assim falava emília: atitudes críticas em memórias de emília de monteiro lobato
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Assim falava Emília: Atitudes críticas em Memórias da Emília de Monteiro Lobato
Anamarija Marinović1
Resumo:
Este artigo propõe-se a discutir as atitudes críticas respeitantes à sociedade brasileira da
época em que a obra de Monteiro Lobato Memórias da Emília surgiu. Pretendemos
questionar também a intertextualidade, a autoridade, a educação, os direitos da criança e
a salientar a denúncia de problemas graves que afectavam a sociedade brasileira da
primeira metade do século XX: racismo, preconceitos, desigualdades sociais, miséria e
violência.
Palavras-chave: Monteiro Lobato, Memórias da Emília, crítica social, preconceito,
crianças
Abstract
This article proposes the discussion of critical attitudes concerning the Brazilian society
of the period when Monteiro Lobato’s work “Emília’s Memoires” appeared. We also
intend to question the intertextuality, the authority, the education, the children’s rights
as well as to highlight the denunciation of serious problems that affected the Brazilian
society of the first half of the 20th century: racism, prejudices, social inequalities,
misery and violence.
Keywords:Monteiro Lobato, Emília’s Memoires, social critics, prejudice, children
Introdução:
Este trabalho tem por objectivo frisar um dos possíveis papéis da literatura
infanto-juvenil: o de desenvolver o espírito crítico nos leitores mais novos e de
despertar curiosidade pelos fenómenos no mundo que os rodeia. O tema do nosso
presente estudo será uma das obras mais conhecidas do autor brasileiro Monteiro
Lobato, Memórias da Emília, publicada em 1936, como o segundo livro da série sobre o
Sítio do Pica-pau Amarelo, um mundo peculiar em que a Dona Benta, a Tia Nastácia,
Narizinho (Lúcia, a menina do narizinho arrebitado), Pedrinho e algumas outras
personagens transformam a rotina da quotidianidade em inesquecíveis aventuras, que
enriquecem e aprofundam o processo do crescimento e do conhecimento da vida.
Escolhemos justamente esta e não qualquer outra obra da série por várias razões: em
primeiro lugar, porque a sua protagonista é uma boneca de pano, que, por sua vez, se
1 Anamarija Marinović está a terminar o Doutoramento em Linguística, Espacialidade em Linguística
Aplicada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É investigadora do Centro de Literaturas e
Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) na vertente Interculturalidade Ibérica e Eslava. As suas
principais áreas de interesse são: folclore, literatura para crianças e jovens, tradução, educação
intercultural e os tópicos identitários.
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distingue dos outros brinquedos pelo dom da fala, que lhe foi concedido graças a um
medicamento mágico: pílula do Doutor Caramujo. Efectivamente por possuir
características de ser e não-ser, de estar entre boneca e criança, as suas opiniões,
admirações, brigas e comentários pareceram-nos tão interessantes. Em segundo lugar,
refugiando-se detrás da forma de boneca, o autor expõe ideias revolucionárias acerca da
educação, filosofia, estética, arte, racismo, culturas diferentes e outros assuntos
importantes para o Brasil e também de relevância universal. Por último, o género
aparentemente memorialístico da obra chamou a nossa atenção, uma vez que se trata de
uma história infantil, a qual se supõe imprópria para o registo de memórias.
Com esta atitude, Monteiro Lobato parece questionar os cânones literários em
voga, todo o processo de criação de literatura, bem como as categorias de autoria,
verdade ou falsidade, autenticidade de uma obra e das suas fontes, intertextualidade, e
valores tradicionalmente aceitáveis numa obra destinada ao público infantil. Imitando as
obras consideradas clássicas da literatura europeia (para crianças e não só, como
nomeadamente Robinson Crusoe, Dom Quixote ou Alice no País das Maravilhas e
dialogando com célebres criações do cinema e desenhos animados, Monteiro Lobato
conseguiu criar um espaço próprio em que se entrelaçam o real e o imaginado, em que
as crianças participam em grandes aventuras lado a lado com os caracteres da ficção,
descobrindo os limites entre mundos: quotidiano e maravilhoso, estimulando a
imaginação e acreditando que na infância tudo é possível, sem esquecer que sempre é
necessário estabelecer um distanciamento em relação a todos os fenómenos e fomentar
o espírito crítico, um dos elementos mais importantes na futura vida adulta.
