabelece uma composição mental através da qual o intelecto se volta para a coisa enquanto ela é de tal ou qual modo (rem ita esse). A coisa que é de tal ou qual modo (rem ita esse) não é a coisa por si só (rem nude), mas a coisa enquanto ela se dá num estado de coisas. Alguém poderia pôr aqui a questão de se a frase em acusativo com infinito rem ita esse não diz respeito ao conteúdo do ato judicativo enquanto esse conteúdo é um conteúdo proposicional autônomo tanto frente à

coisa referenciada quanto ao ato mental “físico” tal como o Gedanke de Frege1. Certamente, não é isso que Suárez propõe aqui ou em qualquer outro lugar. Ele nunca admite com clareza um conteúdo semântico autônomo quer para a proposição quer para o conceito simples. O que já indiquei em outro lugar é que ele “evita” reconhecer uma dimensão semântica, embora a deixe funcionar; a sua doutrina da denominatio extrinseca é, p. ex., uma forma de deixar funcionar uma semântica basicamente autônoma. Um exemplo é que, nas DM, podem ocorrer denominationes extrinsecae independentemente de atos

mentais como é o caso do habitus enquanto décimo predicamento2. (Contudo, é importante lembrar que “deixar funcionar” é bem diferente, digamos, “funciona” em um sistema de metafísica de um modo bem diferente do que quando ocorrem contradições gritantes num texto; é porque nas DM o texto “oscila” entre um afirmar o conceito formal como um suporte “físico” e “deixar funcionar” uma dimensão semântica que temos de empreender uma leitura que

1 Em vários comentaristas da filosofia medieval e escolástica (em especial cf. Hickman), é um lugar comum comparar a discussão semântica escolástica com conceitos de Frege e Bolzano. É só na medida em que aceito dialogar com esses comentaristas que também o faço. Se em algum momento eu tivesse a intenção de proceder uma comparação conseqüente e realmente produtiva com a Filosofia Analítica, eu o faria de um modo totalmente diverso e a partir de autores mais recentes. 2 Cf. Rios ‘Conceito Objetivo, Denominação Extrínseca e Entia Rationis em Francisco Suárez (1548 - 1617)’

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cuidadosamente mostre como se dá tanto esse funcionamento ambíguo do texto suareziano quanto os dispositivos que turvam essa ambigüidade.) Em todo caso, o que pudemos ver, na passagem acima, é que Suárez se expressa sobre o rem ita esse de um modo reticente. Se na Disputação 2 ele deixa claro que o conceito formal corresponde junto à coisa a um conceito objetivo, não há em nenhum lugar em suas obras uma expressão especial para designar aquilo que, junto às coisas, corresponderia à composição de dois conceitos formais. Na Disputação 8, Suárez parece, nesse caso, usar, ou ao menos aceitar, a expressão conceptus

objectivus1. Contudo, há em Suárez também passagens em que ele afirma claramente que o juízo diz respeito diretamente à coisa referida, que o juízo alcança a coisa em si (rem, sicut in se est). Ou seja, a frase em acusativo com infinito rem ita esse não é usada para destacar o significado de uma proposição enquanto algo autônomo tal como para Gregório de Rimini, mas antes para indicar que o juízo não se detém em nenhum intermediário indo às coisas por ele referidas, sem que isso esteja sendo expresso com uma terminologia fixa. Não me parece, porém, que eu esteja forçando o texto se concluir que essa frase em acusativo com infinito está pelo conceito objetivo enquanto ele corresponde à composição de dois conceitos formais; composição com a qual o juízo se constitui. Não é sem importância destacar que a frase em acusativo com infinito tem ainda em Suárez um segundo significado. Ela pode indicar o resultado de um ato cognitivo reflexivo; nesse caso, ela designa um ens rationis. Em DM 54,2,13, Suárez expõe dois significados de esse cognitum: 1. O esse cognitum seria a própria coisa conhecida (esse cognitum = objeto conhecido). 2. O esse cognitum seria o ser que é acrescido à coisa no que ela é conhecida; nesse caso, o esse cognitum é o mesmo que o “estar sendo conhecido da coisa” enquanto é visada reflexivamente pelo conhecimento e ficcionalmente coisificada como um ens rationis. No primeiro caso, trata-se do estar conhecendo a própria coisa (real ou imaginária). No segundo caso, trata-se de um conhecimento reflexivo que atribui à coisa, devido a essa reflexividade que é uma reflexividade in actu significato, um ser ficcional tal como se o estar sendo conhecida fosse uma qualidade que aderisse à essa coisa. Ou seja, a frase em acusativo com infinito está, ou pelo conceito objetivo correspondente à composição de dois conceitos

1 Esse uso pode ser visto numa passagem na qual Suárez está relatando a posição de Durandus: “...conformitatem conceptus objectivi intellectus enuntiantis ad rem esse reale ejus” [DM 8,1,1]. Há ainda uma outra passagem: “Sed ipsi [sc. Hervaeus e, novamente, Durandus] declarant per conceptum objectivum quod nos per formalem; tamen quia conceptus objectivus nihil praeter rem addit, nisi denominationem termini conceptus formalis, ideo non recte explicatur conformitas inter rem et conceptum objectivum, sed inter rem potius et conceptum formalem seu ideam” [DM 8,7,25].

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formais, ou pelo ens rationis resultante da ficcionalização desse conceito objetivo como sendo algo autônomo. Há uma passagem em que fica bem claro o uso da frase em acusativo com infinito no primeiro sentido. Trata-se de uma discussão da frase rem esse amatam:

Sicut quando intellectus cognoscit rem esse amatam, est quidem illud, esse amatum, objective in intellectu, non tamen hoc est totum esse illius, ut ea ratione dicatur esse tantum objective in intellectu, nam in re ipsa talis actus amoris tendit et terminatur ad talem rem, et hoc ipsum est rem illam esse amatam. [DM 54,2,13] Por exemplo, quando o intelecto conhece que “esta coisa é amada”, certamente esse “ser amado” é objetivamente no intelecto; porém, ser objetivamente no intelecto não é todo o ser que o “esta coisa ser amada” tem, tal como se diz que, por se tratar de algo que é objetivamente no intelecto, o “esta coisa ser amada” é somente objetivamente no intelecto; pois, na realidade [in re ipsa], o ato de amar se estende até essa coisa e nela termina; nessa coisa, isso [o terminar do ato de amar] é o “esta coisa ser amada”.

O conhecimento, isto é, a frase “a coisa é amada” diz respeito tanto a uma ação que se refere a uma certa coisa quanto à própria coisa que é; mas certamente não apenas a uma entidade que seria o conteúdo semântico dessa frase. Visar o conteúdo semântico seria ficcionalizar esse conteúdo semântico

como autônomo, seria reificá-lo, seria criar um ens rationis (um ente fictício)1.

1 A continuação da passagem do De anima acima citada é mais um exemplo de que Suárez entende o sentido de uma proposição levando em conta principalmente o seu suporte “físico” e nunca como se o sentido fosse algo de autônomo que se mantivesse independentemente dele (embora Suárez, em meio a essas suas peremptórias recusas de uma dimensão semântica autônoma, a deixe, em certa medida, funcionar em sua metafísica). Suárez escreve algumas linhas mais abaixo: “Praeterea si postquam quis formavit propositionem <sc. mentalem>, alium distinctum actum elicit, quo judicat ita esse, vel non esse actus, ille erit sane pronuntiare intellectualiter propositionem <sc. mentalem> esse veram, vel falsam, non est autem necessarium, ut eo modo, id est, in actu signato, intellectus judicet talem propositionem <sc. mentalem> esse veram, quia jam novam propositionem <sc. mentalem>, de qua iterum esset judicandum, an vera esset, quod tamen experientia reprobat: ergo judicium nihil est aliud, quam cognoscere hoc ita esse, qui actus a compositione, vel divisione mentali non est distinctus” (De anima, lib.3, cf.6, n.4; vol. 3 p. 638a – o grifo é meu). Pode-se ver facilmente que o “hoc ita esse” não deve ser compreendido como uma frase em acusativo com infinito no

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O que estive mostrando é que Suárez não diferencia entre (A) o ato judicativo mental, (B) o conteúdo proposicional autônomo e (C) as coisas, mas entre (1) o ato mental enquanto qualidade na alma (enquanto algo “físico”), (2) a compositio enquanto ato mental que denota/conhece a(s) coisa(s), (3) o conceito objetivo enquanto o estar sendo denotado/conhecido das coisas e (4) as coisas em si. Suárez não aceita B e põe B para funcionar sob a forma de 2 + 3. A dificuldade, porém, está em 2 e 3 não formarem propriamente um todo autônomo, mas tanto 2 quanto 3 funcionarem, nas DM, em associações diferentes; com efeito, o conceito formal diz respeito tanto a 1 quanto a 2; e o conceito objetivo diz respeito a 2 + 3 e, ainda, a 4. Há, portanto, uma certa “confusão” no que sejam as partes que constituem a compositio e o que corresponde à compositio. Essa “confusão”, porém, – já mostrei isso em um outro lugar – não é algo que poderia ser melhor esclarecido, antes essa “confusão” não pode ser esclarecida porque é ela que possibilita a teoria da verdade suareziana.

O que ainda tem de ser discutido é o que seja a conformitas. Essa conformidade não consiste numa mera semelhança, isto é, numa semelhança externa, não intencional, enfim, numa semelhança que não seria senão uma imagem copiada e passiva da coisa conhecida na alma; uma mera imagem na alma teria sempre semelhanças com várias outras coisas enquanto o importante

é que ela seja ou não semelhante com uma tal coisa intencionada1. Há dois pontos que Suárez não aceita: (i) Que a verdade seja entendida a partir das relações de semelhança, ou seja, que ela seja entendida a partir de uma relação predicamental atual de semelhança. (ii) Que só se atribua à compositio o papel de ser uma imagem copiada e meramente passiva que não se reflete sobre si in actu exercito. Em Suárez, a repraesentatio intentionales (outro nome que ele usa para compositio etc.) desempenha uma tarefa dupla, a saber, dirigir-se diretamente para a coisa e, no mesmo momento, dirigir-se para si mesma in actu exercito. A representação intencional não é meramente comparada com a coisa, mas ela se compara a si mesma com a coisa no que ela cognoscitivamente a alcança, isto é, no que ela chega até a coisa em si mesma (rem, sicut in se est):

segundo caso (“...pronuntiare intelectualiter propositionem <sc. mentalem> esse veram”); a frase em acusativo com infinito no segundo caso surge a partir de um segundo ato mental, a saber, de um ato mental que visa um ato judicativo anterior. 1 DM 8,1,6: “...hanc conformitatem cognitionis, quam veritatem ejus esse dicimus, non consistere in similitudine entitatum, ut per se notum est; neque etiam in similitudine formalis imaginis, seu talis repraesentationis, qualis est in formali imagine, quia haec non est similitudine in aliqua entitate, seu forma reali, quae non est necessaria ad cognitionem...” Discutirei mais abaixo por que a verdade não consiste numa relação (relatio) de semelhança.

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Consistit [sc. a conformitas cognitionis, isto é, a conformidade da verdade] ergo in quadam repraesentatione intentionali, qua, scilicet, fit ut intellectus per actum, vel judicium ita percipiat rem, sicut in se est [DM 8,1,6]

A conformidade própria à verdade consiste em uma certa representação intencional pela qual, a saber, o intelecto pelo ato judicativo vem a perceber a coisa tal como ela é em si.

A representação intencional é, portanto, propriamente falando, o suporte da verdade. O suporte da verdade não é uma imagem passiva afixada na alma, mas algo de intencional, a saber, algo que tem uma reflexividade intencional in actu exercito dirigida ao seu próprio ato. Essa reflexividade intencional é – se considerada ontologicamente – o que Suárez em DM 8,2,9 chama de connotatio. A expressão rem, sicut in se est pode causar, porém, um certo incomodo. De fato, não são raras na Disputação 8 expressões como in se, prout in se est

etc1. À parte uma expressão como “coisa em si” (rem... in se...) nos transportar diretamente para Kant e seus temas, há sem dúvida em Suárez toda uma duplicidade ou “confusão” própria ao seu uso do conceito objetivo que, ora é entendido como a própria coisa (in se), ora como a coisa enquanto é denotada ou conhecida. A conformidade pode, pois, tanto ser entendida como uma conformidade entre a representação intencional, isto é, entre a composição judicativa de conceitos formais, e a coisa em si, quanto entre tal composição e o conceito objetivo correspondente. É nessa duplicidade que está toda a questão da verdade. É porque se pode conhecer a coisa nela mesma que se pode chegar a um conhecimento verdadeiro, mas é porque esse conhecimento é passível de não atingir a coisa em si que também se pode errar. O juízo verdadeiro seria o que atinge a coisa e julga que a está atingindo; no entanto, o juízo só se ocupa em julgar se ele está de fato atingindo a coisa, pois – como é pressuposto – ele pode não a estar atingindo, ou seja, ele também julga para afastar a possibilidade do erro; porém, a repetida necessidade de julgar é também a afirmação da sempre renovada possibilidade do erro. De certo modo, assim eu diria, é porque a visada intencional sempre desconfia dela própria que ela é levada a julgar. O juízo, que busca o banimento do erro, é, ao mesmo tempo, a confirmação da impossibilidade de afastá-lo. É porque queremos nos assegurar de que estamos conhecendo as coisas em si mesmas que julgamos, mas é também porque nunca conhecemos totalmente as coisas em si mesmas que julgamos. O erro é a condição de possibilidade do juízo; o juízo visa erradicá-lo,

1 Cf. DM 8,1,3-6 e DM 8,3,17.

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mas destruiria a si próprio se o fizesse. O conceito objetivo é, tanto a possibilidade de haver conhecimento da coisa em si, quanto a indicação de que o conhecimento das coisas é sempre um conhecimento parcial e limitado a um certo ponto de vista. Fala-se em verdade porque se está sempre atado a um certo ponto de vista; a verdade absoluta seria a universalização do ponto de vista; seria falar de um modo absoluto, de um ponto de vista que englobasse todos os pontos de vista; se bem que, se fosse possível alcançar uma posição que incluísse todos os pontos de vista, então não seria necessário julgar, isto é, ou se teria todos os pontos de vista, ou não se teria nenhum ponto de vista válido. As teorias tradicionais da verdade costumam não ser mais do que a contraditória aceitação de que, ao mesmo tempo, tanto há verdades parciais quanto não há senão uma verdade total. II - A DISPUTAÇÃO 8 SOBRE A VERDADE (SEÇÕES 1 E 2) Na seção 1 da Disputação 8 sobre a verdade, Suárez contesta a posição de

Durandus1 de que a verdade consiste em uma conformidade entre o conceito objetivo e a coisa. Ele argumenta citando a passagem de Aristóteles: ex eo quod res est vel non est, proprositio vera vel falsa est (“em vista de que a coisa é ou não é, a proposição é verdadeira ou falsa”)e reivindica o que Tomás de Aquino, em relação a essa passagem, propõe, a saber, que uma enunciação é verdadeira não porque a coisa é verdadeira, mas porque a coisa é. O que Suárez pretende com esse argumento é indicar que, se a verdade fosse a conformidade do conceito objetivo com a coisa, uma vez que o conceito objetivo é a própria coisa, então a verdade teria de ser entendida como a conformidade de uma coisa com a

própria coisa e não dela com o intelecto2.

1 Trata-se da mesma posição de Vázquez tal como fica evidenciado pela citação em Elorduy “El concepto...” p. 346: “Posterior sententia mihi probatur, quam tradit Durandus in 1, dist. 19, q.5, n.13, videlicet veritatem primarie esse convenientiam conceptus, non formalis, sed objectivi cum re ipsa, prout est extra; ita ut sit conformatio eiusdem rei cum seipsa sub diverso modo... Porro convenientiam primarie convenire rei, prout est objective in intellectu, sic probatur. Intellectus non dicitur, cum rebus ipsis sua intellectione conformari ex eo, quod sua intellectio sic se habeat ad ipsum, in quo est, ut subjecto, sicut res in intellectu se habet ad suum esse reale, hoc enim est manifeste falsum, sed ex eo, quod res ita intellectione repraesentatur, sicut ipsa est: ergo id, in quo proxime uniuntur, et conveniunt intellectus, et res secundum se, est ipsamet res cognitione objective repraesentata: illa igitur est, cui primarie inest convenientia, et veritas.” 2 Evidentemente que há ao longo de todo esse debate sobre a verdade discordâncias que podem ser mais terminológicas que conceituais. Nem Durandus nem Vázquez entendem com conceptus objectivus o mesmo que Suárez. Com efeito, em DM 8,7,25 – citado em nota acima – o próprio Suárez se mostra perfeitamente consciente de tais discrepâncias terminológicas. Contudo, seria impossível desintrincar todos os mal-

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O segundo argumento contra Durandus é semelhante. A verdade in significando de uma proposição falada consiste não na conformidade da coisa enquanto intencionada/conhecida com ela mesma enquanto existente, mas na conformidade da palavra falada (vox significans) com a coisa. Do mesmo modo, não se diz de uma imagem que representa Pedro que ela é verdadeira porque Pedro, na medida em que ele corresponde a essa imagem, está em conformidade a si mesmo enquanto existente, mas porque a imagem é conforme à coisa (isto é, a Pedro). O terceiro argumento de Suárez é o seguinte: a uma coisa que está sendo vista, na medida em que está sendo vista, não se está acrescentando nada, pois a denominatio extrinseca, que é o estar sendo vista, não é nada que onticamente esteja sendo acrescentado a essa coisa, ou seja, não pode haver entre a coisa enquanto está sendo vista (o “estar sendo vista” da coisa) e a própria coisa nenhuma conformidade, pois o que há é uma total identidade. O quarto argumento consiste em dois, digamos assim, sub-argumentos. O primeiro deles recorre à questão dos futuros contingentes:

...quia saepe res nullum habet esse in se, quod sit esse existentiae exercitum, praeter esse quod habet intellectui objectum; quomodo Deus habet veram cognitionem eorum quae nunquam futura sunt, sive cognoscuntur ut possibilia tantum, sive ut ea quae futura fuisset, si hoc vel illud accideret; in his autem objectis non potest facile excogitari conformitas rei ut objectae intellectui, ad seipsam ut in se, quia nullum aliud esse habet in se, praeter illud quod objicitur intellectui. [DM 8,1,5] ...porque freqüentemente a coisa não tem nenhum ser em si que seja o ser da existência atual para além do ser que é objetivamente para o intelecto, tal como Deus tem o conhecimento verdadeiro das coisas que nunca serão no futuro

entendidos terminológicos que pululam em cada confronto crítico. Meu objetivo é esclarecer o texto de Suárez e, assim, expor as contradições e silêncios, bem como as “hesitações” e “duplicidades”, entretecidas em suas argumentações. Não tenho dúvida de que seus opositores, no que buscam apresentar suas doutrinas com coerência, incorrem em semelhantes “silêncios” e duplicidades”. Na verdade, escolhi analisar o texto de Suárez exatamente porque é o escolástico que, a meu ver, com mais constância, profundidade e minúcia buscou responder ou, ao menos, trabalhar as, por assim dizer, “pequenas aporias” que eivam grandes doutrinas e imponentes projetos sistematizantes. Daí meu especial apreço por essas suas tantas doutrinas “menores” que, ainda que com discrição ou timidez, quase anonimamente, surgem e eclipsam-se onde detalhes sub-reptícios parecem pôr em risco a solidez dos grandiosos temas metafísico-teológicos.

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enquanto elas são apenas possíveis ou enquanto elas teriam sido futuras se isto ou aquilo tivesse acontecido. Nessas coisas, que são somente objetivamente, não se pode pensar facilmente na conformidade da coisa enquanto ela é apenas objetivamente no intelecto com ela mesma enquanto é em si mesma, pois ela não tem nenhum outro ser em si mesma para além daquele que é objetivamente no intelecto.

A concepção de Durandus de que a verdade consiste na adequação entre o conceito objetivo e a coisa não é aplicável às proposições acerca de acontecimentos futuros, sobretudo às proposições acerca de contrafactuais, isto é, acerca de proposições que afirmam de forma condicional como um acontecimento, dadas certas circunstâncias, ocorreria mas que nunca ocorrerá pois as tais circunstâncias nunca se darão. Essas proposições são constituídas por dois conceitos formais cuja composição correlata de conceitos objetivos só existe objetivamente no intelecto, isto é, enquanto o intelecto entende a proposição. As coisas denotadas por uma tal proposição não existem agora atualmente nem existirão atualmente nunca, elas não são nada além de seus conceitos objetivos; logo, os conceitos objetivos não têm nada com o que se adequar. Porém, aceita-se que as proposições acerca de futuros contingentes são verdadeiras ou falsas, que Deus conhece sua verdade ou falsidade, ou seja, há que se buscar uma definição de verdade que dê conta de explicar a possibilidade de verdade dessas proposições. O segundo, por assim dizer, sub-argumento que compõe o quarto argumento é um argumento filosófico e não teológico, embora recorra ao conceito de visio beatifica. Suárez indica que no conhecimento intuitivo, isto é, no conhecimento não proposicional que consiste em conhecer diretamente a coisa na medida em que ela existe, e mais especificamente no conhecimento intuitivo que é a visio beatifica de Deus (a contemplação beatificante que o santo tem da própria essência divina e que necessariamente é um conhecimento verdadeiro) não pode ser entendida como sendo a conformidade de Deus, enquanto está sendo visto, e Deus ele próprio pois na visão beatífica é o próprio Deus que está sendo visto (senão não seria uma visio beatifica). O que se passa é que o intuir Deus não é senão uma denominatio extrinseca, a saber, a denominação extrínseca de que Deus está sendo visto, e a denominação extrínseca só se distingue do objeto denominado ratione, isto é, segundo a atividade do intelecto; a dificuldade está em que muitas vezes pensamos reflexivamente in acto signato sobre o que estamos conhecendo e, com isso, produzimos um ens rationis; nesse caso, tendemos a produzir um ens rationis tal como se o estar-sendo-conhecido de uma coisa fosse algo que aderisse à coisa. O estar-sendo-conhecido de uma coisa é o mesmo que a coisa, o estar-

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sendo-conhecido é apenas uma denominação extrínseca, a saber, a denominação extrínseca de que a coisa está sendo conhecida. A denominação extrínseca não muda ontologicamente a coisa; não acrescenta nada a ela, e, não sendo nada, não é nada de diferente dela. O que torna difícil a compreensão desse segundo sub-argumento do quarto argumento é Suárez recorrer ao exemplo da visio beatifica. Ele o faz para exagerar o seu argumento. A visio beatifica, ou é a visão de Deus ele mesmo, ou não é uma visão beatificante; ela não pode ser a visão de um phantasma (isto é, de uma species sensata ou, o que

é mais um sinônimo, de uma species interior)1. Mas isso se aplica também a qualquer coisa pois, ou há o conhecimento da coisa fora da mente (ou melhor, fora da alma) que se está conhecendo, ou só se está conhecendo phantasmata. O conceito objetivo tem que ser a própria coisa conhecida. Observemos agora o quarto argumento como um todo. O seu primeiro sub-argumento refere-se a coisas que não são nem nunca serão, mas que podem ser, ou seja, que são meras possibilidades. A possibilidade não é em si nada. A compreensão de que algo pode ser não faz como que esse algo seja atualmente: ora, esse algo não é nada, de modo que o conceito objetivo desse algo também não é nada além do que esse algo é. Para Suárez, porém, o mais importante é frisar que esse algo possível não é nada além do que é o conceito objetivo. O que temos aqui é uma face da duplicidade, pois o conceito objetivo de algo que não é é tão nada quanto esse algo que não é, mas Suárez deixa que se compreenda que ele é algo mais, algo de minimamente mais. Porém, se é algo a mais, e se o algo que é conhecido não é nada e o conceito não tem senão a mesma realidade disso que é conhecido, então – se Suárez está deixando que se entenda que o conceito objetivo tem algo a mais – o que ele está valorizando como sendo ontologicamente a mais é o conteúdo semântico-intencional do ato mental de conhecer. Em contrapartida, é a outra face da duplicidade do conceito objetivo que é trabalhada no segundo sub-argumento quando Suárez desvaloriza ontologicamente o conteúdo semântico intencional do ato cognoscitivo. A conclusão que podemos tirar do quarto argumento é que a posição de Durandus é – ao menos na terminologia e, portanto, no ponto de vista de Suárez – duplamente indefensável. É indefensável, quer se dê mais autonomia ao conceito objetivo (pois há conceitos objetivos que são toda a realidade da coisa conhecida), quer se dê menos autonomia ao conceito objetivo (pois, afinal, o conceito objetivo é o mesmo que a coisa); de um modo ou de outro fica faltando um dos termos a ser adequado com o outro. Concluindo essa sectio 1, Suárez retorna à questão de que a conformidade não consiste em uma relação de semelhança, isto é, não é necessário que haja

1 Sobre a teoria do conhecimento em Suárez ver, mais acima neste livro, ‘Racionalidade Substancial e Racionalidade Acidental em Francisco Suárez’.

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uma relação predicamental de semelhança1 para que haja verdade in cognoscendo. O que Suárez põe como sendo essencial é a intencionalidade do ato do intelecto:

Consistit [sc. a verdade no conhecer] ergo in quadam repraesentatione intentionali, qua, scilicet, fit ut intellectus per actum, vel judicium ita percipiat rem, sicut in se est. [DM 8,1,6] A verdade no conhecer consiste, portanto, numa certa representação intencional pela qual o intelecto pelo seu ato ou juízo perceba a coisa tal como ela é em si [rem ut in se est].

A verdade, isto é, a conformidade consiste em uma representação intencional. Essa representação intencional é a apreensão pelo intelecto que julga sobre a coisa em si, mas a coisa está aqui como correspondendo a uma compositio, ou seja, está por um estado de coisas. Essa conformidade (que é uma conformidade intencional) é proveniente da comparação entre o próprio conhecimento ou do juízo (cognitio ipsa, seu judicium) com a própria coisa (DM 1,1,6). Ainda sobre essa comparação da qual a conformidade surge, Suárez acrescenta:

Sicut ergo in compositione cognoscitur haec conformitas, ita in divisione cognoscitur difformitas seu disconvenientia eorum objectivorum conceptuum, quorum unus de altero negatur, et consequenter in actu exercito cognoscitur difformitas inter

1 DM 8,1,6: “Ad argumentum autem Durandi respondetur, hanc conformitatem cognitionis, quam veritatem ejus esse dicimus, non consistere in similitudine entitatum, ut per se notum est; neque etiam in similitudine formalis imaginis, seu talis repraesentationis, qualis est in formali imagine, quia haec non est sine similitudine in aliqua entitate, seu forma reali, quae non est necessaria ad cognitionem, ut latius dicendum est”. Quando Suárez fala aqui: “non consistit in similitudine entitatum”, ele está dizendo: “Essa conformidade não consiste numa relação predicamental de semelhança”. Quando Suárez fala: “neque etiam in similitudine formalis imaginis”, ele está dizendo – assim eu interpreto essa passagem –, que a verdade não consiste em qualquer semelhança, p. ex., quando eu penso que João tem dois metros de altura, mas confundo João com seu irmão gêmeo, é falso o que estou pensando, embora o irmão gêmeo de João tenha exatamente a mesma altura e eu tenha formalmente a mesma imagem na alma. Sendo assim, fica claro que, para além da semelhança, é essencial para a verdade in cognoscendo que haja a intencionalidade. Quando Suárez fala: “ut alibi latius dicendum est”, ele está se referindo à sectio seguinte, na qual ele argumenta que a conformidade da verdade não é essencialmente uma relação predicamental mas uma connotatio. O que se pode ainda concluir dessa passagem é que a conotação na qual a verdade consiste é uma conotação bem específica, a saber, é uma conotação que se deve à intencionalidade do intelecto.

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formales conceptus illorum objectorum, et virtute etiam cognoscitur conformitas, quam unusquisque eorum conceptuum [sc. formalium] habet cum suo objecto. [DM 8,6,3] Assim como conhece-se na composição a conformidade, do mesmo modo conhece-se na divisão a discordância ou discrepância de seus conceitos objetivos, dos quais um é negado do outro e, conseqüentemente, conhece-se “ao se voltar sobre o próprio ato durante a realização desse ato” [sc. in actu exercito] a discordância entre os conceitos formais desses conceitos objetivos; assim também conhece-se a conformidade que cada um desses conceitos [sc. formais] tem com o seu objeto.

Trata-se, portanto, de uma comparação, tanto entre dois conceitos objetivos, quanto entre os dois conceitos formais aos quais eles correspondem; porém, o assentimento dessa comparação é também o assentimento de que a representação intencional (isto é, a composição dos dois conceitos formais) é conforme aos objetos. Esse assentimento não diz respeito, porém, em última instância, ao ato mental enquanto algo de “físico”, isto é, enquanto uma qualidade inerindo na alma, mas à sua dimensão semântico-intencional. Se há momentos em que Suárez “evita” dar destaque ao que seria uma dimensão semântica autônoma, há também momentos como esse em que ele não se esquiva de deixar aparecer o semântico-intencional separado do “físico”. Aqui o conceito formal, ou antes, a composição de dois conceitos formais, é vista em sua duplicidade, tanto com a sua face física, quanto com a sua face semântica (essa última é o que seria propriamente a proposição e que é, para Suárez, o suporte da verdade ou da falsidade). No trecho que cito a seguir, Suárez está comentando uma conhecida passagem de Tomás Aquino (veritatem pertinere ad id, quod intellectus dici, non ad operationem qua id dicit – “a verdade diz respeito àquilo que o intelecto diz e não à operação pela qual ele o diz” – SCG 1 c. 59) sobre a questão da verdade:

Sensus [sc. o sentido da passagem de Tomás de Aquino que acabou de ser citada] enim est veritatem non pertinere ad illam operationem, quasi materialiter sumptam, ut est

qualitas quaedam spiritualis, sed formaliter, quatenus refert intellectui rem quae per illam dicitur, seu quatenus in esse repraesentativo continet rem cognitam. [DM 8,6,3 – o sublinhado é meu]

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O sentido da afirmação de Tomás de Aquino é que a verdade não pode ser atribuída à operação [sc. do intelecto, isto é, ao ato mental] enquanto ela é considerada materialmente, isto é, enquanto ela é uma qualidade na alma [sc. enquanto ela é algo “físico” na alma], mas apenas enquanto ela é considerada formalmente, isto é, enquanto ela apresenta para o intelecto a coisa que é dita ou, em outras palavras, enquanto o intelecto retém a coisa conhecida no seu ser

representativo1. Apesar de toda a reserva de Suárez em destacar entre o conceito formal enquanto algo de físico e o conceito objetivo enquanto algo redutível inteiramente ao objeto conhecido uma – por assim dizer – dimensão semântica, seu texto não cessa de retornar à questão de que o suporte da verdade não pode ser reduzido nem ao ato mental físico nem às coisas conhecidas. A conclusão da sectio 1, como estamos acabando de ver, é a de que a verdade consiste numa conformidade e que essa conformidade diz respeito a um conteúdo semântico-intencional; contudo, não há em Suárez uma discussão específica sobre os conteúdos semântico-intencionais, antes há uma repetida tentativa de reduzir esses conteúdos a algo de físico. Por isso é, de certo modo, dramática a sectio 2 Quid sit veritas cognitionis, pois o que está em questão nessa sectio é o que é ontologicamente a verdade no conhecer, ou seja, o que é – ou não é – acrescentado de ontologicamente positivo a uma proposição mental se essa proposição mental é considerada verdadeira? Nessa sectio, Suárez percorre cinco pontos. Nos três primeiros pontos, ele fala do que a verdade in cognoscendo não é. Apenas nos dois últimos pontos, ele expõe, de um modo positivo, qual é a sua opinião. Resumo a seguir os cinco pontos que Suárez discute na sectio 2: Primeiro ponto: A verdade, que como acabamos de ver diz respeito a uma dimensão semântico-intencional (repraesentatio intentionalis; formaliter; in esse repraesentativo), não acrescenta nenhuma coisa nem nenhum modo

1 A expressão in esse repraesentativo não é a mesma coisa que o esse objective. Nesse contexto, é claro que in esse repraesentativo é o mesmo que a dimensão semântico-intencional pela qual o objeto é conhecido, isto é, pela qual o objeto é denominado extrinsecamente, ou seja, pela qual surge o conceito objetivo. Nesse trecho, Suárez está concentrando toda a dimensão semântica no conceito formal, isto é, na face não-física do conceito formal. Como indiquei no meu artigo ‘Conceito Objetivo, Denominação Extrínseca e Entia Rationis em Francisco Suárez (1548 - 1617)’, quando Suárez concentra o semântico no conceito formal, ele tende a destituir o conceito objetivo de sua face semântica; quando ele concentra o semântico no conceito objetivo, ele tende a destituir o conceito formal de sua face semântica.

