do museu para a academia: a trajetÓria intelectual de loureiro fernandes e a institucionalizaÇÃo...

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ARQUEOLOGIA Revista do Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas

Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes Universidade Federal do Paraná

ANAIS DO SEMINÁRIO COMEMORATIVO DO CENTENÁRIODE NASCIMENTO DO PROF. DR. JOSÉ LOUREIRO

ASCENÇÃO FERNANDES (1903-2003)

SUMÁRIO

O CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DO PROF. DR. JOSÉLOUREIRO ASCENÇÃO FERNANDES ................................................1

Igor Chmyz - Coordenador

DISCURSO DE ABERTURA ...................................................................9Maria Tarcisa Silva Bega

DEPOIMENTO .....................................................................................13Jesus Santiago Moure

DEPOIMENTO ...................................................................................19João José Bigarella

DEPOIMENTO ...................................................................................31Rudolf Bruno Lange

DEPOIMENTO ...................................................................................37Oldemar Blasi

DEPOIMENTO ...................................................................................47Arthur Barthelmess

REMINISCÊNCIAS DE LOUREIRO FERNANDES ............................53Aryon Dall'Igna Rodrigues

CENTENÁRIO DE LOUREIRO FERNANDES:MINHAS LEMBRANÇAS DO MESTRE ................................................63

Cecília Maria Westphalen

LOUREIRO O MESTRE ....................................................................69Margarida Davina Andreatta

DEPOIMENTO .......................................................................................71Constantino Comninos

RELEMBRANDO JOSÉ LOUREIRO ASCENÇÃOFERNANDES, UM SEMEADOR ...........................................................81

Igor Chmyz

O LEGADO DE LOUREIRO FERNANDES .........................................109Cecília Maria Vieira Helm

PROF. LOUREIRO FERNANDES:OS ÚLTIMOS TEMPOS .......................................................................117

Regina Maria de Campos Rocha

DEPOIMENTO ...................................................................................135João Carlos Gomes Chmyz

DO PROFESSOR LOUREIRO E DOS PROFESSORES ....................139Zulmara Clara Sauner Posse

JOSÉ LOUREIRO FERNANDES, UM INTELECTUALNA "PROVÍNCIA" ...............................................................................147

Márcia Scholz de Andrade Kersten

DO MUSEU PARA A ACADEMIA: A TRAJETÓRIAINTELECTUAL DE LOUREIRO FERNANDES E AINSTITUCIONALIZAÇÃO DA ANTROPOLOGIA NOPARANÁ ........................................................................................155

Maria Fernanda Campelo Maranhão

O IMÁGINÁRIO DE JOSÉ LOUREIRO FERNANDESEXPRESSO EM SEUS REGISTROS DE MEMÓRIA ..........................173

Maria Regina Furtado

LOUREIRO FERNANDES E OS XETÁ ..............................................197Carmem Lucia da Silva

ENTREVISTA ......................................................................................217Dival José de Souza

O CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DO PROF.DR. JOSÉ LOUREIRO ASCENÇÃO

FERNANDES (1903-2003)

Igor Chmyz *

RESUMO: Este volume publica os anais do seminário realizadoem comemoração do centenário de nascimento de JoséLoureiro Ascenção Fernandes, antropólogo incentivador ecriador de instituições culturais e científicas. Desenvolvidodurante os dias 4 e 5 de dezembro de 2003, o seminário reuniuespecialistas das áreas de biologia, geologia, lingüística,história, arqueologia, antropologia, museologia, biblioteconomiae economia. Reuniu, também, antropólogos que pesquisamtemas abordados por Loureiro Fernandes.

Palavras-chave: História da Antropologia Brasileira;História de Instituições; Depoimentos; Contribuições.

Em 1999, quando o prof. Antônio Garcia preparava o livroDr. Loureiro Fernandes: Médico e Cientista, conversamos sobre afutura data do centenário do seu nascimento. Naquele momento, o anode 2003 parecia distante. Apesar disso, a lembrança foi transmitidapara o plenário do Departamento de Antropologia da UniversidadeFederal do Paraná. Deliberou-se, então, que atividades seriam progra-madas por aquele Departamento e o Centro de Estudos e PesquisasArqueológicas - CEPA, organismos fundados por Loureiro Fernandesem 1958 e 1956, respectivamente.

Embora a comissão composta pelos professores Selma Baptista,Carlos Alberto de Freitas Balhana e Igor Chmyz somente tivesse sidodesignada pelo Conselho Departamental em 18 de outubro de 2002,para tratar das comemorações do centenário, consultas aos eventuaisparticipantes de um seminário já estavam em andamento, por iniciativado Centro, assim como o planejamento inicial de outras atividades.

O projeto original previa uma reunião de professores, pesqui-sadores e técnicos que trabalharam com o prof. Loureiro ou quedele receberam estímulos para a sua vida profissional; previa, tam-bém, a participação daqueles que não privaram do seu convívio mas o

* Coordenador do Seminário.

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sucederam em temas de suas pesquisas.Com a produção do prof. Loureiro sobre arqueologia, história,

geografia, antropologia, etnografia, folclore, linguística e genética,reunida para a elaboração do artigo José Loureiro Fernandes e aarqueologia brasileira, inserido no livro do prof. Garcia em 2000,planejou-se a publicação de uma bibliografia comentada, incluindo areimpressão de textos selecionados. Dispersa em periódicos, anais efolhetos editados no país e no exterior desde 1934, a sua obra é dificil-mente encontrada. Foram escolhidos, para reimpressão, os artigos:Os Caingangues de Palmas, publicado em 1941, nos Arquivos doMuseu Paranaense, v. 1, p. 161-209, Os índios da Serra dos Doura-dos, em 1959, nos Anais da Terceira Reunião Brasileira de Antropo-logia, em Recife, p. 27-45, Os sepultamentos no Sambaqui de Matinhos,em 1955, nos Anais do 31º Congresso Internacional deAmericanistas, em São Paulo, v. 2, p. 579-596, Contribuição àgeografia da Praia de Leste, em 1947, nos Arquivos do MuseuParanaense, v. 6, p. 3-44, Estudos de folclore no Paraná, em 1953, naRevista da Comissão Paulista de Folclore e do Centro de Pesqui-sas Folclóricas “Mário de Andrade”, v. 1, n. 2, p. 59-82 e The Xetá, aDying People in Brazil, em 1959, no Bulletin of the InternationalCommitee on Urgent Anthropological and Ethnological Research,em Viena, v. 2, p. 22-26.

Recorrendo-se ao acervo iconográfico e documental existenteno CEPA, previu-se a produção de painéis para a terceira atividade:uma exposição enfocando as múltiplas facetas do prof. Loureiro noscampos das ciências humanas.

Devido a limitações de ordem financeira, foi possível apenas aconcretização do seminário e a edição de um número especial deArqueologia, a revista do CEPA, no qual, à luz de novas pesquisas,foram retomadas as discussões iniciadas com as escavações pionei-ras de Loureiro Fernandes no Sambaqui de Matinhos.

A estruturação do Seminário revelou-se uma tarefa fácil pois,as pessoas contactadas prontamente se dispuseram a colaborar comdepoimentos ou palestras enfocando a obra do homenageado. Poucosnão aderiram por motivo de força maior, mas prontificaram-se a forne-cer depoimentos por escrito.

Associaram-se à comemoração, o Círculo de Estudos Bandei-rantes, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, a Academia deCultura de Curitiba, a Academia Sul-Brasileira de Letras - Subseção doParaná, o Movimento Pró-Paraná e o Comitê Organizador de “Curitiba- Capital Americana da Cultura 2003”.

O Seminário em Homenagem do Centenário de Nascimento do

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Igor Chmyz

Figura 1. Abertura do Seminário. Da direita para esquerda: profa. dra.Ciméa Barbato Bevilaqua e prof. dr. José Borges Neto, respectivamentevice-diretora e diretor do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, profa.dra. Maria Tarcisa Silva Bega, vice-reitora da Universidade Federal doParaná, profa. dra. Rosângela Digiovanni, chefe do Departamento deAntropologia e prof. dr. Igor Chmyz, diretor do Centro de Estudos ePesquisas Arqueológicas.

Prof. Dr. José Loureiro Ascenção Fernandes foi instalado na manhã dodia 4 de dezembro de 2003, na Sala “Prof. Dr. Homero Batista deBarros”, situada no 1º andar do Edifício Dom Pedro I. Esse era oespaço das reuniões dos catedráticos da antiga Faculdade de Filoso-fia, Ciências e Letras da Universidade do Paraná; nele realizavam-se,também, os concursos de livre docência e as cerimônias de colação degrau dos vários cursos. Guarda, ainda, os quadros de formaturas tãousados na década de 1950. Entre suas paredes muitas vezes ecoaramas palavras entusiasmadas ou veementes do prof. Loureiro expondoou defendendo seus ideais.

Compuseram a mesa de abertura do Seminário a profa. dra.Maria Tarcisa Silva Bega, Vice-Reitora da Universidade Federal doParaná, o prof. dr. José Borges Neto, Diretor do Setor de CiênciasHumanas, Letras e Artes, a profa. dra. Ciméa Barbato Bevilaqua,Vice-Diretora do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, a profa.dra. Rosângela Digiovanni, Chefe do Departamento de Antropologia e

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O Centenário de Nascimento do Prof. Dr. José Loureiro...

Figura 2. Aspecto parcial da sala “Prof. Dr. Homero Baptista de Barros”,com assistentes e participantes do Seminário, no momento da suaabertura.

Figura 3. Primeira mesa de depoentes. Da direita para esquerda: prof.Rudolf Bruno Lange, prof. dr. João José Bigarella, prof. Oldemar Blasi,prof. dr. pe. Jesus Santiago Moure, bibl. Regina Maria de Campos Rocha eprof. dr. Igor Chmyz.

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Figura 4. Segunda mesa de depoentes. Da direita para esquerda: prof. dr.Arthur Barthelmess, profa. dra. Margarida Davina Andreatta, profa. dra.Zulmara Clara Sauner Posse, profa. dra. Cecília Maria Vieira Helm e profa.dra. Cecília Maria Westphalen.

o prof. dr. Igor Chmyz, Diretor do Centro de Estudos e PesquisasArqueológicas. O cerimonial foi conduzido pela sra. Ana MariaCristofolini, funcionária administrativa do Setor de Ciências Humanas,Letras e Artes.

Os depoimentos e palestras foram apresentados em seguida,continuando no período da tarde e no da manhã do dia 5.

Depuseram os zoólogos prof. dr. pe. Jesus Santiago Moure eprof. Rudolf Bruno Lange, o geólogo prof. dr. João José Bigarella, ahistoriadora profa. dra. Cecília Maria Westphalen, os arqueólogos prof.Oldemar Blasi, profa. dra. Margarida Davina Andreatta, profa. dra.Zulmara Clara Sauner Posse e prof. dr. Igor Chmyz, a antropóloga profa.dra. Cecília Maria Vieira Helm, o economista prof. Constantino Comninose a bibliotecária Maria Regina de Campos Rocha.

As palestras foram proferidas pela museóloga profa. MariaRegina Furtado e pelas antropólogas profa. dra. Márcia Scholz deAndrade Kersten, profa. dra. Carmem Lúcia da Silva e profa. MariaFernanda Campelo Maranhão.

Depoimentos foram, posteriormente, encaminhados pelomuseólogo João Carlos Gomes Chmyz e pelo lingüista prof. dr. AryonDall’Igna Rodrigues.

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O Centenário de Nascimento do Prof. Dr. José Loureiro...

Figura 5. Terceira mesa de depoente e palestrantes. Da direita paraesquerda: profa. Maria Regina Furtado, profa. Maria Fernanda CampeloMaranhão, profa. dra. Márcia Scholz de Andrade Kersten, profa. dra.Carmen Lúcia da Silva e prof. Constantino Comninos.

O indigenista Dival José de Souza, importante personagemdurante os contatos iniciais com os índios Xetá, impossibilitado decomparecer ao evento concedeu, à profa. dra. Cecília Maria Vieira Helm,no início de 2005, uma entrevista para ser incluída nesta publicação.

Além do número especial da revista Arqueologia do CEPA,trazendo Novas contribuições para o estudo do Sambaqui de Matinhos,no Estado do Paraná (v. 1, p. 1-55, 2003), durante o Seminário foramdistribuídos aos presentes o livro de Valério Hoerner Júnior: JoséLoureiro Ascenção Fernandes. O Homem e o Meio (Curitiba: EditoraChampagnat - PUCPR, p. 1-144, 2003), por gentileza do Círculo deEstudos Bandeirantes e uma coletânea de artigos de Altiva PilattiBalhana, em três volumes, intitulada Un mazzolino de fiore (Curitiba:Imprensa Oficial, v. 1, p. 1-422, 2002; v. 2, p. 1-469, 2003; v. 3, p. 1-514, 2003), organizada por Cecília Maria Westphalen.

Na estruturação do Seminário procurou-se encadear ostestemunhos conforme a cronologia dos encontros, ou seja, a partir domomento em que as trajetórias dos depoentes se interligavam coma do prof. Loureiro. Aqueles que durante o evento não puderam ser

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Igor Chmyz

Figura 6. Vista parcial do auditório da sala “Prof. Dr. Homero Baptista deBarros” durante o Seminário.

apresentados sequencialmente, assim foram ordenados nesta edição.Como o volume já se encontrava diagramado em 2004, a entrevistaconcedida pelo indigenista Dival foi incluída no seu final.

O seminário objetivava, principalmente, evidenciar ou relembraro papel desempenhado pelo prof. Loureiro nos campos das ciênciashumanas através da ótica de seus colegas e colaboradores; revelou,porém, facetas das trajetórias dos próprios depoentes. Por se interliga-rem, tornava-se impossível aos depoentes só a ele se referir.Para alguns, desde o início ou final da trajetória do prof. Loureiro, essacaminhada paralela foi curta; para outros, foi mais longa, quase repre-sentando uma vida. Mas todos dela saíram enriquecidos. O semimáriocaracterizou-se, então, como um encontro de trajetórias.

As palestras, por outro lado, proferidas por especialistas quecom o prof. Loureiro não tiveram vivência, fundamentaram-se na suaobra publicada ou arquivada, realizando o seu resgate e a necessáriacontextualização.

Os pronunciamentos foram gravados em fitas VHS e K7. Essesregistros, assim como a documentação fotográfica, encontram-sedepositados nas dependências do CEPA/UFPR.

Os depoimentos gravados foram transcritos e enviados para adevida revisão por seus autores. Os textos publicados são, portanto,

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O Centenário de Nascimento do Prof. Dr. José Loureiro...

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os revisados pelos depoentes.Para a grafia dos nomes tribais expressados nos depoimentos

e artigos, foi respeitada a convenção assinada pelos participantes daPrimeira Reunião Brasileira de Antropologia no Rio de Janeiro, emnovembro de 1953, e publicada na Revista de Antropologia, SãoPaulo, v. 2, n. 2, p. 150-152, em 1954.

A Comissão Organizadora do evento externa seus agradeci-mentos às autoridades da Universidade e dos seus setores deEducação e Ciências Humanas, Letras e Artes, aos funcionários técni-co-administrativos do Departamento de Antropologia e aos pesquisa-dores do CEPA que, com a sua compreensão e colaboração, tornarampossível a sua realização.

Agradecimentos também são feitos ao prof. dr. Carlos AlbertoMartins da Rocha, chefe do Departamento de Comunicação e aocinegrafistra José Roberto Barros (Bertoluthi), do mesmo departamen-to, que se encarregaram da documentação em VHS e, à Roseli SantosCeccon, pesquisadora do CEPA, responsável pela documentaçãofotográfica do Seminário, gravação dos depoimentos em fitas K 7, suatranscrição, digitação e diagramação dos anais.

À pesquisadora Eliane Maria Sganzerla, também do CEPA, e àbibliotecária Maria Regina de Campos Rocha, fica registrado o reco-nhecimento pelas revisões finais dos textos agora publicados.

À Fundação da Universidade Federal do Paraná para oDesenvolvimento da Ciência, da Tecnologia e da Cultura - FUNPAR,através de sua Diretora Superintendente, Profa. Ms. Lúcia ReginaAssumpção Montanhini, deve-se o patrocínio desta edição.

ABSTRACT: This edition publishes the seminary annals, arrangedin celebration by the occasion of José Loureiro AscençãoFernandes centenary birth. He was the anthropologist whofounded and putted up to cultural and scientific institutions andfoundations. Taken place between the 4th and 5th December 2003,the event got together specialists from different areas, such as:biology, geology, linguistic, history, archeology, anthropology,museum duties, librarianship and economy. Also anthropologistswhom researches the same themes worked by LoureiroFernandes were there assembled.

KEY – WORDS: History of Brazilian Anthropology; InstitutionsHistory; Testimony; Contributions.

DISCURSO DE ABERTURA

Maria Tarcisa Silva Bega*

Declaro aberto este Seminário em comemoração do centenáriodo professor José Loureiro Fernandes, nosso ex-professor e antigocompanheiro. Desejo um bom trabalho a todos. Seguindo o protocolo,primeiro abrimos os trabalhos e só agora podemos falar. É isso quevou fazer, após o professor Igor Chmyz fazer um breve relato dabiografia, que é muito mais extensa, a do Loureiro Fernandes.

Eu estava me lembrando de uma feliz coincidência nesteaniversário, o do Centenário do Loureiro Fernandes, quando secomemora o Sesquicentenário de Emancipação Política do Paraná.Nesse momento se realiza em Curitiba um evento chamado Terra,Cultura e Poder, em que o primeiro item da discussão é a discussão daidentidade do Paraná. Um tema que sempre volta, mas que merecetalvez uma pequena reflexão sobre o seu significado. Em uma das falasum jovem pesquisador em tom provocatório, lembrava que o Paranánão tem identidade. Isso quer dizer que há 150 anos nos debatemossobre essa tal identidade. Nessa discussão lembramos do discurso doprofessor Brasil Pinheiro Machado nos anos 30, em que ele diz que oParaná não é, isto é, que o Paraná se define pelo “não ser”. Não temescritores, não tem artistas, não tem escultores, não tem poetas, nãotem isso não tem aquilo, portanto “ele não é”.

Ao ouvir a sua fala, professor Igor, e ouvir o que fez o LoureiroFernandes, talvez nesse momento possamos responder àquelaprovocação dizendo que, o Paraná é, por aquilo que ele conseguiufazer, pelas ações concretas que os paranaenses e os brasileiros aquipresentes conseguiram fazer. Então, nesse sentido, se existe algumaidentidade paranaense, se essa questão é pertinente a ser colocada,se a questão da identidade regional ainda tem sentido ela precisa serdiscutida e refletida nos espaços educacionais.

Temos várias formas de abordar o tema: como propunha o prof.Brasil nos anos 30, ou, de forma mais complexa, através da análisedas redes de interdependência, entre os campos econômico, político e

* Profa. dra. e Vice-Reitora da Universidade Federal do Paraná

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cultural, por exemplo. Por isso, acho que podemos responde-la, nãodizendo o que foi feito, mas mostrando quem e porque se fez nesteEstado. Considero que a presença do prof. Loureiro seja a maior provapara nós, de alguém preocupado em construir um Estado, em construirum campo cultural para o Paraná e, ao construir esse campo culturallocal, irá construí-lo em relação ao nacional.

É bom registrar que em uma das capas da coleção realizadapor Sergio Miceli, História das Ciências Sociais, há uma foto de umadefesa de tese, a do prof. Octávio Ianni, com o Loureiro compondo abanca. Não é por acaso que ele está presente na capa de uma coletâneaque é a vida e a história das Ciências Sociais. Como também não foipor acaso que o prof. Ianni, em 2001, ao receber nesta Universidade otítulo de Doutor Honoris Causa, inicia seu discurso ressaltando o papeldo prof. José Loureiro Fernandes e do prof. Brasil Pinheiro Machadoem sua trajetória de pesquisador. Isso prova que mais que um médicoe antropólogo local ele era um cientista de renome nacional.

Com isso eu quero resgatar uma questão e fazer uma boaprovocação aos nossos colegas da Antropologia, das Ciências Sociais,mas também, aos nossos colegas das Humanidades, para querecuperemos um pouco desta história, não no sentido piegas, mas nosentido de conhecer o papel dos pesquisadores, dos pensadores queconstruíram este Estado e esta Universidade. Afinal, somos o que somosem função desse trabalho.

Portanto, acho não só extremamente importante como papelda nossa universidade o resgate desta memória na história, não nosentido de divinizar o passado, mas para que esse passado nos ilumine,para que possamos vislumbrar o que será o séc XXI. Quem sabe nospermita pensar como estaremos nos 150 anos do Loureiro, noBicentenário do Paraná e que universidade queremos no futuro.

Antes de encerrar, eu gostaria de fazer alguns agradecimentosa algumas pessoas que estão aqui e cumprimentar aos nossosprofessores dos departamentos de Ciências Sociais e Antropologia,principalmente ao esforço do pessoal da Antropologia e do Centro deEstudos e Pesquisas Arqueológicas para realização desta homenagem;aos convidados que se deslocaram para o evento; aos professoresque estarão realizando depoimentos; aos que conviveram com oLoureiro e aqueles mais jovens que continuam estudando, não só aobra do Loureiro Fernandes, mas outros pensadores tão importantespara o Paraná. Gostaria também de agradecer o apoio do Setor deCiências Humanas Letras e Artes, na pessoa do seu diretor, prof. JoséBorges Neto. Por último, um agradecimento especial ao Departamentode Comunicação que, com a presença do seu chefe, está fazendo a

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Maria Tarcisa Silva Bega

gravação, para a posteridade, deste evento. Então, Carlos Rocha, muitoobrigado pela sua presença.

Um bom trabalho a todos, um bom evento, eu já estou curiosapara ler todos os depoimentos. Muito obrigada.

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Discurso de abertura

DEPOIMENTO

Jesus Santiago Moure*

Vou dizer algumas coisas sobre os poucos anos com que euconvivi com o dr. José Loureiro Fernandes. Com ele participei daadministração do Museu Paranaense nas décadas de 30 e 40, épocaem que a instituição foi reestruturada. Foi uma época, também, demuitas atividades de pesquisa. Em 1956 eu fui para os Estados Unidose, com isso eu me separei quase completamente do Museu Paranaensee dos assuntos dele. Passei a me ocupar com a universidade.

Para os Estados Unidos fui como Professor Visitante. NaUniversity of Kansas comecei meus volumes de apontamentos e notassobre abelhas neotropicais. Ao voltar para Curitiba, continuei essecatálogo inicial das abelhas neotropicais até 1975.

Durante o ano e meio que estive na Universidade do Kansasparticipei da primeira tentativa de tirar o subjetivismo das classifica-ções taxonômicas, quando foram lançadas as bases da TaxonomiaNumérica. Posteriormente, desenvolvi programas para cálculo emcomputador para Taxonomia. Meu primeiro e primitivo computador veiodos Estados Unidos, em 1962, doado por intermédio da RockefellerFoundation. Foi um dos primeiros a chegar em nossa universidade.

Recebi convite para ser professor contratado na Universidadeda Califórnia. Recusei-o em atenção ao pedido a Fundação Rockefellerpara que eu voltasse para Curitiba. Pedi, em recompensa, que aRockefeller proporcionasse uma biblioteca para a nossa universidade.Foram doadas, então, várias coleções de revistas americanas eeuropéias, colocando-nos ao lado da Universidade de São Paulo e doMuseu Nacional nos campos da Zoologia e da Entomologia.

O dr. José Loureiro Fernandes foi uma espécie de alma dentroda sociedade paranaense por estimular uma porção de ações extre-mamente importantes. A mais importante, para qual ele contribuiu, foi aUniversidade Federal do Paraná. Ele, o Flávio Suplicy de Lacerda emais alguns outros entusiastas empenharam tudo que foi possível paraque a Universidade do Paraná fosse criada e, realmente, ela passou a

* Professor Titular de Zoologia jubilado pela UFPR. Professor Senior da UFPR.

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existir com a aprovação do presidente Getúlio Vargas. Nós passamosa ser uma universidade e uma universidade no sentido que se dava àsuniversidades no mundo, ou seja, no sentido da universidade completa.

Quando nós nos comparamos com os outros países da AméricaLatina, nós vemos nos outros países grandes universidades com maisde 200, 300, 400 anos. Aqui no Brasil a mais velha é a de São Paulo,de 1937, ou seja, muita gente que está neste Seminário nasceu antesde ser criada a primeira universidade brasileira completa. Nós tínhamosas chamadas faculdades que forneciam os cursos fundamentais para omovimento da sociedade brasileira, ou seja, a Medicina, o Direito e aEngenharia. Com a medicina tínhamos a possibilidade de cura, com odireito nós tínhamos a possibilidade de organização e com a engenha-ria nós tínhamos a possibilidade de fazer casas, estradas, prédios,enfim, as três fundamentais necessidades humanas já estavam satis-feitas nas universidades antigas. Eu nasci um pouco antes donascimento da Universidade Federal do Paraná ou que ela nascessecomo universidade em 1912; eu sou de novembro de 1912. De formaque, com o início desta universidade, passamos a ter uma possibilidadede desenvolvimento em outras áreas humanas extremamente impor-tantes que tinham sido deixadas de lado nas universidades brasileirasantigas.

Eu não sei como está a organização das universidades agora,embora eu já tenha lecionado um pouco em algumas delas aqui naAmérica do Sul e na América Central, principalmente do México, mas,no fim de conta, embora eles tenham universidades fantásticas como,por exemplo, a Universidade do México, com mais de 350 mil estudan-tes - vocês podem imaginar uma coisa dessas? Entretanto, é umauniversidade com 350 mil estudantes. O cargo de Reitor é quase maisimportante que o de Presidente da República, porque ele leva, porassim dizer, a nata da sociedade mexicana em suas mãos para o seudesenvolvimento, para o seu progresso. Evidentemente que, tendo umauniversidade só, mais concentrada, é muito mais fácil ter todos osrecursos do que nós temos em universidades esparsas.

Eu trabalhei muito com alguns ministros da Educação, noprincípio, quando começaram a surgir as universidades brasileiras. Eume lembro que, em uma das visitas que nós fizemos em uma universi-dade do nordeste, alguns dos professores não sabiam qual era o títuloda matéria que eles ensinavam. Vocês podem imaginar uma coisadessas? Então, o ministro falou: - “Olha, aqui tem um padre, faça aconfissão”. Eles diziam que a universidade não seria implantada seeles não colaborassem. Por isso, um decidiu ensinar Botânica, umassunto que não lhe era familiar, porque ele era um médico. Mas era o

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Jesus Santiago Moure

jeito de poder sair a universidade. Eles tinham reunido todas as pessoasde algum nível para poder tocá-la para frente.

Aqui o Loureiro fez muito diferente, principalmente junto aoCírculo de Estudos Bandeirantes, onde o meu professor padre JesusBallarin dava aulas de Filosofia. O padre Jesus Ballarin Carrera eraespanhol e deu muitas aulas de Filosofia aqui no Círculo de EstudosBandeirantes, lá pelos anos de 1933, 34, 35 etc... Tivemos algunsoutros padres que deram aulas de Grego, aulas de Hebraico, ou seja,havia muito interesse naquele tempo nesse desenvolvimento. Então,surgiu a necessidade de que a universidade se completasse para quepudesse proporcionar ao povo paranaense as possibilidades que umagrande universidade oferece. É verdade que ainda nos faltam algumascoisas muito importantes. Em São Paulo, por exemplo, com um dosmeus ex-alunos, dr. Worn Estevam Kem, fundamos a Fapesp. A Fapespé uma instituição essencial, fundamental atualmente para o desenvol-vimento da pesquisa e do ensino dentro do Estado de São Paulo. Éuma sociedade que dispõe de muitíssimo mais dinheiro que o Conse-lho Nacional de Pesquisas e que todas as outras fundações lá da partecentral do Brasil e, atende apenas ao Estado de São Paulo. Por isso,eles dispõem de verbas que nós nem podemos imaginar. Eu vi ontem,que os projetos aprovados têm 3 milhões de reais e mais um milhão dedólares. Ora, com uma verba dessa, a gente pode fazer alguma coisa,coisa que aqui nós ainda não chegamos a ter; a nossa pequenaFundação Araucária não pode, evidentemente, comparar-se com isso.Outros estados também estão sofrendo com essa carência. Vamosficando um pouco para trás porque não há uma compreensão total ecompleta da necessidade da ciência no meio normal da vida humanae, sem ciência, nós não vamos para frente.

Agora alguns fatos daqueles tempos no Museu Paranaense,em que nós começamos bem, mas depois não conseguimos continuar.O dr. José Loureiro Fernandes e eu conseguimos a publicação dosArquivos do Museu Paranaense. Os Arquivos do Museu Paranaense,da forma como foram concebidos, ainda são uma estaca dentro da terrado Paraná, representando um período de tempo em que realmente sededicou a capacidade paranaense e a capacidade de algunsestrangeiros que aqui vieram como, por exemplo, Reinhard Maack, quepublicou um volume inteiro sobre os arenitos de Vila Velha.

Lamento que isso tenha se perdido. Foi muito bem no princí-pio, mas não continuou. O Ralph Hertel, que trabalhou durante muitotempo na publicação de uma revista, a revista Dusênia, em homena-gem ao grande botânico Per Karl Hjalmar Dusén, que passou aqui peloParaná e coletou uma porção de material e levou depois para a

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Depoimento

Suécia. A Dusênia morreu, os Arquivos do Museu Paranaense morre-ram. Minha gente, vocês aqui são responsáveis pela ressurreiçãodessas revistas, dessas possibilidades de publicação e aparecimentono mundo. Nós aparecemos de muitas maneiras neste mundo. Mas,uma das maneiras mais nobres de aparecer é precisamente através daciência. Os nossos pesquisadores, o João José Bigarella, por exem-plo, têm que publicar muita coisa fora, em outras revistas, porque nãotemos as nossas. A universidade ainda não consegue manter aspróprias revistas. Aliás, a universidade passa até necessidades sempoder, como aconteceu há poucos dias, pagar a luz que estavagastando. Ora, isso é uma coisa incompreensível; não se pode imaginaruma coisa dessas.

Eu, que percorri quase todos os principais museus da Europa,sei como esses assuntos são tratados por lá. A gente vê que eles têminteresse, inclusive, pelas nossas coisas, não só pelas deles. Nós, sepudéssemos cuidar das nossas coisas já teríamos feito um trabalhoimenso. Então, por isso que eu digo, é necessário dar condições eprestigiar a universidade no nível que ela merece, como responsávelpelo aparecimento desta pequena humanidade que nós temos aqui den-tro do Estado. Nós temos que aparecer, não podemos ficar ocultos,temos uma missão a desempenhar perante a população simples,perante a população letrada, perante a população formada; nãopodemos ficar para trás como universidade. A idéia do Loureiro, nafundação da universidade, era essa de dar mais uma possibilidade aopovo paranaense para que ele começasse a aparecer no Brasil comotal. Nós já começamos como um pedaço de São Paulo; vamos ver seagora não ficamos para trás de São Paulo.

Como o tempo está extremamente avançado, não vou meestender sobre aspectos do Loureiro, quando ele nos ensinou. Comele passei a viver uma vida um pouco mais externa ao convento, porquenós, os padres do Coração de Maria, uma congregação espanhola,temos uma regra bastante dura, que não nos permite sair de casa. OLoureiro, entretanto, possibilitou que vários dos nossos padres fossemprofessores da universidade, desempenhando cargos externos àcongregação. Isto representou uma transformação ao longo de todosesses anos. Desde 1950, quando se formou a Universidade Federal doParaná, até agora, muitas coisas foram transformadas. A UniversidadeFederal do Paraná tem influxo até dentro do convento. É uma realida-de quase inimaginável, mas uma realidade para algumas pessoas doParaná. Eu não sou nascido no Paraná, mas sou do Paraná em vida;eu estou vivendo aqui há quase 80 anos de forma que me consideroparanaense. Comecei em São Paulo, é verdade, mas aqui estou

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Jesus Santiago Moure

terminando a minha vida, terminando os meus trabalhos; é o que euposso fazer para dar um nome ao estado em que eu vivo.

Resta dizer que o Loureiro me iniciou; pouco depois tive queseparar-me para ir para os Estados Unidos. Na minha volta, nós nãotivemos já tanto contato, porém eu fui sempre muito carinhoso comtudo aquilo que o Loureiro fazia, porque o Loureiro levava a alma, nãosó a dele, mas as almas dos outros a quererem ser um pouco mais doque simplesmente cidadãos paranaenses.

Muito obrigado.

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Depoimento

DEPOIMENTO

João José Bigarella*

Neste centenário memorável do prof. dr. José LoureiroFernandes, no qual são apresentadas numerosas facetas de sua vidaativa como professor universitário, desejo referir algumas passagensrelativas à evolução inicial de minha carreira como pesquisador. Semdúvida, o prof. Loureiro foi um professor e pesquisador dedicado epioneiro nas áreas de Etnografia e de Arqueologia.

Um professor de extraordinário alcance e de grande envol-vimento com as matérias que lecionava. Segundo comentário deminha esposa Iris Erica, os alunos apreciavam suas aulas e, mesmoterminado o período letivo, procuravam-no, após os exames de praxe,pedindo que lhes ministrasse mais algumas aulas complementares, aoque o prof. Loureiro atendia entre surpreso e feliz.

Nessa época foi um dos primeiros, senão o único professorque levava seus alunos bem como outras pessoas interessadas deoutras áreas da faculdade em excursões de campo, propiciando atodos um contato importantíssimo que incentivava o aprendizado práticoe o conhecimento in loco dos assuntos abordados. Dessa forma,enriquecia com seus conhecimentos os seus alunos que muito admira-vam suas aulas, ministrando um ensino realmente proveitoso. Não setratava de um mero “papaguear” repetitivo do que os livrosapresentavam, mas uma obrigação que estimulava o aluno a interessar-se e trabalhar, mesmo entre tropeços de erros e acertos, dando-lhesuma outra dimensão da disciplina abordada.

Em 1944, levou a Caiobá, na faixa litorânea do Estado, umgrupo de estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras doParaná, enfrentando todas as dificuldades advindas da participaçãodo Brasil na 2ª Grande Guerra.

Eram estudantes de etnografia e paleoetnografia do último anodo Curso de Geografia e História. Nessa época, a Praia de Caiobá,uma das mais belas do litoral, era raramente visitada e tinha poucas

* Professor Catedrático de Minerologia e Geologia Econômica aposentado pela UFPR.Professor Visitante na UFSC. Membro da Academia Brasileira de Ciências.

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casas de “banhistas”. Havia várias casas de caboclos, remanescentesda miscigenação de portugueses e indígenas, portadores de tradiçõesfolclóricas, hábitos alimentares, de pesca e do cultivo da terra (plantioe colheita). Utilizavam diversos utensílios domésticos e de artesanato.Alguns possuíam pequenas indústrias de fabricação de farinha demandioca, rapadura e açúcar mascavo.

Nesse cenário, até certo ponto idílico, os estudantes conhece-ram a vida rústica e os problemas de uma população que vivia distantedas conveniências dos centros urbanos.

Para o referido trabalho de campo com os alunos, o prof.Loureiro organizava pequenas equipes que visitavam e pesquisavamdiversos temas em áreas às vezes distantes, localizadas mais para ointerior da planície costeira. Solicitava aos alunos que estudassem temasde interesse geográfico, etnográfico ou histórico-social. Embora não fossealuno do prof. Loureiro, participei de algumas excursões como auxiliardo Museu Paranaense na área de Mineralogia e Geologia (Fig. 1).**

Figura 1. Grupo de pesquisadores do Museu Paranaense e alunos docurso de Geografia e História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letrasdo Paraná.

** O depoimento do prof. Bigarella foi acompanhado por projeções de diapositivos. Umaparte das imagens do acervo do autor, foi incluída no presente texto (N. do Ed.).

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Devo ao prof. Loureiro muito de minha formação, ao participarde algumas excursões seja da Faculdade de Filosofia, Ciências eLetras ou do Museu Paranaense.

Quando nasci, o professor tinha 19 anos; na década de 1930ele foi médico de nossa família. No começo da década de 1940incentivou-me a cursar a Faculdade de Filosofia onde me formei emCiências Químicas e, em 1944, a ingressar no Museu Paranaense, comoassistente voluntário, nomeado pelo interventor Manoel Ribas.

Na época, era suficiente o curso ginasial para ingressar naFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Cursei o ginásio no InstitutoSanta Maria, dos Irmãos Maristas. Constituiu este um ótimo aprendiza-do que favorecia sobremodo o desenvolver do curso superior.

Despertou em muitos de nós um interesse especial pelapesquisa, seja nas áreas de Geografia, Física ou Química. Sabendode meu interesse pela pesquisa, o prof. Loureiro contribuiu facilitando-me o acesso aos pesquisadores e professores visitantes que participa-vam das atividades do Museu Paranaense. Durante uma das excursõesda Faculdade de Filosofia e Museu Paranaense, em junho de 1944,conheci minha esposa Iris Erica Koehler Assenburg, sendo que oprofessor Loureiro veio a ser nosso padrinho de casamento.

Nas excursões e aulas de campo, vivenciamos uma face dapersonalidade do prof. Loureiro sempre prestimoso, atendendo a todoscom boa vontade e presteza sorridente que o caracterizavam. A disci-plina que lecionava deixou de ser meramente teórica, envolvendo seusalunos numa atividade prática muito importante e, permitindo o desenvol-vimento de uma carreira profissional com abertura de amplos horizontes.

Numa das excursões do Museu Paranaense com o dr. Loureiro,saímos de Guaratuba, pela praia em direção à barra do Saí, na divisacom Santa Catarina.

Na Figura 2 pode-se notar a sua maneira descontraída nocampo. No seu modo de ser estimulou de forma muito especial a nossacarreira científica. Na metade da tarde, o dr. loureiro retornou e eucontinuei subindo o rio Saí numa canoa monoxila, a fim de realizar umlevantamento expedito de alguns cursos de água, além de mapear asdiversas unidades sedimentares da planície costeira, bem comolocalizar os sambaquis existentes na área.

A Figura 3 ilustra outra excursão do Museu Paranaense, emjunho de 1944, da qual também participavam professores daUniversidade de São Paulo. O prof. pe. Jesus Moure, diretor da Seçãode Zoologia trazia, entre outros, os professores Ernesto Marcus e PauloSawaya; o prof. Carlos Stellfeld, diretor da Seção de Botânica, convi-dava os professores Felix Rawitcher e Aylton Joly.

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Depoimento

Figura 3. Integrantes de pesquisa do Museu Paranaense no litoral doParaná, em 1944.

Figura 2. Professor Loureiro na Praia do Saí, divisa com Santa Catarina, em 1945.

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Nesse programa de cooperação científica participavam profes-sores de São Paulo e de outros centros que aqui pesquisavam, propor-cionando-nos a oportunidade de acompanhá-los. Com eles e, o trabalhointegrado, surgiram diretrizes e uma nova visão do que seria umconceito inovador de universidade no Brasil.

Adotamos essa idéia no Instituto de Geologia da Universidadedo Paraná, nas décadas de 50, 60 e 70, trazendo professores epesquisadores visitantes tanto do Brasil como do exterior. Íamos,igualmente, visitar instituições em vários países estabelecendo umcontato com o mundo, muito proveitoso no andamento de nossaspesquisas.

A função da universidade não seria aquela de apenas repetir amatéria impressa no compêndios, mas, sobretudo, de transmitirexperiência através dos esforços e resultados do trabalho de pesquisado professor. Com essa filosofia, haveria um desenvolvimento profícuodo país e a melhor qualificação do professor, com elevados benefíciosa todos. Infelizmente, no final da década de 60 e começo da de 70,houve uma espécie de desmoronamento da estrutura universitária, querelegou a segundo plano a parte de pesquisa, apregoando uma“democratização” utópica do ensino, com rebaixamento do níveldidático.

Concordamos com a necessidade de prover um maior acessoàs carreiras universitárias, porém de forma objetiva, sem abrir mão dapesquisa acadêmica, fornecedora do conhecimento (know how) impres-cindível ao desenvolvimento. Torna-se, portanto, necessária a amplia-ção de universidades técnicas ou de cursos técnicos profissionalizantes.Este não é o papel da universidade. Seu principal papel é o acadêmi-co, a busca incessante do conhecimento, que fornece paralelamentediretrizes para a parte pragmática. O professor deve ter liberdade erecursos de tempo e material para fazer pesquisa, pela pesquisa, peloconhecimento. E foi mais ou menos essa a luta do prof. Loureiro napreparação e encaminhamento de seus alunos. Alguns setoresuniversitários sobreviveram, enquanto outros ficaram na dependênciado exterior, tornando-se decadentes.

A Figura 4 ilustra uma excursão do Museu Paranaense à VilaVelha, em Ponta Grossa. Da esquerda para a direita, aparecemFrederico Waldemar Lange (o Lange de Ponta Grossa, diretor da Seçãode Geologia e Paleontologia), o motorista Sebastião, dr. Loureiro,pe. Moure, Ralph João Jorge Hertel e Rudolf Bruno Lange.

Na foto, vê-se o dr. Loureiro feliz, como sempre alegre erealizado com o que fazia, como aliás todo professor deve se sentirnuma carreira bem sucedida.

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Figura 4. Grupo de pesquisadores do Museu Paranaense em Vila Velha,Ponta Grossa, em 1945.

Figura 5. Expedição do Museu Paranaense ao rio Paraná, em fevereiro de1948.

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Na Figura 5 ilustramos uma expedição do Museu Paranaenseao rio Paraná, realizada em janeiro e fevereiro de 1948 e incentivadapelo dr. Loureiro. Nessa época a estrada para Foz do Iguaçu era extre-mamente precária. Para Guaíra não havia estrada, a viagem fazia-sepor barco a partir de Foz do Iguaçu ou por São Paulo, descendo-se orio Paraná. De Foz do Iguaçu a Guaíra seguimos num pequeno aviãodo Correio Aéreo Nacional. Nessa expedição éramos quatro: dr. VladimírKozák e sua irmã Carla, encarregados da documentação fotográfica, odr. Nicolau Carlos Gofferjé, responsável pela coleta de material zooló-gico e eu, na parte geológica referente ao Arenito Caiuá e aossedimentos dos terraços do rio Paraná. Permanecemos nas selvasdurante 40 dias. Encontravámos alguns indígenas (Caiuá e Guarani),paraguaios e brasileiros. Foi uma viagem de muitas aventuras,dificuldades e maravilhoso contato com a natureza.

Anos mais tarde, acompanhei o dr. Loureiro por ocasião de umahomenagem ao fundador da Colônia Tereza, no rio Ivaí (Fig. 6).

Figura 6. Homenagem prestada ao dr. João Mauricio Faivre em TerezaCristina, Paraná.

Por tudo o que expusemos, fica evidente que o prof. Loureirofoi, entre outros, um dos grandes pioneiros do desenvolvimento das

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ciências no Paraná, no Museu Paranaense e na Universidade. Suadedicação e interesse tiveram extraordinário alcance.

No Museu Paranaense, ao lado do pe. Moure, Stelfelld, MartinsFranco, Lange e Maack, transformou a entidade numa casa de pesqui-sa, onde iniciei minha carreira científica altamente estimulada pelapresença de cientistas visitantes.

Referindo-nos agora ao estudo dos sambaquis cabe-nosressaltar a preocupação pioneira do professor para com a preservaçãodos mesmos. Contribuiu para obtenção de uma legislação adequadapara interromper a sua destruição, já que no Paraná eram utilizadospara pavimentação das estradas pelo Departamento de Estradas deRodagem; anteriormente, ainda, esses ricos amontoados de conchasserviam para produção de cal, com grande perda do material arqueoló-gico neles existentes (Figs. 7 e 8).

Figura 7. Sambaqui do rio da Praia em Guaratuba, Paraná, em 1948.

Quando Secretário de Estado, o professor Loureiro propôs acriação do Departamento de Cultura, convidando o prof. FernandoCorrêa de Azevedo para dirigí-lo. Nessa ocasião assumi a Divisãodo Patrimônio Artístico, Histórico e Cultural do Paraná, como primei-ro ocupante do cargo. A minha tarefa principal foi o cadastramento dos

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Figura 8. O prof. Loureiro em suas pesquisas no Sambaqui de Matinhos,no litoral do Paraná.

sambaquis no Paraná, localizando-os em mapas por nós levantados jáque não havia referências cartográficas, e definindo seus aspectospaleográficos (Figs. 9, 10, 11 e 12).

Figura 9. Instalações para fabricação de cal de conchas de sambaquis.

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Figura 10. Localização, cartografia e cadastramento de sítios arqueológi-cos no litoral do Paraná.

Figura 11. Localização dos sambaquis na paisagem.

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Figura 12. Destruição de sambaquis nas décadas de 1930 e 40.

Nessa ocasião, iniciamos também o cadastramento dos bensde interesse cultural, artístico e paleoetnográfico visando a preserva-ção do patrimônio. Embora nossa participação na Divisão do Patrimôniofosse de curta duração, devido a vicissitudes políticas, continuei ocadastramento dos sambaquis no Instituto de Biologia e PesquisasTecnológicas (IBPT) durante muitos anos.

Demos continuidade ao trabalho de localização, mapeamentoe levantamento geológico regional, separando as diversas unidadesformadas no pleistoceno e holoceno. Este estudo possibilitou analisaras várias etapas da evolução da paisagem, isto é, de sua paleogeo-grafia. Nesse cenário, foi possível reconhecer os vários estágios dodesenvolvimento paleoambiental da área ocupada pelo homempré-histórico na região litorânea.

O trabalho de pesquisa revelou que os sambaquis tinham umadistribuição geográfica muito característica ocupando determinadosambientes. Havia, na época, duas hipóteses contraditórias sobre suaorigem. Numa, o sambaqui era considerado produto do dilúvio,responsável pelo redemoinho das águas que aglomeravam as conchasem montes. Seriam produtos naturais em nada relacionados à atividadehumana? Com o aprimoramento das pesquisas arqueológicas e suas

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óbvias evidências a hipótese natural foi completamente abandonada.Assim como destacamos o dr. Loureiro como um dos pioneiros

no estudo dos sambaquis no Paraná, não podemos deixar de mencio-nar Guilherme Tiburtius que acompanhou os desmontes de numerosossambaquis pelo então Departamento de Estradas de Rodagem doParaná. Durante anos, pacientemente recolhia as peças de interessearqueológico jogadas nas estradas do litoral paranaense durante arecuperação do recapeamento. Como colecionador infatigável, foiresponsável pelo salvamento de cerca de 6.000 peças espalhadas porocasião da pavimentação das estradas, ou em fornos de produção decal. Este acervo faz parte do Museu do Sambaqui de Joinville.

Lamentavelmente, não houve um entendimento entre o dr.Loureiro e Tiburtius, o que teria sido altamente benéfico para ambos, jáque desempenharam um papel importante na fase pioneira daspesquisas arqueológicas no Paraná.

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Rudolf Bruno Lange*

Em primeiro lugar eu quero reclamar, o que é característico daminha pessoa, o atraso do começo da cerimônia. Porque, dizem que oatraso é coisa de brasileiro, mas brasileiro tem que acabar se corrigin-do através do tempo e, se ninguém reclama, as coisas continuamsempre da mesma forma.**

Então, eu tenho que falar sobre o dr. Loureiro. O dr. Loureiroeu conheci em 1938, porque eu colecionava insetos e um companheiromeu descobriu que no Museu Paranaense havia uma coleção de insetos.Por isso, nós íamos lá; era o Heitor Rodrigues, o irmão do já citadoAryon Dall’Igna Rodrigues. Lá acabamos sendo apresentados ao dr.Loureiro, que nos facilitou a freqüência ao Museu etc... E de lá, inicia-se o meu relacionamento com o dr. Loureiro. Naquela ocasião o Museutinha sido reestruturado. Os componentes eram poucos; eram o padreJesus Moure, Antonio Martins Franco, Arthur Martins Franco, Francis-co de Assis Fonseca Filho e Carlos Stellfeld. Efetivamente, existia aSeção de Zoologia, Seção de História, Seção de Botânica e a Seçãode Geologia, Mineralogia e Paleontologia e, o dr. Loureiro, na Seçãode Antropologia e Etnografia.

O tempo foi passando e eu, no convívio com o dr. Loureiro,acabei como voluntário no Museu; depois, eu fui contratado como auxi-liar da Seção de Zoologia e depois eu cheguei a assistente. Mas o dr.Loureiro, dentro do Museu, tive a ocasião de observá-lo e ver o seucomportamento. O Museu realmente funcionou no tempo do dr. Lourei-ro, porque ele tinha a possibilidade e o acesso que depois desapare-ceu. Ele precisava de dinheiro, ele telefonava para o Ribas. O Ribasera o interventor Manoel Ribas. Ligava para o Manoel Ribas: - “Ô Ribas,o dinheiro do Museu vai sair ou não?” Então ele conseguia o dinhei-ro. Depois do Ribas, a mesma coisa acontecia com o governador Moysés

* Professor Titular de Zoologia e Ecologia jubilado pela PUCPR. Professor de Ciênciasjubilado pelo Colégio Estadual do Paraná.** O protesto do depoente foi com relação à demora havida na instalação da mesa deabertura do Seminário (N. do Ed.).

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Lupion, ele telefonava e dizia: - “Ô Moysés, e a verba aqui do Mu-seu? Nós estamos a zero.” Dia seguinte ou dois dias depois, o di-nheiro estava à disposição. Eram todos eles correligionários de umpartido que, - não sei ainda se existe ou não porque eu sou alheio àpolítica, - era chamado naquela época de PSD (Partido Social Demo-crático). Por isso ele tinha então essa facilidade em conseguir. O Mu-seu continuou sob a direção do dr. Loureiro, e se tornou mais diversifi-cado. O dr. Loureiro convidou para o Museu companheiros dele já an-tigos. O dr. Loureiro foi um dos fundadores ou talvez o fundador doCírculo de Estudos Bandeirantes, que na época congregava toda aelite intelectual do Paraná. Era o Bento Munhoz da Rocha, o padreJesus Ballarin Carrera, o Benedito Nicolau dos Santos, o Liguarú EspiritoSanto, o Othon Mader. Uma relação muito grande que eu não sei decor. Ainda hoje eu li um livro que ganhei; foi dado ao Loureiro no dia 5de maio de 1937. É sobre literatura portuguesa e foi dedicado a ele portodos esses elementos do Círculo de Estudos Bandeirantes.

Aí, depois disso, o dr. Loureiro convidou para integrar tambémo Museu Paranaense outras pessoas, como o Rosário Farani MansurGuérios e o Frederico Lange; havia no Museu dois Langes: o FredericoValdemar Lange e eu. Um era o Lange de Ponta Grossa, porque elemorava em Ponta Grossa e, o outro, Lange de Curitiba. Mais tarde,ainda, foi trabalhar no Museu o Lange de Morretes; então, eram trêsLange no Museu.

O Farani Mansur Guérios, entrou para a lingüística, o Langepara a paleontologia e o Azambuja Germano para a documentação fo-tográfica, que depois não continuou. Para o seu lugar foi convidadopelo dr. Loureiro o Vladimír Kozák.

Nesse período, eu participei diversas vezes com o dr. Loureironas excursões para o Sambaqui de Matinhos. O dr. Loureiro no come-ço escavava sem aquela metodologia que eu acredito que usamatualmente, de camadas e tal. Ele fazia meio assim, cavoucando; as-sim, meio “seja o que Deus quiser”. Não sei do mais, por fim, porque eunão era tão solicitado. Mas ele conseguia bastante material.

Com relação ao Sambaqui de Matinhos, o dr. Loureiro teve umoutro problema; foi um desentendimento com um cidadão aqui deCuritiba, o Guilherme Tiburtius. Este mantinha, com um irmão, umaindústria de artefatos de madeira. Encerrada essa atividade, o Guilher-me passou a colecionar material antropológico, inclusive do Sambaquide Matinhos. Acontece que o dr. Loureiro escavava o sambaqui nosábado e no domingo. Ele ia segunda, terça, quarta, quinta e sextapara o mesmo lugar. Em conseqüência, havia choque. O dr. Loureirotrabalhava com técnica, não tão técnica como disse há pouco, mas

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Rudolf Bruno Lange

com preocupação científica. O outro, como se diz na gíria, a “miguelão”e comprava peças de operários: - “Tá aqui cincão por esse machado;leva doizão por essa flecha”.

Outro que o dr. Loureiro levou para o Museu foi o Kozák, paraa documentação fotográfica, quando saiu Azambuja Germano, que nun-ca se interessou pelo assunto; ele entrou para o Museu justamente naépoca em que tinha acabado aqui em Curitiba o serviço de bondes. OKozák era tcheko, naturalizado americano, e era responsável pelosbondes de Curitiba. Era tão estimado na empresa, que disseram queos bondes foram vendidos por um real com a condição que levassem oKozák junto.

O Kozák começou a filmar junto com o dr. Loureiro ou a pedidodo dr. Loureiro, primeiro no Museu e depois na Universidade. Aí, ele foifilmar os Xetá; ele filmou, a pedido do dr. Loureiro, uma confecção queeu assisti, de um furador de lábio para a colocação de tembetá. Cortouum galho verde de peroba; raspou e apontou a vareta com lasca depedra. Depois de lixar a peça, usando folha de embaúba, lubrificandocom saliva, sapecou-a no fogo para que ficasse dura. Pouco depois oíndio fez uma lâmina de machado em pedra a pedido do Loureiro. OKozák quis ficar com as peças, porque tinha filmado, porque não sei oquê. Surgiu um bate-boca, o Loureiro manteve-se firme e o material foipara a Universidade.

Mas com isso, o Loureiro perdeu a estima do Kozák e criou uminimigo desagradável. Eu, por exemplo, encontrava o Kozák comfreqüência quando ia ver minha caixa postal, e sempre tinha que ouviros seus comentários raivosos. Como eu defendia o Loureiro, ele ficavatenso comigo alegando que eu não sabia dos detalhes. Eu tratava deme afastar, justamente por causa desse comportamento do Kozák.

O dr. Loureiro também participou, e de maneira fundamental,na organização da Universidade do Paraná, porque a universidade exis-tia como cursos; tinha na época Curso de Engenharia, de Medicina, deDireito; depois foi criado o Curso de Química, o de Veterinária e o deAgronomia. E, ainda à parte, foi criada a Faculdade de Filosofia Ciên-cias e Letras. Ele conseguiu reunir tudo isso.

Havia um plano de união do Museu Paranaense com a Facul-dade de Filosofia. Foi feito um projeto de edificar o Museu junto com aFaculdade. O local seria onde atualmente se encontra o Teatro Guaíra.Ali foi implantada uma “pedra fundamental”, com toda a solenidadeque o caso exigia.

Ainda, quanto à Universidade do Paraná, o Loureiro me falouque havia sugerido ao reitor Flávio Suplicy de Lacerda um CampusUniversitário onde estava sendo construído o Centro Politécnico. A área

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circundante era erma e os terrenos não muito valorizados. Este disse-lhe que ali só queria o Politécnico.