O universo ideológico de Monteiro Lobato
Nesta parte do trabalho tentaremos verificar quais eram os principais postulados
ideológicos em que Monteiro Lobato baseava as suas perspectivas para ver a forma em
que elas se reflectiam nas obras de cariz pedagógico, destinadas ao público infantil.
Nascido na época em que duas instituições importantes no Brasil, a monarquia e
a escravatura sofreram o seu crepúsculo, Monteiro Lobato no seu percurso de escritor e
pensador, teve influências de várias correntes filosóficas e ideológicas, a positivista,
derivada do pensamento de Auguste Comte, a socialista, a da teoria evolucionista. Na
opinião de Paulo Martínez (2000)2, relevantes para a criação lobatiana também eram as
influências anarquistas e uma determinada ruptura com o ufanismo nacionalista que
2 MARTÍNEZ, Paulo, Monteiro Lobato, Ícone Editora, São Paulo, 2000.
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impregnava a literatura infantil brasileira do seu tempo. Baseando-se na ideia de que a
cultura é um tesouro colectivo e universal, Monteiro Lobato talvez pretendesse incutir
nas crianças um olhar mais cosmopolita para o mundo, não deixando, porém, de se
preocupar com problemas que atormentavam a sociedade brasileira: as desigualdades
sociais, o racismo, a educação que, aparentemente não deixa o suficiente espaço para o
diálogo entre crianças e adultos. Ruth Monteiro Lobato (in: Lobato,1965)3 afirma que o
seu pai era muito pragmático, não se interessando particularmente por questões
religiosas, místicas ou metafísicas. Por isso precisamente, tem uma opinião crítica em
relação à religião, que desenvolverá através do discurso de Emília, como veremos mais
adiante. A este respeito, Nelly Novaes Coelho4 (1996:843) pronuncia-se da seguinte
forma, pondo de manifesto que na personalidade de Monteiro Lobato existe uma forte
“mescla do idealismo humanitário de raízes românticas e do materialismo pragmático
do self-made man, ideal proposto pela sociedade de consumo e lucro norte-americana,
em ascensão na primeira metade do século XX. Com esta perspectiva, é provável que o
autor deseje transmitir a gerações mais novas a necessidade de um espírito crítico, a
tendência de lutar pelos ideais e de construir a sua própria felicidade num mundo em
que a competição e a concorrência parecem ser as leis que o regem. Aqui podem-se já
vislumbrar traços de influências nietzschianas do Super-Homem e a vontade de dominar
o mais fraco. O questionamento da realidade, desejável nas crianças, é, em Monteiro
Lobato, um processo corrosivo, (Coelho, op.cit. 845) “que abala as bases do sistema
liberal burguês (valores, comportamentos, preconceitos, instituições)”. Efectivamente
por isso, as atitudes e a linguagem das suas personagens, e particularmente de Emília,
uma espécie de alter-ego do autor, são por vezes consideradas irreverentes, envolvidas
de ironia, sarcasmo, inconformismo e rebeldia, pelos quais a protagonista deste seu livro
ganhou uma personalidade única e autónoma. Pela sua coragem de falar e de abordar
questões sérias sem medo e com uma extraordinária convicção, esta boneca de pano
tornou-se muito facilmente modelo e exemplo para gerações e gerações de crianças
brasileiras, simpática, com um espírito crítico, com uma dose de humor e outra de
criticismo mordaz, Emília reflecte a necessidade de uma série de reformas que o Brasil
da época em que a obra foi escrita necessitava com alguma urgência, nomeadamente a
reformas educativas, sociais, culturais e políticas.
3 LOBATO, Ruth Monteiro, “Prefácio”, in: MONTEIRO LOBATO, Críticas e Outras Notas, Editora
Brasiliense, São Paulo, 1965. 4 COELHO, Nelly Novaes, “Monteiro Lobato” in: Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil
Brasileira, Editorial da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996, pp.843-856.