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intrínseco ao ato mental1. O interessante nessa passagem em DM 8,2,6 é que Suárez não dá destaque algum à intencionalidade; ele fala apenas de actus. Se há pouco ele deixava a dimensão semântica aparecer, agora ele a dissimula. A argumentação de Suárez pode ser compreendida do seguinte modo. A verdade não é, nem algo positivo que persiste por si só, nem algo que é acrescentado ao ato do intelecto, nem algo que participa da constituição do ato do intelecto e que só se distingue dele ratione. Se a verdade fosse algo positivo e absoluto que fosse acrescentado ao ato mental, uma proposição poderia continuar sendo verdadeira, ainda que a coisa denotada sofresse modificações. Se, porém, se dissesse que com a modificação da coisa o algo verdadeiro seria separado da

proposição, então não se trataria de algo absoluto mas de algo relativo2. Se porém – assim continua Suárez – a verdade é algo que constitui o ato mental e é inseparável desse ato, então se pode perguntar, se esse algo verdadeiro completa esse ato mental como uma diferença última específica ou individualizante (ultima differentia specifica vel individualis), ou se esse algo verdadeiro pressupõe o ato mental como algo já completo. Mas, se se trata de uma diferença, então não é possível dizer que o algo verdadeiro é algo acrescentado ao intelecto, visto ser ele algo que o constitui. Porém, também não se pode dizer que a verdade é algo acrescentado a um ato mental já completo, pois não é possível que algo absoluto seja acrescentado a uma outra coisa e se diga que há

entre as duas partes uma distinção apenas conceitual (ratione)3. Segundo ponto: A verdade não acrescenta ao ato mental nenhuma relação predicamental entre ele e o objeto. Suárez indica que freqüentemente uma tal relação predicamental é impossível. Um bom exemplo disso é a proposição chimaera est chimaera que é, sem dúvida alguma, uma proposição verdadeira. A quimera é um ens rationis, um ente ficcional. Contudo, só pode

1 DM 8,2,6. Suárez indica, em DM 8,2,2, como representantes desta posição Soncinas, lib. 6, q. 17, e Capreolus, Sent. 1, dist. 19, q. 3, conclusio 3 (vol. 2, p. 158). Contudo, há importantes filósofos contemporâneos a Suárez que também sustentam essa posição tais como Ruiz de Montoya e Petrus Hurtado de Mendonza (cf. Izquierdo, vol. 1, p. 110, n. 3). 2 DM 8,2,6: “...si vero dicatur primum [sc. que a verdade é algo absoluto e separável da proposição], illud non erit absolutum, sed respectivum, ut argumentum factum [sc. em DM 8,2,3] probat; quia separatur per mutationem solam objecti, sine alia absoluta mutatione ex parte actus; nam actus ex se idem, et eodem modo repraesentat, solumque mutatur ejus veritas, quia res non eodem modo se habet.” 3 Loc. cit.: “Dices, veritatem addere quid absolutum inseparabile ab actu, non tamen re, sed ratione distinctum ab illo. Sed contra, quia vel hoc absolutum complet actum tanquam ultima differentia specifica vel individualis ejus, vel non complet, sed supponit perfecte completum. Si primum dicatur, ergo tale absolutum non additur actui constituto, sed constituit illum; ergo non recte dicitur veritatem addere hoc absolutum supra actum; secundum autem dici non potest, quia impossibile est intelligere actui plene constituto addi aliquid reale absolutum sola ratione distinctum.”

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haver uma relação predicamental entre dois entes existentes. Sendo assim, não poderá surgir uma relação predicamental entre um ato mental cognoscitivo e um ens rationis. Desse modo, uma vez que a proposição chimaera est chimaera é verdadeira, fica evidenciado que não é necessário que haja uma relação predicamental para que haja verdade. Suárez pode conceder que muitas vezes há o surgimento de uma relação predicamental que acompanha a verdade de uma proposição (isso ocorre, p. ex., se digo que a parede é branca e existe a parede branca que eu afirmo seja branca, pois nesse caso há dois objetos existente, o meu ato mental visando a parede branca e a correlativa parede branca), mas ele não aceita que tal relação seja imprescindível; ao contrário, essa relação é prescindível e não essencial à verdade. E, de fato, uma pessoa sempre vai entender primeiro que um ato mental é verdadeiro e só depois ela se disporá a pensar se há uma relação predicamental (DM 8,2,7). De acordo com o que já anunciei mais acima, vou interromper meu comentário da seção 2 para expor brevemente como Suárez entende o que seja uma relação predicamental. Depois retomarei minha apresentação da discussão sobre o que é ontologicamente a verdade. III - A RELAÇÃO PREDICAMENTAL As relationes reales são para Suárez tanto as relationes transcendentales quanto as relationes reales. As relações transcendentais são relações essenciais à coisa e inseparáveis dela. Ao contrário, as relações predicamentais são acidentais e podem ser retiradas da coisa que lhes serve de suporte sem que a coisa perca a sua integridade. A relação predicamental surge sem que seja propriamente necessária um munus (trabalho) para produzi-la; ela acompanha os termos correlatos. Já a relação transcendental surge com base em um munus que pode ser uma causação como é uma actio (isto é, a actio que constitui também um predicamento), uma união (tal como a relação entre matéria e

forma etc.)1 e assim por diante. Prosseguirei concentrando a atenção na relação predicamental que é o tema que nos interessa para a discussão da verdade. Entre uma parede branca que de fato existe à minha frente e uma parede branca que seja meramente possível não pode haver nenhuma relação predicamental. Contudo, se uma outra parede branca começa a existir atualmente, então surge uma relação de semelhança no suporte que serve de fundamento a essa relação. Para Suárez, uma relação predicamental não se distingue de seu fundamento segundo uma distinção real, mas apenas segundo uma distinctio rationis (distinção conceitual, isto é, uma distinção que não existe na realidade, mas que o intelecto

1 DM 47,4,10-16. Cf. Hellin.

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ficcionaliza), sendo que o termo correlato não é apenas uma pré-condição para que se possa causar no termo fundamental a relação predicamental, mas a relação se constitui com o surgimento do correlato (embora o correlato não cause de um modo eficiente a relação). A relação predicamental não é um esse ad (uma coisa ou um modo) que se distinga realmente, ou mesmo modalmente, do termo fundamental. A relação predicamental não é um modus intrinsecus, de modo que, se o correlato (p. ex., uma segunda parede branca) fosse destruído, Deus poderia sustentar esse esse ad (isto é, a semelhança entre a primeira e a segunda parede branca) como existindo atualmente. Sustentar uma relação predicamental como existente atualmente após o aniquilamento de um dos termos da relação é, para Suárez, algo de impossível para Deus ainda que ele recorresse a sua potentia absoluta, pois uma tal relação só surge enquanto constituída por dois termos correlatos dotados de existência atual. Mas o que é, para além da realidade própria a cada um dos termos da relação, a relação predicamental? A relação predicamental é uma entidade que existe atualmente e que se distingue apenas ratione do termo fundamental. Essa entidade não surge nem por uma ação própria (per propriam actionem), como é o caso do Onde

(Ubi)1 por meio do movimento espacial, nem surge simultaneamente com a substância, como é o caso da Quantidade que acompanha a matéria primeira (materia prima). A relação predicamental surge por resultância natural (per resultantiam naturalem) tal como a figura resulta da divisão (DM 18,3,14). Trata-se aqui, de certo modo, de mais uma dessas teoria “menores” que, com discrição e modéstia, não deixam de ser peças indispensáveis para que o sistema chegue a ter um grau suficientemente aceitável – embora ilusório – de coerência e fechamento.

A teoria da resultância natural está relacionada com a causalidade dos acidentes. Historicamente, os acidentes têm, de certa maneira, um valor ontológico menor que a substância; além disso, há acidentes que são mais valorizados em sua positividade que outros; é o caso da qualidade e da quantidade; para sustentar essas desigualdades, sem que seja necessário admitir que haja graus intermediários entre o ser e o nada, proliferam teorias que buscam ao mesmo tempo justificar o grau menor de realidade sem abrir mão de um limite que deve permanecer claro entre o que é e o que não é. A resultantia naturalis é um gênero particular de causa; para Suárez, há dois tipos de resultância natural: a metaphysica consecutio e a dimanatio

physica2. A relação predicamental se deve a uma metaphysica consecutio. A

1 O Ubi é para Suárez um modus intrinsecus (DM 51,1,14). Cf. Alcorta p. 295-313. 2 Suárez propõe toda uma doutrina sobre a causalidade dos acidentes. Ele propõe em DM 18,3,2 que haja três tipos de causa que produzem os acidentes: “Ad hanc rem explicandam, suppono duobus modis posse fieri accidentia. <1> Uno modo, per

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metaphysica consecutio é um tipo de causa que não acarreta nenhuma ação (actio) nem qualquer mudança (mutatio) (como já foi dito a relação predicamental distingue-se apenas ratione do seu fundamento, isto é, ela não modifica o seu fundamento) [DM 18,3,9]. A resultantia por dimanatio physica é, ao contrário, uma autêntica efetuação (efficientia) e ação (actio), de modo que o que essa resultância causa distingue-se a parte rei da coisa na qual essa resultância é exercida. Um exemplo de dimanatio physica se dá quando a água, supostamente por uma tendência sua, retorna à temperatura anterior ao seu

aquecimento1. Na metaphysica consecutio, o que exerce a resultância se distingue apenas ratione disto que surge com essa resultância [DM 18,3,10]. É importante ainda aqui lembrar que a dimanatio physica, uma vez que ela é uma autêntica causação, é dependente do concurso da causa primeira, de modo que, se Deus retirar o seu concurso, ela perderá a sua eficiência [DM 18,3,13]. Em outras palavras, havendo duas paredes brancas, Deus não pode impedir que surja – por meio de uma metaphysica consecutio – uma relação predicamental de semelhança entre elas duas, ainda que ele retire o seu concurso. Do mesmo modo, a relação predicamental desaparece também inevitavelmente se um dos dois termos correlatos for aniquilado. Conclusão: a relação predicamental não exige nenhuma causa eficiente (efficiens causa) para além daquelas que causam

o fundamento e o termo2 . Quais são, afinal, as condições para o surgimento de uma relação predicamental e, em particular, de uma relação predicamental de semelhança?

propriam actionem, ut cum fit lumen per illuminationem, aut Ubi per proprium motum localem. <2> Secundum, per resultantiam naturalem, ut relatio resultat ex fundamento posito termino (si est modus a fundamento distinctus), vel sicut resultat figura ex divisione, aut ex moto, vel termino motus localis, et proprie passiones rerum censetur etiam hoc modo fieri. <3> Tertio autem modo posset intelligi fieri accidens concomitanter cum substantia absque resultantia ex illa, ut quantitas, verbi gratia, cum materia prima, quem modum nunc omittimus, quia si verus est, ad alterutrum ex praecedentibus revocari potest, ut explicabimus, et quia in eo productionis modo, quod fuerit principium efficiendi substantiam, erit principium efficiendi accidens, quod cum illa fit.” 1 DM 18,3,7: “...ut in reductione aquae, tunc censetur per se actio et propria mutatio tendens per se as talem accicidentalem terminum”. Em DM 15,1,8, Suárez comenta esse pronto retorno da água, após ter sido aquecida, à sua friúra anterior: “...ergo signum est esse in aqua aliquod intimius principium a quo iterum manat intensio frigoris, sublatis extrinsecis impedimentis; illud autem principium non potest esse nisi forma substantialis...” (o grifo é meu); a palavra manat indica que é por dimanatio physica que esse retorno (reductio) da água a sua temperatura anterior é causado. 2 DM 47,6,1: “...sed [sc.relatio praedicamentalis] resultat, vel formaliter consequatur positis fundamento et termino, nullam habet vel requirit efficientiem causam, praeter eas quae fundamentum et terminum efficiunt.”

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Uma relação predicamental tem que ter um suporte1 (subjectum), um fundamento e um correlato, que existam atualmente [DM 47, sectio 6]. Há que se atentar aqui que o fundamento nem sempre se distingue realmente do suporte. Uma substância pertence juntamente com uma outra a uma mesma espécie (relatio identitatis specificae) devido à sua própria entidade e à sua própria essência, não devido a uma mediação pelos acidentes. Em outras palavras, o fundamento de uma relação predicamental pode ser tanto um acidente quanto a própria substância [DM 47,7,4-9]. Uma questão que Suárez ainda se coloca é se o fundamento se distingue da ratio fundandi. A ratio fundandi, digamos, a “fundabilidade”, é o que torna o fundamento apto a fundar

uma relação2. A primeira parede, que é um suporte, tem como acidente a sua brancura, a brancura é apta, enquanto fundamento, a que surja dela uma relação de semelhança com uma segunda parede branca, porque há entre as duas brancuras “alguma razão intrínseca conatural” (aliqua ratio intrinseca

connaturalis)3, isto é, ambas são coordenadas. Porém, não surge da sabedoria de Deus nenhuma relação predicamental com a sabedoria de Pedro porque a sabedoria de Pedro é subordinada (e não coordenada) à de Deus. Suárez não vê nisso nenhum motivo para que se amontoem coisas, isto é, ele prefere entender que a aptidão para a relação que é própria, p. ex., à brancura de uma parede esteja intrinsecamente incluída na própria brancura enquanto fundamento dessa relação. A aptidão não deve ser entendida como mais uma entidade que se sobrepõe ao fundamento brancura que, por sua vez, se sobrepõe ao suporte parede; Suárez reduz a aptidão ao próprio fundamento. Enfim, a aptidão é; ou seja, ela simplesmente é, de modo que não se pode ou não se deve perguntar para além de sua constatação. Assim, não se deve perguntar por que a semelhança se dá, pois a resposta só pode ser a de que há no fundamento uma

1 Uso aqui a palavra “suporte” para traduzir a palavra latina subjectum no sentido de “algo que está embaixo”. Por sua vez, um “objeto” é o que é posto por um intelecto como que à sua frente; assim, é porque o intelecto o põe (e o que é posto pode ser tanto um ens reale quanto um ens rationis) que o objeto é “ob-jeto” (“contra-posto”, isto é, “posto à frente”); ao contrário, o “suporte” – que seria um, por assim dizer, “subjeto” – não precisa ser pensando nessa dependência de um ato pelo qual o intelecto o contrapõe a si. Contudo, cabe alertar, a palavra suporte tem um uso amplo ao longo deste meu texto e grande parte das vezes o seu uso não necessariamente supõe que por trás dela está o termo latino subjectum. 2 DM 47,7,13: “Omnibus autem fundamentis relationis commune est ut habeant aliquam naturalem proprietatem, vel conditionem, ratione cujus apta sint ad fundandam relationem, quae proprietas repectu talis fundamenti potest appellari ratio fundandi relationem.” 3 DM 47,7,13: “Ergo, si principium efficiens creatum est aptum fundamentum, oportet ut in eo assignetur aliqua ratio intrinseca connaturalis, ob quam est natura sua aptum fundamentum relationis realis, ut, verbi gratia, quod est principium per se ordinatum ad actionem, vel aliquid hujusmodi...”

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aptidão para a semelhança. A aptidão para a semelhança é intrínseca tanto ao fundamento quanto ao termo correlato; se temos o conceito formal enquanto imago do objeto intuído (fundamento) e o objeto intuído (termo/terminus), então pode surgir uma relação predicamental de semelhança porque tanto o fundamento quanto o correlato têm intrinsecamente a aptidão para que uma tal relação surja. Mas como pode haver uma aptidão semelhante em duas coisas tão diversas, isto é, entre algo que é imaterial, que é semântico-intencional, e algo que é material? Essa pergunta não é posta nas DM. A “aptidão” (aptum est ou

ratio fundandi)1 é o não-perguntado da discussão sobre a relação e, uma vez que ela também está por trás da discussão sobre a connotatio, ela é também um não-perguntado na discussão da verdadae como adequação. No que toca ao termo (terminus), isto é, no que toca ao termo correlato em uma relação predicamental (ou, como veremos mais abaixo, em uma connotatio), Suárez pergunta se o termo correlato tem necessariamente que existir atualmente [DM 47,8,2]. Há que se reparar bem que a questão não é a de se uma brancura que existe atualmente é semelhante, tanto a uma outra brancura que também existe atualmente, quanto a uma outra brancura que só existe enquanto possibilidade, mas a questão é a de se é possível que surja uma relação predicamental apenas entre duas brancuras que existam atualmente ou se é possível também que ela surja entre uma brancura atual e uma brancura possível. Como vimos há pouco, a relação predicamental surge devido a uma metaphysica consecutio e que a metaphysica consecutio só se dá entre duas coisas que existem atualmente. A relação predicamental é um acidente e, enquanto acidente, é um ens reale; ela só resulta se dois “pólos” – um fundamento e um termo – se correlacionam; no caso, a correlação seria por

semelhança2. Mas o que é ontologicamente a relação predicamental? Ela não é nada mais que a própria realidade e atualidade de seu fundamento; se seu

1 Suárez fala não só em ratio fundandi mas também em ratio terminandi – DM 47,8,8. Na discussão da relação, a ratio fundandi diz respeito, a princípio, a coisas exteriores ao intelecto e, portanto, independentes do intelecto; porém, a mesma questão, o mesmo não-perguntado, se aplica ao ato mental. Mas, aplicado ao ato mental, o que se torna questão é a autonomia da dimensão semântico-intencional. O que vemos aqui é a mesma duplicidade da denominatio extrinseca que tanto independe do intelecto quanto é fundamental para a “semântica” suareziana. Afinal, a connotatio não é mais do que uma denominatio extrinseca dotada de reciprocidade. 2 Suárez parece pressupor tranqüilamente que a semelhança é algo “exterior” (uso “exterior” no sentido de independente do intelecto ou, recorrendo a um termo para nós hoje em desuso, exterior à “alma”) e não algo dependente de uma interpretação, digamos assim, algo semântico. Há aqui uma duplicidade: a semelhança é tanto uma marca nas coisas e, portanto, é “exterior”, quanto é a origem de toda a possibilidade de conhecimento; entretanto, o conhecimento depende, para ser conhecimento, de um juízo que, por sua vez, depende de um assentimento no qual intervém a vontade e, portanto, nunca pode ser totalmente exterior à alma.

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fundamento é a qualidade brancura, então ele é o quanto essa qualidade ontologicamente é, ou seja, a semelhança é ontologicamente tanto quanto a brancura do fundamento é. A brancura e o ser semelhante da brancura com uma outra brancura só se distingue ratione da própria brancura, isto é, só se distingue após o intelecto analisar a brancura e o ser-semelhante e distingui-los conceitualmente; porém, como essa distinção é apenas obra do entendimento ela não é real e não indica duas coisas como existentes exteriormente ao intelecto (fora do intelecto os dois são a mesma coisa e têm a mesma realidade). Uma parede branca imaginária não deixa de ser semelhante a uma parede branca real, mas ela não funda nenhuma relação real de semelhança; delas duas não resulta um acidente atual; não há entre as duas uma relação de semelhança; há apenas uma conotação de semelhança. Ora, uma relação predicamental de semelhança inclui uma conotação de semelhança; porém, a relação predicamental, digamos assim, “recobre” essa conotação com a realidade acidental resultante do correlacionamento de duas coisas atuais. Uma parede branca imaginária e uma atual apenas se conotam, mas se a parede imaginária fosse subitamente criada, então também subitamente resultaria uma relação predicamental recobrindo a conotação de semelhança. Deus não pode evitar que, nesse caso, resulte o acidente da relação, nem pode manter – mesmo com sua potentia absoluta – a relação predicamental de semelhança como existente após aniquilar um do termos correlatos. Porém, anterior e mais esquivo ainda à onipotência divina, é a aptidão à semelhança; o próprio conhecimento divino parece partir dela; o ser-semelhante é de certo modo dado a Deus. Deus conhece o ser-semelhante e Deus até mesmo conhece ao relacionar semelhanças; o ser-semelhante – pode-se dizer – é, assim, insondável até para a onisciência

divina.1. Retornemos ao argumento da seção 2 da disputação 8 onde Suárez está dizendo que a verdade não é essencialmente uma relação predicamental que é acrescentada ao ato mental. Creio que a passagem que citarei a seguir se mostrará, depois do que acabamos de discutir, de fácil compreensão:

Nam haec [sc. relatio realis, isto é, a relação predicamental] dicitur consurgere posito fundamento et termino; actus [sc. o ato mental] autem formalissime verus est, hoc ipso quod ponitur tale fundamentum [sc. o ato mental] et terminus [sc. a coisa conhecida]; ita ut si, per impossibile [ou seja, até mesmo Deus com sua potência absoluta não o pode], impediretur resultantia relationis, adhuc actus esset verus ex vi talis actus

1 Cf. Suárez De divina substantia, lib. 3, c. 6, n. 11, in O. O., vol. 1, p. 212b, que está mais abaixo citado no corpo deste texto.

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et objecti in rerum natura positorum; ergo in formali conceptu veritatis non intrat relatio [sc. relação real], quidquid sit, an inde interdum consequatur. [DM 8,2,7] Assim, diz-se que a relação predicamental surge quando são postos o fundamento e o termo; o ato mental é formalmente verdadeiro; do mesmo modo, quando é posto o fundamento [o ato mental] e o termo [o objeto conhecido]; isso se dá de tal modo que, ainda que aceitemos a hipótese impossível de que fosse impedida a resultância da relação, ainda assim o ato mental seria verdadeiro devido a esse ato mental e esse objeto terem sido postos atualmente; pois no conceito formal da verdade não entra a relação predicamental, ainda que ela se dê e mesmo que ela às vezes ocorra.

Suárez está dizendo que, mesmo que não haja o surgimento de uma relação predicamental, havendo uma conotação de semelhança, então há verdade. Na proposição “A quimera é uma quimera”, o objeto conhecido é um ens rationis e, portanto, não é um termo correlato (terminus) que preencha a condição para o surgimento de uma relação predicamental, mas é um termo correlato suficiente para que surja uma conotação, ou seja, quando os objetos são entia rationis há verdade embora não haja nunca uma relação predicamental. Conclusão: A verdade não consiste essencialmente numa relação predicamental, embora a relação predicamental possa acompanhar a verdade de uma proposição e embora, de fato, muitas vezes, (a saber, quando as condições estão preenchidas para que haja resultantia) ela a acompanhe. IV - A DISPUTAÇÃO 8 SOBRE A VERDADE (SEÇÃO 2) Após haver esclarecido, ao expor parte da concepção suareziana da relação predicamental, por que a verdadeiro conhecimento (in cognoscendo) não consiste ontologicamente no acidente da relação, retorno ao texto da seção 2 para discutir o terceiro ponto onde é argumentado por que a verdade não é acompanhada de uma relatio rationis, isto é, de uma relação forjada ficcionalmente pelo juízo no que o juízo se volta sobre o ato mental cognitivo e, reconhecendo como verdadeiro, dá o seu assentimento. Terceiro ponto: A verdade não acrescenta ao ato mental uma relatio rationis. Ou seja, para Suárez não é essencial à verdade que o intelecto forje ficcionalmente uma relatio rationis entre o ato mental e o objeto. Como já foi indicado, o juízo verdadeiro é reflexivo sobre o próprio ato de conhecer, mas é

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reflexivo in actu exercito (isto é, no mesmo momento em que realiza o ato direto de apreensão do objeto conhecido) enquanto que o ente ficcional surge por meio de uma reflexão in actu signato. Ora, o intelecto sempre pode refletir sobre seus atos, ou seja, sempre é possível que o intelecto, depois de julgar algo verdadeiro, reifique o próprio julgamento feito e diga “este juízo é verdadeiro” ou “o que foi apreendido pelo intelecto está em conformidade com o que foi intencionado”, mas ficcionalizar a correspondência através de um ato reflexivo objetivante e coisificante (in actu signato) não é essencial para a verdade. Ou seja, Suárez repete aqui basicamente o que já disse sobre a relação predicamental: pode haver relação predicamental mas ela não é essencial à verdade; pode haver

relação ficcional, mas ela não é essencial à verdade1. Conclusão dos três primeiros pontos: a verdade no conhecer, nem é algo absoluto, nem é uma relação predicamental, nem uma relação ficcional. Cabe assim recolocar a questão: O que é acrescentado de positivo ao ato mental julgado verdadeiro? Quarto ponto: A resposta de Suárez para essa questão é:

...veritatem cognitionis ultra ipsum actum nihil addere reale et intrinsecum ipsi actui, sed connotare solum objectum ita se habens, sicut per actum repraesentatur [o grifo é meu - DM 8,2,9] ...a verdade no conhecer para além de seu próprio ato mental não acrescenta nada real ou intrínseco ao seu próprio ato mental, mas conota que o “estado de coisas” (objectum ita se habens) é tal como ele é representado pelo ato mental.

Suárez prossegue:

...veritatem non esse aliquid omnino absolutum, scilicet, quia mutato objecto, mutatur veritas cognitionis, et tamen non mutatur ibi aliquid intrinsecum actui, sed tollitur concomitantia objecti; ergo signum est veritatem includere, vel saltem connotare praedictam concomitantiam objecti [DM 8,2,9]

1 DM 8,2,8: “Praeterea, argumentum factum de relatione reali a fortiori probat de relatione rationis; nam, sicut illa consurgit posito fundamento et termino, ita haec fingitur per intellectum, supposito eo quod per modum fundamenti et termini intervenire potest; sed ex vi ejus, quod supponitur ad talem relationem vel fictionem, actus est verus; ergo talis relatio non intrat formaliter conceptum veritatis; ergo nec veritas habet talem relationem supra ipsum actum.”

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...a verdade não é algo absoluto porque, quando o objeto muda, muda também a verdade do conhecimento, e, de fato, não muda nada de intrínseco ao ato mental, mas é suprimida a concomitância do objeto; logo, fica indicado que a verdade inclui, ou ao menos conota, a mencionada concomitância do objeto

A verdade no conhecer acrescenta ao ato mental uma conotação da concomitância do objeto. Apesar de Suárez estar aqui usando o termo concomitantia e não similitudo, o que está em questão é sempre ainda a semelhança pois a concomitância é a concomitância de semelhanças, ou seja, a concomitância é a semelhança; dizer que o ato mental deixa de ter a concomitância do objeto intencionado é o mesmo que dizer que o ato mental deixa de ser semelhante ao objeto que agora é dado ao intelecto. Mas o que entende Suárez por connotatio? Por um lado, connotatio pode ser entendida como uma conotação semântico-intencional: a proposição não só denota que uma coisa se compõe num estado de coisas de um determinado modo, mas também conota que a coisa de fato se compõe assim como é denotado que ela se compõe nesse estado de coisas. Por outro lado, connotatio pode tentar ser entendida ontologicamente como “algo” que surge entre o ato mental e o objeto. Contudo, a conotação não é, nesse caso, nada que seja ontologicamente positivo, ela não acrescenta nenhuma entidade ao ato mental:

...ergo nihil aliud addere potest praeter dictam connotationem, seu denominationem consurgentem ex connexione seu conjunctione talis actus, et objecti. [DM 8,2,9] ...logo, não pode acrescentar nada além da mencionada conotação, ou denotação, que surge da conexão ou conjunção do ato mental e do objeto.

Na última parte deste artigo (VI), compararei, seguindo uma idéia de Hickman, alguns aspectos da concepção de verdade de Suárez com a de Frege. Posso adiantar aqui que, quando Frege fala na denotação (“Bezeichnung”) do verdadeiro e do falso, Suárez em contrapartida fala no surgimento de uma conotação (connotationem... consurgentem). Se em Frege o que seja este “o verdadeiro” e “o falso” é algo que parece não poder ser perguntado mais a fundo, também em Suárez, com a sua conotação baseada na semelhança, chega-se na rocha onde a pá entorta e não se pode seguir cavando. A conotação da verdade tem assim uma face “semântica” e uma “ontológica”. Focalizemos a face

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“ôntica” da conotação da verdade e comparemo-la com a conotação de semelhança do exemplo da parede branca: uma parede branca conota uma outra parede também branca como semelhante e, se as duas são atuais, surge imediatamente uma relação predicamental. Se, porém, ambas forem meramente possíveis, então pode-se compreender que uma conota a outra, mas não há o surgimento de nenhuma relação predicamental. Se, entretanto, essas duas paredes brancas possíveis forem atualizadas, então surgirá, para além dessa conotação de semelhança, uma relação predicamental de semelhança (que, sendo um acidente, é algo ontologicamente positivo, isto é, é um ente). As conotações de semelhança são assim “anteriores” às relações de semelhança. Tal como as relações de semelhança, as conotações de semelhança exigem dois termos correlatos para o seu surgimento; porém, os correlatos não precisam existir atualmente. Além disso, há que se notar que, diferentemente da relação de semelhança que onticamente se deve a um tipo peculiar de causalidade (ainda que não seja uma causalidade eficiente), a saber, a metaphysica

consecutio, a conotação de semelhança não se deve a nenhuma causa1. Segundo Suárez, Deus conhece as coisas possíveis a partir da própria essência divina, mas trata-se, a princípio, apenas das possibilidades das coisas individuais. Para conhecer os gêneros e as espécies, que, a rigor, não são nenhuma essência possível separadas dos indivíduos possíveis, Deus não dispõe de nenhuma idéia. Pode-se aqui perguntar como Deus conhece os universais: (1) Deus depende do processo de abstração próprio ao intelecto humano para poder conhecer os universais? Precisa ele assim deixar-se ensinar pelo intelecto humano? (2) E no que toca aos próprios universais, são eles ficções arbitrárias do intelecto humano, de modo que cada proposição sobre eles, tal como Homo est species, seria arbitrária e, portanto, inverificável, ou seja, nem verdadeira nem falsa? A questão (1) não oferece nenhuma dificuldade. Se Deus nunca pecou, isso não significa que ele tenha que ter criado os homens e os anjos para aprender com eles o que é o pecado. Deus já conhecia desde a eternidade a possibilidade de criar os homens e os anjos e, com isso, ele conhecia a 1 Não creio que haja qualquer propósito em especularmos aqui; parece bem evidente que semelhança e conotação de semelhança são a mesma coisa (se quiserem pode-se dizer que diferem ratione); ora, a semelhança é incausada, logo, a conotação de semelhança também tem que ser incausada. Se Deus é incausado, de certo modo, “mais” incausada ainda é a semelhança. Se é um atributo de Deus ele ser onisciente (e ele só é onipotente na medida que é onisciente), isto é, é seu atributo conhecer tudo e a si mesmo, se para que haja conhecimento é necessário que sejam dadas semelhanças, se essas semelhanças são incausadas e, portanto, livres da onipotência divina, se Deus conhece através dessas semelhanças, se conhecer é conhecer essas semelhanças, se Deus então só é onisciente porque conhece as semelhanças que ele não domina e que possibilitam e determinam sua onisciência, então a semelhança é o não-subjetivo e o não-objetivo, nem semântico nem ôntico (ou semântico e ôntico) que possibilita Deus conhecer e, a partir de sua onisciência, criar o mundo.

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possibilidade do pecado1. A questão (2), porém, é importante. Suárez contesta que os universais careceriam de qualquer fundamento objetivo; ele afirma que eles se fundam nas semelhanças. Essas semelhanças não são, por sua vez, nada de real ou atual que é acrescentado às coisas como se fossem uma entidade distinta; elas não são senão a própria essência dessas coisas. Ele esclarece:

...in ipsa enim natura reali nulla est aptitudo positiva et realis ad plures differentias individuales, sed solum est non repugnantia in ipsis etiam individuis, ut habere possint alia sibi similia. [DM 6,5,3] ...na própria natureza real não há nenhuma aptidão positiva e real para muitas diferenças individuais, mas há apenas a não-repugnância nos próprios indivíduos para que possam ter outras coisas semelhantes a si.

Suárez talvez não esteja aqui propriamente reduzindo onticamente a conotação (enquanto ela é algo semântico-intencional) ao seu fundamento. Contudo, não há como negar que sua preocupação seja a de, ao menos, “ancorá-la” no fundamento. Se as semelhanças não fossem algo que dissesse respeito diretamente às coisas, então as conotações de verdade não diriam respeito ao seu fundamento (isto é, não diriam respeito aos atos do intelecto) e seriam autônomas tal como o verdadeiro e o falso em Frege. Essa passagem está indicando ainda que a garantia objetiva da unidade dos universais é uma não-repugnância em ser semelhante com outras coisas; uma não repugnância que não se distingue realmente da realidade dos indivíduos atuais ou meramente possíveis. Assim, essa passagem confirma a semelhança como o não-pensado e o não-causado que possibilita todo o pensamento e todo o conhecimento, tanto no homem quanto em Deus. A semelhança é o não-pensado de todo o conhecimento humano pois a verdade pressupõe a semelhança e porque o homem forja, por meio de semelhanças, os universais que também são condição de seu conhecimento, que se origina de uma intuição finita. Deus, com sua intuição infinita, conhece todos os indivíduos em si mesmos e não requer universais em seu conhecimento, mas, se seu conhecimento das coisas e das proposições sobre as coisas é verdadeiro, então ele também se baseia nas conotações de concomitância, isto é, nas semelhanças, para conhecer.

1 Suárez não coloca esta questão 1 nem apresenta os argumentos acima; como eles me parecem óbvios e pressupostos, achei por bem propô-los.

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Cito a seguir uma passagem onde fica mais uma vez claro que as semelhanças não podem, quando se trata de semelhanças entre coisas possíveis, nem serem relações predicamentais de semelhança, nem serem realationes

rationis1, mas que elas só podem ser conotações de semelhança. Para Suárez, há antes da criação do mundo apenas o Deus atual e eterno e os indivíduos

perpetuamente possíveis2, não-atuais, com suas semelhanças, isto é, com suas conotações de semelhança. Esta importante passagem de Suárez é:

Primo quidem, quia species non fiunt, nisi in individuis, unde non fiunt nisi per ideas individuorum. Secundo, quia Deus non habet conceptus confusos objectorum universalium, sed distinctissime omnia cognoscit, ut sunt. Unde licet negari non possit, ita cognoscere Deum singularia, ut cognoscat etiam virtutem formalem, seu similitudinem specificam, quam inter se habent: nihilominus non intelligimus nos in Deo duos conceptus ratione distinctos, unum speciei, alium individui. Tum quia prior esset confusus et imperfectus, ut in nobis est. Tum etiam quia eadem ratione distinguendi essent conceptus generis et speciei. Concipiendo ergo singularia prout in se sunt, in eis videt similitudinem, quam inter se habent, vel integram et specificam, vel imperfectam et genericam et eodem modo, sicut non producit genera, vel species nisi in individuis, ita per eorum ideas illa producit. [De divina substantia lib. 3 c. 6 n. 11; vol. 1 p. 212b] Em primeiro lugar, uma vez que as espécies não estão senão nos indivíduos, então elas não se dão senão com base nas idéias dos indivíduos. Em segundo lugar, uma vez que Deus não tem conceitos confusos dos objetos universais, mas conhece todas as coisas de um modo distintíssimo tal como são. Então não se pode negar que Deus assim conheça as coisas singulares tal como conhece também a virtude formal ou semelhança específica que essas coisas têm entre si; contudo, não entendemos que haja em Deus dois conceitos distintos ratione [distintos ficcionalmente por um ato mental] um da espécie e outro do indivíduo. Por um lado, se assim fosse, o confuso e o imperfeito seriam anteriores em Deus tal como é em nós. Por

1 Lembro que Deus não ficcionaliza entia rationis. 2 Ver a discussão, na parte VI deste artigo, sobre a diferença em Suárez entre “eterno” e “perpétuo”.