Mas não foi só a Universidade do Paraná que o dr. Loureiroengrandeceu; também a Universidade Católica. Naquele tempo nãohavia Universidade Católica; ela foi criada com a reunião de uma sériede escolas ou faculdades isoladas. A de Medicina ficava com o bispa-do e uma sociedade anônima secreta; a Faculdade de Teologia, estavaa cargo dos claretianos e a de Engenharia, com os jesuítas. A de Admi-nistração, etc., com os franciscanos. Os franciscanos, quando se pen-sava em reunir tudo, não concordaram; os outros abriram mão e osmaristas assumiram tudo e a Universidade Católica se constituiu. Mas,o dr. Loureiro foi o baluarte, junto com Mário de Abreu e outros médicosna época, para a criação do Curso de Medicina. Ele foi justamentequem conseguiu fazer o seu andamento.

Então, nós vemos o dr. Loureiro envolto com o Círculo de Estu-dos Bandeirantes, o Instituto Histórico, Geográfico e EtnográficoParanaense, a Universidade do Paraná, Museu Paranaense e a Uni-versidade Católica, só pra dizer algumas instituições porque outras eunem conheço. Era um homem que conseguia as coisas geralmente portelefone. O Museu não tinha condução, então ele telefonava para oMacedo; eu não lembro o primeiro nome do Macedo, que era secretá-rio de Viação e Obras Públicas do Estado: - “Escuta, você não mearranja um carro para amanhã?”. Amanhã era sábado; então, o ho-mem arranjava o carro no dia seguinte. No sábado, estava lá o carro,frequentemente com o mesmo motorista. Ele já conhecia a gente e agente o conhecia. Depois, o Museu comprou uma caminhonete. Nesseínterim, o Lange tinha aprendido a dirigir e passou a ser o motorista dacaminhonete. Todo sábado e domingo o caminho não era da roça, erao da praia. Lá, além de fazer o trabalho no sambaqui, o dr. Loureirolevava um saco desses de farinha de trigo, de 60 quilos, mas não leva-va farinha, nem era pra trazer farinha. Ele o levava cheio de medica-mentos. Chegava lá, avisava na praia para alguns elementos; tinha umque era o marido da professora e chamava-se Gabriel, se não me falhaa memória: - “Ói! avisa o pessoal que estou aqui”. E o pessoal vinha- “Dr. dói aqui, dói ali”. Ele examinava e fornecia o medicamento. O dr.Loureiro era assim, sistematicamente.

Então, o que eu tinha a dizer sobre o professor Loureiro eraisso. Alguém querendo fazer uma pergunta, aproveite agora ou silen-cie para sempre.

PROF. OLDEMAR BLASI: Eu queria dizer que talvez o senhortenha sido um pouco rigoroso com relação ao Kozák.

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Rudolf Bruno Lange

PROF. LANGE: Ah! Eu sei, ele é o defensor absoluto do Kozák.

PROF. BLASI: Acontece que a personalidade de LoureiroFernandes era A e a personalidade do Vladimír Kozák era B; os doiseram pessoas de boa cabeça, de bons pensamentos, de grandeatividade e individualistas. É claro que ele sustentava seu ponto devista e o Kozák tinha a sua maneira de ver também; então achava queestava sempre sofrendo em relação a força que o Loureiro exercia noquadro das atividades que ele participava, de maneira que eu achoque não se deve ser tão rigoroso com o Kozák assim.

PROF. LANGE: Eu só disse o que eu vi, porque no fim de con-ta, nesse ponto eu concordo com o Loureiro, uma vez que ele foi porconta da Universidade, com filmes da Universidade, e ele dizer que osobjetos eram dele? Ah! Brincadeira!

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Oldemar Blasi*

Inicialmente, quero agradecer o convite que os organizadoresdeste Evento fizeram-me, para dizer algumas coisas, que a minhamemória guardou, referentes ao período no qual tive relacionamentomais acentuado com o professor José Loureiro Fernandes.

Cursava eu, no final dos anos quarenta, no século passado,Geografia e História, na então Faculdade de Filosofia, Ciências eLetras, na época dirigida ainda pelos Irmãos Maristas, e que ficavasituada na esquina da rua 15 de Novembro com a rua Tibagi. Entre asdisciplinas do curso, estavam duas que me eram de grande agrado:Antropologia e Etnologia e Etnografia do Brasil, assim chamadasnaquele tempo. No primeiro ano do curso, não tive aulas com LoureiroFernandes, pois achava-se em viagem pela Europa. Mas, no anoseguinte as aulas foram por ele administradas. E, essas aulas foramproferidas de forma tal que o meu interesse pelas mencionadas disci-plinas cresceu consideravelmente. Tanto que levaram-me a aprofundar-me nos conhecimentos tanto da antropologia como da arqueologia.

Loureiro Fernandes era pessoa de estatura mediana, calvo,agitado e trajando, quase sempre, roupa escura. Era uma figura queimpressionava, pois ao lado dessas caracteristicas, aliava-se umaextraordinária capacidade de comunicação e profunda erudição.Veja-se, como exemplo, os diferentes campos em que atuou: medicina,antropologia, folclore, arqueologia e preservação do nosso patrimôniohistórico.

Durante as aulas ele observou meu grande interesse, nãosomente pelas suas preleções, mas também pela minha vontade ematuar como pesquisador, daí ter me convidado para seu assistente, oque de fato ocorreu. Como tal fiquei cinco anos. Contudo, não ministreiaulas na Faculdade, mas sim, auxiliei-o em algumas pesquisas decampo e laboratório. Coincidiu que, na época, o professor João JoséBigarella havia deixado o cargo de Diretor do Patrimônio Histórico,

* Professor - Pesquisador em Ciências Humanas com ênfase em Arqueologia, sobre aqual disciplina têm inúmeros trabalhos publicados.

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unidade do Departamento de Cultura da Secretaria de Estado daEducação e Cultura, na ocasião dirigida pelo professor Fernando Corrêade Azevedo. Loureiro então indicou-me para essa função, o que foiaceito pela Secretaria do órgão estatal exercido na época por Newtonda Silva Carneiro. Com a minha indicação Loureiro visava ter alguémcom certo conhecimento de arqueologia e história, para cuidar dossítios arqueológicos e dos monumentos significativos do nosso passa-do, ambos ameaçados, seriamente, de destruição. Tanto os montesconchiferos, denominados sambaquis, como os prédios históricos civise religiosos, situados na orla litorânea, mas principalmente ossambaquis, eram, implacavelmente, destruídos pelas Prefeituras,Departamento de Estradas de Rodagem e Rede Ferroviária. Osimóveis históricos eram substituídos ou modificados no seu original.

Em uma tarde, Loureiro adentrou as dependências doDepartamento de Cultura e disse ao Fernando Corrêa: - “Temos queprovidenciar um decreto estadual que vise a proteção dosSambaquis, pois a sua destruição vem sendo feita extremamenteacelerada”. Na mesma hora foi redigida a minuta do texto do decreto,dias depois assinado pelo então Governador do Estado, Bento Munhozda Rocha Neto. Foi o primeiro ato do poder público, em todo o paísprotegendo, para estudos científicos, sítios arqueológicos brasileiros.Após publicado o decreto, havia a necessidade de regulamentá-lo. Oque foi feito. Mas isso não conseguiu que o principal objetivo do atofosse alcançado, uma vez que, talvez por motivo do profundo relacio-namento que Loureiro tinha com as autoridades e políticos da época, oregulamento saiu falho. Ocorreu que no texto constou a necessidadedo desmonte ser acompanhado por um especialista em arqueologia,após o que poderia ser seu material liberado para outras finalidades.Esta exigência tornou-se praticamente obsoleta, uma vez que oEstado não possuía arqueólogos em seu quadro de funcionários. Poroutro lado, talvez porque Loureiro Fernandes mantinha grande relacio-namento com influentes personalidades do mundo político e adminis-trativo do governo da época, essa concessão foi inserida no texto. Nãoposso afirmar.

Bem, aconteceu que, não havendo arqueólogos para acompa-nhar o seu desenfreado desmonte e tendo eu já certo conhecimentodas características desses montes fui, por indicação de Loureiro,incumbido, por alguns meses, de acompanhar quase uma dezena dedesmontes, do que resultou a coleta de centenas de evidênciasarqueológicas, incorporadas aos acervos do Museu Paranaense e daCátedra de Antropologia da Faculdade de Filosofia. Embora adverti-dos sobre a necessidade de serem os sambaquis monitorados por

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especialistas, houve casos de desrespeito ao ato. Exemplo, a Prefeitu-ra de Guaratuba. Foi necessário publicar em jornal de circulação esta-dual o nome dos infratores. Estes protestaram, alegando ser muitoimportante para eles a utilização do material proveniente dos sambaquis.O prefeito de Guaratuba, solicitou ao secretário de Educação e Culturada época, dr. Lauro Portugal Tavares a anulação do ato proibitivo, bemcomo a minha exoneração do cargo de Diretor do Patrimônio, sob opretexto de que o diretor estava prejudicando o município, principal-mente sob o ponto de vista político... Chamado ao gabinete do titularda pasta, este argumentou: - “Este ato está me prejudicando, poisGuaratuba é um dos meus redutos eleitorais importantes”. Respondique nada mais estava fazendo do que cumprir com o que previa odecreto do governador, sobre a proteção dos sambaquis. Felizmentepor intervenção de Loureiro Fernandes, o governador não anulou odecreto e, praticamente, dessa época em diante, esses importantessítios arqueológicos vêm sendo preservados.

Outra presença importante de Loureiro diz respeito ao seuinteresse na preservação do Patrimônio Histórico Edificado. Desde asua gestão à frente do Museu Paranaense, 1943, ele já vinha ativa-mente pugnando pela preservação dos edifícios civis e religiosos,principalmente os existentes na orla litorânea, no caso Paranaguá,Antonina e Guaratuba. Ocorre que o Instituto do Patrimônio e ArtísticoNacional (IPHAN), criado em 1937, havia se preocupado em protegeros monumentos arquitetônicos da cidade da Lapa, em detrimento aosdas cidades litorâneas. Em discurso pronunciado ao ensejo dos 250anos de Curitiba, em solenidade realizada na Praça Tiradentes, na qualfoi incluída a instalação do marco comemorativo à fundação da cidade,Loureiro chamou a atenção das autoridades no sentido de que fossempreservados os significativos bens culturais das cidades marinhas comotambém os do interior. Alertava ele, assim, para o impacto que a gran-de expansão agrícola haveria de causar aos marcos representativosdo nosso passado, como de fato até certo ponto causou. Na mesmaépoca, em companhia de Júlio Estrella Moreira, que também fazia par-te do corpo de conselheiros do Museu Parananense, ele participou naorganização de exposição comemorativa à fundação de Curitiba. Essaexposição foi montada na Sociedade Duque de Caxias, que situava-sena esquina das ruas Murici com José Loureiro. Eles expuseram umasérie de objetos e fotografias, estas mostrando os edifícios de interes-se histórico que o Paraná deveria preservar.

Mais tarde, em 1950, quando do Cinqüentenário do InstitutoHistórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense, Loureiro Fernandesteve uma curiosa e interessante atuação. Durante o primeiro Congresso

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Figura 1. Flagrantes das Comemorações dos 250 anos de Curitiba, em 29/03/1943, na Praça Tiradentes. 1, Bento Munhoz da Rocha Neto, presidente doCírculo de Estudos Bandeirantes; 2, Diversas autoridades; 3, Fragmentosdo Pelourinho ladeados por Arthur Martins Franco, José LoureiroFernandes e o filho Manuel, à esquerda e, Bento Munhoz da Rocha Neto,à direita (Fonte: Boletim da PMC, Curitiba, a. 2, n. 8, 29 mar. 1943).

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de História do Paraná, realizado na época, entre as moções apre-sentadas, houve uma na qual se propunha homenagear o índioGuairacá. Seria erigido um monumento na Praça Tiradentes, do qual onotável escultor João Turin já havia elaborado uma maquete. Apoia-vam a idéia Romário Martins, Arthur Martins Franco, Carlos Stellfeld eBento Munhoz da Rocha Neto, entre outros. A moção ao ser apresen-tada foi aplaudida, menos por Loureiro Fernandes. Todos ficaram apre-ensivos em face do inesperado fato. Loureiro Fernandes pediu a pala-vra e disse: - “É um equívoco muito grande querer homenagear oíndio Guairacá, pois a história nos conta que ele foi colaboradordos espanhóis quando da identificação do espaço que mais tardeviria a ser o território paranaense”. Justifica-se esse procedimento

Figura 2. Comemorações dos 250 anos de Curitiba. Hasteamento dabandeira de Curitiba na Praça Tiradentes. À direita o prefeito Rozaldo E.de Mello Leitão e à esquerda, José Loureiro Fernandes, diretor do MuseuParanaense (Fonte: Boletim da PMC, Curitiba, a. 2, n. 8, 29 mar. 1943).

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de Loureiro, em face da divisão que o Tratado de Tordesilhas faziaentre as terras portuguesas e espanholas na América do Sul. Deacordo com esse documento, os espanhóis ficariam com expressivaporção do território brasileiro, o que não era do agrado de Portugal.Consta que o índio Guairacá teria lutado contra a penetraçãoportuguesa nas áreas então previstas no referido tratado. LoureiroFernandes propôs então que em lugar de Guairacá, fosse homenage-ado o índio Kaingáng Viri, que havia dado ajuda aos portugueses. Esteregistro pode ser lido nas atas do referido congresso.

Mais tarde, ainda como seu assistente voluntário, fui convida-do a participar de algumas viagens em companhia dele, principalmen-te aos índios Kaingáng do Posto Indígena Fioravante, situado emPalmas. Visaram essas viagens, a coleta de sangue de cerca de duascentenas de índios. O estudo hematológico das amostras coletadas foia primeira experiência que tive em relação aos índios do Paraná.

Tempos mais tarde, aconteceram fatos que tiveram granderepercussão no Paraná. A política que vinha sendo desenvolvida porMoiysés Lupion ruiu em 1950, com a eleição de Bento Munhoz da RochaNeto, adversário ferrenho do grupo lupionista. Com a queda de Lupione ascensão de Munhoz da Rocha, criou-se forte oposição apoiada,entre outras, pelo jornal Gazeta do Povo. Este diário iniciou sistemáti-ca campanha contra o governo Munhoz da Rocha; a tal ponto chegouessa campanha que a lei governamental criando o Serviço de Prote-ção ao Patrimônio Histórico do Estado, que incluía a proteção aossambaquis, levou a Gazeta do Povo a publicar, em destaque, o seguin-te: “É um absurdo que um governador de estado esteja a perder tempocom a proteção de sambaquis, quando os problemas grandes doestado, estão sendo deixados de lado”.

No mesmo jornal, foi feita na época uma séria acusação sobreo pai de Loureiro Fernandes, sr. José Fernandes Loureiro. Dizia ojornal que ele havia colaborado com os revoltosos na revolução de1894. Loureiro redigiu um artigo publicado na própria Gazeta do Povo,em defesa de seu pai, artigo que pode ser lido nas coleções dessejornal. Dizia Loureiro que o seu genitor não havia colaborado mas sim,ao contrário, pois ele fazia parte de uma comissão de curitibanosincumbida de garantir à população o necessário suprimento alimentar,uma vez que a cidade estava sitiada. Como José Fernandes Loureiro,também apelidado de José Nabo, certamente devido à sua baixaestatura, era um importante comerciante atacadista e, conseqüente-mente, se sentia no dever de dar um atendimento à população jácarente. Concluiu-se, pelo que se sabe, que Fernandes Loureiro nãoera político e seu posicionamento visou somente o bem estar da

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comunidade curitibana.Ao mesmo tempo em que ocorriam esses fatos, o Estado do

Paraná experimentava alto desenvolvimento econômico. Concomi-tantemente com a devastação das nossas florestas nativas, a nossaeconomia, escorada ainda na madeira e já em grande escala no café,crescia e proporcionava apreciáveis saldos financeiros aos cofres doEstado. Isso deu ao mestre e governador Bento Munhoz da Rocha Netoexpressiva projeção, a qual, aliada às comemorações do PrimeiroCentenário do Estado em 1953, levaram-no, amparado nos recursosdisponíveis, a programar uma série de comemorações, nas quais esta-vam incluídos numerosos congressos nacionais e internacionais.Realmente é verdade, pois mais de 35 deles foram realizados naépoca.

Figura 3. Abertura do 1º Congresso de História da Revolução de 1894 (10de fevereiro de 1914). Da esquerda para direita: prof. Tito Lívio Ferreira(1° secretário), cap. Fernando Flôres, Secretário de Interior e Seg. Públicado Paraná (Representante do Interventor Manoel Ribas), gal. RaimundoSampaio (Presidente efetivo do Congresso), dr. José Loureiro Fernandes(Secretário Geral) e dr. Abílio Barreto (Secretário). (Fonte: Anais doPrimeiro Congreso de História da Revolução de 1894. Curitiba: GráficaParanaense, p. 553. 1944).

Entre esses congressos, estava previsto o Segundo Nacionalde Folclore. O professor Loureiro Fernandes, que era presidente doevento, convocou-me e ao professor Aryon Dall’Igna Rodrigues, este

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uma das maiores autoridades em línguas indígenas da América,professor da Universidade de Brasília e da Unicamp. Visava Loureiroque procedêssemos o levantamento dos remanescentes dos maissignificativos fatos folclóricos paranaenses. Isso porque, Aryon e eu, jáhavíamos feito algumas incursões no campo folclorista; daí o convite.Pretendia-se com isso, durante o Congresso, apresentar aos partici-pantes dois dos mais expressivos eventos folclóricos paranaenses: asCavalhadas de Palmas e as Congadas da Lapa. Os contatos por nósestabelecidos em Palmas não redundaram em condições da apresen-tação da cavalhada. A Congada da Lapa, porém, foi apresentada noantigo Estádio Lourival de Brito e Silva, com grande aceitação peloscongressistas e público.

A intervenção de Loureiro foi determinante para o sucesso doCongresso, principalmente na obtenção de recursos financeiros para asustentação do evento.

Outro episódio que me parece interessante relatar, diz respeitoà preservação de pequenino monumento arquitetônico situado nosCampos Gerais, a Capela do Tamanduá. Situava-se na época ainda nomunicípio de Campo Largo (hoje pertencente à jurisdição de BalsaNova). Em companhia de Fernando Corrêa de Azevedo, AtílioBarbosa, Vladimír Kozák e Loureiro Fernandes, procedemos o levan-tamento e o tombamento da referida capela, seriamente ameaçada deruir, construída que fora em 1730.

Em 1953, Loureiro foi informado pelo professor ArthurBarthelmess sobre a ocorrência de um sítio arqueológico no vale do rioIvaí, município de Prudentópolis. Pelas informações preliminares,tratava-se efetivamente de um sítio de grandes proporções e rico emindícios arqueológicos. Loureiro Fernandes reuniu um grupo deprofessores e pesquisadores para estabelecer um primeiro contato como achado. Faziam parte do grupo, além de Loureiro Fernandes e eu,Felipe Miranda de Souza Júnior, Aryon Dall’Igna Rodrigues e o notáveltaxidermista do Museu Paranaense André Mayer, de quem pouco sefala, mas que foi considerado um dos mais completos especialistas nodifícil campo da taxidermia na América. Alguns dos animais por elepreparados, podem ser vistos nas coleções do Museu Municipal deHistória Natural do Capão da Imbuia, em Curitiba.

O sítio arqueológico do Estirão Comprido, como foi denomina-do, foi sistematicamente pesquisado sob a orientação do dr. FernandoAltenfelder Silva, anos depois. Loureiro o havia conhecido durante a IIReunião Brasileira de Antropologia, ocasião em que convidou-o paracoordenar as investigações arqueológicas no Instituto de Pesquisas,bem como para ministrar aulas de sociologia na Faculdade de

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Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Paraná. Essa foi aprimeira pesquisa arqueológica, conduzida em bases científicas noplanalto paranaense.

Em 1956 candidatei-me, como pesquisador auxiliar, junto aoProjeto Arqueológico Lagoa Santa, sob a coordenação do dr. WesleyHurt Jr., antropólogo norte-americano. Minha indicação foi amparadapor Loureiro Fernandes, tendo ele intervido na obtenção de bolsa juntoà CAPES (Campanha de Aperfeiçoamento do Professor do EnsinoSuperior). O projeto teve a duração de 6 meses e, após seu término,ensejou-me ida aos EUA, para aperfeiçoamento arqueológico, no anoseguinte. Para a obtenção dessa bolsa, também houve a colaboraçãoda Cátedra de Antropologia da UFPR, dirigida por Loureiro. Durante aminha ausência do Brasil, criou-se o Centro de Ensino e PesquisasArqueológicas, uma unidade da UFPR. Participaram na sua criação,além de Loureiro, Luiz de Castro Faria, do Museu Nacional, PauloDuarte, da Universidade de São Paulo, Fernando Altenfelder Silva daUFPR e Joseph Emperaire, arqueólogo francês do Museu do Homem.Quando do meu retorno ao país, Loureiro convidou-me para secretárioda novel Instituição. Por cinco anos exerci essa função. Nesse períodomuitas foram as pesquisas de campo e laboratório realizadas, além daparticipação de cursos organizados pelo Centro.

Talvez a mais difícil missão assumida por Loureiro, tenha sidoa recuperação e organização do Museu de Arqueologia e ArtesPopulares, no antigo Colégio Jesuíta de Paranaguá. Essa tarefa,primeiro pelo fato do imóvel estar situado fora de Curitiba e, segundo,pelo péssimo estado de conservação em que ele se encontrava, exigiudo professor um esforço extraordinário. Tive a oportunidade de colabo-rar, inicialmente, no acompanhamento da restauração do prédio e nasprimeiras providências para a instalação do Museu. O prédio, do fim doséculo XVIII, não oferece condições para a instalação de um museuem bases que a moderna museologia exige. Mas, Loureiro contornouos problemas que o imóvel apresentava e o inaugurou em 1963, cercade 10 anos após ele ter assumido essa espinhosa incumbência.

Finalmente, desejo contar como ocorreu uma das maioresdecepções que Loureiro teve em sua vida. Como já narrei, o governa-dor Bento Munhoz da Rocha Neto programou uma série de eventosrelacionados aos 100 anos do Estado do Paraná. Mas, no governo doMoysés Lupion, Loureiro havia conseguido a doação de amplo terrenopertencente ao Estado, situado na face leste da Praça Santos Andradepara ali ser construído um conjunto de prédios capaz de abrigar oMuseu Paranaense, Escola de Belas Artes e Faculdade de Filosofia,Ciências e Letras do Paraná. No dia 19 de dezembro de 1949, em ato

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Depoimento

solene, foi lançada a pedra fundamental do empreendimento. Na atalavrada na ocasião, consta que a iniciativa e a concretização doproposto tinha sido de Loureiro Fernandes. No ano seguinte, porém,Munhoz da Rocha assumiu o Governo. Entre os atos relacionados como Centenário, estavam os da construção de numerosas obras públicas,tais como Palácio do Governo, Fórum, Palácio da Justiça e da Assem-bléia Legislativa, todas elas no Centro Cívico, sede própria para aBiblioteca Pública e Teatro Guaíra. Este último justamente no terrenodestinado por Lupion às referidas instituições, no centro das quaisestava o Museu Paranaense. Houve grande consternação por parte depessoas envolvidas com o pretenso empreendimento. Loureiroconfessou-me, certa vez, que essa tinha sido a maior frustração de suavida, e que, dificilmente o Museu Paranaense viria a ter condições deobter sua própria sede, em situações semelhantes à pretendidanaquela época. Realmente, até os dias atuais o Museu Paranaenseainda não conseguiu ver construído prédio apropriado para abrigar assuas centenárias coleções museológicas, embora recentemente tenhaconseguido local em condições bem melhores das que teve em épocaspassadas.

Encerro este depoimento assinalando que, ao mesmo tempoque tive com Loureiro Fernandes momentos de grande criatividade ecompreensão, também tive divergências acentuadas, certamentemotivadas pelo desejo de querer o melhor para os objetivos persegui-dos.

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DEPOIMENTO

Arthur Barthelmess*

Sr. Presidente da mesa e organizador deste Seminário,prezados palestrantes e depoentes que compõem a mesa.

Meu Loureiro Fernandes, aquele que entrou na minha vida ésem dúvida a mesma poderosa personalidade sobre cuja vida e obraaqui depuseram e ainda deporão, com autoridade maior que a minha,os mais expositores deste importante Seminário que tiveram com omestre cooperação profissional mais específica e, se mesmo assim mearvoro a falar-vos é porque tenho a audácia de supor que apesar detudo tenho algum depoimento peculiar a dar que não gostaria de verperdido.

O Loureiro Fernandes que entrou na minha vida foi a notávelfigura a cujo poderoso empenho pessoal, discreto mas decisivo,devemos o fato de não ter sucumbido no nascedouro a Faculdade deFilosofia, Ciências e Letras do Paraná, de cujo ulterior desdobramentoresultou entre outros o atual Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes.

Ocorreu da seguinte maneira: em meus verdes anos assisti pelorádio o Golpe de Estado de 11 de novembro de 1937. Getúlio Vargas,“apoiado (entre aspas) na parte sã da Nação brasileira” dissolveu deuma só penada a Câmara e o Senado, as Assembléias Legislativas eas Câmaras Municipais de todo o País, destituindo também de planotodos os governadores e prefeitos o que substituiu por interventoresfederais e por prefeitos nomeados por ditos interventores.

A sorte do Estado do Paraná foi uma das mais brandasporquanto o interventor federal que nos foi designado outro não erasenão o próprio governador destituído.

De tudo sobrou para nós na prática um prédio vazio, o daAssembléia Legislativa da rua Barão do Rio Branco, esquina comVisconde de Guarapuava, o mesmo onde em 19 de dezembro de 1912se havia fundado a Universidade do Paraná e onde hoje funciona aCâmara Municipal de Curitiba. Que fazer do histórico prédio?

Vivia então entre nós Carlos de Paula Soares, um vibrante

* Professor Doutor em Físico-Química aposentado pela UFPR.

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plantador de escolas cujo nome figura em bronze no saguão doEdifício onde se realiza o presente Seminário. Carlos de Paula Soaresconseguiu naquele momento contagiar com seu entusiasmo o secretárioestadual Omar Gonçalves da Mota que, por sua vez, teve força etalento para obter a aquiescência do todo poderoso interventor parafundar de imediato no prédio vazio uma Faculdade de Filosofia, Ciênciase Letras nos moldes do modelo trazido da Europa pelo ministro daEducação Gustavo Capanema, modelo a essa altura já adotado no Riode Janeiro pela Universidade do Brasil e em São Paulo pela USP.

As aulas começaram em Curitiba em março de 1938, mas jádurante as férias do final de 1939 virou a maré da política: os arquivoscom nossos históricos escolares foram arrebatados pelos bombeiros elançados no meio da rua ao Deus dará. Apiedou-se deles o professorHomero de Melo Braga, outro nome da nossa placa de bronze, o qualcarregou tudo para seu consultório médico no Edifício Sulamérica, narua Quinze de Novembro.

Foi nesse momento em que tudo parecia perdido, que entrouem cena o nosso gigante, o herói deste Seminário, o professor JoséLoureiro Fernandes. Empenhando seu notório prestígio e notáveltalento, Loureiro Fernandes realizou um silencioso mas eficaz trabalhode articulação, coordenação e negociação do qual resultou que ainstituição órfã e deserdada encontrasse rapidamente uma novaprestigiosa entidade mantenedora que assegurou sem solução decontinuidade, o prosseguimento normal dos cursos. Salvando daextinção a Faculdade de Filosofia, salvaguardou Loureiro o pré-requisitoque alguns anos depois tornaria viável a restauração da Universidadedo Paraná, entrementes desarticulada pela legislação superveniente.Para tanto a benemérita entidade mantenedora abriu mão da tutelasobre a Faculdade permitindo que esta se incorporasse à Universidadeem processo de restauração e ulterior federalização.

Resultou ainda indiretamente dessa intervenção loureiriana onascimento de segunda Faculdade de Filosofia em Curitiba. Transferidaque foi o funcionamento da nossa, primeiro para a sede das CiênciasEconômicas da rua Doutor Faivre e, em seguida para este prédio darua General Carneiro em que o presente Seminário ora se realiza,vagaram as instalações em que havíamos funcionado. A entidademantenedora aproveitou as instalações tornadas ociosas e nelasinstaurou de imediato a sua própria Faculdade, a Faculdade Católicade Filosofia que veio a tornar-se celula mater e núcleo de agregaçãoda hoje poderosa Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

O mesmo meu Loureiro surpreendeu-me segunda vez algunsanos depois em meus próprios pagos, em pleno Vale do Ivaí quando

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em sua qualidade de presidente do Instituto Histórico, Geográfico eEtnográfico Paranaense organizou e fez acontecer com pompa ecircunstância na minha mínima vila de Teresa Cristina, onde nasci, acomemoração do Centenário da epopéia colonizadora do Doutor JeanMaurice Faivre, médico da Imperatriz Dona Thereza Christina,Fundador da Academia Imperial de Medicina, Cavaleiro da ImperialOrdem da Rosa e acima de tudo idealista e Amigo da Humanidade,que partiu do porto de Antuérpia no dia de natal do ano de 1846 comum séquito de cidadãos franceses e belgas, para implantar nestesermos, a sua sonhada Therèseville, sonhada para ser o germe de umrecomeçar da História em bases mais livres e fraternas.

Loureiro Fernandes conseguiu localizar na cova rasa os restosdo fundador e transferiu-os solenemente para a herma onde hoje seencontram, erigida de toscos seixos de pederneira rolados pelo rio eheraldizada pela placa de bronze que contém o texto do elogio fúnebreproferido em 1858 em memória a Faivre perante a Academia Imperialde Medicina pelo Barão de São Felix.

O texto integral dos dizeres da placa encontram-se nestelivro que eu também trouxe e que eu terei o prazer de passar parao prof. Igor que pode incorporá-lo ao patrimônio bibliográfico doCEPA.**

Esse é, senhoras, senhores, o José Loureiro Fernandes queconheci, poderoso em atos, feitos e fatos e que hoje integra osalicerces sobre que repousa a cultura acadêmica paranaense.

Disto dou, perante vós, este meu testemunho.

** Texto da placa mencionada:

João Mauricio Faivre4 de Setembro de 1795 30 de Agosto de 1858Combe-Raillard Colonia(Jura) França Tereza Cristina

Aristoppo. Diz a história, recommendara aos seus amigos que o sepultassem debaixo deuma árvore e junto a certa fonte porque a sombra d’aquella e a frescura d’esta o tinhãomuitas vezes comprazido...Semelhantemente lá está o corpo do Dr. Faivre coberto pela gleba dessa colonia que elledenominara Thereza em respeito e gratidão para com a augusta actual Imperatriz doBrazil que sempre o recebera com bondade e lhe prodigalisara auxilio.Protege-o a impenetravel coma d’essas florestas seculares que elle tanto amou. E aságuas sonoras do Ivahy docemente serpejando por perto d’elle lhe sussurão de continuo:amigo da humanidade... Até que um dia na lapide frontal do último asilo de seus restos seesculpira: Apostolo, Ensaiador e Martyr da humanidade. (BARTHELMESS, Arthur. Ivahy:saga e lenda, vida e lida. Curitiba: Kingraf. p. 26. 1993).

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Depoimento

PROF. IGOR: O Senhor poderia falar algo sobre a descobertado sítio arqueológico Estirão Comprido no vale do rio Ivaí?

PROF. ARTHUR: Antes de tudo uma ressalva se faz necessá-ria perante este Seminário de profissionais: não sou antropólogo. Sou,por nascimento, vizinho dos índios Kaingáng do vale do rio Ivaí; elespassavam em nossa casa, não lhes entendia a língua nem eles anossa mas havia de minha parte extraordinário interesse por eles,enorme curiosidade e grande simpatia porque os que vinham nos vereram sempre bastante pacíficos.

Todos lá tínhamos notícia de que no sítio do morador por nomeCelarius situado no Estirão Comprido, longe de onde os índios denosso tempo moravam, existia o que seria um cemitério de antigosíndios. Índio para mim naquele tempo significava Kaingáng.

Anos mais tarde, na década de 1950, estando eu lotado emCuritiba no Departamento de Cultura da Secretaria da Educação eCultura do Estado, em conversa com o professor Oldemar Blasi lotadono mesmo Departamento e, com o lingüista professor Aryon Dall’IgnaRodrigues que nos fazia visita, resolvemos obter a palavra de ummestre consagrado sobre o que seria aquilo tudo.

Redigimos então, os três, um pequeno Memorial dirigido aoprofessor José Loureiro Fernandes, que tomou o maior interesse eorganizou uma expedição ao local. E lá fomos nós Ivaí abaixo.Constatou-se que se tratava de um sítio arqueológico contendo amplodepósito de terra preta de formato lenticular, correspondente a umlocal onde os índios tinham se estabelecido e, eventualmente, tambémsepultado seus mortos. Colheu-se material lítico e fragmentos decerâmica. Havia em meio à terra preta muitas conchas de moluscosfluviais, ossos de animais silvestres e espinhas de peixe e encontrou-se um fêmur humano, tudo mais tarde devidamente estudado por quemde direito.

Surpresa para mim: o sítio, embora situado em plena regiãoocupada desde época historicamente imemorial pelos Kaingáng,pertenceria a uma tradição Guarani, o que os especialistas deduziramdas peças líticas e notadamente dos fragmentos de cerâmica, algumasvezes engobada. Sendo Guarani, entretanto, de época anterior aocontato com os jesuítas, já que os artefatos dos sítios ulteriorescostumam apresentar influência da arte ibérica.

A antigüidade do sítio foi corroborada pela identificação de umachado ósseo, identificado como pertencente a um mamífero de umaespécie afim da atual cotia, mas dada como extinta no País há mais detrezentos anos.

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Arthur Barthelmess

Depois disto eu soube que outras expedições se fizeram.Oldemar Blasi esteve lá com Fernando Altenfelder Silva, de São Paulo,e, em outra ocasião, com um pesquisador americano e soube tambémque, em anos recentes, a brilhante juventude pesquisadora de nossaUniversidade também se ocupa do sítio arqueológico do EstirãoComprido.***

Ao que estou informado o local se acha razoavelmente preser-vado, disponível para novas pesquisas, não minhas, é claro, pois comoadverti desde o princípio, não sou do ramo.

PROF. IGOR: Agradeço as informações. Existe, no arquivo doCEPA, uma fotografia do Estirão Comprido datada de 1951. É uma fotohistórica porque documenta uma das primeiras pesquisas arqueológi-cas feitas no planalto paranaense. Mostra um corte-estratigráfico ealgumas pessoas. Entre elas, identificamos os professores JoséLoureiro Fernandes, Aryon Dall’Igna Rodrigues e Oldemar Blasi, alémdo taxidermista André Meyer. As outras não são conhecidas.

PROF. ARTHUR: Uma das pessoas pode ser meu pai EugênioTheodoro Barthelmess, entre os demais podem estar os dois canoeirosque nos conduziram e quem sabe Celarius, morador do lugar. Ah! outrapessoa que pode estar na foto é o professor Felipe de Souza MirandaJúnior, na ocasião diretor da Associação de Ensino Novo Ateneu.Também me lembro de ter meu pai conversado durante a viagem de canoacom o antropólogo sertanista Vladimír Kozák, possível autor da fotografia.

*** Sobre o sítio do Estirão Comprido, cronológicamente, foram publicados:BARTHELMESS, Arthur W. Subsídios geográficos para o estudo paleontológico do rioIvaí. Boletim da Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Paraná, Curitiba, v.3, n. 11, p. 113-121. 1953.SILVA, Fernando Altenfelder e BLASI, Oldemar. Escavações preliminares em EstirãoComprido. IN: CONGRESSO INTERNACIONAL DE AMERICANISTAS, 31, São Paulo,1954. Anais. São Paulo: Editora: Anhembi, 1955, 2v, v. 2, p. 829-845.FERNANDES, José Loureiro e BLASI, Oldemar. As jazidas arqueológicas do PlanaltoParanaense. Nota prévia sobre a jazida do Estirão Comprido. Boletim do InstitutoHistórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense. Curitiba, v. 4, n. 3-4, p. 67-80, 1956.(Uma Nota prévia sobre o sítio Estirão Comprido foi apresentada, pelos mesmos autores,durante o 3° Congresso Regional de História e Geografia do Paraná, em Curitiba, no mêsde dezembro de 1953).SILVA, Fernando Altenfelder. Contribuição para a arqueologia de Estirão Comprido. IN:REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 3, Recife, 1958. Anais. Recife: AssociaçãoBrasileira de Antropologia, 1959, p. 113-118.BLASI, Oldemar. O sítio arqueológico de Estirão Comprido, rio Ivaí, Paraná. EstudosComplementares. Arquivos do Museu Paranaense. Série Arqueologia. Curitiba, n.

3,

p. 1-60, 1967 (N. do Ed.).

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Depoimento

Havia uma dezena de pessoas no local. A vanguarda desceu orio Ivaí em duas canoas embarcando no porto da balsa existente na fozdo afluente Areião, transpôs uma corredeira e chegou ao destino aoentardecer. Acampamos no alto da barranca entre o porto do moradore a casa deste, onde armamos nossas duas barracas, acendemos fogoe içamos a bandeira nacional; eu havia sido chefe escoteiro em Curitibana década de 1940 e o professor Miranda era Tenente R2, tendo servi-do durante a Guerra no Batalhão da cidade da Lapa. Os canoeirosarmaram rede de espera que ficou no rio durante a noite.

O professor Loureiro chegou na manhã do dia seguinte porterra com mais algumas pessoas, inclusive o taxidermista e um filhodeste, e logo se pôs a organizar a coleta de algum material superficiale uma escavação estratigráfica pioneira. Após o almoço todos partiramvoltando por onde vieram.

Eu teria coragem de tentar reconhecer, após este mais de meioséculo decorrido algumas pessoas na fotografia.

PROF. IGOR: Isso é muito importante porque no ano de 2006estaremos comemorando o Cinqüentenário do CEPA. Para isto,pretendemos elaborar uma História da Arqueologia no Paraná. O sítiodo Estirão Comprido é um marco nas pesquisas, embora estas tenhamtranscorrido um pouco antes, junto à Seção de Arqueologia do Institutode Pesquisas, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. A suacontribuição é valiosa.

PROF. ARTHUR: Muito obrigado.

52 Arqueologia, Número especial, Curitiba, v. 3, p. 47-52, 2005

Arthur Barthelmess

REMINISCÊNCIAS DE LOUREIRO FERNANDES

Aryon Dall’Igna Rodrigues*

INTRODUÇÃO

O dr. José Loureiro Fernandes foi, sem dúvida, uma das perso-nalidades mais marcantes do desenvolvimento cultural do Paraná emmeados do século XX. Foi um extraordinário empreendedor de realiza-ções importantes, especialmente na área das ciências humanas.Embora médico, com clínica urológica bem estabelecida em Curitiba,liderou o desenvolvimento dos estudos antropológicos. Aliás, suaprimeira publicação científica nesta área associava a experiência e ointeresse do médico com o estudo dos povos indígenas: “Notas hemato-antropológicas sobre os Caingangues de Palmas”, veiculada na RevistaMédica do Paraná, Ano 8, n. 1/2, 1939, em que expunha os resultadosda identificação dos tipos sangüíneos da comunidade de índiosKaingáng do sudoeste do Paraná e, que logo se destacou na escassabibliografia brasileira de estudos bioantropológicos. Provavelmente foitambém a sua situação de doublé de médico bem estabelecido e depesquisador das ciências humanas, que lhe permitiu vencer em váriosmomentos a inércia de uma sociedade extremamente conservadora,dominada fortemente por um catolicismo beato e inibidor da criatividadecultural inovadora. Mas ele mesmo era católico, bem relacionado como arcebispo metropolitano e um dos dirigentes do Círculo de EstudosBandeirantes, onde se reuniam os intelectuais católicos mais conser-vadores. Certamente era dotado de particular habilidade para conciliaro trato com esse ramo da intelectualidade católica e o desenvolvimen-to de uma base institucional para as ciências e, mais particularmente,para as ciências humanas. Loureiro Fernandes deu início ou participoude numerosos empreendimentos culturais, a maioria dos quais visavaà institucionalização da pesquisa científica no Paraná, como a criaçãoda Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e a instituição dentro des-ta do Departamento de Antropologia, a reativação do MuseuParanaense, a criação da Comissão Paranaense de Folclore, a criação

* Da Universidade de Brasília.

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do Instituto de Pesquisas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letrasda UFPR, a criação do Centro de Ensino e Pesquisas Arqueológicas eo Museu de Arqueologia e Artes Populares, hoje Museu de Arqueolo-gia e Etnologia da UFPR, em Paranaguá.

MEMÓRIA 1

Colaborei com o dr. José Loureiro, ou com empreendimentosdele, em várias ocasiões, mas não cheguei a conhecê-lo muito bem.Não fui seu aluno, nunca assisti a uma aula sua. No período de 1947 a1950, quando estudei na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras doParaná, em Curitiba, fiz o curso de Letras Clássicas, cujo currículo,dentro do modelo estanque da reforma Capanema, herdado do EstadoNovo, não comportava nenhuma interdisciplinaridade. Mas minhaparticipação em empreendimentos do dr. Loureiro antecedeu a situaçãode aluno da faculdade. O primeiro desses empreendimentos em quetomei conhecimento de sua presença foi a reativação e reorganizaçãodo Museu Paranaense, que passou a dirigir em 1937 com o apoio dozoólogo pe. Jesus Santiago Moure, do botânico Carlos Stellfeld, dohistoriador Artur Martins Franco e de outros estudiosos, alguns dosquais souberam atrair jovens estagiários voluntários, como Rudolf BrunoLange, Ralph Hertel, Heitor Rodrigues Jr., Gert Hatschbach e outros.Foi Heitor, meu irmão mais velho, que, por volta de 1940, me levou àbiblioteca do museu, a qual passei a freqüentar em busca de publica-ções sobre línguas indígenas sul-americanas, depois de já ter explo-rado bastante a Biblioteca Pública do Paraná. Coincidentemente,Rosário Farâni Mansur Guérios, um dos pioneiros dos estudos lingüís-ticos no Brasil e de quem eu era aluno de Português no GinásioParanaense, também integrava o grupo de pesquisadores reunido nomuseu, como responsável pelo Setor Lingüístico deste. Uma das impor-tantes iniciativas da administração daquela instituição, nessa época,foi a criação de uma publicação científica, os Arquivos do Museu Parana-ense, cujo primeiro volume saiu em 1941 e, além de um estudoetnográfico e histórico de Loureiro Fernandes sobre os índios Kaingángde Palmas e de outras colaborações nas áreas de zoologia, botânica,geologia e história, trouxe também um estudo de Mansur Guérios sobretabus lingüísticos. No ano seguinte, 1942, Mansur Guérios estimulou,com o assentimento do dr. Loureiro, a publicação de um trabalho meuno segundo volume dos Arquivos, “O artigo definido e os numerais nalíngua Kirirí - vocabulários Kirirí-Português e Português-Kirirí”, enesse mesmo volume Guérios publicou seus “Estudos sobre a língua

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Aryon Dall’Igna Rodrigues

Caingangue”. Tive mais uma acolhida nesse empreendimento deLoureiro Fernandes no volume 4, publicado em 1945, com um estudosobre “Diferenças fonéticas entre o Tupi e o Guarani”, e ainda presteiuma colaboração na organização dos dados lingüísticos da línguaMundurukú, do espólio do missionário franciscano frei Hugo Mense,publicado no volume 6 dos Arquivos, em 1947, com apresentação deMansur Guérios e sob o título “Língua Mundurucu: vocabuláriosespeciais - vocabulários Apalaí, Uiabói e Maué”. Os Arquivos do MuseuParanaense tornavam-se um veículo científico francamente aberto aosestudos sobre as línguas indígenas, a exemplo da Revista del Museode la Plata e da Revista del Instituto de Etnologia de la UniversidadNacional de Tucumán, ambas na Argentina, da Revista de la SociedadCientífica del Paraguay e, no Brasil, da Revista do Museu Paulista. NosArquivos foram publicados ainda outros trabalhos de Mansur Guérios(sobre as línguas Xokléng e Kamakã) e da austríaca Wanda Hanke(sobre Xokléng e Kaingáng).

MEMÓRIA 2

Quando em 1947 me tornei aluno do Curso de Letras Clássi-cas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná, passei arelacionar-me não só com os professores e colegas dessa área, mastambém com colegas e professores de outras áreas, como a deGeografia e História e a de História Natural. Um aluno de Geografia eHistória era o Oldemar Blasi, tão interessado em pesquisa etnográficaquanto eu. Nessa altura, o dr. Loureiro Fernandes, que era o professorde Antropologia naquele curso, criou o Instituto de Pesquisas daFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras, para o qual o Blasi e eupassamos a trabalhar como pesquisadores voluntários. Uma iniciativade Loureiro Fernandes no início da década de 1950 foi com a pesquisados sambaquis, os monumentos arqueológicos mais proeminentes dolitoral sul. Trouxe para o Instituto de Pesquisas o arqueólogo iugoslavoAdam Orssich de Slavetich e sua esposa tcheca, também arqueóloga,Elfriede Stadler Orssich, os quais, com experiência em sítios arqueoló-gicos romanos na Europa e sítios do Oriente Próximo, empreenderamescavações para estudo estratigráfico de um grande sambaqui nomunicípio de Guaratuba. Como, além de Oldemar Blasi, não havia outrocandidato a auxiliar de pesquisa, eu me ofereci e assim fiquei conhe-cendo esse trabalho de resgate cultural, realizado no início de 1952. ComoLoureiro não pôde acompanhar os trabalhos, delegou essa função aonosso professor de cultura clássica romana, Fernando Corrêa de Azevedo.

Arqueologia, Número especial, Curitiba, v. 3, p. 53-62, 2005 55

Reminiscências de Loureiro Fernandes

MEMÓRIA 3

Com o dinamismo que o distinguia, assumiu o dr. Loureiro, poressa época, também a Sub-Comissão Paranaense de Folclore, subor-dinada à Comissão Nacional de Folclore, coordenada no Rio deJaneiro pelo diplomata Renato de Almeida do Instituto Brasileiro deEducação, Ciência e Cultura, o IBECC. Passei a freqüentar asreuniões daquela comissão, que era integrada por vários intelectuaisde Curitiba, entre os quais Fernando Corrêa de Azevedo, que era meuprofessor de língua e cultura latinas no curso de Letras Clássicas daFaculdade de Filosofia, mas que estudava manifestações folclóricasdo litoral paranaense. Na área do folclore, com o apoio do diretor doInstituto de Pesquisas da UFPR, que era Loureiro, empreendi pesqui-sa de campo para documentar fenômenos de cultura popular emdiversas áreas do Paraná, em geral em associação com FernandoCorrêa de Azevedo: no litoral - Matinhos, Caiobá, Ilhas da Cotinga edos Medeiros na Baía de Paranaguá - e no interior - na Lapa, emGuarapuava e no município de Cerro Azul - e também em Curitiba.Dessas pesquisas resultaram os três trabalhos que apresentei no IICongresso Nacional de Folclore, organizado por Loureiro em 1953, emcomemoração do Centenário do Estado do Paraná: Autos dramáticosparanaenses, Notas sobre o Vale do Bom Sucesso e Adivinhas deCuritiba. Foi por essa época, sobretudo quando fui observar as congadasda Lapa, que conheci o engenheiro tcheco Vladimír Kozák,extraordinário fotógrafo e cinegrafista dotado de particular sensibilida-de para os fatos culturais e que teve um papel importantíssimo emvários empreendimentos etnográficos de Loureiro Fernandes.

MEMÓRIA 4

Viajei para a Europa no início de 1955 para estudar lingüísticana Alemanha. Quando morava em Hamburgo, Loureiro Fernandes meescreveu, pedindo que providenciasse equipamento para instalar, nofuturo Departamento de Antropologia, um espaço adequado para agravação da voz e para o trabalho com as línguas indígenas. Emconsulta com o técnico do Laboratório de Fonética da Universidade deHamburgo foi elaborado um projeto de câmara acusticamente neutra,que enviei a Loureiro, o qual providenciou a execução desse projetodentro do seu departamento. Também me enviou dinheiro para a comprade bom equipamento para a gravação em trabalho de campo, tendo euadquirido e trazido pessoalmente em minha volta um dos melhores

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Aryon DaII’Igna Rodrigues

aparelhos que então eram fabricados - um gravador com motor decorda de precisão, o Butoba, produzido pela firma Burger da FlorestaNegra. Defendi minha tese de doutorado em fevereiro de 1959 e fiqueina Universidade de Hamburgo, como assistente científico doDepartamento de Línguas e Culturas Africanas (Seminar für afrikanischeSprachen und Kulturen). Sabendo que eu havia concluído o doutorado,Loureiro me escreveu, convidando-me a voltar para a UniversidadeFederal do Paraná, para ensinar lingüística no curso de Letras e paratrabalhar com as línguas indígenas no Departamento de Antropologia.Acrescentou que havia conversado sobre isso com o reitor (que eraainda Flávio Suplicy de Lacerda, que, em 1954, me havia negadoqualquer possibilidade de ajuda da universidade para a compra de minhapassagem para a Alemanha) e que este lhe assegurara que eu seriacontratado para trabalhar em tempo integral. Diante disso, deixeiHamburgo em dezembro de 1959 e, em janeiro de 1960, depois de terestado no Rio de Janeiro com o lingüista Mattoso Câmara Jr. e com oantropólogo Darcy Ribeiro e, em São Paulo, com o antropólogo e diretordo Museu Paulista Herbert Baldus - o qual me convidou a trabalharnaquele museu, no caso de que a proposta de Loureiro não se efetivasse- encontrei-me com Loureiro em Curitiba, o qual imediatamentemarcou audiência com o reitor. Este confirmou tudo o que me haviaexposto Loureiro e marcou uma data para eu ir assinar o termo decontrato. Quando cheguei à Reitoria para esse fim, o contrato jálavrado que me apresentaram era para trabalho em tempo parcial. Nãoassinei e fui informar disso Loureiro, que ficou irritadíssimo e telefonouimediatamente ao reitor e deste ouviu que se tratava de um engano deseu secretário e que novo contrato seria elaborado, nos termos acerta-dos. Quando fui chamado para assinar este, o secretário me apresen-tou o mesmo de antes, declarando-me que não existia a possibilidadede fazer como o reitor tinha prometido. Voltei sem assinar e já pensan-do em reentrar em contacto com Baldus, mas Loureiro acabou conse-guindo acertar a situação. Na época havia somente cinco professoresem tempo integral na Universidade Federal do Paraná e eu passei aser o sexto (o reitor retinha a verba disponível para o regime de tempointegral, para que essa ao final do ano caísse num “fundo universitá-rio”, que podia no ano seguinte ser remanejado para outros fins, comoa expansão da planta física da universidade).

MEMÓRIA 5

Assumi dois compromissos docentes: ensinar Lingüística Geral

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Reminiscências de Loureiro Fernandes

nos cursos de Letras (Clássicas, Neolatinas e Anglo-germânicas) eensinar Etnografia Brasileira e Língua Tupi-Guarani no curso deGeografia e História. A área de Letras me concedeu um gabinete próprio- o Gabinete de Lingüística Geral -, enquanto que Loureiro me fez nomearvice-chefe do Departamento de Antropologia, departamento no qual jáme esperavam prontas as instalações para o trabalho com as línguasindígenas. Naquela curiosa disciplina de “Etnografia Brasileira eLíngua Tupi-Guarani”, criada por lei federal alguns anos antes edestinada exclusivamente aos estudantes de geografia e história(segundo um modelo criado havia vinte e cinco anos na Universidadede São Paulo), passei a transmitir conhecimentos sobre os povosindígenas do Brasil e a ensinar um pouco da estrutura gramatical doTupinambá ou Tupi antigo. Para o Departamento de Antropologia fizviagem de coleta de material etnográfico junto aos índios Kaingáng deGuarapuava e de Laranjeiras do Sul. Uma outra contribuição que tiveocasião de dar ao Departamento de Antropologia, atendendo asolicitação de Loureiro, foi a organização de uma das exposições abertasao público, a do ano de 1961, para a qual escolhi o tema Os índios esuas línguas. Para essa exposição tive a colaboração de RodolphoDoubek, o artista tcheco, que então cooperava como cartógrafo com oDepartamento de Geologia de João José Bigarella e Riad Salamuni, eque executou os painéis com que procurei transmitir conhecimentos aopúblico, entre os quais o grande painel que dava uma idéia da diversidadedas línguas indígenas do Brasil. Colaborou também nesseempreendimento Vladimír Kozák, igualmente tcheco, como mencioneianteriormente, o qual realizou fotografias ampliadas dos frontispíciosde algumas obras clássicas sobre as línguas indígenas brasileiras, comoas gramáticas dos séculos XVI e XVII.

MEMÓRIA 6

Enquanto eu estava na Alemanha, tornou-se evidente aexistência de índios desconhecidos no noroeste do Paraná, na regiãochamada Serra dos Dourados, então objeto de ocupação edesmatamento por companhias de terras e colonização. Em fevereirode 1956 Loureiro Fernandes, acompanhado de Kozák e outros, entrouem contacto com um grupo de cerca de 60 pessoas entre homens,mulheres e crianças (FERNANDES, 1959, p. 31). O encontro foiregistrado em fotografia e em filme cinematográfico por Kozák, mas foiinterrompido por iniciativa de Loureiro, que considerou ter de retornara Curitiba após três dias de contato, de 20 a 22 de fevereiro de 1959

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Aryon Dall’Igna Rodrigues

(KOZÁK, 1981, p. 29). Infelizmente, apesar de sucessivas tentativas,esse grande grupo nunca mais foi encontrado, tendo, provavelmente,sido exterminado pelo interesse dos que promoviam a venda das terraspor eles habitadas (entre os principais promotores dessas vendasestavam os governadores do Paraná, Moysés Lupion, e de São Paulo,Ademar de Barros). Ao chegar em Curitiba, fui posto ao corrente dessasituação por Kozák, que considerava imperativo fazer mais esforçospara reencontrar aqueles índios, aos quais Loureiro tinha atribuído onome Xetá (FERNANDES, 1959, p. 30; LOUKOTKA, 1960, p. 329).Com o assentimento deste, que nos facultou o uso de transporte porconta do Instituto de Pesquisas que dirigia, segui em julho de 1960com Kozák e o jovem índio Tuca, que já falava o Português e estavabem escolarizado numa das escolas públicas de Curitiba (G. E. SilvaJardim); passamos pela reserva indígena de Rio Cinza, onde o Serviçode Proteção aos Índios tinha colocado dois adultos do mesmo povo,Nhango e Mã, e um menor, filho deste último, e levamos conosco ostrês, sendo que os dois homens nos guiariam na busca de seus paren-tes. Após alguns dias de busca, demos com duas famílias que estavamvivendo sozinhas na floresta, numa pequena aldeia em forma de elipse,com duas minúsculas casinhas, uma em cada extremidade da elipse.Um dos casais tinha um filho e uma filha e o outro apenas um filho.Eram ao todo sete pessoas. Esses dois casais foram os últimos dopovo Xetá que tentavam sobreviver na mata com seus filhos. Nuncamais se teve notícia de outros vivendo nas florestas que vinham sendoderrubadas e queimadas aceleradamente e que já vinham dando lugara uma paisagem semidesertificada. Informado de nosso encontro comesses dois casais, Loureiro foi ao nosso encontro, mas não pôde ficarmuitos dias, pois se viu afetado por fortíssima reação alérgica àspicadas dos mosquitos. Suponho que a hipersensibilidade queapresentava às picadas tenha sido um dos fatores que o teriam levado,em 1956, a precipitar o retorno a Curitiba e a interrupção do encontrocom o grupo maior de índios Xetá. Voltamos à pequena aldeia, Kozák,Tuca e eu, já em setembro do mesmo ano, na Semana da Pátria, eficamos até o fim do mês e depois mais uma vez em janeiro-fevereirode 1962.