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A personagem de Emília dentro do universo lobatiano
Entre todos os livros infantis de Monteiro Lobato, a série sobre os
acontecimentos relacionados com o Sítio do Pica-pau Amarelo ocupam um lugar
particularmente relevante, sendo Emília, justamente a personagem mais destacada. Pela
sua natureza de boneca que tem a capacidade de falar, não pertence nem ao mundo
humano, nem ao dos objectos inanimados. Esta sua divisão entre dois polos permite-lhe
atitudes e reacções que numa cultura tradicional e conservadora, como a brasileira do
início do século XX, não se admitiriam a uma criança “de carne e osso”. Ela aparece já
no livro Reinações de Narizinho, sendo apenas um brinquedo da menina do narizinho
arrebitado, uma boneca de pano comum, das que muitas meninas da sua idade tinham
no seu quarto. Na visão de Cilza Carla Bignotto5, a boneca é uma espécie de projecção
do ideal de tudo aquilo que a criança, inserida num contexto histórico, social, cultural e
religioso devia representar. Dali, poderá talvez resultar a popularidade de bonecas
brancas, louras, de olhos azuis, em forma de bebé ou de menina mais crescida, bem
vestidas, objectos e companheiras inseparáveis da infância de muitas meninas reais. Já
pelo aspecto físico, Emília distingue-se entre as bonecas ideais, foi feita de retalhos de
uma saia velha da tia Nastácia, as suas sobrancelhas foram colocadas demasiado em
alto, os seus olhos são pretos e feios, e há momentos em que esta boneca considera feia
a si mesma, o que não a impedirá desejar ir a Hollywood e tornar-se estrela de cinema.
Posteriormente, graças à uma “pílula falante” conquista o dom da fala, o que lhe
permite desenvolver o seu sistema particular de pensamento, que Márcia Camargo e
Vladimir Sacchetta6 (in: Lobato, 2007) denominam como “o jeito emiliano de pensar”.
Escondendo-se detrás da figura de uma boneca falante, o autor, de forma directa, aberta,
simples, irónica, curiosa e por vezes irreverente, pretende desmontar alguns
preconceitos em vigor na sociedade brasileira da época, questionar os direitos da
criança, as relações do poder entre diversos países, reflectir acerca da educação,
racismo, pragmatismo, ordem social, criação literária e outros assuntos, mais
apropriados, talvez para o público adulto do que propriamente para crianças. Nelly
Novaes Coelho (op.cit.854) considera que “em cada novo livro afirma-se cada vez mais
a personalidade de Emília, porta-voz das ideias libertárias e progressistas”. Essa
5 BIGNOTTO, Cilza Carla, “Duas Leituras da Infância Segundo Monteiro Lobato” in:
http://br.monografias.com/trabalhos903/leituras-infancia-monteiro/leituras-infancia-monteiro2.shtml 6 CAMARGOS, Márcia, SACCHETTA, Vladimir, “Prefácio”, in: LOBATO, Monteiro, Memórias da
Emília, Globo, São Paulo, 2007.
5
“independência de pano”, como a qualifica o próprio autor7 (Lobato, 1963, 129), leva-a
a pronunciar-se sobre as injustiças, os métodos disciplinares usados para educar
crianças, a religiosidade popular da tia Nastácia, a ajuda que Inglaterra deveria oferecer
ao Brasil. Benjamim Abdala (apud. Nunes, 1998:238)8 considera que “as personagens
infantis de Monteiro Lobato organizadas em torno do Sítio do Pica-pau Amarelo
evidenciam duas fases do processo do conhecimento da realidade que se enraízam na
tradição ibérica: o saber baseado na aventura e na experimentação”. Justamente
brincando, imaginando e interagindo uns com os outros e com as personagens da ficção
literária e cinematográfica, os protagonistas vivem o dia-a-dia enriquecendo as suas
experiências de uma forma simultaneamente espontânea e maravilhosa, ensinando os
leitores que a infância deveria ser um tempo despreocupado, em que se deve ter acesso
aos saberes necessários para a vida. Nas palavras de Emília (in: Lobato, op.cit.139) “a
criançada só cuida de duas coisas: brincar e aprender”. Na nossa opinião, o autor