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outro, os conceitos de gênero e espécie seriam distinguidos do mesmo modo. Logo Deus concebe as coisas singulares como são em si e nelas vê a semelhança que elas têm entre si, quer seja a semelhança íntegra e específica, quer seja a semelhança imperfeita e genérica, sendo que, do mesmo modo que ele não produz os gêneros e as espécies senão nos indivíduos, assim também Deus expõe os gêneros e as espécies pelas idéias dos indivíduos.

Com essa passagem, não fica nenhuma dúvida de que para Suárez não há antes da criação do mundo, para além de Deus e dos indivíduos possíveis, nenhuma outra entidade tal como universais hipostasiados ou complexa significabilia. As conotações não são nenhuma entidade ontologicamente positiva, mas uma não-repugnância ao ser semelhante. Em Suárez, há assim dois insondáveis últimos, dois impensados declarados (ainda que não tematizados como tais ou de modo a se tirar todas as conseqüências desses dois não-pensados), a saber, a não-repugnância a ser e a não-repugnância a conotar semelhanças. Retornemos agora à questão do que é ontologicamente a conotação na qual a verdade in cognoscendo consiste. Creio que se pode dizer que se trata de uma conotação cujo suporte é o ato mental (mas o fundamento seria, então, a dimensão semântico-intencional desse ato) e o termo correlato é a coisa conhecida. É certo que, se a coisa conhecida for algo atual, então essa conotação será acompanhada por uma relação predicamental. Nela mesma, essa conotação não é algo positivo que seja acrescentado ao ato mental. Essa conotação “surge” da não-repugnância que o fundamento tem para ser semelhante com outras coisas. Esse ser-semelhante não pode ser ontologicamente coisa alguma. A não-repugnância não tem causa e não pode causar algo positivo, nem por resultância. A conotação é ontologicamente menos que o acidente da relação predicamental; e mesmo o acidente da relação já não tem uma realidade para além da própria entidade do fundamento. A conotação é, no pensamento de Suárez, tão problemática quanto a denominação extrínseca; com efeito, a conotação é uma denotação extrínseca dotada de reciprocidade. Mas para além das duplicidades da denotação extrínseca (intelecto-dependente/ intelecto-independente; redutível à realidade / irredutível à realidade; algo físico/ algo puramente semântico), a conotação ainda carrega a duplicidade da reflexividade in actu exercito na medida em que essa reflexividade envolve a questão do assentimento, isto é, a questão da vontade que dá ou retém o assentimento. Se a conotação “surge” incausada e inevitavelmente sempre que há os termos correlatos (tal como a relação predicamental resulta inevitavelmente quando os termos correlatos são atualmente, isto é, em ato), então como pode ser possível

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que haja juízos falsos? Comentarei mais abaixo a discussão de Suárez sobre os juízos falsos. Por agora, sobre a verdade das proposições, indico apenas que só há conhecimento discursivo no homem (isto é, conhecimento através de proposições) porque a intuição humana é finita e não consegue abranger todos os indivíduos. Há uma dimensão semântica intermediária que, nas DM, é deixada funcionar entre o ato mental e as coisas e ela é só hesitantemente reconhecida como autônoma, ou antes, são hesitações e reticências nas argumentações, que, em alguns momentos, ao não negarem explicitadamente a autonomia dessa dimensão semântica, a deixam tacitamente funcionar nessas mesmas argumentações. A conotação exatamente se dá nessa dimensão intermediária entre os ato mentais individuais e as coisas denotadas, ou mesmo, no caso das conotações de semelhança, numa estranha dimensão (também semântica?) somente entre as coisas. A conotação de semelhança é posta como dado último e intematizável; o “surgimento” da conotação é, ora algo “natural e espontâneo”, ora algo voluntativo. Nunca é demais destacarmos as “oscilações” de Suárez principalmente porque elas aparecem em seus textos geralmente entranhadas em argumentações ou doutrinas “menores” e, assim, passaram quase sempre despercebidas pelos seus intérpretes. Ou melhor, não só passaram quase sempre despercebidas, mas até a época atual não se aceitava bem pensar que as “duplicidades” tivessem uma função necessária e incontornável para o fechamento aparentemente sistemático da metafísica; as “incoerências” quando eram constatadas tendiam a ser entendidas como erros ou insuficiências, enfim, como uma questão ainda a ser resolvida; não se aceitava que o pensamento é possibilitado pelos seus impensados. Indicarei algumas passagens problemáticas. Primeiramente gostaria de lembrar da célebre passagem em DM 2,1,1 onde Suárez afirma que o conceito formal é algo de positivo uma vez que ele é uma qualidade inerente no intelecto:

...conceptus formalis dicitur actus ipse...

...formalis [sc. conceptus] semper est vera ac positiva res et in creaturis qualitas menti inhaerens... ...conceptus formalis semper est res singularis et individua, quia est res producta per intellectum, eique inhaerens... [DM 2,1,1] ...o conceito formal é dito o próprio ato... ...o conceito formal é sempre uma coisa positiva, é uma qualidade que adere na mente... o conceito formal é sempre uma coisa singular e individual, pois é uma coisa produzida pelo intelecto e que adere nele...

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Nessas passagens, está categoricamente afirmado que o conceito formal é o próprio ato do intelecto, ou seja, que é algo físico (ainda que não seja algo material, uma vez que a alma é na Escolástica uma coisa imaterial). E, no entanto, há também passagens em que Suárez também afirma, com maior ou menor clareza, que quando ele fala em ato ele também entende que haja uma dimensão intencional. Citarei a respeito disso algumas passagens da Disputação 8 sobre a verdade:

...veritatem cognitionis..., sed connotare solum objectum ita se habens, sicut per actum repraesentatur. [DM 8,2,9] ...sed in conformitate immediata inter repraesentationem imaginis,et rem ipsam repraesentatam. [DM 8,1,3] ...seu quatenus [sc. a verdade, isto é, o ato mental de verdade] in esse repraesentativo continet rem cognitam. [DM 8,3,16] ...veritas cognitionis absolute ac simpliciter est in conceptu seu verbo, aut actu intelligendi in facto esse, quia haec omnia idem sunt, et significant formam, qua intellectus fit actu cognoscens... [DM 8,4,2] Est ergo veritas cognitionis primo ac per se in intellectu actu cognoscente per verbum conceptum, seu actum in facto esse, tanquam per formam, qua ao ato o ato mental ctu cognoscit. [DM 8,4,3] (os grifos são meus) ...a verdade do conhecimento..., conota o objeto que assim se compõe [isto é, num estado de coisas – ita se habens], tal como este objeto é representado. ...mas na conformidade imediata entre a representação da imagem e a própria coisa representada. ... ou na medida em que a verdade contém a coisa conhecida no ser representativo. ...a verdade do conhecimento está absoluta e simplesmente no conceito ou no verbo ou no ato do intelecto no que ele está ocorrendo – pois tudo isso é a mesma coisa –, e significa a forma pela qual o intelecto atualmente conhece... A verdade do conhecimento está, portanto, primeiramente e em si no intelecto que conhece atualmente pelo verbo concebido ou pelo ato no momento em que ele está ocorrendo tal como pela forma pela qual ele conhece atualmente.

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Como já indiquei mais acima, se Suárez por vezes se refere à composição de dois conceitos formais também pelo nome de conceito formal; ele muitas vezes se refere a essa composição por representação intencional (repraesentatio

intentionalis)1. Mas se Suárez fala em representação intencional e atribui a ela o papel de suporte da verdade, ele fala também em actus e actus verus, o que sugere a idéia de que o suporte da verdade é o próprio ato tomado enquanto algo fisicamente existente na alma.

...tamen prius natura intelligitur actus verus, quam

intelligatur consurgere relatio realis [DM 8,2,7].2 (o grifo é meu) ...porém, quanto à sua natureza, o ato verdadeiro é apreendido antes que se venha a apreender o surgimento da relação predicamental.

Essas “oscilações” na terminologia não são por acaso; elas estão em consonância com a mesma “oscilação” nas argumentações de Suárez que, ora tende a reduzir a dimensão intencional quer ao seu fundamento físico quer ao objeto denotado por ela, ora parece conceder a essa dimensão intencional um certo grau de autonomia. (Há em Suárez um estilo de latim próprio ao renascimento e, considerando-se certos critérios estéticos bastante aceitos, mais elegante que o estilo – ou a falta de estilo – do latim medieval. Ele compõe frases estilisticamente mais elaboradas e recorre a um vocabulário mais rico e variado, evitando a rigidez literariamente condenável própria à hipertrofia de uma prática terminologizante. Esse latim com tendência “anti-terminologizante” leva a que muitas argumentações sejam expressadas com grande clareza, mas acoberta em muito as “oscilações” que tenho buscado destacar.) Na leitura de Suárez, não devemos nos deixar confundir por essas “hesitações” terminológicas e argumentativas; elas demarcam os impensados que são o que possibilita que a sua metafísica possa ser exposta de um modo sistemático. Passarei agora a discutir o quinto e último ponto da seção 2, isto é, da resposta de Suárez contestando a posição de Durandus. Suárez, tal como no ponto 4, busca também aqui expor de modo positivo o que seja ontologicamente a verdade. Trata-se de mais um trecho em que Suárez tende a identificar a conotação de verdade com a intencionalidade do ato mental, embora ele

1 Cf. DM 8,1,6; DM 8,2,12; DM 8,2,15; DM 8,2,20; DM 8,5,3. 2 Cf. também: DM 8,1,6-9 e DM 8,4,2.

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também esteja buscando sugerir que, assim, essa conotação é bem próxima ao próprio ato, tal como se a conotação dependesse do desempenho do ato mental. Quinto ponto: A verdade in cognoscendo inclui uma representação

(=representação intencional) da concomitância do objeto1. Para que haja verdade, não basta que haja uma mera representação (tal como uma imagem, digamos assim, passiva, isto é, uma imagem que não seja intencionalmente referida à coisa) e a coisa que a imagem poderia estar representando; mas é necessário que haja uma representação da concomitância da coisa conhecida, isto é, que haja uma representação que seja conotativa, que seja, pois,

direcionada intencionalmente para a coisa conhecida2. É interessante observar como Suárez, ao final desse parágrafo, ao concluir, deixa de lado o termo repraesentatio que ele vinha usando para falar apenas em actus. Com esta conclusão Suárez está, de certa maneira, sugerindo que a repraesentatio cognitionis se reduz ao ato, isto é, ao ato mental físico:

...veritas non est sola illa denominatio extrinseca, sed includit intrinsecam habitudinem [sc. denominatio intrinseca = conotação] actus terminatam ad objectum taliter se habens. [DM 8,2,12] ...a verdade não é somente uma denominação extrínseca, mas inclui uma correlação intrínseca do ato [mental] que tenha como termo o objeto “tal como ele se compõe com os demais objetos” [taliter se habens].

Suárez tende, pois, a reduzir ontologicamente a intencionalidade, isto é, a representação intencional de um ato mental, à realidade desse mesmo ato mental. Do mesmo modo, ele tende a reduzir a conotação ao ato mental. Porém, mesmo que consideremos que seu propósito principal não seja o de reduzir ontologicamente a conotação à realidade do ato mental, é bem claro que ele tem que, ao menos, “ancorar” a conotação no ato mental. Se, como já comentei acima, fosse aceito que a intencionalidade do ato mental, enfim, do seu conteúdo semântico-intencional, é algo autônomo frente a esse ato, então se

1 DM 8,2,12: “...ad veritatem nec sola repraesentatio sufficit, si objectum non ita se habeat, sicut repraesentatur: neque concomitantia objecti potest sufficere ad denominationem veritatis, nisi praesupposita praedicta repraesentatione, vel potius includendo illam...” 2 DM 8,2,12: “...ad veritatem nec sola repraesentatio sufficit, si objectum non ita se habeat, sicut repraesentatur: neque concomitantia objecti potest sufficere ad denominationem veritatis, nisi praesupposita praedicta repraesentatione, vel potius includendo illam...”

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estaria próximo da posição de Frege. Contudo, isso não seria para Suárez nenhum avanço (ainda que se aceitasse também que a posição de Frege seja um “avanço”) pois a metafísica de Suárez – ao menos tal como ele próprio a compreende – não lhe permite corroborar tal autonomia, uma vez que para ele non enim medium datur inter ens fictum et reale [De anima lib. 4 n. 26], ou seja, para ele não há nenhum estatuto ontológico intermediário entre o do ente ficcional (que ontologicamente não tem nenhuma realidade) e o do ente real (que pode ser tanto um ente atual quanto um ente apenas possível). Uma dimensão semântica teria de ter um estatuto ontológico intermediário entre o real e ficcional, teria de ser autônoma frente ao ato do intelecto, embora tivesse que ter alguma dependência do ato da vontade (senão não poderia haver o assentimento da verdade ou da falsidade das proposições). Após haver apresentado esses cinco pontos que acabei de resumir, Suárez prossegue na seção 2 reforçando a sua posição de que a verdade não é nenhuma entidade que vem a ser acrescentada ao ato mental, não sendo mais do que uma conotação. Porém, uma vez que acima, em minha exposição do quarto ponto não cheguei a apresentar em maiores detalhes a discussão de Suárez sobre os argumentos contrários à sua posição, retornarei brevemente à DM 8,2,10, onde ele argumenta que um ato mental pode mudar, deixando de ser um ato verdadeiro e passando a ser um ato falso, mesmo que ele próprio se mantenha

inalterado1. O argumento que contraria essa posição de Suárez é o seguinte: uma proposição, que é verdadeira em um determinado momento no tempo, não pode, nesse mesmo momento, ser falsa; para que ela seja falsa, é necessário que o intelecto componha os extremos da proposição em um outro momento no tempo, mas, no caso do intelecto compor a proposição em um outro momento, o que se obterá é uma proposição diferente, quer dizer, haverá de fato uma

mudança na proposição2. Uma vez que para Suárez a verdade consiste ontologicamente apenas em uma conotação e uma conotação não é nada de 1 Para Frege a verdade não diz respeito ao ato mental, mas ao Gedanke. Mas o Gedanke, que é atemporal, é ou sempre verdadeiro ou sempre falso; ele não muda nunca de verdadeiro em falso ou vice-versa. Para Frege, o verdadeiro é algo absoluto que é extrínseco ao Gedanke e é por ele denotado. Bolzano, porém, não reconhece, ao contrário de Frege, nenhum verdadeiro absoluto; uma verdade em si é para ele uma frase à qual advém, desde a eternidade, a propriedade de ser verdadeira. A concepção de Soncinas é semelhante à de Bolzano (cf. DM 8,2,2 e mais abaixo na discussão sobre as verdades ditas eternas). Quando Suárez afirma em DM 8,2,10 que há proposições cujo valor-verdade se altera ao longo do tempo ele está defendendo algo a que Frege se contrapõe. 2 “Respondent aliqui negando posse eamdem mentalem propositionem transferri de vera in falsam sine intrinseca mutatione ejus, loquendo de propria cognitione, seu judicio ipsius rei; quia propositio, quae pro aliquo tempore vera fuit, non potest esse falsa pro eodem tempore, et ut fiat falsa, necesse est ut mens conjungat extrema pro alio tempore, quod facere non potest nisi in ipsa sit aliqua mutatio.”

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ontologicamente positivo, ele contesta essa objeção. Para isso, ele recorre às proposições mentais e faladas enquanto elas são propositiones non ultimatae (cf. a série 2 que expus acima). A verdade in significando que é atribuída às

propositiones non ultimatae consiste na conotação da concomitância do objeto1 e pode se alterar de verdadeira em falsa sem que elas próprias, enquanto eventos na alma, sofram qualquer alteração em sua constituição ôntica. É assim também que, em geral, se compreende a verdade do juízo no que diz respeito a proposições que têm uma determinação imprecisa quanto ao momento no

tempo, ou mesmo que não têm nenhuma determinação temporal2. Pode-se reparar aqui – embora Suárez não desenvolva esse aspecto –

que, além de haver proposições que são consumadas quanto ao juízo (propositiones ultimatae) e proposições que não são consumadas quanto ao juízo (propositiones non ultimatae), está sendo considerado que há proposições que – por terem uma determinação temporal imprecisa – só são parcialmente consumadas; e a verdade delas varia com o passar do tempo. Trata-se, pois, de proposições cuja cópula é “de alguma maneira indiferente e confusa e,

conseqüentemente, tem amplitude”3; essa “amplitude” (latitudinem) é que corresponde a uma, digamos, consumação parcial do juízo (ou seja, a uma suspensão parcial do juízo em função da confusão devida à não-determinação temporal). Segundo entendo, aqui seria o caso também de, por exemplo, proposições indefinidas como “Alguns homens são cegos”, pois embora a cada momento no tempo – uma vez que uns morrem e outros ficam cegos – homens diferentes sejam cegos, ou seja, embora as coisas designadas mudem, a proposição, permanece verdadeira e, provavelmente, permanecerá verdadeira enquanto houver homens, ou ao menos, enquanto houver homens o suficiente para que, entre eles, haja alguns que sejam cegos. Desse modo, devido a uma certa indefinição da cópula quanto ao tempo e do conceito formal quanto às coisas que ele denota, teríamos um juízo verdadeiro, ainda que ele seja verdadeiro devido a ele atingir às coisas fora da alma de um modo confuso, ou

1 Loc. cit: “Et primo sumi potest argumentum a propositionibus vocalibus, seu mentalibus, quae dicuntur esse in mente non ultimata; nam in eis dubitari non potest quin sit eadem omnino propositio quae antea erat vera, et nunc est falsa per mutationem rei significatae, absque ulla mutatione signi vel significationis ejus; ergo veritas illa significando, quae convenit his propositionibus, praeter totum id quod se tenet ex parte propositionis significantis, connotat talem concomitantiam objecti.” 2 DM 8,2,10: “Sic ergo intellegi potest in veritate ipsius judicii, seu veritatis existentis in mente ultimata saltem imperfecta et et abstractiva”. DM 8,2,10: “...illa duratio, quam concipimus, et per copulam significamus, non est indivisibilis, nec omnino determinata, sed aliquo modo indifferens et confusa, et consequenter latitudinem habens, ratione cujus potest in una parte illius successionis objectum se habere uno modo, et diverso modo in alia.” 3 Ver nota acima.

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seja, devido a ele não se determinar totalmente e, por assim dizer, ficar na dependência do acaso, isto é, do contexto. Desse modo, assim entendo, isso seria uma brecha na possibilidade em geral de consumação de juízos. Essa brecha consistiria no seguinte. A princípio, Suárez se referia somente a proposições consumadas e a proposições não consumadas; porém, nesse seu argumento, passou a falar de proposições que seriam em certa medida não consumadas e, portanto, confusas – daí a equiparação com as proposições mentais e faladas, às quais só caberia verdade in significando, e que, a rigor, são não consumadas –, mas Suárez se refere a elas sob a hipótese da consumação delas ao longo do tempo; ou seja, ele sub-repticiamente introduz na discussão um terceiro tipo – intermediário – de proposições que seriam, a saber, algo como “proposições hipoteticamente consumadas ao longo do tempo”. Mas seria só quanto ao tempo que uma proposição pode ser só parcialmente (ou hipoteticamente) consumada? Suárez está aqui indicando uma pequena brecha, a saber, a idéia de que há consumações parciais – com efeito, ele o faz como se tudo estivesse sob controle e pudesse permanecer sob controle –, mas até que ponto essa brecha pode abalar toda sua teoria sobre a verdade? Até que ponto essa brecha pode levar a que se pense que nenhuma proposição humana pode ser totalmente consumada? Não será que são todas as proposições humanas que são apenas hipoteticamente consumadas? Será que todo o juízo humano não depende sempre de uma validação por um conhecimento total e perfeito? Será que todos os juízos humanos não são proferidos sob a cláusula de uma hipotética validação pelo juízo divino? Para que uma consumação fosse total seria necessário que se pudesse determinar totalmente o contexto da proposição – não apenas o momento exato no tempo –, mas é possível esgotar o contexto? Como já foi dito, não só Suárez, mas todos os escolásticos, postulam que sim, que isso é possível, que os contextos são, em última instância, estáveis.

Evidentemente, não só a discussão dessa última questão, mas toda a discussão da verdade em Suárez e na Escolástica em geral tem como pressuposto essa idéia de que os contextos não são infinitamente instáveis e que há, sobretudo, um contexto total absolutamente estável e completamente conhecido, tanto em sua realidade imediata, quanto em todas as suas variantes hipotéticas. Além disso, é também uma certeza tácita a de que Deus conhece esse contexto total. Nesse caso, também está sendo pressuposto que Deus, com sua onisciência, contém a desagregação que a brecha da consumação do juízo acarretaria. Para Suárez e para a Escolástica, Deus é tido como garantia suficiente: Deus é o postulado de que a totalização, que hoje vemos – ou mesmo pressupomos – como impossível, é possível. Em outras palavras, Deus é capaz de um conhecimento intuitivo perfeito (cognitio intuitiva perfecta).

Com efeito, embora Suárez, como disse, não tenha, nem admitido que, ao considerar que as proposições mentais e faladas mudam de valor-verdade com o

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passar do tempo, ele tenha implícita e sub-repticiamente aberto uma brecha e aceito proposições apenas parcialmente consumadas, ele – como que buscando neutralizar essa brecha – vai, a seguir, nesse mesmo parágrafo 10 da sectio 2, abordar exatamente o tema da cognitio intuitiva perfecta. Esse conhecimento divino, de fato, é a garantia de todo o conhecimento humano e, assim, o elixir contra todos os argumentos que possam pôr em risco a teoria da verdade como adequação ou conformidade. Só a cognitio intuitiva perfecta, que conhece a coisa sob todos os aspectos possíveis – ou, nas palavras de Suárez, secundum omnes conditiones existentiae omnino determinatas (DM 8,2,10), não pode vir a sofrer qualquer alteração na conformidade entre conhecimento e coisa; afinal, essa cognitio designaria a coisa de um modo exaustivamente completo e preciso. Essa cognitio designaria, em todos os possíveis momentos no tempo, todas as possíveis alterações da coisa, de modo que – uma vez que não é possível que haja qualquer alteração inesperada – a conotação de que a coisa assim se

compõe tal como ela é designada sempre ocorre1. A completude (a perfeição) do conhecimento intuitivo em Deus é algo intrínseco ao próprio ato do intelecto divino; com isso, Suárez concorda. O que Suárez contesta é que a conformidade, isto é, a conotação entre o conhecimento

e a coisa conhecida, seja também algo intrínseco ao conhecimento2, isto é, que seja alguma coisa ontologicamente positiva que é acrescentado ao ato de conhecer. Em outras palavras, Suárez não identifica a completude (perfeição) do suporte do conhecimento com o próprio conhecimento. Contudo, isso só é possível porque Suárez concede ao conteúdo proposicional uma autonomia, ao menos virtual, embora ele ontologicamente reduza esse conteúdo à realidade do ato do intelecto. Que haja atos do intelecto dos homens que são suporte de conteúdos proposicionais que, ora são verdadeiros, ora falsos, enquanto esses atos do intelectos permanecem “fisicamente” inalterados, mostra, segundo Suárez, que

1 DM 8,2,10: “...in cognitione intuitiva perfecta, qua exacte videtur res in particulari secundum omnes conditiones existentiae omnino determinatas, non potest esse mutatio conformitatis inter cognitionem et objectum, manente immutata cognitione; tunc enim recte procedit argumentum factum, quod semper terminatur actus ad rem prout in tali tempore et momento existentem; pro quo tempore et momento mutari non potest veritas, quamvis pro aliis temporibus mutetur.” 2 DM 8,2,17: “...veritas, scilicet, intellectualis, duo significare potest in Deo: primum, vim intelligendi adeo perfectam, ut nunquam ab scopo aberret, neque aberrare possit, et hoc est magna perfectio simpliciter, quam ex se habet Deus in eminentissimo gradu; et hanc ratione dicitur prima veritas in cognoscendo. Deinde dicere potest actualem conformitatem inter cognitionem Dei, et hoc supponit quidem praedictam perfectionem, non vero addit novam, sed connotat tantum objectum ita se habere in se, sicut cognoscitur.”

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a completude do ato do intelecto não indica que o verdadeiro seja algo ontologicamente positivo. O ato do intelecto divino, que é um ato perfeito, é sempre suporte de conhecimentos verdadeiros, mas isso, por um lado, quer dizer apenas que a conformidade ou conotação entre o conhecimento, do qual o intelecto divino é o suporte, e a coisa conhecida acompanha sempre o ato desse intelecto; por outro lado, isso exatamente não quer dizer que há aqui um outro tipo de conformidade ou que algo positivo inere nesse conhecimento. Observemos aqui o que há de problemático na argumentação de Suárez em DM 8,2,10. Ele indica, por um lado, que há proposições que não se alteram “fisicamente” ao longo do tempo, embora elas se alterem de verdadeiras em falsas ou vice-versa, ou que, embora as coisas denotadas (isto é, os termos correlatos da concomitância conotada) mudam, permanecem inalteradas quanto a sua verdade; dizendo isso, ele tenciona refutar a tese de que a verdade consista em algo positivo que é acrescido à proposição. Por outro lado, ele próprio defende a posição de que a verdade consiste em uma conotação (que, de fato, não é algo ontologicamente positivo), sendo que tal conotação está em dependência da concomitância do objeto designado, o que implica – eu consideraria essa conclusão também como aceitável – que, uma vez que a conotação cessa com a alteração do objeto designado, a proposição também muda – devido à essa mesma alteração do objeto – quanto à sua dimensão semântico-intencional, embora o seu suporte não mude ontologicamente. Ou seja, a duplicidade da dimensão semântico-intencional é que deixa que ela tanto seja redutível ao seu suporte (ou seja, a ser uma qualidade inerente na alma) quanto deixa que ela seja autônoma e irredutível a ele; essa duplicidade também possibilita que se entenda que a proposição tanto mude quanto não mude com a verdade ou a falsidade, bem como com a alteração dos termos correlatos ao conceito formal. Em DM 8,2,10, Suárez está argumentando contra a concepção de que a verdade é algo que constitui intrinsecamente, isto é, onticamente, a proposição, de modo que uma proposição nunca poderia se alterar de verdadeira em falsa e vice-versa. Quando Suárez indica que há algumas proposições que se alteram de verdadeiras em falsas, ele estaria refutando a concepção em questão. Admite-se, contudo, que haja proposições que não se alteram de verdadeiras em falsas; esse seria o caso das proposições acerca dos predicados essenciais. Essas proposições, não sendo referidas ao tempo, seriam sempre verdadeiras ou falsas tanto para os homens quanto para Deus. Além disso, proposições contingentes tal como “Pedro é um apóstolo”, enquanto elas são verdadeiras, são verdadeiras do mesmo modo para os homens e para Deus. A verdade de uma proposição tem de ser igualmente verdadeira indiferentemente de se é um homem ou de se é Deus que a compreende. Que Deus – uma vez que ele sabe mais, ou mesmo

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sabe tudo – pode compreender melhor cada proposição e seu contexto, é incontestável, mas isso não implica que seja acrescida quantitativamente mais verdade à proposição homo est animal quando Deus a conhece do que quando um homem a conhece. Em vista disso, embora a verdade de cada proposição seja a mesma se elas são apreendidas pelo homem ou por Deus, uma vez que o homem recorre a um conhecimento baseado em proposições porque sua intuição das coisas – em contraste com intuição divina, que é completa e infalível– é precária, Suárez parece defender a posição de que esse conhecimento que alcançamos por meio de proposições, ou seja, o conhecimento discursivo, tem um lugar intermediário entre o nosso conhecimento simples (que não é senão essa nossa intuição imperfeita e que, por não ser reflexivo, não chega a ser propriamente nem

verdadeiro nem falso)1 e o conhecimento divino (que é tão perfeito que Deus em um único ato tanto intui quanto julga, constituindo um conhecimento total e verdadeiro). Porém, podemos assim entender que, uma vez que Suárez pressupõe que também um conhecimento parcial pode ser verdadeiro e que ele aceita que através de conceitos formais as coisas também podem ser conhecidas de um modo válido, é coerente que não considere que a verdade das proposições seja de algum modo mais “fraca” que a verdade da cognitio intuitiva perfecta divina. Porém, se entre uma proposição e a coisa por ela designada surge uma conotação de verdade, essa proposição tem de ser aceita como verdadeira tanto pelo homem quanto por Deus. A diferença entre o conhecimento divino e o humano não consistiria em que a verdade das proposições é mais fraca que a intuitiva, mas em Deus conhecer tudo e o homem só um pouco. Afinal, as proposições verdadeiras que os homens dispõem são também para Deus igualmente verdadeiras. O que é certo é que Deus as conhece melhor no sentido em que ele conhece – totalmente – o contexto delas, enquanto que o homem as compreende no máximo em contextos parciais tais como os diversos domínios científicos, de modo que resta ao homem constatar que ele tem sempre ainda muito o que pesquisar e aprender. Ou seja, considerando-se não a verdade contextualmente limitada das proposições (verdade, porém, que, ontologicamente, é a mesma para o homem e para Deus), mas o todo do conhecimento, que no homem é estruturado em ciências enquanto pontos de vista parciais das coisas e que em Deus é a totalidade de uma intuição perfeita, de fato, o conhecimento divino é superior ao conhecimento discursivo humano que, assim, pode ser considerado em uma posição intermediária entre a mera intuição imperfeita das coisas e essa intuição divina. Assim, pode-se dizer que a posição de Suárez é, com efeito, a de que o conhecimento que alcançamos discursivamente, isto é, por meio de proposições,

1 Cf. DM 8, sectio 3.

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está em um lugar intermediário entre o conhecimento simples (que em nós é uma intuição imperfeita), ao qual, aliás, não cabe nenhuma verdade em sentido

próprio1, e o conhecimento divino que é tão perfeito que em um único ato tudo é

intuído e julgado2. Contudo, – podemos assim ponderar – quando Suárez pressupõe que também um conhecimento que é apenas parcial pode ser verdadeiro e que através de um conceito formal se pode conhecer de um modo válido a coisa em seu conceito objetivo, ele está, tanto possibilitando que o intelecto humano chegue à verdade, quanto está “enfraquecendo” a verdade a qual o intelecto pode alcançar. Com isso, Suárez estaria mesmo contaminando o próprio conceito de verdade, pois ele está admitindo sua parcialidade, sua dependência do contexto – e da temporalidade – e sua possibilidade de bloqueio externo, a saber, pela vontade; desse modo, com a aceitação de que pode haver conhecimento verdadeiro mais “fraco”, fica – no meu entender – “enfraquecido” o próprio conceito de verdade divina, que deveria ser a terra firme de toda a teoria da verdade, pois o conhecimento divino passa a ser nem mais tanto o detentor da verdade (à qual nos uniríamos um dia na visio beatifica), mas, antes de tudo, Deus tem de ser o grande controlador, isto é, ele passa a ser o que, ao melhor conhecer os contextos, os estabiliza, ou seja, a aceitação da verdade das proposições põe a verdade irremediavelmente em dependência do contexto, da coerência e da intervenção divina para excluir ou controlar o fora. O que sustenta o discurso de Suárez e da Escolástica em geral é a aceitação de que a postulada infinitude de Deus controla a proliferação dos contextos e assimila todo o fora; em última instância, o que é importante na Escolástica não é provar que Deus existe, mas é mostrar, ou ao menos aceitar, que Deus domestica todo o fora; por exemplo, há que se dizer – uma vez que se pressupõe que tudo está sob controle – que Lúcifer foi criado por Deus, que Deus pode prever todo o mal, bem como reger o mundo com sua praedeterminatio physica ou com sua scientia media, enfim, que nada de fora, de descontrolado ou anarquizante, pode surpreender a Deus. Assim, como acabamos de ver, ainda que nosso conhecimento seja imperfeito, na medida em que ele – tomado proposição por proposição e não em sua totalidade – seja verdadeiro, sua verdade é a mesma tanto para o homem quanto para Deus. Desse modo, pode-se pensar que Suárez, a respeito da verdade das proposições, dirá (e nisso ele está coincidindo com que Frege virá a

dizer) que a verdade não tem graus3, ainda que, de fato, no que diz respeito à coerência da ordenação dos conhecimentos adquiridos se possa aceitar uma

1 Cf. nota acima. 2 Suárez De Deo, lib. 3, c. 2, in: O. O., vol. 1, p. 199. 3 Cf.. Frege<1> p. 32: “Die Wahrheit verträgt kein Mehr oder Minder” Frege<2> p. 43: “Zunächst erkennen wir, daß das Schöne einen Grad hat, nicht aber das Wahre”.