ALTOS E BAIXOS

Loureiro Fernandes estimulou de várias formas e, mais especi-ficamente as pesquisas etnográficas, inclusive as de etnografia popularou folclore, as pesquisas arqueológicas e as pesquisas sobre línguas

Arqueologia, Número especial, Curitiba, v. 3, p. 53-62, 2005 59

Reminiscências de Loureiro Fernandes

indígenas. Dado o estado incipiente da prática dessas pesquisas, umaforma que utilizou reiteradamente para desenvolvê-las foi a convoca-ção de pesquisadores estrangeiros, como fez com a arqueologia,trazendo para o Paraná especialistas como Adam e Elfriede Orssich,Annette Emperaire, Wesley Hurt. Em certo momento, no final dadécada de 1940, procurou atrair para a Universidade do Paraná ofamoso antropólogo francês Paul Rivet, que no após-guerra pretendiatransferir-se para a América do Sul, trazendo consigo sua biblioteca earquivo, mas que, depois de algumas negociações, acabou optandopor Bogotá, na Colômbia. Favoreceu a permanência no Paraná dogeólogo e geógrafo alemão Reinhard Maack, tendo sido, enquantodiretor do Museu Paranaense, o fiador do mesmo junto às autoridadesfederais durante o período da Grande Guerra, possibilitando assim queo mesmo fosse liberado da Ilha das Flores, no Rio de Janeiro, que erao presídio de internação de cidadãos dos países do Eixo detidos noBrasil quando este declarou guerra à Alemanha, à Itália e ao Japão.Com o apoio de Loureiro, Maack pôde ter o Museu Paranaense comomenagem e base para suas pesquisas científicas, que originalmenteestavam voltadas para comparar a geologia do sudoeste da África, quejá tinha estudado no território que hoje é a Namíbia, com a do sul doBrasil, especialmente do Paraná, em verificação da teoria dacoalescência dos continentes africano e sul-americano. Não cheguei asaber se houve uma relação análoga com outro pesquisador alemão,Günter Tessmann, famoso por suas contribuições etnográficas naÁfrica (Fernando Pó) e no Peru, autor da monumental obra Die IndianerNordost-Perus, publicada em Hamburgo, 1930, o qual também seestabeleceu por algum tempo no Museu Paranaense. Embora entãomais interessado em botânica, parece-me que forneceu ao Museu umacoleção de produtos cerâmicos de índios Pano da Amazônia peruana.Na mesma época, entretanto, Loureiro passou a ser detestado, senãoodiado, por outro pesquisador alemão, Guilherme Tiburtius, quemorava havia muitos anos em Curitiba, onde tinha sua família e umapequena indústria de artefatos de madeira, e era um arqueólogoamador, que montou anexo a sua residência um notável museu compeças culturais encontradas nos sambaquis do litoral do Paraná e deSanta Catarina. Segundo a versão que alcancei, Loureiro, prevalecen-do-se das normas autoritárias então baixadas sobre os bens de cidadãosde países do Eixo, tinha procurado fazer destituir Tiburtius de suamagnífica coleção acumulada durante anos de esforço pessoal, paraincorporá-la a uma instituição oficial, sem dar a seu proprietário o acessoà mesma, pois este não seria um cientista, mas um mero amador. Aquestão acabou bem para Tiburtius, que conseguiu manter em suas

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Aryon Dall’Igna Rodrigues

próprias instalações a coleção, mas que, apesar de cônscio daconveniência de preservá-la numa instituição, negou-se a cedê-la paraas que estavam sob o controle de Loureiro e, depois de ter resistido apropostas do exterior, negociou-a com a cidade de Joinville, em SantaCatarina, onde hoje está incorporada ao Museu do Sambaqui. Duranteos últimos anos em que esteve em Curitiba, a coleção foi visitada eestudada por vários especialistas, tendo sido valorizada principalmen-te pelo geólogo João José Bigarella e sua esposa, a antropóloga ÍrisKoehler, os quais produziram várias publicações técnicas assinadasjuntamente com Guilherme Tiburtius. Aliás, outro pesquisador que,apesar de ter sido um dos principais, senão o mais importantecolaborador de Loureiro, passou a detestá-lo por sentir-se utilizado enão valorizado, já que não era considerado um “cientista”, mas um merotécnico, o “cine-técnico da Universidade do Paraná”, foi Vladimír Kozák.Fora os filmes e as fotografias, todo o conhecimento acumulado porKozák não só junto aos sobreviventes do povo Xetá, mas também juntoa outros povos indígenas, como os Boróro, os Kayapó, os Karajá, osalto-xinguanos e os Urubu-Ka’apór, parece não ter despertado nenhuminteresse por parte de Loureiro. Uma parte de sua coleção de materiaisetnográficos, inclusive de suas aquarelas ilustrando pessoas e coisasindígenas, foi adquirida em 1967 por uma fundação canadense, e umaparte de seu conhecimento foi elaborada por escrito e publicada com oapoio do antropólogo Robert Carneiro, do Museu Americano de Histó-ria Natural, de Nova York [The Héta Indians: Fish in a Dry Pond.(Anthropological Papers of the American Museum of Natural History,New York, 1979)]. Só após sua morte foi outra parte do acervo, comoespólio, destinada ao Museu Paranaense, acredito que pela interven-ção de Oldemar Blasi e Edilberto Trevisan. Este último traduziu para oPortuguês e publicou em 1981, a importante monografia de Kozák sobreos índios Xetá, por ele denominados Héta [Os índios Héta: peixe emlagoa seca (Boletim do Instituto Histórico, Geográfico e EtnográficoParanaense, v. 38, p. 11-120, 1981)].

CONCLUSÃO

Os fragmentos de memória recuperados acima em função dalembrança do dr. José Loureiro Fernandes, na passagem do seucentenário, ainda que - justamente por tratar-se de memória - possamparecer muito centrados em mim, servem para corroborar o que, a partirde outros ângulos, já deve ter sido reconhecido em outros depoimentos:Loureiro Fernandes, não obstante as restrições que possam ser feitas

Arqueologia, Número especial, Curitiba, v. 3, p. 53-62, 2005 61

Reminiscências de Loureiro Fernandes

a diversos aspectos de sua atuação como antropólogo, foi sem dúvidao principal promotor da pesquisa científica no Paraná, especialmentenas décadas de 1940 e 1950. Instituições que integram hoje o patrimôniocultural e científico do Paraná devem sua origem ou diretamente a ele,ou à cooperação dele. Tais são, daquelas com que eu convivi, o MuseuParanaense, a Universidade Federal do Paraná e seu Departamentode Antropologia, o Museu de Arqueologia e Etnografia em Paranaguá,o Centro de Ensino e Pesquisas Arqueológicas.

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Aryon Dall’Igna Rodrigues

CENTENÁRIO DE LOUREIRO FERNANDES:MINHAS LEMBRANÇAS DO MESTRE

Cecília Maria Westphalen*

Prezado presidente, prezados colegas, alunos, ex-alunos emeus amigos.

Nós, historiadores, trabalhamos com fontes de onde derivamos conhecimentos históricos. Fontes de toda natureza, não apenas odocumento escrito. Langlois e Seignobos foram pegos pela palavra e,assim, mal interpretados: sem documentos não haveria história.

A renovação dos estudos de história pela “École des Annales”,particularmente a partir da reformulação conceitual de fato e de“documento” proposta por Marc Bloch e Lucien Febvre, propiciou amplaabertura para a consideração das fontes históricas. Era preciso derrubaros muros que confinavam a história e ver as flores dos jardins vizinhos.

O historiador passa, deste modo, a uma saudável e produtivaaproximação com as demais Ciências do Homem, sobretudo utilizan-do-se da troca não apenas de conhecimentos, mas de métodos etécnicas de pesquisas, oferecendo-lhes também os seus.

Hoje, todavia, desejo lembrar o esquema clássico de fonteshistóricas, proposto por Ernst Berheim, no final do século XIX,alimentadoras da crítica histórica.

A.

B.

C.

* Professora Catedrática de História Moderna e Contemporânea aposentada pela UFPR.

Observação direta - testemunho oral ou auricular.Lembrança - condições individuais e sociais.

Tradição:Oral - rumor, fábula.Escrita - relatórios.Gráfica - desenhos, plantas, mapas.

Restos:Monumentos propriamente ditos.Documentos destinados à prova.

Arqueologia, Número especial, Curitiba, v. 3, p. 63-67, 2005 63

Mas, que devo eu apresentar nesta mesa-redonda? Nãopesquisei, não critiquei historicamente a vida e a obra de LoureiroFernandes.

Posso apenas apresentar pequeno relato oral de fatos quetive oportunidade de conhecer e observar pessoalmente, vendo eouvindo, sobretudo na convivência acadêmica. Ou seja, “lembranças”que datam de 1937, quando conheci Loureiro Fernandes, até a suamorte em 1977.

Eu era uma criança de dez anos. Porém, ressoam nos meusouvidos as sonoras gargalhadas de Loureiro Fernandes, não sei secompulsivas ou de joie de vivre. Minha mãe passou nove meses naSanta Casa, e diariamente lá estava dr. Loureiro, acompanhandoo cirurgião doutor Mario Braga de Abreu, recém-chegado da Alemanha.

Ouvia fascinada a conversa entre ambos, sobretudo acerca desituações que culminaram na II Guerra. Também, num projeto de umaFaculdade de Filosofia como a que se criara em São Paulo.

Por algum tempo ainda acompanhei minha mãe ao consultórioda rua José Loureiro. Médico humanitário, nada cobrou pelos serviçosprestados. Dizia que meu pai era farmacêutico, portanto, da áreamédica. Na realidade, não podíamos pagar.

Depois, fui para Fernandes Pinheiro e Iraty, regressando aCuritiba em 1944, passando a estudar na Escola Normal e no ColégioEstadual do Paraná. Por influência das colegas Altiva, Aurinha eoutras, acabei fazendo, em terceira chamada, o vestibular para o cursode Geografia e História.

Reencontrei Loureiro Fernandes, agora como professor. Ocurrículo do Curso incluía três disciplinas ministradas por ele: Antropo-logia, Etnologia e Etnografia do Brasil. Na primeira, eram os seusconhecimentos de anatomia do corpo humano; na segunda, eramenfatizadas as teorias sobre a origem do homem e sua maneira deviver; o guia eram as obras clássicas de Georges Montandon e PaulRivet. Finalmente, na terceira, era sobretudo o folclore, tendo por obrascondutoras Paul Rivet, Luís da Câmara Cascudo, Renato de Almeida eos viajantes estrangeiros que visitaram o Brasil e deixaram as suasobservações.

Pela sua atuação, abrigando a nova Faculdade nos porões dasua antiga residência e, depois, junto à União Brasileira de Educaçãoe Ensino, dos Irmãos Maristas, Loureiro Fernandes ganhou prestígio,sendo Vice-Diretor da mesma, de 1942 a 1945 e de 1948 a 1951.Quando do licenciamento do professor Brasil Pinheiro Machado, em 3de março de 1948, passou a exercer a Diretoria.

Foi justamente o tempo do meu Curso. Assim, testemunhei o

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Cecília Maria Westphalen

seu excelente relacionamento com os estudantes de todos os cursos,e com os de Geografia e História, em particular. Estava sempre dispos-to a colaborar com as suas iniciativas. Destaco as excursões a locaishistóricos e de interesse geográfico.

Conosco iniciou as atividades de pesquisa de campo: ascongadas da Lapa e o fandango de Caiobá.

Guardo a lembrança do seu dinamismo. Um homem instigantee criativo de instituições. Algumas de caráter passageiro e pessoal eoutras de caráter permanente e de interesse da cultura, da ciência e daUniversidade.

Teve participação ativa na criação do Círculo de EstudosBandeirantes, na restauração do Museu Paranaense e na fundação daFaculdade de Filosofia Ciências e Letras, assim como na suaincorporação à Universidade do Paraná, possibilitando-lhe a restaura-ção e pouco depois a sua federalização. Participou, ainda, dadefinição e construção do prédio da Faculdade de Filosofia, Ciências eLetras.

Criou o Instituto de Pesquisas da Faculdade de Filosofia,reunindo diversas cátedras interessadas na pesquisa e no intercâmbiocientífico. Do Instituto, originaram-se o próprio Conselho de Pesquisada Universidade e o Centro de Ensino e Pesquisas Arqueológicas degrande prestígio no País pela presença de renomados pesquisadoresestrangeiros, como os arqueólogos Joseph Emperaire, Annete Laming-Emperaire e Wesley Hurt.

É preciso referir o seu trabalho para a criação e a instalação doMuseu de Arqueologia e Artes Populares, no antigo prédio do Colégiodos Jesuítas de Paranaguá, com o objetivo do estudo desde as origensdo homem americano até o homem paranaense.

Criou, ante a primeira reforma estrutural da Faculdade deFilosofia, o Departamento de Antropologia, assim como foi criado oDepartamento de História, aquele incluindo apenas as cátedras deAntropologia e Etnologia. Havendo já prestado concurso de provas etítulos para a cátedra de História Moderna e Contemporânea eintegrando o Departamento de História, e Loureiro Fernandes, deixan-do a direção do Instituto de Pesquisas, não tive maior contato com omesmo, a não ser na Congregação e no Conselho Departamental, nosquais muitas vezes tivemos divergências na sua política interna e emdefesa do nosso espaço no 6º andar, ante os seus projetosexpansionistas.

Da restauração da Universidade às reformas da década de1960, seu nome e sua posição ganharam prestígio criando, ainda, oCentro de Estudos Portugueses. Depois, desgastado por mal entendidos

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Centenário de Loureiro Fernandes:

e divergências, resultantes por vezes da sua intransigência, requereuaposentadoria.

Recordo-me da última vez que o vi em vida, na Reitoria, emacirrada discussão com o Reitor a respeito da situação do Museu deParanaguá na estrutura da Universidade. Foi o seu último combate.

Se tivesse que definir sua personalidade e, sobretudo,abranger sua atuação, diria que foi um entusiasmado animador cultural,daqueles que fazem falta na vida universitária, pois, o entusiasmo muitasvezes supre a ausência de recursos e de condições, mesmo a falta deprofissionalismo. Profissionalismo que estava ainda em gestação nauniversidade brasileira. Sua atuação colocava-o além da conjunturaem que viveu: a da organização universitária brasileira com a Reformade Francisco Campos. Todavia, pela própria formação, não resistiuàquelas de 1970, afastando-se definitivamente da UFPR. Faleceu logodepois.

Termino este depoimento, com as palavras que pronuncieiquando da sua perda: A atuação contagiante do professor LoureiroFernandes assinala toda uma conjuntura da vida cultural paranaense.Fundador do Círculo de Estudos Bandeirantes, reunindo a intelectua-lidade católica do Paraná e fundador da Faculdade de Filosofia,Ciências e Letras. Nesta, foi o grande incentivador da Antropologia.Fez de Curitiba, um dos centros mais importantes do país, na pesquisaantropológica e arqueológica. Abriu caminhos, entusiasmou umageração de pesquisadores.

E digo hoje, oxalá a Universidade possa contar sempre e nosmomentos oportunos, com homens com as suas qualidades: dinâmico,instigante, criativo, entusiasta, um animador.

PROF. IGOR: Agradeço a sua participação valiosa nesta seriede depoimentos sobre a vida e obra do professor José LoureiroFernandes.

PROFA. CECÍLIA: Só me permita uma intervenção. Prezadoscolegas. Há alguns meses, consegui realizar a duras penas, pessoais,conjunturais e estruturais a coletânea dos esparsos da professoraAltiva Pilatti Balhana que também foi uma aluna do Loureiro e talvez osseus ensinamentos tenham lhe servido muito para essa visão maislarga da história que não apenas “Colombo descobriu a América”. Eutrouxe 20 exemplares com 3 volumes para a entrega aos presentesporque um dos primeiros trabalhos publicados pela professora Altivafoi sobre o fandango de Caiobá resultante de uma das excursões como professor Loureiro. Eu peço licença para me retirar porque eu já não

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Cecília Maria Westphalen

me sinto muito bem. Muito obrigada para vocês todos.**

PROF. IGOR: Os volumes da obra Un mazzolino de fiori serãodistribuídos imediatamente. Agradeço mais uma vez a sua participa-ção.

** A profa. dra. Cecília Maria Westphalen faleceu no dia 09 de março de 2004 (N. do Ed.).

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Centenário de Loureiro Fernandes:

LOUREIRO, O MESTRE

Margarida Davina Andreatta*

Nesta comemoração alusiva ao Centenário do Nascimento doilustre Professor Doutor José Loureiro Ascenção Fernandes agradeçocom emoção o convite para estar presente nesta homenagem de gran-de significação para mim, por ter sido sua aluna na Faculdade de Filo-sofia, Ciências e Letras do Paraná.

O dr. Loureiro foi mestre por excelência. É emocionante revivercom saudades o tempo de aluna e discípula, porque ele foi o grandeincentivador da minha carreira de arqueóloga no final da década de50, em Curitiba, e também o idealizador da formação de uma equipede arqueólogos junto à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras daUniversidade Federal do Paraná. Por sua iniciativa, com a colabora-ção dos arqueólogos franceses Joseph Emperaire e sua esposa AnnetteLaming-Emperaire, foram realizados cursos e pesquisas de laboratórioe campo, em sítios arqueológicos no litoral e interior do Paraná, dosquais participamos durante aproximadamente seis anos.

A Universidade Federal do Paraná deve-lhe a criação do Centrode Ensino e Pesquisas Arqueológicas, do Departamento de Antropolo-gia e, do Museu de Arqueologia e Etnologia e Artes Populares, no antigoColégio dos Jesuítas, em Paranaguá.

Foi um homem que visava as coisas, muito distantes da suaépoca.

Com seu verdadeiro espírito de pesquisa científica e interessepela inter-disciplinaridade promoveu, apesar das dificuldades, cursosde ciências correlatas com a arqueologia, sendo considerado como o“homem que abria caminhos entre as pedras”.

O seu idealismo contagiante pelas Ciências Antropológicas eArqueológicas, marcou minha trajetória até a presente data, no MuseuPaulista (Ipiranga) da Universidade de São Paulo, onde ingressei atra-vés de concurso em 1972, no Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE),como docente em nível de Pós-Graduação Strictu Senso e na criaçãodo Núcleo de Arqueologia da Universidade Braz Cubas (NAUBC), em

* Professora Doutora, Arqueóloga do Museu Paulista da Universidade de São Paulo.

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Mogi das Cruzes - SP. Com a aplicação desses conhecimentos, minis-trei cursos e palestras em diversos estados do Brasil. Através de seuapoio foi de grande valia os estágios, cursos e estudos que realizei noMuseu do Homem de Paris, na França, na Associação de ArqueólogosPortugueses, em Lisboa, na Espanha, Itália e em outros países.

O dr. Loureiro, foi um homem incansável, um exemplo de digni-dade como médico, cidadão e cientista. Educador reconhecido inter-nacionalmente, pela divulgação de seus trabalhos, e seus feitos, a suaobra permanece até hoje, no novo milênio.

É importante registrar, a criação, em sua homenagem, do Prê-mio José Loureiro Ascenção Fernandes, pela Sociedade de Arqueolo-gia Brasileira - SAB, cuja finalidade é incentivar estratégias pedagógi-cas para difusão ampla dos conceitos sobre a Arqueologia Brasileira.No ano de 2003, como vice-presidente da SAB, durante o XII Congres-so da Sociedade de Arqueologia Brasileira - Arqueologias da AméricaLatina, realizado em São Paulo, o citado prêmio foi entregue ao Museude Arqueologia de Xingó, na região de Canindé do Rio São Francisco,em Sergipe.

O dr. Loureiro estará sempre presente em nossos caminhoscientíficos. É impossível esquecer a impressão marcante dosensinamentos deixados pelo Mestre das Ciências Antropológicas.

Externamos cumprimentos aos organizadores pela iniciativadesta cerimônia ao homenageado e, como alguém disse, pelo seu di-namismo, inteligência e sentimento humanitário, Loureiro Fernandes éconsiderado o “homem síntese do Paraná”.

A história deixou em nossa memória quem foi o dr. Loureiro, oque de importante aconteceu e que, de tão importante, o tempo nãoesqueceu; nesta homenagem revivemos com saudades e emoção, opassado de suas realizações, encontrando motivos em acreditar paracontinuar, percorrendo o caminho do futuro com novos desafios quecomeçam agora...

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Margarida Davina Andreatta

DEPOIMENTO

Constantino Comninos*

Bom dia a todos. Quero agradecer o convite que me foiformulado pelo prof. Igor e gostaria de dizer que, após ouvir as palestraspronunciadas neste auditório nesta manhã, eu me sinto como ummalandro freqüentador de algum bar da Lapa, relembrando quando eumorei por uma temporada no Rio de Janeiro, e no meio de intelectuais,ainda que colegas, amigos, contemporâneos de faculdade, dessa nossaquerida Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UniversidadeFederal do Paraná.

Eu sempre digo que não sou phd; eu fugi de ser um phd, deixeias oportunidades passarem. Não é hora de me permitir uma catarsis,mas, confesso, estou arrependido e por isso, por força das circunstân-cias, passei a pertencer a uma outra categoria na área da pós-gradua-ção. Como estou sendo filmado, não posso dizer qual delas, principal-mente perante senhoras que aqui se encontram. O que quero dizer é aminha preocupação pelo que ouvi das comunicações sobre o dr.Loureiro, isto é, textos de alta significação metodológica e sustentadospor uma linguagem acadêmico-científica, que, desejo esclarecer, nãoconsigo chegar próximo à linguagem dos que me antecederam.

Eu confesso que não preparei nada semelhante; não prepareiporque vim aqui pensando encontrar outra maneira de expor as idéias,vale dizer, não vim preparado para o ambiente acadêmico com que medeparei; vim preparado para fazer um depoimento. Eu vou, então, falarcom o coração, vou procurar relatar alguns fatos, esparsos, coisas queme recordo, da convivência que tive o prazer de desfrutar com o dr.Loureiro, notadamente, como meu professor, e, algumas vezes, meuconfidente de alguns momentos.

Em primeiro lugar, relato aos amigos, que eu morava em PontaGrossa e vim estudar em Curitiba. Nesses primeiros anos de minhachegada em Curitiba, eu estudava no Internato Colégio Paranaense,

* Professor de Economia Política da PUCPR e, igualmente da UFPR até 1992, após 30anos de exercício contínuo. Mestre em Educação e Especialista em Gestão doConhecimento. Cônsul Honorário da Grécia em Curitiba, com jurisdição para o PR, SC e RS.

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onde terminei o curso ginasial. Minha família mudou para a Capital doEstado no início dos anos 1950. Meu pai adquiriu um apartamento narua José Loureiro, exatamente na frente da casa do dr. LoureiroFernandes, que era uma casa muito interessante, uma casa curiosa,parecendo uma “casa portuguesa, com certeza”. É uma lástima que oprogresso não tenha preservado algumas das residências daquelelogradouro. Naquele tempo, Curitiba era uma cidade cheia de repúbli-cas universitárias, ou, pensões e havia várias na rua José Loureiro.Dr. Loureiro além do mais, era médico da família, e eu o conheci aindajovem, nos meus 16 anos. Ali, naquela vizinhança, muitas vezespasseando pela rua, eu nunca imaginei que iria ser aluno do dr. Loureiro.Em 1954, tentando o vestibular de Engenharia Civil, não passando,compreendi com o tempo, que não era a minha vocação. Por influênciade um colega de colégio, prestei exame vestibular no Curso de CiênciasSociais na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidadedo Paraná, que funcionava no prédio da Faculdade Católica deFilosofia, cuja fachada se encontra em um dos quadros de formaturaexpostos nesta sala. Naqueles anos, era tradição ter quadros deformatura, esculpidos em madeira de lei, e que vinha significar apresença das pessoas que saiam desta casa de ensino superior. Aempresa de cosméticos Lá no Luhn, localizada na rua XV de Novem-bro, próxima à Barão do Rio Branco, era o ponto onde esses quadroseram apresentados à sociedade curitibana, onde, também, asdebutantes em seus anos teen dos clubes, também faziam parte dessesdestaques sociais.

Entrei para faculdade e, obviamente, no terceiro ano, passei afreqüentar as disciplinas da matéria de Antropologia, subdividida emAntropologia Física, Antropologia Cultural e Etnografia. Lembro queiniciamos o Curso de Ciências Sociais em 1954, com 8 alunos. Entre1956 e 1957, éramos três alunos. Em 1958, eu era o único alunomatriculado no curso. Assistia aulas das disciplinas comuns aos cursosda Faculdade com os colegas de outros cursos. Fui, provavelmente oaluno mais caro do país, naquele ano letivo, para os cofres públicos,com 7 professores catedráticos à minha disposição. Custo elevado, secompararmos o que hoje se propugna em matéria de custo-benefíciopara o Ensino Superior. Nem vamos comentar sobre o sucateamentoda universidade pois, iremos entrar em um campo minado. Entretanto,afirmo meu saudosismo daqueles tempos, da vida acadêmica, dos co-lóquios, e principalmente, dos cursos de extensão que o dr. Loureironos proporcionava.

Entre tantos professores que lecionavam no curso,especificamente na área da Antropologia, além do dr. Loureiro, lembro

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Constantino Comninos

do dr. Máximo Pinheiro Lima, de Valderez de Souza Mueller. Ainda fazparte de minha memória, a descrição sobre os índios Xetá, as Congadas,as Cavalhadas, os Sítios Arqueológicos, Sambaquis, Restauração doPatrimônio, Colégio dos Jesuítas, Fósseis, etc... Tudo isso eram notíciasno dia a dia da faculdade e coisas mais “chiques” como ter contato comas obras que relatavam sobre o Pithecanthropus erectus, o Sinanthropuspekinensis, o Homem de Neandertal e daí à fora. Franz Boas e aquelafarsa do Homem de Piltdown, que o dr. Loureiro já antecipava comouma provável farsa. Recentemente, li em uma revista, dessas que sepreocupam em divulgar curiosidades científicas, um artigo sobre esteassunto.

No terceiro ano, fui convidado para ser monitor da Cadeira deEstatística Geral e Aplicada do Curso de Ciências Sociais. No segun-do ano, saímos do edifício da Faculdade Católica e nos permitiramutilizar três andares do prédio do Curso de Economia deste conjuntodenominado da Reitoria, haja vista que este prédio, onde hoje nos en-contramos, ainda estava em construção. Dr. Loureiro tinha uma salinha,tímida para seus ideais. Vivia exigindo algumas coisas. Quando veiopara este edifício, ele dizia: - “Eu quero o andar inteiro”. O dr. Homerode Barros, diretor da Faculdade, cedeu-lhe apenas meio andar. E aícomeçou um dos desentendimentos, porque o dr. Loureiro queria o 6ºandar inteiro. Entre tantas controvérsias que o dr. Loureiro faziatransparecer a nós alunos, e gostava de cultivar, era estar sempre naofensiva. Desejava mais e mais, mais para atender o ensino, nada parasi. Não diria que eram questões de ordem “ideológica”. Dr. Loureiroestava acima, pois sempre agiu como um cientista e com conhecimen-to de causa dos conhecimentos que dominava. Inclusive, nas reuniõesda Congregação da Faculdade, do Conselho de Administração, doInstituto de Pesquisas, as polêmicas versavam sobre temas gerais enormalmente, sempre havia debates acalorados acerca do andamentoda Faculdade e normalmente, das reivindicações dos 14 cursosintegrantes à Faculdade.

Eu me lembro de muitos acontecimentos ocorridos nesta sala.Momentos esses que vivenciávamos todos nós, que vieram significarmuito para o bom andamento dos cursos. Neste espaço, nós participa-mos de muitas polêmicas e assistimos muitas defesas de teses. Estamesa, por exemplo, não tinha aparelhagem eletrônica que tem agora.Havia uma secretária tomando nota das ocorrências, eventualmente,alguém taquigrafando. As coisas melhoraram bastante desde quemuitos de nós, nesta casa, iniciamos nossa trajetória acadêmica.

No início do curso, muitas aulas de Antropologia eramprelecionadas no Círculo de Estudos Bandeirantes, numa sala contígua,

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Depoimento

logo na entrada onde hoje se encontra a porta de acesso ao auditório,que leva o nome de Euro Brandão. Naquela sala que mais parecia umcorredor, com cadeiras de madeira grudadas umas às outras,incômodas, aprendia-se muito naqueles anos de 1957, 1958 e 1959.

Uma das minhas lembranças, quando o Departamento deAntropologia já se encontrava instalado no 6º andar deste edifício, odr. Loureiro trouxe o professor Antonio Rubbo Muller, da Escola Livrede Sociologia e Política de São Paulo, para prelecionar um curso deextensão sobre Antropologia Social. Foi a primeira vez que nós tivemoscontato com os Elementos Basilares da Organização Humanafundamentados pelo professor Muller e desenvolvidas as idéias emseminário interdisciplinar utilizado naquela escola paulista. Nosanimamos bastante com a iniciativa. Dr. Loureiro levou o professorRubbo Muller para ver o mapa que ele tinha montado em vidro blindex,subdividido em várias partes. Ele disse: - “Aqui nós vamos colocartodos os grupos étnicos do mundo, para saber onde se encontrame facilitar o entendimento dos estudos antropológicos em umavisão globalizada”. Deve ter sido outra frustração do dr. Loureiro,porque ele não conseguiu ver seu mapa finalizado.

Depois que eu terminei meu curso nesta casa, 14 anos maistarde, estive em Paris e sem querer, dei de cara com o Museu doHomem. Fiquei encantado. E aí, eu me lembrei do dr. Loureiro, porqueele falava do Museu do Homem com muito carinho. Um médico que foià Paris para se especializar em Urologia, especializou-se, mas acabousendo mais antropólogo do que médico urologista, ainda que ganhas-se a vida como médico dessa área do saber. Trouxe para o Paraná aescola mais avançada em urologia do mundo. E instalou o primeirolaboratório na Universidade Federal do Paraná. Prova que tinha sempreidéias avançadas quando se tratava de ciência.

Lembro uma cena relatada pelo dr. Loureiro, ocorrida em umaformatura da Faculdade de Filosofia. Corria na cidade que o dr. Loureirofaria, como paraninfo, um discurso anticlerical e evolucionista,obviamente, naqueles anos, recém chegado à Curitiba, se encontravaà frente da Diocese, dom Manoel da Silveira Delboux. Dava-se signifi-cativa importância às colações de grau, naqueles anos, contandosempre com as mais destacadas autoridades. Estas solenidades faziamparte de um rol de coisas muito sérias, um ritual constante; não tinhaapito, não tinha buzina, não tinha nada que desagradasse os dirigentesdessas assembléias universitárias públicas, como vêm se verificandonos dias de hoje. Havia muita seriedade, notadamente, pelo teor dosdiscursos pronunciados em cada ocasião. Eu já dirigi várias colaçõesde grau nesses últimos 3 anos como decano na PUCPR, pelo Centro

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de Ciências Jurídicas e Sociais, e tive que me controlar para não mandarfechar o pano dos teatros onde essas solenidades se desenvolvem.Explico: sou do tempo antigo em matéria de respeito a gestão das or-ganizações universitárias. Continuando: o dr. Loureiro era o paraninfoda Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federaldo Paraná, portanto, pública e via de conseqüência, livre, diferente desua congênere confessional. Ao chegar ao auditório da Reitoria,encontrou dom Manoel. Aproximou-se do Bispo e dele ouviu: - “Dr.Loureiro eu soube que o prezado professor vai fazer um discursoevolucionista”. Nas entrelinhas do questionamento, o dr. Loureiroentendeu que o discurso atacaria as posições da Igreja. Respondeu:- “Olha dom Manoel; minhas origens católicas não permitem essetipo de manifestação, mas o senhor, melhor do que ninguém, pelasua cultura, sabe que o mundo tem evoluído”. Completando o diálogocom certa opinião que eu não consigo me lembrar qual foi, só lembroque dom Manoel retrucou com estas palavras: - “ Então o meu prezadoamigo é um estóico?”. - “Creio, dom Manoel, que se sua afirmativafor verdadeira, eu me encontro em muito boa companhia”, retrucouo dr. Loureiro. Subiram ao palco e o discurso marcou pela elegância epela clareza de idéias, recebendo de dom Manoel o elogio merecido.Ainda me lembro de algumas passagens desse discurso, pois, estavafundamentado em muitos dos textos modernos da Antropologia,utilizados pelo dr. Loureiro em nossas aulas.

Por outro lado, também me lembro que certa ocasião, estáva-mos no 6º andar, esperando pela professora Valderez, que não chegavae não tínhamos a chave para abrir a porta do Departamento. Ostelefones eram escassos. Dr. Loureiro desceu até a Secretaria noprimeiro andar, fez um telefonema e voltou bufando. Nessa altura dosacontecimentos, a professora Valderez chegou. E o dr. Loureiro,dirigindo-se à professora, disse: - “Pois é, professora; a senhora jáestava me fazendo voltar às minhas origens portuguesas, mas,como me considero um homem educado, não vou dizer em bomportuguês o que o meu pensamento está com vontade de lhetransmitir; eu estava pensando até em um daqueles palavrões bempesados para externar meu desagrado”. Ele era desse tipo; tinhaatitudes curiosas, não levava desaforo para casa e nunca se negou aresponder qualquer pergunta que se lhe formulassem, colocando o seuconhecimento à disposição do interlocutor.

Lembro a primeira vez que eu enfrentei uma sala de aula e quefoi na própria sala de aula, perante meus colegas que eu tinha queapresentar um trabalho. O dr. Loureiro geralmente não vinha quando aprofessora Valderez o substituia. Naquele dia, ele veio, e era exatamente

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Depoimento

no dia da minha apresentação. Semanas antes, a professora Valderezme chamou e disse: - “Você que é grego escolha um texto de algumautor clássico; tomo a liberdade de sugerir para você a História deHeródoto; localize aí algum texto que trate sobre as muralhas e falesobre elas, o que representavam, qual o tipo de construção e outrascoisas que você localizar e que estejam ligadas à matéria e as relacio-ne; utilize outra bibliografia para enriquecer o texto”. Lá fui eu à cata deHeródoto e suas muralhas. Procurei no livro todo e, como não havia olivro em língua portuguesa, só em espanhol, fiquei mais tonto ainda.Com todas as dificuldades da época e pelas minhas limitações,apresentei o trabalho lá na frente, perante todos os colegas. O dr.Loureiro chegou e sentou em uma das carteiras da sala. E anotava otempo todo, o que, não sei. Nem tive a coragem de perguntar. No final,o dr. Loureiro fez um comentário e foi embora. - “Você entendeu amensagem do chefe?”, disse-me a professora Valderez. Acho que não,respondi. - “Então preste a atenção: ele quis dizer e eu reitero, quevocê tem jeito para professor”. Não deu outra: estou há 44 anos nomagistério. Dois anos depois de formado, o dr. Loureiro indicou-mepara um mestrado na Escola de Sociologia e Política de São Paulo,com bolsa da CAPES. Antes disso, colocou-me, já que eu estavacolaborando como monitor de Estatística, junto ao professor Emperaire,para classificar os resíduos fósseis dos sambaquis no MuseuParanaense.

Eu devo ao dr. Loureiro muitas das minhas mais importantesatitudes acadêmicas. Devo a ele o gosto pelas Artes, principalmentepelo folclore. Devo a ele a minha “quase” vocação histórica e, estáclaro que sou só um curioso da história e não um historiador. Devo aele a minha curiosidade geográfica que me levou aos caminhos dageopolítica, que é um tema ao qual eu me dedico também comoestudioso e que hoje me permite circular com certa desenvoltura nosconceitos da tão apregoada “era da globalização”, cujo termo nãoaprecio pois me cheira imperialismo ou melhor, neocolonialismodisfarçado. Infelizmente temos que conviver com as terminologias paranão nos acusarem de “fora da modernidade”.

O seu incentivo sempre me levou a cumprir certas tarefasintelectuais, aperfeiçoando o gosto no traço dos caminhos das culturas.Estes fatos todos me tem levado à melhor cumprir há mais de doisanos, as funções de Cônsul Honorário da Grécia em Curitiba, comjurisdição para os três estados do sul brasileiro. Muitos acontecimen-tos que até hoje fazem parte de minha vida, eu lembro com saudadesdos ensinamentos do meu professor de Antropologia. Principalmente,porque ele me ensinou a gostar das boas obras; sua maneira de ser,

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me ensinou em seu espelho, a não aceitar a injustiça e a polemizar naprocura da verdade, de preferência com base científica.

Um dos episódios que criou uma polêmica danada, muitos devocês devem estar lembrados, foi quando rasgaram umas páginas daRevista Anhembi, editada em São Paulo e dirigida por Paulo Duarte,que tratava de um assunto estranho, algo assim como que anticlerical.Não lembro de detalhes, mas, foi uma “pauleira” aqui na universidade.Passávamos nos corredores e só se falava no assunto. Nos Conselhosfoi uma “brigaiada” que não teve tamanho. Dr. Loureiro colocava ascoisas, ardorosa e polemicamente como era seu estilo de falar. Noacontecimento, também tomou parte o padre Jesus Moure. Havia gruposde todas as maneiras diferenciados. Quero dizer com este relato, quea Universidade que nós vivenciamos era uma Universidade de vidaacadêmica muito intensa, voltada para uma literatura dos clássicos, osantigos e os modernos. Dr. Loureiro me ensinou que nos clássicos estáo início das coisas, - “Vocês têm que procurar os clássicos, nosclássicos está o início e a base de tudo”, afirmava ele sempre quea oportunidade aparecia.

Alguns de vocês, a geração que está aqui, ainda têm a oportu-nidade de chegar em uma livraria, qualquer que seja no Brasil de hoje,e encontrar possivelmente uma centena de livros de Antropologia,outra centena de livros de Economia Política, outras centenas de livrosde Sociologia e daí à fora. Quando eu era assistente do dr. Artur noinício da carreira, havia quatro livros de introdução à economia políticano Brasil, dos quais, dois publicados por franceses e que eramprofessores da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo.Paul Hugon, Roger Bastide, Jacques Lambert, enfim, nomes destenaipe, lembro de outros tantos, que faziam parte do nosso cotidiano.Líamos em espanhol, as únicas edições que nos chegavam, como aEspasa Calpe, a Fondo de Cultura Econômica do México, no mais, aliteratura era escassa, as pesquisas eram limitadas, nós vivíamosquase que numa província, procurando encontrar eventualmente algumaobra que vinha de fora pela mãos de algum professor. O que vicejavaem Curitiba, eram as grandes bibliotecas particulares de professores.Eu segui o exemplo e, ao mudar da minha casa, onde morei 40 anos,para um apartamento, doei 4.000 mil livros. Esse era o exemplo que euaprendi, conversando com homens como o dr. Loureiro; professoresda Universidade Federal do Paraná, alguns magistrados, como asbibliotecas pessoais do professor Hostílio de Araujo, Bento Munhoz daRocha Neto, Loureiro Fernandes, Manoel Lacerda Pinto e tantosoutros. Eram bibliotecas gigantescas contando com 4, 5 e mais milhareslivros e revistas. A biblioteca da Faculdade era considerável. Mas, havia

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Depoimento

as de cada departamento, com responsável próprio. Na doDepartamento de Antropologia, encontrava-se quase tudo o que demelhor tinha sido editado. Quero crer que o dr. Loureiro é que aalimentava. Fui único aluno do desembargador Lacerda Pinto, meuprofessor de Ciência Política. Consultei o único exemplar da obra deBurdeau em sete volumes, o Tratado de Ciência Política, que odesembargador me emprestava, um volume de cada vez. Claro quenão li os sete, mas há muitas anotações minhas nesses livros a lápis.Um dia eu perguntei ao seu genro, o professor Piera sobre a coleção eo que ele pretendia fazer com a obra de Burdeau!... Respondeu-meque iria pensar se eu poderia ter a coleção. Ainda não tive resposta.Mas, assim era a nossa casa de estudo.

Com o dr. Loureiro, não era diferente. Manuseei Franz Boas eAlfred Kroeber com regularidade. Naqueles anos, não se falava emMargarete Mead, que tive a oportunidade de conhecer em Delos, Grécia,em um seminário da Sociedade Ekística Internacional. O que ficoudaquele tempo, e que podemos dizer, é que tínhamos “quase” aulasparticulares, com oportunidade de estar em seminário permanente, livrocá, livro lá, opiniões cá, opiniões lá e, algum toque de política universi-tária para distrair o tempo. Para facilitar, dado que éramos poucosalunos, juntavam-se as turmas das disciplinas comuns aos cursos.Assim, na Sociologia, Economia Política e quejandos, havia uma misturade alunos de quase todos os cursos. A matéria era dada em um anoletivo e havia a complementaridade no ano seguinte.

O dr. Loureiro me levou um dia para conhecer o MuseuParanaense. Lá eu encontrei o professor Joseph Emperaire, comorelatei há pouco, que faleceu num desmoronamento numa caverna naPatagônia. Foi o primeiro trabalho que eu fiz ligado a resíduos fósseisdos sambaquis, classificando-os estatisticamente. Como eu ajudavavoluntariamente a professora Zélia Milleo Pavão na cadeira de Estatís-tica Geral e Aplicada, era monitor, pude realizar o meu primeiro traba-lho acadêmico, sob a orientação de um professor do Museu do Homemde Paris. Aprendi muito com o professor Emperaire, pessoa simples ecautelosa. Obrigou-me a ler um artigo em francês sobre o assunto dapesquisa que estava realizando e, neste texto é que me baseei paraclassificar os resíduos. Dr. Loureiro procurava encontrar as pessoas eficava ao lado delas o tempo todo. Não sei que horas ele estava noconsultório, pois, dedicava-se mais à universidade.

O próprio dr. Loureiro dizia que ele não era um sujeito muitofácil, no entanto, suas idéias eram sempre idéias claras mas de umconteúdo primoroso. A forma dele escrever era uma forma muito direta,honesta. Isso marcou bastante a nossa geração daqueles anos.

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Constantino Comninos

Uma outra ocasião, me lembro, que ele estava falando sobreos Xetá, e conversávamos sobre a comida que os pesquisadoresproduziam no acampamento. Cada participante demonstrava suashabilidades gastronômicas. Ele falou num risoto, confesso que até hojeestou sentindo o gosto desse risoto e não sou capaz de dizer a receita,porque era um risoto tropeiro, produzido no acampamento pra atenderàs necessidades. Nessa ocasião ele falou sobre um diálogo travadocom um dos índios que eles estavam tentando entrevistar, e nosdisse: - “Vocês não sabem a dificuldade que existe para entrar nacabeça de um indivíduo que você não domina o referencial”. Tantoque ele chamou o Aryon Dall’Igna Rodrigues que escreveu o primeirodicionário da Língua Xetá, um trabalho maravilhoso, que me fezmanter um contato estreito com o Aryon, no Departamento deAntropologia, após o seu retorno da Alemanha, onde permaneceu porcinco anos aprendendo línguas africanas. Eu dizia para ele: - “Quemaluquice a sua, embrenhar-se nesta tarefa”. Com o tempo aprendique ser antropólogo exige uma dose de maluquice organizada. Poresta razão não permaneci com o dr. Loureiro em minhas pesquisas,preferindo o campo da Economia Política e História das DoutrinasEconômicas.

Dr. Loureiro era um homem simples, um homem, como se diz,terra a terra. O sexto andar era uma beleza. Tudo organizado.Gavetas, livros, gabinetes. Dava gosto freqüentar a área. Criougabinetes de professores, semelhantes aos das universidades de paíscivilizado. Eu pensava com meus botões: quando é que nós vamoschegar a ter gabinetes individuais?!... Dr. Loureiro sabia o que queria.Ele queria uma Universidade moderna, ativa, com nome de Universidadee avançada, evoluída. Não era só na Faculdade de Filosofia que elepensava. Ele era um homem do mundo, um homem que dominavalínguas, um homem que tinha um conhecimento profundo da realidadesocial do país e do ser humano.

Finalizando, quero dizer o seguinte: fui saudosista em meudepoimento?!... Provavelmente. Procurei trazer um relato com carinho,pois, minha passagem por esta casa iniciou com a inauguração desteprédio, e a primeira turma que se formou após a nossa mudança paracá. E a primeira turma que teve a oportunidade de ter a colação degrau no Auditório da Reitoria. Éramos dois ou três alunos de matemá-tica, muitos de História e Geografia. Como já disse, na época, eu era oúnico aluno do Curso de Ciências Sociais na complementação Didática.E tenho muito carinho por esta casa. Estive presente na casa porquatro decênios. E sempre passo por aqui quando o tempo me permite.Passei por fases polêmicas da minha vida, num departamento polêmico

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Depoimento

por natureza, também entre grupos, não vou chamar de antagônicos,divergentes sim, com idéias sadias e que lutávamos, cada qual a seumodo, por tudo aquilo que nós herdamos de professores como oprofessor Loureiro, que nos tratava com muito carinho paternal, nãosomente como professor. Fazíamos parte de uma Faculdade deFilosofia, Ciências e Letras que um decreto acabou com ela, nostransformando em Instituto, e passamos a ser Setor. O saudosismo meleva a enaltecer a nossa querida Faculdade de Filosofia, Ciências eLetras, formadora de Bacharéis - pesquisadores - e Licenciados -professores para o ensino médio, cuja idéia foi possível de implantação,pela vontade política de homens como o dr. José Loureiro Fernandes.Esta casa deu os primeiros passos para a formação de professorescompetentes em Geografia, História, Línguas inglesa, francesa, alemã,línguas clássicas como o grego e o latim, Biologia, Matemática, HistóriaNatural, Ciências Sociais. De repente, tivemos uma ruptura e mepergunto: será que estamos ainda preparando pessoas que têm aoportunidade que tivemos? Minha percepção me leva a entender quesomos os iniciados de um processo e que delegamos ao futuro as linhasde conduta herdada pelos nossos mestres, como o dr. Loureiro, nacerteza que ele está ainda entre nós a nos inspirar.

Muito obrigado pela presença, pela atenção. Desculpem-meeu não ter trazido algo científico pra vocês, como os que me antecede-ram, para falar de um homem que era um mestre da ciência.Enfim... falou mais o coração.

Obrigado pela paciência em me ouvir.

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Constantino Comninos

RELEMBRANDO JOSÉ LOUREIRO ASCENÇÃOFERNANDES, UM SEMEADOR

Igor Chmyz*

Sobre o homenageado tive a oportunidade de me manifestarrecentemente. Convidado pelo prof. Antônio Garcia, que organizava olivro Dr. Loureiro Fernandes, Médico e Cientista, elaborei o artigointitulado “José Loureiro Fernandes e a arqueologia brasileira”. O livrofoi publicado em 2000 e teve uma segunda edição no mesmo ano.

Como salientei na ocasião, o artigo procurou traçar a trajetóriado prof. Loureiro Fernandes no campo da Arqueologia, tendo comobases principais o Círculo de Estudos Bandeirantes, a Faculdade deFilosofia, Ciências e Letras do Paraná, o Museu Paranaense e aUniversidade Federal do Paraná. Procurou-se destacar, ainda, a sualuta para a proteção do patrimônio arqueológico.

Apesar dos quase 20 anos de convivência, confesso que sentialguma dificuldade para alinhavar a sua trajetória e expôr o seu legado.Além de recorrer à memória, necessitava de referenciais concretos paraembasar a empreitada. A literatura produzida por Loureiro Fernandesnão foi encontrada reunida em nenhuma das instituições que criou oufreqüentou. Os 54 títulos agora mantidos na biblioteca do Centro deEstudos e Pesquisas Arqueológicas da Universidade Federal do Paraná- CEPA/UFPR, tratando de sítios arqueológicos, índios, museus,história, geografia e folclore foram garimpados nas várias bibliotecasespecializadas da Universidade Federal do Paraná, Museu Paranaense,Círculo de Estudos Bandeirantes e Biblioteca Pública do Paraná, assimcomo em bibliotecas particulares.

A produção mais instigante de Loureiro Fernandes, porém,embora fragmentada, está contida nos inúmeros ofícios, cartas, relató-rios, discursos, entrevistas concedidas a periódicos, palestras e artigosnão publicados, arquivados em diversas instituições. Essa dispersãodocumental, que dificulta a pesquisa e a coleta de dados evidencia,por outro lado, o seu dinamismo e interação com os locais freqüentados.

* Professor do Departamento de Antropologia e diretor do Centro de Estudos e PesquisasArqueológicas/UFPR.

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A produção arquivada é a que expressa com mais clareza oseu pensamento, seus projetos e anseios e, que documentam osembates travados em prol dos seus ideais. Muitos desses documentosretratam as frustrações que o levaram a interromper bruscamente umempreendimento perseguido com denodada dedicação. A análise dessadocumentação ainda está por ser feita.

Para prestar este depoimento, pincei acontecimentos e impres-sões decorrentes da rica convivência que tive com o homenageado.Não consegui rememorá-los de forma seqüencial, pois são muitos evariados os enfoques; para que alguns deles pudessem ser melhorentendidos tornou-se necessário um detalhamento, o que ocasionou ainevitável descontinuidade.

Quando conheci o prof. Loureiro, em 1959, ignorava o alcanceda sua obra. Eu já havia visitado o Museu Paranaense da rua BuenosAires, nº 200, levado de bonde por minha mãe, quando em férias emCuritiba e, mais tarde, quando cursava o Científico no Colégio Estadualdo Paraná. Talvez, em algumas dessas ocasiões, tivesse com elecruzado nas salas de exposições, no pátio, ou nas escadarias do antigocasarão do Cel. Manuel Macedo.

Em 1959, entretanto, quando naquela Casa fui recebido peloprof. Oldemar Blasi, comecei a me inteirar das intensas atividadesarqueológicas incentivadas pelo prof. Loureiro. Fiquei sabendo que umcurso coordenado pelo arqueólogo norte-americano Wesley R. Hurtestava em andamento e que outro, prelecionado pela arqueólogaAnnette Laming, estava iniciando. Eram cursos de pós-graduaçãoorganizados pelo CEPA, órgão por ele criado, em 1956, na UFPR.

As práticas de laboratório dos cursos transcorriam nas instala-ções do Museu Paranaense. Por isso conheci, na ocasião, além dosarqueólogos citados, Margarida Davina Andreatta, Maria José Menezes,José Wilson Rauth, Maria da Conceição de Morais Coutinho eWaldemiro Bley Júnior, alunos dos cursos.

Ouvi, também, referências aos arqueólogos Adam Orssich,Elfriede Stadler Orssich, Joseph Emperaire e Louis Pierre Neuville, quetrabalharam na Universidade por iniciativa do prof. Loureiro. Nãocheguei a conhecê-los mas, da sua produção, me inteirei posterior-mente. O prof. Emperaire havia morrido, em 1958, durante escavaçõesna Patagônia Chilena. O prof. Neuville teve uma atuação passageira euma relação política tumultuada com o prof. Emperaire, exigindoenérgica interferência do prof. Loureiro.

Eu havia me aproximado do Museu Paranaense porque,rompendo com o projeto familiar de seguir a carreira médica, resolveraabraçar a arqueológica. Por outro lado, desejava conversar com alguém

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sobre as coleções de peças arqueológicas reunidas em 1955 noabrigo-sob-rocha Casa de Pedra, em União da Vitória, minha cidadenatal e, em 1958, entre as ruínas de Ciudad Real del Guayrá, uma vilaespanhola fundada em 1557, na margem do rio Paraná.

Meu interesse pela arqueologia vinha desde a infância e haviasido despertado pelos livros que lia na Biblioteca Municipal. Mais tarde,passei a freqüentar as bibliotecas que existiam no Ginásio São José,em Porto União e, no Colégio Estadual Túlio de França. Possuía,inclusive, os célebres Deuses, túmulos e sábios, de C. W. Ceram e ABiblia tinha razão, de W. Keller. Eram meus livros de cabeceira.

Permaneci no Museu Paranaense executando voluntariamen-te algumas tarefas orientadas pelo prof. Blasi, como limpeza, marcaçãoe restauração de peças e, produzindo ilustrações para as suaspublicações. No mesmo ano de 1959 acompanhei o prof. Blasi naspesquisas que o CEPA estava patrocinando nas ruínas de Villa Ricadel Espíritu Santo. Este estabelecimento espanhol fôra implantado em1570, no médio rio Ivaí. Ao prof. Blasi devo a minha iniciação científica.

No ano seguinte fui convidado pelo prof. Loureiro para perma-necer nas dependências administrativas do CEPA, situadas no 6º andardo Edifício D. Pedro I, onde hoje funciona a Secretaria do Departamen-to de História. Conheci as modernas instalações do Departamento deAntropologia, por ele fundado em 1958, no ano da inauguração doprédio.

Comentava-se que, para a sua edificação, fôra utilizado umprojeto arquitetônico já implantado em outra universidade federal.Significaria o aproveitamento de um projeto existente para aplicaçãode uma verba disponível e que não poderia esperar o desenvolvimentode outro. O fato é que, em 1969, ao proferir uma conferência junto aoSeminário de Tropicologia dirigido por Gilberto Freyre conheci, emRecife, um prédio semelhante ao nosso D. Pedro I. Passei a entenderporque ele é tão frio!

Admirei-me com os gabinetes dos professores, com asbibliotecas especializadas e o Seminário Departamental, um anfiteatrocom tela para projeções cinematográficas, que surgia assim que doisquadros-negros eram abaixados, projetor de cinema sonoro, dediapositivo, epidiascópio, gravador de fita, mapoteca situada nosarmários laterais embutidos e dispositivos para a sua exposição aoslados da tela. Em um dos cantos da frente da sala, um esqueleto humanoestava disposto articulado e protegido por armário envidraçado. Tudoà mão para ilustrar uma aula ou palestra.

Na área central do Departamento havia uma ampla sala, queera utilizada para as exposições temporárias, por ocasião do “Dia do

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Relembrando José Loureiro Ascenção Fernandes,

Índio” e da “Declaração dos Direitos Humanos”. Em uma das paredesdesse salão o prof. Loureiro mandou instalar um gigantesco painel devidro. Nele, um Mapa Mundi foi desenhado e, durante muito tempo, oartista plástico Christoph assinalou as línguas conhecidas, conforme aclassificação de Cestmir Loukotka.