preocupa-se ao mesmo tempo com manter a ideia da infância como o tempo das
brincadeiras, inocência, amizade e felicidade e com informar as crianças brasileiras
acerca dos problemas no mundo que as rodeia, tais como a pobreza, a fome, o
sofrimento. Cassiano Nunes (op.cit.229) encara a destreza com que o autor adapta a
linguagem para os leitores mais novos como uma mais-valia da “personalidade do seu
criador que conservou o espírito da infância no seu íntimo”. Precisamente pela grande
preocupação com crianças e com o seu futuro, pretende incutir-lhes o amor pela
independência e o amor pela educação, sem os quais não há, na sua perspectiva, uma
verdadeira hipótese de felicidade. Sendo Monteiro Lobato testemunha de alguns
acontecimentos que perturbaram a sociedade brasileira do seu tempo, parece lógico que
no seu sistema de pensar se reflicta todo um conjunto de ideias sociais, económicas,
políticas, científicas e filosóficas com as quais tencionava educar as crianças para o
dinamismo e progresso e não-conformismo, denunciando a intolerância e a ignorância
como causas principais da violência. As crianças lobatianas revoltam-se contra o
tradicional e geracionalmente aceite incentivo à obediência cega dos adultos e da sua
autoridade. Nos seus livros as crianças dialogam com adultos sem medo de serem
castigadas, expõem os seus pontos de vista em pé de igualdade e são ouvidas com
carinho, atenção e admiração. Desta forma, Dona Benta nunca estranha a esperteza dos
7 LOBATO, Monteiro, Obras Completas, As Caçadas de Pedrinho, o Saci, Memórias da Emília, Editora
Brasiliense, São Paulo, 1963. 8 NUNES, Cassiano, Novos Estudos sobre Monteiro Lobato, Editorial da Universidade de Brasília,
Brasília, 1986.
6
seus netos e muito menos a de Emília. De acordo com Zinda Maria Carvalho de
Vasconcelos9 (1982:143), “exactamente o facto de ser uma boneca a destitui da
obrigatoriedade de ser educada, ter bom comportamento etc.”. Curiosamente, o que
mais interessante, a nosso ver parece ser é que o brinquedo de pano fala por si próprio e
nunca diz aquilo que as crianças lhe sugerem, como seria de esperar no mundo real, em
que uma boneca é apenas um instrumento de diversão das suas donas. Nas palavras
desta autora (idem,143), Emília representa a “voz da verdade, diz em alto os
pensamentos mais censurados de todos, age seguindo os impulsos normalmente
reprimidos, quebra os padrões aceitos”. Desta forma, é possível uma boneca, com pouca
experiência de vida não apenas escrever as memórias, como também pronunciar-se
acerca da autenticidade e fingimento no processo da escrita. Atreve-se a insultar a Tia
Nastácia com base racial, sem ninguém a criticar, repreender ou castigar, limitando-se
apenas a Dona Benta a comentar que “está virando cada vez mais insolente”. Segundo
Fernando Marques do Vale (1994), Monteiro Lobato introduz novidades na relação
criança-adulto, dando visivelmente mais direitos e mais espaço às crianças. Na literatura
infantil brasileira da época pré-lobatiana, nas palavras deste autor, a criança era vista
apenas como um “adulto em miniatura”, seguindo-se a visão das crianças herdada desde
os clássicos infantis europeus e do folclore tradicional. Na perspectiva de Marisa
Lajolo10
, “é com o exercício de palavra, falada e escrita, que ela atinge um outro
patamar, transformando-se de desenxabida boneca de pano (…) na irresistível, cintilante
e espevitada criatura que encanta e desconcentra os leitores, maiores e menores”, Aqui
vale a pena destacar o domínio da escrita como uma actividade que a distingue entre
muitas bonecas automáticas, que sabiam abrir e fechar os olhos e pronunciar palavras
simples como “pai” ou “mãe”. A fala de Emília é estruturada, baseada em argumentos
claros, lógicos, implacáveis, por vezes introduz elementos de humor, distorce a
realidade, provavelmente para não dar uma visão do mundo demasiado pessimista. A