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ordenação por graus. Com efeito, Suárez em uma passagem da Disputação 9 diz que a verdade não é passível de mais ou de menos (non recipit magis aut

minus)1. Contudo, Suárez, nessa mesma passagem, tenta ainda justificar que se

fale em “mais verdadeiro” (verior)2. Porém, é bem evidente que se trata aqui apenas de um modo de falar que Suárez está apenas passando adiante e não é para ele particularmente importante. Com efeito, não poderia ser senão um modo de falar, pois onticamente a verdade só poderia ter graus, se ela fosse – também onticamente – algo; porém, uma vez que, sendo ela apenas uma conotação, ela não é nada de ontologicamente positivo, então ela não pode ter graus, ou seja, negar graus de verdade é coerente com a teoria até aqui defendida da verdade como conotação. Em todo caso, cabe notar que a posição de que a verdade não aceita graus pode ser encontrada em outros filósofos

contemporâneos de Suárez3. Após essa longa e intrincada discussão sobre a verdade e no que ela consiste “ontologicamente”, é conveniente que, a seguir, eu apresente um resumo. Na seção 2 da disputação 8, Suárez contesta primeiramente que a verdade seja algo absoluto que seria acrescentado à proposição mental [DM 8,2,6]. Ele contesta também que a verdade seja algo ontologicamente positivo que co-constituiria a proposição [DM 8,2,6 e DM 8,2,10]. Contra essa concepção, Suárez indica que há proposições (tais como as que têm uma referência temporal imprecisa) das quais o valor verdade se altera ao longo do tempo sem que a proposição se altere onticamente [DM 8,2,10]. Ele recusa a concepção de que a verdade consistiria em uma relação predicamental [DM 8,2,7], assim como ainda recusa uma outra posição segundo a qual a verdade consistira em uma relatio rationis [DM 8,2,8]. Suárez tampouco aceita a concepção de que a verdade, ora consistiria em uma relação predicamental, ora em uma relatio rationis [DM 8,2,4]. Para Suárez, a conformidade da verdade consiste em uma conotação [DM 8,2,9]. Essa conotação tem, embora Suárez não o explicite, uma face semântica e uma face “ontológica”. Semanticamente essa 1 DM 9,1,24: “Fateor ergo omnes propositiones veras, quoad carentiam falsitatis esse aequales; item verum est habere quandam aequalitatem in proportionali conformitate ad sua objecta, quia illa consistit (ut ita dicam) in indivisibili, et ideo in hoc non recipit magis aut minus.” 2 Loc. cit.: “Nihilominus tamen dicitur una propositio verior alia, quia immutabilior, habensque cum suo objecto magis infallibilem conformitatem. Item ratione fundamenti dici potest verior, quia fundatur in esse veriori; e contrario vero dicitur magis falsa propositio, quia impossibilior, et quia magis recedit a vero; sic magis falsum esse dicitur, quod mille sint aequalia duobus, quam quod quatuor, licet in carentia veritatis aequalia sint.” 3 Cf. Izquierdo, p. 119b: “Una cognitio non potest esse magis aut minus vera quam alia. Hurtado de Mendonza, p. 824: Una cognitio non est verior alia.”

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conotação seria uma denominação que surge de um conteúdo semântico-intencional que designa e apreende a coisa no mesmo ato em que afirma que a coisa de fato se compõe tal como ela está sendo designada. Mas o que seria ontologicamente essa conotação que surge desse conteúdo semântico-intencional ou, para usar um termo de Suárez, dessa imago? A conotação é algo que quando são dados o fundamento (conceito formal) e o termo (a coisa conhecida, ou antes, as coisas conhecidas tal como elas se compõem) adequados, isto é, quando certas condições são preenchidas, simplesmente “surge” sem requerer nenhuma causalidade eficiente; assim, ao “surgir” a conotação de verdade, não necessariamente surge uma relação predicamental, embora uma tal relação possa às vezes também surgir e, por assim dizer, “recobrir” a conotação de verdade. Quando as condições para o surgimento da conotação de verdade não são preenchidas o que surge é uma conotação de falsidade (Disputação 9). V - FALSIDADE E CONOTAÇÃO (DISPUTAÇÃO 9) Como já vimos, quando há um fundamento (no caso, um ato mental) e um termo correlato (no caso, a coisa conhecida tal como ela é), então surge inevitavelmente a conotação de verdade. A conotação de verdade surge da concomitância do ato de conhecimento com a coisa conhecida. A questão que pode ser posta aqui é a de que, se a conotação da verdade surge inevitável e incausadamente, então como podemos chegar a juízos falsos? Segundo Suárez, a falsidade em sentido impróprio consiste em qualquer não concomitância. Se eu, por exemplo, digo “a neve é branca” e o céu é azul, então minha proposição é, em sentido impróprio, falsa. A rigor, nem se deveria

falar aqui em falsidade1. Também se pode atribuir falsidade em sentido

impróprio ao conceito simples2 (aliás, pode-se também atribuir a ele, quando conveniente, verdade em sentido impróprio) quando o conceito é pensado

1 DM 9,1,19: “At vero falsitas improprie dicta, quae rebus, vel simplicibus conceptibus attribuitur, solum est denominatio extrinseca, vel signi, vel causae, seu occasionis, vel objecti falsi judicii, vel certe interdum significat negationem aliquam convenientiae inter aliquam rem, et aliquem conceptum simplicem, quae potius consisstit in carentia perfectionis, seu adaequationis perfectae et integrae, quam in directa et opposita disconvenientia, et ideo non meretur nomen proprie falsitatis...” 2 Uma vez que o conceito simples apenas denomina extrinsecamente o objeto conhecido, isto é, uma vez que ele não é reflexivo não se atribui a ele nem verdade nem falsidade. É só “por metáfora” que se fala aqui em falsidade. DM 9,1,14: “...in simplicibus conceptibus, seu acctibus cognoscendi, sive intellectus, sive sensus, non est propria falsitas, seu deceptio, sed per metaphoram eis attribuitur, sicut rebus ipsis.”

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indevidamente em referência a uma coisa enquanto ele está visando outra1. A

falsidade em sentido próprio só diz respeito à compositio2. Se eu julgo a proposição “a neve não é branca”, surge uma não-conformidade com a coisa que não se compõe assim como ela está sendo denotada. No lugar de uma conotação

de semelhança, surge uma conotação de dissemelhança3. A falsidade atribuída à proposição, isto é, ao juízo, tal como se lhe atribui, quando conveniente, a

verdade4. Mas o que está em questão é: por que proferimos por vezes juízos verdadeiros e por vezes falsos? Suárez indica que o homem tanto por meio da

inventio quanto por meio da doutrina chega a juízos verdadeiros e falsos5. Um juízo por meio da inventio baseia-se sempre nas coisas mesmas (rebus ipsis) na

1 DM 9,1,21: “...negatio autem convenientiae et conformitatis inter cognitionem et rem, quae non est objectum ejus, non habet rationem falsitatis, quamvis interdum ita nominetur, propterea quod res quamdam similitudinem vel propinquitatem cum objecto habeat, et aliter quam in se sit, repraesentari videatur.” 2 DM 9,1,17: “...falsitatem proprie reperiri in compositione et divisione intellectus.” 3 DM 9,1,22: “Et ratio est clara, quia veritas vel falsitas duo includit, scilicet, judicium, seu existimationem intellectus, et talem coexistentiam, seu connotationem objecti; et ideo ex mutatione alterius potest mutari veritas vel falsitas.” 4 Parece-me que Suárez confunde por vezes juízo com certitudo. Em DM 9,1,17 ele diz: “Unde ipsa etiam extrema in actuali objecto complectitur, unum ut materiam seu subjectum, cum quo aliud comparat, et judicat habere cum illo conjunctionem, et consequenter in actu exercito judicat conceptum unius habere conformitatem cum alio; ergo, quando inter illa extrema non est illa conjunctio seu conformitas, quam intellectus judicat, discordat judicium ab objecto suo; est ergo in illo propria ac rigorosa falsitas.” Se fosse assim, não se trataria então de um juízo, mas simplesmente de uma certitudo que se faz passa por um juízo verdadeiro, pois nesse caso um juízo não poderia ser considerado como consumado (a não ser que Suárez passasse a conceder que há juízos só parcialmente consumados para além da referência temporal que ele já admitiu como podendo ser incompleta; mas, se ele o admitisse, então seria difícil ele recusar que todos os juízos humanos são incompletos e que nunca atingimos uma verdade que não esteja contaminada pela falsidade). Em DM 9,1,22 ele diz: “Ut ergo verum et falsum contrarie opponantur, necesse est ut sumantur respectu ejusdem omnino objecti; tunc enim oppositio oritur, non ex relatione sola, seu quasi relatione, sed ex ipsismet actibus intellectus habentibus oppositas habitudines ad tale objectum, quatenus unus est per modum assensus, alius per modum dissensus, et ideo tunc est propria contrarietas inter tales actus...” A questão é que o contrário de um juízo pode ser, no máximo, uma proposição cujo juízo não foi consumado e à qual cabe uma falsidade in significando; mas nunca pode haver um juízo falso, pois um juízo ou é verdadeiro ou não é um juízo consumado, é incongruente falar em um juízo falso. Cf. a passagem DM 9,2,6 citada numa nota mais abaixo. 5 DM 9,2,5: “...duplici via posse hominem cognitionem acquirere, seu de rebus judicare, scilicet, <1> inventione, et <2> doctrina seu disciplina, et utraque via pervenire potest ad verum et falsum judicium.”

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medida em que elas são representadas1. Um juízo por meio da doutrina pode se

basear nas coisas mesmas, mas muitas vezes se baseia em autoridades2. Para

Suárez, a falsidade se deve à vontade humana3, que é o que move o intelecto humano a julgar, ainda que ele não disponha de evidências coercitivas. Em outras palavras, diante de evidências adequadas, o intelecto sempre tenderia a pronunciar juízos verdadeiros; diante de evidências, insuficientes o intelecto sempre tenderia a suspender o juízo; seria a vontade que precipitaria o intelecto a julgar antes de considerar todas as evidências disponíveis, ou mesmo sem evidências suficientes. Acompanhemos o que Suárez diz:

...nam ad veritatem potest intellectus necessitari, ad

falsitatem autem non potest, simpliciter et absolute loquendo, et ideo quoad exercitium nunquam potest in

falsum judicium incurrere... [DM 9,2,6] ...pois, falando propriamente, o intelecto pode necessitar para a verdade, mas não pode para a falsidade e, portanto, quanto ao seu exercício nunca pode incorrer num juízo falso...

O intelecto não poderia, portanto, senão pronunciar juízos verdadeiros. O erro só pode advir da interferência da vontade:

...nisi per liberam motionem voluntatis, nam, seclusa necessitate, non potest determinari intellectus ad judicium, nisi per voluntatem, cum ipse liber non sit. [DM 9,2,6] ...senão pelo movimento livre da vontade, pois, quando não há nada que necessite, o intelecto não pode ser determinado a julgar senão pela vontade, pois ele [o intelecto] não é livre.

1 DM 9,2,5: “...judicium, quod sola inventione acquiritur, semper fundantur in rebus ipsis...” 2 DM 9,2,5: “...judicium autem per disciplinam, interdum hoc modo fit, interdum vero nititur in sola auctoritate dicentis, seu docentis, ita ut aliquando doctrina solum se habeat ut proponens et applicans objecta et media judicandi, interdum vero sit tota ratio judicii.” 3 DM 9,2,5: “Quoad exercitium vero propria causa <sc. falsitatis> est voluntas ipsius hominis judicantis, quod universale est in omni judicio falso, etiamsi per inventionem acquiratur.”

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Ou seja, a vontade interfere no juízo. O juízo, no que diz respeito ao intelecto, só pode, ou ser verdadeiro, ou ficar suspenso por não haver como necessitar que o intelecto julgue. É só a vontade que pode determinar (isto é, no caso, o juízo não poder ser consumado por insuficiência de dados) que o intelecto julgue de modo falso, ou seja, que ele se iluda de que está julgando, pois – uma vez que o intelecto não está necessitado a julgar – não está havendo, a rigor, julgamento, ainda que daí possa resultar a certitudo. A vontade levaria, assim, a que não houvesse a consumação do juízo; ela estaria, pois, na origem de

um juízo ilusório, mas que é tido como certitudo1. Enfim, seguindo Suárez, pode-se dizer que a falsidade se deve à vontade e às evidências enganosas, embora só possa haver evidências enganosas também por precipitação do intelecto, a saber, quando o intelecto é movido pela vontade. A imperfeição de nossa vontade se deve, por sua vez, ao pecado original. Porém, o pecado original é uma doutrina teológica e Suárez evita discuti-la nas DM. Sendo assim, eu também não discutirei a questão da imperfeição da vontade. Porém, nós precisamos ainda pôr a questão de por que nós nos deixamos iludir por evidências enganosas. Por que é para nós tão difícil chegarmos à verdade? Suárez atribui a dificuldade em atingirmos o conhecimento verdadeiro à inadequação entre o nosso intelecto e as coisas. Essa inadequação se deve tanto

ao intelecto quanto às coisas2. O intelecto humano é imperfeito, as coisas também são imperfeitas e há ainda coisas que são muito mais perfeitas do que nosso intelecto pode alcançar. Devido a essas imperfeições nós dispomos basicamente de evidências duvidosas. Sendo assim, o juízo acerca dessas evidências, que é afinal a inventio, ficará sempre na dependência dos demais raciocínios. Uma inventio errônea pode se dever tanto a uma falsa interpretação

das evidências imediatas quanto a doutrinas falsas3. Contudo, uma doutrina só pode, em última instância, ser falsa devido a uma inventio falsa; falsa, embora

independente de qualquer doutrina4. A inventio é, nesse caso, um juízo

1 O que estou indicando é que Suárez está de certo modo confundido a questão da origem da falsidade com a questão da origem da certeza enganosa. Sua doutrina da verdade como sendo uma conotação inevitável e incausada parece ser incompatível com uma doutrina da falsidade. Para uma discussão mais detalhada da questão da certitudo, cf. Schlagenhaufen. 2 DM 9,2,10: “...originem hujus falsitatis, quae in ipsarum rerum cognitione miscetur absque extrinseca auctoritate, radicaliter oriri ex eo, quod homo non concipit res per proprias earum species, et prout in se sunt...” 3 DM 9,2,9: “Semper ergo falsitas actualis, seu exercita per actuale judicium, habet proximam originem in humana voluntate, quanvis quoad specificationem (ut sic dicam) seu quoad motivum oriatur ex auctoritate creata, seu ex imperfectione ejus praedicto judicandi modo.” 4 DM 9,2,9: “Alio modo potest id provenire ex priori errore ipsius loquentis, seu magistri docentis, cujus error provenire ulterius potuit ex alterius doctrina, et falsa

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originário através do qual nós, ou alcançamos a coisa em si, ou não a alcançamos e corremos o perigo de falsearmos nosso caminho desde o início. Mas por que não suspendemos nosso juízo originário até que o intelecto nos necessite de modo a somente proferirmos juízos verdadeiros? Por que nos precipitamos (devido a nossa vontade pecaminosa?) para pronunciarmos juízos ilusórios (que são antes certitudines ilusórias e juízos não consumados)? Suárez não nos diz nada que possa de fato responder a essas questões. Não me parece que ele pudesse fazê-lo, já que, do ponto de vista estritamente filosófico, suas concepções excluem a possibilidade da falsidade; afinal, como seria possível que a vontade impedisse o surgimento de conotações de verdade? A rigor, a doutrina de Suárez leva a que se diga que um conhecimento é verdadeiro independentemente de se ter ou não o sentimento de certeza quanto à sua verdade, pois o que é essencial à verdade é o surgimento da conotação no momento da afirmação e do assentimento pelo juízo que se baseie em evidências suficientes e não em um sentimento subjetivo de certeza, que, afinal, pode ser ilusório, que pode ser o resultado da precipitação do intelecto pela vontade. VI - AS PROPOSIÇÕES DE VERDADE PERPÉTUA (DM 31,12,38-47) Uma vez que reservamos para um outro texto a questão da verdade das proposições acerca dos futuros contingentes, falta apenas discutirmos uma importante passagem de Suárez a respeito da verdade das proposições. Trata-se de seu famoso texto sobre a verdade das proposições de verdade perpétua. Além de ser um texto importante em Suárez e, portanto, para a Escolástica em geral, esse texto se tornou conhecido principalmente porque Descartes o parafraseou. No entanto, não discutirei aqui a apropriação cartesiana desse texto e em que sentido Descartes se afasta de Suárez; manterei a posição de comentador de Suárez. Lendo-se corretamente a passagem DM 31, 12, 38-47, na qual é tratado o problema das proposições às quais se atribui perpetuamente verdade, pode-se ver que essa passagem também corrobora a recusa de Suárez quanto a haver conteúdos proposicionais autônomos. O que está em debate nessa passagem é se às proposições – nas quais afirma-se acerca do sujeito da proposição os predicados essenciais dele – atribui-se perpetuamente verdade e por que, nesse caso, pode-se atribuir a elas perpetuamente verdade. Cabe lembrar que Suárez, como mostrei acima, ou peremptoriamente afirma que uma proposição sempre diz respeito a um suporte “físico”, ou – quando discute o conteúdo semântico e,

testificatione; ne tamen in hoc genere in infinitum procedatur, sistendum necessario est in aliquo errore commisso, seu acquisito via inventionis ab aliquo, qui veritatem inquirens in errorem lapsus est, putans se verum invenisse” (o grifo é meu).

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assim, universal do conceito formal ou do conteúdo proposicional – ele é reticente e, desse modo, “evita” prosseguir com a discussão de modo a ter de tomar uma posição clara a respeito do estatuto ontológico dessa face semântica e universal de algo que ele não abre mão de afirmar ser “físico” e individual. É importante que eu indique, já desde o início de meu comentário, que Suárez nesse texto parece atentar cuidadosamente para uma diferença de sentido entre “eterno” (aeternum) e “perpétuo” (perpetuum). Maurer também acredita poder constatar essa mesma diferença de significados em Tomás de

Aquino1. Para Suárez, a duração atual de uma coisa se distingue apenas ratione da existência atual, ou seja, é intrínseca a ela. Em se tratando da existência atual de Deus, que é uma existência incausada, a ela corresponde também uma duração característica. Essa duração característica – ou seja, intrínseca – a essa existência incausada Suárez chama de eternidade. Sendo Deus a única coisa cuja existência é incausada, cabe somente em relação a ele usar os termos “eterno” e “eternidade”. Os possíveis não envolvem nenhuma existência atual, de modo que não se pode atribuir a eles nenhuma duração atual, ou seja, não se pode atribuir a eles, nem a eternidade, nem o aevum, nem o tempo; a eles só se pode atribuir algo como uma eternidade negativa. Essa “eternidade negativa” é que é chamada de perpetuitas ou perpetuum. Quem ler com atenção essa passagem

poderá verificar que Suárez segue conseqüentemente essa distinção de sentido2. Como já vimos acima, uma proposição é verdadeira se ela, tanto denota extrinsecamente que uma coisa se compõe de um modo determinado, quanto conota que ela em si se compõe desse modo determinado tal como foi denotado. Desse modo, uma proposição nunca pode ser por si só verdadeira; antes, sempre é necessário que isso que essa proposição denota seja assim como ela está denotando. O verdadeiro não depende somente da proposição, mas também da coisa denotada, isto é, do seu conceito objetivo. Sendo assim, a essas proposições só pode ser atribuída perpetuamente verdade se aquilo que elas denotam também é perpétuo. Há, porém, uma questão que Suárez não discute

nessa passagem: se as próprias proposições são perpétuas3. O cuidado que se deve ter aqui é o de não se vir a ler o texto tal como se Suárez simplesmente aceitasse que as proposições seriam como que conteúdos semânticos autônomos tal como os complexa significabilia de Gregório de Rimini ou os Gedanken de 1 Cf. Maurer. 2 Por precaução gostaria de não afirmar que Suárez segue essa mesma distinção ao longo de toda a sua obra. Contudo, não conheço nenhuma passagem que seja divergente. Há um trecho em DM 2,2,14 em que Suárez diz: “...quomodo haec propositio: Homo est ens, dicitur esse aeternae veritatis...”, mas a palavra “dicitur” indica que Suárez não está necessariamente falando por si próprio. 3 Certamente se pode pensar que essas proposições são perpétuas na medida em que a possibilidade de seu suportes “físicos” é perpétua.

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Frege. Ao contrário, a preocupação de Suárez em manter o conteúdo semântico associado a um suporte pode ser constatada quando ele diz que se atribui às

proposições perpetuamente verdade in cognoscendo (veritas actualis)1 somente na medida em que elas estão no intelecto divino (e, nesse caso, se trataria também de proposições verdadeiras eternas). (A veritas actualis, não sendo algo positivo, não acrescenta ao intelecto divino nenhuma perfeição a mais.) Parece-me claro que o que Suárez discute nesse texto quando se refere às proposições (ele usa, por vezes, a palavra enunciationes, por vezes,

propositiones) é o mesmo que Tomás de Aquino chama na Sth1 q. 16 a. 82

enuntiabilia3, a saber, todas as proposições enquanto são suportes “físicos” que

1 Já indiquei que é próprio do estilo de latim renascentista de Suárez a variação vocabular, ou seja, Suárez por vezes parece evitar se fixar em uma terminologia muito repetitiva; de um modo geral trata-se, de fato, apenas de variações estilísticas sem maior significação. Com efeito, as expressões veritas actualis e veritas formalis são sinônimas. Tanto a verdade in cognoscendo quanto a verdade in significando são ditas veritas actualis ou veritas formalis. Nessas expressões, o que está em questão é a verdade das proposições, consumadas ou não. 2 Refiro-me particularmente à SthI q.16 a.8: “...veritas enuntiabilium non est aliud quam veritas intellectus. Enuntiabile enim et est in intellectu, et est in voce.” Nesse articulus, Tomás está partindo do pressuposto que o significado de uma proposição é tão estreitamente ligado ao seu suporte que para ele parece ser impossível falar de verdade sem que haja um suporte atual. Uma vez que somente Deus é eterno, somente seu intelecto pode servir como um eterno suporte de verdade: “...ratio circuli et duo et tria esse quinque, habent aeternitatem in mente divina”. No que toca a verdade in cognoscendo, Suárez também é dessa opinião. Contudo, Suárez não exclui de seu texto a questão da verdade in significando. Sobre a terminologia de Suárez, é conveniente indicar que em DM 31,12,38-47 ele não usa a expressão “enuntiabilia”. Ele parece preferir a palavra “enuntiatio”, que é usada por Cícero, e é, sem dúvida, mais adequada ao seu latim marcado pela Renascença. Mas isso também só é possível porque Suárez não faz nenhuma distinção de sentido entre “enuntiatio” e “enuntiabilia”, tal como faz Soncinas para quem o “enuntiabile” é o conteúdo proposicional que é autônomo frente à “enuntiatio” (cf, a nota abaixo). Em Tomás de Aquino, “enuntiatio” e “enuntiabile” também são, no que diz respeito à presente discussão, basicamente sinônimos. 3 Um filósofo da Escolástica, que Suárez cita com freqüência, é Soncinas; diferentemente de Suárez, porém, ele distingue entre “enuntiabile” e “enuntiatio”: “...esse enuntiabile non est aliud, nisi esse aptum natum enuntiari sive significari per aliquam enuntiationem veram vel falsam” (Soncinas lib. 6 q. 19 p. 127); cf. também: “...enuntiabile non est ipsa propositio. Sed enuntiatio est signum enuntiabilis. Nam ista propositio, homo est albus, significat hominem esse album, quod est eius enuntiabile” (loc. cit. p. 128). Para ele, o enuntiabile é o suporte de verdade: “Dico quod per prius convenit <sc. veritas> enuntiabili” (loc. cit. p: 128). Para Soncinas, a verdade é atribuída aos enuntiabilia de três modos: “Uno modo sua veritate <sc. enuntabilium> intrinseca et formali. Secundo denominatione extrinseca, scilicet veritate enuntiationis. Tertio divini intellectus cognoscentis enuntiabilia, quae denominatio est etiam extrinseca”. Os “enuntiabilia” de Soncinas se aproximam bastante das “Sätzen an sich” de Bolzano: A verdade é atribuída aos “enuntiabilia” de Soncinas de um modo intrínseco e não em dependência da enunciação (“enuntiatio”). Não há em Suárez um

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denotam algo, enquanto são quer atos do intelecto quer sons vocais, ou enquanto podem ser formulados mental ou oralmente pelos homens. Pode-se atribuir aos enuntiabilia algumas verdades de um modo perpétuo, mas há também enuntiabilia que só em função de situações bem determinadas podem se tornar verdadeiros. Suárez apresenta primeiramente nessa passagem duas opiniões que ele recusará. A seguir, ele esclarece os dois significados da cópula, com o que ele expressa a sua própria posição. A primeira opinião concede que só se pode atribuir verdade a essas proposições quando as coisas que possuem os predicados essenciais começam a existir atualmente. Sendo assim, essas proposições cessam de ser verdadeiras se as coisas predicadas deixarem de existir. Desse modo, haveria somente verdades contingentes o que vai contra o que dizem vários Pais da Igreja tais como Agostinho e Anselmo. Contudo, a argumentação em defesa dessa posição segundo a qual se poderia atribuir perpetuamente verdade a essas proposições na medida em que elas estão no intelecto de Deus acarretaria que se poderia atribuir verdade perpétua também a proposições sobre acidentes, pois também tais proposições estão no intelecto divino. Não há, portanto, verdades puramente discursivas, isto é, independente de uma coisa denotada; tanto a verdade in cognoscendo quanto a in significando só se dão entre uma proposição mental, escrita ou falada e a coisa denotada (ou seja, entre a proposição e o seu conceito objetivo da coisa). Também Deus, que prevê todos os enuntiabilia ou enuntiationes, só pode julgar a verdade deles e preservá-la em sua eternidade, se essas proposições correspondem às coisas, isto é, aos seus conceitos objetivos. Ou seja, mesmo o juízo de Deus não pode causar a correspondência conotativa na qual a verdade acontece inevitavelmente, se não forem dadas as suas pré-condições (isto é, a proposição e a coisa designada). Como já vimos, Deus, nem com sua potentia absoluta, pode causar a conformidade da verdade pois ela não é algo atual. Suárez contesta, porém, não somente que o conhecimento que Deus tem desde a eternidade sobre a verdade dessas proposições dependa da atualidade das coisas designadas e que Deus desde a eternidade, de algum modo, possa substituir a atualidade ainda ausente

dessas coisas (supondo-se que tal atualidade fosse necessária)1, mas contesta também que o fundamento para a necessidade dessa verdade esteja em Deus. Ele argumenta:

tal conceito de “enuntiabile”. Essa concepção de Soncinas está subsumida por Suárez na segunda opinião, que ele refuta em DM 31,12,41-43. 1 Cf. DM 31,12,40.

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...neque illae enuntiationes sunt verae quia cognoscuntur a Deo, sed potius ideo cognoscuntur, quia verae sunt, alioqui nulla reddi posset ratio, cur Deus necessario cognosceret illas esse veras; nam si ab ipso Deo proveniret earum veritas, id fieret media voluntate Dei; unde non ex necessitate proveniret, sed voluntarie. [DM 31,12,40] ...e nem aquelas enunciações são verdadeiras porque são conhecidas por Deus, mas antes são conhecidas porque são verdadeiras, de outro modo não se poderia dar a razão de por que Deus necessariamente as conheceria como sendo verdadeiras, pois se a verdade delas fosse proveniente de Deus isso se daria por meio da vontade de Deus e, assim, não proviria por necessidade mas voluntariamente.

Não só o fundamento para que as proposições (enuntiationes) que estão no intelecto de Deus sejam verdadeiras está fora do intelecto divino, mas também o fundamento para a necessidade dessa verdade não está em Deus, isto é, não está em sua vontade. Ou seja, o fundamento para a necessidade dessa verdade está naquilo que o intelecto de Deus designa. Concluindo, as proposições sobre predicados essenciais não denotam, nem coisas que são atuais, nem Deus pode prescindir dessas coisas e sustentar as proposições como verdadeiras. A segunda opinião diz que, embora essas verdades não sejam eternas (aeternae), a conexão dos predicados essenciais com as essências são eternas

(aeternae)1. As proposições com predicados essenciais diriam respeito a essas conexões que existiram eternamente. O que Suárez, primeiramente, contesta é que haja, além de Deus, qualquer coisa que seja eterna. Ele relata a segunda opinião sem usar a palavra “perpétuo”, que exatamente indica a eternidade negativa dos possíveis (pois os possíveis não são, isto é, não existem em ato), mas a palavra “eterno”, o que supõe que essas conexões são algo mais do que os possíveis. Contudo, Suárez põe a questão de se essas conexões eternas são algo ou não são nada. Se elas são algo, então elas têm que ter uma causa e não podem ser eternas; se elas não são nada, então elas não precisam de uma causa eficiente, mas é bem estranho que elas possam então ser eternas. Evidentemente, Suárez está pressupondo aqui que, se essas conexões são

1 DM 31,12,41: “Hanc autem sententiam ita declarant multi ex dictis auctoribus, ut dicant, essentias quidem rerum creabilium non esse aeternas, simpliciter loquendo, ut supra, sect. 2, a nobis probatum est; connexiones autem praedicatorum essentialium cum ipsis essentiis esse aeternas.”

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eternas e não, tal como os possíveis, apenas perpétuas, elas têm de ser de algum modo atuais, o que, porém, exige uma causa eficiente, a não ser que se trate de Deus, ele próprio, que não tem nenhuma causa eficiente. Contudo, essa segunda opinião exatamente propõe que essas conexões não estão em Deus, mas que estariam fora de Deus, o que, segundo a argumentação de Suárez, é inaceitável. Além disso, assim prossegue Suárez, uma tal conexão é uma união (unio), e uma união é, ou uma coisa, ou um modus da coisa. Mas se não há nenhuma coisa, além de Deus, que seja eterna, então nenhuma conexão pode ser eterna. Conclusão: isso a que as proposições sobre predicados essenciais dizem respeito não pode ser nada de eterno fora de Deus. Para esclarecer afinal o que é que essas proposições denotam, Suárez discute os significados da cópula. Esse procedimento é bem pertinente pois – como diz Suárez em um outro lugar – o sujeito deve “supor” (isso é, “substituir”, “representar”, “referir-se a”) segundo a exigência da cópula (subjectum debere

suponnere juxta exigentiam copulae)1, de modo que esclarecer o significado da cópula nessas proposições sobre predicados essenciais é, sem dúvida, o melhor caminho para determinar aquilo pelo que o seu sujeito “supõe” (isto é, determinar o que sujeito “representa”). Suárez entende que a cópula tem dois significados. (1) Primeiramente, ela significa a ligação dos extremos na própria coisa tal como a duração real e atual, que de fato não seria nada, se os extremos não existissem atualmente (pois o tempo intrínseco só se distingue ratione da atualidade). (2) No seu segundo significado, a cópula abstrai do tempo atual, de modo que a proposição não mais se refere ao tempo atual e à atualidade das coisas e, assim, denota apenas, ou a coisa enquanto ela é pura possibilidade, ou entia rationis, pois só a objetividade

das possibilidades puras e os entia rationis são destituídos de atualidade2. Suárez explica a necessidade da conexão atribuindo-a à identidade dos termos. Trata-se, pois, nas proposições sobre predicados essenciais, não de uma conexão entre duas coisas que se distinguem realmente, mas de uma distinctio rationis, isto é, de uma identidade em um ou em vários indivíduos. Uma vez que se trata de uma identidade ou de uma distinctio rationis, é evidente que a conexão não é ontologicamente uma coisa para além do que os indivíduos já são, no caso, os extremos se distinguem apenas ratione, isto é, apenas após o intelecto ficcionalizar a distinção, ou seja, eles são idênticos.

1 Scientia quam Deus habet de futuris contingentibus, lib. 2, c. 5, n. 12, p. 358a. 2 Como já foi dito, Deus não ficcionaliza nenhum ens rationis. Ele compreende a frase Chimaera est chimaera sem recorrer a entia rationis. Seria necessário que se discutisse a questão da “possibilidade” dos entia rationis que Deus conhece desde a eternidade na medida em que ele conhece que os entia rationis podem ser ficcionalizados. Essa discussão não existe em Suárez.