Figura 1. Visita do presidente Juscelino Kubitschek às dependências doDepartamento de Antropologia por ocasião da inauguração dos prédiosda Reitoria e Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFPR, em 17 deoutubro de 1958. No centro, em animada conversa com o presidente, figurao prof. Loureiro. Logo atrás, estão o governador Moysés Lupion e o reitorFlávio Suplicy de Lacerda (Fonte: SIPR. Arquivo do CEPA/UFPR).Durante o governo Kubitschek o prof. Loureiro, designado por Portariado Ministério dos Negócios da Agricultura, integrou a comissão especialque elaborou a minuta do projeto de lei destinado à proteção do patrimôniopré-histórico e arqueológico nacional. A lei nº 3.924 resultante, foipromulgada em 1961, pelo presidente Jânio Quadros.

O projeto original do painel, que deveria ser executado em 1958por Rodolpho Doubek, previa um suporte de madeira compensada. Noevoluir das idéias, o suporte acabou sendo de vidro. Permitiria, essasolução, o destaque das famílias lingüísticas através de iluminaçãopor spots instalados entre o painel e a parede.

O cartógrafo Doubek confeccionou vários painéis para oDepartamento de Antropologia e para o futuro Museu de Arqueologia e

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Artes Populares; para o CEPA produziu dois, localizando os principaissítios arqueológicos no Paraná e Brasil em 1961. Estes ainda cumprema sua função na instituição.

As exposições antropológicas eram alimentadas, principalmen-te, com as peças reunidas durante as pesquisas realizadas pelaCátedra, desde a fundação do Instituto de Pesquisas na Faculdade deFilosofia e também com algumas do Museu Paranaense, do períodoem que o prof. Loureiro atuou na sua reorganização. O enriquecimentodas coleções etnográficas deveu-se, também, ao cinegrafista VladimírKozák que, articulado pelo prof. Loureiro, realizava viagens à Amazônia.

Figura 2. Exposições temporárias eram organizadas pelo prof. Loureiro,no Departamento de Antropologia por ocasião do “Dia do Índio” e da“Declaração dos Direitos Humanos”. O detalhe apresentado refere-se àexposição franqueada ao público em 19 de Abril de 1960, tendo comotema “Os índios e suas línguas”. No canto superior direito, figuraparcialmente o painel de vidro assinalando as línguas faladas no Mundo(Arquivo do CEPA/UFPR).

As exposições eram freqüentadas por alunos da casa e dasescolas da região Metropolitana.

Outra sala que chamava a atenção era a que recebeu trata-mento acústico e destinava-se às pesquisas de etnomusicologia elingüística. Era conhecida como “Câmara de Som”. A sua construção

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Relembrando José Loureiro Ascenção Fernandes,

Figura 3. O prof. Loureiro recorria, frequentemente, à mídia para difundiros resultados de pesquisas ou outros acontecimentos nos campos daAntropologia e Arqueologia. A nota veiculada pela Gazeta do Povo, em 20de Abril de 1963, trata da exposição sobre “Adornos indígenas”, noDepartamento de Antropologia. Na reprodução, entre outros aparecem, àdireita do prof. Loureiro, as professoras Pórcia Guimarães Alves, JungleMaria Pimentel Daniel, Eny Maranhão, Marília Duarte Nunes, esta suacolaboradora nas exposições do Museu Paranaense, Departamento deAntropologia e Museu de Arqueologia e Artes Populares e Cecília Maria VieiraHelm (Fonte: Gazeta do Povo, 20 abril de 1963, Arquivo do CEPA/UFPR).

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foi orientada pelo prof. Aryon Dall’Igna Rodrigues. Nela foram estuda-dos a língua, contos e cantos dos índios Xetá, registrados em rolos dearame de aço com um gravador de corda.

Havia, ainda, a sala do café, que era, na verdade, a oficina deapoio às exposições. Nessa sala, por alguns momentos da manhã e datarde, todos se reuniam para uma conversa descontraída. Nessasocasiões o prof. Loureiro costumava relatar episódios inusitados desuas pesquisas e da sua vivência política, inclusive na Universidade.Havia sempre tempo para uma rápida piada, indefectivelmenteacompanhada por suas sonoras gargalhadas.

Ao lado da sala do café existia outra que, além das instalaçõessanitárias, possuía chuveiros. Estes eram utilizados por pesquisado-res quando retornavam do campo e precisavam, em seguida, proferiraulas.

O gabinete do prof. Loureiro era o primeiro à esquerda, naentrada do departamento. Nele havia uma mesa com sua cadeira eoutra para visitante e, um sofá. Em um armário embutido que cobriatoda a parede de trás, estavam guardados em caixas de madeira, crâniose ossos humanos de várias procedências. Uma biblioteca e arquivoscompletavam o mobiliário da sala. Muitos dos livros existentes nabiblioteca eram seus e, para evitar futuros dissabores, traziam umcarimbo que esclarecia: “Livro depositado pelo Dr. Loureiro”.

Mantinha no seu gabinete a maleta de médico; apesar de nãomais clinicar, ali atendia os seus já poucos antigos pacientes.Costumava, também, orientar pessoas do Prédio que o procuravamcom sintomas de doenças para tratamentos especializados. Chegou aprestar os primeiros socorros a professores acometidos de mal súbito.

O Departamento tinha um só telefone instalado ao lado da salade café. Para agilizar o seu uso pelos vários professores e funcionári-os, ao seu lado mandou instalar campainhas que, por meio de códigos,alertavam a pessoa solicitada. No seu gabinete, outra campainha serviapara convocar o secretário.

Fora do espaço do Departamento ficava o Gabinete deLingüística, ocupado pelo prof. Aryon; situava-se no 3º andar do prédio.Em 1963, o ensino da Língua Tupi foi retirado do Departamento porque,nas palavras do prof. Loureiro, “nem a direção da Faculdade deFilosofia nem a reitoria da Universidade entenderam a sua relaçãocom a antropologia”. Em conseqüência, o prof. Aryon mudou-se paraa Universidade de Brasília.

Tudo isso deixou de existir ou foi modificado, face às novasnecessidades ou enfoques do departamento. O painel de vidro, porexemplo, que nunca foi concluído, acabou quebrado acidentalmente.

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Figura 4. Organograma do Departamento de Antropologia elaborado peloprof. Loureiro no início da década de 1960. Foi rascunhado a lápis, nascores vermelha e azul, no verso de uma folha de papel jornal que traz, noanverso, os títulos para as palestras da profa. Annette L. Emperaire: 1º“Comunicação dos resultados das escavações arqueológicas realizadasnos meses de julho, agosto e setembro de 1962” (título definitivo a serresolvido); 2º “Pinturas rupestres pré-históricas da França e Espanha”(ilustrada com diapositivos). Uma nota informa que “a equipe retornaráde Manoel Ribas no dia 24 do corrente mês, e permanecerá em Curitibaaté o dia 29 do mesmo”. Tratava-se de um cartaz convocando interessa-dos para palestras da arqueóloga Annette Laming-Emperaire, com dadosde primeira mão no caso de Manoel Ribas (gruta do Wobeto).Na época da execução do Organograma, o Museu Paranaense ainda estavasob mandato da UFPR e ele o vinculava ao Departamento como umaestrutura possuidora de salas de exposições, material de estudo (peças ebibliografia), meios de transporte e de publicação de trabalhos através doseu periódico. Ligava-o, também, ao Museu de Arqueologia e ArtesPopulares de Paranaguá, pelos mesmos motivos. O Museu de Paranaguá,por sua vez, aparece interligado ao que ele chamava de “AcampamentoPorto de Passagem”, um posto avançado que estava instalando na margemda baía de Guaratuba, com barcos motorizados e infra-estrutura básicapara a pesquisa em sítios arqueológicos e, à ligada às culturas tradicionais.Entendia os dois museus como veículos da antropologia aplicada àeducação popular.Ao Departamento estavam relacionados, ainda, o Salão de Exposições(para educação popular), os Boletins (para a divulgação da produ-ção científica), o Seminário Departamental (com seus recursos audio-

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Passei a ajudar na montagem das exposições temporárias doDepartamento e na permanente do Museu de Arqueologia e ArtesPopulares de Paranaguá, outra casa criada por Loureiro Fernandes noâmbito da Universidade. Por essas tarefas recebia remuneração, o quepossibilitou a minha sobrevivência e a dedicação ao estudo e àspesquisas.

Para a montagem das exposições no Museu de Paranaguáutilizávamos os finais de semana, já que os chamados dias úteis eramocupados com as outras tarefas em Curitiba. Quase todos os integran-tes do Departamento e do CEPA estavam engajados a esse projeto.Juntamente com o prof. Loureiro, viajávamos em carro da Universida-de e, no Museu, cada um cuidava de sua área. O almoço transcorria noantigo Mercado Municipal, cujas mesas, a seu pedido, eram arruma-das para acomodar toda a equipe. Trabalhava-se para, conforme a suaconcepção, implantar um “roteiro de técnicas, partindo das técnicaspré-históricas de lascamento de lítico, focalizando a sua sobrevi-vência e a existência de outras próprias nas comunidadesindígenas brasileiras para, por fim, atingir a tecnologia popularda era pré-industrial”.

O prof. Loureiro permitiu que eu assistisse as últimas aulas doWesley R. Hurt e as de outros cursos do CEPA, mesmo antes de iniciaro meu curso de graduação ou de concluí-lo, em 1963. Neste ano eu oajudava, como monitor, nas disciplinas de Arqueologia Pré-Histórica eEtnografia do Brasil. Em 1964, por sua indicação, assumi essasdisciplinas como instrutor voluntário.

A minha vida estudantil transcorreu em um período de políticaconturbada. Freqüentei, a partir de 1960, o Curso de Geografia eHistória nesta Universidade; fiz o bacharelado e a licenciatura. A minhaturma foi a última reunindo as duas áreas. As seguintes tiveram deoptar por Geografia ou História. Para a profissão que abracei obtive,no regime antigo, uma base mais sólida.

Ao iniciá-lo, o país ainda era governado por JuscelinoKubitschek. Em janeiro de 1961, assumiu o presidente Jânio Quadros,que renunciou em agosto do mesmo ano. No mês seguinte, ovice-presidente João Goulart passou a governar, mas com poderes

visuais), a Câmara de Som (para o ensino e pesquisa) e, os setores deAntropologia Física, Etnografia Geral, Etnografia do Brasil e Língua Tupi.Cada setor possuía gabinetes com instrumentais, bibliotecasespecializadas, acervos e arquivos. Ao Setor de Etnografia Geral, ligou oGabinete de Artes e Tradições Populares e o Gabinete de ArqueologiaPré-Histórica, que incorporou a disciplina de Arqueologia Pré-Históricamantida pelo CEPA/UFPR até 1959 (Arquivo do CEPA/UFPR).

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Relembrando José Loureiro Ascenção Fernandes,

limitados devido à implantação do parlamentarismo. No início de 1963,com o fim do parlamentarismo, João Goulart adquiriu poderes plenoscomo presidente. Entre março e abril de 1964 aconteceu o golpeintitulado “civil-militar”, que perdurou por mais de duas décadas,caracterizando-se como um regime autoritário.

Essa situação refletia-se no ambiente estudantil e no de todasas categorias funcionais da Universidade. Aconteceram muitaspasseatas, greves e hostilidades por parte de alunos contra professo-res tidos como autoritários. Meu primeiro ano como graduado coincidiu,portanto, com a implantação da ditadura. Nunca fui atingido diretamentepor esse regime porque nunca tive tempo para me envolver com apolítica partidária, mas, tendo como estagiários alunos e ex-alunos queatuavam politicamente na oposição, fui várias vezes alertado para apossibilidade de existirem pontos de escuta nas dependências doCEPA.

Em 1968, quando foi destruído o busto do reitor Flávio Suplicyde Lacerda no pátio da Reitoria, ao me deter para observar o estrago,fui advertido por funcionários que, de uma casa situada em frente, umaequipe do DOPS estava fotografando pessoas que se aproximavam dobusto, especialmente as expressões que exteriorizavam.

Lembrei-me que, após a ereção do monumento, o prof. Loureirohavia comentado para o homenageado que “não dava certo serestátua em vida”.

Em 1970, durante pesquisas arqueológicas, tivemos oacampamento instalado na confluência do rio Pirapó com o rioParanapanema vistoriado por agentes federais. Pessoas de JardimOlinda, uma cidade do outro lado do rio Pirapó, intrigadas com as luzesnoturnas do acampamento, denunciaram a existência de uma possível“célula comunista”.

Quando, em 1975, implantou-se o Projeto Arqueológico Itaipupara o salvamento de sítios que seriam afetados pela formação doreservatório da UHE Itaipu, fui convocado pelo reitor Theodócio Atherinopara prestar esclarecimentos. As minhas explicações ao reitor e a umcoronel do DOPS devem tê-los convencido do caráter puramentecientífico da atividade, pois não fui mais importunado.

O prof. Loureiro era considerado muito rigoroso pelos seusalunos. Todos sabíamos que, antes de sermos admitidos na sala deaula em dia de prova, teríamos que passar por um “vestibular”: esperá-vamos no corredor e, cada um, na porta entreaberta, deveria respondera uma pergunta aleatória que ele fazia sobre o programa. A respostaerrada significava impedimento e a necessidade de mais estudo para apróxima data de prova.

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Para as aulas, costumava esquematizar o assunto a serdesenvolvido, utilizando um ou ambos os quadros; serviam-lhe de baseas fichas que mantinha arquivadas no seu gabinete. Nós copiávamos oesquema e depois, à medida em que o prof. Loureiro discorria,complementávamos as anotações. As aulas eram geralmenteteatralizadas, pois ele gostava de demonstrar o funcionamento deartefatos arqueológicos e etnográficos. Foi espetacular, por exemplo,uma encenação que fez do uso da zarabatana desferindo a seta, comforte sopro, contra a cortina da sala.

Tendo continuado as pesquisas na área do abrigo-sob-rochade União da Vitória, o prof. Loureiro organizou em 1962, um semináriono Círculo de Estudos Bandeirantes para que eu apresentasse osresultados. O evento aconteceu no auditório daquela Casa e contoucom a presença dos meus professores do Departamento de Antropolo-gia e, também, das minhas professoras Cecília Maria Westphalen eAltiva Pilatti Balhana, do Departamento de História.

O que apresentei no seminário foi publicado em 1967, noperiódico Arqueologia do CEPA.

Incentivado pelo prof. Loureiro, dei continuidade às pesquisasno espaço das ruínas de Ciudad Real del Guayrá e no médio rio Iguaçu,ampliando o registro de sítios na área do abrigo-sob-rocha de Uniãoda Vitória. As primeiras constatações junto às ruínas foram publicadasem 1963, na Revista de História, um periódico do Centro Acadêmico deHistória da UFPR.

Os resultados da segunda pesquisa foram apresentadosdurante a VI Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, em1963, em São Paulo. Ao filiar-me à Associação, o prof. Loureiroapresentou-me ao prof. Herbert Baldus, organizador do evento e, aosprofessores Harald Schultz, Egon Schaden, Eduardo Galvão e outrosque conduziam a antropologia brasileira. Os professores FernandoAltenfelder Silva, Luiz de Castro Faria e Peter Hilbert lá presentes, eujá conhecera durante os cursos do CEPA.

A minha comunicação foi publicada no mesmo ano na Revistado Museu Paulista. Algum tempo depois, o prof. Loureiro chamou-meno seu gabinete e mostrou uma carta que havia recebido do prof. CastroFaria. Nela, havia uma crítica a algumas das conclusões do trabalhopublicado. Como o meu estudo abrangia uma área ampla, ao contráriodas abordagens pontuais que comumente eram praticadas e, tendo àdisposição traços arqueológicos provenientes de vários sítios, haviaesboçado uma periodização constituída por fases. Depois de meescutar, o prof. Loureiro disse que estava apenas me dando ciência docomentário e que não via nenhuma heresia no que eu escrevera.

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Figura 5. Visita às escavações no Sambaqui de Maratuá, litoral de SãoPaulo, 1954. Esse sítio estava sendo estudado pelo arqueólogo francêsJoseph Emperaire, por indicação do americanista Paul Rivet ao prof. PauloDuarte, do Instituto de Pré-História e Etnologia de São Paulo. Nessaocasião, lá estavam os pesquisadores citados, além dos que aparecem aolado do prof. Loureiro (Arquivo do CEPA/UFPR).Era costume do prof. Loureiro visitar sítios arqueológicos que estavamsendo pesquisados. Inteirava-se, assim, dos resultados das escavações etomava conhecimento dos problemas de ordem logística que pudessemestar ocorrendo, para saná-los. Manteve essa prática até 1973, apesar dejá ter limitações para se locomover. Neste ano, visitou as escavações noSambaqui do Centenário, o sítio usado como escola, em Paranaguá,durante o Curso sobre Técnicas Arqueológicas Aplicáveis a Sítios Pré-cerâmicos, coordenado pela arqueóloga francesa Annete Laming-Emperaire.

Graças a sua intercessão, as pesquisas que eu desenvolviaeram subvencionadas pelo CEPA e, para a minha locomoção, eramdisponibilizadas viaturas da Universidade.

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Figura 6. Entre os participantes do Primeiro Simpósio de Pré-Históriajunto à XIX Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso daCiência, em julho de 1967, no Rio de Janeiro, coordenado por Paulo Duarte,o prof. Loureiro aparece na primeira fila de cadeiras, como era seucostume. Logo atrás, está o prof. Fernando Altenfelder Silva, conselheirodo CEPA/UFPR em 1956 e coordenador de pesquisas arqueológicasno Paraná e, à sua esquerda, a profa. Maria Júlia Pourchet, umapesquisadora que atuou com o prof. Loureiro desde 1955 (Fonte: DUARTE,Paulo. Pré-História Brasileira. São Paulo: Instituto de Pré-História, 1968,p. 2).

A ocupação do prédio conhecido como da Faculdade deFilosofia, Ciências e Letras pelos vários departamentos não foi tranqüila,ocasionando atritos entre alguns dos catedráticos. O prof. Loureirosempre se posicionou contra a verticalidade da estrutura, uma vez quea considerava contra-indicada para uso escolar. Mesmo assim, preten-dia assumir um andar do edifício; acabou instalando o seu departa-mento na ala norte do 6º andar. Assenhoreou-se, porém, de uma salana ala sul, para o CEPA. Essa ala estava destinada para o Departa-mento de História. Acontece que o Centro, derivado da Seção deArqueologia, continuava vinculado ao Instituto de Pesquisas daFaculdade de Filosofia; não pertencendo ao Departamento deAntropologia, essa ocupação, para ele, não caracterizava uma intrusão.

As instalações administrativas do CEPA comportavam, também,a biblioteca especializada. Como o Museu Paranaense não era maisutilizado para as análises laboratoriais, estas passaram a ser desenvolvidas

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no próprio espaço da administração. As que envolviam material cerâmicoocasionavam o desprendimento de muita poeira, comprometendo asmáquinas de datilografia e, principalmente, a biblioteca. Ao comunicar,em 1968, o fato à direção da Casa, na época sob a responsabilidadedo prof. Homero Batista de Barros sugeri, como medida paliativa, atransferência da biblioteca e administração para um espaço situadoentre a sala em questão e a parede dos elevadores destinados aprofessores, que teria de ser adaptado com paredes pré-fabricadas.

Figura 7. Nas antigas dependências do CEPA foram prestadas homena-gens a destacados americanistas, entre as quais, em 4 de janeiro de 1963,ao arqueólogo espanhol Pedro Bosh Gimpera. Para essas cerimônias, eramconvidados alunos, professores e autoridades da universidade. Entre osparticipantes da homenagem ao prof. Bosh Gimpera captados nesta fotofiguram, à direita do prof. Loureiro, os professores Flávio Suplicy deLacerda (reitor da Universidade Federal do Paraná), Liguarú EspíritoSanto, Homero Batista de Barros (diretor da Faculdde de Filosofia,Ciências e Letras), Oldemar Blasi, Maria de Lourdes Lemos Muniz, MariaJosé Menezes e Igor Chmyz (Arquivo do CEPA/UFPR).O prof. Bosh Gimpera que em 1963 comemorava o seu 70º aniversário,proferiu na Universidade do Paraná, em 1961, três conferências sobre Apré-história e o povoamento da América, O povoamento dos Indo-Europeus e Os monumentos de uma etapa da vida egípcia ameaçados dedesaparecer.Em 1964 o prof. Loureiro organizou nova cerimônia, desta vez homenage-ando o pré-historiador francês Paul Rivet.

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Alegando que tal adaptação feriria a estética do prédio ofereceu, comosolução, as instalações ociosas existentes na sua cobertura. Tratava-se de um espaço amplo, compartimentado conforme um projeto dope. Jesus Moure. Nunca fôra utilizado porque, conforme explicou odiretor, estando tão isolado ensejaria comentários desairosos aoseventuais ocupantes. Nele o CEPA se instalou e, o seu antigo espaçofoi incorporado ao Departamento de História, pondo fim a um litígio deorigem.

Hoje vemos, em quase todos os andares do prédio, adapta-ções equivalentes ao da alternativa apresentada para a expansão doCEPA, algumas utilizadas até como salas de aula.

Quando o CEPA ocupou a cobertura do prédio o prof. Loureironão era mais o seu diretor. Alegando excesso de trabalho, especial-mente junto ao Museu de Paranaguá, dele afastou-se em 1966. Naverdade, tal atitude foi em conseqüência da forma como se estruturouo Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas - PRONAPA. EssePrograma surgiu no ano anterior e foi desenvolvido pela maioria dosintegrantes do Seminário de Ensino e Pesquisa em Sítios Cerâmicos,curso por ele organizado em 1964 e que foi coordenado por CliffordEvans e Betty J. Meggers, arqueólogos do Smithsonian Institution deWashington, D.C. Desde 1955 o prof. Loureiro tentava, persistente-mente, realizá-lo. Os seus participantes eram oriundos de váriosestados brasileiros e, no seu transcurso, surgiu a idéia da execução deuma pesquisa integrada. O Programa, iniciado em 1965, foi financiadopela instituição norte-americana e o Conselho Nacional de Pesquisas,tendo como coordenadores científicos os arqueólogos daquela institui-ção e, como coordenador técnico, um arqueólogo do Museu ParaenseEmílio Goeldi, uma entidade jurisdicionada pelo CNPq. O arqueólogodo Museu Goeldi havia participado do curso de 1964.

O CNPq atribuiu ao Museu Goeldi a função de publicar aprodução científica do Programa. O prof. Loureiro não concordou comessa solução, interpretando-a como um desprestígio aos seus esforçosem prol da arqueologia brasileira. No seu entender, a coordenaçãotécnica do Programa deveria ter sido atribuída ao Centro.

Para a implantação do CEPA, em 1956, o prof. Loureiro haviacontado com a inteira colaboração do CNPq. Os instrumentosbásicos para as aulas de campo e laboratório foram adquiridos comverba do Conselho, assim como, em parte, o financiamento daspesquisas de campo. Da então Campanha Nacional de Aperfeiçoa-mento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, ele conseguia quotasde bolsas para os alunos dos cursos e auxílios para os arqueólogosvisitantes.

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Embora para o curso de 1964 o CNPq não tivesse contribuído,uma vez que a sua execução deveu-se à própria Universidade doParaná, CAPES e Smithsonian Institution, ao se estruturar o Programa,o Conselho concedeu bolsas de pesquisa a alguns de seus partici-pantes.

Esse episódio, que lhe causou desilusão no campo daarqueologia, também teve desdobramento na questão da proteção desítios. Esta era uma de suas preocupações permanentes. Desde a épocaem que atuava no Museu Paranaense procurava, dentro das suaspossibilidades, coibir a ação vandálica de indivíduos ou grupos quedanificavam sítios arqueológicos. A Diretoria de Obras e Viação doEstado do Paraná, atual Departamento de Estradas de Rodagem,utilizava largamente conchas dos sambaquis para a pavimentação deestradas. Teve atritos com o colecionador Guilherme Tiburtius, porqueeste, embora coletasse peças em sítios perturbados, desmontava osintactos, inclusive o Sambaqui de Matinhos, sítio que o prof. Loureiroescavava nos finais de semana, na década de 1940. Em 1951, graçasà sua iniciativa, o Paraná teve a primeira legislação protetora no tocanteaos sambaquis; o Decreto nº 1.346 a respeito, foi promulgado pelogovernador Bento Munhoz da Rocha Neto. Ao prof. Loureiro devemos,também, a Lei nº 33, assinada em 1948 pelo governador Moysés Lupion,que protegia as ruínas das vilas espanholas e reduções jesuíticas doEstado.

Com a edição da Lei nº 3.924/61, a de proteção dos sítios ar-queológicos no território brasileiro, que ajudara a estruturar na décadaanterior, o prof. Loureiro passou a colaborar com a então Diretoria doPatrimônio Histórico e Artístico Nacional, capitaneada por Rodrigo MelloFranco de Andrade. Tornou-se, a partir de 1964, o seu delegado paraos assuntos de arqueologia no Paraná. Eu o auxiliava diretamente nessatarefa, atendendo as denúncias de destruição de sítios em várias partesdo Estado. Assim, o CEPA começou a ampliar o registro de ocorrênci-as; hoje, no seu fichário, existem dados referentes a mais de 2.000sítios cadastrados.

Os atendimentos mais comuns relacionavam-se a sambaquis.Os detentores de direito de lavra, concedidos pelo DepartamentoNacional de Produção Mineral anteriormente à lei federal e mesmo aodisposto no Decreto Estadual nº 1.346/51, insistiam em continuar oseu desmonte comercial. Por sua determinação, já em 1962, realizeiperícias em sambaquis que se encontravam nessa situação. Asintervenções mais importantes aconteceram no Sambaqui da Ilha dasPedras, na baía de Paranaguá e no Sambaqui do Rio Boguaçu, nabaía de Guaratuba. No primeiro caso, o explorador alegava ter investido

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Figura 8. Valorizando as artes e tradições populares, o prof. Loureirovalia-se de eventos especiais para demonstrá-las. No presente caso, ocasal Gabriela e Loureiro Fernandes oferece aos participantes doSeminário de Ensino e Pesquisa em Sítios Cerâmicos, coordenado pelosarqueólogos norteamericanos Clifford Evans e Betty J. Meggers em 1964,uma típica refeição do litoral do Paraná. A abertura das panelas de barreadofoi acompanhada pela soltura de rojões na frente de sua casa, em Caiobá.Apesar dos refrigerantes e cervejas na mesa, elementos estranhos aoprato, havia cachaça de Morretes para os que desejassem manter atradição. Atrás da panela que acabara de ter o seu lacre de farinha demandioca retirado, estão os professores Evans e Loureiro e, à direitadeste, a sra. Luísa, a preparadora do barreado e os professores NássaroA. Souza Nasser (UFRN) e Walter F. Piazza (UFSC). O prof. ValentínCalderón (UFBA) aparece no lado direito da foto (Arquivo do CEPA/UFPR).

em benfeitorias no local, o que não se comprovou; no segundo, havia ointeresse da Prefeitura Municipal em utilizar o material conchífero dosítio para o revestimento de ruas na cidade.

O incidente mais grave foi o que envolveu o DepartamentoEstadual de Estradas de Rodagem (DER). Esse órgão, em outrasocasiões, havia utilizado conchas removidas por arqueólogos duranteas escavações científicas. Em 1963, ao DER foi permitida a remoçãode conchas acumuladas naquelas condições em 1962. Depois,inadvertidamente, os operários passaram a retirá-las do sítio intacto. Arapidez do desmonte era tanta, que foi preciso demolir uma ponte de

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acesso até que, em Curitiba, o prof. Loureiro conseguisse sustar aatividade ilegal junto à direção daquele órgão.

Em 1968 o prof. Loureiro deixou de ser o delegado do PatrimônioHistórico. À sua desilusão com a pesquisa arqueológica, motivada pelaestruturação do PRONAPA, somava-se o seu desencanto com a nãoregulamentação da Lei nº 3.924. Alegou, ao tomar essa atitude, anecessidade de se concentrar no Museu de Paranaguá.

Acredito, entretanto, que a maior frustração do prof. Loureirofoi com relação ao assunto Xetá. Tendo realizado, na década de 1950,diversas pesquisas entre aqueles índios no noroeste do Paraná, cujosresultados tiveram repercussão internacional, preocupou-se com a suaintegridade face à destruição ambiental motivada pela expansãocafeeira. Pretendia criar uma unidade de conservação que lhes permi-tisse a sobrevivência. Tentou em vão sensibilizar políticos, autoridadesgovernamentais e órgãos públicos, chegando a articular-se com pes-quisadores e instituições de pesquisa do país e do exterior. Com omesmo propósito, recorreu à mídia da época, na esperança de que oclamor popular obrigasse uma reversão do quadro.

Decepção não menos dolorosa para ele foi, certamente, afrustrada edificação da sede do Museu Paranaense. Emanado do seuConselho Diretor, em princípios da década de 40, o plano de construçãofoi acatado pelo governador Manoel Ribas que, através do Decreton° 1.993/44 reservou, para esse fim, o espaço situado ao lado da PraçaSantos Andrade, defronte ao prédio histórico da Universidade do Paraná.Com a evolução do projeto inicial, tendo em vista a sua intenção devincular o Museu ao ensino universitário, previu a construção de prédiocontíguo para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Em 1950, ogovernador Moysés Lupion encaminhou projeto de lei concedendo apretendida faixa de terreno fronteiriça à rua XV de Novembro. O projeto,aprovado pela Assembléia Legislativa, foi vetado pelo governador BentoMunhoz da Rocha Neto. Ao relatar este fato, o prof. Loureiro semprefrisava que o veto acontecera fora do prazo legal. Atribuía ao seucolega dos tempos do Círculo de Estudos Bandeirantes e da Faculdadede Filosofia, o golpe de morte na iniciativa.

Hoje, no local idealizado pelo prof. Loureiro para acomodaro Museu, a Faculdade de Filosofia, a Reitoria e um teatro, temoso complexo do Teatro Guaíra, construído sobre a sua pedra fundamen-tal.

Como o prof. Loureiro não tinha um horário fixo para o traba-lho, após o expediente ficava sem o apoio de secretária para adatilografia de cartas e ofícios. Em várias ocasiões eu o auxiliei nesseparticular. O difícil era acompanhar o seu manuscrito, cheio de palavras

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abreviadas, geralmente feito em pedaços de papel ou, o que era pior,nos espaços disponíveis de envelopes usados e desmanchados.

Certas correspondências, as rotuladas como “confidenciais”pelo seu conteúdo contundente, ele as encaminhava manuscritas ecom a recomendação de que fossem destruídas depois de lidas;paradoxalmente, porém, costumava manter arquivadas as cópiasproduzidas com auxílio de papel carbono.

Os vários órgãos que criou, ou aqueles nos quais atuava, forampor ele utilizados como “trincheiras” de luta. Em uma pasta que reúne acorrespondência emitida em 1960, por exemplo, os ofícios são por eleassinados como Catedrático de Antropologia, Diretor do Departamentode Antropologia, Diretor do Centro de Ensino e Pesquisas Arqueológicasou Diretor do Museu de Arqueologia e Artes Populares. Nela existemtambém cópias de ofícios que assinou como Presidente do ConselhoAdministrativo do Museu Paranaense e Presidente do ConselhoEstadual do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura. Odetalhe é que os ofícios são numerados seqüencialmente, como separtissem de uma só instituição.

O prof. Loureiro detestava a burocracia da Universidade e dosórgãos públicos em geral, pois sentia-se tolhido no seu modo rápidode agir. Sua indignação podia levá-lo a atitudes impensáveis nos diasatuais. Entre as várias confidências, narrou-me uma que foi confirma-da mais tarde. Tendo recebido um cheque nominal do IBEEC, cujaseccional do Paraná dirigira por muito tempo, o prof. Loureiro foicomunicar o fato para o reitor. A quantia lhe fôra destinada para ainstalação de uma biblioteca com obras da UNESCO na Faculdade deFilosofia. Ao ser informado que deveria contabilizar o cheque naTesouraria da Universidade, sucedeu uma áspera discussão entre osdois, culminada com a destruição do cheque pelo prof. Loureiro. Acontabilização do cheque recebido graças aos seus esforços e iniciativasignificava, na sua ótica, a burocratização do processo.

Anos depois da sua morte, conversando com um professoraposentado da área médica sobre pesquisas arqueológicas que seestavam realizando na Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, emParanaguá, o episódio acima me foi relatado nos mínimos detalhes.Ele estava no gabinete do reitor e assistiu, constrangido, o desenrolardos acontecimentos.

Tendo sido indicado para receber o título de Professor Emérito,o prof. Loureiro o recusou porque não lhe deixaram claro o significadode tal honraria para a UFPR. No transcorrer de sua vida, o prof. Loureirofoi agraciado com vários prêmios e honrarias, como a Medalha doMérito Indigenista, que lhe foi concedida, em 1975, pela Fundação

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Nacional do Índio em reconhecimento pelos seus esforços à causaindígena. Postumamente, o Instituto do Patrimônio Histórico e ArtísticoNacional conferiu-lhe a Medalha Rodrigo Mello Franco de Andradena Área de Arqueologia e, a Sociedade de Arqueologia Brasileirainstituiu o “Prêmio Loureiro Fernandes para o Estímulo de AçõesEducativas”.

Lembro-me de dois episódios relacionados a painéis que oprof. Loureiro tinha planejado para as exposições do Museu deParanaguá e que geraram muita discussão. Um deles, representandoo quotidiano de um acampamento Xetá nas matas da Serra dosDourados, foi pintado no início da década de 1960 pelo artista plásticoPoty Lazzarotto. A discussão que se estabeleceu, foi com outroscandidatos à sua confecção: Rodolpho Doubek e Vladimír Kozák. Oprof. Loureiro optou por Poty porque os esboços apresentadoslembravam as xilogravuras dos primeiros documentários dos índiosbrasileiros. Tive a oportunidade de acompanhar algumas etapas deexecução da obra de Poty sobre a grande tela instalada na parede deuma das salas do Museu, pois, na véspera da sua inauguração, asmontagens das exposições de arqueologia tiveram de ser aceleradas.Os esboços que levaram à execução do painel encontram-se deposita-dos no CEPA.

Há alguns anos o painel do Poty, muito afetado pela umidadedo prédio, foi mutilado e retirado da sala. A sua restauração aconteceuno início deste século, quando a profa. Cecília Maria Vieira Helmesteve na direção daquele Museu.

O planejamento do painel retratando as Cavalhadas deGuarapuava foi muito desgastante para o prof. Loureiro devido àincompreensão da reitoria da Universidade. O artista plástico ArthurNisio, famoso pela sua habilidade de representar cavalos, foi por eleconvidado para o empreendimento. Aceitando a tarefa, sem cobrar amão de obra, como me foi dito pelo prof. Loureiro, pedia apenas que aUniversidade lhe fornecesse o material necessário para pintar. O painelnunca foi executado.

De discussões entre o prof. Loureiro e o já mencionado VladimírKozák, também fui testemunha desde que passei a freqüentar a Casa.Algumas, porém, me foram relatadas por um e por outro, conforme assuas óticas. Depois do prof. Loureiro, o Kozák foi a pessoa com quemmais tive contato na Universidade. Apreciava o seu trabalho noLaboratório Cinematográfico instalado no 1º andar da Faculdade deFilosofia. Ali estavam arquivados todos os negativos fotográficos daspesquisas que ele documentava para o prof. Loureiro e de arqueologiapara o CEPA, além dos filmes em 16mm que rodara sob a mesma

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Figura 9. No final da década de 1930 o Museu Paranaense passou adesenvolver pesquisas multidisciplinares em vários pontos do Estado.No início da década seguinte, o prof. Loureiro juntamente com o cineastaJoão Batista Groff, o zoólogo pe. Jesus Moure e o lingüista Rosário FaraniMansur Guérios, realizaram trabalhos nas áreas dos toldos indígenas doRio das Lontras e Palmeirinha, em Palmas. O Kaingáng Pedro Mendes(Kôikã), que aparece ao lado do prof. Loureiro, foi um dos transmissoresdo conhecimento indígena aos pesquisadores. Os resultados forampublicados nos primeiros volumes dos “Arquivos do Museu Paranaense”:Loureiro Fernandes, “Os Caingangues de Palmas”, em 1941 e RosárioFarani Mansur Guérios, “Estudos sobre a língua Caingangue”, em 1942(Arquivo do CEPA/UFPR).

orientação. As fotos utilizadas neste depoimento, mostrando o prof.Loureiro entre os índios Xetá, são da autoria de Kozák. Na sua casa,nobairro do Boqueirão, que visitei algumas vezes, estava guardada, emlatões hermeticamente fechados, a sua própria produção fotográfica ecinematográfica. Lá estavam, também, as suas pinturas e muitaspeças etnográficas coletadas durante suas expedições pelo Brasil e,sua preciosa biblioteca.

Muitas das discussões eram devidas aos enfoques de cada um

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com relação ao objeto de trabalho. O prof. Loureiro, como rigorosoetnógrafo, procurava entender e registrar as manifestações culturaiscomo as encontrava. O Kozák, às vezes inconformado com o quedeparava, procurava contribuir para, baseado em relatos, complementá-lo.

Em uma ocasião, no final de semana, antes de descermos arampa do prédio, o Kozák pediu que o esperasse porque queria retirarda geladeira da cantina um pacote que havia guardado há dias. Erauma cobra cascavel recebida de conhecido do interior. Contou-me quecombinara com índios para encenar, conforme o costume tribal, opreparo e o consumo do ofídio no fundo do seu quintal.

Costumava elaborar adereços e artefatos indígenas, tambémbaseado em suas descrições, para com eles reviver práticas que nãohaviam sido documentadas in loco.

O atrito havido por causa de uma lâmina de machado de pedra,que teve as fases de produção por ele filmadas durante uma pesquisado prof. Loureiro na Serra dos Dourados, deveu-se ao fato, conforme oprof. Loureiro, do Kozák desejar incorporá-la ao seu acervo. Conformea explicação de Kozák, os Xetá, após o contato, já estavam usandomachados e facas de metal e não se podia mais documentar comoproduziam as lâminas de machado ou como obtinham lascas de pedra.Por sua iniciativa e persistência, alguns índios se dispuseram ademonstrar as técnicas utilizadas. No caso da lâmina de machado, porser um processo mais demorado, o índio a abandonava freqüentemente,jogando-a no mato. Kozák, recorrendo a agrados, conseguia que otrabalho tivesse continuidade até que fosse concluída e, assim,documentada. Por esse motivo, ele achava que tinha o direito depossuí-la.

O Kozák me relatou, também, que em 1961 durante a pesquisade campo entre os Xetá, o acampamento dos índios foi visitado pelogeólogo Reinhard Maack, antigo companheiro do prof. Loureiro noMuseu Paranaense e na Faculdade de Filosofia. Conforme o comentá-rio aborrecido de Kozák, Maack, de máquina fotográfica e filmadoraem punho, documentava as cenas que ele pacientemente organizavacom os índios.

Em 1962, Reinhard Maack publicou em Stuttgart, na revistaKosmos, o artigo: Unbekannte Indianer in West-Paraná, com várias fotosdo acampamento e um valioso mapa assinalando o território dos Xetána margem esquerda do rio Ivaí.

Dos filmes produzidos pelo geólogo, desde a década de 1920,uma parte permanecia sob a guarda de seus familiares; em 1999 estesa ofereceram a quem os preservasse, em troca de uma cópia telecinada.

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Figura 10. Embora objeto de seu trabalho antropológico, o índio querepassava o conhecimento tribal era tratado respeitosamente pelo prof.Loureiro. A foto reproduz um momento de descontração no acampamen-to dos índios Xetá, em 1958. O prof. Loureiro, ao lado do Xetá, mostra-sefeliz e sorridente, apesar da infestação de borrachudos e mutucastão comuns na selva paranaense daquela época (Arquivo do CEPA/UFPR).

O trecho relacionado aos Xetá foi processado por Harry Luhn, para aRede Paranaense de Comunicação. Uma cópia desse documentárioestá depositada no CEPA/UFPR.

Viajei diversas vezes com o prof. Loureiro, mas foram percur-sos curtos, geralmente em direção ao litoral, para os trabalhos do Museude Paranaguá. Duas foram mais longas, porém, e aconteceram em 1962.A primeira foi para o Rio de Janeiro, quando conheci as dependênciasdo Museu Nacional e revi o prof. Luiz de Castro Faria; no Departamen-to do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ele me apresentou parao dr. Rodrigo Mello Franco de Andrade, o dr. Renato Soeiro e odr. Alfredo Rusins. Poucos anos depois, voltei ao Palácio da Cultura,na rua da Imprensa. O prof. Loureiro, nessa ocasião, já estava no Riode Janeiro e havia marcado audiência com o ministro da Educação eCultura, o prof. Flávio Suplicy de Lacerda, para tratar de pendênciasrelacionadas ao quadro de pessoal do Departamento de Antropologiae do Museu de Paranaguá. Acompanhei-o na audiência, que se reveloufrustrante. O saldo positivo foi a contemplação das pinturas de Cândido

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Portinari existentes nas paredes da ante-sala do gabinete do ministro.A segunda viagem de 1962 foi para o Rio Grande do Sul. Na extensapauta de assuntos que seriam tratados, fui incluído em dois: um emCaxias do Sul e outro em Porto Alegre. Conosco viajaram a sra. Gabrielae a Lygia; a minha mulher quis aproveitar a oportunidade para conhecera terra natal de seu pai. Como se tratava de uma missão oficial, o prof.Loureiro alertou que ambas pagariam as suas despesas.

Figura 11. Para melhor entender a cultura que estudava, o prof. Loureiroacompanhava os índios vivenciando as suas atividades quotidianas. Noflagrante, durante as pesquisas realizadas na Serra dos Dourados, em1958, o prof. Loureiro experimenta o mel retirado pelos Xetá de um troncode árvore (Arquivo do CEPA/UFPR).

Utilizamos o furgão do Museu Paranaense, dirigido pelo AfonsoPereira, seu motorista favorito. Mais tarde, quando sentiu que não tinhamais condições físicas para dirigir o seu carro particular, um Studbakerpreto da década de 30 com placa nº 002, o Afonso passou a conduzi-lode casa para a Universidade. Doou, depois, o Studbaker para o Museudo Automóvel da Cidade.

O furgão do Museu era velho e desconfortável; faltava-lhe,inclusive, um vidro lateral e foi preciso tampar a abertura com papelão.Em momento algum, o prof. Loureiro queixou-se do desconforto doveículo ou da viagem. Muito pelo contrário, sentia-se feliz e conversou

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animadamente na maior parte do percurso. Ao entrarmos em SantaCatarina, falou sobre os seus conhecidos de lá, com os quais tinhamuitos planos, o mesmo fazendo quando passamos a rodar pelo RioGrande do Sul.

Fiquei em Caxias do Sul e, com pessoas do seu relacionamen-to profissional, que eram ligadas a um centro de tradições gaúchas,visitei alguns sítios arqueológicos, inclusive uma habitação subterrâ-nea de origem indígena. Os resultados dessa rápida pesquisa forampublicados em 1963, em um periódico argentino dirigido pelo arqueó-logo Osvaldo Menghin.

Nessa parada tive que desfazer um pequeno incidente“diplomático”, pois, o centro de tradições gaúchas, baseado nocronograma estabelecido, havia programado uma típica churrascada,com demonstrações folclóricas. O prof. Loureiro não conseguira sedesvencilhar dos seus compromissos em Porto Alegre em tempo e nãopôde comparecer.

Na Capital, eu o acompanhei até a Universidade Federal doRio Grande do Sul, onde o prof. Loureiro conversou com o pe. PedroIgnacio Schmitz, S. J., que estava desenvolvendo estudos arqueológi-cos. A sua intenção era a de estabelecer um vínculo com o InstitutoAnchietano de Pesquisas, fundado em 1956 junto à Sociedade LiteráriaPadre Antônio Vieira. Hoje, o Instituto integra e Universidade do Valedo Rio dos Sinos.

Não sendo possível, por vários fatores, a implantação daCátedra de Arqueologia Pré-Histórica criada pelo prof. Loureiro em 1953na Universidade Federal do Paraná, depois de entendimentos com oCNPq e a CAPES, ele estruturou o CEPA para, da mesma forma,possibilitar o ensino de arqueologia e a pesquisa arqueológica.Conforme o Artigo 2º da Portaria de criação, o CEPA deveria incentivaras pesquisas em sítios arqueológicos brasileiros. Quando daorganização dos cursos, o prof. Loureiro sempre pleiteava bolsas quepoderiam ser destinadas a interessados do Rio Grande do Sul, SantaCatarina, São Paulo e de outros estados, nos quais, através de volumosacorrespondência trocada com seus contatos, procurava distribuir.Passou a ter sucesso a partir de 1962, quando, no curso daqueleano, vieram os bolsistas de vários estados, inclusive o pe. Schmitz.

Com a reforma universitária de 1970, foi preciso adequar o CEPAà nova estrutura. Solicitou-se, em 1972, a sua vinculação à Universidadecomo órgão suplementar. O Museu de Paranaguá já havia sido incluídono novo estatuto como tal, embora a portaria que o elevou a essacategoria fosse baixada em fins de 1972. No entender dos dirigentescaracterizou-se, nesse momento, a duplicidade de funções

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na Casa; não poderiam existir dois organismos com as mesmasfinalidades. Em 1975 o CEPA foi extinto, mas, na verdade, continuouexistindo através do Gabinete de Arqueologia do Departamento deAntropologia. O Museu, como se verificou, apesar dos esforços do prof.Loureiro, não oferecia condições para dar continuidade às atividadesdo Centro.

Nesse período, que foi muito difícil na vida do prof. Loureirodevido à morte de seu único filho e ao agravamento do seu estadofísico, passei a ajudá-lo acumulando a chefia da Divisão de Arqueolo-gia do Museu com as funções que desempenhava em Curitiba.Numerosos sítios relacionados aos grupos ceramistas itararé,tupiguarani e neobrasileiros passaram a ser registrados; sítiospré-ceramistas não ligados aos construtores de sambaquis, tambémforam encontrados no litoral. Procurei auxiliá-lo nas mostrasmuseológicas e, em algumas ocasiões o substitui na própria direçãoda Casa.

Em 1973, o curso sobre Técnicas Arqueológicas Aplicáveis aSítios Pré-Cerâmicos, que fora organizado pelo CEPA, juntamente coma arqueóloga Annete Laming-Emperaire, foi realizado pelo Museu.Editamos os dois volumes dos Cadernos de Arqueologia do Museu, em1976 e 1977, respectivamente. Os conteúdos dos Cadernos haviamsido preparados para serem publicados pelo periódico do CEPA. Osegundo volume divulgou relatórios das pioneiras pesquisas feitas, em1952, pelo arqueólogo iugoslavo Adam Orssich no Sambaqui do AraújoII, em Guaratuba. Orssich havia caído em desgraça por ter constatadoindícios de fundo de cabana em camada pré-histórica do sambaqui;naquela época, alguns pesquisadores brasileiros tinham outrasconcepções funcionais para os sambaquis.

Pesquisas de salvamento arqueológico em áreas atingidas porempreendimentos hidrelétricos eram praticadas pelo CEPA desde a dé-cada de 1960, como as que abrangeram o espaço da UHE Xavantes,nos estados de São Paulo e Paraná. Entendimentos com a entidadeItaipu Binacional, para a realização do salvamento arqueológico na áreabrasileira da UHE Itaipu, já estavam adiantados quando seconfigurou a extinção do CEPA. Tentativas foram feitas para que o Museude Paranaguá assumisse, no lugar do CEPA, as pesquisas em Itaipu.Os problemas de ordem estrutural e conjuntural nele existentes,entretanto, inviabilizaram a intenção. Um convênio foi então assinadoentre o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e a ItaipuBinacional, possibilitando a execução das pesquisas pelo Gabinete deArqueologia. Um curso de treinamento de pesquisadores para áreasimpactadas e outros trabalhos de salvamento sucederam-se nestas

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Igor Chmyz

condições, até que, em 1985, o CEPA foi recriado, passando adesenvolvê-las. O Centro é, atualmente, Órgão Auxiliar do Setor deCiências Humanas, Letras e Artes da UFPR.

Em 1973 defendi, na Faculdade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas da Universidade de São Paulo, a minha tese de doutorado.Esta foi baseada nas pesquisas que realizara nos vales dos riosParanapanema e Itararé, entre 1964 e 1965. O prof. Loureiro,juntamente com os professores Egon Schaden, Ulpiano Toledo Bezerrade Meneses, João Baptista Borges Pereira e Eurípedes Simões dePaula, deveria compor a banca examinadora.

A sua presença na banca, além de abalizá-la, como osanteriormente citados, representaria a exteriorização do meu reconhe-cimento pelo incentivo que dele sempre recebi. Na véspera do evento,porém, o quadro clínico do prof. Loureiro sofreu um agravamento,impedindo-o de viajar. Para cumprir a formalidade, os examinadoresdeveriam, antecipadamente ao exame, declarar que a tese eradefensável. Através de telegrama, no dia da defesa, o prof. Loureiro semanifestou favoravelmente, pondo fim a uma espera angustiante paraos demais examinadores e o examinando. O prof. Loureiro, que foisubstituído pelo prof. Erasmo D’Almeida Magalhães, falou-me depoisque manteve até o último instante a intenção de comparecer.

Em vários momentos, a banca fez alusões ao papel que o prof.Loureiro desempenhava na antropologia brasileira tendo, o professorsubstituto declarado que, no Paraná, “nunca deveríamos deixar cair abandeira por ele empunhada”.

Creio que se permaneci até hoje na Universidade Federal doParaná, apesar de todas as limitações nela existentes, foi porqueentendi um recado que o prof. Loureiro me transmitiu em determinadaocasião. Convidado para integrar a Faculdade de Arqueologia eMuseologia Marechal Cândido Rondon, no Rio de Janeiro, converseicom o prof. Loureiro sobre o que me parecera um tentadora oferta.Depois de algumas considerações, ele me alertou com um dos seuscostumeiros ditados populares: - “Pedra que rola não cria limo...”.Estava cheio de razão. Mesmo em outras ocasiões, quando os conviteseram sérios, como o feito pelo dr. Renato Soeiro, para que eu assumissea Coordenação de Arqueologia do IPHAN, prevaleceu o sábio conselhodo mestre. Afinal, sempre havia pesquisas em andamento que nãopodiam ser interrompidas.

No início deste depoimento foi quantificada a produção doprof. Loureiro publicada em periódicos e anais. Este legado, entretanto,não reflete inteiramente a experiência e o conhecimetno que acumulouem sua vida profissional. Quase todas as suas publicações foram

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Relembrando José Loureiro Ascenção Fernandes,

produzidas em função de encontros científicos e culturais. Na verdade,não lhe sobrava tempo para escrever. Encurralado pela diversificaçãode interesses, não lhe era possível o aprofundamento em vários campos.Mas quem desses campos se ocuparia nesse início, quando as basesestavam sendo lançadas? Quando abraçou a Arqueologia, tentandoentender os sambaquis do Paraná com os meios e técnicas que tinhaao seu alcance, concluiu que tais estudos deveriam ser conduzidospor especialistas. Por isso, atraiu arqueólogos estrangeiros, os quais,por sua vez, escavaram sítios e iniciaram a formação de brasileiros.Nunca deixou, porém, de se preocupar com a preservação dossítios, esforçando-se para a criação de mecanismos que osprotegessem.

Na questão indígena, a sua luta maior foi com relação aos Xetá.Movido, inicialmente, pela sensação da descoberta e pela possibilida-de do registro e documentação de grupo humano isolado, a sua atençãologo passou a ser canalizada na tentativa de protegê-los contra adestruição do seu habitat. No começo, também dentro de suas possibi-lidades, produziu fontes que ainda são básicas para quem dos Xetáqueira tratar. Não pôde detalhar seus estudos, mas criou condiçõespara que alguns especialistas disso se encarregassem, como aarqueóloga Annette Laming-Emperaire, o antropólogo Carlos AraújoMoreira Neto, os lingüistas Cestmír Loukotka e Aryon Dall’IgnaRodrigues e, o cinegrafista Vladimír Kozák. Tentou atrair o antropólogoRoberto Cardoso de Oliveira, que certamente nos proporcionaria dadossobre o sistema de parentesco e a organização social dos Xetá e, osertanista Orlando Villas Boas quem, com seu prestígio, talvez pudesseinfluenciar na inversão do quadro fundiário configurado naquela área,com a efetiva criação do Parque Nacional da Serra dos Dourados,conforme uma ponderação do próprio prof. Loureiro.

O que se evidencia, ao se abordar a trajetória do prof.Loureiro, é a sua constante preocupação em incentivar ou criar basespara que aqueles, como nós, pudessem nelas se apoiar e asdesenvolver com menos dificuldades que enfrentou. O prof. Loureirofoi um semeador!

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Igor Chmyz

O LEGADO DE LOUREIRO FERNANDES

Cecília Maria Vieira Helm*

Tenho a grata satisfação de cumprimentar a direção do Centrode Estudos e Pesquisas Arqueológicas, o meu colega Igor Chmyz, achefia e os professores do Departamento de Antropologia, a direção evice direção do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, pelaorganização e realização deste Seminário em homenagem ao ProfessorDoutor José Loureiro Fernandes, no ano do centenário de seunascimento.

O saudoso professor Loureiro Fernandes despertou em mim ointeresse pela Antropologia. Seus ensinamentos e produção científicasignificativa geraram um compromisso político e ético na defesa dospovos indígenas, de suas culturas singulares e do patrimônio cultural,histórico e artístico de nosso país. Despertou uma paixão forte pelaEtnologia Indígena que me acompanha até os dias de hoje. Há 40 anos,me dedico à Antropologia. Realizei cursos, concursos públicos, proferipalestras e ministrei aulas para estudantes de cursos de graduação.Nos últimos trinta anos, ministrei disciplinas nos Cursos de Especiali-zação e Programas de Pós Graduação em Antropologia Social dasUniversidades Federais de Santa Catarina e do Paraná. Tenho realizadopesquisas, produzido textos, artigos e livros, especialmente sobre osKaingáng, povo Jê do Brasil Meridional.

Professor Loureiro Fernandes era dotado de notável saber,pesquisador dedicado, amigo dos colegas, alguns aqui presentes nestajusta homenagem. Foi um homem generoso e um humanista. Tinhaformação em Medicina. Fundou o Departamento de Antropologia, daantiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Era responsável pelaCátedra de Antropologia nesta Universidade. Ocupei o lugar de LoureiroFernandes, depois de sua aposentadoria, indicada como ProfessoraRegente da Cadeira de Antropologia e, em 1977, realizei concursopúblico de títulos, provas e defesa de tese para Professor Titular doDepartamento de Antropologia da UFPR.

* Professora Titular aposentada pela UFPR. Professora Colaboradora do Programa dePós-Graduação em Antropologia Social da UFPR.