sua linguagem é elaborada, sofisticada, precisa, às vezes misturada com palavras menos
formais ou populares, criando uma forma de falar viva, espontânea, muito brasileira,
embora respeitando os exigentes critérios da linguagem-padrão, aproximada das
crianças. Quando começa a falar, a sua primeira frase não é o nome da dona ou a
palavra “mãe”, como se poderia esperar em narrativas para crianças, mas ao
9 VASCONCELLOS, Zinda Maria Carvalho de, O Universo Ideológico da Obra Infantil de Monteiro
Lobato, Traço Editora, Rio de Janeiro, 1982. 10
LAJOLO, Marisa, “Fala mesmo Sinhá! Fala que nem uma Gente!” in:
http://www.unicamp.br/iel/monteirolobato/outros/Em%EDliasenac.pdf
7
descontentamento por causa de um “terrível gosto de sapo na boca”. Essa “fala
desajustada” é precisamente o que a leva a ser tão autónoma, crítica, inconformista,
imparcial e a defender as suas posições, independentemente da reacção dos outros. Ruth
Monteiro Lobato (op.cit.IX), comentando esta, talvez excessiva, preocupação que o seu
pai tinha com a língua, pronuncia-se da seguinte forma: “a linguagem era o veículo de
ideias que ele exigia perfeita. Irritava-o a imprecisão dos termos: para pensar
claramente, era preciso conhecer o mecanismo da língua.” Ditando ao visconde,
deixando-o escrever, corrigindo as provas do livro ou escrevendo sozinha, Emília não
apenas mostra a sua esperteza, inteligência e cultura, como também se eleva a um outro
nível, o de crítica e activa participante na sociedade. A arte de ler também a distingue
entre outras bonecas das histórias infantis. Michelle Santos Teixeira11
(Et.Al, p.2.) no
texto “Criança, Violência e Leitura na Obra infantil de Monteiro Lobato” afirma que “o
ato de leitura, portanto, não se constrói por mero processo de decodificação do
impresso, pois este trânsito entre o texto e o leitor está situado histórica, cultural,
politicamente envolvendo ainda condicionamentos menores, de ordem psicológica,
social, económica, enfim”.
A leitura das aventuras de Dom Quixote e Sancho fazem-na deliciar-se no
mundo da imaginação e também denunciar algumas injustiças que, na sua opinião, se
cometem com os idealistas e pessoas moralmente exemplares. Daí, Emília reclamar
contra “pau, pau, pau e mais pau” no lombo de Dom Quixote, apesar de tantas fazendas
boas e dignas de admiração. A leitura dos jornais, testemunhas imparciais da realidade
objectiva entristece-a profundamente, como se verá na seguinte citação (Lobato,
op.cit:139): “tanta guerra, tantos crimes, tantas perseguições, tantos desastres, tanto
sofrimento…”. Curiosamente, as notícias sobre cultura, desporto ou qualquer outra
actividade humana considerada positiva ou desejável, não merecem a atenção de Emília.
Uma atitude assim é claramente propositada, uma vez que com a sua voz pretende
denunciar os problemas universais, dos que as crianças devem estar a par, porque fazem
parte do seu quotidiano e porque os poderão tornar cidadãos activos e participativos da
sociedade em que vivem. Eliane Santana Dias Debus12
, acerca dos usos da linguagem
nesta obra, destaca as duas vertentes principais: a estilística, com a que se pretende
11
TEIXEIRA, Michelle Santos, XAVIER, Drielly Joana Silva, SOARES, Luciane Aparecida Silva,
“Criança, Violência e Literatura no Universo Infantil de Monteiro Lobato”, in:
http://www.educonufs.com.br/cdvicoloquio/eixo_12/PDF/41.pdf 12
DEBUS, Eliane Santos Dias, “ Emília Des(a)fia a Palavra Escrita e Tece Suas Memórias”, in:
http://cerimonias.net/libecline/n1/1Monteiro_Lobato.pdf
8
aproximar mais o conteúdo do livro dos seus destinatários rompendo com os padrões
estabelecidos na literatura para crianças dos séculos anteriores, e a ideológica, segundo
a qual o autor deve desenvolver uma “formação cidadã dos leitores” (p.3). Por isso, nem
a escrita de Monteiro Lobato, nem o discurso de Emília são isentos de juízos de valor,
propositados, justamente para provocarem alguma reacção no público. Interligando o