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As proposições sobre predicados essenciais, isto é, com a cópula no seu segundo significado, referem-se às coisas das quais a objetividade não depende do tempo atual, isto é, não depende de existirem atualmente. Se nós nos lembrarmos que Suárez defende em sua doutrina da verdade que uma conotação de verdade não surge somente entre o conceito formal e a coisa denotada, mas também entre o conceito formal e o conceito objetivo, então podemos constatar que esse texto é coerente com a Disputação 8. E, de fato, é só quando recorremos às doutrinas da connotatio e da relatio praedicamentalis que essa passagem de Suárez, bem como seus argumentos e discordâncias com outros escolásticos, fica compreensível. Desse modo, essa passagem sobre a verdade perpétua confirma mais uma vez o que afirmei no início deste meu texto: sem o conhecimento das doutrinas “menores”, embora elas nem sempre sejam exaustivas e por vezes até sejam fragmentárias, as argumentações mais importantes das Disputationes Metaphysicae podem se tornar inextricáveis. Esse também é, em geral, o problema de quando se tenta recorrer ao texto de Suárez para contextualizar ou esclarecer, ainda que contrastivamente, o que Descartes diz em seus textos, pois com base em uma leitura insuficiente de Suárez (ou seja, com base em uma leitura que desconhece as doutrinas “menores” dele) se estará recorrendo a um texto ao mesmo tempo complexo em sua sistemática e impenetrável em seus detalhes numa tentativa vã de explicar um texto – o de Descartes – que, ao que tudo indica, tampouco se pôs em diálogo com as minúcias escolásticas suarezianas. Pode-se dizer que ler o texto de Suárez em seus meandros era, mesmo no século XVII, tarefa para especialistas. Do mesmo modo, ler Suárez no século XXI, ainda mais se for para através dele tentar esclarecer algo dos textos de Descartes, continua sendo tarefa para especialistas em Escolástica. Amadores, com leituras superficiais, só alcançaram e só alcançarão obscurecer o que já é obscuro. Mas, se comparar Suárez e Descartes é difícil, também não é menos problemática a comparação entre Suárez e Bolzano, ou entre Suárez e Frege. Como já indiquei, não se deve comparar os “Sätze an sich” de Bolzano apenas com o conceito objetivo, mas um melhor paralelo, ainda que não sem dificuldades, seria compará-las com a junção do conceito objetivo e do conceito formal enquanto este último é um conteúdo semântico. Por um lado, comparar apenas com o conceito formal não é suficiente, pois Suárez não admite que o conceito formal, enquanto ele é algo semântico-intencional, seja algo autônomo; antes, ele o compreende como estando em dependência de um ato do intelecto (isto é, ao menos, na dependência da possibilidade de um ato do intelecto), ainda que Suárez, como disse, “deixe funcionar” a face semântica do conceito formal e que exatamente seja essa denegada dimensão semântico-intencional que possibilite a teoria da verdade como adaequatio de Suárez. Por outro, a comparação de um “Satz an sich” apenas com o conceito objetivo em sua

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totalidade (tanto como um conteúdo objetivamente no intelecto quanto como o ser apreendido da coisa) não se sustenta, pois, nesse caso, a doutrina da verdade como uma conotação que surge entre dois “pólos” (um mental e outro extra-mental) seria incompreensível, pois – uma vez que o conceito objetivo no intelecto não é simplesmente um ato mental, mas é a própria apreensão da coisa extra-mental e, assim, não seria nada de diferente da própria coisa apreendida – só haveria o pólo correspondente à coisa, de modo que a verdade seria, absurdamente, a adequação da coisa com a coisa. Assim, não é difícil dizer que, quando Suárez em DM 31, 12, 45 fala de conexões, ele não está pensando em algo como os “Sätze an sich”; isso é para ele a segunda opinião que ele recusa. Para Suárez, há antes da criação do mundo somente a possibilidades de indivíduos. A essas possibilidades não se pode atribuir nem verdade nem falsidade. As connexiones necessariae não são conteúdos proposicionais. Elas

consistem, junto às coisas, na identidade dos extremos1 e, se os extremos podem ser distinguidos entre si, então trata-se de uma distincitio rationis [DM 6,5,3], de modo que essas connexiones necessariae (enquanto são conceitos objetivos compostos servindo de termos correlatos para conceitos formais compostos, isto é, enquanto são estados de coisas objetivos) não são ontologicamente nada além do que são os próprios indivíduos possíveis e não acrescentam nada a eles. Contudo, na medida em que esses indivíduos são conhecidos (e eles, de fato, podem servir como termo de um ato de conhecimento), essas conexões também podem ser conhecidas. Trata-se, então, de um estado de coisas subjetivo ou pensado. Suárez fala, de fato, tanto em connexiones... conceptas et enunciatas como em connexio... in illis (isto é, nas coisas possíveis e nos entia rationis). Uma vez que ele defende uma teoria da verdade como correspondência, é claro que duas coisas diversas estão em questão aqui. As primeiras conexões são, ou as que estão no intelecto de Deus desde a eternidade, ou são as que os possíveis intelectos humanos pensarão ou poderiam vir a pensar (do mesmo modo com são possibilidades as proposições escritas ou faladas que representam esses

possíveis atos do intelecto)2.

1 DM 31,12,46: “Omnis enim veritas propositionis affirmativae fundantur in aliqua extremorum identitate vel unitate, quae, licet a nobis concipiatur complexo modo, et per modum conjunctionis praedicati cum subjecto, tamen in re nihil est praeter ipsammet rei entitatem.” 2 Cf. DM 31,12,45: “Quanquam in hoc possimus discrimen assignare inter connexiones necessarias, conceptas et enunciatas inter res possibiles seu essentias reales, et inter res fictitias vel entia rationis, quod in illis ita est connexio necessaria secundum intrinsecam habitudinem extremorum abstrahentium ab actuali existentia, ut tamen sit possibilis in ordine ad actualem existentiam...” (o grifo é meu); DM 31,12,45: “...veritas harum connexionum, ut realis et actualis veritas, non maneat nisi in divino intellectu...” Cf. também DM 31,12,46 que já citei na nota acima.

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A base da argumentação de Suárez é a distinção dos dois significados da cópula. No seu primeiro significado, a cópula denota a coisa na sua duração atual. Na Disputação 50 sobre a duração, Suárez estabelece que a duração se

distingue da existência atual somente ratione1, de modo que, se a cópula em seu primeiro significado denota uma coisa enquanto ela tem uma duração atual, ela está denotando essa coisa enquanto ela é uma coisa que existe atualmente. E, se a cópula no seu segundo significado abstrai, isto é, separa a coisa de sua duração atual, ela também está separando a coisa de sua existência atual, ou seja, a cópula no seu segundo significado denota a coisa sem levar em conta a sua atualidade ou não-atualidade. No seu segundo significado, a cópula denota as coisas enquanto possíveis ou as coisas que nunca poderiam ter existência atual

(tal como os entia rationis)2. Assim, se as proposições com a cópula no segundo significado denotam coisas que são possíveis ou enquanto elas são separadas de qualquer referência temporal, então essas proposições (ao menos enquanto elas próprias existem atualmente) têm de ser, ou sempre verdadeiras, ou sempre falsas. Isso não quer dizer, porém, que essas proposições existem sempre atualmente; bem ao contrário Suárez diz:

...licet veritas harum connexionum, ut realis et actualis veritas, non maneat nisi in divino intellectu (quo sensu locutus est Thomas...) [DM 31,12,46] ...embora a verdade dessas conexões, enquanto verdade atual e real, não permaneça senão no intelecto divino (nesse mesmo sentido Tomás falou...)

Suárez visa mostrar como essas connexiones podem fundar a verdade. Verdade é para Suárez conformitas, isto é, connotatio. Uma conotação exige dois termos correlatos, ou seja, a proposição e a coisa referida. Ele só quis pensar que essas connexiones, embora elas não sejam nada além do que identidades reais em indivíduos possíveis, podem servir de termos correlatos para o surgimento de conotações. Uma vez que esses indivíduos possíveis são – enquanto são apenas possibilidades – perpétuos, essas connexiones são também

1 DM 50,1,5 S. 914b: “Igitur in universum, durare solum tribuitur rei actu existenti, et prout existens est” (o grifo é meu). 2 No entanto, os entia rationis podem ser denotados também pela cópula no seu primeiro sentido se se ficcionalizar uma duração. Cf. DM 50,1,1: “...res autem fictae, aut entia rationis, vere ac proprie non dicuntur durare, quia non existunt; sed eo modo quo finguntur, vel apprehenduntur ac si vere existerent, concipiuntur etiam ac si durarent, et hoc ipsum convenit vel attribuitur eis quatenus durat et existit actus mentis, quo finguntur, vel cui objiciuntur.”

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perpétuas, embora não se possa apressadamente concluir que existem eternamente as proposições que denotam essas connexiones (ainda que, certamente, haja a possibilidade perpétua dessas proposições faladas, escritas ou mentais). A respeito disso pode-se ler, sem que esbarremos em dificuldades, a seguinte passagem de Suárez:

Unde, si per impossibile nulla esset talis causa [sc. Deus como causa primeira], nihilominus illa enunciatio vera esset, sicut haec est vera, Chymera est Chymera, vel similis. [DM 31,12,45] Donde, se – seguindo uma hipótese impossível – se aceitasse que não há Deus enquanto causa primeira, ainda assim seria verdadeira a enunciação de acordo com a qual é verdade que “a quimera é uma quimera” e similares.

O que Suárez está propriamente dizendo nessa passagem é: se Deus não existisse, o que é certamente impossível, e, ainda que – mesmo sem Deus existir – pudesse haver proposições sobre predicados essenciais, o que também é impossível, pois elas dependem de Deus enquanto ele é causa efetiva primeira, então essas proposições seriam verdadeiras porque a verdade delas (ou seja, o surgimento de conotações de verdade) não depende de Deus, sendo que também as possíveis essências, que as proposições denotam, não dependem de Deus para serem possíveis e seguem perpetuamente como referentes possíveis.

Uma interpretação inaceitável dessa passagem é a que a lê da seguinte maneira: se Deus não existisse e uma vez que essas proposições não dependem dele, então... Se essa passagem for lida dessa maneira ela estará assumindo algo que Suárez, ainda que por vezes “hesitando”, sempre recusou reconhecer, ou seja, que haja conteúdos proposicionais autônomos frente aos seus fundamentos “físicos”. Aceitar isso, levaria a que se aceitasse um estatuto ontológico intermediário entre os entia realia e os entia rationis (um “terceiro

reino”) na metafísica de Suárez1.

1 Cabe ainda indicar que, nesse texto (DM 31,12,38-47), Suárez não aborda o problema da cópula das proposições acerca dos futura contingentia. Penso que essa passagem se mostra insatisfatória se buscarmos relacioná-la com essa questão. Não é evidente qual seja o significado da cópula nessas proposições. Os sujeitos dessas proposições “supõem” por coisas possíveis, mas as conexões às quais estas proposições se referem só vêm a ser estabelecidas em um momento determinado no tempo. Suárez, até onde posso ver, nunca veio a esclarecer de um modo exaustivo essa questão. Com base em

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Como indiquei diversas vezes acima, Suárez recusa esse “tercero reino”; contudo, essa recusa não se dá sem uma recorrente duplicidade; duplicidade que perpassa a teoria suareziana do “conceito objetivo/ conceito formal”, “absolutidade/ contextualidade da verdade”, “graus/ ausência de graus de verdade”, “influência/ não influência da vontade na falsidade das proposições”

etc.1 É a reticente aceitação – ou a discreta denegação dessas duplicidades – que possibilita a Suárez (e a outros metafísicos que recorrem a estratégias semelhantes) propor uma metafísica que se quer fechada e, supostamente, exclui tanto irrupções inesperadas do fora quanto qualquer proliferação contextual incontrolável. BIBLIOGRAFIA Fontes primárias Francisco Suárez: Opera omnia. Paris, ed. M. André e C. Berton, 1856-78 ____De anima, in vol. 3 p. 467-800 ____Disputationes Metaphysicae [ = DM] in vol. 25/26 (p. ex.: DM disputatio 2,

sectio 1, número 1 = DM 2,1,1) ____Scientia quam Deus habet de futuris contingentibus, in vol. 11, p. 291-375 Paulus Soncinas: Quaestiones metaphysicales acutissimae, Frankfurt, 1967

(fac-símile) Petrus Hurtado de Mendonza: Disputationes de universa philosophia, Lugduni

1617 Sebastianus Izquierdo: Pharus scientiarum, Lugduni 1659 Tomás de Aquino: Summa Theologiae, Torino, 1963 (Marietti)

Scientia quam Deus habet de futuris contingentibus, lib. 2, c. 5, n. 12, pode-se pensar que a cópula nessas proposições está no seu segundo sentido. 1 É somente porque Suárez, no momento de sua discussão sobre as verdades perpétuas, já deixou para trás todo um rastro de duplicidades nessas discussões envolvendo suas doutrinas “menores” é que ele pode ser tão firme e categórico em recusar os enuntiabilia de Soncinas, os complexa significabilia de Rimini e semelhantes. Seja como for, a passagem acima analisada sobre as proposições de verdade perpétua, em seu entretecimento sobretudo com as referidas doutrinas “menores” é, por assim dizer, impressionantemente “coerente” e “bem argumentada”. Em vista da vasta quantidade de doutrinas auxiliares que estão implícitas nessa discussão, em vista de ela própria estar inserida em uma espinhosa disputação versando sobre a diferença entre a essência e a existência e em vista ainda de sua precisão vocabular e brevidade argumentativa, diria que ela é, sem dúvida, uma pérola da Escolástica Barroca.

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Literatura Secundária Alcorta, J. I.: La téoria de los modos en Suárez, Madrid 1949 Bolzano, B.: Wissenschaftslehre, ed. J. Berg, Stuttgart - Bad Cannstatt 1985 Elorduy, E.: El concepto objectivo en Suárez, in: Pensamiento 4, número

especial (1948) 335-423 Frege, G.: <1> Der Gedanke. Eine logishe Untersuchung, in: Idem, Logishe

Untersuchungen, Göttingen, 1968, p. 30-53 ____: <2> Schrifiten zur Logik und Sprachphilosophie. Aus dem Nachlass,

Hamburg, 1990 Hellin, J.: Esencia de la relacion predicamental segun Suárez, in: Las ciencias,

23 (1958) S. 648-696 Hickman, L.: Modern Theories of Higher Level Predicates, München 1980 Maurer, A.: St. Thomas and Eternal Truths, in: Mediaeval Studies, 32 (1970)

S.91-107 Rios, A. R.: Conceito objetivo, denominação extrínseca e entia rationis em

Francisco Suárez (1548-1617). Veritas, Porto Alegre, Edipucrs, Setembro 1997, vol. 42, n. 3, p. 719-750

Schlagenhaufen, F.: Die Glaubensgewissheit und ihre Begründung in der Neuscholastik, in: Zeitschrift für katholische Theologie, 56 (1932) p. 313-374/530-595

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Descartes

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Três Molduras das Meditações de Descartes ∗∗∗∗

Ao longo de minha vida já fiz uso de diferentes edições das Meditações de Descartes. É interessante como essas edições variam em seus conteúdos. Quando são traduções para outras línguas que não o francês, raramente elas incluem as Objectiones. Quando as incluem, as incluem apenas parcialmente, e via de regra são traduções da tradução para o francês das Meditationes, ou seja, da tradução de Luynes e Clerselier. Mas mesmo as edições em francês que incluem as Objeções, nunca incluem as Objeções de Gassendi (que não foi traduzida para o francês por Clerselier). Ao que me consta, não existe para língua nenhuma, nem para o francês, uma tradução cuidadosa do texto da edição, digamos, completa em latim das Meditationes. É admirável que haja inúmeras variações de tamanho e conteúdo nas edições das Meditações – há algo de pós-moderno nessa instabilidade. Recentemente, críticas foram feitas quanto às diferenças entre o texto em latim das Meditationes e o das traduções para o francês por Luynes ou por Clerselier, o que levou a que o próprio texto

em latim desde a Epístola ao Decano e aos Doutores da Sorbonne1 até o final da

Sexta Meditação fosse traduzido para línguas como o alemão2, o francês3 e, em

2004, o português4. Assim, com essas traduções diretamente do latim, temos mais uma série de metamorfoses do texto das Meditationes. Algo que pode chamar atenção na referida edição brasileira da tradução para o português das Meditationes é como ela muda a ordem do conteúdo. A Epístola ao Decano e aos Doutores da Sorbonne, o Praefatio ad Lectorem e a Synopsis foram deslocados para o final e postos no índice sob a rubrica de

Texto inédito. Sob o título de ‘Ceticismo e Melancolia’, uma primeira versão mais longa deste texto, que incluía o ‘Meditações Hidrópicas’ (ver abaixo neste mesmo livro), foi lida no ciclo Literatura e Ceticismo, promovido pela Pós-Graduação em Letras da UERJ, em 2004. 1 O título completo em latim, que é a primeira linha da carta contendo uma respeitosíssima saudação inicial aos destinatários da carta, é: Sapientissimis clarissimisque viris sacrae facultatis theologiae parisiensis decano et doctoribus Renatus Des Cartes s. d. 2 Tradução de Gerhart Schmidt in: Descartes, Meditationes de Prima Philosophia/ Meditationen über die Erstes Philosophie, Stuttgart, Reclam, 1986. 3 Tradução de Michelle Beyssade in: Descartes, Méditations Métaphysiques, Paris, Librairie Générale Française,1990 (Le Livre de Poche). 4 Tradução de Fausto Castilho in: Descartes, Meditações sobre Filosofia Primeira, Campinas, Editora Unicamp, 2004.

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“Suplementos”. Além disso, a Synopsis, desmembrada em seis pequenos parágrafos, teve cada um deles antepostos a cada uma das Meditações para valerem como resumo, de modo que a Synopsis aparece duas vezes nessa versão brasileira, uma vez na íntegra no final e outra em seis pedaços antecedendo a cada Meditação. Talvez pareça fácil justificar mais essa metamorfose no texto das Meditações. É possível alegar que a Epístola, o Prefácio e a Synopsis são raramente lidos; em todo caso, raramente são comentados. Em vista a tal desinteresse, Fausto Castilho, o tradutor brasileiro, teria deslocado esses tediosos e inúteis textos para o final, ou seja, para que, mais provavelmente ainda, não fossem lidos. Talvez o tradutor não tenha mais do que imitado a edição de Michelle Beyssade que, sob o título de “Textes Annexes”, também pospõe esses textos (embora não duplique e fragmente a Sinopse). Mas essa posposição pode ser um modo de ocultação ou degredo. O peculiar, contudo, é que a Sinopse, na tradução brasileira, aparece duas vezes, ou seja, ela está dos dois lados: ela é tanto suplemento quanto texto principal. No caso dela, tudo se passa como se estivéssemos sendo obrigados a lê-las, a lê-las com atenção e a seguir o que elas propõem. Ou seja, dos três textos pospostos, a Epístola e o Prefácio foram escondidos e a Sinopse foi enfatizada. Em todo caso, por que escondê-los e por que destacar a Sinopse? No que a ocultação da Epístola e do Prefácio vai de par com a enfática duplicação da Sinopse? Talvez a Epístola e o Prefácio estivessem mais bem escondidos, tal como a “carta roubada”, enquanto eles estavam bem na frente. Além do quê, após tantas décadas de desconstrução, é ingenuidade chamar algo de “suplemento”, pretendendo, assim, estar relegando isso a uma posição de pouca relevância. Desse modo, quando o tradutor brasileiro pospõe a Epístola e o Prefácio (além de pospor e desmembrar a Sinopse), é inevitável perguntar pelo que há neles que se buscou censurar e como essa censura vai de par com a duplicação da Sinopse.

Buscando responder a essa pergunta, leiamos a Epístola ao Decano e aos Doutores da Sorbonne, bem como os dois textos subseqüentes, o Prefácio ao Leitor e a Sinopse, que, de certo modo, constituem três molduras dentro das quais está contido o longo e polimorfo texto das Meditationes.

Os doutores da Sorbonne são nessa epístola tratados com profusos elogios deferidos por um narrador que repetidamente protesta sua humildade e sua ignorância: “lembro, portanto, não só do meu caráter humano, mas também da minha grande ignorância, não afirmo não haver erros nele [neste livro]” (memor enim, non modo humanitatis, sed maxime inscitiae meae, non affirmo

nullos in eo esse errores – p. 5)1; Descartes orna assim a epístola com frases que

1 Cito Adam & Tannery, Oeuvres de Descartes, Paris, Vrin, 1996, vol. 7. As traduções são minhas. As traduções de Castilho são, na minha opinião, por vezes, literais demais, por vezes, literais de menos. Também vejo problemas na proposta de embutir no texto

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são flagrantemente contrárias ao que ele diz depois no livro. Por exemplo, quando, no corpo do livro, após haver supostamente provado que Deus não é enganador, afirma conhecer a verdade sempre que tem idéias claras e distintas. Contudo, há as contradições no interior da própria epístola. Afinal, Descartes afirma – o que conflita com seu reconhecimento de eventuais erros – ter apresentado uma prova racional de que Deus existe e de que a alma é imortal, sendo que o fez por meio de demonstrações cuja certeza e evidência não só se igualariam às demonstrações da geometria, mas que nisso talvez até mesmo a superavam (quamvis eas quibus hic utor, certitudine & evidentia Geometricas aequare, vel etiam superare – p. 4). Em todo caso, o que Descartes propõe como um grande benefício de suas Meditações é que ela, por provar a existência de Deus e a imortalidade da alma, pode ser útil para converter os infiéis. Ora, os infiéis que não acreditariam em Deus e na imortalidade da alma seriam sobretudo os índios das colônias (com efeito, Descartes mencionará também os “ímpios” – plerosque impios, p. 3 – e, no Prefácio, os “ateus”). Segundo ele, “os infiéis certamente não podem ser persuadidos de nenhuma religião e de quase nenhuma virtude moral a não ser que essas duas verdades (a existência de Deus e a imortalidade da alma) lhes sejam provadas pela razão natural” (p. 2). Descartes proclama, assim, com grande segurança e orgulho como as Meditações se inserem no projeto colonial europeu. Ele implicitamente pretende estar contribuindo para que esses índios nus e canibais sejam reeducados e abandonem seus hábitos excessivos para que ascendam à posição de humanos racionais e acabem por se converter ao cristianismo, ou mesmo à Ecclesia Catholica, à qual ele claramente se refere ao final da epístola. Para além da relevância ou inquietação que esses infiéis, que Montaigne tanto comentou, suscitassem na época, é particularmente importante notar que o projeto de Descartes tem uma envergadura global (literalmente o projeto de Descartes é katholicós); Descartes considera que, em especial com a aprovação e o apoio dos doutores da Sorbonne, “não haverá mais ninguém no mundo” (nemoque amplius erit in mundo – p. 6) que ainda “ouse pôr em dúvida” (ausit in dubium revocari – p. 6) as verdades apresentadas nas Meditações sobre Deus e a alma humana.

traduzido do latim trechos da tradução francesa. Preferiria que apenas o texto em latim fosse dado no corpo da tradução em português; os complementos em francês deveriam estar em nota. A composição de dois textos, assim me parece, tira do leitor a possibilidade quer de ler o texto latino quer o francês. Ao final, o que se tem é mais uma metamorfose das Meditationes; mas uma que me parece confusa. Quanto ao trabalho de tradução, apesar de ter esboçado uma crítica dele, não vou seguir comentando-o; prefiro deixar essa tarefa de crítica filológica para algum latinista mais qualificado que eu; enfim, para alguém mais experiente que eu em traduzir do latim para o português e que possa de um modo mais fundamentado apresentar os acertos e as eventuais infelicidades dessa tão esperada tradução das Meditationes.

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Um traço peculiar dessa Epístola, embora nela tanto se fale em provar pela razão a existência de Deus e da alma imortal, é as palavras relativas à questão da persuasão e dos costumes serem nela relativamente freqüentes: persuaderi, persuadeam, consuetudo, persuadeo, a praejudiciis plane liberam, persuasum, solere, authoritas, solent. Há, assim, todo um balanço retórico na epístola. Por um lado, trata-se de demonstrações perfeitas, por outro, Descartes não sabe se errou. Por um lado, são os infiéis que ele quer persuadir, por outro, a retórica é a de quem quer persuadir os doutores da Sorbonne. Por um lado, as demonstrações e as verdades seriam mais evidentes que as da geometria, por outro, ao contrário da geometria, elas podem mudar os costumes do mundo todo. Trata-se de um texto perpassado por contradições. Se, como já disse, usualmente os comentadores das Meditações o omitem, na época, porém, Gassendi não deixou de comentar: “Se eram demonstrações, não havia necessidade de implorar um decreto da Soborne” (Si Demonstrationes fuerunt, nihil fuisse necesse implorare Sorbonæ decretum – cf. Gassendi, Disquisitio Metaphysica). Na verdade, Gassendi tanto em suas Objeções quanto na Disquisitio insistirá sobre o caráter retórico das Meditações. Descartes, com sua veemência desaforada, negará enfaticamente que seu texto seja retórico, alegará seriedade e buscará pôr de volta em Gassendi a pecha de ser retórico. De resto, essa epístola é um texto importante no que, nas Meditações, ela claramente corrobora a consciência planetária e colonial tão presente no Discurso do Método. Persas, chineses e canibais, enfim, os infiéis, são nela implicitamente reconvocados. Esses povos tão diversos em costumes, trajes, alimentação e cultos talvez, depois das Meditações, não mais ousem pôr em dúvida as verdades apresentadas pela razão natural – seria um valioso passo na gloriosa catequese eurocristã. Uma outra moldura das Meditações é o Prefácio ao Leitor. Esse prefácio afirma que as objeções em geral não tocaram pontos que merecessem respostas mais elaboradas; apenas duas mereceriam ser destacadas. Assim, Descartes antecipa tanto uma discussão sobre a mente humana perceber que ela é somente uma coisa pensante quanto uma sobre a idéia de uma coisa mais perfeita em mim (ideam rei me perfectioris im me – p. 8). De resto, o prefácio é uma defesa ampla das Meditações dirigida especificamente ao público erudito. Nele fala-se contra os ateus. De fato, o público erudito na França e na Holanda não está a princípio preocupado com os outros povos, mas com os debates presentes na vida intelectual deles; assim, o mais importante são os céticos e os ateus. Aqui também há o balanço retórico. Por um lado, o Prefácio se refere ao “nexo e encadeamento das minhas razões” (rationum mearum seriem et nexum – p. 9), por outro, comenta a dificuldade de convencer as pessoas e, conseqüentemente, usa palavras referentes à persuasão e aos costumes: a

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primum acceptis opinionibus; persuadeantur; ab omnibus praejudiciis abducere; in more; persuasus sum; persuadere. Uma terceira moldura das Meditações é a Synopsis Sex Sequentium Meditationum. Nessa visão geral das Meditações, o tema dos costumes e da persuasão está praticamente banido. Em cinco páginas de texto, há apenas duas palavras relativas a eles: ab omnibus praejudiciis nos liberet; solent. Com essa sinopse, Descartes está claramente favorecendo uma leitura argumentativa. A crer pela Sinopse, as Meditações seriam de fato compostas apenas de demonstrationes. Quando a tradução de Castilho pospõe a Epístola e o Prefácio, nos quais Descartes explicita suas propostas colonialistas, e antepõe a cada Meditação um parágrafo da Sinopse (com isso repetindo a Sinopse), ele está dirigindo a atenção na leitura das Meditações para o que seria seu conteúdo argumentativo-racional e escondendo seu aspecto político-colonial. Seja como for, a Primeira Meditação inicia-se como um processo de destruição do edifício dos hábitos:

Há alguns anos, me dei conta que, desde a infância, admitira um grande número de coisas falsas como sendo verdadeiras e o quanto eram duvidosas as coisas que, a seguir, construí sobre elas; e que, conseqüentemente, era preciso, uma vez na vida, pôr abaixo tudo e recomeçar dos primeiros fundamentos. (p. 17)

Não se trata de refutar verdades uma a uma – muito do que é posto de

lado será reassumido mais à frente como evidentemente verdadeiro –, mas de desarticular o círculo vicioso de hábitos que indiscriminadamente tomam como evidentes tanto o que é falso como o que é verdadeiro. Essa passagem é em geral lida superficialmente, quer como uma cândida captatio benvolentiae, quer como uma proposta epistemológica ornada com uma roupagem retórica acessória e secundária. No entanto, temos de prestar atenção ao que está escrito sem nos impormos, desde o início – desde a infância de nossa leitura –, um unilateral pressuposto de estarmos lendo um texto essencialmente epistemológico-argumentativo. Como já indiquei, esse preconceito nos parece ser fortemente sugerido na Sinopse. Contudo, seria infantil lermos as Meditações submetendo-nos subservientemente à intentio authoris tal como a Sinopse nos a expressa, tanto mais quando, anteriormente, a Epístola tão descaradamente nos anuncia uma intentio authoris com uma face fortemente político-colonialista.

Do que chamei as molduras das Meditações, diria que a Sinopse, mais que uma moldura, é uma blindagem, já o Prefácio seria o polimento da blindagem, enquanto a Epistola seria tanto um “supérfluo” estandarte que a enfeita quanto a indicação explicita de a que exército se pertence e sob qual

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general se está a serviço, ou seja, deixa claro quais são os objetivos a serem atingidos. A voz que narra as Meditações, protegida por toda essa parafernália, põe-se a falar tal como um soldado que não tem visão dos movimentos do exército nem conhecimento das ordens secretas dos generais. Assim soava a voz de Descartes no Discurso do Método quando ele se remetia ao tempo em que serviu no exército da Liga Católica na Guerra do Trinta Anos, uma guerra que dizem seria para consolidar os poderes dinásticos dos Habsburgo, mas que se alimentava de uma polarização entre católicos e protestantes, além de ser

financiada em grande parte com as riquezas das colônias1. Descartes seria, porém, apenas um mero participante, agindo sob ordens. Nas Meditações, ele está mais uma vez, após ter anunciado na Epístola a missão colonial de seu livro, pondo-se na modesta posição de um subalterno; quase um peão de obras pago por dia (um peão que apenas na Quinta Meditação pode ser considerado como tendo sido, com a revalidação da geometria e da matemática, promovido a engenheiro) estaria carregando e reempilhando as pedras do novo edifício. Seja como for, é possível ler nesse trecho inicial, embora ele se apresente como sendo apenas a respeito de hábitos individuais, as propostas da Epístola e do Prefácio visando os infiéis e os ateus – não há porque esquecer a moldura. Essa veia moral-eclesiástico-colonialista das Meditações poderia ser vista na análise de

outras passagens2. Contudo, ser a favor do cristianismo e da Igreja Católica não significa concordar inteiramente com o que é dominante. Ao contrário, Descartes quer reformar o ensino dos Jesuítas. Seu projeto educativo é amplo e evidentemente é também voltado para reeducar a elite intelectual européia, livrando-a de seus maus hábitos intelectuais, ou seja, há que se derrubar, mas com muita diplomacia, a Escolástica enquanto maquinaria de produção e manutenção de hábitos intelectuais. O projeto colonial global é também um projeto educacional local, isto é, eurocristão. Ler o texto das Meditações como sendo apenas, ou fundamentalmente, um texto argumentativo-epistemológico é tendencioso: é – como evitá-lo? – ideologicamente eurocêntrico. Com efeito, sabemos que há toda uma linha que considera que a História da Filosofia possuiria uma autonomia – e conseqüente nobreza – que lhe seriam características. Assim, a formação em Filosofia deveria ser calcada no estudo de um número relativamente restrito de textos considerados clássicos, de modo

1 As biografias de Descartes são legião; porém, elas nunca expõem de modo compreensível o contexto das guerras das quais Descartes participou e com as quais ele despendeu preciosos anos de seu período de formação. Neste meu texto apresentei apenas um esboço apressado, superficial e certamente falho do contexto dessas guerras; deixo para especialistas mais competentes que eu a tarefa de narrar e discutir em detalhe as circunstâncias históricas delas e de como o Discurso de Método e as Meditações aí se inserem. 2 Cf. neste livro: ‘Meditações Hidrópicas’.

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que se viesse a adquirir uma competência filológica e lógico-argumentativa, que seria ao mesmo tempo uma competência para descontextualizar esses mesmos

textos clássicos de questões irrelevantes para sua verdadeira inserção1 em um trajeto histórico, ainda que não necessariamente triunfalmente evolutivo, específico de uma racionalidade greco-ocidental.

O ponto de vista da totalidade das pós-graduações em Filosofia bem avaliadas pela Capes é o de que a formação em filosofia é uma formação que se caracteriza por adquirir competência para ler clássicos da História da Filosofia a partir basicamente do contexto que esses mesmos clássicos suportariam ao minimizarem o contexto histórico-político, sobretudo ao eclipsarem a questão colonial.

Sendo a recente tradução de Castilho uma tradução realizada para servir de instrumento didático para as pós-graduações brasileiras em Filosofia, nada mais adequado que essa tradução, supostamente pautada numa proposta filologicamente neutra, seguindo e de certo modo radicalizando o que já fizera Michelle Beyssade, ao pospor essas por mim assim denominadas três molduras, busque ocultar ainda mais os textos – em especial, a Epístola – que indicam o caráter colonialista do projeto cartesiano. Gesto em consonância com o currículo filosófico vigente e que, assim, corrobora o caráter pós-colonizado da concepção de ensino de Filosofia realizado pelas pós-graduações em Filosofia; uma concepção acrítica e subserviente a um academicismo eurocêntrico.

1 Nossa tecnologia de descontextualização é em muito importada da França. Essa prática de leitura descontextualizante é criticada por Bourdieu em seu livro Meditações Pascalianas (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001 [na França, em 1997]). De certo modo, até poderia citar algumas passagens desse livro que corroborariam o que estive dizendo (ver, por exemplo, o capítulo: “Pós-escrito 2: O esquecimento da história”, p. 55-60). Porém, o que para nós talvez seja mais interessante é observar o esforço de Bourdieu em compreender como e por que ele teria conseguido se pôr em uma posição crítica frente a um sistema que o formou e o cumulou com glórias. Embora seja plausível que, como ele mesmo supõe, sua estada na Argélia colonial tenha sido um primeiro momento importante para o surgimento de seu distanciamento crítico, não podemos, enquanto leitores e leitoras inseridos em uma outra história pós-colonial, simplesmente aceitar o que ele próprio diz. Enfim, não podemos esquecer que se trata de um livro escrito por um francês para ser discutido por franceses. Porém, embora eu recomende que esse livro seja lido com precauções, sua crítica à descontextualização, na medida em que é um procedimento imitado em pós-graduações brasileiras, tem interesse para nós. Para mim, em particular, caberia pensar como e por que vim a me pôr numa posição semelhante de distanciamento crítico. Discuti isso em textos reunidos em Mediocridade e Ironia (Rio de Janeiro, Caetés, 2001) e Celebridade Intelectual e Pensamento Crítico (Rio de Janeiro, Booklink, 2005).