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Os cursos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letrasfuncionavam no prédio do Colégio dos Maristas, na Rua XV de Novem-bro até ser construído este Edifício, no final da década de cinqüenta.Professor Loureiro, com carinho e dedicação, organizou o Departa-mento de Antropologia, dividiu os espaços, desenhou móveis, salas deaulas, anfiteatro para palestras com equipamento para projeções,gabinetes de professores, laboratórios, biblioteca especializada,depósito dos acervos e sala climatizada para arquivo das fitas gravadase filmes produzidos. Neste local trabalhou o lingüista, professor dr. AryonDall’Igna Rodrigues. Tudo foi construído devido ao empenho doprofessor Loureiro Fernandes em conseguir verbas com dirigentes dogoverno do Paraná e autoridades universitárias, para o necessário apoioaos seus projetos.

No período das expedições à Serra dos Dourados, no rio Ivaí,na década de cinqüenta, em que pesquisou os Xetá, professor Loureirorecorreu ao então Presidente da República, dr. Jânio Quadros, paraque fosse reservada e delimitada uma área de terra para esse povo,através de Decreto, para assegurar a sobrevivência física e culturaldos Xetá.

Loureiro Fernandes tinha preocupação com o destino dos Xetá.Devido ao fato de serem recém contatados, estavam expostos àsdoenças e decisões dos brancos que entraram em confronto com osXetá. Era preciso garantir a sobrevivência do Povo Xetá.Lamentavelmente, as políticas públicas implantadas pelos GovernosFederal e Estadual não levaram em consideração a importância dadescoberta de um povo caçador coletor refugiado na mata tropical, emuma região que estava sendo atingida por fazendeiros que cultivavamcafé, no Noroeste do estado do Paraná.

Loureiro Fernandes disputava espaços com a colega historia-dora, professora dra. Cecília Maria Westphalen que dirigiu oDepartamento de História, localizado no mesmo andar em que foiinstalado o Departamento de Antropologia. Com a direção da Faculdadede Filosofia discutia e entrava em atrito, porque entendia sernecessário contratar auxiliares de ensino e obter mais verbas para aaquisição de livros e revistas, para a biblioteca do Departamento deAntropologia.

Nós temos coleções de revistas que foram compradas pelosaudoso professor Loureiro, desde o primeiro número. Cito, como exem-plo, o Current Anthropologist. A Reforma Universitária impôs a todosos departamentos que as bibliotecas com seus respectivos acervos delivros, revistas, periódicos das várias áreas do conhecimento fossemreunidos em uma biblioteca setorial.Tivemos momentos críticos em que

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Cecília Maria Vieira Helm

as bibliotecas não renovaram seus estoques ou atualizaram suascoleções.

Nesta querida Universidade, comecei minha carreira comoinstrutora de ensino voluntária convidada pelo dr. Loureiro Fernandes.Estimulada por ele e pelo professor dr. Brasil Pinheiro Machado, passeia residir na cidade do Rio de Janeiro, em 1962, para realizar, no MuseuNacional da Universidade do Brasil, o Curso de Especialização emAntropologia Social, dirigido pelo ilustre professor dr. Roberto Cardosode Oliveira, especialista em Etnologia Indígena, que tem uma obra dasmais respeitadas em Antropologia, cujos méritos são reconhecidosdentro e fora do Brasil.

Loureiro Fernandes me estimulou a pesquisar os Kaingáng.No seu entendimento, a Universidade deveria contratar um professorpara ministrar aulas de Etnologia Indígena. Dizia: - “Você tem que darconta da disciplina Antropologia Social, nós estamos precisandode um especialista em Etnologia”.

Professor Loureiro Fernandes marcou a minha formação.Professor dr. Igor Chmyz falou que marcou profundamente a formaçãodele.

Há pessoas que com seu caráter e grande senso de humor têma capacidade de divertir as pessoas, cativam a todos que convivemcom eles. Nas dependências do Departamento de Antropologia, haviao espaço do cafezinho. Loureiro gostava de contar piadas, davagargalhadas, enquanto falava e criticava colegas medíocres. Sempretrazia para contar uma piada de português. Algumas eram sem graça,mas riamos, tínhamos que rir, porque era o nosso Loureiro, filho deportugueses, que estava contando a piada.

Às vezes, professor Loureiro Fernandes ao regressar de umareunião na reitoria chegava nervoso no departamento, porque haviadiscutido com o reitor, professor dr. Flávio Suplicy de Lacerda. As suasbrigas com as autoridades universitárias eram do conhecimento detodos. As atitudes de Loureiro Fernandes marcaram a minha forma-ção. Não se pode aderir ao conformismo. É preciso lutar, não abrir mãode certos princípios, de convicções que devem nos acompanharsempre.

O professor deve ter boa formação, estudar, produzir durantetoda sua carreira. Preparar bem seus alunos, ser rigoroso nasavaliações. Deve ser exigente com a sua produção científica, com aqualidade de seus projetos de pesquisa e contribuir para a formaçãode novos pesquisadores. O antropólogo tem uma preocupaçãoconstante com o outro que deve ser respeitado na sua singularidade.As diferenças étnicas e culturais, as identidades sociais e étnicas são

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O legado de Loureiro Fernandes

um campo de estudo fértil para os antropólogos. O exemplo do professorLoureiro Fernandes deve ser seguido pelas novas gerações e por todosque tiveram a felicidade de conviver com ele.

Professor Loureiro Fernandes dirigiu o Departamento deAntropologia até sua aposentadoria. Organizou e implantou o Museude Arqueologia e Artes Populares, na Cidade Histórica de Paranaguá,no edifício do antigo Colégio dos Jesuítas, monumento arquitetônicotombado pelo IPHAN. Também criou os Cadernos do Museu. Revitalizaro bem arquitetônico, o Monumento, dar continuidade às exposiçõestemporárias e permanentes do MAE, à coleção dos Cadernos sãocompromissos da Universidade Federal do Paraná e dos estudiososque atuam no Departamento de Antropologia, no CEPA e no Museu deArqueologia e Etnologia da UFPR.

A História da Antropologia no Sul do Brasil precisa ser resgata-da e escrita. Professor dr. Sílvio Coelho dos Santos da UFSC, professordr. Sérgio Teixeira da UFRS e eu temos um Projeto, para elaborar apesquisa e produzir um livro que contemple a História da Antropologiano Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Por certo, acontribuição de Loureiro Fernandes será significativa. Este evento e apublicação que está sendo organizada pelo professor dr. Igor Chmyzsão de grande utilidade e importante fonte de consulta, para os autoresda obra que será elaborada. Os estudiosos que nesta data deram seusdepoimentos e proferiram palestras serão contatados para dar suascontribuições. Está sendo muito oportuno este seminário parahomenagear José Loureiro Fernandes e resgatar a sua contribuição àAntropologia.

Gostaria de narrar um fato que diz respeito ao primeiro ano doCurso de Ciências Sociais que realizei nesta Universidade. Trata-sedas aulas de Introdução à Filosofia que eram ministradas pelo padreEdmundo Dreher e da disciplina Antropologia Física, de responsabili-dade do professor Loureiro Fernandes que abordava o evolucionismode Lamark, Lineu e Darwin. Loureiro Fernandes relatava seus conheci-mentos sobre a origem das espécies, sobre a evolução física e culturaldo homem e padre Dreher afirmava que Deus criou o homem, à suaimagem e semelhança. Para ele, o homem não poderia descender dosprimatas e dos “macacos”. Loureiro Fernandes apresentava oevolucionismo de Darwin, como uma forma de pensamento e deconhecimento. Por outro lado, era cristão, católico praticante e leitorde Teilhard de Chardin.

Em minha casa paterna Engels e Marx eram leitura obrigatória.A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, havia lidopor recomendação de meu pai. Com base nos ensinamentos de Loureiro

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Fernandes, percebi que padre Dreher estava desatualizado em relaçãoaos avanços das pesquisas científicas, nas áreas de Antropologia eGenética. A partir daquele momento rompi com tudo que havia escuta-do nas aulas de Filosofia.

No Curso de Especialização em Antropologia Social que fiz noMuseu Nacional (1962-3) era forte a influência do estruturalismo de C.Lévi Strauss. Seu livro; As Estruturas Elementares do Parentesco, foirecomendado para ser lido e discutido em seminário. Por outro lado,Loureiro Fernandes continuava a dar prioridade aos autores queescreviam inspirados nas Escolas Evolucionista e Neo-Evolucionista.Apesar das diferentes orientações recebidas durante minha formação,professor Loureiro Fernandes deixou a imagem de um cidadãoavançado, um homem íntegro, preocupado em deixar um legado paraas novas gerações.

Professor Loureiro sempre foi muito respeitado pelos colegasque falaram neste Seminário. Também pelos estudiosos que deramcursos e dirigiram pesquisas nesta Universidade, a convite de LoureiroFernandes. Era constante a presença de antropólogos, arqueólogos,estudiosos das culturas populares e de antropologia física. Dr. EmílioWillems esteve no Departamento de Antropologia e dirigiu semináriosobre seu livro Aculturação dos Alemães no Brasil. Dr. Juan Comastambém fez palestras. Professor dr. Octavio Ianni pesquisou os Negrosno Paraná e elaborou seu livro As Metamorfoses do Escravo. Obteveapoio do professor Loureiro que integrou a Banca Examinadora de suaTese de Doutorado na Universidade de São Paulo.

José Loureiro Fernandes foi um dos antropólogos fundadoresda Associação Brasileira de Antropologia - ABA, junto com os doutoresHerbert Baldus, Luiz de Castro Faria, Darcy Ribeiro, Eduardo Galvão,Thales de Azevedo, e tantos outros que muito contribuíram para odesenvolvimento da Antropologia no Brasil. Foi seu terceiro Presidente,eleito em 1958. Realizou a 4ª Reunião da ABA em Curitiba, em 1959.Em nova reunião realizada em Curitiba, em 1986, quando eraPresidente de nossa Associação dr. Roberto Cardoso de Oliveira, emseu discurso de abertura, proferiu O Elogio da ABA, em que citou dr.Loureiro Fernandes, como um dos antropólogos que contribuiu para odesenvolvimento de nossa Ciência.

Nossa turma de bacharéis em Ciências Sociais de 1958escolheu o professor José Loureiro Fernandes, para ser o padrinho daturma. Seu discurso cativou a platéia, ocasião em que enalteceu o papelda obra de T. de Chardin. Para nós, seus afilhados, a parte melhor doacontecimento foi a viagem de trem à Paranaguá, em que narravahistórias e contava piadas. A confraternização ocorreu em restaurante

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O legado de Loureiro Fernandes

especializado em servir o barreado, prato típico de nosso litoral. Loureirocostumava mandar servir o barreado para seus convidados e explicavacomo era preparado este tradicional prato da culinária litorânea.

Este evento, em que estamos comemorando o Centenário deNascimento do Professor Loureiro Fernandes, despertou saudades dosqueridos professores que foram colegas e amigos de LoureiroFernandes: professor dr. Newton Freire-Maia, professor dr. RiadSalamuni, recentemente falecidos.

Professor Loureiro Fernandes havia sido contemporâneo demeu avô paterno, professor dr. Ulysses Falcão Vieira, catedráticofundador de Direito Penal da nossa tradicional Faculdade de Direito.Ocuparam cadeiras na Academia Paranaense de Letras.

Professor Loureiro Fernandes sabia transmitir seus conheci-mentos, ensinando a seus discípulos que a Antropologia se produz ese renova, devido ao trabalho dos antropólogos que antecederam ageração dele, às contribuições dos cientistas contemporâneos e àsdescobertas de paradigmas novos que os estudiosos produzem,realizando pesquisas e elaborando conceitos e teorias que têmcontribuído para o desenvolvimento da Antropologia.

Tenho pesquisado e produzido textos sobre os Kaingáng, PovoJê do Brasil Meridional. A contribuição de Loureiro Fernandes sobreOs Caingangues de Palmas, publicada nos Arquivos do MuseuParanaense, n. 1, 1941, continua sendo citada pelos estudiosos dessepovo. Elaborei, em 1996, um Laudo Antropológico sobre a disputajudicial de terras em Mangueirinha, PR, entre madeireiros e índios.Utilizei o trabalho de Loureiro Fernandes e censos antigos de seuarquivo, para poder provar que os Kaingáng e Guarani ocupavam terrastradicionais nessa região, antes dos Governo do Paraná/ITC e GovernoFederal/Ministério da Agricultura/SPI, reduzirem o território Kaingáng,através de Decreto, em 1949, quando ocorreu a transferência forçadados indígenas da parte central da Terra Indígena Mangueirinha.

Nesta justa homenagem, com muita emoção e imensa saudadeseus ex-alunos, colegas e amigos deram seus depoimentos sobre tãoilustre personagem da História do Paraná, desta Universidade, doDepartamento de Antropologia, do Museu de Arqueologia e Etnologiae do Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas.

Foram apresentadas suas qualidades de pesquisadorincansável, voltado para o desenvolvimento da Antropologia, suatenacidade em perseguir seus ideais e colocar em prática seus projetos,sua capacidade de bem administrar o Departamento de Antropologia, oMuseu de Arqueologia, o Museu Paranaense e tantos outros órgãosque dirigiu com seriedade e dedicação.

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Cecília Maria Vieira Helm

Sou muito grata a Loureiro Fernandes pelos seus ensinamentos,pelo exemplo e estímulo recebido, para me tornar uma antropóloga eme especializar em Etnologia Indígena.

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O legado de Loureiro Fernandes

PROF. LOUREIRO FERNANDES: OS ÚLTIMOS TEMPOS

Regina Maria de Campos Rocha*

Antes de iniciar este depoimento, quero registrar o quanto mehonrou e sensibilizou o convite do prof. Igor Chmyz para participar dascomemorações do Centenário de Nascimento do Professor JoséLoureiro Ascenção Fernandes. Primeiro, porque não é comum nestaUniversidade servidores não docentes serem convidados para eventosdeste porte. Segundo, por estar aqui com professores, que assim comoo homenageado, tiveram um papel significativo na minha formaçãoprofissional. Não fui aluna de nenhum deles, mas o convívio quasediário com estes mestres fundamentaram na então acadêmica deBiblioteconomia os princípios para reflexão do que é Universidade, doque é Pesquisa, do que é Educação e, principalmente, me fizeramperceber que ser bibliotecário é ser coadjuvante no processo de ensinoaprendizagem e não um burocrata da informação, sujeito a modismose modelos ocasionais.

Meu contato profissional com o prof. Loureiro, aconteceu em1967, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFPR. Ele, oestimado, respeitado e temido diretor do Departamento de Antropolo-gia e eu, ainda estudante de Biblioteconomia, auxiliar de biblioteca.Era hábito o diretor da Faculdade, prof. Homero de Barros, solicitarfuncionários da biblioteca para auxiliá-lo por uma ou duas horas nastarefas burocráticas. Em algumas ocasiões em que era eu a escalada,presenciei a entrada intempestiva do prof. Loureiro no Gabinete daDireção, com processos na mão, cobrando do diretor a “palavraempenhada”, ou então levando soluções para questões burocráticasque comprometiam o desenvolvimento das atividades de pesquisa oua montagem do Museu de Arqueologia e Artes Populares de Paranaguá(MAAP).

Em 1968 fui realizar o inventário da Biblioteca do Departamen-to de Antropologia. Não encontrei uma boa parte dos livros ea responsável pela Biblioteca entregou-me uma relação do material

* Bibliotecária aposentada pela UFPR. Atuou no Museu de Arqueologia e Artes Popularesde 1973 a 1978.

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bibliográfico que havia sido levado pelo prof. Loureiro para o MAAP.Fui falar com ele e duas coisas chamaram minha atenção: a cadeira demadeira, desconfortável, destinada ao visitante e um pequeno cartazafixado na parte externa da escrivaninha, bem a vista do interlocutor,com a frase “se não tens o que fazer, não o faças aqui”. Não contive oriso, ele gargalhou e disse que a frase era a justificativa para a cadeira.Quanto ao assunto da biblioteca, para ele era questão muito simplesde ser resolvida: os livros não seriam devolvidos porque compunhamagora o acervo da Biblioteca do Museu e já haviam sido adquiridoscom essa finalidade. Não havia demanda para aquelas obras aqui,estavam sendo utilizadas pelas equipes de professores, pesquisado-res e estudantes envolvidos na montagem do Museu e também pelosgrupos que estavam realizando pesquisas no litoral. Esclareceu, ainda,que havia mais livros em Paranaguá além dos da Faculdade e que eupoderia ir com ele, num final de semana, para realizar o inventário econhecer o Museu. Insisti e recebi como resposta: - “Vou requererusucapião dos livros para o Museu”, seguida de uma boa e sonoragargalhada. A mesma resposta foi dada para a chefe da Biblioteca.Prossegui o inventário nos outros departamentos e o do MAAP foiadiado.

Em 1968, o prof. Loureiro aposentou-se e nos encontramosinúmeras vezes, fora da Universidade, e nessas ocasiões, ele sempreperguntava: - “Como vai a biblioteca?”; - “Como ficarão asbibliotecas após a Reforma Universitária?”. Biblioteca para ele erao suporte fundamental para desenvolvimento de qualquer atividadeeducacional, científica ou cultural e em toda a trajetória da atuação doprof. Loureiro, nas instituições que criou ou nas que dirigiu, encontramossempre como um tripé de sustentação um conselho técnico-administrativo, uma biblioteca e uma publicação científica.

Em 1972, voltamos ao contato profissional, desta vez naReitoria. Encontravamos-nos quase diariamente, ele em peregrinaçãopelos setores administrativos e pelos gabinetes, tratando de questõesadministrativas e empenhado na reestruturação do Museu.

Desde 1972, por decisão do Conselho Universitário, o MAAPhavia se tornado orgão suplementar da UFPR, isto é, era uma unidadeorçamentária, com quadro próprio de pessoal e regimento interno,totalmente desvinculado de qualquer unidade de ensino e pesquisa.Era um órgão administrativo que não permitia a lotação de docentesem seu quadro, e não tínhamos Antropólogos, Sociólogos, Museólogosem exercício na Universidade, nem previsão de inclusão no quadro ede concurso para provimento destes cargos. Para ele, a extinção doCentro de Ensino e Pesquisas Arqueológicas e a desvinculação do

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Regina Maria de Campos Rocha

Museu das atividades de ensino representavam motivo de grandepreocupação, pois prejudicava a formação do quadro de especialistase docentes que pudessem promover, desenvolver e divulgar pesquisas,bem como impediam que o Museu cumprisse sua missão de instituiçãouniversitária comprometida com a produção e divulgação do conheci-mento científico e com a educação popular.

Quando soube que eu iria residir em Paranaguá, chamou-meem sua casa para conversarmos sobre minha transferência para oMuseu, com a finalidade de auxiliá-lo na administração, no cargo deSecretária. Afora a necessidade real de funcionário permanente emParanaguá, era prudente garantir o preenchimento do Quadro deChefias do MAAP. Além da Secretaria eu deveria organizar a Bibliote-ca, com uma condição: não devolver o material da extinta Faculdadede Filosofia. Em janeiro de 1973 o Conselho Universitário aprova oRegimento Interno do MAAP.

Em 12 de março de 1973 assumi minhas funções no MAAP.O cenário era assustador: o quadro de pessoal resumia-se a 5

faxineiros (4 da universidade, 1 cedido pela prefeitura) e uma professoracontratada pelo convênio com a Prefeitura Municipal de Paranaguá.Dos 5 faxineiros, 3 estavam com quase 70 anos e logo seriam aposen-tados compulsoriamente. Havia a promessa da nomeação de doisPreparadores de Museu, já aprovados em concurso público. Oprof. Igor, membro do Conselho Técnico Administrativo, respondiatambém pela Divisão de Arqueologia. Mesmo sem poder assumir emcaráter efetivo e oficial, face os impedimentos da legislação de pesso-al, o prof. Igor foi o colaborador mais direto do prof. Loureiro. Além dasatividades exercidas no Departamento de Antropologia, na DelegaciaRegional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional(IPHAN) no Paraná para assuntos de arqueologia e estar em fase dedoutoramento na Universidade de São Paulo (USP), todas as segundas-feiras o prof. Igor ia para Paranaguá trabalhar com o materialarqueológico do Museu e dar orientações para organização emanutenção das coleções.

As instalações museológicas necessitavam de conservação ereparos urgentes. A maresia, os fungos, os ratos, as baratas e os cupinstudo atacavam. A reserva técnica dos materiais ósseo, conchífero, líticoe cerâmico estava organizada e armazenada. A organização earmazenagem adequada da reserva técnica do material etnográficohaviam sido iniciadas por Iracê Dantas, mas não haviam sido concluí-das; ainda tinham alfaias, adornos e outros objetos para identificar eregistrar.

O prédio apresentava problemas de toda ordem, do telhado ao

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Prof. Loureiro Fernandes...

piso inferior. Vidros e janelas quebrados, o assoalho e o forro estavamna casca e na tinta e, em alguns locais, até o vigamento estava ataca-do por cupins. Os urubus desalinhavam pouco a pouco as telhas goivasdo telhado, ocasionando goteiras. As instalações elétricas estavamprecaríssimas, não permitindo sequer que todas as luzes fossemacesas.

A Biblioteca ficava no 3º piso, ouso dizer, imponente. Nãoestava organizada tecnicamente, os livros estavam apenas arrumadosnas estantes, mas o acervo era de alto nível, fazia inveja aos especia-listas de fora que visitavam o Museu. O material da extinta Faculdadede Filosofia, representava apenas uma parte da coleção. Ao longo dosanos, o prof. Loureiro foi adquirindo o que havia de melhor e tambémdoado muitas obras de sua biblioteca particular para compor umabiblioteca especializada em Antropologia, Arqueologia e CulturaPopular. Esse acervo era formado por livros raros e esgotados, livrosrecentes e uma boa hemeroteca. Entre as preciosidades, uma coleçãocompleta da revista Anhembi e da Revista do Arquivo Público Municipalde São Paulo e, as obras de todos os cronistas e viajantes.

Havia uma quantidade enorme de recortes de jornaisbrasileiros, de várias épocas, a maior parte sobre manifestações decultura popular, enviados pelos integrantes da Comissão Nacional deFolclore. Um acervo de fotografias com várias séries Xetá; de peças domuseu e de seu uso no local onde haviam sido adquiridas (seqüênciasdo tear de Franca e do Engenho de Açúcar); do prédio, antes e durantea restauração; seqüências de fotos de técnicas de cerâmica do rioMedeiros; e dos folguedos Cavalhadas de Palmas, Dança do Pau deFita, Congadas da Lapa, entre tantas outras. Todo este material estavadisperso pelas gavetas dos armários da biblioteca, da secretaria e dasala da reserva técnica de etnografia. Com os recortes e fotosencontravam-se também anotações pessoais do prof. Loureiro sobrediferentes aspectos da cultura material e estudos teóricos.

Os recursos financeiros eram mínimos para atender despesasde custeio e de capital. O minguado orçamento contingenciado eliberado em duodécimos da UFPR e os recursos oriundos do convêniocom a Prefeitura Municipal de Paranaguá. O IPHAN era responsávelpelo prédio, mas também não dispunha de aportes financeirossuficientes para isso e a UFPR era a responsável pelo Museu:instalações museólogicas, biblioteca, equipamentos e recursoshumanos. Dr. Loureiro, o prof. Igor e eu vivíamos atrás de recursos,suplementações e liberação de parcelas das verbas da Universidade eda Prefeitura de Paranaguá.

A Universidade atravessava tempos difíceis, em fase de

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acomodação de duas reformas sucessivas, em 1970 e 1973. Novosgrupos no poder, novas estruturas didática e administrativa, altarotatividade nos cargos de confiança. Os novos procedimentosadministrativos se sucediam, vindos de Brasília e fielmente executa-dos aqui, acrescidos dos controles locais. Os entraves burocráticoseram cada vez maiores e a “burrocracia”, como o prof. Loureiro chamava,retardava a solução de problemas muitas vezes corriqueiros e simples.Costumava referir-se aos burocratas, comparando-os ao bambu: - “Sãogrossos, ocos, lisos, cheios de nós e balançam ao sabor dosventos”. Neste período foram reitores os professores Algacyr Mäder,Eduardo Correia Lima e Theodócio Atherino. Em todos, o prof. Loureirodepositou sua confiança para que, finalmente, a Universidade assumisseo Museu como instituição de pesquisa e cumprisse os compromissosdo convênio com o IPHAN. Teve acesso direto aos reitores, articulavae fechava acordos, formalizados por ofícios que iniciavam “Conformeentendimentos mantidos com V. Magnificência, em seu gabinete,na presença de...”, mas o ritmo da máquina administrativa eraextremamente lento, muito aquém do ritmo dele.

Por outro lado, a Universidade crescia com a criação de novoscursos de pós-graduação nas diferentes áreas do conhecimento, etambém de novos cursos de graduação. Urgia, portanto, a necessida-de de adequar e construir novas instalações para abrigar a novaestrutura.

Percebi como seria a forma de trabalhar com o prof. Loureiroassim que assumi. Ele pediu que eu providenciasse a compra demudas de plantas utilizadas na medicina e na culinária populares, paracompor a exposição de Cultura Popular. Quando perguntei oque deveria comprar, ele riu coçando a barba e respondeu: -“Pesquise”.

Embora as exposições do Museu tivessem legendas explicativasque permitissem boas informações aos visitantes, tive curiosidade emir além das legendas e pedi orientação para o prof. Loureiro. Nessemomento tive oportunidade de conhecer o homem que dedicou suavida a estudar sua gente não por hobby, por gosto do exótico ou peloprazer da erudição. Vi ali o homem que tinha orgulho institucional, nãopessoal, um homem com a altivez de quem sabe que escolheu ocaminho certo e que divide seu conhecimento e sabedoria com grandegenerosidade, jamais com prepotência ou arrogância. As perguntassurgiam e as explicações claras eram sempre seguidas de indicaçãode leitura complementar. Mergulhei, então, no universo de Vieira dosSantos, Rocha Pita, Saint-Hilaire, Jean de Léry, Gabriel Soaresde Souza, Alceu Maynard de Araujo, Borges Schmidt e outros autores.

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Passamos os dois, percorrendo as exposições por várias semanas.A generosidade no compartilhamento e transmissão do conhecimentoera exercida com qualquer pessoa que demonstrasse interesse, decrianças a cientistas.

Para o prof. Loureiro, o que havia de mais relevante no Museueram:

- o roteiro orientado para representação da evolução do homempelas suas técnicas;

- a ousadia (para a época) de adotar a teoria de Paul Rivetpara o povoamento da América;

- os critérios estabelecidos para a formação das coleçõesmuseológicas, com peças originais que documentassem técnicas daspopulações pré-históricas, das sociedades indígenas e da culturatradicional regional - cerâmica Marajoara, cerâmica Karajá, peças deVitalino, plumária Tapirapé, tear de Franca, carrancas do São Francisco,estavam nas exposições para representar técnicas, não por sua beleza,por excentricidade ou por exotismo.

Nas incursões pelas exposições, chegamos na Casa daFarinha, a grande paixão do prof. Loureiro. Ao fazer a descrição daspeças e discorrer sobre o processo de beneficiamento da mandioca efabricação da farinha, fica emocionado ao relatar como o europeucolonizador aprendeu com o habitante da terra a transformar uma plantatóxica em alimento e como adaptaram as técnicas, máquinas e utensí-lios utilizadas na fabricação de azeite para fabricar a farinha demandioca.

Nomeados os dois preparadores de museu, foi dado início aintenso trabalho de conservação e recuperação das exposições.Primeiro, era preciso deter os predadores. Para os cupins, a misturade Pentaclorofenol, querosene e óleo Diesel; solução de Creosoto deFaia e álcool para os fungos da plumária; solução de Lysoform Bruto eágua para conter o mofo e os fungos das peças de madeira e dasparedes. Para os ratos, a solução foi dada por “seu” Felipe, o zelador:- “Para acabar com tanto rato, só mesmo um gato. Tem que ser fêma,que são boas caçadoras, os machos só comem, dormem e fazem folia”.E assim, o Museu passou a contar com a colaboração de uma belagata, carinhosamente “batizada” Gabriela.

O material necessário era adquirido pelo Museu e a mão deobra era nossa: prof. Igor, João Carlos, Maria de Lourdes, Henilde eeu. O trabalho: abrir, desmontar, desinfetar, limpar as peças, retirar ofundo das vitrinas fazer decalque das ilustrações pintadas no fundo davitrina para depois desenhar na placa de acrílico com esmalte sintéti-co, esperar secar e passar base para unhas, pintar o fundo se a placa

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estivesse em boas condições ou colocar nova, preparar e pintar;substituir as legendas antigas feitas em papel fotográfico por legendasde acrílico, reforçar ou colar novamente as parte de vidro, montarnovamente a vitrina e fechar. Era trabalho em grupo mesmo, devido aopeso das vitrinas. João Carlos combatia os cupins de forma quaseobsessiva, com ajuda dos faxineiros trocava até as tábuas do assoalho.Foram mais de dois anos nesses serviços.

Foi preciso localizar antigos mestres artesãos para recuperaralfaias, os trançados, a cestaria e as redes de pesca. Pela manhã,ficávamos sempre no Museu. À tarde, muitas vezes eram peregrina-ções a Alexandra, Morretes, Morro Inglês, Praia de Leste e Guaratuba,em busca de tanoeiros, pescadores, carapinhas e ferreiros. Por duasvezes fomos ao Sambaqui do Guaraguaçu, sítio pré-histórico tomba-do, que estava atraindo a curiosidade das empresas de turismo.

No período de 1973 a 1975, o prof. Loureiro passa longastemporadas em Paranaguá, trabalhando no Museu. As limitaçõesfísicas, seqüelas do acidente vascular cerebral sofrido em 1971 e oabalo pelo falecimento precoce de seu único filho em 1972, não oimpediram de perseguir de maneira obstinada seus objetivos decontinuar a documentar os diferentes aspetos da cultura regional. Quemacompanhou de perto e conviveu com o prof. Loureiro nos seus últimosanos de vida, entende porque o prof. João Átila Rocha1 refere-se aessa forma quase compulsiva de trabalho como “sofreguidão de quemparecia saber não dispor de muito tempo...”.

Dedica-se com afinco à sistematização das ciências da cultura,com a produção de dois textos, fruto de mais de 20 anos de estudos epesquisas, publicados nos dois primeiros números do Cadernos deArtes e Tradições Populares. Tive oportunidade de trabalhar com elena organização dos originais destes textos. As anotações antigas erampoucas, escritas em envelopes, guardanapos de papel, caixas abertasde remédio, trechos datilografados, mas eram apenas lembretes. Otexto estava pronto, na memória, fluia como se ele o estivesse lendo.Muitas vezes ditava o texto com os olhos fechados, outras com o olharpercorrendo a estanteria. As formas de trabalhar eram alternadas: oraele ditava e, quando ficava difícil articular a fala, escrevia. O talheelegante da letra de quem praticou caligrafia na infância ainda eraperceptível, mas a escrita era aglutinada e minúscula, quase ilegível.Quando passava o manuscrito para datilografar e a letra estava muito

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1 Anotações pessoais para discurso de homenagem ao Prof. Loureiro, proferido

na Academia Paranaense de Medicina.

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miúda, gargalhava e dizia: - “Hoje estou mesquinho”. A boa e sonoragargalhada também tinha sido afetada pela doença e terminava emsoluços. Muitas vezes, a mão esquerda segurava a direita para dar-lhea firmeza necessária para escrever. Entretanto, a coordenação e acoerência do pensamento eram perfeitas. Trabalhava na produção dotexto por quatro, cinco horas seguidas. Jamais abriu mão do rigorcientífico que sempre pautou sua vida de pesquisador e professor. Cadaconceito, cada afirmativa, cada citação eram cuidadosamente confron-tados e se, necessário, confirmadas nas obras de diferentes autores,as quais o prof. Loureiro parecia ter na íntegra em sua memóriaprodigiosa: Van Gennep, Leroi-Gourhan, Levi-Bruhl, Robert Lowie, Leitede Vasconcellos, Marcel Maget, Marcel Mauss, e tantos outros. Paraele, citar autores não era demonstração de erudição ou simplesmentefazer um recorte para comprovar sua idéia, era necessário conhecerprofundamente a obra, seu autor e seu contexto sócio-histórico. Haviao cuidado com o termo adotado, se era o mais representativo paradeterminado conceito e, sobretudo, com a clareza do texto. Não escreviasó para os pares, escrevia para ser compreendido por todos.

Publicado o primeiro número dos Cadernos e enviado paraantigos companheiros e instituições da área, foi grande a repercussãotanto da publicação como do artigo do prof. Loureiro. Chegam cartasde congratulações de Câmara Cascudo, Dante de Laytano, FernandoCorrêa de Azevedo, Manuel Diégues Junior, Borges Schmidt, entreoutros. Seu artigo também provoca polêmica sobre os conceitos eobjetos de estudo do Folclore que se torna pública por carta aberta doprof. Rossini Tavares de Lima. Ele vibra com a polêmica e produz outroartigo, em resposta, publicado no segundo número dos Cadernos.Quando é publicado o segundo número, percebi erros tipográficos einclusão de textos não revisados, o prof. Loureiro foi logo dizendo:- “Não faz mal, providencie uma errata para ser encartada nopróximo número”.

Simultaneamente a produção dos artigos, o prof. Loureirodedicava-se a conclusão da montagem das exposições do Setor deFolguedos Populares Dramatizados do Paraná, que ocupava parte do3° piso do prédio.

Este setor havia sido inaugurado em 1972, com a exposição daCongada da Lapa. Os trajes eram originais, da apresentação do folguedoapresentado em 1953, por ocasião do Centenário da EmancipaçãoPolítica do Estado do Paraná. Em salas totalmente escurecidas, pintadasde preto do chão ao teto, foi montada a cena da entrega da embaixadada rainha Nginga de Angola ao rei do Congo, Zumbi Ganaiame.Manequins sem rosto, pintados de preto compunham a cena da corte

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do Congo: o Rei, a Rainha e o Princepezinho, em seus tronos, o Príncipeherdeiro atrás, dois fidalgos, dois conguinhos e o embaixador de Angola.A mostra tinha recursos de luz e som. Acionado o gravador, ao fundo amúsica original da Congada e a narração da origem do folguedo. Amedida em que os personagens iam aparecendo na narração, eraacionada a minuteira e o personagem era iluminado por spots. Ao final,a cena era toda iluminada. No corredor em frente a sala da mostraficavam os painéis com as legendas sobre o folguedo e quadrospintados por Vladimír Kozák do Rei Zumbi, da Rainha e do Embaixadorde Angola. A gravação da fita com música e narração foi feita por NewtonGrilo, funcionário da universidade, que havia sido locutor de rádio.

A Congada, uma sátira a corte portuguesa, era outra das“paixões” do prof. Loureiro. Sabia de cor grandes diálogos do folguedo,e quando os recitava e relatava as trapalhadas do Embaixador e doRei Zumbi, fazia as analogias e ria muito.

Ao lado desse espaço, ainda em ambiente totalmente escure-cido, o prof. Loureiro faz a montagem de cena do Boi de Mamão daColonia Maria Luiza, com os personagens: o Boi, o Barão, a Mariola, aBernunça e o Cavalinho. Ele havia previsto montar este folguedo nosmesmos moldes da mostra da Congada da Lapa, apoiado nos estudosde Corrêa de Azevedo.

Seguindo no mesmo corredor, foi montada a vitrina dasCavalhadas de Palmas, com trajes, acessórios, armas, as máscarasde papel, as argolinhas, a placa de madeira da xilogravura das másca-ras. Nesta vitrina foi colocada a seqüência fotográfica do folguedo.

Ao final do corredor em forma de “T” Loureiro faz a montagemdas Cavalhadas de Guarapuava. Já tinha os trajes do cavaleiro árabee do cavaleiro cristão e conseguiu, em comodato, o traje de Floripes, aPrincesa Cristã. Novamente, manequins sem rosto para os trajes. Navitrina, em forma de triangular, estava a Princesa ladeada peloscavaleiros. Para compor a vitrina, o prof. Loureiro queria um Castelo,de forma que parecesse que os três personagens estavam na aberturade entrada. Contrata André Mayer, que havia trabalhado com ele noMuseu Paranaense e também na montagem do MAAP, para fazer oCastelo sob orientação dele. Quando comentei que o castelo estavafeio, e rústico, o prof. Loureiro retrucou: - “Isto é o cenário de umfolguedo popular, não o de um espetáculo do ‘Folies Bergère”. Emuma das paredes, 3 aquarelas de Levandoski, uma retratando a Rainhaa cavalo, outra o cavaleiro mouro e outra o cavaleiro cristão.Encomendou, também, um grande painel para o pintor Arthur Nísio,que já estava bastante adoentado nesta época. Nísio realizou váriosestudos para compor o quadro, onde o primeiro plano era um magnífico

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cavalo no momento da queda, montado por um cavaleiro árabe; aolado outro grandioso cavalo, empinado, montado por um cavaleirocristão. Ao ver o esboço, surge o rigor do prof. Loureiro. Gosta dotrabalho, mas pede novos estudos, porque: - “Os árabes são hábeiscavaleiros e, portanto, difíceis de serem derrubados”. Para ele, acena estaria transmitindo para os visitantes uma informação equivocadasobre o povo árabe. Este quadro foi motivo de vários aborrecimentos.O estado de saúde de Nísio piorou e seria preciso de um adiantamentode Cr$ 5.000,00 para compra de tela e tintas para executar a obra. Foisolicitado para a Reitoria, e embora esse valor não fosse de grandevulto, o adiantamento só poderia ser concedido após parecer de umacomissão de três especialistas para avaliação do custo do trabalho aser executado por Nísio. Cumpridos todos os trâmites legais, foi autori-zado o adiantamento, mas Nísio já havia falecido.

Em 1974 o Museu foi fechado para obras e era preciso madei-ra fora de bitola e falquejada. O prof. Loureiro localiza o cabocloPoinciano em Praia de Leste, que poderia executar o trabalho. Ele haviaconhecido a família de Poinciano quando realizou pesquisas nessaregião, na década de 30. A armação para o corte das tábuas não existiamais, mas o caboclo ainda tinha as ferramentas que haviam pertencidoao seu pai. Como o caboclo não lembrava de detalhes da armação, oprof. Loureiro fez o desenho, e mandou construir a peça, mandou afiaros facões, serras e serrotes. Aproveita também a oportunidade paraelaborar roteiro para realização do documentário cinematográficoEstaleiros do Litoral e contrata Vladimír Kozák para fazê-lo. Comoprecisa voltar para Curitiba, pede que eu acompanhe o trabalho, poisnão queria “arroubos de Hollywood”, um documentário deveria retrataro verdadeiro.

Quando foi desativado o Laboratório de Fotocinematografia daextinta Faculdade de Filosofia, o prof. Loureiro conseguiu salvar osdocumentários etnográficos que havia feito com Kozák e transferi-lospara o MAAP. Os armários higrométricos para armazenagem e osequipamentos necessários para limpeza e conservação de filmes nãopuderam ser levados. Esses armários não existiam no mercado, erapreciso mandar fazê-los sob encomenda e somente uma casaespecializada em material hospitalar confeccionava esse tipo deequipamento. Mesmo assim, a Reitoria abre processo licitatório. Temposdepois chega em Paranaguá um caminhão com armário frigorífico, semmotor, com quatro pitões para sustentar os higrômetros em cada porta.O professor e eu ficamos completamente enfurecidos, mas a orientaçãoera “opção pelo menor preço para realização das despesas”. O armárioficou e tivemos que improvisar as bandejas para sílica com tabuleiros

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de alumínio. A desumidificação da sílica era feita em panelas, em fogãodoméstico.

Em julho de 1973 o MAAP assume a realização de um curso deespecialização em Técnicas de Pesquisa Arqueológica Aplicadas aSítios Pré-cerâmicos, que já estava programado para ser realizado peloCEPA. Este curso foi ministrado pela dra. Annette Laming-Emperaire,do Musée de l’Homme e contou com a participação de professores dediversas universidades brasileiras e de um professor de uma universi-dade colombiana. Em setembro do mesmo ano, também no Museu, foirealizado curso de extensão de Noções de Museologia, ministrado pelamuseóloga do Museu do Índio do Rio de Janeiro, Marília Duarte Nunes.Em 1974, é assinado convênio com a Fundação Nacional do Índio(FUNAI) para realização de Curso de Museologia, em julho do mesmoano, ministrado por professores da UFPR, e de outras universidades,sob coordenação da mesma museóloga.

Em 1973, chegam em Paranaguá Julio e Janine Alvar, querealizavam pesquisas para a Universidade na região de Guaraqueçaba,e se instalam no Museu para realizar pesquisa bibliográfica. Oprof. Loureiro encontra em Julio Alvar, etnólogo, artista plástico premiadona Europa e hábil cinematografista, o interlocutor e colaborador perfeitopara documentar em filme, texto e desenho, a arte de um antigocarapinha, Antonio da Virgilina. No pátio interno do Museu foi realizadoo documentário Fuso e Concha, em Super 8. Como o processo eraainda pouco conhecido no Brasil, ele pede a Alvar que verifique emParis a possibilidade de fazer uma cópia do filme em 16 mm, para acinemateca do Museu. Afora a empatia que nasceu de imediato entreos dois, Julio Alvar tinha o que o professor considerava o “dom dotraço para desenho etnográfico, sem arroubos de artista” atributoque ele até então só tinha encontrado em Rodolpho Doubek. Alvar faztambém painéis em acrílico para a exposição da Casa da Farinha (namesma técnica que utilizávamos para restauração das legendas evitrinas), documentando as etapas da fabricação da farinha demandioca.

Em 1974, o Diretor do IPHAN, Renato Soeiro, vem para Curitibae o prof. Loureiro leva o grupo do IPHAN a Paranaguá e promove umareunião extraordinária do Conselho Técnico Administrativo do Museu.Na ocasião foi comunicado que dada a dificuldade de infra-estruturade técnicos especializados, laboratórios de restauração e conserva-ção e de bibliotecas especializadas em todos os museus ligados aoIPHAN, estava em andamento projeto para criação de um SistemaNacional de Museu. Este sistema previa o agrupamento dos museusem 5 regiões, cada uma com uma instituição sede que concentraria

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toda a infra-estrutura necessária para supervisionar, coordenar e realizaros serviços técnicos especializados necessários para funcionamentodos museus integrantes. O MAAP havia sido indicado para ser a sededa 5ª Região, aos quais ficariam subordinados os museus do IPHANlocalizados em São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande doSul. Implantado o sistema, o MAAP passaria para o IPHAN. O prof.Loureiro entusiasmado, participa da elaboração do projeto da estrutu-ra organizacional do sistema, mas muito apreensivo, pois continuava adesvinculação do Museu das atividades do ensino e da pesquisa.

Criado o sistema, legislação publicada em Diário Oficial daUnião, iniciam-se as providências para montar a infra-estrutura. Éretomado o projeto de instalação do MAAP, que previa desapropriaçãodo casario contíguo ao prédio, na rua da Praia, para construir edifíciode 2 andares para abrigar a parte administrativa, reserva técnica,laboratórios e uma biblioteca especializada de 10.000 volumes, quandoo acervo existente era de cerca de 2.000 volumes

A organização da biblioteca seguia a passos lentos, foi precisogarimpar em todo o arquivo a procedência dos livros. Foi adotada aClassificação Decimal de Dewey, com extensões para ArqueologiaPré-Histórica Brasileira e, para Cultura Popular, a Classificação deFolclore desenvolvida pelo prof. Edison Carneiro. O prof. Loureiroconhecia em profundidade os principais sistemas de classificaçãobiliográfica existentes - CDU, Ranganathan, Dewey e da Biblioteca doCongresso dos Estados Unidos. Todo o material, cerca de 2.000 livrosfoi preparado tecnicamente e, para ganhar tempo, datilografada apenasas fichas de registro e topográficas e, no catálogo as fichas de rascunho.A biblioteca foi aberta ao público para consulta local, tendo comoclientela em potencial alunos e professores da Fundação FaculdadeEstadual de Filosofia de Paranaguá. Mesmo com poucos recursosadquiríamos material bibliográfico, pelo convênio com a Prefeitura.Quando a Editora da Universidade de São Paulo faz a reedição doscronistas e viajantes, foram adquiridos todos os volumes. Mais tarde,com a criação da Biblioteca Central, foi instituído o registro único etodo o material relacionado nos mapas de registro e feitos os Termosde Responsabilidade, foi feita uma cópia de cada ficha para o catálogocoletivo de livros da Biblioteca Central. Como orgão suplementar, nãopoderíamos ter uma biblioteca “oficial”; ficamos como sucursal daBiblioteca do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, situação quepermanece até o presente.

Com a perspectiva dessa passagem para o IPHAN, a Universi-dade passa a não investir mais no Museu, e os problemas para darcontinuidade aos projetos iniciados se agravam. Indignado com corte

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no orçamento do MAAP, em fevereiro de 1975 o prof. Loureiro maisuma vez entrega o cargo ao Reitor e fui designada para substitutaeventual do Diretor do MAAP. Com isso, parte dos problemas da Reitoriaestavam resolvidos, pois a legislação vigente não permitia a perma-nência de professores aposentados em cargos comissionados, alémdo mais, o prof. Loureiro já estava com mais de 70 anos e não havia atolegal designando-o para a Direção do MAAP após a implantação danova estrutura administrativa da Universidade. O Reitor pede que elepermaneça no cargo. Para mim, o Reitor pediu paciência, argumentan-do: - “Estou sendo pressionado para regularizar a situação administra-tiva do Museu, mas se eu tirar o prof. Loureiro da direção, ele morre”. Oprof. Loureiro desconhecia sua situação irregular na direção, afinal nãohavia sido revogada sua antiga Portaria de designação. Foi um períodoextremamente incômodo e desgastante.

O prof. Loureiro nunca recebeu remuneração pelo cargo dediretor do Museu. Desde a instalação e até transformar-se em órgãosuplementar, não existia o cargo na estrutura da Universidade e quandopassou a existir, havia impedimentos legais para que ele fossedesignado. Desde que recebeu a incumbência de instalar um museuno Colégio dos Jesuítas, em Paranaguá, o único ressarcimento queele recebia eram as parcas diárias, mais tarde suspensas, pois a sededo orgão que dirigia era em Paranaguá. Embora tivesse confortávelsituação financeira e tivesse custeado inúmeras despesas do Museu,essa decisão não comunicada oficialmente o deixou magoado, poishavia sido rompido um “acordo de cavalheiros”. O mais curioso éque por mais de uma vez o Chefe de Gabinete do Reitor perguntou seeu tinha portaria de autorização para afastamento da sede para poderreceber diárias, e só aquietou-se quando eu disse que não tinha e nemiria pedir, porque eu não precisava de diárias, vinha com meu carro e,em Curitiba, ficava na casa de minha família.

As justificativas exigidas para as prestações de contas dasdespesas realizadas chegavam as raias da mesquinharia e do ridículo,como o caso das despesas com combustível para viagens que eramfeitas com o carro particular do prof. Loureiro. Mesmo que anotásse-mos no verso o motivo da viagem e a razão desse procedimento(a caminhonete do Museu não funcionava e não oferecia maissegurança), as notas não eram aceitas.

O prof. Loureiro vai para Paranaguá e fica uma boa temporadatrabalhando na edição do segundo número dos Cadernos e namontagem das exposições. Aproveito sua permanência para procedera identificação das fotografias e das suas anotações, para posteriortratamento.

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Durante as obras de recuperação da entrada do prédio, oprof. Loureiro solicita mais de uma vez ao IPHAN autorização parareabrir uma passagem do térreo para o primeiro piso, e assim corrigir ocircuito das exposições, como havia sido previsto na instalação doMuseu. Como o IPHAN não se manifesta, ele providencia a aberturada passagem e manda construir uma escada com um mezanino emmadeira para fazer a ligação. Além da correção do circuito, o mezaninopermitia ampla visão do Engenho de Açúcar. Ele tinha segurança doque estava fazendo, pois conhecia todos os detalhes da construção doantigo colégio; antes mesmo do tombamento, havia feito fotografiasem diferentes épocas e nas diversas ocupações do prédio. Sabia oque deveria ser ressaltado, o que deveria ser preservado e o quepoderia ser utilizado em benefício das instalações do museu. Grandeparte dessa obra foi custeada pelo próprio professor.

Concluídas as obras, o museu é reaberto para visitação públicae o prof. Loureiro volta a Curitiba. Seu estado de saúde estava seagravando, mas mesmo assim continuava trabalhando quase compul-sivamente. Tentava agora a interveniência do Ministro da EducaçãoNey Braga na transferência de Marília Duarte Nunes do Museu do Índiodo Rio de Janeiro para a UFPR, o que não se concretizou.

Quando o prof. Manuel Diégues Junior, companheiro de ciênciae seu amigo pessoal, assume a direção do Departamento de AssuntosCulturais do MEC, prof. Loureiro, já engajado no processo de transfor-mação do Museu em sede da 5ª Região do IPHAN, consegue que sejafirmado convênio entre a Pró-Reitoria de Orgãos Suplementares e oDAC/MEC, com aportes financeiros na ordem de Cr$ 40.000,00 paraaquisição de livros para a Biblioteca do Museu. Assim que o convêniofoi assinado, foram providenciadas listas e mais listas de livros, pedidosde orçamento para assim que chegasse a 1ª parcela da verba, fossefeita a compra. No início de dezembro os recursos foram liberados,mas na rubrica de Outros Serviços de Terceiros, o que significava nãopoder ser comprado um livro sequer. O DAC/MEC confirmou a rubrica,não havia sido engano, o valor ultrapassava o teto fixado para Despesasde Capital, por isso havia sido enviado para Despesas de Custeio.Quando dei a notícia para o prof. Loureiro, desencadeei uma tempes-tade. Vim para Curitiba tentar alguma forma de reverter a situação,afinal no convênio estavam especificados o objeto e a rubrica dedespesa correspondente, e não havia nenhum ato oficial alterando oobjeto ou a rubrica. Novamente o prof. Loureiro vai ao Reitor e, furiosocom o descaso da Universidade no encaminhamento das questões doMAAP, manifesta sua decisão de deixar definitivamente a direção. Destavez o Reitor aceita, e revela “o faz-de-conta” e também fala que não

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gostaria e nem poderia continuar enganando-o. Tempos depois, oprof. Loureiro me diz: - “Ele disse que me enganou o tempo todo”.

Na verdade, o recurso do convênio DAC/MEC havia sidoconcedido porque o prof. Diegues havia empenhado sua palavra comLoureiro, mesmo que não pudesse ser utilizado para compra de livros.Curiosamente, esse convênio que motivou o afastamento definitivo doprof. Loureiro da direção do Museu, teve parte dos recursos utilizadopara custear as despesas com a publicação editada em sua homenagempóstuma.

O prof. Loureiro deixa definitivamente a direção do Museu e,em 30 de Janeiro de 1976, o prof. Eloi da Cunha Costa assume adireção. Ele ainda voltou duas vezes a Paranaguá e esteve no Museu.Continuava indo a Reitoria para intermediar novo convênio para garantirque o MAAP, mesmo passando para o IPHAN, continuasse umainstituição de pesquisa e ensino. Em dezembro de 1976 estive em suacasa, conversamos sobre o Sistema de Museus, sobre as obras derecuperação promovidas pelo IPHAN que estavam em andamento. Maisuma vez a pergunta: - “Como vai a biblioteca?”.

O prof. Loureiro viveu seus últimos tempos e sua doença comdignidade, sem queixas e sem amargura. Sempre acompanhado pelomotorista de muitos anos, “seu” Afonso, não admitia ajuda paralocomover-se, isso só mesmo em casos de extrema necessidade. Acada tombo, só um pedido: - “Não contem para Gabriela”. Jamaisusou de sua debilidade física para conseguir favores ou atençõesespeciais dos “donos do poder”. Nunca perdeu o entusiasmo, e manteveaté o fim de sua vida o poder de indignar-se, o seu “dom da fúria”,conhecido por todos os seus colaboradores desde a sua mocidade.Continuava rasgando processos, escrevendo e enviando críticasirônicas aos procedimentos dos dirigentes dos órgãos federais,estaduais e municipais com os quais tratava, cobrando com indigna-ção os acordos não cumpridos e delongas desnecessárias nos trâmitesdas questões do Museu, e, pessoalmente, brandindo e bantendofuriosamente sua bengala. Da mesma forma, nunca usou honrarias eprêmios recebidos por sua obras como conquista pessoal. Para ele,suas vitórias e derrotas sempre foram institucionais. Nunca admitiu quese referissem ao Museu como o “Museu do Loureiro”, o MAAP era oMuseu da Universidade, um instituto de pesquisa a serviço da educaçãopopular.

Até o final de sua vida, conservou e exerceu o dom natural dacurisiodade, a atração pelas inovações tecnológicas. Volta e meialevantava questões sobre as possibilidades e em quanto tempoestaríamos utilizando recursos da informática em todas as áreas do

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Prof. Loureiro Fernandes...

conhecimento, principalmente nas bibliotecas, a exemplo do que estavaocorrendo nos Estados Unidos e Europa. Afinal, dizia ele: - AUniversidade já tem o Centro de Computação Eletrônica desde1969. A Altiva já está fazendo uso de computador em suaspesquisas”.

2 Acompanhava atentamente tudo o que se passava no

país e no exterior em jornais, revistas, televisão, correspondência econtatos pessoais. Quando o programa Fantástico documentou o últimodia de visitação das Sete Quedas, um Domingo, na segunda-feira, oprof. Loureiro fez o seguinte comentário: - “Acabaram com os Xetá ematam agora a lenda de Naipi e Tarobá”. Sôbre suas pesquisas entreos Xetá, trabalho que o projetou nacional e internacionalmente, realizadocom tanto entusiasmo, falava pouquíssimo. Loureiro havia realizadopela Universidade um documentário cinematográfico de primeiraqualidade nos aspectos científico e de telecinagem, façanha que nemo mal. Rondon, com toda a estrutura do Governo Federal e do ExércitoBrasileiro havia conseguido realizar. Com o trabalho premiado naEuropa, com cópia solicitada pelo Musée de l´Homme de Paris, elogiadopela comunidade científica nacional e internacional, não conseguiuentretanto o apoio, entre outros, de O Cruzeiro para divulgar fora domeio acadêmico o cotidiano de um grupo indígena quase em extinção.A referida revista optou pelo trabalho dos sertanistas irmãos Villas Boas.O interesse do prof. Loureiro nessa divulgação era a de assegurar apreservação desse grupo e de suas terras.

Nos longos períodos da permanência dele em Paranaguá, pudeobservar o que intriga a todos que pesquisam seus arquivos, que é aquantidade de anotações sobre diferentes temas, citações incomple-tas, referências incompletas a obras e autores, escritas nos maisvariados e curiosos tipos de papéis. Aliado ao hábito de reaproveitarpapéis, havia a urgência de registrar o pensamento, como testemunheiinúmeras vezes quando almoçávamos em algum restaurante e eletirava a caneta do bolso e fazia as anotações no guardanapo de papel,ou quando, em viagens pelos arredores de Paranaguá, fazia o mesmonas caixas de remédio.