verídico, o maravilhoso, o quotidiano e o fantástico, rompem-se e invertem as regras da
lógica, da razão e das razões comumente aceites, deixando espaço para argumentos
peculiares, porém baseados numa coerência e lógica próprias, que admiram e
desconcentram o leitor, fazendo-o pensar que quem tem razão, indubitavelmente é
Emília e não as outras personagens que a rodeiam. Curiosamente, enquanto a leitura,
suscita em Emília simultaneamente curiosidade, admiração e suspense, as personagens
do cinema, mesmo os vilões como o Capitão Gancho ou o Marinheiro Popeye (que na
aventura descrita nas Memórias é um rapaz rude, interesseiro, que vem à procura do
anjinho e que merece ser castigado na luta com Pedrinho), fascinam-na, encantam-na,
fazem parte do seu quotidiano, não são criticadas nem avaliadas de qualquer modo
negativo, pois o cinema, sendo um mundo de ilusão, é um espaço em que não há lugar
para a dor e sofrimento. Ali até a célebre actriz Shirley Temple é amiga, disponível para
conversar, sempre alegre. No mundo dos filmes, diferentemente da dura realidade
quotidiana brasileira da época do surgimento das Memórias da Emília, tudo parece um
sonho, tudo é bonito, ninguém merece uma palavra “com sabor de sapo”, é um mundo
de ficção, desejado e aprovado por crianças. O espaço do cinema, na altura nitidamente
reservado à indústria de Hollywood, é idealizado, mostrando uma clara e profunda
admiração de Monteiro Lobato pelos Estados Unidos e os modelos de comportamento e
de viver norte-americanos, pretendendo, talvez, oferecer aos leitores brasileiros um
outro horizonte e um outro modelo, desejável de seguir.
Assim falava Emília: opiniões e atitudes críticas que impregnam o livro
Como uma verdadeira “filha de gente desarranjada” (Lobato, op.cit. :90), como
se declara no início das suas Memórias, Emília em seguida dá a ideia de que a sua
intenção é subverter, questionar, parodiar, ironizar, reflectir sobre temas sérios de uma
forma aparentemente leve e acessível, porém, abundante em material corrosivo, que
pretende abalar todos os fundamentos dos padrões culturais estabelecidos e conhecidos.
A primeira interpelação da protagonista no livro refere-se directamente ao género
memorialístico, muito presente no mercado livreiro brasileiro no tempo em que a obra
surgiu. As outras reflexões emilianas envolvem o processo de criação literária e a fama
9
que envolve a produção do livro em si. Desta forma, é justamente usando os
mecanismos do género memorialístico que Emília os questiona, salientando a dicotomia
entre a realidade e a ficção, a verdade e a mentira e a intenção do escritor, ao escrever as
memórias e o efeito que pretende produzir em quem as lê. Deste modo, logo nas
primeiras páginas da obra, Emília parece desvendar algumas tácticas consideradas
sagradas no desenvolvimento e criação de determinados géneros literários. Como se
verá, (Lobato,op.cit.88): “Sei também que é nas memórias que os homens mentem
mais”, diz-nos Emília, salientando que esta é a estratégia usada para se ter uma “alta
ideia do escrevedor” (idem). Curiosamente, o que aqui chama a atenção, é a palavra
“escrevedor”, e não “escritor”, “criador” ou “autor”, provavelmente intuindo, que quem
escreve as memórias nem sempre é quem as viveu, como se irá demonstrar ao longo da
obra, sendo o verdadeiro autor o Visconde, porém, quem ganhou a fama é a Emília.
Outro pormenor para o qual gostaríamos de apontar é o facto de Emília se referir aos
“homens” e não a “escritores”. Pois, os campos das letras e da erudição durante séculos
estava reservado única e exclusivamente à população masculina, quer no sentido do
acesso à escolarização, quer no domínio da criação literária. Dando uma perspectiva
feminina ao assunto, a boneca de pano falante pretende talvez, reivindicar o direito de
uma mulher se afirmar como autora e criadora, como narradora e protagonista das
obras.