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Meditações Hidrópicas ∗

Quando há alguns meses me propus falar sobre ‘Melancolia e Ceticismo’, tinha a idéia de comentar na Primeira Meditação, um locus classicus na discussão sobre o ceticismo, a conhecida passagem sobre aquele “vapor

contumaz de bile negra” (contumax vapor ex atra bile – p. 19)1 que enfraquece o cérebro daqueles que se tornam insanos. O vapor é contumaz, ou seja, é, por assim dizer, pertinaz e inchado (con+tumeo). Contumax também pode ser orgulhoso, o que obviamente não é um adjetivo aplicável a um vapor, embora o possa ser aos insanos que, por exemplo, se dizem reis, apesar de serem paupérrimos, ou que estão vestidos de púrpura, apesar de estarem nus. Meu intuito, no entanto, não era retomar a polêmica entre Derrida e Foucault sobre a suposta exclusão dos loucos que estaria em processo quando Descartes, logo pós mencionar a bile negra, aparentemente os dispensa de suas meditações. Antes, talvez também por um orgulho contumaz e insano, eu pretendia problematizar um pouco mais os elementos em jogo nessa passagem: o corpo nu, os comportamentos bizarros, os juízos pertinazmente contrários às evidências, a doença física que turge o cérebro e turva a alma. A polêmica é por vezes tortuosa e desencontrada; enquanto Foucault denunciava a exclusão dos loucos pela razão, Derrida via inextricáveis paradoxos em um tal gesto de exclusão. Pode ser

até que os insanos nem tivessem sido excluídos2, pois o sonhador, também nu, parece ser um argumento mais abrangente e mais plausível que o do louco. O

Texto inédito. Sob o título de ‘Ceticismo e Melancolia’, uma primeira versão mais longa deste texto, que incluía o ‘Três Molduras das Meditações de Descartes’ (ver acima neste mesmo livro), foi lida no ciclo Literatura e Ceticismo, promovido pela Pós-Graduação em Letras da UERJ, em 2004. 1 Quando em citações das Meditationes apenas as páginas são mencionadas, trata-se do volume VII de Charles Adam & Paul Tannery, Oeuvres de Descartes, Paris, Vrin, 1996. As traduções, diretamente do original em latim das Meditationes, são minhas. 2 Determinar o que seja ou não um gesto de exclusão é um problema por vezes indecidível. No Discurso do Método, na Quinta Parte, Descartes, ao assegurar que os insanos são capazes de organizar as palavras em frases, os inclui enfaticamente do lado dos homens: “Pois é uma coisa bem notável que não haja homens tão embrutecidos e tão estúpidos, sem excetuar mesmo os insanos, que não sejam capazes de arranjar em conjunto diversas palavras, e de compô-las num discurso pelo qual façam entender seus pensamentos”. Por um lado, os insanos estão sendo incluídos, por outro, eles foram considerados estúpidos e embrutecidos, e assim rebaixados para a fronteira com os animais. Em última instância, é necessário sempre verificar – sem esquecer de questionar os critérios dessa verificação – como os tidos como louco estão de fato vivendo no dia-a-dia da vida social, se excluídos ou não.

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louco continuaria no sonhador. Contudo, não parece haver dúvida de que os insanos são apenas uns poucos que, por terem o cérebro inchado de bile negra, têm o corpo doente, não necessariamente a alma; já, quanto aos sonhadores, não há neles doença, porque, embora talvez os sonhos tenham também causas corporalmente explicáveis, eles são sem dúvida fisiologicamente normais, ou seja, faz parte da boa saúde dos homens sonhar; de modo que os sonhadores são não só um argumento mais universal, mas são também um problema que tem de ser resolvido se se busca um método para melhor conhecer a verdade – pois terá de ser um método válido para os saudáveis e, por isso, sonhadores. Ou seja, a opção pelos sonhadores é (ou, se assim quiserem, é também) uma exclusão da doença física. Já o corpo nu oscila entre a exclusão e a aceitação; será uma questão que, associada à questão da vestimenta, discutirei em uma outra ocasião – por hoje ficarei apenas com a exclusão do corpo doente. Sendo que, porém, minha ênfase é a de que se trata sobretudo de uma exclusão no texto das Meditações e que tal exclusão reagirá sobre o texto – o excluído retornará. E, de fato, o corpo doente retorna, ainda inchado, na Sexta Meditação. Ele agora sofre de hidropisia. Ele está inchado de água, talvez com uma volumosa ascite, e tem a garganta seca e muita sede. O pior é que beber água lhe é nocivo. Sua sede é novamente um tipo de delírio. A melancolia retorna como hidropisia. É também a irrupção da Primeira Meditação e suas dúvidas na Sexta Meditação, na meditação final. O sonhador também aparecerá como que para fechar o pano do último ato. É, portanto, discutir esse inchaço, esse excesso, essa teimosia do corpo e seu contumaz, e excessivo, retorno que proponho como tema. Enfim, meu propósito é de analisar, nas Meditações, esse último inchaço

hidrópico1. Com efeito, a teimosia e não só a teimosia do corpo, mas também a

teimosia dos costumes, a dificuldade de convencer os homens acerca de coisas por vezes as mais evidentes, de libertá-los das opiniões recebidas, são temas recorrentes nas Meditações. Contudo, as leituras mais comuns das Meditações são as que buscam enfaticamente desemaranhar a ordem das razões e assumem como tarefa mostrar o quanto as argumentações de Descartes são coerentes. Embora essas interpretações não necessariamente sejam cegas a respeito das eventuais contradições e incompletudes do texto cartesiano, em geral não é o

propósito delas destacá-las. Uma das estratégias mais comuns2 para evitar

1 Deixo em aberto a questão de se é ou não um excesso interpretativo perguntar se o inchaço hidrópico não é a irrupção do tema, silenciado nas Meditações, da sexualidade (sem dúvida, aludida na menção do corpo nu que sonha) com seus excessos descontrolados e insubmissos à razão. 2 A estratégia talvez a mais comum e óbvia para aplainar contradições num texto de Descartes é recorrer a outros textos e selecionar, entre eles, o trecho que aparentemente melhor resolva o impasse e complete a lacuna. E, certamente, uma falha aqui outra ali

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incômodas contradições na análise das Meditações é desconsiderar o caráter narrativo do texto; é ler as Meditações como um texto quase exclusivamente argumentativo-racional. Deixo para um outro momento o questionamento de

até que ponto há, nisso, um projeto acadêmico e eurocêntrico1, por vezes, quem sabe, francocêntrico, de reassegurar a obra de Descartes como marco inconteste do que alegam seja a racionalidade e subjetividade modernas. De minha parte, proponho-me aqui, até onde conivências inconscientes não me sobrepujem, a não me preocupar em reforçar a auto-imagem de coerência que certas passagem das Meditações reivindicam para si, a não ser se for para, ao radicalizar o próprio clamor por coerência, chegar a um conflito inevitável e insolúvel. Assim, ao empreender esta leitura que vai da melancolia à hidropisia, vou exatamente privilegiar o aspecto narrativo das Meditações.

Embora, ao adotar esse procedimento, ao enfatizar contradições, eu esteja talvez recaindo em um outro projeto acadêmico euro-norte-americando – sem falar que ao comentar as Meditações, e assim prestigiar Descartes, eu não deixe de estar reforçando o projeto que já critiquei como sendo francocêntrico – vou deixar para comentar em outro lugar essas minhas contradições teórico-

perfomático-narrativas2.

* * *

A Primeira Meditação começa com Descartes, ou um narrador3, comentando como, após uma revisão do que fora aprendido desde a infância, ficara clara a necessidade de pôr abaixo tudo que havia sido construído sobre esse aprendizado inicial, pois desde então o narrador havia considerado muitas coisas falsas como verdadeiras. Para fazer isso, contudo, Descartes considerou que o melhor era atingir uma idade tal que, após ela, ele não mais estivesse tão apto (aptior) para adquirir conhecimentos. Em outras palavras, ou na infância ele não era apto o suficiente para adquirir conhecimentos que não fossem falsos, ou não havia quem lho ensinasse adequadamente, ou os dois. Agora que ele está

sempre podem ser absorvidas – que importância tem que o projeto racionalista não seja concluído por um indivíduo isolado? De todo modo, uma falha, em geral, pode ser minimizada, alegando-se que se tratar de uma omissão meramente circunstancial, ou de um tema pouco trabalhado etc. 1 Ver acima neste livro: ‘Três Molduras das Meditações de Descartes’. 2 Cf. ‘Soberania e Cooptação’ e ‘Inventado e Planejado’ in: A. R. Rios, Celebridade Intelectual e Pensamento Crítico, Rio de Janeiro, Booklink, 2005. Ver também: A. R. Rios, Mediocridade e Ironia, Rio de Janeiro, Caetés, 2001. 3 Embora eu privilegie neste texto o aspecto narrativo, uma análise mais detalhada da estrutura narrativa das Meditações, bem como uma discussão dos poucos textos da literatura secundária que analisam a narrativa cartesiana, será tema de um outro artigo.

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maduro, ele pode melhor cultivar suas aptidões. (Reparar também como os efeitos da passagem do tempo são ambíguos: o tempo é um phármakon – esperando até o momento certo é benéfico, um pouco antes ou um pouco depois pode ser ineficaz, ou mesmo nocivo; voltarei brevemente a isso no final deste

texto.)1 Nessas primeiras frases está sendo lançado um dos principais propósitos das Meditações, um propósito ao qual, contudo, não é em geral dada muita ênfase pelos intérpretes, sempre mais atentos ao que eles entendem como sendo argumentação racional do que ao que eles entendem como sendo narrativa e persuasão. Tudo se passa como se as questões relativas aos costumes e à persuasão retórica fossem apenas um elemento do preâmbulo narrativo das Meditações, de modo que não mais deveriam ser priorizadas quando os argumentos racionais começassem a aparecer no texto, pois esses sim constituiriam a coluna vertebral das Meditações. Entender Descartes seria antes de tudo entender suas argumentações; já sua narrativa seria apenas para ser

saboreada e, em seguida, cuspida2. De minha parte, porém, vou ler as Meditações comentando, por um lado, tanto a aptidão, o hábito que se constrói sobre ela, e os costumes que se consolidam sobre esses hábitos e os realimentam, quanto, por outro, a persuasão necessária para mudar esses hábitos, que, tantas vezes, contumazmente resistem às evidências e persistem em tomar o falso como verdadeiro. Vou ler as Meditações como a narrativa de uma mudança de hábito. Ao longo do texto das Meditações, há várias referências à questão dos costumes e, assim, também à questão dos hábitos, em especial, à do hábito da razão, isto é, do bom uso da razão: atque ita habitum quemdam non errandi acquiram (“e assim sobretudo eu adquira o habito de não errar” – p. 62). Essa preocupação se mostra em palavras que se espalham pelo texto. Há a série mais estritamente referente aos costumes e aos seus conseqüentes preconceitos: consuetae opiniones, desuescam, desidam quaedam ad consuetudinem vitae, veteris opinionis consuetudo, ob consuetudinem credendi; soleam; familiaritatis, praejudiciis; longo usu; inusitatis; vetus opinio; in more;

1 O importante também é que o tempo, nas Meditações, é sustentado pela narrativa, digamos assim, romanesco-autobiográfica em contraposição à, digamos, narrativa argumentativo-racional, que com suas argumentações e demonstrações se propõem como atemporal. 2 Como já me referi em nota acima, há alguns textos sobre a questão da narrativa cartesiana que convém discutir; vou comentá-los em um outro artigo; para mencionar ao menos três: Amélie O. Rorty, ‘The Structure of Descartes’ Meditations’, e L. Aryeh Kosman, ‘The Naive Narrator: Meditation in Descartes’ Meditations, ambos em Amélie O. Rorty (ed.), Essays on Descartes’ Meditations, Berkeley, University of California Press, 1986; e o capítulo sobre Descartes em C. Schildknecht, Philosophische Masken, Stuttgart, Verlag Metzler, 1990.

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authoritatis etc1. A essas palavras pode se acrescentar a série da persuasão, formada pelas formas do verbo persuadere: persuadet, persuaderi, persuadebam etc. E há ainda outras palavras ou expressões que, tendo sentido semelhante, associam-se a essas duas séries: prona sit mea mens in errores; deponi... non potest etc. Vou dar destaque às duas séries estritas sobre os costumes e a persuasão. Permanecer atento a essas palavras que se espalham pelas Meditações, ainda que, sem dúvida, isso seja um índice estilométrico grosseiro – não tão claro, distinto e calculável quanto seria do gosto cartesiano –, nos permitirá observar um pouco o que a narrativa e as argumentações – longe de serem dois discursos sobrepostos ou excludentes – articulam-se intimamente nas Meditações. Em todo caso, o tema dos costumes é constante e o propósito de mudança de hábito, de trocar os maus hábitos adquiridos desde a infância pelo novo hábito de julgar corretamente (ou de suspender o juízo quando não houver evidências suficientes) perpassa todas as meditações. Contudo, a questão do hábito, de sua aquisição, mudança ou aperfeiçoamento não é propriamente discutida nas Meditações. Apenas a Quarta Meditação discute brevemente o tema da relação entre a vontade e o intelecto no assentimento e, assim, discute alguns aspectos do que para a Escolástica seriam os habitus speculativi. Assim, paira ao fundo das Meditações, como um pressuposto tacitamente tanto aceito quanto recusado, a teoria escolástica dos habitus. Para Suárez, por exemplo, os hábitos são

acidentes compreendidos entre o acidente da qualitas2. Um outro acidente que também é uma qualitas são as potências naturais. São potências naturais, por exemplo, a vontade, o intelecto, a potência de locomover-se, a potência de atrair (nos ímãs), a potência de crescer etc. O hábito é uma qualidade que se sobrepõe

a algumas potências facilitando e ajudando o seu desempenho (DM 44,1,6)3. São, de fato, só algumas potências que são aptas a receber hábitos: o intelecto; a vontade; o apetite sensitivo do homem (appetitus sensitivus), onde teríamos as disposições e os desejos ligados ao corpo como, por exemplo, o que chamamos de hábitos alimentares; a fantasia ou cogitativa (phantasia seu cogitativa), o que seria a capacidade de imaginar, de memorizar e de pensar em geral

1 Inclui o verbo soleo, embora ele seja ambíguo no sentido de ser muitas vezes algo como um verbo modal ou auxiliar e não se referir de um modo específico à questão dos costumes. 2 O trecho sobre Suárez que se segue é estreitamente baseado em parte do artigo ‘Racionalidade Substancial e Racionalidade Acidental em Suárez’ publicado neste mesmo livro. 3 Daqui para frente as citações das Disputationes Metaphysicas serão dadas abreviadamente com DM para o título da obra, o primeiro número para a disputatio, o segundo número para a sectio no interior da disputatio, e o terceiro número para o parágrafo no interior da sectio.

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(digamos que essa potência e os hábitos próprios a ela equivalem à imaginação nas Meditações). Somente potências ao mesmo tempo ativas (aptas a agir por si mesmas) e passivas (aptas a receber predisposições facilitando a sua ação), bem como participantes da razão, são receptivas de hábitos, ou seja, só há hábitos em viventes racionais (in viventibus rationalibus). Desse modo, toda a potência apta a receber um hábito tem de ser de algum modo indiferente, isto é, tem de

ter uma certa indiferença ou indeterminação em seu agir1, não podendo, portanto, ser uma potência que age por necessidade e sempre de uma mesma maneira, isto é, não pode ser uma potência cuja a ação seja meramente natural (DM 44, 1, 15) como seria o caso da potência para crescer. A indiferença é a possibilidade de agir ou não agir, bem como a possibilidade de escolher entre ações ou objetos contrários (DM 44,1,11). Que a vontade seja capaz de hábitos é evidente, uma vez que a vontade é uma potência livre e, assim, indiferente em sua ação. A questão é a de como o intelecto enquanto potência intelectiva pode ser indiferente. Vou buscar resumir ao máximo essa intrincada questão, alertando desde já que Suárez nem tanto demonstra, mas apenas mostra que o intelecto é indiferente. Em primeiro lugar, Suárez argumenta que a indiferença da razão pode ser observada quando as pessoas julgam acerca de coisas que não chegam a ser evidentes, que é o que acontece quando se forma um julgamento com base em opiniões e crenças. Nesse caso também se vê como é difícil demover as pessoas de conclusões às quais elas chegaram com base em crenças e opiniões, ou seja, a teimosia injustificada seria um indício da indiferença do intelecto. Em segundo lugar, assim segue a argumentação de Suárez, mesmo quando uma verdade se mostra, por parte dos objetos, evidente, ainda assim é freqüente que o intelecto se debata em grande dificuldade para conseguir demonstrar a verdade; será pelo uso e pelo exercício que o intelecto poderá adquirir, nesses casos, facilidade para julgar. Aqui, portanto, posso indicar como exemplo a geometria, pois por vezes consideramos inicialmente um teorema evidente, mas não conseguimos demonstrá-lo, embora, depois de algum tempo de prática, uma tal demonstração possa nos ocorrer facilmente. Em terceiro lugar, vemos que nos hábitos práticos, sobretudo nas artes, a facilitação pela prática é evidente (DM 44,1,12). Se esses argumentos são ou não evidentes para nós hoje, não é relevante. O que importa é que estou através deles apresentando o contexto de discussão no qual as Meditationes foram escritas. Em vista disso, a questão que temos de enfocar é a de se o intelecto é indiferente ou se é somente a vontade que é indiferente; enfim, de se é apenas a vontade que move o intelecto a fazer este ou

1 ...qui hae potentiae habent natura sua aliquam indifferentiam, seu indeterminationem in operando DM 44,1,11.

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aquele julgamento. Para Suárez, o intelecto não é movido pela vontade em seu julgamento (cabe adiantar que Descartes na Quarta Meditação entende que a vontade participa do assentimento). O que a vontade de uma pessoa pode exigir é que ela esteja em uma determinada disposição que lhe facilite chegar a um julgamento correto. Assim, por exemplo, no caso do assentimento da fé cristã, a vontade pode exigir que se esteja levando uma vida regrada, de modo que assentir com a fé esteja facilitado (DM 44,4,4). Posso acrescentar o exemplo de que a vontade de uma pessoa poderia exigir que ela se dedicasse ao estudo da geometria e da matemática, de modo a que ela passasse a entender e a julgar mais facilmente as demonstrações e os cálculos. Afinal, para o assentimento científico (ad assensum scientificum) é necessário que haja evidência não só das premissas, mas também das ilações; contudo, não é necessário que a cada vez que se chegue a um assentimento científico se tenha de passar por um julgamento explícito e formal acerca das deduções e demonstrações, pois é suficiente que com base no hábito da ciência – já adquirido por exercícios anteriores – o intelecto o faça, como que implicitamente tomando assim tais deduções e demonstrações por evidentes, e chegue mais rapidamente a um juízo certo e também evidente (DM 44,4,8). Ou seja, um intelecto “mau habituado” vai não só errar em contas, mas também vai tomar por evidente teoremas falsos. Já um intelecto com bons hábitos vai tomar como evidente o que é de fato evidente, conseguindo em diversas ocasiões chegar às demonstrações e aos cálculos corretos. Além do quê, sendo a indiferença uma característica do intelecto, ele pode, se as circunstâncias da vida o permitirem, suspender seu assentimento até quando considerar necessário para de fato estar seguro de ter compreendido aquilo sobre o que deve julgar. (Para Descartes, na Quarta Meditação, permito-me adiantar, o intelecto é indiferente apenas na medida em que os conhecimentos e as evidências são insuficientes, pois, quando ele considera ter os conhecimentos e as evidências suficientes, o assentimento para a conclusão verdadeira é incontível. Sendo, porém, o assentimento com o conhecimento verdadeiro algo bom, essa compulsão a assentir não é considerada por Descartes como um impedimento à liberdade.) Concluindo esta breve apresentação sobre Suárez, cabe ainda lembrar que ele é claro em sua argumentação de que a teimosia e os hábitos arraigados em antigas crenças são possíveis também devido a essa mesma indiferença própria ao intelecto, ou seja, o intelecto pode ser educado, isto é, pode cultivar hábitos que tanto melhorem quanto piorem seu desempenho. Com efeito, é um método para educar o intelecto, de modo a afastá-lo dos maus hábitos e apegar-se aos bons hábitos que Descartes busca propor em suas Meditações. Contudo, nem sempre ele é claro quanto a isso. Por vezes, ele fala como se o que importasse de fato nas Meditações fossem apenas as demonstrações. Com

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efeito, há nas Meditações todo um balanço retórico em que, ora é enfatizada a

evidência das demonstrações, ora a necessidade da persuasão1. De fato, a Primeira Meditação põe em dúvida todas as instâncias do que,

na Escolástica, se entendia como processo cognitivo: (1) a apreensão das species externae (das sensações ou imagens enquanto causadas diretamente pelos objetos externos); (2) a operação do sensus communis, ou seja, a formação das species internae (a formação de “sensações” ou “imagens” que, embora ainda apoiadas na matéria, não mais dependem da presença dos objetos externos que as causaram); (3) a operação do intelecto agente (intellectus agens), isto é, a “purificação” da materialidade da “imagens ou sensações” recebidas do sensus communis transformando-as em species intelligibiles (imagens/sensações inteligíveis) e sua transmissão para o intelecto possível; (4) a operação do intelecto possível (intellectus possibilis), isto é, a abstração de algumas das species intelligibiles delas em universais, bem como a composição delas em proposições; (5) o assentimento dessas proposições como verdadeiras ou falsas (para Suárez, como vimos, o assentimento depende apenas do intelecto, mas outros escolásticos consideram que o assentimento possa depender também da vontade). Assim, a narrativa da Primeira Meditação critica (1) e (2) ao falar nos possíveis erros na apreensão: hos [sc. sensus] autem interdum fallere deprehendi (“depreendi que eles [os sentidos] por vezes me enganavam” – p. 18); aqui se enquadram ainda outros exemplos de má apreensão que aparecerão mais à frente nas Meditações como a percepção das torres como redondas ou a dor fantasma nos membros amputados; além disso, ela critica também (3), (4) e (5) ao pôr em dúvida os conhecimentos derivados dos sentidos e sistematizados como ciência (trata-se, pois, de uma crítica a possíveis vícios nos hábitos da imaginação e nos hábitos práticos mencionados acima) como é o caso da física, da astronomia ou da medicina, bem como critica possíveis vícios no que a Escolástica chama de habitus ou virtutes speculativi que são as que facilitam a compreensão e desenvolvimento, por exemplo, da aritmética e da matemática. No entanto, apenas fazer críticas, isto é, apenas mostrar o que esteja errado, pode até ser um primeiro passo para desacostumar a si ou aos leitores, mas será necessário ainda tempo e aplicação para que os maus hábitos sejam desarraigados e transformados em bons hábitos, em hábitos de não errar (habitum quemdam non errandi – Quarta Meditação, p. 62). E é exatamente a dificuldade desse propósito que é enunciada ao final da Primeira Meditação, onde é afirmado que não basta apenas ter se dado conta de que tudo pode ser falso e enganoso e que por isso se há de coibir o assentimento para o que agora passou a ser visto como falso; antes, é necessário ter o cuidado de recordar

1 Sobre esse balanço retórico – em especial na Epístola ao Decano e aos Doutores da Sorbonne – ver, também neste livro, ‘Três Molduras das Meditações de Descartes’.

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sempre disso. Afinal, “as opiniões costumeira (consuetae opiniones) recorrem assiduamente (assidue) e se apoderam da minha credulidade que, pelo longo uso (longo usu) e pelo direito devido à familiaridade (familiaritatis), como que independentemente de minha vontade, foi a elas submetida” (p. 22). Assim, para se desacostumar a esses juízos errôneos é necessário – contrariando os velhos preconceitos – assumir o novo preconceito elaborado nessa meditação (ou seja, o de que se deve duvidar de tudo), de modo que “equilibrado o peso dos dois [preconceitos], mais nenhum mau costume (prava consuetudo) desvie o meu julgamento da correta percepção das coisas” (p. 22). (Em outras palavras, o preconceito em duvidar de tudo é um phármakon auxiliar – auxiliar ao phármakon principal, que é a passagem do tempo – que age contra os tantos e tão distorcivos preconceitos; trata-se aqui de algo como a cura do semelhante pelo semelhante.) Enfim, é uma decisão laboriosa (laboriosum est hoc institutum) para contrariar uma certa preguiça (desidia quaedam) que leva de volta aos costumes da vida (ad consuetudinem vitae reducit) (p. 23). Na Primeira Meditação, Descartes se põe, assim, contra a preguiça dos costumes, embora reconheça um temor frente às inextricáveis trevas (inextricabiles... tenebras) das dificuldades levantadas (motarum difficultatum).

As palavras relativas aos costumes e à persuasão, evidentemente, aparecem ao longo das sete páginas da Primeira Meditação: persuadet; contumax; soleam; inusitatis; vetus opinio; consuetae; longo usu; familiaritatis; desuescam; praejudicorum; prava consuetudo; ad consuetudinem vitae; veteres opiniones. Após essa copiosa queixa aos maus costumes, que é a Primeira Meditação, na busca de mudá-los, ao longo das outras cinco meditações, a freqüência dessas palavras diminuirá muito; mesmo assim, a presença delas ao longo de todas as meditações, bem como o desaparecimento e o ressurgimento delas em trechos específicos, continuará sendo significativa. A Segunda Meditação põe em ação o que foi visto, por assim dizer, de um modo teórico na Primeira. Assim, o principal objetivo da Segunda Meditação é nos desacostumar de experienciarmos as coisas sensíveis como mais evidentes que as intelectuais, ou seja, experienciarmos mais intensamente o nosso corpo que a nossa alma. Embora a Primeira Meditação nos tenha ensinado a duvidar da veracidade de nossas percepções, continuamos a ser atraídos a assentir segundo a evidência do que percebemos sensivelmente do que segundo o que, por meio de argumentos, nos parece o correto. Tudo se passa como se de nada fossem adiantar as Meditações se, após termos sido conduzidos passo a passo e termos concordado com diversas demonstrações e suas conseqüentes verdades, continuarmos a julgar em nossas vidas segundo o que tínhamos por evidente e que foi refutado pelas referidas demonstrações. De fato, é difícil pensar que uma pessoa inabalavelmente apegada a falsas evidências relativas às coisas sensíveis

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possa persistir na leitura de um livro como as Meditações. Assim, embora seja logo no início da Segunda Meditação – pouco após Descartes ter chegado à beira da paranóia se perguntando se Deus não estaria pondo pensamentos diretamente em sua mente (Nunquid est aliquis Deus, vel quocunque nomine illum illum vocem, qui has ipsas cogitationes immittit? – p. 24) – que surge o indubitável Ego sum, ego existo, o trabalho de educação intelectual das Meditações não parece poder continuar enquanto o referido mau hábito de considerar as coisas sensíveis como mais evidentes que as intelectuais não seja derrubado. Nesse sentido, a Segunda Meditação é a mais importante de todas, nem tanto só pelo Ego sum, ego existo, mas em muito também por ser o momento principal no anunciado processo de derrubada, de eversão (eversioni – Primeira Meditação, p. 18), que é, portanto, o momento de reversão para os pensamentos e, assim, para a alma. Após o Ego sum e uma subseqüente discussão acerca da dificuldade de entender o que “sou” (Sed quid igitur sum? – p. 28), é indicado qual o mau hábito que tem de ser mudado: “... e não posso deixar de entender que conheço, de um modo muito mais distinto, as coisas corpóreas, das quais as imagens são formadas pelo pensamento e as quais os próprios sentidos [corpóreos] exploram, do que conheço esse não sei quê de mim que não se dá na imaginação” (p. 29). Esse “não posso deixar de” (nec possum abstinere quin) é o hábito que tem de ser mudado, são os costumes nos quais estamos tão imersos que não só distorcem nossos juízos acerca do que tomamos por evidente, mas também chegam até a nos dar prazer em assim agirmos. De modo que Descartes constata: “minha mente se deleita em se desviar (gaudet aberrare mens mea) e não suporta ainda ser contida entre os limites da verdade” (p. 29). Esse prazer com o erro é, digamos assim, uma hidropisia mental. O “não suporta ainda ser contido” (necdum se patitur... cohiberi), ou seja, essa conteção, essa coação, esse controle é o bom hábito de não errar (habitum quemdam non errandi – Quarta Meditação, p. 62). A terapia que Descartes prescreve agora para si mesmo é a de soltar as rédeas e começar o trabalho de reabituação a partir do que é comumente (vulgo – p. 30) tido como o que é conhecido mais distintamente, ou seja, as coisas corpóreas. Assim, através de discussões como a da cera antes e depois de derretida ou como a dos autômatos passeando pela praça usando roupas e chapéus, argumentos que são também, ou antes, são sobretudo exercícios para desacostumar-se a considerar o corpo como mais evidente que alma, é alcançado o momento da virada em que se passa a entender com clareza que os corpos não são propriamente percebidos pelos sentidos nem pela faculdade de imaginar, mas apenas pelo intelecto, ou seja, esse é o momento em que se torna mais evidente a percepção da mente de si mesmo do que a percepção dos corpos (que só se dá por meio da mente). A Segunda Meditação é, portanto, ao mesmo

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tempo um trajeto argumentativo-racional e um trajeto de desabituação. Contudo, uma vez que, em relação ao tempo decorrido, ela foi curta, o exercício, se foi suficiente para constituir o hábito em seu mínimo, ainda não é o suficiente para constituí-lo firmemente. Afinal, uma vez que o costume das antigas opiniões (veteris opinionis consuetudo) não pode ser desfeito (deponi... non potest) tão rapidamente (tam cito), há que se parar e buscar fixar, com a duração desta meditação, esse novo conhecimento mais profundamente na memória (ut altius haec nova cognitio memoriae meae diuturnitate meditationis infigatur). É de novo o tempo (diuturnitate) que é proposto como

fármaco: o mesmo tempo que desvirtua é o que reabitua1. A Terceira Meditação parte do que foi estabelecido na anterior: o narrador já começou a se habituar com a evidência de seus próprios pensamentos. Contudo, ele começa teatralmente com um novo rompante de estar se exercitando em pôr de lado as concepções falsas para, ao final, reconhecendo seu esforço em ir pouco a pouco (paulatim), ou seja, sempre com a ação medicamentosa do tempo, estar se tornando mais conhecido e mais familiar (familiarem) consigo mesmo (p. 34). Trata-se, portanto, da clara afirmação do processo de reversão dos hábitos. Na verdade, há algo de triunfal em se afastar da discussão sobre os costumes. Embora narrativa e argumentação racional estejam entretecidas, o emergir de uma dicção metafísica mais metódica seria um sinal de sucesso no empreendimento de controle dos hábitos do intelecto e da vontade, bem como no de controle da influência do corpo sobre a mente, o qual indevidamente a força a aceitar falsas evidências. Assim, após alguns comentários iniciais nos quais a questão dos

costumes e da persuasão está mais explicitamente presente2, a partir da página

1 Na Segunda Meditação, em suas onze páginas, as palavras relativas aos hábitos e à persuasão são: persuasi nihil; mihi persuasi; usu; usitate; veteris opinionis consuetudo. Há ainda as expressões: nec possum abstinere; necdum se patitur... cohiberi; solent; capacem; prona sit mea mens in errores 2 É até a terceira página da Terceira Meditação, que tem 18 páginas, que as palavras mais diretamente relativas aos hábitos e à persuasão aparecem: familiarem; ob consuetudinem credendi; praeconcepta; persuadeor; após a página 18 só uma palavra da série ocorre: persuadet (p. 39). Certamente, como também ocorre nas outras meditações, há muitas outras palavras relativas aos hábitos que, por serem menos diretas, estou deixando de lado. Digamos que só estou preocupado em indicar o sintoma maior. Na verdade, todas as palavras relativas às faculdades ou potências como cogitatio, voluntas, imaginatio, visio, potentia, facultas etc. poderiam ser listadas; contudo, por serem muitas, descaracterizariam o caráter de sintoma que a minha, digamos, estilometria defeituosa proporciona. Ou melhor, só o que me interessa são as palavras mais características da questão dos costumes e da mudança de hábitos – como já disse, talvez nem devesse mencionar o verbo soleo, pois ele me parece pouco específico.

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37, o texto se mostrará seguro de ter ido à frente, tal como se de fato a fase inicial em que o intelecto estava como que atolado em maus hábitos estivesse ficando para trás. Conseqüentemente, o texto assume até mesmo a dicção de tratado de filosofia, expondo toda uma doutrina sobre as idéias, classificando-as em ideae innatae e adventitiae, comentando o que seria a realitas objectiva e indo adiante até provar a existência de Deus (quando Descartes finalmente admite que Deus põe idéias diretamente na mente dele – ideam illam mihi indidisse – p. 51) e chegando a concluir que é suficientemente evidente que Deus não pode ser enganador (p. 52). A Quarta Meditação começa exatamente confirmando que nos últimos dias (In his diebus, ou seja, há a ação farmacológica do tempo), com as meditações anteriores, ele está se acostumando a desviar sua mente das coisas sensíveis (Ita me his diebus assuefeci in mente a sensibus abducenda – p. 52), de modo que ele aprendeu muito acerca da mente humana e mais ainda sobre Deus. O resultado é que agora ele chega a não ter dificuldade nenhuma (jam absque ulla difficultate – p. 53) em reverter seus pensamentos das coisas imagináveis para as somente inteligíveis (a rebus imaginalibus ad intelligibiles tantum – p. 52). A fábula da ascese argumentativa ou das argumentações ascéticas, narrada nas três primeiras meditações, se proclama, assim, bem sucedida. O que era penoso na Segunda Meditação (desviar o pensamento das coisas corpóreas) tornou-se fácil na Quarta Meditação. Uma vez que ele já está se sentindo firme, está chegando a hora de reconstruir o que foi derrubado. Nessa meditação, teremos mais uma exposição doutrinal. Será uma breve análise sobre o que, para os Escolásticos, são os habitus speculativi. Como já adiantei, Descartes defende uma indiferença do intelecto que deveria durar enquanto faltarem evidências ao intelecto; recebidas as evidências neceessárias, o intelecto não mais poderia se conter e decidiria pela verdade. Porém, o nosso intelecto é finito; mesmo que desabituado a aceitar as percepções sensíveis como sendo as mais evidentes, nem sempre ele consegue ter os conhecimentos suficientes e, assim, – em geral movido pela vontade – precipita-se em um juízo falso. Como sempre, o tempo é o fármaco. A vontade deveria ter esperado. Em todo caso, nunca é Deus quem erra, mas nós quando fazemos mau uso do intelecto que ele nos deu (enfim, quando nos apressamos). É fundamental nos esforçarmos para adquirirmos o bom hábito de só assentir quando tivermos certeza. (Para Descartes, deveríamos todos ser como a Ofélia e só abrir a boca quando temos certeza.) O ponto embaraçoso dessa Quarta Meditação é, porém, explicar que, embora Deus não seja quem erre, tampouco ele teria posto em nós uma faculdade que nos força a errar; ainda que se tenha que reconhecer que ele pôs em nós um intelecto que é finito e, assim, imperfeito. Por que a imperfeição? Descartes recorre a uma resposta proveniente de discussões teológicas sobre o

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pecado original (apesar de na Synopsis ele negar categoricamente que, nessa Quarta Meditação, ele aborde a questão do pecado – nullo modo agi de peccato – p. 15). É o argumento de que a perfeição do universo é maior por haver partes que não são imunes ao erro do que se todas suas partes fossem semelhantes (p. 61). Um argumento que, por ser teológico, mais sublinha que resolve a questão que, antes, é uma questão que solicita uma resposta segundo o que a própria retórica do texto enquadrasse como uma resposta argumentativa. Considerando que um dos propósitos das Meditações é o de desabituar que as pessoas indisciplinadamente misturem a discussão teológica com a científica, essa

passagem seria contraprodutiva (e foi, de fato, muito criticada por Gassendi1), a não ser que Descartes pretendesse que ela fosse o diferente que embeleza o todo; em outras palavras, trata-se de uma dificuldade que surge em conseqüência da lógica assumida no início da Meditações (na Primeira

Meditação, bem como na Epístola e no Prefácio)2: é uma conseqüência de desenvolver um questionamento numa narrativa que, ao mesmo tempo, é argumentativa e lógico-fundacionalista, bem como autobiográfica e devocional-eclesiástica. A Epístola não é uma mera peça de retórica exterior à lógica argumentativo-epistemológica das Meditações, mas é parte dela e age com ela, ainda que esteja eclipsada e que sua face eurocristã só surja com mais clareza nesses momentos onde a argumentação tropeça. A Sexta Meditação aludirá a essa passagem também para explicar o que, para as premissas das Meditações (que no mesmo gesto exclui e inclui os conceitos teológico-escolásticos), é inexplicável, ou seja, que é Deus permitir a imperfeição que põe os homens, ainda que por culpa unicamente deles próprios, na posição de errar com tanta freqüência.