Lamentava o exílio e o afastamento dos intelectuais brasileiroscomo Darcy Ribeiro, Octavio Ianni, Florestan Fernandes, Milton Santos,Josué de Castro, Anísio Teixeira, Paulo Freire, Mario Schenberg, CelsoFurtado entre outros, pois isso representava o empobrecimento dasciências no país, e a interrupção de linhas de pesquisa nas universida-

_______________________________2 Refería-se à Profa. Dra. Altiva Pilatti Balhana, sua ex-aluna, que em 1973

publicou O emprego de computadores na história (Revista de História, São Paulo: USP,n. 94, p. 641-644, 1973).

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Regina Maria de Campos Rocha

des brasileiras, principalmente nas Ciências Sociais. A ciência sempredeveria estar acima de qualquer ideologia, crença ou raça. O Estado ea Igreja deveriam estar à serviço da ciência e da cultura. E ele, comopoucos, soube usar o Estado e a Igreja para impulsionar e promovero desenvolvimento da ciência e da cultura nos âmbitos regional enacional.

Quando reabriu o Museu, em 1975, o prof. Loureiro mandoufazer um painel para afixar na entrada das exposições com a frase deAlmeida Garret: “Não pode ser nacional o que não é popular”. Estafrase revela as razões da crença de Loureiro Fernandes, o motivo desua opção pelo estudo do homem e sua cultura, o porque do preservare fazer conhecer o que não existe mais: só existe uma nação quando oseu povo sabe de onde veio, tem seu referencial para viver seu presentee projetar seu futuro.

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Prof. Loureiro Fernandes...

DEPOIMENTO

João Carlos Gomes Chmyz*

Dentro do círculo de tão ilustres colegas, amigos, companhei-ros e discípulos do dr. José Loureiro Fernandes, coloco-me nacondição de um aluno de sua doutrina, de um admirador da suacompetência, tenacidade, probidade e de um filho da sua dedicação.

Foi com muita satisfação que aceitei o convite do Departamen-to de Antropologia e do Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas.Sinto-me honrado em prestar este depoimento e tomado de emoçãopor poder expor um pouco sobre um homem de caráter idealista,circunspeto, conservador, reflexivo, um trabalhador incansável, devisão futurista e, ao mesmo tempo, simples e cordial, mas que eraaustero em suas decisões quando necessário se fazia.

O dr. Loureiro faz parte da minha história de vida pelo tempoque com ele convivi, pelo seu lado afetuoso e, pela influência que decerto modo norteou-me profissionalmente.

Conheci-o pessoalmente na década de sessenta, nos corredo-res do Museu Paranaense, quando este ocupava um prédio antigo darua Buenos Aires, no bairro do Batel. Seu estilo arquitetônico e suasinstalações deixaram-me fascinado. Pela primeira vez, aos meus 11anos de idade, visitava um museu onde seu diretor tinha a figura deuma pessoa imponente e marcante, mas que como criança, sentitambém seu lado tranqüilo e de calor humano. Ainda o vi por maisalgum tempo, em outras visitas ao museu.

Alguns anos mais tarde, em meados de 1972, já crescido,estudando e trabalhando, voltei a ter contato com o dr. Loureiro. Foiquando recebi dele o convite para trabalhar no Museu de Arqueologiae Artes Populares de Paranaguá (MAAP), sem remuneração, mas queaceitei, pois era a chance de fazer o que me empolgava, isto é, lidarcom coisas antigas. Estava sendo um período de reorganização domuseu. Eu atuaria como técnico e seu coadjuvante na montagem depainéis, vitrines, exposições permanentes, enfim o que fosse precisofazer.

* Museólogo do Departamento de Antropologia e Pesquisador do CEPA/UFPR.

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O dr. Loureiro era o diretor do Museu. Dia a dia me impressio-nava com sua criatividade, seu jeito metódico e organizado.

Em outubro de 1972 fui contratado pela UFPR como Auxiliar deMuseu e no ano seguinte, iniciei o Curso de Geografia da mesmaUniversidade. Isso fez com que eu tivesse que pernoitar no MAAP, parapoder cumprir minha carga horária; assim, tinha que me deslocardiariamente para Curitiba para assistir as aulas, retornando à Paranaguáno final da tarde. No ano seguinte, através de concurso público, passeia ocupar o cargo de Preparador de Museu.

Nesse período também secretariava o dr. Loureiro na suaresidência em Curitiba, que me recebia com estima familiar. Tínhamosum convívio mais estreito, de tal maneira que falava com emoção etambém com energia se tivesse que chamar a minha atenção.

Por duas vezes senti reverberar uma faceta de sua personali-dade:

- Uma, foi quando o acompanhei até o gabinete do reitorTheodócio Atherino. Sem ter marcado horário préviamente, como depraxe, passou direto pela secretária, não lhe explicando do que setratava. Entrou no gabinete onde, enfurecidamente, depois de dizerque a universidade carregava nos “erres” da burocracia e batendo comveemência na mesa do reitor com a sua elegante bengala (cabo demarfim, haste de pau-brasil e a ponta revestida em ouro), cobrou pelonão atendimento dos recursos reivindicados para o MAAP.

- A outra, para mim bastante constrangedora, foi quandodesmanchei meu noivado e ele, inconformado, tomado de razões comoum patriarca, dizia em tom imperativo estar desapontado com a minhadecisão, não me dando sequer condições para eu me manifestar.Pasmo então, o ouvi calado.

Para mim esse seu lado às vezes um tanto impetuoso era,sobretudo de justeza.

Essas cenas contadas hoje podem parecer hilariantes, masvividas, eram como se meio mundo caísse sobre a cabeça.

Apesar desses rompantes, predominava seu lado magnânimo.Sempre se preocupou em ajudar seus sectários e/ou funcionários,qualquer que fosse a função, incentivando e dando-lhes apoio paraque tivessem ascensão.

Assim, quando soube do meu ingresso no Curso de Geografia,surpreendeu-me ao doar-me três livros que lhe pertenciam, dizendoque me seriam úteis como o foram para ele. Tratava-se de O Homem:uma introdução à Antropologia, de Ralph Linton (Livraria Martins, SãoPaulo, 1953), Geografia Humana, de A. de Amorim Girão (PortucalenseEditora, Porto, 1946) e Antropogeografia, de Raimundo Lopes

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João Carlos Gomes Chmyz

(Publicações Avulsas do Museu Nacional, Rio de Janeiro, n. 16, 1956).Em dois desses livros, ainda é possível observar suas anota-

ções feitas a lápis.Em 1973 foi organizado o Curso de Aperfeiçoamento sobre

Técnicas Arqueológicas Aplicáveis a Sítios Pré-Cerâmicos. Coordena-do pela arqueóloga Annette Laming-Emperaire, dele participaramarqueólogos do Brasil e do exterior, sendo executados trabalhos deescavação no Sambaqui do Centenário.

Situado em local de difícil acesso, fui designado pelo dr.Loureiro a providenciar junto à Prefeitura de Paranaguá, a abertura doacesso ao Sambaqui.

Como o dr. Loureiro já havia sofrido um derrame e, apresenta-va dificuldades para caminhar, a minha responsabilidade e preocupa-ção tornaram-se maiores quanto à abertura do caminho para que oveículo que o levaria, pudesse chegar até o sambaqui. Mesmo tendosido meticuloso, isso não foi possível devido às condições desfavorá-veis do local (até o trator de esteira encalhou) e o curto espaço detempo para os trabalhos. Contudo, esse fato não foi obstáculo paraque o dr. Loureiro lá chegasse. Pertinaz como sempre, seguiu a pé deonde parou o veículo.

Por repetidas vezes vi nele essa força maior prevalecer enunca se resignar.

Em fevereiro de 1974, encaminhou-me para fazer estágio emMuseologia no Museu do Índio, no Rio de Janeiro.

Por volta de 1976 cogitou sobre a possibilidade de eu fazer umcurso de especialização em restauração em Portugal, por saber domeu interesse nesta área. Como dependeria de seus contatos naUniversidade de Coimbra, foi protelado para o ano seguinte, quandoveio a falecer.

Nesse ano de 1977, em fevereiro, encontrava-me em pesqui-sas de campo (segundo ano do Projeto Arqueológico Itaipu), quandoinesperadamente recebi a infortuna notícia do seu falecimento.

Fui fidedigno aos ensinamentos do mestre, desenvolvendo meutrabalho no MAAP com seriedade e dedicação. Assim sentia retribuircom gratidão toda a motivação que dele recebia.

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Depoimento

DO PROFESSOR LOUREIRO E DOS PROFESSORES

Zulmara Clara Sauner Posse*

Senhores Professores:Vê-los todos juntos, remete-me imediatamente à condição de

aprendiz. Como eterno estudante continuo aprendendo além doconhecimento modelos que orientam o aprendizado. Os professorespresentes representam tudo o que jamais saberei e que sempre aspireiatingir. Com o respeito e carinho pelo saber que acumularam e tenta-ram nos ensinar, faço um corte, utilizando o prof. Loureiro comoreferência. Certamente diante da pluralidade corro o risco doreducionismo, pois ainda sou um aprendiz.

Observar a realidade humana, analisá-la na perspectivacientífica, divulgá-la e proteger o seu patrimônio, aprendi com ossenhores e simultaneamente com o prof. Loureiro.

A figura ímpar do prof. Loureiro despertava em seus alunosfascínio e profundo respeito. No ano de 1967, os calouros do Curso deHistória aguardavam na sala 612 da Faculdade de Filosofia, Ciênciase Letras o professor de Antropologia, que segundo os veteranos, eraextremamente exigente. Esperávamos um homem alto, forte e sisudodiante as referências que nos haviam sido dadas. Eis que passa nocorredor, em frente a porta da sala, um homem baixinho, gordinho, comum chapéu na mão e emitindo uma sonora gargalhada, a qual chamaraa atenção dos alunos. Logo após, entra na sala de aula este mesmosenhor e se apresenta: - “Sou o prof. Loureiro, da Cadeira deAntropologia”. Espanto geral, seguido de silêncio, pois o prof. Loureironão mais parou de falar.

No dia da aula de Antropologia, ao chegar na sala 612, osalunos encontravam os dois quadros negros todos escritos e o prof.Loureiro em frente a mesa. A paixão com que falava contagiava a todos,não deixando espaço para conversas paralelas entre os alunos. Osilêncio se mantinha, não por medo, mas por admiração e respeito.Certo dia, comunica: - “Haverá um curso de Antropologia Física

* Professora Doutora do Departamento de Antropologia, aposentada pela UFPR. Alunada última turma na qual o prof. Loureiro lecionou a Cadeira de Antropologia Brasileira.

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ministrado por M. Harteweg, em francês e sugiro que todos ocursem”. Certamente poucos não o cursaram pois, uma indicação comoesta era suficiente. De outra feita, continuando a aula, comenta queseriam realizadas pesquisas arqueológicas nos sambaquis do litoraldo Paraná. Passa a descrever uma pesquisa que havia realizado eaponta para alguns alunos dizendo: - “Fulano e sicrano vão aoDepartamento de Antropologia falar com a profa. Maria José”. Semsaber para que, os alunos dirigem-se ao departamento e descobremque estavam sendo indicados para participar do trabalho de campo noSambaqui do Toral, em Alexandra. Desse modo inicia-se para nós umlongo aprendizado nos laboratórios do Departamento de Antropologia,no Museu de Arqueologia e Artes Populares (MAAP), no Centro deEnsino e Pesquisa Arqueológica (CEPA) e, nas atividades de campojunto aos professores de Arqueologia, sob o olhar atento do prof.Loureiro, que se aposentou em 1968. A partir de então o prof. Loureirodedica-se integralmente ao MAAP.

A perspectiva do pouco conhecido que precisava ser desven-dado, norteou as atividades daquele professor.

Como humanos viviam neste território antes da vinda doseuropeus, como continuaram a viver o que resultou do contato? Estasquestões de ordem pessoal tornaram-se um complexo problema quedeveria ser resolvido na ótica da ciência. Resultaram em pesquisasarqueológicas, etnográficas e antropológicas.

Que cenário ambiental, qual a dieta alimentar, que técnicas sãoutilizadas na obtenção, preparo e consumo dos alimentos, para habi-tar, se abrigar, invocar os deuses, despedir-se dos mortos, comunicar-se, celebrar a vida? Isto é, como através da produção material da cul-tura é possível entender tais humanos? Certamente não são somenteestas as questões que o motivaram a pesquisar. Inúmeras outras exis-tem, porém atenho-me as que pude perceber nos trabalhos do prof.Loureiro.

Em 1992, o Departamento de Antropologia, juntamente comoutros departamentos da Universidade Federal do Paraná e a Secreta-ria de Estado da Cultura do Paraná, elaboram o Projeto ProfessorLoureiro. Objetivava arrolar a documentação oriunda da biblioteca e doarquivo particular deste professor, depositados no Círculo de EstudosBandeirantes.

O relatório preliminar agrupou alguns grandes temas, sobre osquais incidia a documentação. São eles: antropologia, arqueologia,folclore, geografia, história, educação, medicina, museus, patrimônio,política e instituições que criou e participou no período de 1929 a 1976.

Diante da abrangência, poder-se-ia pensar na superficialidade

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Zulmara Clara Sauner Posse

no tratamento dos assuntos, ou na preocupação do diferente comoexótico. Visão etnocêntrica, onde o outro é percebido na posição deinferioridade tecnológica, moral, institucional, cultural enfim.

Para o prof. Loureiro, índios, caipiras, caboclos configuravam-se num universo, onde a diferença significava o outro lado da humani-dade que não sou, e portanto equivalente em complexidade. Nada há,por conseguinte, de ocasional ou aventureiro, mas uma perspectivaacadêmica e científica, situando os protagonistas da história humana.

O conjunto dos documentos revela muito mais que um pesqui-sador preocupado com seu objeto de estudo. Apontam para um profun-do envolvimento e engajamento social com os grupos que estudava.Para pesquisar, divulgar e proteger, tornava-se necessário articular emtodas as instâncias e organizar institucionalmente. Isto se depreendedos cargos políticos que assumiu, nas instituições que fundou, noscongressos nacionais e internacionais que participou e organizou, nostrabalhos que publicou e na vasta correspondência nacional e interna-cional que mantinha com pesquisadores, universidades, institutos,enfim entidades científicas e políticas. Tal preocupação não se atinhaao círculo do meio acadêmico ou de especialistas. O conhecimentoproduzido deveria tornar-se público, acessível a todos, daí suavinculação com o ensino. Os documentos revelam que para o prof.Loureiro a pesquisa e o ensino são duas faces de uma única moeda, aconstrução da consciência da sociedade regional e nacional.

Na década de 1990, retomam-se as pesquisas de laboratóriono MAAP, em Paranaguá e encontram-se alguns textos escritos peloprof. Loureiro em 1944. A leitura apresentava inúmeras dificuldades:papel transparente escrito com caneta tinteiro, páginas não numera-das, alguns pedaços de papel escritos junto às folhas, indicando queencaixavam-se no texto, em algum lugar, uma figura com desenho nãoacabado.

Como organizar, para poder ler? Fotocopiado, iniciou-se olento processo de ler, reler, ler, reler, até encontrar a seqüência, decifrarpelo papel transparente, incluir os pedaços de papel e a figura. Monta-do e paginado, eis a surpresa: eram textos inéditos sobre as As Indús-trias Locais e A Contribuição ao Estudo do Mobiliário e Utensílios doLitoral Paranaense. Para publicá-lo, outros problemas: as referênciasencontravam-se apenas indicadas, ora o sobrenome do autor, ora onome, ora o título da obra, as notas de rodapé apresentavam-se àsvezes mais extensas que a descrição no corpo do texto, incluíamcitações sem páginas ou data, ou autor, ou título da obra, indicandoclaramente que era um texto em construção.

Durante dois anos garimpou-se as referências que deveriam

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Do professor Loureiro e dos professores

ser anteriores a 1944, pois as edições posteriores, possuíam altera-ções. Todas as bibliotecas por onde o prof. Loureiro poderia ter passa-do foram pesquisadas. Finalmente, organizado, como manter-se o maisfiel possível ao estilo do autor, para adequar-se à publicação 50 anosapós, onde as normas editoriais são completamente diferentes?

Neste trabalho arqueológico sobre o prof. Loureiro, entre 1990e 1993, são encontrados os originais do texto de Júlio Alvar, escritojuntamente com o prof. Loureiro em 1975 sobre o fuso e a concha.

O texto escrito pelo prof. Loureiro, Indústrias Locais refere-seao beneficiamento do arroz, à fabricação e industrialização da farinhade mandioca, à fabricação da cerâmica, da tecelagem, os equipamen-tos, as matérias-primas, sua circulação e os utensílios domésticos.

O texto seguinte, Contribuição ao Estudo do Mobiliário,remete-se ao interior da casa caiçara, a sala, o quarto, seus utensíliose o oratório.

O texto de Júlio Alvar, Fuso e Concha, fora escrito a partir dapesquisa realizada em 1974, juntamente com prof. Loureiro, no MAAP.Relata passo a passo a confecção destas duas peças fundamentaispara a produção da farinha de mandioca. O trabalho é realizado porum “caboclo litorâneo” que as vai produzindo e explicando as técnicas,os termos, a matéria-prima, os instrumentos, isto é, a arte da transfor-mação de uma tora no “tornilho” do fuso e, o seu negativo, que é a“porca da concha”. Além do trabalho descritivo, o texto é totalmenteilustrado com desenhos de Júlio Alvar.** Há também um filme, quedocumenta as 54 horas, em que o prof. Loureiro, Alvar e Virgilinoestiveram juntos, na elaboração dos instrumentos. Penso que seencontra no MAAP, porém a ele não tive acesso.

Os originais do prof. Loureiro, segundo ele próprio, resultamdas pesquisas que, desde 1930, vinha realizando no litoral sul doParaná. Representam os elementos básicos com os quais concebeu eorganizou o circuito do MAAP, em 1958. Das pesquisas arqueológicasno litoral, a exposição sobre as sociedades pré-históricas, dos índiosKaingáng e Xetá, da exposição sobre as sociedades tribais, do caboclodo litoral e o caipira do planalto.

Neste circuito, a técnica resultante na cultura material é o fiocondutor, o qual permite realizar as demais leituras da realidade humana.

O prof. Loureiro se refere a estas técnicas alicerçadas natradição como arte, tal o significado simbólico que lhe atribui. Sua per-cepção não estava equivocada pois, vinte anos após, Lévi-Strauss, ao

** Os textos mencionados constam da coletânea organizada por Zulmara C. S. Posse epublicada pela Editora da UFPR, em 1996, sob o título: A Arte das Tradições Populares(N. do Ed.).

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Zulmara Clara Sauner Posse

escrever o Pensamento Selvagem analisa a “ciência do concreto” comoexpressão dos grupos que constroem a vida baseados na tradição.Para haver a simples transmissão de tal conhecimento, foi necessáriodurante milênios, analisar a natureza circundante, classificar cadaelemento, evidenciá-lo na relação com o todo, para então utilizá-la.Mas, os objetos não são somente utilitários, incluem a concepçãoestética, como resultado das relações entre os homens, os animais, osvegetais, o solo, as águas, as estações, o universo e os deuses.

Este tipo de conhecimento conduziu a humanidade pelomenos por 2 milhões de anos. A expressão que o prof. Loureiro utiliza,a arte das tradições populares, etnográficas e pré-históricas, antecedeum postulado teórico da antropologia contemporânea na compreensãodestes grupos humanos. Daí seu encantamento com as técnicas dapré-história, das sociedades tribais históricas, dos caiçaras, caboclose caipiras, como expressão materializada de um grupo social.

Nesta mesma década, o Departamento de Antropologia daUFPR organiza o seu acervo etnológico e, realiza uma mostra perma-nente sobre a pesquisa do prof. Loureiro com o grupo tribal Xetá. Osprimeiros registros sobre os Xetá encontram-se na caderneta decampo do prof. Loureiro, na verdade, um caderninho de aritmética, onderelata todos os acontecimentos das expedições na Serra dos Dourados.Além disso, descreve as peças oriundas das pesquisas, a matéria-prima em minúcias e estabelece o roteiro do documentário sobre ogrupo.

Observa-se, pela caderneta, que as publicações decorrentesdas pesquisas assim como o documentário são apenas parte do queobservou e analisou sobre os Xetá. Há também registro e descriçãosobre o sistema de parentesco, a organização social e os mitosrevelando que a ênfase dada à cultura material estava baseada naleitura da sociedade como um todo.

Em 1998, trabalhando com o acervo do Museu Paranaense,desenvolveu-se o projeto sobre o acervo Kozák, alí depositado e atéentão não estudado. Dentre o material fotocinematográfico, sobre váriassociedades tribais, avulta a referente ao grupo tribal Xetá. O materialcompreende grande parte das duplicatas obtidas por ocasião daspesquisas de prof. Loureiro junto ao grupo, nos anos de 1955 a 1961 eque se encontram no MAAP. Há, sem dúvida, muitas outras fotosdecorrentes das visitas individuais de Kozák aos Xetá.

O registro realizado por Kozák não possui informação escritaalguma nas fotos, assim como a cinematográfica não possui narração,nem seqüência temporal.

Graças ao trabalho publicado pelo prof. Loureiro e o

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Do professor Loureiro e dos professores

documentário sobre os Xetá, resultados das pesquisas realizadas en-tre 1955 e 1959, foi possível ordenar o material, pois são matrizes so-bre as quais todas as demais publicações posteriores ocorreram. Aestas foram acrescentadas todas as publicações conhecidas sobre osXetá, assim como as relações de viagens de Kozák, existentes noMuseu Paranaense, que escritas em tcheco, foram só então traduzidaspara o português.

Os rolos de filmes referentes aos Xetá encontravam-se deposi-tados na Cinemateca Brasileira para telecinagem, pois necessitavamrecuperação e transferência para fitas VHS. Da pesquisa sobre todoeste acervo resultou um CD-Rom denominado Quem São os Xetá, quetrata da trajetória histórica da ocupação indígena no atual territórioparanaense. Este CD-Rom destina-se às Instituições de Ensino de 1º e2º graus, auxiliando os professores na discussão sobre sociedadestribais. Era o mínimo que poderíamos fazer diante da preocupação doprof. Loureiro com a educação e a divulgação do conhecimento.

Novamente, em todo o trabalho do prof. Loureiro sobre os Xetá,encontra-se a perspectiva da relação homem com seu ambiente físico,evidenciado nas técnicas e na cultura material, não sob a ótica dasociedade e do homem, como um animal que se sujeita ao ambientefísico, mas como um ser que classifica e organiza, criando o mundoartificial da cultura.

Ainda no Museu Paranaense, no período entre 1995 a 1996,foi elaborado o Plano Diretor da Instituição, onde sistematicamenterecorria-se aos trabalhos publicados e correspondência de toda ordempara fundamentá-lo. Resultaram as pesquisas em várias publicações,traçando a história do Museu Paranaense, as sedes, a constituição doacervo, a definição do seu perfil, enfim tantos outros temas associa-dos. Emerge de tal documentação a figura do prof. Loureiro, noperíodo entre 1936 e 1949. Todos os pesquisadores presentes sabemo que significou sua orientação ao Museu Paranaense, “um centro depesquisa que alimentava as exposições e publicava seus resulta-dos”. A pesquisa rigorosamente científica encontra, nas exposições, oespaço pedagógico para o conhecimento da população e, as publica-ções, o espaço para os especialistas.

Tal preocupação se consubstancia nas áreas de Arqueologia,Etnologia e Antropologia, na criação do Centro de Ensino e PesquisasArqueológicas, Departamento de Antropologia e Museu de Arqueolo-gia e Artes Populares, todos órgãos da Universidade Federal do Paraná.

Qual a relação destes três órgãos com as categorias sociológi-cas que pesquisava? Sua documentação pessoal se refere sempre aoque “via desaparecer” e, à necessidade de preservá-las na memória.

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Zulmara Clara Sauner Posse

Ao se referir à abertura da estrada de Curitiba-Paranaguá e Caiobá-Matinhos, dava-se conta que as condições concretas de existência quepermitiam a produção cultural daqueles grupos estava ameaçada e seextinguiria com o inevitável avanço do “progresso”.

Desse modo o fandango do litoral, as cavalhadas de Palmas, acongada da Lapa, expressões de grupos, onde o modo de vida urbanoe a industrialização tiveram pouca penetração, encontravam-se diantede um processo de mudança. Seus autores sociais não mais as produ-ziriam, pois as condições culturais que os originaram e ainda osmantinham estavam expostas a profundas transformações.

Fora do contexto original, seriam novas encenações, peçasfolclóricas, exóticas e congeladas no tempo.

Por isso, pesquisá-las, documentá-las e preservá-las no MAAP,no CEPA, no Departamento de Antropologia, para que seus produtoresencontrassem no meio científico a referência validada das suas tradi-ções, não como peças de museu, mas como registro precioso damemória social. Tal preocupação também se observa em relação aosíndios do Paraná: para mantê-los seria necessário devolver suas terras,criar o Parque da Serra dos Dourados. Tal perspectiva é o que o fazlutar tanto na aprovação das leis do patrimônio, principalmente oarqueológico, pois destes grupos sociais da pré-história brasileira sórestou a cultura material.

Logo, no MAAP, estão presentes, grupos sociais extintos,sociedades tribais em processo de integração e grupos tradicionaisem situação de mudança. Em todos, a arte da produção material contéma própria arte de produzir a vida.

Para realizar localmente, tornava-se necessário conhecernacional e internacionalmente, pesquisadores e instituições, quedessem suporte científico às propostas. Basta lembrar alguns naFrança, Paul Rivet, Annette e Joseph Emperaire do Musée de l’Homme;na Iuguslávia, Adam Orssich; em Portugal, Antonio Jorge Dias daUniversidade de Coimbra e Mendes Corrêa da Universidade do Porto;nos Estados Unidos, Betty e Clifford Evans do Smithsonian Institution,com os quais, além de trabalhar junto nas pesquisas, também os trouxepara o Brasil para formar os futuros pesquisadores do Paraná emarquelogia, etnologia e artes populares. Seus interlocutores nacionais,Paulo Duarte, Luiz de Castro Faria, Herbert Baldus, Emílio Willems,Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Edison Carneiro, AntonioCandido, Câmara Cascudo, Octavio Ianni, Florestan Fernandes, DarcyRibeiro, Eduardo Galvão entre outros, ora com ele desenvolviampesquisas, orientação e discussão sobre os rumos das ciênciashumanas no país, ora vinham para Curitiba ministrar cursos para os

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Do professor Loureiro e dos professores

acadêmicos que se constituiriam nos estudiosos locais.No Paraná, Jesus Moure, Rosário Farani Mansur Guérios,

Newton Freire-Maia, João José Bigarella, Riad Salamuni, ReinhardMaack, Fernando Corrêa de Azevedo, Liguarú Espírito Santo, OswaldoPiloto, Cecília Maria Westphalen, Altiva Pilatti Balhana, Ralph Hertel,Arthur e Heloísa Barthelmess e tantos outros, junto com o prof. Loureirocriaram as bases das pesquisas científicas nas suas áreas e atuaramcomo professores nos cursos recém criados da Faculdade de Filosofiada UFPR. Após toda esta plêiade, os jovens acadêmicos Igor Chmyz,Margarida Davina Andreatta e Maria José Menezes iniciam suas vidascomo pesquisadores e professores universitários, nas áreas dearqueologia e artes populares, com o privilégio de terem recebido detodos os contemporâneos do prof. Loureiro e dele próprio, sólidaformação acadêmica, comprometida com a pesquisa, o ensino e a éticaprofissional.

Responsável pela formação de inúmeras gerações deuniversitários, muitos dos professores aqui presentes representam umuniverso de conhecimento que a experiência transformou emsabedoria.

O Centenário de Nascimento de José Loureiro AscençãoFernandes é, sem dúvida, uma oportunidade para homenageá-los,mesmo sabendo que é mais uma, dentre as muitas que os senhorestêm recebido.

Certamente, um trabalho profundo sobre as atividades de cadaum poderia resultar, Un mazzolino de fiori, a exemplo do que a profa.Cecília Westphalen elaborou sobre a trajetória acadêmica da profa.Altiva Pilatti Balhana.

O conjunto dos depoimentos e a diversidade das abordagenssobre o prof. Loureiro evidenciam a complexidade deste personagem eo significado da sua atuação na realidade paranaense do seu tempo,assim como a sua contemporaneidade.

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Zulmara Clara Sauner Posse

JOSÉ LOUREIRO FERNANDES, UM INTELECTUALNA “PROVÍNCIA”

Márcia Scholz de Andrade Kersten*

Sinto-me honrada com o convite e agradeço ao Departamentode Antropologia e ao Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas aoportunidade de participar deste Evento.

No meu entender, esta comemoração da qual hoje participa-mos transcende seu próprio objetivo. Em especial, constitui uma lutapara desbloquear os caminhos da lembrança, dos quais, normalmente,só registramos fragmentos. Na maior parte das vezes, lembrar éreconstruir com as idéias do presente experiências do passado. E, maisque isto, a memória não tem apenas caráter pessoal, ela é tambémfamiliar, grupal e social, tal como afirma Ecléia Bosi (1994).

Com essas considerações e numa tentativa de transformar oprofessor Loureiro num “outro”, ou o “familiar” em “exótico”, funçãotradicional do antropólogo, remeto à idéia de que o conhecimento évivido dentro de uma tradição cultural, cuja urdidura é semprereinterpretada. E, sobretudo, são relações intersubjetivas que seestabelecem entre quem fala e de quem se fala.

Por isso mesmo, comemorar os 100 anos de nascimento doprofessor Loureiro Fernandes implica revelar, mais que uma biografia,algumas aventuras da pesquisa etnográfica a partir de um diálogopolifônico entre o antropólogo, os grupos estudados, sua memória e opresente.

Nascido em Lisboa, em março de 1903, foi registrado noConsulado Brasileiro, pois seus pais, portugueses, residiam no Brasil.Médico por formação, buscou especializar-se em Antropologia eEtnologia, aprimorando-se em instituições na Alemanha, junto ao Museudo Homem em Paris, e na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Dedicou,assim, grande parte de sua vida à formação de jovens professores epesquisadores em Arqueologia e Antropologia.

O período em que Loureiro gestou e iniciou sua atuação intelectual

* Professora Adjunto IV do Departamento de Antropologia, aposentada pela UFPR. Vice-Diretora do Museu de Arqueologia e Etnologia da UFPR.

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e política, nos anos de 1920/30/40 e 50, assinalou decisivas transfor-mações nos planos econômico, social, político e cultural no país: aaceleração da industrialização e urbanização; a crescente intervençãodo Estado no campo da economia; a consolidação da classe operária edos empresários industriais; as revoltas militares; o declínio político daoligarquia agrária; a expansão dos aparelhos de Estado; a criaçãode novos cursos superiores e o aumento da rede de instituiçõespúblicas.

Loureiro fazia parte de um grupo de intelectuais e profissionaisliberais que podem ser identificados como intelectuais de província,1

preocupados em construir a história de seu estados e as bases de seupatrimônio. Sócio fundador do Círculo de Estudos Bandeirantes2 (1929),agregou-se a intelectuais católicos que tinham por objetivo repensar acultura paranaense e estabelecer diretrizes políticas para o seudesenvolvimento. Foi também membro ativo do movimento “folclorista”,do qual participavam advogados, médicos, professores, políticos ejornalistas impregnados por um “sentimento de missão”. Esses intelec-tuais apoiavam-se em vínculos pessoalizados e numa liga desolidariedade e confraternização, muitos deles dedicando-se à pesqui-sa de maneira irregular. Boa parte desse grupo foi funcionário público,secretários estaduais ou municipais, como o caso do professor Loureiro.Tudo isto somado a incursões pelo jornalismo, docência e política,cultivando ainda uma produção intelectual intermitente nos maisdiversos campos (VILHENA, 1997).

Alguns dilemas sobre o Brasil acompanharam o pensamentodo grupo de intelectuais do qual Loureiro participava: da “geraçãoromântica”, que elegeu o índio como símbolo, à “geração realista”, queno mais das vezes não se dizia antropólogo, mas acabou praticando efundando essa disciplina no país. A descoberta da mestiçagem e de“seus males” também aglutinou uma série de estudiosos em torno dorepensar o Brasil. Os anos trinta reviram o pessimismo da antigageração e marcaram um outro olhar sobre o país, fundado pelomovimento modernista e a importante produção de G. Freyre, influen-ciado pelos ensinamentos de F. Boas. G. Freyre transformou anegatividade do mestiço em positividade, o que permitiu completar oscontornos de uma identidade que há muito vinha desenhada (ORTIZ,

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1 Esse termo recebe, algumas vezes, conotação pejorativa, pois, quando se falaem província, geralmente, se está se contrapondo à idéia de um padrão regional em quea capital se apresenta como centro dinâmico em relação às outras regiões.

2 Loureiro Fernandes, Munhoz da Rocha Neto, Mansur Guérios, Liguarú EspíritoSanto, Nicolau dos Santos, dentre outros.

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Márcia Scholz de Andrade Kersten

1985:41). No entanto, a questão que permeia todas as diversasconcepções continuou a girar em torno da identidade brasileira e refle-tir a angustiante questão: “Que país é esse?” ou, como afirmou Robertoda Matta, “O que faz do Brazil, Brasil?” (ORTIZ, 1985).

Com essas idéias na cabeça e uma câmara na mão de umoutro não menos surpreendente quase-antropólogo, Vladimír Kozák,Loureiro procurou materializar, por meio da metodologia que atualmentese identifica como Antropologia Visual, imagens da diversidade dos“tipos” regionais paranaenses, garimpados por muitos desde 1853, anoda emancipação política do Estado. No campo do patrimônio e dapreservação, Loureiro vinculou-se desde 1938 ao grupo liderado porRodrigo Mello Franco de Andrade, com o qual sempre manteve estrei-tas relações. Pensando a especificidade cultural de sua região eintegrando-se a um novo campo disciplinar, a Antropologia, lutou pelapreservação em várias frentes: das edificações coloniais das cidadeslitorâneas, à Fonte da Carioca, em Paranaguá; da Igreja de Bom Jesusdo Saivá, em Antonina, berço do que se convencionou chamar ParanáPortuguês, ao Caminho das Tropas, encontrado perto de Tamanduá.Pregava ainda a necessidade de estabelecer um parque internacionalao longo das Cataratas do Iguaçu para preservar o ecossistema daregião,3 além da sempre intransigente defesa dos sambaquis dolitoral.

Demonstrando avanços em suas concepções, Loureiro, já em1936, argumentava junto ao Conselho de Defesa do Patrimônio CulturalParanaense sobre a necessidade de se incluir o termo “natural” à siglado Conselho, porque “... o domínio da natureza é extremamente vasto,é um patrimônio em relação ao qual a cultura se manifesta interpretandoseus princípios facies peculiares, preservando-se de mutação ou daprópria destruição em função de meros interesses econômicos”(PARANÁ, 1936:16).

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3 O Parque Nacional do Iguaçu foi criado em 01.01.1934, pelo Decreto nº 1.035.Faz fronteira com a Argentina, abraçando 1.700km2, com área de 170 mil ha. Atualmente,abrange os municípios de Foz do Iguaçu, Medianeira, Matelândia, Céu Azul e São MiguelPaulista. Ficou conhecido como Parque Nacional do Iguaçu depois de um longo processo,que começou com o Decreto nº 653, de 28 de julho de 1916, após as investidas de SantosDumont para que o lote número 9 da ex-Colônia Militar de Foz do Iguaçu passasse dasmãos do argentino Dom Jesus Val para o domínio público. A conformação atual do Paranásó foi definida em 1944, depois de, em 1939, o governo federal ter colocado a áreaparanaense sob sua proteção, através de decreto que amparava legalmente a região.O lado brasileiro da mata foi tombado pela UNESCO em 1986. Somado ao seu similarargentino, o Parque Nacional de Iguazu, fundado em 1924 e também tombadopela UNESCO, forma uma reserva de 240 mil hectares (Secretaria do Meio Ambiente/IPPUC).

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José Loureiro Fernandes...

Pioneiro e incentivador de pesquisas, criou e dirigiu o Departa-mento de Antropologia e o Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológi-cas - CEPA - do antigo Instituto de Pesquisas da Faculdade de Filoso-fia, Ciências e Letras da Universidade do Paraná, do qual foi diretor.Também diretor do Museu Paranaense, coordenou sua reestruturaçãoadministrativa e acadêmica, incentivou as pesquisas e a ampliação desua biblioteca.

No Museu Paranaense, o professor Loureiro Fernandesprocurou estimular e organizar pesquisas etnográficas e arqueológicas,reinstalando os serviços de taxidermia com a colaboração de jovenspesquisadores, além de iniciar a formação de uma biblioteca técnicacom o auxílio de trabalhos voluntários. Considerando o trabalho deseus predecessores, afirmava que “... nessa primeira fase, a mórparte da evolução do Museu processou-se sob a égide das inicia-tivas pessoais de dois ilustres paranaenses, sem que vislumbrarse possa qualquer tendência para trabalhos em equipe. Quandomuito houve um certo espírito de compreensão das diretorias emaceitar a colaboração espontânea e transitória de especialistas per-tencentes a instituições congêneres nacionais e estrangeiras”(FERNANDES; NUNES, 1956:10).

No campo da política, foi eleito vereador, pela cidade de Curitibapara exercer o mandato entre 1948 e 1951, quando o então governa-dor Moysés Lupion o designou para responder pela Secretaria deEducação e Cultura.

Na Secretaria, ele criou a Divisão do Patrimônio Histórico,Artístico e Cultural do Paraná - DPHAC (Lei nº 112, de outubro de 1948),com prerrogativas de Secretaria de Estado, com o objetivo de promo-ver “... a defesa e restauração dos monumentos e objetos artísticos ehistóricos regionais e a conservação das paisagens e formaçõesnaturais características do Estado” (PARANÁ, 1948).

A Divisão, pioneira no país, surgira também visando cooperarcom os trabalhos desenvolvidos pela então Diretoria do PatrimônioHistórico e Artístico Nacional - DPHAN, capitaneada por Rodrigo MelloFranco de Andrade. Até mesmo para adequar-se à legislação, foirecriado um Conselho assessor na área de patrimônio. Criado oConselho Consultivo do Patrimônio Histórico e Artístico do Paraná(11.08.49), foi composto por representantes de órgãos e instituiçõesligadas à cultura no Estado. Este fórum fortaleceria as decisõescolegiadas e as discussões democráticas, difundindo responsabilida-des. Embora não se possa negar o sucesso desses intelectuais nofortalecimento das atividades acadêmicas e de pesquisa, o grupo nãoconseguiu se aglutinar em torno de efetivas ações preservacionistas.

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Márcia Scholz de Andrade Kersten

Alguns anos mais tarde, o Estado do Paraná que ainda nãohavia definido legislação própria para sua política preservacionista,deixando-se conduzir pelas diretrizes emanadas do governo federal,fez aprovar a Lei nº 1.211/53,4

com a expectativa de deixar para trás asdificuldades que dominaram o cenário até o final da década de 1940. ALei, ainda em vigor, vinha dispor sobre o patrimônio histórico, artísticoe natural do Paraná, delegando responsabilidades à Divisão doPatrimônio Histórico, Artístico e Cultural, à época subordinada àDiretoria de Assuntos Culturais da Secretaria de Estado da Educaçãoe Cultura.5 Seu objetivo seria a “melhor coordenação e desenvolvimentodas atividades à proteção do Patrimônio, Histórico, Artístico e Natural”,estipulando sanções e procedimentos quanto à preservação e aotombamento de bens. O professor Loureiro Fernandes, delegado doDPHAN para representar sua diretoria no Paraná, sugeriu a urgentenecessidade de o governo fazer cumprir a legislação específica, que játinha definido os sambaquis como sítios de pesquisa de proto-história,conforme rezava o Decreto Estadual nº 1.346, de 1951.6

Além dessas atividades, Loureiro Fernandes incentivou afundação da Associação Brasileira de Antropologia - ABA, no início dadécada de 50, da qual participou ativamente desde as primeirasreuniões. Eleito presidente da Associação em 1958, organizou o quartoencontro da entidade, no ano seguinte, em Curitiba.

Os meados dos anos cinqüenta materializaram um sonho detodo etnólogo, o encontro com o “outro”, um grupo de índios Xetá nointerior do Paraná, próximo à Serra dos Dourados. Em fevereiro de1956, Loureiro coordenou expedição de pesquisa da UniversidadeFederal do Paraná e localizou duas aldeias Xetá no interior da floresta.Deste contato resultaram textos, um filme (Os Xetá), fotografias epinturas a pastel, obras de Vladimír Kozák; um painel do artista plásticoPoty Lazzarotto e inúmeras peças que atualmente compõem os acervosdo Museu de Arqueologia e Etnologia - MAE7 - e do Museu Paranaense.

Ao estabelecer pontes entre diferentes instituições uniu aUniversidade Federal do Paraná, por meio do Departamento deAntropologia e o Museu Paranaense, que, sob sua coordenação,contaram, em 1956, com pesquisadores do Museu do Homem de Paris

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4 Apesar de aprovada em 1953, a Lei nº 1.211 só foi regulamentada em 1977.5 Caberia também à Diretoria vigiar os bens tombados, com poderes para

inspecioná-los, sempre que julgasse conveniente.6 Somente três décadas mais tarde, em 1982, é que foram tombadas as reser-

vas do Sambaqui de Guaraguaçu A e B.7 A partir de 1992 o MAAP passou a designar-se MAEP e, após 1998, MAE.

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José Loureiro Fernandes...

em investigações que possibilitaram descobertas de pinturaspré-históricas, à margem esquerda do rio Tibagi.8 A equipe franco-brasileira, entre os anos de 1958/59, estudou ainda formações areníticasno Município de Piraí do Sul e trouxe novos elementos para a compre-ensão da dispersão do homem americano. Na mesma época, estudiososnorte-americanos participaram de pesquisas em sambaquis do litoral.9

Materiais coletados nestas pesquisas compõem acervos do Museu deArqueologia e Etnologia e do Centro de Estudos e PesquisasArqueológicas da UFPR e, do Museu Paranaense.

Nesse meio tempo, o professor Loureiro continuava lutandopela instalação de um museu universitário no prédio do antigo Colégiodos Jesuítas, em Paranaguá, apoiado pelo SPHAN e pela Faculdadede Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Paraná. Finalmen-te, em 29 de julho de 1963, foi inaugurado o Museu de Arqueologia eArtes Populares - MAAP. A concepção museológica que norteou oprofessor Loureiro, obedeceu à idéia de que objetos e costumes,considerados populares e restos de culturas em vias de extinção,deveriam ser resgatados e preservados, pois representariam a“autêntica expressão da brasilidade”. Subordinado ao Departamentode Antropologia da UFPR, o MAAP juntamente com o CEPA tornou-seimportante centro aglutinador para o desenvolvimento de pesquisasarqueológicas e antropológicas.

Interessante notar quanto o discurso museológico de Loureiroestava articulado aos temas nacionais sobre folclore e cultura popular,e, seu esforço em articular o nacional e o regional, garantindo a esteúltimo uma especificidade sem que a unidade fosse sacrificada. Loureiroinclusive organizara, em 1953, em Curitiba, o 2º Congresso Brasileirode Folclore, onde promoveu a apresentação dos Congos da Lapa, queconsiderava uma importante manifestação cultural paranaense, apesarde o discurso dominante à época afirmar a quase inexistência de negrosno Estado.

Em todos os momentos importantes da história recente doParaná, o professor Loureiro esteve presente. As comemorações doCentenário de Emancipação Política, em 1953, foram organizadaspor uma comissão por ele coordenada. Dois anos antes do eventoa organização das comemorações desenhou um cenário apropriado

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8 Contribuem com estudos no Paraná Joseph Emperaire e Mme. Annette Laming-Emperaire, que revolucionou o estudo da pré-história universal.

9 É o caso do pesquisador Wesley Hurt, que em 1959 explorou o Sambaqui doMacedo em colaboração com pesquisadores do Museu Paranaense e da UniversidadeFederal do Paraná.

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Márcia Scholz de Andrade Kersten

para que as novas versões do Paraná e do homem paranaense fossemveiculadas, o que fortaleceu Curitiba como centro político decisório.

O professor Loureiro faz parte de uma linhagem de intelectuaisque se estruturou a partir da fundação do Museu Paranaense, aindano século XIX. Homens que combinaram ciência e política. Parte daintelligentsia local que buscou construir uma imagem da nação.10

Idéia que se desdobra para distinguir “traços” culturais típicosmaterializados nas diferentes culturas indígenas, em manifestaçõesculturais, na literatura e mesmo no desenho arquitetônico dasedificações. Pessoas que exerciam estas funções num contexto ondeo espaço para as atividades intelectuais era reduzido, o que fazia comque as conexões pessoais fossem mais freqüentes e a autonomia entreo campo intelectual e o político fosse menor do que nos grandescentros.

Para terminar esta fala quero reafirmar que a minha colabora-ção nesta mesa é uma construção, um diálogo com outros relatos,realizada a partir de observação pessoal, inúmeras leituras e entrevis-tas com pessoas que também se observam e se interpretammutuamente. Gostaria que fosse entendida como um processo de umdiálogo que se estabeleceu há muitos anos, que aqui se fortalece eque, sem dúvida, terá repercussões que fugirão de nosso controle. Taiscomo a vida e a obra do professor José Loureiro Fernandes.

Não posso, entretanto, finalizar minha participação semcomunicar aos senhores que o MAE, tão caro ao professor Loureiro,não fugiu às comemorações do centenário de seu nascimento. Todasas atividades programadas para este ano foram norteadas visandohomenageá-lo. E o que considero mais importante são as ações derestauro e preservação de parte do acervo: as pinturas à pastel deVladmír Kozák com as figuras centrais da Congada da Lapa; as telasde Levandowski sobre a Cavalhada de Palmas; o esboço de Poty como tema do painel Os Xetá; o figurino e demais adornos da Congada eos diplomas do professor Loureiro, que encontram-se sob a guarda domuseu.

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10 Nesta época o Museu Paranaense esteve subordinado à Prefeitura de Curitiba,aguardando a organização do seu Departamento de Cultura o qual só ocorreu a 14 deoutubro de 1937, quando foi sancionada a lei municipal número 65 que o criou(FERNANDES; NUNES, 1956:5). Em 1938, o Museu ficou, novamente, subordinadoadministrativamente ao Estado do Paraná, sob a jurisdição da Secretaria do Interior eJustiça.

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José Loureiro Fernandes...

REFERÊNCIAS

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DA MATTA, Roberto. Carnavais malandros e heróis. Rio de Janeiro:Zahar, 1979.

FERNANDES, José Loureiro; NUNES, Marília Duarte. Oitenta anosde vida do Museu Paranaense. Curitiba: Tip. João Haupt e Cia.Curitiba. 1956.

KERSTEN, Márcia Scholz de Andrade. Os rituais do tombamento e aescrita da história. Curitiba: Ed. da UFPR, 2000.

ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e identidade nacional. São Paulo:Brasiliense, 1985.

PARANÁ (Estado). Conselho de Defesa do Patrimônio CulturalParanaense. Coordenadoria do Patrimônio. Curitiba. Ata n. 1. 1936.

_______ Lei nº 112, de outubro de 1948. Cria a Divisão do PatrimônioHistórico, Artístico e Cultural do Paraná - DPHAC. Diário Oficial doEstado do Paraná, Curitiba, 19 out. 1948.

VILHENA, Luiz Rodolfo da Paixão. Projeto e Missão. Rio de Janeiro:Funarte. 1997.

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Márcia Scholz de Andrade Kersten

DO MUSEU PARA A ACADEMIA: A TRAJETÓRIA INTELEC-TUAL DE LOUREIRO FERNANDES E A INSTITUCIONA-

LIZAÇÃO DA ANTROPOLOGIA NO PARANÁ

Maria Fernanda Campelo Maranhão*

Neste ano de 2003 em que homenageamos o Centenário deNascimento do Professor José Loureiro Fernandes, comemorou-setambém os cinqüenta anos da Primeira Reunião Brasileira de Antropo-logia. Em cerimônia realizada no Museu Nacional, no Rio de Janeiro,foram lembrados dos primeiros antropólogos os quais reuniram-senaquela instituição em 1953, representando os diversos estadosbrasileiros. Ao lado de Herbert Baldus, Thales de Azevedo, EgonSchaden, Darcy Ribeiro, Luiz de Castro Faria, Édison Carneiro, JoséLoureiro Fernandes apresentou um balanço da antropologia que sefazia no Paraná no artigo Possibilidades de pesquisa e de exercício deatividades técno-profissionais (FURTADO, 1999, p. 53) (Fig.1).

A cerimônia dos cinqüenta anos das reuniões da AssociaçãoBrasileira de Antropologia - ABA, e o Protocolo para o Concurso deMonografia sobre História da Antropologia Brasileira, reflete o interes-se cada vez maior dos antropólogos em estudar a história da disciplinae as especificidades da constituição do campo antropológico no Brasil.Dentro deste enfoque, diversos autores têm refletido sobre a históriada antropologia brasileira considerando dois períodos distintos: operíodo pioneiro ou ideológico e o período científico. O período pioneiro,geralmente situado entre o século XIX até o final da década de 1930,caracteriza-se entre outros aspectos pelas pesquisas antropológicasdesenvolvidas nos primeiros museus brasileiros. Por outro lado, operíodo científico refere-se à criação das primeiras Faculdades deFilosofia e o processo de institucionalização da disciplina.

No Paraná muito pouco tem sido produzido sobre as caracte-rísticas locais, socio-econômicas e culturais da constituição do campoantropológico e sua institucionalização. O Museu Paranaense, porintermédio de seu Departamento de Antropologia, tem desenvolvido

* Mestre em Antropologia Social pela UFPR e Chefe do Departamento de Antropologiado Museu Paranaense, órgão da Secretaria de Cultura do Estado do Paraná.

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Figura 1. Matéria veiculada por jornal do Rio de Janeiro, em 1953 (Acer-vo: Círculo de Estudos Bandeirantes).

desde janeiro de 2003 o projeto História da Antropologia Paranaense,com o objetivo de refletir sobre o papel fundamental do professor JoséLoureiro Fernandes1 neste processo.

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1 José Loureiro Ascenção Fernandes nasceu em Lisboa, em 1903. Formou-seem Medicina pela Faculdade Nacional do RJ, em 1927. Especializou-se nas áreas deUrologia, Arqueologia e Antropologia na Universidade de Paris, na década de 1950.Exerceu atividades como médico, político, cientista social e professor universitário. Foieleito vereador por Curitiba em 1948 e nomeado secretário de Educação e Cultura doEstado do Paraná no mesmo ano. Nessa pasta, criou a Divisão do Patrimônio Histórico,Artístico e Cultural do Paraná, dedicando-se ao tombamento e preservação de sítiosarqueológicos e do patrimônio histórico do Estado. Foi diretor do Museu Paranaense

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Maria Fernanda Campelo Maranhão

O período estudado situa-se entre as décadas de 1930 a 1960,e tem como eixo central a trajetória intelectual do antropólogo JoséLoureiro Fernandes e sua atuação em duas instituições fundamentaispara a história da antropologia no nosso estado: o Museu Paranaensee a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da Universidadedo Paraná. Desta forma à partir da análise da documentação manus-crita e impressa pertencente ao acervo destas instituições e do Círculode Estudos Bandeirantes, apresentamos neste artigo algumas reflexõespreliminares.

OS MUSEUS E AS UNIVERSIDADES: POR UMA HISTÓRIADA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA

A preocupação com o resgate da História da AntropologiaBrasileira tem sido uma constante nos últimos cinqüenta anos. Autorescomo Herbert Baldus (1954), Florestan Fernandes (1975) e CastroFaria (1998), entre outros, procuraram resgatar a história dadisciplina através de biografias, relatos bibliográficos, tendênciasteóricas, e instituições de pesquisa, como os museus e as universida-des.

Novas abordagens, como as de Mariza Peirano (1981; 1992),Mariza Corrêa (1988; 2001), Fernanda Peixoto (2001) e Lilia Schwarcz(1993; 2001) constituem estudos de interface entre a Antropologia, aHistória e a Sociologia. Essas evidenciam a produção antropológica,os antropólogos e suas instituições como objeto de estudo. Trata-se deum esforço de auto-reflexão dos antropólogos sobre sua própriadisciplina. A alteridade fundamental na pesquisa antropológica passaa ser mínima. Isso não implica ausência de alteridade, mas, sim, umdeslocamento que se traduz em “diferenças culturais, sociais,econômicas, políticas, religiosas e até territoriais” (cf. PEIRANO, 1999,p. 226).

(1936-43 e 1945-46) e chefe da Seção de Antropologia e Etnografia, onde iniciou pesqui-sas científicas nas áreas de Antropologia e Arqueologia. Em 1938, foi um dos fundadoresda Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da Universidade do Paraná. Minis-trou aulas de Antropologia, Etnografia Geral e do Brasil na FFCL e, posteriormente, tambémna Universidade Católica do Paraná (atual PUC). Na FFCL da UFPR, foi diretor eresponsável pelo projeto de criação e instalação do Instituto de Pesquisas (1950), doCentro de Ensino e Pesquisas Arqueológicas (1956), do Departamento de Antropologia(1958) e do Museu de Arqueologia e Artes Populares (1963). Foi membro de diversasinstituições culturais, como o Círculo de Estudos Bandeirantes (PUC-PR), Instituto Histórico,Geográfico e Etnográfico Paranaense e Academia Paranaense de Letras. Faleceu emCuritiba, em 1977.

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Do Museu para a Academia...

Esta preocupação não se encontra somente na antropologiabrasileira, nos EUA pode-se citar, a coleção History of Anthropo-logy dirigida por George Stocking. Na sua introdução (1983, p. 6-7), ele ressalta que:

It should be emphasized that we are not proposing a division inwhich anthropology provides subject matter and historymethodological orientation. In this respect the history ofanthropology differs significantly from that of certain otherinquiries. For the historian of physics, the methods and conceptsof that discipline do perhaps have relevance only as subjectmatter. For the historian of anthropology, they are not only theobject of inquiry, but may provide also a means by which it ispursued. As Hallowell argued several decades ago, the historyof anthropology should be approached as “an anthropologicalproblem (Hallowell,1965).

No caso brasileiro, a história da disciplina tem sido pensadapor alguns autores, considerando a década de 1930 como uma linhadivisória entre uma fase ideológica e uma fase científica das ciênciassociais no Brasil (PEIRANO,1981).

A fase ideológica compreenderia um período pioneiro, marca-do pelos relatórios de viajantes e cronistas, expedições exploratórias,relatórios de missionários e funcionários do governo. Nessa fase,também se destacam as pesquisas antropológicas desenvolvidas nosprimeiros museus brasileiros, fundados no século XIX: Museu Nacional,Museu Paraense Emílio Goeldi, Museu Paranaense2 e Museu Paulista.