Em relação à dicotomia verdade – ficção, Emília expressa-se de uma forma
bastante irreverente (idem) “Logo, tem de mentir com muita manha para dar a ideia de
que está falando verdade pura”. Sendo inicialmente tão implacável com a “mentira bem
pregada de que ninguém desconfia”, no final da obra não parece minimamente crítica
consigo mesma ao incorporar a sua inventada aventura de Hollywood no livro de
memórias, pois “comigo não há comos. Fui e acabou-se” (p.137) são as palavras dela
mesma, que questionam a verosimilhança, os factos e a imaginação entrelaçados no acto
de escrever.
Desmontando o mistério que envolve a escrita como ritual ou cerimónia quase
sagrada ou intocável, Emília pretende esconder a falta de inspiração, motivação ou
vontade de trabalhar, culpando a má qualidade do papel, da tinta e da pena, exigindo o
papel “cor do céu com todas as suas estrelinhas, tinta cor do mar com todos os seus
peixinhos e pena de pato com todos os seus patinhos” (idem, 88). Tendo em conta que a
pena de pato se usava para as escrituras mais preciosas e de alto valor estético, a boneca
de pano parece ter a plena consciência da relevância das suas aventuras transpostas para
10
a escrita. Porém “com todos os seus patinhos” pode implicar uma preocupação
demasiado pedante com a parte formal da obra de alguns autores, esquecendo talvez a
qualidade literária daquilo que escrevem. Realizadas as exigências respeitantes à parte
superficial da escrita, surge a dificuldade de começar de uma forma contundente, que
cative a atenção do público leitor. Após seis pontos de interrogação e a conclusão de
que “Começar é terrível” (idem, 90), diferentemente das formas conhecidas de acabar,
com um (idem) “latinzinho” depreciativo escondido detrás da palavra “finis”, e mais
algumas reflexões, parece que a grande futura memorialista Emília fica sem ideias. É
então que, com a ajuda do Visconde, recorre a fórmulas conhecidas e já aprovadas como
apropriadas para o género memorialístico: detalhes sobre a nascença e origens de quem
escreve as memórias. Serve-se do célebre exemplo do princípio de Robinson Crusoe, da
autoria de Daniel Defoe, traduzido por Monteiro Lobato, seu livro predilecto e uma das
suas influências mais visíveis. Imitando o cânone de um clássico europeu para crianças,
que “serve” para esta ocasião e dialogando com ele, Emília subverte-o logo de seguida,
acrescentando detalhes originais, como as estrelinhas que escondem a idade e o local de
nacimento, dados factográficos sem relevância para uma narrativa infantil, começando a
sua própria história, negando todos os ideais e elogios de que se pressupõe ser
merecedora a protagonista de um livro de memórias. Para além de se considerar “filha
de gente desarranjada” e “feia que nem uma bruxa”, quando ela falou, “todos tinham
que tapar os ouvidos”. (idem, 91). “Tapar os ouvidos” aqui poderia significar não querer
ouvir a verdade ou ter medo de romper com as conveniências e clichés literários da
época e de cada género, negar qualquer valor à originalidade e inovações. Através da
crítica de um estilo literário demasiado decoroso e decorativo, abundante em palavras e
figuras de estilo, ao gosto das épocas anteriores, o autor, nas palavras de Eugênia Stela
Ferreira Gomes13
, “Caprichos nas Memórias da Emília de Monteiro Lobato” pretende
escrever numa “linguagem desliteraturizada” (p.6) obtendo uma maior transparência e
claridade do seu texto e das ideias que nele expõe. Vale-se também do mecanismo da
intertextualidade, supondo-se que o Visconde, redactor das memórias emilianas é mais
culto e erudito do que ela, fazendo ponte entre as outras obras lobatianas, tal como
menciona os conhecidos clássicos literários do cânone europeu. Mesmo sem serem
directamente mencionadas, nesta obra notam-se as interferências das fontes literárias e
filosóficas que serviram de influência a Monteiro Lobato: nomeadamente Friedrich
13
GOMES, Eugênia Stela Ferreira, “Caprichos nas Memórias da Emília de Monteiro Lobato”, in:
http://www.ufjf.br/revistagatilho/files/2009/12/artigo_memorias_emilia.pdf
11
Nietszche, as correspondências que mantinha com o amigo Rangel e outras leituras
actuais na sua época.