1 Cf. Gassendi já critica esse argumento de Descartes nas suas Objectiones (cf. AT p. 311 e sgs., e também na Disquisitio Metaphysica, In meditationem quartam). Para Gassendi, o argumento teológico da beleza do universo não é uma explicação satisfatória exatamente porque Gassendi – o que é, de fato, coerente – mantém a discussão no nível do que, no contexto retórico das Meditações, seria o nível da argumentação filosófica. Assim, Gassendi indica que é absurdo dizer que uma Respublica seria melhor se ela tivesse alguns cidadãos perversos do que uma outra que só os tivesse virtuosos. Indo adiante, ele mostra que a questão (isto é, a questão filosófica e não a questão que, afinal, recorre ao mote teológico de que malum auget pulchritudinem universi; mote presente, por exemplo, em Boaventura,) é a de por que Deus nos deu uma faculdade de julgar que nos leva ao erro; ou seja, o problema não é o de nossa faculdade de julgar ser finita, mas o de ser sujeita ao erro (o que Descartes não explica filosoficamente, uma vez que foge para especulações que são de ordem teológica). Nas palavras de Gassendi: “...videsque non tam difficultatem esse, cur Deus tibi facultatem cogniscendi majorem non dederit, quam cur dederit errantem; neque controverti cur artifex summus perfectiones omnes dare nolit omnibus operibus, sed cur etiam aliquibus tribuere velit imperfectiones” (o grifo é meu – p. 312) 2 Cf. acima neste mesmo livro: ‘Três Molduras das Meditações de Descartes’.

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O que a Quarta Meditação reforça é que temos de nos habituar a nos abster de julgar (judicio ferendo esse abstendum) enquanto a verdade não for clara (de rei veritate non liquet). E temos de nos recordar disso para adquirir um certo hábito de não errar (atque ita habitum quemdam non errandi acquiram – p. 62) Apesar das importantes questões doutrinas sobre assegurar o livre arbítrio e inocentar Deus da origem do erro e do mau, posso dizer que o costume e o hábito são um forte fio condutor e estruturador dessa meditação.

Mais uma vez os temas narrativos e argumentativos se apoiam e se reforçam1. A Quita Meditação é o momento de reconstrução do conhecimento. Há algo nela de triunfal. Embora o tema dos costumes ainda apareça (em especial, o costume de separar essência e existência tem que ser revertido para provar a existência de Deus), trata-se de uma meditação que faz uso dos bons costumes adquiridos e, assim, revalida as verdades matemáticas e novamente prova a existência de Deus. (Nesse contexto, por um longo trecho, os termos referentes à questão dos costumes e da persuasão desaparecem.) O resultado é que Deus é tomado como o fiador das idéias claras e distintas e, portanto, da geometria e da matemática. A Sexta Meditação começa com a mente já contando com bons hábitos para julgar, com a existência de Deus provada, com a garantia divina da veracidade das idéias claras e distintas, e com a certeza das verdades da matemática e da geometria. O que temos, portanto, é uma mente que apreende, compõe o apreendido e assente à verdade de um modo habitual, ou seja, seu habitual é racional. A mente exercitou-se e adquiriu uma racionalidade ativa. A mente põe em ato a racionalidade no seu movimento de entender Deus, as figuras geométricas e as operações numéricas. Agora é hora da reconquista do corpo e dos objetos materiais. Dado que Deus existe e é veraz, não é difícil provar que o que percebemos como sendo algo fora da mente é de fato algo fora da mente. O problema dessa meditação está no difícil paralelo entre (i) a mente com bons hábitos conhecendo harmonicamente as verdades matemáticas e (ii) a mente com bons hábitos conhecendo o mundo material (do qual o próprio corpo a ela estreitamente ligado também faz parte). Ora, ainda que se aceite, por um lado,

1 A Quarta Meditação começa com “assuefeci” e tem no penúltimo parágrafo “habitum”. Além disso, tem pelo meio apenas: solet e persuadeat. O que se passa é que, na Quarta Meditação, a reversão dos costumes não é mais um grande problema, tratando-se, então, mais de uma meditação para elaboração doutrinal que para a reeducação. Porém, a discussão toda é sobre adquirir o hábito que retenha a vontade de impulsionar o intelecto para um assentimento prematuro. Assim, expressões como: non intra eosdem limites contineo; nam quoties voluntatem in judiciis ferrendis ita contineo e semelhantes também são usadas.

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que a operação dos números seja racional, como, por ouro, entender a interação das coisas corpóreas no mundo? Para isso, Descartes recorre ao conceito de natura. Ele a define como: “Por natureza, genericamente considerada, nada mais entendo, neste momento, que Deus ele mesmo, ou a coordenação por ele instituída de todas as coisas criadas.” (p. 80) Ou seja, a natureza é a ordem racional das coisas. Temos, assim, (1) a mente com bons hábitos que é uma racionalidade ativa, (2) a matemática e (3) a ordem racional das coisas. Desse modo, a mente pode aplicar a matemática para compreender o mundo corpóreo. Pode-se dizer que, com o conceito de natureza, com as três, digamos assim, racionalidades explicitadas em suas possibilidades de interação, as Meditações atingem seu ponto culminante. No entanto, a mente continuará tendo dificuldades em apreender as sensações provenientes dos corpos; há vários exemplos de falsas percepções. Descartes busca explicá-las alegando que o que a natureza ensina (a expressão doceor a natura é usada várias vezes) não é como as coisas são em seus tantos detalhes ou em sua totalidade, enfim a essência delas, mas a natureza ensina ao composto de corpo e alma a respeito das coisas sobretudo aquilo que esse composto precisa para sobreviver e viver no mundo:

De sorte que esta natureza ensina em verdade a fugir das coisas que produzem sensações de dor e a buscar as que produzem o prazer dos sentidos e coisas semelhantes. Mas não parece que ela, além disso, nos ensine a concluir, a partir dessas percepções dos sentidos, sem um prévio exame pelo intelecto, o que quer que seja sobre as coisas postas fora de nós. Porque parece que conhecer a verdade a respeito delas cabe à mente sozinha, não, porém, ao composto. (p. 82-83)

Com isso, Descartes está buscando desarraigar um velho mau hábito, a saber, o de entendermos que o que percebemos pelos sentidos corresponde ao que está nas coisas fora de nós, tal como se um espaço que não agita nosso corpo fosse um vácuo; ou o calor que sinto a partir de uma coisa fosse o mesmo calor que está nela, ou que o verde que sinto a partir de uma coisa fosse o mesmo verde que está nela, ou que os astros, as torres e todos os outros corpos afastados tivessem a mesma figura e o mesmo tamanho que exibem aos meus sentidos (p. 82). A explicação de Descartes sobre por que erramos ao tentarmos conhecer os objetos é, portanto, de novo a de que erramos porque não estaríamos usando o intelecto com a cautela que deveríamos. E, com isso, ele confirma que Deus não é enganador. Afinal, Deus não nos deu as sensações para que nos

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enganemos; antes, ele nos as deu para que possamos “fugir das coisas que produzem sensações de dor e a buscar as que produzem o prazer dos sentidos e coisas semelhantes” (p. 82). Ou seja, a natureza deu aos homens “as percepções dos sentidos para que propriamente fosse significado à mente o que é cômodo ou incômodo ao composto” (p. 82), do qual uma das partes é a mente, “e, até aqui, [essas percepções] são suficientemente claras e distintas” (p. 83). Em outras palavras, as percepções são claras o suficiente para que o composto de corpo e alma, que são os homens, possam sobreviver e cuidar bem dos assuntos da vida. Para chegar a um conhecimento detalhado das coisas, é necessário não tomar as percepções pelo que elas se mostram primeiramente, mas é necessário reelaborá-las no intelecto. Nas palavras de Descartes:

...uso [as percepções dos sentidos] como se fossem regras certas para o conhecimento imediatamente de qual seja a essência dos corpos postos fora de nós, a respeito da qual essência, contudo, nada significam, a não ser muito obscura e confusamente. (p.

83)1 Nessa passagem, Descartes argumenta, portanto, que não se deve usar a percepção dos sentidos diretamente para conhecer os corpos; antes, é necessário que essas percepções sejam retrabalhadas pelo intelecto e a memória. Com isso ficaria assegurada, o máximo possível, a harmonia da tríade: (1) mente com bons hábitos, (2) a matemática e (3) os corpos no mundo. Se é ainda um incômodo que não seja possível abolir a imperfeição do intelecto, que é o que dá espaço para que os homens sempre recaiam em erros, se o incômodo é a suspeição de que Deus estivesse sendo, ainda que não culpado, mas conivente na fraude; então, mais uma vez, para amainar esse desconforto, Descartes recorre ao argumento de cunho teológico, que citei acima, da Quarta Meditação: “E já examinei atentamente, mais acima, de modo suficiente, a razão de que, apesar da bondade de Deus, meus juízos podem ser falsos” (p. 83).

Respondidas todas essas questões, de certo modo, seria o momento de concluir as Meditações. Todos os problemas parecem ter sido revistos e explicados. É, porém, quando reaparece o homem doente e inchado, que tem sede quando não deveria beber água. Ele segue a natureza: estando com a garganta seca, bebe água, mas faz mal a si mesmo. Ele segue o que, desde sempre, foi ensinado pela natureza e é bem aceito pelos costumes: beber água quando se tem sede. Se a natureza é enganadora, é Deus, que a fez, que é enganador. O hidrópico põe em dúvida o Deus veraz, a instância que, na Quinta

1 “...utor tanquam regulis certis ad immediate dignoscendum quaenam sit corporum extra nos essentia, de qua tamen nihil nisi valde obscure et confuse significant.”

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Meditação, como um rei Midas transformou as dúvidas, sobretudo as dúvidas sobre a validade da geometria e da matemática, em firme certeza e, portanto, em verdade. Um primeiro argumento sobre a comparação do corpo hidrópico com o relógio quebrado é descartada. Tanto o relógio quebrado quanto o corpo hidrópico seguem acuradamente as leis da natureza (accurate leges omnes naturae – p. 84). Em outras palavras, o hidrópico não é uma falha (tampouco o insano), ou seja, ele segue a natureza, se a hidropisia (assim como o contumaz vapor da bile negra) engana é porque a natureza faz com que ela engane. Mas se a natureza simplesmente é assim, então não há aqui um engano. Do ponto de vista da natureza em sentido amplo, a hidropisia não é um erro; apenas do ponto de vista do composto humano é que ela pode ser considerada nociva e errada. E como explicar esse erro do ponto de vista do composto humano? Para finalmente despachar o doente, Descartes apresenta uma longa explicação fisiopatológica sobre os mecanismos que podem gerar no senso comum (sensus communis) falsas percepções sensíveis. Essa explicação busca mostrar que nossa composição corporal é tal que, de fato, somos exatamente devido a ela levados a, por vezes, nos enganarmos. Visto isso, para absolver Deus, ou a natureza, da acusação de ser enganador, Descartes recorre às probabilidades. Essa composição seria a mais favorável à sua própria conservação, pois sentimos sede mais freqüentemente quando precisamos de água do que quando estamos hidrópicos. Em suma, a hidropisia é um erro do ponto de vista do que é esperado como o efeito mais provável do beber água; pois, quando se tem sede, o efeito esperado ao beber água é apenas o de saciá-la e não o de inchar e ter mais sede ainda. Agora até seria mais uma boa ocasião para Descartes recorrer pela terceira vez ao argumento da beleza do mundo – quem sabe o mundo não é, de fato, mais belo com hidrópicos e sadios do que só com sadios? –, mas o que ele faz é recorrer a um outro argumento teológico mais recente e muito mais sofisticado. Refiro-me aqui à peculiar discussão na Escolástica espanhola no século XVII sobre o milésimo madrilense. Para explicar por que uma pessoa optaria pelo mal que a levaria ao inferno e como Deus poderia prever essa escolha maldosa que, sendo uma escolha livre, não seria explicável causalmente, foi desenvolvido o argumento de que, digamos, posta uma moeda de ouro sobre a mesa, haveria uma necessidade de 1 em 1000 de que alguém a roubasse. Todos seriam livres para decidir roubá-la ou não, mas em cada 1000 um a roubaria. Assim, em Madri, depois de 999 madrilenses passarem pela sala e livremente decidirem não a roubarem, o milésimo madrilense decidiria, também fazendo livre uso de sua vontade, roubar a moeda. E isso poderia ser previsto por Deus. O hidrópico seria como o milésimo madrilense. Deus não seria mau por criar a probabilidade de um em mil de haver o roubo da moeda (se fosse ao contrário – sendo a probabilidade de

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meramente um virtuoso em mil ladrões –, seria Ele mau?), nem a probabilidade em si é ruim, mas para o corpo a hidropisia, tal como o milésimo madrilense, é má. Não creio que precise provar se Descartes leu ou não Ruiz de Montoya, o que estou dizendo é que uma certa lógica teológica ou eurocristã está entretecida às argumentações ao longo das Meditações e que, ao final, solda as argumentações. Com base apenas em seus próprios pressupostos, esse discurso que se propõe lógico-argumentativo não se sustenta. Para fechar o pano, vem o sonhador. Para se despedir dele, Descartes recorrerá a uma breve argumentação apoiada na continuidade espaço-temporal retida na memória (mais uma vez o tempo comporá o fármaco). Contudo, eu poderia dizer que sempre se poderia supor que se está sonhando que se está concluindo que não se está sonhando. Descartes, porém, não vai mais na direção de radicalizar a questão. Tudo se passa como se, sendo Deus veraz, não fossem mais necessárias hipóteses radicais. Ao contrário, a dúvida hiperbólica é

que é afastada como ridícula1. Depois de haver adiado a conclusão das Meditações devido ao veneno, ao impertinente hidrópico e ao recorrente sonhador, as Meditações podem chegar ao fim. Porém, a tantas vezes comentada, mas nunca satisfatoriamente explicada, origem da imperfeição parece retornar mais uma última vez. Contra ela Descartes recorrerá ao, nas Meditações, tão pervasivo fármaco do tempo:

Mas, porque a necessidade das ações da vida nem sempre nos dá tempo o suficiente (moram) para um exame acurado, temos de reconhecer que a vida humana, acerca das coisas, particulares está freqüentemente sujeita a erros e temos de admitir a fraqueza de nossa natureza. (p. 90)

Em outras palavras, mesmo quando conseguirmos nos reabituar a reter o juízo até termos certeza, nem sempre poderemos esperar para termos todos os conhecimentos necessários para proceder à ilação, de modo que teremos de decidir, apesar das incertezas, e freqüentemente erraremos no nosso dia-a-dia. Ou seja, o que a interrupção do texto parece induzir a pensar ou a lembrar é de algo que foi claramente dito no início das Meditações, a saber, na Epístola ao Decano e aos Doutores da Sorbonne (e que depois foi como que soterrado pela

1 O phármakon que, na Primeira Meditação, foi proposto como um phármakon auxiliar ao phármakon principal, que é o tempo, isto é, o phármakon que era o duvidar de tudo, passado o paroxismo da doença (a doença era a ilusão de tomar o conhecimento sensível como o mais certo que o conhecimento intelectual), uma vez que agora o leitor das Meditações está supostamente preferencialmente voltado para a alma e não mais para as coisas corpóreas, não é mais necessário (poderia até ser danoso).

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Synopsis), a saber, que, no nosso dia-a-dia, teremos de continuar nos apoiando na autoridade das instituições e em especial na da Igreja Católica. Melhor dizendo, um aspecto interessante das Meditationes é que elas na sua Synopsis se apresentam como um discurso lógico-argumentativo e que, portanto, não se baseariam de modo essencial na dogmática cristã (nullo modo agi de peccato – p. 15). Contudo, isso não pode ser aceito como um posicionamento unívoco. Sobretudo na referida Epístola, é clara a oscilação entre um discurso argumentativo e um discurso persuasivo eurocristão-colonialista, no qual a Igreja Católica é mencionada. Porém, o trajeto passando pela Epístola, o Prefácio ao Leitor e a Sinopse vai deixando para trás as cores mais fortes do discurso colonialista, de modo que o corpo das Meditações, embora dê, como mostrei, muita atenção à questão da mudança de costumes, dissimula o discurso teológico-cristão que, porém, como também indiquei, ressurge (em especial, destaquei a irrupção da tese de que o malum auget pulchritudinem universi), ainda que a narrativa despudoradamente continue se perfilando como se fosse um discurso puramente filosófico. Desse modo, o final da Sexta Meditação com sua singela referência à “necessidade das ações da vida” que impediria o uso adequado da razão, no meu entender, remete claramente à necessidade de seguir à autoridade das instituições. Além do quê, é impossível assegurar a pureza filosófica das últimas palavras da Sexta Meditação, uma vez que a “fraqueza de nossa natureza” (naturae nostrae infirmitas – p. 90) é

inevitavelmente uma referência ao pecado original1. É como se fosse o balanço do pêndulo que, com o passar do tempo, vai do discurso argumentativo para o discurso eurocristão, daí vem de volta e assim por diante. Haveria, assim, ao final da Sexta Meditação, em função da preponderância narrativa dada ao discurso argumentativo ao longo das Meditações, tanto o retorno de elementos narrativos “menores” quanto da proposta cristã-colonialista.

1 Gassendi prontamente assinala o caráter piedoso das palavras finais (...ut admodum pie dicis, ita, cum postremo concludis... – Objectiones Quintae, p. 345) das Meditationes. É interessante também notar que, com essas palavras finais, Descartes está implicitamente reconhecendo que as próprias Meditações são um empreendimento falho e sujeito ao erro. E, para perceber essa impossibilitação pelo texto de sua própria proposta, não é preciso ter lido Paul de Man, pois, já na época de Descartes, Gassendi argutamente indicou essa, por assim dizer, contradição performática de Descartes: quasi quicquam diffideres de rebus a te demonstratis? (Disquisitio Metaphysica, In meditationem VI). A mesma contradição tão claramente presente na Epístola entre não afirmar não ter errado (non afirmo nullos in eo esse errores – p. 5) e apresentar certezas que não só se igualam às da geometria, mas mesmo as superam (quamvis eas quibus hic utor, certitudine & evidentia Geometricas aequare, vel etiam superare – p. 4) ressurge aqui ao final. Com efeito, de certo modo, ao final das Meditações se deveria esperar uma tranqüila afirmação da força da razão, mas o que se encontra é um piedoso reconhecimento da fraqueza humana. A fraqueza que inclinava o homem ao erro, após seis laboriosas meditações, retornou.

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Esse retorno do que foi preterido na narrativa argumentativa não é uma peculiaridade das Meditações. De certo modo, é um evento esperado no gênero literário das narrativas sistematizantes. Com efeito, em vários textos meus sobre

Suárez1, sobretudo sobre suas Disputationes Metaphysicae, mostrei repetidas vezes que a estrutura dessa sua obra, supostamente uma apresentação sistemática de questões metafísicas, é perpassada por doutrinas “menores” (que por vezes chamei de “marginais”) que buscam consolidar a (aparente) coerência e inter-relação dos numerosos debates que se desenvolvem dentro dos grandes temas metafísicos da escolástica (o objeto da metafísica, o conceito de ser, as paixões do ser, o princípio de individuação, a doutrina das causas, a substância e sua constituição, os acidentes etc.), aos quais são dedicados disputationes inteiras, ou ao menos, sectiones no interior dessas disputationes. Essas doutrinas “menores” (discuti em especial a denominatio extrinseca, a resultantia naturalis, a sympathia potentiarum e a connotatio) permanecem, porém, sempre incompletas, fragmentárias, oscilantes, ou mesmo autocontraditórias. Por diversas vezes indiquei hesitações e reticências no texto de Suárez, ou seja, numa narrativa que no geral se apresenta como argumentativa, isto é, como sóbria e assertiva. Essas hesitações narrativas são rastros, ou antes, rachaduras num edifício em sua aparência compactamente sistemático. Essas doutrinas “menores”, concebidas – usando aqui um termo de Derrida – como um suplemento para conter as contradições, não cessam de retornar e, assim, vão se mostrando e se corroborando não como acessórias e secundárias, mas como indispensáveis e essenciais. Nas Disputationes Metaphysicae, é a doutrina da denominatio extrinseca – embora não seja a ela dedicada sequer uma sectio em todos os dois volumes da obra – que é, em diversas circunstâncias, a mais reivindicada por Suárez. Eu diria que é mesmo indecidível se é a narrativa das Disputationes Metaphysicae que solicita a doutrina das denominações intrínsecas ou se é o enigma das denominações intrínsecas que movem a narrativa das Disputationes Metaphysicae. As denominações extrínsecas são convocadas para explicar a doutrina “maior” do conceptus objectivus entis (conceito objetivo de ser) e não cessarão de ressurgir ao longo de diversas disputationes. Sem recorrer à denominatio extrinseca, para além do fundamentalíssimo conceito de ser, não é possível tampouco discutir a verdade das proposições e o estatuto ontológico dos diversos acidentes. De certo modo, pode-se dizer que o conceito fundamental das Disputationes Metaphysicae não é o do tão propalado conceptus objectivus entis, mas o da denominatio extrinseca. Assim, esse conceito, sobre o qual nas Disputationes Metaphysicae tanto se fala quanto se silencia, é ao mesmo tempo o cimento que une e consolida quanto o ácido que

1 Ver acima os cinco primeiros textos reunidos neste livro.

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dissolve e esgarça a sistemática das Disputationes Metaphysicae. Um problema, contudo, é que, embora a denominação extrínseca seja indispensável para que o conceito objetivo de ser seja explicado e estabelecido, ela própria oscila entre o ser e o não-ser. Ela precisa oscilar entre ser algo de ontologicamente positivo e algo da ordem da irrealidade semântica para que as engrenagens das discussões das Disputationes Metaphysicae possam funcionar. No entanto, a eclipsada face ontologicamente negativa da denominatio extrinseca assombra todas as Disputationes Metaphysicae, de modo que, por fim, ela retorna sob a forma de uma disputatio que, segundo Suárez, não deveria constar em direito próprio das

Disputationes Metaphysicae1, a saber, a denominatio extrinseca retorna, mas mais uma vez camuflada, não em seu próprio nome, mas no nome daquilo que ela – ao menos de um modo inequívoco – não pode ser, ou seja, ela retorna numa disputatio sobre algo que não é, que ontologicamente é negativo, enfim,

na disputatio 54 (a última de todas) sobre os entia rationis2. Uma das principais tarefas dessa disputatio é tanto mostrar que os entia rationis não são quanto que as denominationes extrinsecae não são entia rationis (embora os entia rationis dependam das denominações extrínsecas para que eles possam surgir, ainda que nunca surjam para ser algo de ontologicamente positivo). Assim, essa última disputatio das Disputationes Metaphysicae são também como que um inchaço, algo que vem quando tudo já deveria ter acabado. Contudo, é uma hidropisia que perigosamente põe em risco a saúde das monumentais Disputationes Metaphysicae, pois o mesmo phármakon (a denominatio extrinseca) ministrado ao início para produzir um saudável conceito de ser é ministrado agora para cauterizar e estancar o que poderia se tornar uma sangria

1 DM 54, De entibus rationis, 1: “Quamquam in prima disputatione huius operis dixerimus ens rationis non comprehendi sub proprio et directo objecto metaphysicae...” 2 Com efeito, os entia rationis não só não deveriam fazer parte de um livro de metafísica como não deveriam, a rigor serem discutidos, de direito próprio, em nenhuma ciência. E é só porque não há nenhuma ciência à qual cabe discutir os entia rationis – tal como se eles fossem almas penadas da metafísica (quasi umbrae entium) vagando sem abrigo e sem último pouso – que, a pretexto de uma completude temática, mas não por causa de uma completude formal ou de direito, os entia rationis seriam acolhidos no limiar das Disputationes Metaphysicae, ou seja, os entia rationis e as privações seriam discutidos nessa última disputatio. Ora, toda essa lengalenga não é mais do que uma descarada denegação de que, ao longo das Disputationes Metaphysicae, ao lado das denominationes extrinsecae, os entia rationis não cessaram de aparecer. E, se finalmente vieram a merecer uma disputatio em seu próprio nome, isso se deu porque de certo modo era mais urgente manter oculta essa pervasiva denominatio extriseca, essa oscilante entidade, que tanto fundamenta o conceptus objectivus entis quanto é a base a partir da qual surgem todos os entia rationis. Nas palavras de Suárez: “Nam imprimis, cum entia rationis non sint vera entia, sed quasi umbrae entium, non sunt per se intelligibilia, sed per aliquam analigiam et conjunctionem ad vera entia, et ideo nec etiam sunt per se scibilia, nec datur scientia quae per se primo propter illa solum cognoscenda sit instituta.” (loc. cit.).

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desatada de seres irreais e incontíveis dentro do que propriamente é, ou seja, dentro do conceptus objectivus entis.

Em contraste com as Meditationes, porém, Suárez não deixa para o final sua dívida para com a teologia cristã. De fato, um dos propósitos das Disputationes Metaphysicae é apresentar aos estudantes um curso de filosofia que siga mais uma ordem da doutrina que a ordem do texto da metafísica de Aristóteles. Sendo assim, tratar-se-ia de uma obra predominantemente filosófica. Contudo, Suárez considera que é importante também, se conveniente, deter-se em algumas questões teológicas uma vez que, no ponto de vista dele, “os princípios da metafísica devem ser adequados e direcionados para confirmar

as verdades teológicas”1. Se ele se propõe a manter o ponto de vista filosófico (Ita vero in hoc opera philosophum ago), ele também não tem nenhuma dúvida de que a filosofia deve estar a serviço da teologia divina (semper tamen prae occulis habeam nostram philosophiam debere christianam esse, ac divinae Theologiae ministram). Ou seja, para Suárez a proposta de apresentação sistemática das doutrinas metafísicas segundo a luz natural não implicava propriamente na secundarização formal das questões teológicas (a rigor, o que estaria em questão seria uma secundarização prática ou organizacional segundo a qual algumas questões, as tidas como de cunho teológico, seriam tratadas com mais brevidade ou remetidas inteiramente para outros livros), de modo que – bem ao contrário das Meditações – não havia motivo para se esperar que esse falso preterido retornasse ao final.

Como estive indicando, a coerência das Meditações é também sustentada por diversos elementos retórico-persuasivos (em especial de cunho eurocristãos) que – sob o peso de uma narrativa que, embora não uniformemente, privilegia um discurso lógico-argumentativo – soam, sobretudo para um leitor ou leitora adestrado a valorizar os procedimentos argumentativos lógico-racionais, como meros ornamentos poéticos ou piedosos. A brevidade das Meditações dificilmente nos permite chamar esses argumentos, que a leitura tradicional das Meditações tende a turvar, de “doutrinas ‘menores’” – pois, de fato, não chegam a ter a extensão de ‘doutrinas’; no entanto, esses, digamos, argumentos “menores” têm o mesmo papel que as “doutrinas ‘menores’” às quais me referi nas Disputationes Metaphysicae de Suárez. Assim, o que estive indicando foi que nas Meditações há uma série de argumentos “menores”; esses argumentos que são relativos (i) aos costumes inveterados, (ii) a que o mal torna o mundo mais belo, (iii) a que a “natureza”, que é o próprio Deus, nos faz reagir corretamente na maioria das vezes (o que virtualmente inclui uma doutrina da probabilidade), (iv) a que o tempo age como um phármakon e (v) a que há

1 DM, Ad lectorem: “principia metaphysica sint ad Theologicas veritates confirmandas referenda et accommodanda”

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eficácia num phármakon que age segundo o semelhante indo contra o semelhante (ao adotar o preconceito de que todos os preconceitos devem ser postos em dúvida). Em outras palavras, sem doutrinas ou argumentos “menores” não há sistematicidade, mas se toda sistematicidade necessita recorrer a argumentos “menores”, então nenhuma sistematicidade alcança a pureza desejada ou pressuposta. Em conseqüência, ainda que um discurso que se propõe argumentativo consiga de modo convincente, ao menos numa leitura superficial, excluir diversas impurezas, ele nunca conseguirá excluir suas impurezas intrísecas, ou seja, as doutrinas “menores”, que são condições implícitas a seu funcionamento aparentemente coerente.

Assim, ao final da Sexta Meditação, tal como na Primeira, Descartes continua precisando de se medicar com o tempo, não pode ainda de fato confiar na natureza (a não ser probabilisticamente), continua precisando de evitar os maus hábitos (sobretudo, e como sempre, o de julgar precipitadamente), tem que aceitar que o mal (e, portanto, o erro) é tão incontornável quanto louvável e tem de recorrer à autoridade, isto é, à Igreja Católica e às instituições políticas para conduzir seu cotidiano e suas reflexões supostamente críticas num mundo em cruento processo de colonização/cristianização.

Contudo, apesar dessas impurezas argumentativas “menores”, como negar que uma saborosa miragem de ordem e bons costumes tem, nas Meditações, deleitado a tantos leitores e intérpretes? Por quê?

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Questões de

Metodologia

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Sobre a Função do Discurso sobre o Ser na Filosofia Medieval ∗∗∗∗

A questão do ser é discutida em várias ocasiões na obra de Tomás de Aquino. Não se pode dizer, porém, que ele dedique a esta questão um tratamento suficientemente extenso, aprofundado e coerente que chegue a satisfazer os intérpretes contemporâneos. De fato, para além de Kenny, que

publicou recentemente um livro sobre a questão do ser em Tomás de Aquino1,

outros intérpretes – gostaria de destacar em especial Wippel2 – já estiveram perspicazmente desenvolvendo interpretações que visam apresentar de um modo basicamente coerente o pensamento de Tomás de Aquino sobre o ser. O que nisso nos chama atenção, porém, é que por vezes os comentadores contemporâneos, ao lidar com essa questão, se mostram movidos por uma ansiedade que está ausente em Tomás de Aquino, bem mais concernido com as questões teológicas. Para os intérpretes e leitores contemporâneos de Tomás de Aquino, parece ser importante poder explicar de um modo coerente sua doutrina sobre o ser para que nos sintamos como entendendo o seu pensamento. Entender a questão do ser em Tomás de Aquino, de certo modo, nos tranqüiliza, ou seja, no nosso modo de pensar, compreender a questão do ser parece centralmente estruturante para que nos sintamos tendo um entendimento amplo e válido do pensamento de Tomás de Aquino; ainda que, por outro lado, nos seja claro que para Tomás de Aquino são as questões teológicas que conduzem seu pensamento e estruturam sua narrativa; com efeito, as questões que nossa formação acadêmica indica como sendo importantes questões filosóficas surgem, em geral, relativamente secundarizadas em suas argumentações. Contudo, a questão do ser (sobretudo se considerarmos nela incluído o discurso sobre o ser em geral: substância e acidente; potência e ato; matéria e forma etc.) é pervasiva e, assim, importante em sua obra, de modo que cabe perguntar qual seja, afinal, a função do discurso

Publicado originalmente em Veritas. Revista de Filosofia. Porto Alegre, Edipucrs, Setembro 2004, p. 477-487. 1 Anthony Kenny On being. Oxford Univ. Pr., 2002. 2 John Wippel Metaphyusical Themes in Thomas Aquinas. Washington (DC), The Catholic University Oress of America, 1984. Ver também: John Wippel “Metaphysics” in: N. Kretzmann & E. Stump (eds.) The Cambridge Companion to Aquinas. Cambridge U. Pr. 1993 p. 85-127. Não podemos deixar de mencionar também a introdução de Carlos Arthur R. do Nascimento em: Tomás de Aquino Comentário as ‘Tratado da Trindade’ de Boécio – Questões 5 e 6. São Paulo, Editora Unesp, 1999, p. 11-73.