Autores como Lima (1989), Schwarcz (1993, 2001), Abreu(1996) e Miceli (2001), têm discutido o caráter ideológico assim como aimportância do estudo dessas instituições e de suas coleções, para acompreensão da produção intelectual no Brasil. Para Miceli (2001, p.13):

[...] a pesquisa sobre os museus permite uma espécie dearqueologia da vida intelectual e científica no país, evidencian-do as condições políticas desse gênero de empreendimentoilustrado, os horizontes e conteúdos doutrinários que essasinstituições buscaram encampar e os padrões de dependênciaacadêmica com institutos e tradições congêneres nos paíseseuropeus.

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2 O Museu Paranaense foi fundado em 1876, sendo o terceiro museu maisantigo do Brasil.

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Maria Fernanda Campelo Maranhão

Os museus brasileiros do século XIX também podem ser pen-sados a partir de um contexto de construção da identidade nacional.Peirano (1981), em The Antropology of Antropology: The Brazilian Case,discute a relação entre a teoria antropológica e o contexto social noqual ela se desenvolve. Partindo da ideologia de construção dos estadosnacionais (nation building), a autora analisa a forma particular com que aantropologia se desenvolveu no Brasil. Defende que para o caso brasilei-ro as trajetórias intelectuais, teorias e os temas específicos abordadospela antropologia no país estão diretamente relacionados ao compro-metimento dos cientistas sociais com ideologias e projetos nacionais.

No Brasil, o comprometimento da intelectualidade com umprojeto de construção da nação brasileira inicia-se com a independênciada colônia. As teorias deterministas baseadas no darwinismo social eno evolucionismo, recém-chegadas da Europa, apontavam para ofracasso da nação, devido ao caráter deletério da mistura de raças.Schwarcz (1993) faz uma análise dos cientistas e das instituiçõesbrasileiras do final do império e início da república relacionada à questãoracial. A temática racial estava presente nos museus nacionais, nosinstitutos históricos e geográficos, nas faculdades de direito e demedicina e constituía um argumento científico para a construção de umprojeto de nação. Sob essa perspectiva evolucionista, os museusnacionais foram instituições pioneiras da pesquisa no país,desenvolvendo estudos, no século XIX, nas áreas de história natural(zoologia, botânica, paleontologia, geologia) e antropologia (antropo-logia física, arqueologia, lingüística e etnologia) (SCHWARCZ, 1993; 2001).

O apogeu dos museus nacionais ocorre a partir de 1880, com acontratação de profissionais especializados e pela atuação de diretorescom grande prestígio científico e político, como Lacerda Netto eBatista Lacerda, no Museu Nacional; Herman Von Ihering, no MuseuPaulista, e Emílio Goeldi, no Museu Paraense, que garantem asatividades dessas instituições. É nesse período que os museus organi-zam seus acervos a partir de critérios científicos, seguindo modelosclassificatórios internacionais. Revistas especializadas são criadas paradivulgar os resultados das pesquisas, tais como: Archivos do MuseuNacional (1876), Revista do Museu Paulista (1895) e Boletim do MuseuParaense (1894) (SCHWARCZ, 1993).

A partir da década de 1920, os museus nacionais entram emum processo de decadência. A década de 1930, em todo o mundo, émarcada pela crítica ao modelo evolucionista e pelo fim da era dosmuseus etnográficos. No Brasil, a decadência dos museus nacionaiscoincide com o surgimento das universidades brasileiras e a transfe-rência dos recursos financeiros, dos pesquisadores e da pesquisa

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científica para essas instituições.Esta fase denominada científica refere-se à institucionalização

da antropologia brasileira e caracteriza-se pelo surgimento da Escolade Sociologia e Política de São Paulo (1933), da Faculdade deFilosofia Ciências e Letras da USP (1934), da Universidade do DistritoFederal (1936) e da Faculdade Nacional de Filosofia no Rio de Janeiro(1939) (PEIXOTO, 2001).

Para Florestan Fernandes (1975, p. 121):

A institucionalização da investigação científica e a especializa-ção são variáveis muito importantes, nesse condicionamento,porque organizam a pesquisa científica de modo a garantireconômica, cultural e socialmente o grau de autonomia moralindispensável à realização das atividades positivas deinvestigagação e à divulgação dos resultados descobertos.Dessa maneira, a própria ciência dá origem a mecanismosorganizatórios capazes de reagir, dentro de certos limites, àspressões das ideologias, dos controles e dos valores sociais,que possam colidir ou prejudicar frontalmente a própria nature-za da investigação científica.

Com a fundação das faculdades, foram criadas as primeirasdisciplinas de antropologia e contratados professores estrangeiros,como os franceses Lévi-Strauss (1935-1938) e Roger Bastide (1938-1953); Donald Pierson, da Universidade de Chicago, e os alemãesHerbert Baldus, Emílio Willems e Egon Schaden. Também a década de1930, foi marcada pela vinda de missões americanas, em um intercâm-bio com Franz Boas e Ruth Benedict, da Columbia University, com oMuseu Nacional, promovendo o treinamento de antropólogos brasilei-ros em pesquisas de campo (PEIXOTO, 2001).

O Paraná não ficou fora desse processo de institucionalizaçãoda antropologia. Com a fundação da Faculdade de Filosofia, Ciênciase Letras do Paraná (1938), Loureiro Fernandes iniciou suas atividadesacadêmicas ministrando as disciplinas de Etnografia e Noções deTupi-guarani e trazendo professores franceses e americanos paraministrar cursos na instituição.

HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA NO PARANÁ: DO MUSEUPARANAENSE PARA A UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

Apesar de se privilegiar neste artigo o período compreendido

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entre as décadas de 1930 e 1960, é necessário contextualizar o MuseuParanaense, a mais antiga instituição cultural do Paraná, fundada nofinal do século XIX. Em uma análise preliminar da sua trajetória e dasua importância na pesquisa e na construção da identidade do homemparanaense, suas atividades podem ser divididas em três fases distintas.

A primeira fase inicia-se em 1876, com a fundação e implanta-ção do museu. A idéia de se criar um museu decorreu da necessidadede se guardarem os produtos devolvidos das Exposições Nacionais eInternacionais realizadas no Rio de Janeiro, na Europa e EstadosUnidos, desde 1851, das quais o Brasil e suas províncias participavamcom produtos agrícolas e industriais. Assim como os primeiros museusbrasileiros do século XIX, o Museu Paranaense seguiu o modeloeuropeu dos museus de história natural e gabinetes de curiosidades,marcado pela perspectiva evolucionista, pelo colecionismo e coletaassistemática de acervo.

Nessa primeira fase de atividades do Museu Paranaense,destacam-se a visita de dom Pedro II com sua comitiva, em 1880, e aparticipação da instituição na Exposição Antropológica Brasileirarealizada no Museu Nacional, em 1882. Para essa exposição, foipublicado um catálogo dos objetos remetidos e anexos com trabalhoslingüísticos e etnográficos de Telêmaco Borba e frei Luiz de Cemitille.3

Em 1900, foi publicado o primeiro Guia do Museu Paranaense(LEÃO,1900), o qual descreve separadamente o acervo de arqueolo-gia e etnografia, a pinacoteca, a numismática, as seções de mineralo-gia, de história natural e de história pátria. Uma leitura antropológicado guia e do acervo etnográfico revela os objetos expostos comoverdadeiros “troféus de guerra”, obtidos nos embates com os índioskaingáng no interior da província. O confinamento dos índios emaldeamentos próximos a colônias militares facilitou a apropriaçãodesses objetos.

A segunda fase do Museu Paranaense data do começo doséculo XX, entre 1902 e 1928, sob a direção do historiador e políticoRomário Martins.4

À frente do Museu Paranaense, ele tenta imprimir

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3 Telêmaco Borba foi diretor do Aldeamento Indígena de São Jerônimo, naregião norte da Província do Paraná, no século XIX. Frei Luiz de Cemitille, da Ordem dosCapuchinhos, também desenvolveu suas atividades religiosas nesse aldeamento. Ambosescreveram suas observações sobre os índios Kaingáng ali aldeados.

4 Alfredo Romário Martins (1874-1948), autodidata, foi considerado iniciador daHistória do Paraná; fundou diversas instituições irradiadoras do pensamento e do idealpolítico que sustentavam as ações governamentais. Concebeu os principais símbolos doEstado: a bandeira e o brasão (KERSTEN, 1998, p. 111).

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cientificidade às atividades da instituição.Criou a Secção Anthropolo-gica, manteve as de Mineralogia, Numismática e de Curiosidades,aumentou a Zoológica. O período é marcado pelo estudo e sistemati-zação das coleções do acervo. Em junho de 1904, editou o primeironúmero do Boletim do Museu Paranaense, onde revela seu interesseem ampliar o acervo etnológico (MARTINS, 1904, p. 4).

Nas collecções de anthropologia e ethnologia concentro agoratoda a minha attenção, no sentido de impulsional-as comoconvém e dar-lhes um outro relevo capaz de fazer sobre ellasgirar o maior interesse do publico e dos estudiosos Bem melhorpoderia ser representada no Museu Paranaense a secção querecolhe os exemplares, já bem raros, por onde o futuro hadeaferir da capacidade e das qualidades dos nossos indígenas.

Em 1905, foi inaugurada a Galeria Ethnográfica no museu. Alieram expostas fotografias de índios kaingáng e guarani, que visitavamCuritiba e se hospedavam no Museu Paranaense. Em 1924, a coleçãode etnografia do Museu Paranaense foi ampliada com a entrega doacervo doado por Telêmaco Borba ao Estado do Paraná. Com aexposição de seu acervo, o Museu Paranaense pretendeu cumprir nesseperíodo seu papel de divulgador de idéias paranistas5 sobre a identi-dade do homem paranaense e a ocupação do seu território.

Romário Martins, a principal liderança do movimento paranista,tem sido considerado6 um inventor de tradições (cf. HOBSBAWN,1984).Autodidata, publicou diversas obras sobre a história e as lendasindígenas do Paraná, nas quais procurou construir o mito de origem dopovo paranaense em torno da figura do índio.7 Ele e um grupo de polí-ticos e intelectuais, entre os quais, Loureiro Fernandes, fundaram nesse

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5 O movimento paranista surgiu no Paraná inserido em um contexto históriconacional denominado I República, marcado pelo positivismo, cientificismo, e a preocupa-ção com a construção de identidades regionais. Tratava-se de um movimento ufanistaque reunia políticos, artistas, literatos e intelectuais locais, com o objetivo de construir umaidentidade regional no Paraná, criando na população local um sentimento de pertencimentoa terra (PEREIRA, 1996, p. 9).

6 Ver SVARÇA, Décio. Romário Martins: o forjador, ruínas de um mito.Curitiba: Aos Quatro Ventos. 1998.

7 Romário Martins, assim como os demais intelectuais paranistas, elaboraramum discurso histórico regional, historicista e positivista, produzindo os primeiros heróis doEstado. A literatura baseava-se no resgate e apropriação de mitos indígenas, enfatizandoa partir do homem nativo e da natureza, a origem da sociedade paranaense (PEREIRA,1996, p. 9). Sobre lendas indígenas paranaenses, destaca-se, entre outras obras deRomário Martins Paiquerê: mitos e lendas, visões e aspectos (1940).

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período instituições como o Instituto Histórico Geográfico e Etnográficodo Paraná, o Círculo de Estudos Bandeirantes, o Centro Paranista e aUniversidade do Paraná, com o propósito de tornar o Estado visívelintelectualmente para o país (KERSTEN, 2000).

Seu sucessor na direção do Museu Paranaense, o médico JoséLoureiro Fernandes, deu início à pesquisa científica na instituição,contrapondo-se à visão mítica de Romário Martins sobre a identidadedo homem paranaense. Com suas pesquisas nas áreas de AntropologiaFísica, Antropologia e Arqueologia, Loureiro Fernandes adotou umaperspectiva científica, ligada a uma discussão nacional mais amplasobre o processo de substituição do intelectual literário e polivalentepelo cientista especializado.

Nomeado diretor do Museu Paranaense em 1936, pelo entãogovernador Manoel Ribas, Loureiro Fernandes apresentou seu planode organização para a instituição, baseado no trabalho de uma “equi-pe de homens de ciência”. Por decreto governamental foi criado umConselho Administrativo formado pelos diretores das Secções deHistória, Botânica, Geologia, Paleontologia, Zoologia, Antropologia eEtnografia (FERNANDES; NUNES, 1956, p.13). Juntamente com aequipe de pesquisadores contratados, deu início à estruturação dainstituição, com o objetivo de transformar o Museu Paranaense em umcentro de produção científica. Dessa forma, organizou uma bibliotecaespecializada nas áreas de conhecimento das secções, através deintercâmbios realizados com instituições congêneres brasileiras.Retomou as publicações da instituição com uma revista intituladaArquivos do Museu Paranaense, alimentada com artigos produzidospelos chefes das secções especializadas. Na área de Antropologia,destacam-se os artigos de Mansur Guérios,8 Aryon Rodrigues9 e dopróprio Loureiro Fernandes,10 além dos pesquisadores convidados, comoHerbert Baldus,11 Wanda Hanke.12

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8 Estudos sobre a língua Caingangue. Dialeto de Palmas. Arquivos do MuseuParanaense, v. 2. Curitiba. 1942.O Xocrén é idioma Caingangue. Arquivos do Museu Paranaense, v. 3. Curitiba. 1943.Neste volume também publicou estudos sobre a língua Camacã.

9 Diferenças fonéticas entre o tupi e o guarani. Arquivos do Museu Paranaense,v. 3. Curitiba. 1943.

10 Os Caingangues de Palmas. Arquivos do Museu Paranaense, v. 1. Curitiba.1941.

11 Vocabulário zoológico Kaingáng. Arquivos do Museu Paranaense, v. 6.Curitiba. 1946.

12 Ensayo de una gramática del idioma caingangue, de los Caingangues de laSerra de Apucarana. Também publicou nos Arquivos do Museu Paranaense artigossobre os índios Cadivéns, Terenos e Sirionó (1942), Botocudos (1946) e Guarayos (1950).

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No início da década de 1940, Loureiro Fernandes encaminhouao governo do estado um projeto de uma nova sede para a instituição,mais condizente com as “funções que o Museu deve exercer naformação cultural das futuras gerações paranaenses”; ou seja, “adefesa do patrimônio histórico e artístico, incremento das pesqui-sas regionais, educação popular nos domínios das ciênciashistóricas e naturais, e a instituição face ao ensino universitário”(FERNANDES; NUNES, 1956, p. 15).

Até 1948, o grupo de cientistas que constituiu o Conselho doMuseu Paranaense desenvolveu inúmeras pesquisas, conjugando-ascom as cátedras especializadas da Faculdade de Filosofia Ciências eLetras do Paraná. Transformaram, assim, “um museu velho e semviço, simples arquivo de objetos diversos que não eram resultadode pesquisa científica, nem a provocavam, em uma eficienteinstituição científica” (FERNANDES; NUNES, 1956, p. 16). Pouco apouco, as atividades de pesquisa foram transferidas para a Faculdadede Filosofia, Ciências e Letras do Paraná.

A FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DAUNIVERSIDADE DO PARANÁ

A institucionalização da Antropologia no Paraná inicia-se em1938, com a fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letrasdo Paraná.13 José Loureiro Fernandes, um dos seus fundadores,ministrou,14 no primeiro ano, as cadeiras de Etnografia e Noçõesde Tupi-Guarani, substituída no ano seguinte pela cadeira deAntropologia, Etnografia Geral e Etnografia do Brasil. Exercendo, aomesmo tempo, a função de diretor do Museu Paranaense, desen-volveu trabalhos de pesquisa em parceria entre as duas instituições(Fig. 2).

Em 1950, cria-se o Instituto de Pesquisas da Faculdade deFilosofia Ciências e Letras da UFPR. Como primeiro diretor desseInstituto, José Loureiro Fernandes começa suas atividades tendo como

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13 Anterior à fundação da FFCL do Paraná, funcionava no Círculo de EstudosBandeirantes um curso de Filosofia, o qual reunia intelectuais católicos da sociedadelocal. A iniciativa de se criar a FFCL surgiu desse grupo, do qual Loureiro Fernandestambém fazia parte.

14 Sobre os primeiros professores de Antropologia, improvisados com a criaçãodas faculdades de filosofia e recrutados a maioria entre a classe médica, ver Azevedo(1984).

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objetivo inicial o desenvolvimento de pesquisas científicas no litoral doestado, para coleta de material zoológico, botânico e etnográfico. Erameta do instituto, também, o aperfeiçoamento dos docentes no exteri-or, com a ajuda de bolsas de estudo. Ele próprio, preocupado com suaformação na área de Antropologia, freqüentou cursos de aperfeiçoa-mento em antropologia no Museu do Homem em Paris. Além disso,organizou na FFCL cursos de extensão universitária, com especialis-tas nacionais e estrangeiros.

À frente do Instituto de Pesquisas e, mais tarde, do Departa-mento de Antropologia da FFCL, José Loureiro Fernandes desenvol-veu estudos sobre as populações litorâneas do Paraná, de praia deLeste e de Guaratuba, dedicou-se a pesquisas de campo entre osíndios Xetá,15 no noroeste paranaense, e entre os Kaingang16 (Figs. 3 e4) de Palmas (PR) e de Xapecó (SC). Também se interessou em estudar“processos de aculturação” e “sobrevivências culturais” entre descen-dentes de africanos17 e de imigrantes portugueses.18

Grande parte de suas pesquisas foi registrada em filmes 16mme em fotografias por Vladimír Kozák, engenheiro, fotógrafo e cineasta

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15 FERNANDES, José Loureiro. Os índios da Serra dos Dourados: os Xetá. In:Anais da 3ª Reunião Brasileira de Antropologia: Recife. p. 27-46. 1959.The Xetá : a dying people in Brazil. Separata de: Bulletin of the international Committeeon Urgent Anthropological and Ethnological Research, n. 2, p. 22-26. 1959.Les Xetá et les palmiers de la forêt de Dourados: contribuition à l’ethnobotanique du Paraná.Separata de: Congress International des Sciences Anthropologiques et Ethnologiques(11: Paris: 1960). Actes. Paris. 1960.Le peuplement du nord-ouest du Paraná et les indiens de la Serra de Dourados”. Separatade: Boletim Paranaense de Geografia. Curitiba, n. 2/3, p. 80-91. 1961.Os índios da Serra dos Dourados: estado atual das pesquisas. Separata de : Bulletin ofthe International Comittee on Urgent Anthropological and Ethnological Research, n.5, p. 151-154. 1962.

16 FERNANDES, Loureiro José. Notas hemato-antropológicas sobre osCaingangues de Palmas. Revista Médica do Paraná, Curitiba, 8 (1/2). 1939.Os Caingangues de Palmas. Arquivos do Museu Paranaense. Curitiba, v. 1, p. 161-209,1941. Contribuição à antropometria e à hematologia dos Kaingang do Paraná. In: Anais do 31°Congresso Internacional de Americanistas. São Paulo. 1955.The Diego Blood factor in Brazilian Indians. Separata de: Nature, v. 177, p. 41, jan. 1956.FERNANDES, J. L & JUNQUEIRA, P.C.; KALMUS, H. et al. P.T.C. thresholds, colourvision and blood factors of Brazilian Indians: Kaingangs. Separata de Annals of HumanGenetics, v. 22, p. 16-21, 1957.

17 FERNANDES, José Loureiro. Notas para a Festa de S. Benedito - Congadasda Lapa. I Congresso Brasileiro de Folclore. IBECC. Rio de Janeiro, 1951.

18 FERNANDES, Loureiro José. Sobrevivências de tecnologia arcaica portugue-sa nas prensas de mandioca brasileiras. Etnologia nº 1. Departamento de Antropologia.FFCL da Universidade do Paraná. Curitiba, 1964.

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Figura 3. José Loureiro Fernandes coletando amostras de sangue de umíndio kaingáng do Posto Indígena Fioravante Esperança, Palmas - 1939(Acervo: Museu Paranaense).

Figura 2. José Loureiro Fernandes, padre Jesus Moure e equipe partindopara pesquisas de campo na década de 1950 (Acervo: Círculo de EstudosBandeirantes).

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Figura 4. José Loureiro Fernandes e as antropólogas Maria Júlia Pourchete Eny Maranhão, em pesquisas de campo entre os índios Kaingáng.Palmas, 1955 (Acervo: Círculo de Estudos Bandeirantes).

de origem tcheca, funcionário contratado pelo Instituto de Pesquisasda FFCL e responsável pela seção de audiovisual do MuseuParanaense. Além de cineasta e fotógrafo, Vladimír Kozák era tambémartista plástico, tendo documentado os índios xetá em aquarelas ecrayons. Parte de seu trabalho constitui importante acervo etnográficode vários museus, entre os quais o Museu Paranaense (WESTPHALEN,1988).

Em suas pesquisas, muitas vezes Loureiro Fernandes contoucom a participação de especialistas estrangeiros do Museu do Homemde Paris e da Academia de Ciências de Praga, nas áreas de colabora-ção de amigos e correspondentes, os antropólogos Paul Rivet (Museudo Homem de Paris), Jorge Dias (Universidade de Coimbra) e HerbertBaldus (Museu Paulista) e do primeiro diretor do Instituto do PatrimônioHistórico e Artístico Nacional, Rodrigo Mello Franco de Andrade(GARCIA, 2000; FURTADO, 1999).

A arqueologia foi outra área a que Loureiro Fernandes se dedi-cou. A criação do CEPA - Centro de Ensino e Pesquisas Arqueológicas,além do Museu de Arqueologia e Artes Populares, em Paranaguá, cons-tituem exemplos dessa dedicação. Resultado de sua atuação nessaárea também é o surgimento do PRONAPA - Programa Nacionalde Pesquisas Arqueológicas, um convênio entre o Smithsonian Intitution

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e o CNPq, com o objetivo de estabelecer uma padronização metodológicanas pesquisas arqueológicas brasileiras (CHMYZ, 2000; SOUZA, 1991).

Com seu trabalho pioneiro, José Loureiro Fernandes foi ogrande incentivador dos estudos de arqueologia, etnologia indígena ecultura popular no Paraná. A etnologia indígena foi uma das áreas emque mais se destacou. Seu trabalho entre o grupo indígena Xetá alcan-çou grande repercussão na antropologia, não só brasileira como tambéminternacional (Fig. 5). Se no contexto regional é considerado o pai e

Figura 5. Artigo do jornal The Times- Picayune, New Orleans (Acervo:Círculo de Estudos Bandeirantes).

fundador da antropologia paranaense e responsável pela formação detoda uma geração de antropólogos, no cenário nacional LoureiroFernandes foi reconhecido pelo seu trabalho, tendo sido eleito, em 1958,presidente da Associação Brasileira de Antropologia - ABA (CORRÊA,1988; 2003).

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Na minha trajetória pessoal, como aluna dos cursos de especi-alização e mestrado em antropologia social da UFPR, tive aulas comex-alunos de Loureiro Fernandes. No Museu Paranaense, como res-ponsável pelo Departamento de Antropologia, me deparo a todo mo-mento com as marcas de seu trabalho pioneiro, quer seja no acervo deetnologia indígena, na documentação fotográfica e cinematográfica, nosrelatórios e publicações do Museu Paranaense.

Ao prestar homenagem ao professor José Loureiro Fernandesem seu centenário de nascimento, pretendi com este artigo discutir suaimportância inserindo o Paraná em uma discussão mais ampla sobre aHistória da Antropologia Brasileira.

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O IMAGINÁRIO DE JOSÉ LOUREIRO FERNANDESEXPRESSO EM SEUS REGISTROS

DE MEMÓRIA

Maria Regina Furtado*

A memória é operação ideológica, processo psíquico-social derepresentação de si próprio, que reorganiza simbolicamente ouniverso das pessoas, das coisas, das imagens e relações, pelaslegitimações que produz. A memória fornece quadros deorientação, de assimilação do novo, códigos para classificaçãoe para intercâmbio social. Nesta perspectiva, o estudo damemória ganharia muito se fosse conduzido no domínio dasrepresentações sociais (MENESES, 1999).

A MEMÓRIA DOCUMENTAL E OS REFLEXOS DO IMAGINÁ-RIO

Encontrei na participação desta mesa, a oportunidade ideal parasocializar o imaginário de José Loureiro Fernandes manifestado tantonos documentos oficiais, por ele assinados, como na vasta documen-tação epistolar trocada com os familiares e com os amigos.

Durante o período que analisei a documentação e escrevisobre a sua diversificada atuação na política cultural local, (1996/2003),a análise sistemática, dos registros de memória escrita e visualdisponibilizada em diferentes arquivos1 referentes às ciências huma-nas, me permitiu observar a transformação da visão de mundo, desteintelectual católico.

A importância do papel social do trabalho da imaginação,baseado nos intensos conflitos e negociações simbólicas, tem sidoobjeto de estudo em diferentes áreas do conhecimento por especialistas

* Professora do Departamento de Antropologia da UFPR.

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1 Trata-se da pesquisa O Paranaense dos Museus: José Loureiro Fernandes(1930/1977), a ser publicada.

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pós-modernos (ANDERSON,1993; GLOUBERMAN, 1999; APPADURAI,1997), ampliando a noção de representação social proposta porDurkhein.

Os livros, as narrativas, os sonhos, as lendas, a mitologia e asimagens são, ainda hoje, um forte potencial para o desvanecimento dodia a dia como para a transformação das subjetividades que estão sendoorganizadas. Neste sentido, o exercício do poder político e ideológico,praticado no passado e, tão centralizado na atuação de grandes einfluentes líderes carismáticos, vem perdendo força com as negocia-ções e mediações propostas por diferentes segmentos sociais.

Qualquer um de nós, enquanto viajantes no tempo, podeatravés do imaginário ou da ficção científica, recuperar o passado emdiversões, fantasias ou temáticas nostálgicas além de ousar construirum futuro desejável. Seja na literatura e na arte ou seja, através dosatuais recursos da comunicação visual, que tanto nos fascina, (atelevisão, o cinema, a dinâmica auto-pista virtual através dos equipa-mentos informatizados e de fibra óptica) constituindo-se em canais detransmissão que auxiliam, agilizam e dinamizam as comunicações, alémde imprimir e exigir uma velocidade maior às ações, enriquecendo assimo fluxo e o refluxo das idéias e dos ideais socias.

Portanto, quando a imaginação caracteriza-se por ser uma pro-priedade coletiva, através de hábitos e ações culturais cotidianas, im-pregnadas pelas transversalidades políticas e ideológicas, ela repre-senta uma forte alavanca para mudanças sociais criando um novo modode lealdade à postura cidadã e étnica (APPADURAI, 1997:17-38).

Historicamente, em nosso país, a construção do nacionalismofoi um trabalho fundamental da intelligentsia, segmento social querepresentava a vanguarda do pensamento local. Possuidores derepresentatividade no universo social e com formação superior, em geralno exterior, este restrito grupo de pensadores, defendendo as idéias eas correntes modernas que, politicamente, atendiam aos interessesdas oligarquias, criaram as pontes que as aproximavam das massaspopulares.

Quando Meneses (1999, p. 24-27) ressalta que, há necessidadede estreitar a solidariedade do trabalho documental [em todas as suasinstâncias] e da produção do conhecimento histórico... [até por que], aprodução do conhecimento histórico deve ser indissociável do conheci-mento [histórico] da produção do documento, no seu sentido mais amplo,a relevância da correspondência legada por Loureiro Fernandes sedestaca, no campo da memória social como também, na condução deuma política cultural estruturada no trabalho da imaginação.

Recorrendo a Appadurai (1997:20), o trabalho da imaginação

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entendido no contexto local e no mais amplo, não é nempuramente emancipatório nem inteiramente disciplinador massim, um espaço de disputas e negociações simbólicas no qualos indivíduos e os grupos buscam anexar o global às suaspróprias práticas modernas.

Da mesma maneira, os graus de inserção no passado, variamcom a intensidade dos desejos e os motivos que os viajantes do tempo,elegem para revisitá-lo. A necessidade, a justificativa e a credibilidadeda repetição cíclica destas visitas estão ancoradas no significadosímbolo da autenticidade e da reinterpretação cultural do grupo social.

Durante o período da sistematização dos dados para a pesqui-sa (1986/2000), eu já havia compartilhado algumas imagens e idéiasdo pensamento e da prática de Loureiro Fernandes, com algunsprofessores mais próximos e amigos que tiveram a paciência e acuriosidade em ouvir-me.

No entanto, uma situação era comungar com o meu entusias-mo ao encontrar um determinado ofício ou carta, em meio a inúmerosrecortes de jornais e anotações, que complementavam as informaçõesexistentes em outro documento, já analisado, contribuindo para fecharum dos inúmeros vazios do quebra - cabeças. Outra coisa, era desco-brir que o fato de Loureiro Fernandes ser prolixo e detalhista na redaçãoe forma de expressar o seu pensamento, sobre qualquer situação pro-fissional ou mesmo pessoal (em muitos documentos, os dois universosse mesclam), me permitia visitar o seu imaginário.

Relacionar e articular os valores abstratos, a conduta ética, asidéias, a postura e as propostas científicas aos códigos simbólicos - aspalavras escritas em linhas datilografadas ou manuscritas - expres-sando o pensamento, constituem etapas do sistema construtivo doimaginário subjetivo. Quando, esta subjetividade tem representatividadee força no discurso oficial e é corroborada, como no caso de Loureiro,pela execução e concretização de algumas das tantas propostas, nãohá dúvidas que se trata de uma prática de liderança na política acadê-mica e cultural local, respaldada na visão e projeção de um futuroidealizado.

Ou seja, ao contextualizar este legado documental representa-tivo do período compreendido entre 1929 e 1977, se está situando oprocesso de construção e expansão do imaginário de LoureiroFernandes, enquanto intelectual católico - como professor catedráticofundador da antiga Faculdade de Filosofia e membro da intelligentsianacional, especialmente no que diz respeito às questões vinculadas aetnologia indígena, ao folclore, a arqueologia e a museologia; como

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secretário de Estado da Educação e Cultura; como vereador eleito peloPartido Social Democrata (PSD), como médico e professor da CadeiraClínica Urológica, como provedor da Santa Casa de Misericórdia eSecretário de Estado da Saúde. Também é possível observar, oprocesso da construção e das práticas científicas, forjadas pelasiniciativas e deliberações políticas e ideológicas do poder central, porele adotadas, que se refletiam nas áreas periféricas do eixo Rio/SãoPaulo, direcionando as tendências do imaginário coletivo, especialmenteaquele voltado para a construção da identidade nacional.

Por outro lado, aceitando que o passado é uma parte, umproduto do presente e que, continuamente se pode dar nova forma àmemória, reescrevendo a história e alterando o valor das relíquias, aidentidade percebida em cada episódio ou objeto, torna-se resultadode atos e expectativas passados que foram escritos em uma trajetóriaforjada por acordos, ajustes e pactos muitos deles, estruturados epermamentes em sua essência mas que se flexibilizam, diante dasnovas releituras e reinterpretações que estimulam situações e desejospessoais ou coletivos.

Considerando ainda, que o registro silencioso da palavraescrita, tem um valor diferencial na memória social, especialmente acoletiva, excluindo o que se deseja por interesse ou desconhecimento,o discurso ou a narrativa histórica possui um forte comprometimentocom a visão e a interpretação do seu autor e, se por um lado, estapeculiaridade compromete a autenticidade dos fatos, por outro, elarevela traços do perfil profissional e mesmo pessoal do autor e atorsocial.

Em muitos dos ofícios ou cartas reservadas ou mesmoconfidenciais, a crítica velada, o tom ácido ou mesmo o uso dasexpressões pitorescas do cotidiano da época, realçam o domínio e ocontrole que Loureiro Fernandes teve sobre as idéias e os ideais aofazer uso das palavras escritas. Terá tido o mesmo dom na sua retórica?Creio que sim.

Com o olhar voltado para esta direção é que os escritos e ospensamentos de Loureiro, neles expressados, foram revisitados paraessa Mesa Redonda. Mesmo reconhecendo que “o passado quereconstruímos é mais coerente do que realmente foi quando ocorreu”,como alerta Lowenthal (1998:340).

O IMAGINÁRIO E A FOLHA EM BRANCO

Já me questionei muitas vezes, se Loureiro Fernandes foi um

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perfeccionista e visionário na arena da política cultural, ou apenas umaeficiente ferramenta a serviço desta política, especialmente para aconcretização dos projetos da Diretoria do Patrimônio Histórico eArtístico Nacional, a então DPHAN, capitaneada por Rodrigo MelloFranco de Andrade. Se Loureiro foi de fato, um professor malasártico,ou um dos traficantes do excêntrico e mais ainda, um missioneiro daCampanha Nacional de Defesa do Folclore.2 Ou ainda, será que asminúcias de detalhes e explicações, com que expunha seu modo dever e construir o mundo científico, de desempenhar suas funçõespúblicas e acadêmicas, além de significar uma medida cautelosa noescorregadio mundo da política (especialmente a política cultural) jáapontavam para a sua conscientização, enquanto ator social e do seupapel histórico? Ou mesmo, todas estas facetas juntas?

Embora Loureiro tivesse contribuído para que, um grandenúmero de seus alunos ou discípulos tivesse se transformado emexpoentes nas suas áreas de atuação fazendo uso dos seus conheci-mentos pessoais, principalmente na Europa, não se pode desconsiderara atualização do seu discurso, mesmo sob as grossas camadas oxida-das que o tempo vêm acumulando na complexa e arcaica práticaadministrativa acadêmica e do próprio serviço público, como uma vezjá me referi.

A folha de papel em branco, que tanto desafia os pesquisado-res no momento de socializar seus trabalhos, foi a mais fiel, silenciosae significativa cúmplice da sua capacidade de trabalho, voltada para oenriquecimento e a inserção do Paraná no cenário cultural e científiconacional e internacional. Nelas, Loureiro Fernandes expressava, comseu estilo redacional, as suas idéias e projetos. Com elegância,persuasão e esmerada composição lógica ao expor o seu universoperceptivo, Loureiro conferia conteúdo e forma às suas proposiçõesescritas.

O processo gerador das suas iniciativas, como de qualqueroutro intelectual, era alavancado por duas ferramentas que constroemas interfaces entre o imaginário pessoal e o coletivo, com o campo dasrealizações. Uma destas ferramentas, no caso de Loureiro Fernandes,foi a sua consistente habilidade argumentativa que agregada ao suportematerial (a folha de papel) a tornava visível e conferia projeção na escalado tempo sócio-histórico, propiciando uma ilimitada dialética com outrosinterlocutores, como também ocorreu comigo nestes últimos anos. Mas

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2 No artigo Esse malasártico Professor Loureiro Fernandes assinado por ValfridoPilotto e publicado em O Jornal (1957); enquanto um dos ”traficantes do excêntrico”, emCorrea (1987) e, “missioneiro” em Projeto e missão de Rodolfo Vilhena (1997).

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O imaginário de José Loureiro Fernandes...

o toque pessoal e de distinção do seu processo gerador de trabalho,está situado em uma estratégia metodológica pouco considerada e usualem nosso meio. Refiro-me ao cuidado e a preocupação em resguardara visibilidade do debate das idéias, especialmente as suas,transformando-as em um legado fundamental para a construção da his-tória do pensamento católico e científico que alicerçou a produção doconhecimento no Paraná e em nosso país, durante os anos 20 a 60 doséc. XX.

Quando se considera a seletividade política e ideológica dapreservação da memória histórica, se depara com mais uma arte ouação tática deste articulador da política cultural paranaense, ou seja,ao duplicar todos os seus papéis oficiais e, ao dispersar os registros dasua obra Loureiro Fernandes reafirmava as suas convicções, reconhe-cia a precocidade de algumas proposições e, anunciava reconhecer oslimites do contexto cultural ainda em formação, o que confere ao seudiscurso uma impressionante atualidade, como será visto adiante.

Recorrendo a Bomfim (2003),

há uma inelutável associação entre atopia e utopia, uma vezque ambas encerram a idéia de lugar ou contexto sócio, político,econômico e cultural que se almeja, que se determina comometa a alcançar, mesmo que se saiba que tal meta sempre seafastará um pouco mais à frente, o que justamente caracterizao caminhar titubiante da humanidade, seja no caminho da Ver-dade, como queria Hegel, ou do Caos, em uma visão mais pes-simista, como a de Adorno.

Nesta direção, ousaria dizer que, Loureiro fazia uso da palavraescrita utopicamente, ou seja, criando ou realçando as tendências reaise concretas do seu fazer científico, ele descortinava e apontava paraas tendências latentes nas áreas do conhecimento em que atuou e asefetivava, mesmo que precocemente, negociações fossem necessári-as e realizadas. Esta foi uma das marcas desse intelectual atemporal.

OS CONTATOS INICIAIS COM AS FONTES DOCUMENTAIS

Quando cheguei na UFPR, em 1984, José Loureiro Fernandessignificava, para mim, apenas o nome do fundador do Departamentode Antropologia (DEAN) e do então Museu de Arqueologia e ArtesPopulares (MAAP) ou, o Museu de Paranaguá, como na ocasião ele

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era conhecido dentro e fora da Universidade.A presença do acervo etnográfico na ala norte do espaço

acadêmico do sexto andar do prédio D. Pedro I, era o testemunho dasatividades de pesquisas por ele realizadas no passado como também,a sala acusticamente preparada para as atividades de musicologia e ogrande mapa que ilustrava a ocupação humana em diferentes regiõesno mundo, pintado em um enorme painel de vidro.

As narrativas dos seus ex-alunos, então professores dodepartamento, tinham um tom de admiração, de respeito e, com estaaura, davam forma aos episódios e relatos que vivenciaram nas salasde aulas ou nos corredores da antiga Faculdade de Filosofia ou mesmono Museu Paranaense e no MAAP, espaços acadêmicos, científicos ede memória, nos quais Loureiro desenvolveu, coordenou eincentivou projetos nas ciências humanas e naturais formando aprimeira geração da massa crítica paranaense nestas áreas doconhecimento.

Em maio de 1989 fui designada para presidir a ComissãoMultidisciplinar que teve como finalidade apresentar uma proposta dereestruturação para o MAAP, enquanto museu universitário.3

O Projeto de Reestruturação (1989/1998), dentro dos limitesadministrativos e técnicos impostos pela realidade acadêmica da UFPR,entre outras atividades, atuou sobre o acervo etnográfico relacionadocom a cultura material indígena e a cultura popular; sobre as peçascerâmicas, ósseas, líticas e malacológicas pré-históricas; sobre adocumentação sonora e visual como também, realizou trabalhos técni-cos e sistemáticos no acervo bibliográfico.4

Foi graças ao trabalho preliminar, realizado no acervo biblio-gráfico (1985), que as fontes primárias dispersas nas estantes da bibli-oteca foram aparecendo, em meio aos demais títulos e periódicospublicados. Tais documentos, constituídos de agendas com anotaçõese cadernetas de campo, sobre as pesquisas realizadas por Joseph eAnnette Emperaire no Paraná; de correspondências administrativas epessoais, assinadas ou recebidas por Loureiro Fernandes, relacionadas

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3 Designação por força da Portaria n° 3041, de 2 de maio de 1989. Os demaiscomponentes da Comissão foram: prof. Igor Chmyz e profa. Zulmara Clara S. Posse,ambos do Departamento de Antropologia; a profa. Mariza Budant Schaaf, do Departa-mento de História e o prof. Ivens Fontoura do Departamento de Artes. Já a Portaria n° 56de 27 de abril de 1990 me designou para a Direção do Museu e deste cargo fui exonera-da, a pedido, pela Portaria n° 066 de 20 de maio de 1998.

4 Os relatórios técnicos sobre as atividades programadas e as desenvolvidasneste Projeto de Reestruturação foram depositados na biblioteca do próprio Museu. Alémdisso, uma cópia foi entregue ao DEAN e outra à Biblioteca do Setor de Humanas.

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O imaginário de José Loureiro Fernandes...

com a concepção, a implantação e a instalação do então Museu deArqueologia e Artes Populares sob as estritas orientações do escritóriocentral da então Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional(DPHAN), na pessoa de Rodrigo Mello Franco de Andrade; dos registrosdiários sobre o cotidiano de trabalho dos que ali desempenharamfunções, e de dois cadernos com anotações de pesquisas de MaríliaDuarte Nunes localizados, posteriormente, em l994.

Portanto, me deparei com um considerável e variado volumede documentos que demonstrava ser de grande interesse para oconhecimento da memória histórica sobre a cultura local, bem como,para analisar o papel social deste Museu que também refletia a políticacultural nacional praticada nos anos 50 e 60 do século passado. Deigual modo, esta leitura prévia e superficial me apontou para outrasduas realidades. Uma delas demonstrava que este conjunto de fontesnão passava de uma parte dos registros das memórias escritas efotográficas deixadas por Loureiro, uma vez que seus conteúdosremetiam às demais Instituições por onde ele havia atuado ativamente.A outra realidade, mais pessoal, é que me vi pressionada a estudar aHistória do Paraná, mais detalhadamente, para que pudesse me situarentre os interlocutores e signatários, as correntes políticas e ideológicasque balizavam ou constituíam o poder na Terra das Araucárias.

Sem dúvida que as articulações internas refletiam as lutas e asambigüidades da construção de um Paraná que ainda buscava aconsolidação da sua emancipação enquanto a 5ª Comarca de SãoPaulo. No cenário e na arena de forças, o Estado, os intelectuaiscatólicos (nos púlpitos das igrejas) e os anticlericais (nas colunas dosjornais e periódicos) representavam o tripé estrutural no qual, a socie-dade, a política e a economia paranaense se sustentavam no início doséc. XX. Indiscutivelmente, a criação do Círculo de EstudosBandeirantes (CEB) foi fundamental para que a hegemonia política eideológica católica fosse vitoriosa, concretizando o debate ideológicoque desde o final do séc. XIX, gerava e alimentava os discursosinflamados das oligarquias locais.

Loureiro Fernandes, enquanto membro fundador do CEB,inaugurado em setembro de 1929, não só viabilizou o espaço físicopara que a semente “bandeirante” pudesse germinar, disponibilizandoo porão da sua residência, como o desenvolvimento do campo dasciências humanas em Curitiba. Tenho a impressão que para Loureiro,transitar pelas salas do Círculo representava o mesmo que estar emsua casa. O endereço, rua XV de novembro 1050, sede definitiva doCírculo de Estudos Bandeirantes, além de abrigar várias instituiçõesculturais, quando recém criadas, foi o espaço escolhido por Loureiro

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para instalar o seu local de trabalho ao se aposentar, como professorcatedrático da Universidade Federal e, onde também instalou a suasala de atendimento aos indigentes. Mais tarde ali tambémLoureiro depositou, pessoalmente, outra grande parte do seu arquivopessoal.

O numeroso e diversificado universo de informações contidasem papéis avulsos, cartas, rascunhos de textos, apontamentos didáticos,cadernetas e tantos outros suportes usados pelo incansável intelectualcatólico para anotar suas idéias, foi por mim também consultado e ana-lisado.5

Tais registros revelam não só uma versão histórica sobre aformação e a trajetória do ensino superior e dos primórdios da pesquisacientífica na Área de Humanas em Curitiba como também, descortinapontos importantes dos bastidores do poder local e nacional uma vezque, enquanto ativo membro da intelligentsia, Loureiro deixou contri-buições decisivas e outras polêmicas, para e no campo das idéias comoas propostas de mudanças na política cultural e educacional que nadamais eram que práticas inovadoras, voltadas para a inserção da socie-dade paranaense na modernidade.

Associando estas fontes às informações contidas nos livros dasAtas das Sessões Ordinárias e das Reuniões da Congregação do CEB,fui levada ao arquivo da antiga Faculdade de Filosofia, hoje sob a guardado Setor de Educação da UFPR. Os registros iniciais da implantaçãodessa área do ensino público superior no Paraná, como a documenta-ção que consigna os Livros das Atas das Reuniões da Congregação,do Conselho de Administração e do Conselho Técnico Científico, alémdos Relatórios Anuais, também apontam para o importante papelacadêmico desempenhado pelo Museu Paranaense que chegou a termandato universitário, oportunizando em suas instalações, as aulaspráticas e laboratoriais nas áreas de Botânica, Zoologia, Arqueologia eEtnologia.

Em todas essas fontes e suas complementares, encontrei ocrivo da atuação, do imaginário, da preocupação científica e da condu-ção política e ideológica de Loureiro Fernandes, que evidencia a suaintenção de registrar. Eu diria até que praticava conscientemente, ofazer história.

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5 As pesquisadoras Silvana Bojanoski e Blanca Rojas, sob a coordenação daprofa. dra. Zulmara Clara S. Posse já haviam, em 1993, realizado um levantamento efichamento preliminar destas fontes, projeto que recebeu apoio da Secretaria de Estadoda Cultura.

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A VISIBILIDADE DO DEBATE DAS IDÉIAS

A trajetória de vida deste intelectual foi marcada por açõesvoltadas para a valorização dos segmentos sociais desprotegidos,excluídos e anônimos. Para ele, este era o sentido do espírito e a práticademocrática. Prática que oportunizaria, no seu entendimento, o desen-volvimento do Estado e do próprio país.

O Homem de Estudos, o Político e o Regime Democrático

Em diferentes documentos, Loureiro manifestou a sua descren-ça na política partidária, se auto definindo como um homem de estudos,o que explicaria a sua participação, como vereador eleito pelo PSD(1950/1951)?

Seu discurso e as suas proposições estavam voltados, semprecom extrema determinação, para desvendar, abrir caminhos, criar opor-tunidades e expansão para o conhecimento, especialmente o empírico.Enfim, Loureiro apostou e lutou para dar espaço e voz àqueles quesocialmente estavam silenciados além de ter como meta maior, adinamização do Museu Paranaense, incluindo uma sede própria, lutaque o fez trilhar diferentes caminhos para alcançar.

Com tais propósitos os campos da educação, da cultura e dasaúde se transformaram em seus espaços de trincheiras e embatesconforme declarou no plenário da Câmara dos Vereadores, nas ses-sões da Faculdade de Filosofia e, como Secretário de Estado da Cultura.

[...] condicionei - descrente que sou, do espírito democráticode alguns dos componentes dos atuais partidos políticos - aminha participação partidária, no setor municipal, a um prévioentendimento epistolar, no qual ficasse perfeitamentedefinida, dentro do programa do Partido Social Democrático,a esfera da minha colaboração [...] nos setores da Educação,Saúde e Cultura [...] podemos também acentuar ocompromisso publicamente assumido pelo Sr. Governador,no meio universitário, de construir em Curitiba o edifício doMuseu Paranaense [...] um alto espírito democrático e o meumui leal desejo de melhor servir à nossa Pátria no setor aoqual sempre lhe consagrei muitas das minhas atividadesprofissionais e administrativas (Ao Presidente do DiretórioMunicipal de Curitiba do PSD, 21/10/1947. Arq/CEB).6

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6 A sigla Arq/CEB significa Arquivo do Centro de Estudos Bandeirantes.

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[...] considero a permanência do Departamento de Culturae Divulgação na Secretaria de Educação e Cultura comoum anacronismo, nesta fase democrática da Nação.Mascarada, sob o rótulo de Cultura, o que se tem praticadoé Divulgação, enquadrada nas nocivas técnicas do antigoDepartamento Estadual da Imprensa e Propaganda (D.E.I.P.)[...] devemos reconhecer que qualquer tentativa dereajustamento destes serviços, com diretrizes próprias aum regime ditatorial, trairia as iniciativas culturais de umaSecretaria de Educação [...] a obra do Departamento deCultura deve ser de reeducação democrática das novasgerações e de incentivo às livres expansões das forçasculturais do nosso Estado, dentro das diretrizes da CartaMagna Brasileira e da nossa Constituição Estadual, motivopelo qual divergi, desde o início, da orientação que tinhamos trabalhos do Departamento de Cultura e Divulgação (AoPresidente e Desembargadores do Tribunal de Contas, em1948. Arq/CEB).

[...] em setembro p.p. quis renunciar o meu mandato deVereador, as ponderações de V. Excia. fizeram-me, então,retirar aquele meu pedido [...] havia acentuado que emboraeleito por um partido político, sempre me comportaria comoum homem de estudos e, não poderia agora votar a favorou contra qualquer ante-projeto, de real interesse para acoletividade de cujo conteúdo estivesse em completaignorância [...] por nem siquer trazer qualquer parecer deuma comissão, dado o caráter de urgência dado ao mesmo,[...] por essa razão deixei o recinto da Câmara, quando járecusado o pedido de vista ao referido processo, foisuspensa a sessão por quinze minutos, com o fim evidentede obter ‘quorum’ para a sua aprovação [...] Como simpleshomem de estudos, sem ambições políticas, não desejover repetidas idênticas situações e por outro lado não queroprivar o meu Partido de um voto, [...] sempre considereiesta maneira precipitada de votar processos nosLegislativos, repleta de sérios riscos para o RegimeDemocrático, particularmente num país, como o nosso,onde a educação do povo continua a ser o grande problemanacional [...] é obvio que implica praticamente na minharenúncia [...] que não deixa de ter coerência com as minhasatitudes anteriores e [...] estar perfeitamente de acordo com

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o meu desejo, sempre manifestado, de ser apenas ummodesto estudioso da nossa Terra e da nossa Gente (AoPresidente da Câmara dos Vereadores, 1951. Arq/CEB).

[...] Joaquim Paranhos informante, seguro depositário detoda uma tradição cultural o qual prestou mais de 20 anos,um serviço inestimável nos trabalhos de pesquisas nolitoral do Paraná [...] mais uma voz que se cala no mundodas tradições [...] conhecia com notável “sabença” os usose costumes que na sua adolescência aprendera com osvelhos pais [...] ainda era daqueles rudes da costa que viveudo mar e para o mar [...] singular vislumbre de nobreza emaparente contraste com a consciência íntima que tinha dehomem humilde, desamparado de conhecimentos literáriose científicos (Sessão do CEB de 24/10/1957).

[...] gostaria que me informasse se havia qualquer dificul-dade por ter o Diretor do MAAP, feito reclamações um pou-co enérgicas, pois não sou pessoa apenas de cargo querremunerados, quer honorários, pois se pelo meu modo deagir eu fosse um entrave ao desenvolvimento do Museu,desejava deixar a sua Direção (Correspondência de 19/06/68. Arq/MAEP).7

Esse simples homem de estudos, na Câmara dos Vereadoresfoi integrante da Comissão de Educação e Cultura, Higiene e Assistên-cia Social e da Comissão de Finanças e Orçamento, foi relator de algunsAnte-Projetos de Lei8 e apresentou várias moções e memoriais. Entreas propostas levantadas para sustentar as questões de interesse daCasa, foi localizada aquela apresentada na 2ª sessão do dia 30/04/51- sobre o Centro Universitário de Curitiba - que também teria sidoenviada ao Governador e que na qual discorre sobre:

[...] os estudos realizados pelo Conselho Administrativo doMuseu Paranaense e os resultados do inquérito realizadoem Curitiba por ocasião do 250º aniversário da cidade

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7 A sigla Arq/MAEP significa Arquivo do Museu de Arqueologia e Etnologia deParanaguá.

8 Como os: nº 110/51(Parecer nº 37/51) - voltado para obras de saneamento ecanalização de rios; nº 18/51(Parecer nº 56/51) - sobre abertura de crédito para paga-mento de dívidas da Prefeitura.

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para o qual trinta professores universitários foramconsultados e dos quais 2/3 opinaram pela continuidadedo Centro, na situação em que se encontra [a praça SantosAndrade]...

A apresentação foi longa e detalhada e, o seu conteúdo pri-mordial, girava em torno da distribuição urbana e espacial dos centrosuniversitários na cidade, conforme hoje se encontram localizados oCentro Politécnico e a Escola de Agronomia e Veterinária e o não des-locamento do centro universitário da área urbana. Como nas demaisproposições, sempre bem fundamentadas, Loureiro discorre sobre osresultados do inquérito e solicita respeito e consideração à postura eàs asserções dos docentes afirmando na continuidade do documento:

[...] é um trabalho onde estão condensadas as opiniões dediferentes representantes do nosso pensamento universi-tário, e que me parece deve merecer um certo estudo eatenção, antes que os poderes públicos digam a últimapalavra (Na sessão da Câmara dos Vereadores de 30/04/51.Arq/CEB).

O Professor Catedrático e a Expansão do Conhecimento

Mais que um professor catedrático, Loureiro Fernandes atuavacomo um mestre na arte de transmitir e expandir o conhecimento. Seuentendimento sobre o ensino e a educação estava situado além dosespaços tradicionais da academia. Portanto, os meios e os demaisespaços eram criados com raro entusiasmo e, estruturados oficialmen-te, alicerçando a difusão dos estudos nas várias áreas de análise eapropriação do objeto científico. Da mesma maneira que deu lugar evalor ao conhecimento caboclo. Nesta direção, abriu campos detrabalhos e novos caminhos de observação e pesquisas, mesmosabendo que enfrentaria os maiores obstáculos que se localizavam, nabase burocrática institucional, nos interesses da política cultural e nalenta e desistimulada percepção da universalidade do conhecimento,de muito dos seus pares.

[...] somos dos que pensam que ‘a pesquisa e o ensino nãosão antagônicos’ e o verdadeiro ensino não é só aula ma-gistral mas o contato direto com o aluno [...] e também irápreencher suas altas finalidades incentivando a formaçãode jovens investigadores, para assegurar a melhoria

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O imaginário de José Loureiro Fernandes...

progressiva do equipamento técnico-científico e congregarrecursos financeiros proporcionando cada vez mais, apesquisa científica no Paraná (Na 1ª Reunião Brasileira deAntropologia, 1953. Arq/CEB).

[...] a primeira sessão preparatória de fundação do núcleo,filiado a associação de São Paulo foi em maio de 1941 nassalas do Museu [Paranaense] [...] os temas propostos foram:Aspectos Antropogeográficos da pesca na Praia de Leste,Fitogeografia do Litoral Paranaense, Vias de Comunicação,Colonização da Baixada Marítima, Sistema Fluvial dosMunicípios do Litoral, a Serra do Mar e os seus ContrafortesMarítimos, a Ilha do Mel, Zoogeografia do Litoral, EstudosAero-Geográficos da Região da Marinha e a cidade deParanaguá (Relatório Anual de 1942. Arq/CEB).

[...] o fito das Faculdades não é apenas a rotina do minis-trar aulas senão primordialmente a criação de escois,pesquisadores em todos os departamentos dos conheci-mentos humanos [...] e a Universidade não terá cumpridosatisfatoriamente a sua missão se assim não proceder(Sessão da antiga Faculdade de Filosofia, 1947. Arq/SED).

[...] iniciativa louvável que exprime alto sentimento dehumanidade e gratidão aos anônimos cujos corpos, namorte, tanto se prestaram a mestres e discípulos nosestudos e indagações de ordem científica e didática [...] nocampo da medicina (Parecer em Sessão da Câmara dosVereadores nº 533/51. Arq/CEB).

[...] fiz boas observações e estudos nos museus deEtnologia e Institutos de Antropologia [...] em Portugal,Inglaterra, Viena, Suíça e Paris. Espero complementá-lasna próxima semana, na Alemanha e Dinamarca. Na Ingla-terra, na Suíça e em Paris visitei museus universitários,franqueados ao público que são modelares. Tínhamosrazão quando insistíamos nesse ponto, pois do contrárioa Universidade perde uma parte da expressão que deve terno seio da coletividade onde funciona [...] esta viagemtrouxe um grande conforto intelectual, pois confirmou oacerto de muitas das diretrizes que havia traçado paraalguns dos nossos problemas no setor da Educação. É

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pena que a visão provinciana de muitos dos nossos admi-nistradores, não tenha sofrido o influxo do exemplo decoletividades mais avançadas, poupando assim asgerações futuras do ônus de erros perfeitamente evitáveis(A Homero de Barros, em 1952. Arq/CEB).

[...] mas a trama da vida médica e a superada estrutura donosso ensino superior, conspiraram para que, por mais umlustro, esse aspirado e tranquilo ambiente de estudo [acátedra de urologia], não se criasse (no discurso proferidodurante as comemorações dos 30 anos de exercício médico,em 1957. Arq/CEB).

Como Reitor está bem ao par das dificuldades que tive-mos para que o Colégio de Paranaguá, que pela nãoocupação, começava a entrar em estado ruinoso [...]duplamente injusto quando ao lhe explicar as dificuldadesque tenho por não possuir um funcionário administrativo,perguntou-me se não sou capaz sózinho de administrarem milhão de cruzeiros, o que numa época de inflação,como a que passa o Brasil, tem sabor de piada. Se apelarum pouco para sua memória deve reconhecer que noinício do primeiro decênio de sua gestão, dirigi a Faculda-de de Filosofia e o Instituto de Pesquisas, cargos que nestaépoca não contava com bons ordenados de magistério eótimas gratificações e as deficiências enormes dofuncionalismo [...] nessa época minhas condições de saúdepermitiam-me suprir a deficiência dos outros o que hojenão é mais possível, se quiser tentar chegar a bom termocom os meus primitivos planos culturais (Correspondênciade 15/01/60 para o Reitor. Arq/MAEP).

[...] na resposta a minha carta o Sr. Ministro não soubehonrar a sua palavra. Nada mais me compete fazer senãoacautelar-me e não mais confiar nas afirmativas verbais dequem quer que seja: não importa seja Governador,Arcebispo, Ministro, Reitor, Diretor ou simples ProfessorUniversitário (A Rodrigo Mello Franco, em 1965. Arq/MAEP).

[...] sabíamos da intolerância de idéias que iríamos defron-tar com o Reitor, por isso aceitamos a tarefa com a espe-rança de que, fundado o Museu, no Próprio Federal que

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lhe tinha sido cedido pelo convênio, a sua orientação fossemais compreensível [...] fundado e inaugurado o Museu,não tomou a Reitoria, consciência da real existência queuma instituição museológica surgira na sua estrutura (EmRelatório do MAAP, 1973).

O Zêlo e a Preocupação para com a Preservação doPatrimônio

Para Loureiro o passado, manifestado nas ações e interferên-cias do Homem, bem como na cultura material e na tradição oral,representava a raiz, a base, a consistência, o legítimo legado e memóriade um povo, fosse nas evidências pré-históricas ou nas lições de sabe-doria popular, como nas de Joaquim Paranhos (citação acima), fossemnos bens arquitetônicos ou mesmo no contato com o meio ambiente.

[...] há muito, os diretores do Museu Paranaense tiveram,igualmente, oportunidade de verificar a nociva influênciadessas expedições na região litorânea, as quais aorevolverem sambaquis sacrificaram esqueletos e desvia-ram material lítico para coleções de curiosos [...] há algunsanos, em 1940, na excursão que o Museu Paranaenserealizou ao Município de Guaraqueçaba tivemos o dissa-bor de comprovar a destruição dos túmulos da PedraBranca realizada por esses improvisados investigadores(Ao Presidente do Conselho de Expedições Científicas e Artís-ticas do Brasil, 1946. Arq/CEB).

[...] louvo-lhe o zelo por construção tão venerável do nos-so passado e quero felicitá-lo pelo conteúdo humano, quetrouxe para a história da secular capela de Tamanduá [...]registrando valiosas informações colhidas por tradição oralentre antigos moradores da região. [...] de nada vale só oestudo das mesmas, pois vários estudos estão sendo feitossobre outras primitivas construções e praticamente nadaaté agora pode ser realizado e nada poderá ser realizadosem as necessárias verbas e um serviço devidamenteorganizado. [...] assistimos durante anos passados, adestruição da Igreja do Rosário - a única construçãoreligiosa colonial em Curitiba - e a Casa dos Capitães Moresde Paranaguá, tão cheia de tradições para o Paraná e paraa história social daquela cidade litorânea [...] (Ao deputado

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Atílio Barbosa,1950. Arq/CEB).

[...] reafirmo uma necessidade urbana em face do desen-volvimento da Capital [...] uma cidade onde começam asurgir os primeiros aranha-céus [...] não se compreendeuma cidade com aranha-céus, sem parques urbanos, ondea população possa descançar a vista num pouco devegetação, numa mancha de vegetação [...] houve umatentativa de estudo de arborização de Curitiba, quando umdos presidentes desta Câmara assumiu a Prefeitura [...] quevisava justamente subistituir as essências exóticas, pelasessências nativas, uma como todo estudo, dorme no sonoda inocência [...] dentro de pouco teremos dificuldadestremendas para mostrar às gerações futuras quais osprimitivos revestimentos florísticos dos campos de Curitiba[...] em uma conferência, Dr. Alceu Amoroso Lima - o Tristãode Atayde - paraninfando uma das turmas da nossaUniversidade [...] e como vinha preocupado com ospinheiros do Paraná, queria conhecê-los mas encontrouuma dificuldade tremenda para poder admirar os pinheiros.De maneira que no seu próprio discurso de paraninfo, elese referiu ao pinheiro como um dos mitos da idade moderna[...] (Sessão da Câmara dos Vereadores, em 17/08/1951. Arq/CEB).

[...] pessoas que como eu e o signatário do referido projetonão podem ignorar que aquela área do balneário com asvariantes de ritmo das marés oferece excepcionais muta-ções paisagísticas que não ocorrem em nenhum outro bal-neário. Nas grandes preamares é realmente uma ilha batidapelas impetuosidades das ondas, isolada em meio daságuas atlânticas, nas grandes baixamares é uma pequenae encantadora penísula ligada por um istmo rochosoarenoso à prainha do morro [...] já percorri a pé, toda orlaatlântica do nosso estado e dos raros afloramentosrochosos que valorizam as nossas praias arenosas,nenhum conjunto paisagístico oferece tanto valor turísti-co como esse promontório de Caiobá com a sua pequenailha conhecida por ilha do Farol [...] sou de parecer quenão só se deve recusar, sistematicamente, qualquer apoiodo Conselho de Turismo, à construção naquela área comotambém se deve, urgentemente, interferir junto ao Conselho

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do Patrimônio Natural do Paraná no sentido de ser consi-derado patrimônio nacional o mais belo recantopaisagístico de nossa costa atlântica [...] face ao exposto,o Conselho Estadual de Turismo deve negar a aprovaçãodo referido projeto (Como ex-membro do Conselho Estadualde Patrimônio Natural, dez/1964. Arq/CEB).

[...] Paranaguá é um ponto turístico e o nosso folcloreprecisa ser bem representado [...] com esta mania de festivalde etnia abafam os nossos verdadeiros folguedospopulares e está em tempo de deixá-los convenientemen-te registrados em nosso Museu [em Paranaguá] [...] tenteivárias vezes entendimento com o nosso Governador, tudoinútil, embora seja o mesmo lapeano, o homem é das etnias,das moças bonitas mais do que dos pobres incógnitos daLapa [...] quando fez a campanha, na minha presença,afirmou que ampararia a nossa Congada [...] (A Renato deAlmeida em 1965. Arq/MAEP).

O Profissional e o seu Lastro Familiar e Luso

A importância da influência portuguesa na formação dabrasilidade está presente no seu discurso, no incentivo e na criação einstalação de quatro centros de estudos portugueses, além dodirecionamento nas pesquisas folclóricas e sobre a cultura popular,como relatou a Renato de Almeida (citação acima). Para Loureiro amais forte influência européia foi a lusa, que permanecia atuando nomeio cultural nacional.9

[...] recebi duas cartas daí e uma de Gabriella. Que povovadio para escrever [...] pois em Paris são questões deestudos e diversões as que me entretem (minhas diversõesconsistem em visitar museus e ir ao cinema) (Aos pais, emago/1928. Arq/CEB).

[...] um estudo sobre o nosso litoral focalizando a regiãobalneária de Caiobá e Matinhos [...] esteve ela [a região]completamente isolada dos meios civilizados [...] aspectos dapraia de leste [...] o prof. Loureiro esclarece certos pontos da

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9 A cultura francesa, para ele, daria o refinamento a esta sociedade emformação.

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grande influência ibérica em nosso folclore [...] e que talvezlevado pelo atavismo [...] continuaria seus estudos folclóricospara provar que embora exista a influência ibérica semprehaverá uma pequena parte da influência nacional [a indígena][...] (Ata da Sessão Ordinária nº 513 do CEB, 1947).

[...] será difícil separar a atuação [médica] das qualidadesindividuais, para o êxito do sentido humanitário da suatarefa. Tarefa para muitos árdua - por isso mesmo maismeritória - foi para mim suavizada por todo um lastro dopassado. Patrimônio moral e material, [...] que recebi desdea infância, enriquecido pelo carinho generoso de meus pais[...] Há valores mais afastados, recebidos dos FernandesLoureiro e dos Ascenção Fernandes, forjados numa leal ehonesta tradição de trabalho e de humana caridade, todoseles formados à sombra daquele cristianismo luso, tãohumano e tão lírico, ao qual devo, por certo, a melhorpossibilidade da sintonização conseguida entre a vidadiária da prática médica e o antigo ideal de Hipócrates [...]esteio que me veio do passado, consolidou-se nas afeiçõesde amigos, de parentes, de colegas e clientes, rejuvenes-ceu-se nos momentos de glória e de alegria, retemperou-se nas horas amargas do infortúnio. Horas, hoje distantes,mas que na história das vidas humanas foram sempre apedra de toque dos grandes e leais sentimentos (Discursoproferido nas comemorações dos 30 anos de exercício damedicina,1957. Arq/CEB).

[...] o de promoverem a minha integração simbólica àcomunidade curitibana, [...] (bom paranaense), que sempretimbrei em ser, por profundas raízes de família à terracuritibana [...] por formação, julguei-me sempre um cida-dão curitibano como se fosse essa uma decorrência natu-ral da minha cidadania, com a contingência da naturalida-de lisboeta, [...] no lar onde nasci e vivi o nosso apreço aoutras famílias que, [...] contribuíram, lealmente, para cons-tituir a base luso brasileira da nossa população, segurosubstrato da unidade nacional, cadinho assimilador dasvárias etnias posteriormente carreadas em sucessivaslevas imigratórias [...] velha gente essa que [...] no recessodos seus lares colaboraram para consolidar o cerne dabrasilidade, através da formação nacional das futuras

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gerações paranaenses [...] não esqueci as narrativas que,na meninice, ouvi de meu pai, comentando os percalçosde suas viagens pelo interior do Paraná, galgando as serrasagrestes, descendo vales, vadeando rios, dormindo aorelento no leito improvisado com os arreios das alimárias[...] haveriam de estimular o meu espírito de aventuras aconhecer outras terras e outras populações, narrativas detemas tão apaixonantes [...] que, seguramente desperta-ram em mim os primeiros sentimentos para as minhasbuscas e estudos pelo território paranaense [...] agrada-me recordar a feição paterna, percorrendo os sertõesinteriores à frente de tropas cargueiras, numa obra depioneirismo civilizador, levando por ásperos caminhos, aosremotos povoados do interior, através das trocas comerci-ais, o fruto das indústrias humanas de outras paragens.Foram aqueles, fortes estímulos ao nosso regionalismoincipiente [...] nesse ambiente de interesse por tudo queapresentasse cunho nacional [...] (Discurso proferido aoreceber o Título de Cidadão Honorário de Curitiba, 1959. Arq/CEB).

O “Meu tipo”, a Natureza e as Amizades

Se todos nós temos algo de médico, de louco e de poeta oufilósofo, com Loureiro Fernandes não foi diferente. Embora manifes-tando uma profunda racionalidade em suas ações e argumentações,para as quais tinha filosofias próprias (como mantras sagrados),apesar de muitas vezes, parecerem deslocadas ou mesmo esdrúxulaspara alguns, Loureiro pouco demonstrou o seu lado humano, sensívele até mesmo poético ou futurista. Quem sabe fosse uma autodefesa.

[...] ele [o pai] tem medo que as francesas me guinchem porcá? Para sossego pessoal, o meu tipo não serve para D.Juan. Um tipo atarracado e rotundo, pouco ousado, umtanto pacato não pode interessar à psicologia feminina [...]apreciemos um pouco as andaluzas [...] devo-lhes dizer quefoi para mim uma desilusão, julgava pela poesia, com quesempre se cerca as mulheres de Andaluzia, que aí fosseum paraíso de mulheres belas [...] qual o que, prefiro nessegênero o nosso Rio de Janeiro [...] (Aos pais, em ago/1928.Arq/CEB).

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[...] no sentido de serem tomadas as providências urgentesde modo a serem melhor protegidos os animais que seencontram expostos ao público no parque zoológicoexistente no Passeio Público desta Capital [...] denúnciascomo estão sendo tratados os animais, que se encontramem recintos fechados [...] tem acarretado sérias lesõessomáticas e até a morte dos animais acorrentados [...] élamentável que animais sejam maltratados pelos jovens quepor ali passam gazeando aulas ou nas horas de folga, secomprazendo em maltratar pobres animais já vítimas docativeiro humano (Na Sessão da Câmara dos Vereadores de14/09/51. Arq/CEB).

[...] médicos como eu, que durante 30 anos pudemos viverintensamente a vida, [...] o mundo das compensações quenos proporcionam grandes amizades em todas as etapasda existência [...] (a amizade é o prazer de todas as estaçõesda vida) [...] é prazer real, pois só a amizade entende osentimento oculto das diversíssimas mutações da naturezahumana na sucessão imutável das suas estações (Discursoproferido ao receber o Título de Cidadão Honorário de Curitiba,1959. Arq/CEB).

O Homem e os seus Valores

“provérbio espanhol - faz muito mais aquele que quer, do queaquele que pode” (Em uma das suas cadernetas. Arq/MAEP).

[...] olhando para o caminho percorrido, pensando amar-gamente no tempo perdido, tempo cujo valor sempresobreestimei, pois sei que o minuto perdido não volta maise que ninguém sabe do tempo que ainda pode dispor; afilosofia do tempo consiste para aqueles que compreen-dem o seu valor, uma absorvente preocupação (Cartapessoal, s/d. Arq/CEB).

[...] o homem começou com uma história de livre pensa-mento, conquistas científicas, abismos, etc [...] e ‘estragoua escrita’ [...] No séc. XX todo o mundo sabe que o sol é umastro [...] e depois contentam-se com uma interrogação eterminam laconicamente ‘sou positivista, só acredito noque vejo na ciência’. [...] é, ‘o pessoal’ não dá o grande

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valor ao sol que ele merece [...] triste consciência humana!Na alucinação das suas conquistas a inteligência dohomem esquece que é um átomo e que na sua pequenez,jamais poderá absorver, na sua grandiosidade, as leiseternas e imutáveis da natureza [...] na alma ingênua deuma criança que nos domingos costuma casar a suasincera alegria com a alegria do sol, beijando os campos,deve existir este sentimento (de gênio bom e protetor queé o sol) [...] isto não é futurismo! (Aos pais, em ago/1928.Arq/CEB).

“Futurismo” ou não, o fato é que Loureiro estava, comprova-damente, adiante do seu tempo. Poucos alcançaram o seu rítmo detrabalho e muitos não atingiam, de imediato, a essência refinada dasua ácida e crítica retórica (atitude percebida na demora da respostaao documento). A marca por ele deixada, na política cultural local enacional, foi tão forte quanto a caligrafia com que expressava o seuimaginário ou por ele advogava. Mas, como esta visão de mundo erapercebida e/ou reconhecida, por seus pares, contemporâneos ouinterloctures, quando concretizada? Estes depoimentos escritos,também resguardados em seu arquivo pessoal são reveladores e, semdúvida, será tema a ser discutido, oportunamente.

REFERÊNCIAS

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LOUREIRO FERNANDES E OS XETÁ

Carmen Lucia da Silva*

Em primeiro lugar eu gostaria de agradecer ao prof. Igor Chmyz,diretor do Centro de Pesquisas Arqueológicas - CEPA e à profa. dra.Rosângela Digiovanni, chefe do Departamento de Antropologia - DEAN,ambos da UFPR, pelo convite para participar desta mesa. Minhacolaboração neste Evento de Comemoração do Centenário deNascimento do prof. José Loureiro Fernandes é muito singular, postoque, meu conhecimento a seu respeito passa por apenas duas áreas,dentre as muitas que ele atuou. A primeira como diretor e fundador doMuseu de Arqueologia e Etnologia da UFPR, que na sua época foidenominado Museu de Arqueologia e Artes Populares. A segunda, porsua atuação junto aos Xetá, povo indígena da família lingüística Tupi-Guarani, habitantes originais da região Noroeste do Paraná.

Para efeitos desta exposição enfocarei apenas a sua atuaçãojunto aos Xetá, considerando assim, a pesquisa de mestrado e douto-rado que desenvolvi com os sobreviventes do grupo de 1996 a 2003.

As fontes que utilizo para extrair dados a respeito do mencio-nado professor foram os documentos oficiais, escritos científicos,manuscritos diversos e nos depoimentos dos Xetá.1

No âmbito de sua atuação entre os Xetá, duas ações foram deimportância significativa: a primeira, no campo da política indigenista,ocasião em que buscou junto aos órgãos do Governo Federal eFederado, chamar a atenção para as atrocidades praticadas contra osXetá, além de reivindicar destes, a destinação e demarcação doterritório tradicional do grupo. A segunda atuação é marcada por seu

* Antropóloga Doutora e pesquisadora responsável pela área de Etnologia do Museu deArqueologia e Etnologia da Universidade Federal do Paraná.

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1 A identificação das pessoas que aparecem nas fotografias apresentadas aolongo do texto foi feita pelos Xetá: Tucanambá José Paraná (Tuca), Kuein ManhaayNhaguakã Xetá e José Luciano da Silva (Tikuein Nhangoray, ou Tikuein), e pelo sr. DivalJosé de Souza (coordenador da I e II Expedição de contato com os Xetá pelo Serviço deProteção ao Índio), por ocasião da pesquisa de Silva (1996-1997).

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empenho pessoal e acadêmico no sentido de gestionar recursos parafinanciar pesquisas nas diferentes áreas de conhecimento, como aLingüística e a Arqueologia. Certamente, cada uma destas ações implicaem olhares e interpretações distintas sobre as suas atitudes no tratocom a problemática Xetá.

O INDIGENISTA LOUREIRO FERNANDES

Embora Loureiro Fernandes já tivesse realizado pesquisa en-tre os Kaingáng de Palmas na década de 1940, sua atuação diretajunto aos Xetá tem início no ano de 1955, logo após a aproximação deum pequeno núcleo familiar,2 em dezembro de 1954, dos moradores daFazenda Santa Rosa,3 situada nas imediações do córrego Indoivaí (oucórrego do Índio), um dos afluentes do rio Ivaí, parte do território tradi-cional Xetá. Portanto, é após esta primeira aproximação que tem inícioas ações indigenistas e acadêmicas de José Loureiro Fernandesdirecionadas ao grupo.

Na ocasião, ao tomar conhecimento do contato Xetá com afazenda, o inspetor da 7ª Inspetoria Regional (IR) do Serviçode Proteção ao Índio (SPI), Deocleciano de Souza Nenê, que já manti-nha estreitas ligações com José Loureiro Fernandes, desde quetrouxera da Serra dos Dourados duas crianças Xetá capturadas poragrimensores da Colonizadora Suemitsu Miyamura & Cia. Ltda.,4

convidou-o a incorporar a expedição5 de contato organizada pela 7ªIR/SPI.6

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2 Este núcleo era composto, inicialmente, por três famílias nucleares poligínicasligadas a um grupo local patrilinear maior que continuava no interior da floresta fugindo daaproximação dos colonizadores.

3 A Fazenda Santa Rosa, hoje denominada Santa Maria, pertencia ao deputadoestadual Antônio Lustosa de Oliveira que, em 1952, trocara um título de terra que possuíaem Guarapuava/PR por terra no noroeste paranaense situada na gleba XV da Serra dosDourados. A referida propriedade era administrada desde junho do mesmo ano por seuprimo, Antônio Lustosa de Freitas, que nela passou a habitar junto com sua família.

4 As crianças capturadas foram: Tikuein Ueió (Caiuá, ou Antônio Guairá Paraná),pego em julho de 1952, e Tucanambá José Paraná (Anambu Guaka), ou Tuca como éconhecido atualmente, transplantado para Curitiba em janeiro de 1953. Nesta épocaLoureiro Fernandes já vinha buscando levantar informações a respeito dos Xetá atravésdas duas crianças.

5 O uso do termo expedição foi extraído dos originais dos relatórios elaboradospelo SPI.

6 Depoimento do sr. Dival José de Souza que coordenou pelo SPI a menciona-da expedição.

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Aceito o convite, Loureiro Fernandes coordena o grupo depesquisa que o acompanha e Dival José de Souza7 chefe da 7ª IR,coordena a expedição como um todo. Nessa primeira viagemempreendida em outubro de 19558 e, na posterior, realizada no mêssubseqüente, os meninos capturados acompanham-nas como guias eintérpretes (Figs. 1 e 2).

Figura 1. Primeira expedição, em outubro de 1955, na Fazenda Santa Rosa.Da esquerda para a direita: Ferralma (fotógrafo da Revista Guaíra), LoyolaNeto (jornalista), Ney Barreto (estudante da Universidade do Paraná),Loureiro Fernandes (professor da Universidade do Paraná), AntônioLustosa de Freitas (capataz da Fazenda Santa Rosa), Dival José de Souza(chefe da 7 IR/SPI), Tuca e Caiuá (meninos Xetá) e, Durval Antunes Machado(agente do SPI) (Acervo do Museu Paranaense).

Infelizmente, nesta primeira investida os expedicionários nãoencontram nenhum Xetá na Fazenda Santa Rosa, e tampouco no inte-rior da floresta. Movido pelo seu ideário de homem da ciência, mesmofrustrado em suas intenções de localizar o grupo, Loureiro Fernandes,com o auxílio de seu aluno Ney Barreto (estudante de Geografia e His-tória na Faculdade de Filosofia), preocupou-se em efetuar os registrosdos pontos percorridos pela expedição, situando os mesmos e os acam-pamentos indígenas num croqui elaborado sobre uma planta da região

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7 Filho do Inspetor da 7ª IR/SPI Deocleciano de Souza Nenê.8 Deste grupo participaram: Tuca e Caiuá, Dival, Durval (ambos da 7ª IR/SPI),

Ney Barreto (aluno de José Loureiro Fernandes), o jornalista Loyola Neto, o fotógrafoFerralma e Afonso, motorista da Universidade do Paraná. A equipe foi acompanhada peloadministrador da fazenda, Antônio Lustosa de Freitas.

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Loureiro Fernandes e os Xetá

da Serra dos Dourados. Neste esboço eles situam os pontos de mora-dias, além de listar os artefatos encontrados em cada um desses locaise, aquele percurso feito pelo inspetor Deocleciano, no ano de 1952.

Figura 2. Outro aspecto da primeira expedição, em outubro de 1955. Daesquerda para a direita: dois mateiros da região, Ney Barreto, AntônioLustosa de Freitas, Durval Antunes Machado, Loyola Neto, Dival José deSouza, Loureiro Fernandes e Afonso Pereira (motorista da Universiddedo Paraná) (Foto: Ferralma - Acervo do MAE/DEAN/UFPR).

Neste mesmo croqui, eles situam os acampamentos que aequipe localizou ao longo do córrego 215, e também um dos últimosespaços de moradia do grupo local do pai de Tuca e Caiuá, além dolugar onde este último foi capturado. Enfim, Loureiro, auxiliado por NeyBarreto tenta representar no mapa um dos últimos espaços habitadospelos Xetá, antes de sua total ocupação pelos agentes colonizadores.

Na ocasião, na tentativa de recolher um maior número possívelde evidências comprobatórias da presença indígena no territóriopercorrido, ele recolhe vários objetos de cultura material confecciona-dos em pedra, fibra e madeira, levando-os para o Departamento deAntropologia da Universidade do Paraná, em Curitiba, para compor oacervo das suas coleções etnográficas. Algumas informações a respeitodesses objetos lhes são fornecidas por Tuca e registradas em umarelação datada de 28/10/1955, assinada por Ney Barreto9 (Fig. 3).

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9 Posteriormente a coleção foi enriquecida com objetos coletados pelo lingüistaprof. dr. Aryon Dall’Igna Rodrigues, pela arqueóloga profa. dra. Annete Laming-Emperairee pelo cinetécnico da Universidade do Paraná, Vladimír Kozák.

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Figura 3. Primeira expedição, em outubro de 1955. Loureiro Fernandes eos meninos Xetá Caiuá e Tuca, que o auxiliam na identificação de artefa-tos encontrados nos acampamentos atingidos pela expedição (Foto:Ferralma - Acervo MAE/DEAN/UFPR).

No mesmo ano, durante o mês de novembro, uma segundaexpedição formada pelos membros da primeira, se desloca novamenteao habitat Xetá. Desta vez Loureiro Fernandes não pôde acompanhara equipe. Este, porém, se fez representar através das lentes da máqui-na fotográfica de Vladimír Kozák, cinetécnico da Universidade doParaná, que se junta ao grupo com a responsabilidade de efetuar osregistros fotográficos e, pelo olhar de seu aluno Ney Barreto, que acres-centa ao mapeamento anterior o croqui do novo itinerário percorrido.Nesta expedição os viajantes conseguem alcançar algumas famílias,parte daquele grupo que havia se aproximado da Fazenda Santa Rosaem dezembro de 1954.

Três meses após a segunda expedição de 1955, em fevereirode 1956, Loureiro Fernandes coordena uma viagem de pesquisa à Serrados Dourados. É nessa ocasião que a equipe consegue um primeiro eúnico contato com parte de um grupo local que consta dos registrosfotográficos e do filme em 16mm feitos por Kozák. Infelizmente,nenhum membro desse grupo seguiu a expedição. Apenas Nhengo

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Loureiro Fernandes e os Xetá

(Figuras 4, 5 e 6), no final do mesmo ano, após o massacre de seunúcleo familiar, é levado para a Fazenda Santa Rosa onde se junta aosque viviam nas suas imediações (Fig. 7).

Figura 4. Segunda expedição, em novembro de 1955. Acampamento deAdjatukã, que aparece segurando o arco. Do seu lado direito, está uma desuas esposas e, à esquerda, seu irmão Mã, seguido de Antônio Lustosade Freitas, Dival José de Souza, Hevay (irmã de Tuca), segunda esposa deAdjatukã e primeira esposa de Mã. Em pé, Kuein, um dos sobreviventes(Foto: Kozák - Acervo do Museu Paranaense).

Nas duas expedições (novembro 1955 e fevereiro de 1956)foram produzidos registros visuais, fotografias, que compõem hoje osacervos do MAE/DEAN/UFPR, Museu Paranaense da Secretaria deEstado da Cultura, Centro de Documentação da Funai de Brasília eMuseu do Índio do Rio de Janeiro. Nos dois últimos locais, as imagenssão parte de documentos enviados ao SPI.

No mesmo ano de 1956, durante o mês de agosto, a convite doreitor da Universidade do Paraná, Loureiro Fernandes faz a suaprimeira conferência tratando sobre os Xetá, em homenagem a uma

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Figura 5. Grupo local de Nhengo, em fevereiro de 1956. Entre outros,figuram: Nhengo (em primeiro plano), seu irmão Moëw (de frente), Hevay(mulher de perfil) e Djapanta (homem de perfil). Ao fundo, de costas, airmã do pai de Tuca, casada com Moëw (Foto: Kozák - Acervo do MAE/DEAN/UFPR).

Figura 6. Grupo local de Nhengo, durante a expedição de fevereiro de1956. Entre os Xetá, aparecem: Nhengo, Adjatukã (de cabelos curtos) eTuca ao seu lado, também de cabelos curtos. Da equipe de pesquisa,figuram: Antônio Lustosa de Freitas, Loureiro Fernandes, Durval AntunesMachado e Afonso Pereira (Foto: Kozák - Acervo do MAE/DEAN/UFPR).

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Loureiro Fernandes e os Xetá

equipe de geógrafos estrangeiros participantes do XVIII CongressoInternacional de Geografia, que em excursão visitavam o Paraná. Nes-ta ocasião, ele apresentou a comunicação: Le Peuplement du Nordouestdu Paraná et Les Indiens Setá, ilustrando sua exposição com a projeçãode um filme em 16mm, feito por Vladimír Kozák.

Figura 7. Expedição de pesquisa realizada em 1960. Loureiro Fernandesjunto a alguns Xetá que habitavam as imediações da Fazenda Santa Rosa:Nhengo, Geraldo (Tikuein Ueio), Tikuein Nhangoray (José Luciano da Silva- sobrevivente), Mã (Haykumbay - pai dos meninos), Arigã, sua primeiraesposa e filha Tiguá (Tunkaadjo - sobrevivente) (Foto: Kozák - Acervo doMuseu Paranaense).

Outras expedições de pesquisa, um total de 12, são realizadaslogo após a de fevereiro de 1956. As mesmas ocorrem até fevereiro de1961.

Utilizando-se de seu prestígio acadêmico e político,10 a atuaçãode Loureiro Fernandes frente à questão Xetá se estende ainda àcoordenação de grupos de pesquisas, à mobilização de cientistasnacionais e estrangeiros, e à sensibilização de políticos paranaenses.

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10 Loureiro Fernandes havia sido vereador de Curitiba e secretário de Educaçãoe Cultura do Estado no primeiro mandato do Governo Moysés Lupion na década de 1940.

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Neste último ofício ele, inicialmente, buscou junto ao Governodo Estado do Paraná a aprovação de um Parque Florestal do Estado,proposta defendida pelo deputado estadual Antônio Lustosa deOliveira11 em assembléia de 21 de novembro de 1955. A proposta decriação da reserva previa a destinação de uma área para os Xetá eoutros prováveis grupos indígenas que pudessem ali existir.12 Mesmoaprovada pela Assembléia Legislativa do Estado, a mesma foi vetadapelo governador Moysés Lupion.

O veto à proposta não desanimou Loureiro Fernandes, pelocontrário, inspirado pelo ante-projeto de lei do Parque Nacional do Xinguem 1952, criado posteriormente pelo Decreto Federal 50.455, de 14/04/1961, este propõe, em final de 1955, a criação do Parque Nacionalde Sete Quedas,13 tendo como um de seus objetivos abrigar os Xetá eoutros grupos indígenas que por ventura viessem a necessitar.

Paralela a tal proposta, ele continua sua investida junto aoGoverno do Estado do Paraná, acompanhado por Deocleciano de SouzaNenê, na intenção de garantir uma reserva de terra para os Xetádentro do seu habitat.14 Seu esforço de nada adianta, pois em 1957 emaudiência com o governador são informados da inexistência de terraspara este fim, posto que até o último reduto de terra tradicional dogrupo, já havia sido concedido por doação ou venda a prepostos e àcompanhia de colonização que agia na região, no caso, a Cobrimco(Companhia Brasileira de Imigração e Colonização). Assim sendo,só restara-lhe buscar a aprovação do Parque Nacional, sua novameta.

Para chamar a atenção das autoridades no intuito de garantir aaprovação do parque, durante as reuniões e congressos científicos,Loureiro Fernandes expõe a situação dos Xetá, fala da necessidadeda demarcação de terra para os Xetá e denuncia abusos e violênciaspraticadas contra o grupo. Como resultado de tal ato, muitas moçõesde apoio de órgãos de pesquisa nacionais e internacionais são enca-minhadas ao Governo Estadual, na tentativa de sensibilizá-lo para acausa Xetá.

Numa demonstração de desconforto frente à situação que sedesenhava, face ao destino trágico ao qual estavam expostos os Xetá,este elabora em 1957 um dossiê encaminhado ao Conselho Nacional

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11 Ocupante de parte do território Xetá onde foi implantada a Fazenda SantaRosa, de sua propriedade.

12 Ver OLIVEIRA (1978).13 Ver SILVA (1998).14 Ver, entre outros, Of. n° 42/57 de 18/09/1957; Of. n° 28/58 de 01/04/1958.

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Loureiro Fernandes e os Xetá

de Proteção ao Índio/CNPI expondo a situação vivida pelo grupo e,solicita desse Conselho providências até então nunca tomadas, insis-tindo na necessidade de aprovação do Parque Nacional de SeteQuedas que, no seu entendimento, era a única possibilidade querestara de sobrevivência do grupo.

Infelizmente, a aprovação do Parque Nacional de SeteQuedas em maio de 1961 não implicou na permanência dos Xetá emseu interior. Ao contrário, alguns meses antes, dois adultos do sexomasculino e um menino15 com aproximadamente 10 anos foramretirados de suas terras por funcionário do SPI e levados para umaárea indígena no norte paranaense.

Em parte do território daquele grupo que buscou o contato coma Fazenda Santa Rosa permaneceram duas famílias, que viviam nassuas imediações, no local conhecido regionalmente como “Pé deGalinha”,16 além daqueles que viviam fugindo da aproximação com osinvasores de seu território, dos quais se teve notícia até 1963. Umadelas foi transplantada pelo SPI por volta de 196317 para a Área Indíge-na Guarapuava, situada no município de mesmo nome no Sudoeste doParaná. A outra, foi dispersa18 em fevereiro de 1964, com a morte deseu responsável (Adjatukã) sem que qualquer medida tivesse sidoadotada no sentido de resguardar-lhes parte do seu território tradicio-nal que estaria incluso no interior dessa área de preservação.

Os Xetá que resistem ao contato “desaparecem”, aqueles quese aproximam dos brancos na tentativa de sobreviver sofrem os efeitosdesastrosos da relação, e são dispersos de diferentes formas. Nemmesmo aquela parte do habitat tradicional do grupo inclusa no períme-tro do parque lhes foi reservado.

Seguindo a mesma saga dos Xetá, o Parque Nacional de SeteQuedas desaparece em 1981, tomado pelas águas da hidrelétrica daItaipu Binacional.19

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15 O menino, conhecido por Tikuein Nhangoray (José Luciano da Silva), faz partedo grupo de sobreviventes.

16 Situada nas imediações do córrego Indoivaí, ou córrego do Índio como éconhecido regionalmente.

17 A família de Arigan, da qual sobrevivem hoje dois de seus filhos, Tiqüein Xetáe Rondon Xetá.

18 A exemplo de outros povos Tupi-Guarani, a morte de Adjatukã implicou nasaída do local de moradia para outro ponto da floresta que ainda lhes restara. Estes, noentanto, resistem a viver com os brancos e fogem. Sobre o destino dos mesmos ver Silva(1998).

19 Sobre o processo de contato e extermínio da sociedade Xetá ver Silva(1998).

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Figura 8. Família de Arigã transplantada para a Área Indígena deGuarapuava, em 1965. Estão presentes Arigã com seu filho Tiqüein(Karombe) ao fundo, Kuein, seu irmão, em primeiro plano e, Aruay,esposa de Arigã com o filho Rondon (Moày). Os dois meninos e Kuein sãosobreviventes (Foto: Kozák - Acervo do MAE/DEAN/UFPR).

LOUREIRO FERNANDES: O INCENTIVADOR DE PESQUISASENTRE OS XETÁ

A atuação de Loureiro Fernandes junto aos Xetá esteve maisvoltada à sensibilização dos órgãos de pesquisas nacionais e interna-cionais na busca de recursos para possibilitar a pesquisa, do que deatuar diretamente enquanto pesquisador e antropólogo de campo.

Sua limitação para efetuar uma pesquisa etnológica junto aogrupo levou-o a solicitar a Alfred Métraux (que dirigia a UNESCO), aindicação de um antropólogo para estudar a estrutura social Xetá. Paraatender a tal solicitação, Herbert Baldus, em 1957, indica o antropólo-go Roberto Cardoso de Oliveira que não aceita o convite por estarenvolvido em pesquisa entre os Tikuna do alto Solimões, no Amazo-nas.

Um ano depois, em 1958, Loureiro Fernandes acompanha olingüista Cestmir Loukotka (Fig. 9) até a terra dos Xetá, para que omesmo efetuasse um levantamento da língua do grupo e o comparasse

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Loureiro Fernandes e os Xetá

com o vocabulário coletado por Fric, em 1907, junto aos Xetá cativosdos Kaingáng que viviam na região do rio Ivaí, nas imediações doSalto Ubá.

Figura 9. Viagem de Cestmir Loukotka à Serra dos Dourados para levan-tar o vocabulário Xetá, em 1958. Da esquerda para a direita, figuram:Geraldo (Tikuein Gamei), sogro de Antônio Lustosa de Freitas, CestmirLoukotka, Carolina de Freitas e seu filho Carlos, Antônio de Freitas e cunha-do, Tuca e Gonçalino. Ao fundo, a sede da Fazenda Santa Rosa, onde olingüista ficou hospedado (Foto: Kozák - Acervo do Museu Paranaense).

Em 1959, Loureiro Fernandes consegue recursos financeirospara custear duas viagens20 do antropólogo Carlos Araújo Moreira Netoa Serra dos Dourados com “a finalidade específica de coletar dadossobre a situação atual dos índios Xetá e outros informes de interessepara elaboração posterior de um plano de trabalho etnológico com oreferido grupo tribal”. Tuca o acompanha como intérprete e guia, alémde Kozák e um funcionário do SPI, João Serrano.21

Seu esforço derradeiro no campo da pesquisa ocorre quando

_______________________________20 A primeira viagem efetuada em julho e, a segunda, em novembro de 1959.21

Sobre esta viagem e seus resultados ver Moreira Neto (1959a, 1959b) e Silva(1998).

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este consegue, em 1960, recursos para financiar o deslocamento depesquisadores até a Serra dos Dourados. Assim sendo, em 1960 (julhoe setembro) e 1961 (janeiro e fevereiro) um grupo de pesquisa compostopelo lingüista prof. dr. Aryon Dall’Igna Rodrigues,22 pela arqueólogaprofa. dra. Annette Laming-Emperaire e Vladimír Kozák, acompanha-dos por Tuca, que vivia em Curitiba, seguem para o campo.

Na ocasião, tanto o lingüista como a arqueóloga permanecemcom Tuca num pequeno acampamento Xetá habitado por duas famíliasnucleares, parte daquele grupo que estabeleceu contato com a FazendaSanta Rosa. Os resultados dos estudos efetuados por estes doispesquisadores constam de Rodrigues (1978) e Laming-Emperaire(1964; 1978).

Figura 10. Acampamento de Adjatukã e Eirakã, nas imediações do córregoIndoivaí, visitado durante a última viagem de pesquisa, em janeiro efevereiro de 1961. Estão presentes: Mã (de cabeça abaixada), Adjatukã,dois filhos seus (sobreviventes não localizados), sua esposa, Tuca, AryonDall’Igna Rodrigues e Tiguá (uma das mulheres sobreviventes).Atrás de Mã está Arigã, pai de Tiguá (Foto: Kozák - Acervo do MAE/DEAN/UFPR).

Junto a Alfred Métraux, através da UNESCO, conseguiu recurso

_______________________________22

Professor da Universidade de Brasília, onde dirige o Laboratório de LínguasIndígenas (LALI).

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Loureiro Fernandes e os Xetá

financeiro para custear pesquisa e proteção do grupo. Tais recursos,no entanto, não puderam ser utilizados, pois segundo LoureiroFernandes “a força dos fazendeiros agiram rapidamente, semburocracia, na ocupação e devastação da área”23 e os Xetá foramvarridos de seu território.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo não tendo efetuado pesquisa sistemática junto aos Xetá,Loureiro Fernandes escreveu alguns artigos e comunicações apresen-tados em congressos e simpósios científicos a partir de suas observa-ções em campo. Uma parte destes escritos e falas, que forampublicizados durante tais eventos, chamavam a atenção para as carac-terísticas singulares desse povo caçador e coletor fadado ao extermí-nio face ao processo de colonização que avançava vertiginosamentesobre o seu território tradicional. Outra destacava o traço “primitivo” dasua cultura material, as formas de subsistência e a técnica de obten-ção e preparo de alimentos.

Seus artigos não só tratam de temas específicos, como enfocamo imediatamente observado pelo olhar de um viajante muito preocupa-do em salvaguardar objetos materiais em museus e levantar dadossobre o que a sociedade faz sem, contudo, se preocupar com o seuordenamento social. Infelizmente, seus esforços para que estes estu-dos fossem efetuados, não lograram êxito, por uma série de fatalida-des, inclusive, o fim da sociedade.

Tais escritos apresentam um olhar marcadamente evolucionistasobre a sociedade Xetá, a qual classifica como “índios em estágiocultural bastante primitivo vivendo na idade da pedra polida”. Noentanto, mesmo ressaltando os aspectos primitivos, exóticos e fantás-ticos do patrimônio cultural desse povo, seus registros constituem hojeuma base documental sólida, rica e de grande importância à conquistados direitos dos sobreviventes do grupo.

Sua preocupação em elaborar um mapa registrando os lugarespercorridos pelas expedições de 1952 e 1955, destacando os locaisdas habitações, resultou num documento incontestável, precioso ecomprobatório da ocupação tradicional Xetá ao longo da margemesquerda do rio Ivaí, especificamente, na extensão do córrego 215,Indoivaí e seus tributários.

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23 José Loureiro Fernandes, em documento sem data.

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Se tal preocupação à época não resultou na demarcação,proteção e garantia de uma área para o grupo, atualmente, apoiado namemória dos sobreviventes Xetá e nas descrições topográficas eetnográficas que estes fazem do habitat de seu povo, tal mapa pôdeser aprofundado por Silva (2003) e, constitui-se numa base documen-tal territorial fundamental à reivindicação e delimitação de uma terrapara os remanescentes do grupo, apoiados no princípio da tradiciona-lidade garantido pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 234.

De todos os profissionais convidados para integrar as expedi-ções e viagens de pesquisa, a inclusão de Kozák foi a mais efetiva esistemática, pois, desde que passou a participar da equipe, estesempre se fez presente junto com sua câmara fotográfica e filmadora.Nas ausências de Loureiro Fernandes, suas tomadas fotográficasregistravam o cenário a ser apreciado e utilizado posteriormentedurante as palestras que o mencionado professor proferiu desde aexpedição de outubro de 1955.

É graças à sua preocupação acadêmica em registrar “tudo” e,à disponibilidade e olhar de Kozák, que no final da década de 1960 einício da de 1970, Loureiro Fernandes pôde dirigir o filme 16mm OsXetá da Serra dos Dourados24 editado pelo Museu do Homem deParis.

Como é possível observar nos parágrafos acima, da parte deLoureiro Fernandes, os esforços foram variados no sentido de quefosse garantido aos Xetá parte de seu território tradicional e, a suasobrevivência física e cultural. No entanto, a omissão do Serviço deProteção ao Índio, o avanço desenfreado das companhias decolonização sobre o habitat do grupo, somados ao oportunismo eautoritarismo do Governo do Estado do Paraná acelerou o processo deextermínio do povo Xetá e o esbulho do seu último reduto de terraprotegido das frentes colonizadoras até o início da década de 1940.

Embora não tenha efetuado estudos antropológicos sobre ogrupo, é graças à sua formação acadêmica e à sua atuação junto aosXetá, que hoje se pode buscar nos arquivos do Museu de Arqueologiae Etnologia/MAE/UFPR, no Centro de Estudos e Pesquisas Arqueoló-gicas/CEPA/UFPR; no Círculo de Estudos Bandeirantes/CEB daPontifícia Universidade Católica do Paraná e no Museu Paranaenseda Secretaria de Estado da Cultura do Paraná, dados de diferentes

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24 O mencionado filme foi transposto para vídeo. A respeito do mesmo fiz uma

comunicação no I Curso de Antropologia Visual promovido pelo Museu de Arqueologia eEtnologia e Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná, duranteos dias 30/11 a 03/12 de 2000 (ver SILVA, 2000).

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Loureiro Fernandes e os Xetá

naturezas a respeito dos Xetá.Passados quarenta anos, num outro contexto político e acadê-

mico, pude em 1996, através de minha pesquisa de mestrado junto aossobreviventes Xetá, contar com o fruto do seu esforço e de outrospesquisadores por ele apoiados. Através dos artigos produzidos portodos os pesquisadores, dos documentos oficiais elaborados porLoureiro, do croqui desenhado por Ney Barreto, das anotações decampo de Aryon Rodrigues, dos manuscritos e imagens produzidospor Kozák pude iniciar meu estudo com os atuais Xetá.

A soma de todas estas fontes em seus diferentes suportes,compartilhada, contextualizada e acrescida pelas memórias narradasde quatro sobreviventes mais velhos do grupo, resultou em minhadissertação de mestrado defendida junto ao Programa dePós-Graduação em Antropologia Social/PPGAS da UniversidadeFederal de Santa Catarina/UFSC em 1998, e em minha tesede doutorado defendida em 2003 no PPGAS da Universidade deBrasília.

Se os registros produzidos por Loureiro chamam a atenção parao fim trágico dos Xetá, a memória dos sobreviventes atualiza estepassado, o redesenha e interpreta à luz das suas experiências elembranças, tomando-os como uma possibilidade de continuarem aviver, garantir seus direitos e sucumbir ao esquecimento e àinvisibilidade que lhes foi reservado pelo órgão indigenista oficial.

Se Loureiro Fernandes vivesse hoje, talvez quisesse escreveruma outra história Xetá, onde o desfecho fosse o retorno dos sobrevi-ventes à terra perdida e a da conquista dos direitos que no passadolhes foram negados. Tal história ainda está sendo escrita na medidaem que atualmente o grupo vem reivindicando junto às diferentesinstâncias, o seu reconhecimento étnico e a garantia de seus direitos,inclusive o de voltar a viver no território tradicional, que num passadomuito recente lhe foi usurpado.

Finalmente, cabe registrar que graças à memória dos sobrevi-ventes, principalmente a Tuca, Tikuein (Mã), Kuein e Ã, e aos inúmerosdocumentos elaborados por Loureiro Fernandes foi possível identificare delimitar uma base territorial25 para os atuais Xetá.

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25 Desde março de 2001 a Fundação Nacional do Índio - FUNAI - através daDiretoria de Assuntos Fundiários - DAF - e Coordenadoria Geral de Identificação e Delimi-tação - CGID - foi criado um Grupo Técnico de trabalho sob minha coordenação paraefetuar os estudos de identificação e delimitação fundiária da terra indígena Xetá. Tuca,Tikuein e Kuein fazem parte do grupo e vêm acompanhando e participando de todas asetapas do estudo.

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Carmem Lucia da Silva

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Arqueologia, Número especial, Curitiba, v. 3, p. 197-215, 2005 215

Arqueologia, Número especial, Curitiba, v. 3, p. 217-220, 2005 217

ENTREVISTA*

Dival José de Souza **

PROFA. CECÍLIA HELM: Gostaria que o senhor narrassequando e como conheceu o dr. José Loureiro Fernandes?

INDIGENISTA DIVAL: Entrei em contato com o professorLoureiro Fernandes no período em que foram realizadas expedições àSerra dos Dourados, Paraná, na década de cinqüenta, quando ocorreua notícia de que havia índios primitivos nessa região. Foi organizadauma primeira expedição em que participaram membros do Serviço deProteção aos Índios - SPI e do Departamento de Antropologia daUniversidade do Paraná. Dr. José Loureiro, junto com um auxiliar decampo e o motorista seguiram viagem de caminhonete até a região,onde se localizava a fazenda do deputado Antônio Lustosa. O gerenteda fazenda havia informado ao deputado que um grupo de índios haviase aproximado da fazenda. Eu e um jornalista, mais a equipe do dr.Loureiro, fomos tentar fazer contato com os primitivos Xetá.

PROFA. CECÍLIA HELM: Como ocorreu a aproximação com osXetá na mata?

INDIG. DIVAL: Dr. Loureiro e eu, mais o Tuca andamos bastantepela mata tentando uma aproximação com os índios. Nos perdemos namata; graças aos conhecimentos de Tuca, encontramos o caminho quenos levou aos Xetá.

PROFA. CECÍLIA HELM: Vocês fizeram novos contatos?

INDIG. DIVAL: Fizemos várias expedições. Sempre o dr.Loureiro Fernandes organizava o trabalho com muita disposição. Eraum incansável pesquisador dos índios do Paraná. Na década de 30,havia estado com papai [o senhor Deocleciano de Souza] em Palmas,

* Entrevista concedida à profa. dra. Cecília Maria Vieira Helm, em 19 de janeiro de 2005.** Indigenista aposentado do SPI/FUNAI.

quando o dr. Loureiro pesquisou os Kaingáng. Fomos até Mangueirinha,também. Eu era criança, mas me lembro das visitas do dr. Loureiro aosKaingáng de Palmas.

PROFA. CECÍLIA HELM: Descreva como foram as expediçõese o trabalho no campo?

INDIG. DIVAL: As expedições eram para fazer contato com osXetá e tentar sensibilizar as autoridades, para que fosse reservadauma terra para eles, pois os fazendeiros estavam tomando conta do“sertão” e estabelecendo fazendas nas terras ocupadas pelos Xetá.Dr. Loureiro e eu penetrávamos na mata virgem para localizar os Xetá.Nas primeiras expedições não foi um cinematografista, apenas nós coma missão de encontrar os Xetá. Dr. Loureiro fazia muitas perguntas aoTuca.

PROFA. CECÍLIA HELM: Naquela época encontravam muitosXetá na mata?

INDIG. DIVAL: Sim.

PROFA. CECÍLIA HELM: Quais os nomes dos membros daexpedição?

INDIG. DIVAL: Participaram o dr. Loureiro e um aluno dele, oNey Barreto. Também acompanhou o professor o Afonso, motorista daUniversidade. Ainda estiveram na Serra dos Dourados, o jornalistaLoyola, o Djalma e o Durval. E eu, que estou aqui vivo. Mais o Tuca e oCaiuá. Tudo era sertão. Depois das andanças na mata, em um almoço,eu me lembro que as moscas e os mosquitos pegaram o Loyola. Oprato de comida dele encheu de insetos. Ele atirou longe. Voltou parajunto de nós e pediu desculpas ao dr. Loureiro. Falou que com aqueleepisódio ele não havia passado no “teste”. Havia muito macaco. Viviamem bandos. Os Xetá matavam, moqueavam os macacos e comiam.Certa vez me deram um pedaço para comer. A carne era doce. Tivedificuldade para engolir a carne. Também comiam cobras, mas eu nãoconsegui comer cobra. Eu e o dr. Loureiro pudemos observar como osXetá curavam a dor de cabeça de um índio. Vimos um Xetá deitado e,o outro, provavelmente o pajé, apertando a cabeça do que sentia dores.Apertou muito e curou, de tanto apertar sarou.

PROFA. CECÍLIA HELM: O prof. Loureiro fazia anotações de

Dival José de Souza

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campo?

INDIG. DIVAL: O dr. Loureiro gostava de fazer perguntas eobservava seus modos de vida. Ficamos sabendo que eram polígamos,mas na minha opinião, aparentemente, as mulheres se davam bem. Odr. Loureiro tinha amor pelo trabalho e gostava de fazer pesquisa decampo. Era um homem de grandes conhecimentos, um médicorespeitado.

PROFA. CECÍLIA HELM: Os Xetá confeccionavam muitosartesanatos?

INDIG. DIVAL: Sim, mas eu não trouxe arcos elaboradospor eles. Observei que era trabalhoso fazer um arco, com pedras,não usavam instrumentos como facas. O dr. Loureiro trouxe algunsobjetos para serem depositados no Departamento de Antropologia, noacervo.

PROFA. CECÍLIA HELM: O senhor viu alguns Xetá seremexterminados? Ou ouviu falar?

INDIG. DIVAL: Os Xetá morreram em sua grande maioria degripe contraída dos empregados das Companhias Colonizadoras. Nãoforam mortos à bala como se diz. Tinham e têm facilidade em contrairgripes e sofrem muito com essa doença.

PROFA. CECÍLIA HELM: Ocorreram tentativas de aldear osXetá, conseguir uma terra para eles?

INDIG. DIVAL: O dr. Loureiro foi incansável. Fez contatos paraque o presidente Jânio Quadros fizesse um Decreto reservando umparque para eles. Teve muitos aborrecimentos devido ao fato que asautoridades não chegaram a cumprir as promessas. Por sua vez, oServiço de Proteção aos Índios tentou sensibilizar o governador MoysésLupion para criar uma reserva para os Xetá.

PROFA. CECÍLIA HELM: O governador Lupion foi quem assinouo Decreto em 1949, concordando com a redução das terras indígenas,em que os Kaingáng, os Guarani e os Xetá foram muito prejudicadoscom a expropriação de seus territórios de ocupação tradicional.

INDIG. DIVAL: Até convidamos o Lupion para batizar o Tuca,

Entrevista

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para ver se ele se sensibilizava e contribuía para que fosse reservadauma terra para os Xetá. No meu entendimento, os Xetá deveriam terpermanecido em uma terra reservada para eles, longe do contato comos não índios. Eles teriam ficado felizes e sobrevivido. O extermínio foidevido à falta de interesse das autoridades governamentais.

PROFA. CECÍLIA HELM: Pude observar os Xetá emGuarapuava, no Posto Indígena Marrecas, quando foram levados paraesta terra, por iniciativa do SPI. Fazia pesquisa entre os Kaingáng,mas os Xetá e os Kaingáng não se aproximavam. Os Kaingáng diziamque eles eram os primitivos índios e que os Kaingáng já estavamaculturados.

INDIG. DIVAL: A minha convivência com o dr. Loureiro na mata,junto aos Xetá, foi muito significativa. Dr. Loureiro permanecia durantedias a procura dos Xetá, depois fazia suas observações, registrava, esempre regressava com a expectativa de conseguir uma terra para osXetá poderem continuar sobrevivendo como índios. Mas foram poucosos sobreviventes e estão espalhados no Paraná, cerca de oito indivíduose seus descendentes e uma Xetá habita no Estado de São Paulo.

PROFA. CECÍLIA HELM: O dr. Loureiro foi meu professor deAntropologia na Universidade do Paraná, aprendi muito com ele,principalmente a me interessar pelo destino dos povos indígenas, pelassuas peculiaridades étnicas e culturais, pela sua organização social,pela preservação de suas culturas, a estudar as transformaçõesocorridas devido ao contato com o mundo dos brancos.

A profa. Cecília Helm agradece ao indigenista Dival José deSouza, que teve disposição em gravar a entrevista, responder asperguntas, apesar de seus oitenta anos, dedicados a maioria deles àcausa indígena no Estado do Paraná.

Dival José de Souza

220 Arqueologia, Número especial, Curitiba, v. 3, p. 217-220, 2005