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sobre o ser em seu pensamento, isto é, na estruturação de seu pensamento. Do mesmo modo, cabe perguntar por que a busca por estabelecer uma compreensão unitária e coerente para a questão do ser em Tomás de Aquino e em outros teólogos medievais e escolásticos é tão relevante para os comentadores ou historiadores, modernos e contemporâneos, da assim chamada filosofia medieval. Em vista disso, podemos dizer, então, que, para discutir a função do discurso sobre o ser na narrativa metafísico-teológica da escolástica, temos de começar por discutir a função do discurso sobre o ser no que é delimitado como filosofia medieval na historiografia contemporânea da filosofia. Porém, dado esse passo atrás, há que se recuar um pouco mais, pois teremos assim de comentar qual é a função da historiografia sobre a filosofia medieval dentro da historiografia contemporânea da filosofia. Considerando que a historiografia da filosofia é a propedêutica básica do estudo da filosofia, temos então que, dando ainda um outro passo atrás, comentar qual é o papel do estudo de filosofia, isto é, de historia da filosofia, na organização dos saberes da universidade contemporânea – o que é também discutir qual seja basicamente a organização dos saberes na universidade contemporânea. O que se chama hoje de filosofia é um currículo formulado a partir de

uma concepção de universidade vinda do século XIX1 e que – diferentemente do estudo da literatura, por exemplo, que derivou na Teoria Literária, nos Estudos Culturais e nos Estudos Pós-coloniais – esse currículo foi muito pouco alterado em sua lógica geral, ou seja, as suas mudanças se restringiram praticamente apenas ao acréscimo de novos grandes nomes em seu panteão. A filosofia é, assim, uma disciplina em cujo currículo se alinharia, da Grécia Antiga à época atual, a quintessência do pensamento crítico Ocidental. A Filosofia teria produzido um rastro de rebentos como a física, a biologia ou a economia; rebentos que muitas vezes prosperaram em relevância a ponto de fazer sombra à própria filosofia. Conseqüentemente, a filosofia seria um saber que pairaria acima dos demais saberes e que, no ponto de vista de muitos filósofos universitários, seria perigosamente secundarizada por uma prática científica por demais especializada e compartimentada, constantemente tendendo a esquecer-se de suas origens no pensamento filosófico. Daí os sempre renovados clamores de que o mundo precisa de filosofia. E, dentro do campo filosófico, há vozes ainda mais ousadas, como ratos que rugem, bradando que a filosofia precisa de filosofia medieval. Com efeito, o currículo universitário valoriza a Grécia Antiga,

1 Para uma discussão mais elaborada, precisa e criativa da questão das humanidades nos séculos XIX e XX, bem como de seu papel na atualidade, ver: Hans U. Gumbrecht The Powers of Philology. Dynamics of Textual Scholarship. Urbana/Chicago, Univ. of Illinois Pr., 2003.

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a Era Moderna e, sobretudo, os filósofos a partir de Kant. Os filósofos medievais são os grandes preteridos. Exatamente esses grandes leitores e intérpretes de Aristóteles são deixados na sombra, ou mesmo relegados à suposta Dark Ages. Um estudioso da filosofia medieval que aceite essa narrativa e como ela é contada, de fato, pode se sentir traído por esta disciplina universitária, a saber, a história da filosofia, à qual ele tanto se esforçou em servir fielmente. De certo modo, pode-se dizer que o movimento de desprendimento da filosofia das esferas eclesiásticas se deu, a partir do início do século XVI (ainda que os motivos e os argumentos relativos a esse desprendimento se alterassem no decorrer do tempo), com uma progressiva minoração do estudo da escolástica. Na Alemanha, Christian Wolff, no século XVIII, ainda se refere repetidamente a Suárez, mas basicamente apenas a passagens das Disputationes Metaphysicae; Wollf de fato não está em diálogo com escolásticos medievais; de resto, nos principais pensadores incorporados à história da filosofia o diálogo com a escolástica é pouco mais que nulo; assim, serão sobretudo instituições católicas

que buscarão manter a memória dos debates escolásticos1. Com efeito, até bem recentemente – e mesmo ainda hoje – o estudo dos filósofos, ou antes, dos teólogos medievais, ficou sendo em sua maior parte um encargo assumido por instituições de ensino relacionadas ao aparato eclesiástico católico. Os teólogos protestantes, por sua vez, nos últimos dois séculos, se permitiram bem mais valorizar filósofos modernos e contemporâneos. Heidegger foi, assim, uma grande fonte de inspiração para a teologia no século XX (até mesmo o último grande expoente da teologia católica, Karl Rahner, se fez devedor de Heidegger). Discursos filosóficos que valorizam a questão do ser parecem interagir com relativa facilidade com o pensamento teológico. Com efeito, Gilson, no campo da historiografia da filosofia medieval e mesmo da filosofia em geral, dá

particular relevância à ontologia2. É claro que Heidegger é mais ativamente engajado num projeto eurocêntrico de interpretação histórica que os intérpretes acadêmicos da história da filosofia medieval (que, na verdade, não são em geral mais que funcionários que implicitamente aceitam e divulgam a proposta curricular universitária colonial e pós-colonial). Para Heidegger, em sua fiel radicalidade

1 Norman F. Cantor, em Inventing the Middle Ages (New York, Quill, 1991, p.187-291), comenta a prática de absolutização da Idade Média, isto é, de resistência à historicização (sobretudo à historicização do papado) pela historiografia católica no século XIX. Recomendo também a leitura do texto de Luis Alberto De Boni “Estudar Filosofia Medieval”, que serve de introdução à coletânea de textos por ele editada Filosofia Medieval. Textos. Porto Alegre, Edipucrs, 2000, p. 7-35. Trata-se de um texto breve, mas rico em informações e referências bibliográficas. Sobre as vicissitudes do estudo da filosofia medieval no século XIX ver nesse texto de De Boni p. 11-18. 2 Ver E. Gilson. L’Être et l’Essence. Paris, Vrin, 1962 [1948].

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eurocêntrica, só haveria pensamento na filosofia ocidental; filosofia ocidental que por sua vez teria sido formada na Grécia; e Grécia à qual a filosofia

contemporânea deveria retornar a fim de se inspirar para um novo começo1. A coluna vertebral da história do pensamento, ou do esquecimento das origens gregas, seria a questão do ser. Todos os pensadores sobre o ser tanto esqueceram quanto lembraram o ser, mais esqueceram do que lembraram, mas teriam seu mérito mesmo no esquecimento; enfim, a questão do ser seria unificadora e estruturadora da essência do progresso científico. O erro, ou a errância, do projeto tecnocientífico europeu seria ter posto a calculabilidade inveterada no lugar da contemplação do ser. A ciência seria assim merecedora de críticas, mas só um pensamento como o dele (de Heidegger), voltado para as origens gregas (e nunca, por exemplo, críticas voltadas para os desmandos dos europeus nos países colonizados), é que legitimamente poderia se opor ao niilismo calculante da técnica moderna. A narrativa do ser, portanto, estrutura, unifica e se propõe como o critério para estabelecer o que é pensamento (ou

seja, o que é legitimamente europeu) e o que é não-pensamento2. Os historiadores contemporâneos da filosofia medieval são em geral mais sóbrios. O último prestigiado historiador da filosofia medieval a propor uma exposição engajada da filosofia medieval foi Gilson. La Philosophie au Moyen

Âge3 tem como eixo básico de organização, ainda que não exclusivo, a doutrina de Tomás de Aquino, ou seja, a hermenêutica de Gilson é consonante com um neotomismo de relativo diálogo histórico e parcimoniosamente reduzido a

pontos relacionados à metafísica e à teologia4. Contudo, segue havendo esforços

1 O pensamento de Heidegger sobre a Grécia Antiga é uma variação semi-apocalíptica da visão classicista formada com a proposta universitária de Humboldt. Para Humboldt, a cultura da Grécia Antiga, que seria a Grécia Clássica, seria um caminho para formar os estudantes; através dela, os estudantes seriam formados não só do ponto de vista educacional, mas quanto ao seu caráter. A Grécia Antiga seria um lastro moral fundamental na Bildung dos estudantes. Se, para Humboldt, a Grécia era fonte constante de renovação educacional; para Heidegger, a Grécia é fonte constante de renovação – e também de unidade – do pensamento Ocidental, a ponto de fomentar um novo começo. 2 Sobre isso ver: “O aniversário da morte de Heidegger” e “Uma mera ficção. A viagem de Heidegger à Grécia”, em A. Rios Mediocridade e Ironia (Rio de Janeiro, Caetés, p. 99-124 e 165-180), mas sobretudo o meu texto: “Nada é sem razão. Impessoalidade e Eurocentrismo na História do Ser” in: Ethica, Rio de Janeiro, Editora Gama Filho, v. 9, n. 1, p. 147-156. 3 E. Gilson. La Philosophie au Moyen Age. Paris, Payot, 1962 [1a edição 1922/ edição revista 1944]. 4 De Boni em relação ao que ele considera “Filosofia propriamente dita” (op. cit. p. 23), entende que, no último século, se delineariam basicamente duas tendências divergentes: (1) os que consideraram a Escolástica como normativa (aí se incluiria o neotomismo) vendo na filosofia medieval uma philosophia perennis e (2) os que vêem

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entre intérpretes contemporâneos para assegurar linhas de unidade na historiografia medieval. Assim, Honnefelder enfatiza uma continuidade do escotismo até Kant e

Pierce1, o que, de certo modo, pode ser visto como um heideggerianismo mitigado ou parcial. Marenbon, na primeira edição do seu Early Medieval Philosophy, em 1983, buscou delimitar o que fosse filosofia a partir do que se

assemelhasse aos métodos e interesses dos filósofos ingleses modernos2. Em seu

Later Medieval Philosophy3, ele reviu esta posição e passou a adotar um ponto de vista algo mais eclético aceitando que por vezes só se pode fazer justiça aos pensadores medievais se se considerar suas questões e argumentações num contexto de discussão histórico-cultural mais amplo. Na verdade, em textos de maior fôlego sobre a história da filosofia medieval, algum grau de ecletismo tem

de ser assumido. Em The Cambridge History of Later Medieval Philosophy4, há as seis temáticas que, cada uma a seu modo, são estruturantes da narrativa do livro: lógica; metafísica e epistemologia; filosofia natural; filosofia da mente;

ética; e política5. Porém, são os temas relacionados à lógica que parecem ser o

a escolástica como um patrimônio de textos e debates que o trabalho de pesquisa deveria buscar incorporar às discussões contemporâneas (p. 23-25). Uma vez que o neotomismo não é uma questão relevante no cenário acadêmico contemporâneo, não me ocuparei com ele (em todo caso, a crítica mais abaixo à substancialização da filosofia e do cristianismo também se aplicaria, e de modo contundente, ao neotomismo); no próximo parágrafo, porém, comentarei o segundo grupo mencionado por De Boni. 1 Ludger Honnefelder. Scientia transcendens. Die formale Bestimmung der Seiendheit und Realität in der Metaphysik des Mittelalters und der Neuzeit. Hamburg, Meiner Verlag, 1990. 2 O próprio Marenbon reconhece a insuficiência de suas concepções no prefácio da segunda edição: Early Medieval Philosophy. London, Routledge, 1989 p. vii: “When I wrote Early Medieval Philosophy five years ago, I thought of philosophy as a single, identifiable subject. Although I tried in passing to provide a definition of it (‘rational argument based on premises self-evident from observation, experience and thought’), in practice I assumed that any thinker who appeared to share the methods and interests of modern British philosophers was a philosopher, and that all other thinkers were theologians, mystics, poets, scientists or whatever, but not philosophers.” 3 J. Marenbon. Later Medieval Philosophy. London, Routledge, 1987. 4 N. Kretzmann, A. Kenny & J. Pinborg (eds.). The Cambridge History of Later Medieval Philosophy. Cambridge U. Pr., 1982. 5 Na verdade, esse livro de Cambridge segue uma estratégia editorial que em muito se assemelha à proposta de Marenbon: “And because the areas of concentration in contemporary philosophical scholarship on medieval thought naturally reflect the emphases in contemporary philosophy, our strategy has led to a concentration on those parts of later medieval philosophy that are most readily recognizable as philosophical to a student of twentieth-century philosophy.” – p. 3.

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principal eixo e, portanto, a principal força unificadora do livro1. O que vemos é

que, se a estrutura do livro de Gilson reflete o neotomismo2 e a do de

Honnefelder, resquícios de história heideggeriana do ser3, o livro de Cambridge se norteia pela filosofia analítica anglo-saxã que dá ênfase a questões relativas à lógica e à linguagem. A historiografia do pensamento medieval assume as questões da filosofia que lhe é contemporânea, aplicando-as aos pensadores medievais, voltando depois para reivindicar maior espaço e aceitação no currículo filosófico universitário internacional. Enquanto o pensamento grego da Antigüidade é assumido também como uma alteridade que pode ensinar algo aos contemporâneos, enquanto os gregos tiveram por longo tempo um suposto papel formador para toda a sociedade, a Idade Média com seus textos e debates

1 A discussão política não pode ser considerada uma linha de unificação da historiografia da Filosofia Medieval que estou comentando, uma vez que, embora haja narrativas unificadas do pensamento político medieval (ver, por exemplo, J. H. Burns The Cambridge History of Medieval Political Thought c. 350-c. 1450. Cambridge U. Pr., 1988), os pontos de contato entre a história do que é considerado o pensamento político e as demais temáticas filosóficas são escassos e superficiais. Em vista disso, não me deterei no presente texto na questão do pensamento político medieval. Há, porém, um momento de conflito político importante que é por vezes discutido pelos historiadores do pensamento medieval. Trata-se das condenações de 1277. É importante notar que o tema das 219 condenações não costuma ser abordado em livros como o de Burns sobre a política na Idade Média, ou seja, falta se trabalhar, em relação a essas condenações, com categorias interpretativas e metodológicas diferentes – e, assim, mais produtivas – do que se tem usado. Retornarei brevemente a essas condenações em uma nota mais abaixo. 2 Gilson, no primeiro capítulo de La Philosophie au Moyen Age, ao final de sua apresentação dos pais apologistas, indica que o grande referencial de seu livro é Tomás de Aquino: “Rien d’étonnant qu’ils [os pais apologistas] trébuchent presque à chaque pas dans cette première exploration d’une vérité qu’ils embrassent globalment plutôt qu’ils ne la pénètrent en sa profondeur. C’est que leur vérité devance ce qu’ils en savent, et que ce que l’homme en peut savoir, onze siècles d’efforts et la collaboration de nombreux génies ne seront pas trop pour le formuler.” Ou seja, Gilson lê a historia do pensamento nos primeiros séculos de modo teleológico visando Tomás de Aquino, isto é, visando o triunfo tomista; depois, ele lerá também os pensadores posteriores a Tomas de Aquino em função dele. Evidentemente, ainda mais problemático que isso são as assunções de Gilson a respeito do que seria a filosofia cristã; um tema que ele desenvolve mais no início de P. Bohner & E. Gilson História da Filosofia Cristã (Petrópolis, Vozes, 1970), onde se vê coisas como: “Uma filosofia cristã jamais irá de encontro às verdades de fé claramente formuladas pela igreja”, o que é um critério hermenêutico e historiográfico dos mais absurdos. 3 Não estou dizendo que a narrativa de Honnefelder seja pesadamente orientada por conceitos e termos heideggerianos tal como vários livros da década de 1960. Estou apenas indicando que o esquema geral de sua narrativa, que propõe a compreensão do ser por Duns Scotus como o início de uma trajetória relativamente longa indo até Pierce, é, de um modo parcial (num trajeto de cerca de seis séculos apenas), similar ao longo trajeto heideggeriano vindo da Grécia Pré-socrática até o próprio Heidegger no século XX.

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fica como se fosse apenas um tipo de dever de casa da historiografia filosófica.

Ainda que esse contexto de pesquisa possa estar em processo de mudança1, temos de ter claro que nossa compreensão da questão do ser na escolástica, bem como a literatura secundária sobre ela, foi formada ainda no contexto historiográfico a que estou me referindo. Ou seja, o básico da historiografia da filosofia medieval pode ser resumido nos seguintes pontos. (1) Assunção de que é possível delimitar com relativa nitidez um campo de questões, discussões e textos que se poderia denominar de Filosofia Medieval. (2) A esse campo discursivo ou textual se poderia aplicar de modo produtivo, ainda que com algumas reformulações estratégicas, muitas das questões que circulam no debate filosófico contemporâneo. (3) As grandes áreas temáticas da filosofia moderna e contemporânea podem servir, às vezes até isoladamente, como linhas de unificação quanto se estiver narrando a história dos debates filosóficos ao longo dos séculos; com efeito, de acordo com a escola filosófica do intérprete a linha principal é tomada, em geral, (i) das questões ontológicas, (ii) das lógico-

semânticas ou (iii) das da teoria do conhecimento2. (4) Trata-se de uma historiografia que parece fazer o dever de casa da ortodoxia historiográfica filosófica contemporânea acabando por reforçá-la conservadoramente, não servindo nem de provocação à crítica e nem de fonte de novos problemas para os pensadores contemporâneos, os quais, aliás, nunca desenvolveram um diálogo filosófico crítico com a Idade Média (embora pensadores como Heidegger, Foucault, Deleuze ou Derrida tenham interagido criticamente com os gregos). (5) Mesmo as inovações nos métodos de interpretação histórica da Antigüidade parecem afetar pouco os intérpretes do pensamento medieval que preferem buscar seus “desafios” nas questões contemporâneas já estabelecidas

ou em conceitos conservadores que substancializam tanto a filosofia3 quanto o

1 Ver De Boni op. cit p. 7-8. 2 As duas formas básicas de unificação e substancialização da filosofia consistem, quer em considerar o início grego fulgurante e determinante de tudo o mais, quer em considerar a atualidade como sendo o critério pelo qual se julgará todo o passado, ou seja, enquanto se puder retornar na história e ainda se considerar que nossos problemas filosóficos atuais podem ser encontrados, então trata-se de filosofia. Um caso particular de unificação é o neotomismo, que elegeu Tomás de Aquino (um pensador, digamos, no meio da história) como sendo o parâmetro do que vem antes e do que vem depois; a proposta é a de que em torno de Tomás de Aquino se teria alcançado uma philosophia perennis. Qualquer uma dessas concepções só pode gerar distorções na análise histórica. 3 Esses intérpretes nunca consideram que a história da filosofia é, hoje, basicamente uma disciplina acadêmica subsumida a um currículo universitário co-partícipe de um projeto hegemônico científico-cultural euro-americanocêntrico. Assim, tal como esse currículo se considera um benefício universal, um patrimônio da humanidade, a ser

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cristianismo (tal como se ele enquanto religião tivesse algum tipo de autonomia

histórica e social sui generis1). A questão do ser nos textos que mencionei há pouco é, portanto, uma peça numa proposta hermenêutica conservadora e distorciva. Aplicá-la aos textos da escolástica sem questionar o contexto de pesquisa que a formulou e que já preparou durante décadas a literatura secundária que teremos de utilizar não me parece um procedimento satisfatório. Não estou dizendo que os textos de Wippel não são interessantes; eles nos ensinam muitos meandros importantíssimos dos textos de Tomás de Aquino. Também não estou dizendo que não seja possível se propor questões delimitadas que sejam relevantes. Só estou dizendo que é insustentável seguir mantendo essa posição sem se atentar para suas limitações. Ou seja, não estou criticando a competência filológica dos historiadores da filosofia medieval – sem dúvida, admiro e aprendo muito com a alta qualidade filológica dos comentários de Kenny e Wippel –, minha crítica se refere à insuficiência da análise histórica e sócio-antropológica, à conivência com um projeto eurocêntrico de adestramento crítico (isto é, com a disciplina universitária história da filosofia) e ao cultivo do trabalho filológico em detrimento de outros instrumentais críticos elaborados, por exemplo, pela Teoria Literária.

beneficamente transmitido e implantando na periferia, também as temáticas desse bem universal e supra-histórico são adotadas como o meio par excellence de reatualizar e resgatar as meândricas discussões medievais para o público contemporâneo. 1 A forma clássica de substancialização do cristianismo é considerar que a fé é um engajamento peculiar que mantém sua especificidade através da história, possibilitando tanto a unificação quanto a historicidade (uma vez que a especificidade da fé se manifestaria em diversas realizações na história) do cristianismo. Assim, Heidegger na conferência, de 1927, “Phänomenologie und Theologie” (M. Heidegger Phänomenologie und Theologie. Frankfurt, Klostermann,1970) diz: “Die Theologie ist eine positive Wissenschaft und als soche daher von der Philosophie absolut verschieden” (p. 15). Com isso ele está indicando uma compreensão substancializada e unificada tanto da filosofia quanto da teologia. Segundo o Heidegger de então, a teologia (que, diga-se, seria sempre ‘teologia cristã’) teria sua positividade derivada de seu objeto, a saber, a fé: “Vielmehr wird die Theologie selbst primär begrundet durch den Glauben...” (p. 26-27); e essa fé, que seria a fé no Cristo enquanto Deus crucificado, estaria na história segundo uma historialidade especifica: “Die Kreuzung aber und alles ihr Zugehörige ist ein geschichtliches Geschehnis, und zwar bezeugt sich dieses Geschehnis als soches in seiner spezifischen Geschichtilichtkeit nur für den Glauben in der Schrift” (p. 18) (para uma apreciação mais ampla da relação entre filosofia e teologia em Heidegger ver: P. Capelle “M. Heidegger entre Philosophie et Théologie. Une triple topique” in: Revue des sciences religieuses 67 n° 3, 1993, p. 59-77). Para uma crítica mais cuidadosa e completa da compreensão da religião como possuindo uma especificidade sui generis ver: R. T. McCutcheon Manufacturing Religion. The Discourse on Sui Generis Religion and the Politics of Nostalgia. Oxford Univ. Pr., 1997; e W. Braun & R. T. McCutcheon Guide to the Study of Religion. London/New York, Cassel, 2000.

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Quem mais tem se preocupado em renovar a metodologia da historiografia sobre a filosofia medieval é Alain de Libera. Em uma série de publicações, ele tem trazido argumentos no sentido de dessubstancializar a Idade Média. Ele alerta que “a Idade Média não existe”; ela seria um efeito de uma narrativa por demais etnocêntrica, pouco sensível, por exemplo, para as várias durações – a duração grega, a duração arabo-muçulmana e a duração judaica – que, se consideradas em suas interações, contariam uma história bem mais complexa e interessante. Libera propõe também uma leitura que ele chama de “arqueológica”, isto é, um procedimento que busca estabelecer como foram surgindo e sendo articulados os diversos elementos que deram origem a um problema num determinado momento histórico e num conjunto de textos de filosofia, sem se deixar guiar pelo pressuposto de que a história da filosofia

descreveria versões temporais e circunstanciais de problemas universais1. Libera inova, portanto, enquanto filólogo, com sua “arqueologia” de inspiração foucaultiana, e, enquanto historiador, ao criticar o eurocentrismo. Contudo, enquanto historiador ele ainda realiza um diálogo superficial com a historiografia da Antigüidade e mesmo com a relativa à da Idade Média as quais têm trazidos contribuições importantes para uma nova visão da sociedade e da cultura na Idade Média. Assim, embora Libera tenha apresentado em seus trabalhos análises que, sobretudo do ponto de vista filológico, são inovadoras e instigantes, sua análise histórica, para além de potencializar essas leituras filológicas, têm se mostrado em muito conservadoras, no sentido de elas preservarem o discurso filosófico de interações com os demais discursos com os quais ele, na verdade, está entretecido. Ou seja, Libera continua ainda longe de tirar conseqüências aprofundadas de um diálogo mais detido com discursos contemporâneos que, ao meu ver, contribuiriam para que realmente se começasse a contar uma outra história.

Considero, portanto, que todos os cinco pontos que indiquei acima têm de continuar a serem revistos. Por brevidade, vou comentar apenas o quinto deles. Nas últimas décadas – podemos aqui tomar como marco o texto de Peter

1 Libera vê seu método arqueológico como contrário à perspectriva reconstrucionista de Panaccio: “S’agissant du problème des universaux, le changement qu’apporte la perspective archéologique par rapport à la perspective reconstructionniste est donc le suivant: il ne s’agit plus de rapporter ce que les philosophes du passé ont proposé en guise de réponse à un problème supposé invariant et transhistorique, mais de déterminer, pour chacun, ce qu’a été sa problématique directrice ou, mieux, son horizon de problématique, de chercher ce qui a conduit chaque philosophe à poser les questions qu’il a effectivement posées. Autrement dit: il me paraît indispensable de savoir d’abord à quoi répond une doctrine (ou une prise de position argumentée) pour évaluer ou simplement comprendre son intérêt et sa pertinence philosophiques.” – p. 567.

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Brown “The Rise and Function of the Holy Man in Late Antiquity”1, de 1971, – a historiografia sobre a Antigüidade tem se modificado continua e proficuamente. O que Peter Brown propõe nesse artigo é que o santo (“holy man”) é um ponto de interseção de forças culturais, sociais e políticas, de modo que não só ele tem de ser entendido nesse jogo de forças, mas nós, para compreendermos a sociedade da Antigüidade Tardia, temos de entender como ela possibilitava e requeria o fenômeno do homem santo. Indo mais adiante, podemos dizer que também os discursos filosóficos e as doutrinas teológicas têm de ser entendidos como um fenômeno em um jogo de forças sócio-antropológico que ao mesmo tempo os possibilita e que são em parte possibilitados por eles. Assim, por exemplo, o arianismo não é apenas uma idéia que gera grupos dissidentes: as dissidências regionais e sociais que o império romano tenta aplainar, apoiando um cristianismo unitário, também buscam formas de expressão e de formação identitárias recorrendo a tomadas de posição nos discursos que formam a tessitura social (em especial, nos discursos com implicações teológico-eclesiásticas, uma vez que as doutrinas e igrejas cristãs são um fator de manutenção da unidade do império). Desse modo, pode-se pensar que doutrinas teológicas de cunho filosófico – tais como as relativas à substância divina e a sua unidade ou trindade – funcionam tanto como argumentos

metafísicos quanto políticos2. Em outras palavras, no contexto do cristianismo

1 Peter Brown Society and the Holy in Late Antiquity. Berkeley Univ. of California Pr., 1982, p.103-152. Um número de revista dedicado a esse texto de P. Brown é: Journal of Early Christian Studies 6.3 (1998). Ver também: J. Howard-Johnston & P. A Hayward The Cult of Saints in Late Antiquity and the Middle Ages. Oxford Univ. Pr., 1999. 2 “We cannot simply reduce the Arian controversy to a species of strain in ‘church-state relations’; but it was conducted against a civil background, and the fortunes of those engaged were often encouraged or impeded (depending on one’s point of view) by political and social pressures. Moreover, the controversy expressed, if it did not actually create, tensions between cities themselves. Doctrinal purity, or its absence, was a useful stick with which to beat a local rival for eminence in influence, patronage, even wealth; and in that competition the friendship of the emperor could be a useful weapon. In that context, too, the arguments themselves had a direct effect. They were not merely an excuse for the continuity of old antagonisms: the answers that emerged at a theological level allowed those who aspired after power to articulate new histories for the status and influence they now claimed, and new definitions of the communities over which they expected to wield that power. Relationships with the central authorities of the empire were inevitably part of such a campaign.” Philip Rousseau Basil of Cesarea Berkeley, Univ. of California Pr., 1994, p. 95. Segundo o conceito de campo em Bourdieu, os lances devidos a conflitos dentro de um campo podem ter duas faces, uma voltada para o interior do campo e outra para o exterior. Nesse exemplo sobre o arianismo, vemos que os conflitos internos ao campo teológico eclesiástico têm enormes repercussões fora do campo. Por vezes, porém, tais repercussões externas podem até inexistir. Ver: D. Swartz Culture and Power. The Sociology of Pierre Bourdieu. The Univ. of Chicago Pr., 1997, capítulo 6: “Fields of Struggle for power”, p. 117-142. Embora numa outra perspectiva Alain de Libera, em seu livro Penser au

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antigo, o discurso sobre o ser (no caso, sobre a questão da substância) funciona no jogo social de um modo bem diferente do que funciona para Aristóteles, para Descartes ou para Tomás de Aquino. As pesquisas sobre a Antigüidade também

têm mostrado a complexidade da relação entre o cristão e o pagão1, contradizendo a visão que insiste em substancializar o cristianismo em um evento, ou num destino histórico, sui generis; do mesmo modo não se pode aceitar a assunção de que há, por um lado, algo que é a filosofia e, por outro, uma tradição religiosa cristã, mas considerar tudo um mesmo campo de

embates – o campo teológico-eclesiástico2 – onde estratégias de diferenciação e hierarquização são um lance no jogo de poder visando redefinir os conflitos, propondo assim novos caminhos e bloqueando argumentos desfavoráveis. Peter Brown, depois de inúmeros insights e novas pesquisas decorrentes de seus trabalhos, segue sensível ao quanto o cristianismo da Antigüidade “tem as costas firmemente voltadas para nós” mantendo-se “imperturbável ante

nossas indagações mais prementes e legítimas”3. Contudo, os pesquisadores da filosofia medieval muitas vezes transferem despreocupadamente temáticas atuais para orientar leituras de textos medievais, de modo a escolher neles o que mais se adeqüe a tais temáticas. Enquanto para Peter Brown o livro de C. W.

Moyen Âge (Paris, Seuil, 1991), se mostra sensível ao duplo funcionamento dos enunciados filosóficos. A condenação de 1277 é um exemplo claro de como enunciados filosóficos têm um funcionamento duplo. Trata-se de um tema que já foi abordado por vários pesquisadores – mais recentemente por Aertsen e Dietl. Seria necessário rever esse debate buscando, do ponto de vista da metodologia histórica, quais inovações teóricas se pode aprender nele, bem como para pôr à prova a discussão que estou apresentando neste artigo. 1 “The image of a society neatly divided into ‘Christian’ and ‘pagan’ is the creation of late fourth-century Christians, and has been too readily taken at its face value by modern historians.” R. A. Markus The End of Ancient Christianity Cambridge Univ. Pr., 1990, p. 23. 2 O conceito de campo teológico-político ainda é uma hipótese de trabalho minha. Não é possível neste breve texto apresentar a discussão com Bourdieu e Randall Collins (The Sociology of Philosophers. A Global Theory of Intellectual Change. Harvard University Press, 1998) a partir da qual busco formular esse conceito. Uma crítica minha a Collins é a de que ele ao falar em redes é ainda vago quando seria necessário especificar melhor quais são as características dos campos onde se dão os embates entre intelectuais. Para uma discussão do conceito de “campo” em Bourdieu, ver: D. Swartz loc. cit. O livro de Collins, embora peque pelo excesso de ambição e pela conseqüente falta de discussões suficientemente detalhadas, propõe algumas hipóteses para a compreensão de vários aspectos da dinâmica social de produção dos saberes e promoção da fama de seus agentes no período medieval. Trata-se de um livro com o qual minhas críticas no presente artigo têm muito em comum e que, sem dúvida, merece ser criticado e aprofundado. 3 Peter Brown Corpo e Sociedade. O homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990.

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Bynum Holy Feast and Holy Fast1 é indicação suficiente para que ele considere que o cristianismo da Antigüidade separa-se por um vasto fosso do cristianismo posterior, os historiadores da filosofia ainda custam a assumir que o cristianismo (ou os cristianismos) da Idade Média separa-se também por um vasto fosso do que hoje se denomina de cristianismo. Em vista disso, considero que novas pesquisas deveriam valorizar exatamente alguns aspectos de textos aceitos como fundamentais para a filosofia medieval que hoje nos parecem abstrusos, ou mesmo fantásticos, pois buscando explicá-los poderemos por vezes compreender melhor o funcionamento, por exemplo, do discurso sobre o ser nesses textos, ou seja, poderemos assim arrancá-los um pouco das garras de nossas obsessões e dar chance para que essa alteridade enigmática nos diga ou sussurre algo. Entre os séculos IX e XII, os teólogos – nos narra Bynum – passaram a se preocupar crescentemente com qual fosse a presença de Cristo no

pão e no vinho2. Ou seja, algumas categorias do discurso sobre o ser ganharam cada vez mais importância nesse contexto desenvolvendo-se em uma série de quaestiones que historiadores da filosofia excluem de seu trabalho interpretativo, quer as ignorando, quer delas fazendo uso humorístico. No entanto, o livro de Bynum nos mostra a complexa dinâmica de uma pluralidade de diferentes discursos que interagem e conflitam na questão da alimentação e da eucaristia na Idade Média: é tarefa da historiografia do pensamento na Idade Média entender como o discurso sobre o ser funciona nesse campo de forças. Seria, portanto, interessante perguntar, por exemplo, como funciona o discurso sobre o ser na Summa theologiae de Tomás de Aquino, ou seja, perguntar pela função das múltiplas narrativas na Summa – pois há nela narrativas populares, médicas (eruditas e populares) bíblicas, literárias (eruditas e regionais), filosóficas (aristotélicas, agostinianas, neoplatônicas etc.), jurídicas, biográficas, culinárias, históricas, eclesiásticas, matemáticas, mitológicas etc. –, e como elas interagem e competem, bem como perguntar qual a inserção da Summa e da literatura escolástica (isto é, do discurso acadêmico de então) no contexto sócio-antropológico dos debates em torno da alimentação e da eucaristia. Enfim, se nos permitirmos reconhecer que mesmo a Summa tem muitas vezes “as costas firmemente voltadas para nós”, teremos de buscar novas estratégias de leitura e análise histórica.

1 Caroline W. Bynum Holy Feast and Holy Fast. The Religious Significance of Food to Medieval Women. Berkeley, Univ. of California Pr., 1988. 2 “Exactly how Christ was present in the bread and wine was not a question that animated early theologians. Between the ninth and twelfth centuries, however, it became such a question.” – Bynum loc. cit. p. 50.