Um dos tópicos indispensáveis a discutir nas Memórias da Emília é a língua, já
que na opinião da protagonista, “todas as calamidades do mundo vêm da língua”
(Lobato, op.cit.93). Neste âmbito entram as reflexões acerca da polissemia das palavras
(nomeadamente “cabo”), dos sentidos figurados e denotativos, sendo as observações
acerca das características do cão e da vaca e as suas transposições para a esfera humana
completamente opostas às imagens da cobra e do tigre. Apesar de o cão ser fiel e o
melhor amigo dos homens, nenhum homem gostaria de ser chamado de cão, muito
menos uma mulher seria agradada de ser tratada por “vaca”, mesmo sendo este animal
indispensável na alimentação humana e não obstante a sua bondade e paciência. Na
língua portuguesa, diga-se de passagem, a palavra “vaca” tem uma conotação feia e
depreciativa, aplicada a uma mulher, implicando uma pessoa de comportamento sexual
exagerado ou imoral.
Nas palavras da boneca, a diversidade linguística existente no mundo pode
originar conflitos, sendo que (idem, 96) “para piorar a situação, existem mil línguas
diferentes, cada povo achando que a sua é a certa, a boa, a bonita”. O interessante aqui,
a nosso ver, é a forma como Emília explica as palavras ao anjinho do céu (talvez a
representação que durante séculos se tinha das crianças, que quer do ponto de vista
religioso, quer do científico, eram consideradas tabula rasa, completamente vazias de
qualquer conhecimento acerca do mundo. É curioso que os explicadores do anjinho não
sejam nem a Dona Benta, nem as crianças. A sua “professora” é uma boneca de pano,
que observa as coisas da sua perspectiva muito peculiar. Desta forma, se ela caracteriza
a árvore como (idem, 93) “pessoa que não fala, que fica sempre ao pé do mesmo ponto”,
obviamente não dá uma definição correcta do ponto de vista linguístico, limitando-se a
criticar a inércia e o conformismo das pessoas que não reagem e preferem uma vida
quase vegetal, confinada à monotonia e rotina do quotidiano. Posteriormente, Emília
mostrará uma determinada admiração pelas árvores, por não se intrometerem na vida
dos outros e por “fazerem o seu trabalho”. Não se especifica o trabalho e a utilidade das
árvores, mas pelo mero facto de permanecerem neutras perante as vidas dos outros
merecem ser mencionadas numa obra de carácter memorialístico. A ortografia é um
assunto que merece discussão, do ponto de vista da boneca de pano. Tendo em conta
que após a independência do Brasil, como uma forma, talvez de reivindicar a identidade
nacional, começam a notar-se diferenças na grafia de determinadas palavras, colocando
12
sempre em discussão a grafia etimológica que preserva a raiz latina ou grega das
palavras e a grafia baseada no princípio fonético, mais próximo da pronúncia. Daí, no
livro das reminiscências emilianas caber a recordação da viagem ao País da Gramática e
a “desmoralização completa” da (idem, 107) “a coroca velha implicantíssima chamada
Ortografia Etimológica”. Sendo muito inovadora e revolucionária em todos os sentidos
da palavra, não admira ser uma acérrima defensora da grafia fonética, muito facilmente
adoptada no Brasil.
Dentro das suas reflexões encontram-se também ideias acerca da vida, filosofia,
intelecto. Como se pode intuir, não são propriamente os temas que preocupariam uma
criança. Pelo menos não dessa forma. Na opinião De Izabel Cristina Vieira Antônio14
(200:28) "Emília consegue manifestar, de forma convincente, os anseios e aspirações do
mundo adulto”. Tornam-se, então, mais claras, as definições da vida, do “filósofo” e de
muitos outros termos, aparentemente “difíceis” para o universo infantil. Pela boca de
Emília, Monteiro Lobato exprime as ideias materialistas acerca da transitoriedade da
vida, o cepticismo na existência do além, uma vez que (Lobato, op.cit.91) “a vida,
Senhor Visconde é um pisca-pisca” e que o homem (idem) “depois que morre, vira
hipótese”. Nesta frase não há um claro niilismo nietzschiano, deixando-se uma
“hipótese” de vida após a morte. Porém, a religiosidade reserva-se a personagens
incultas, como a Tia Nastácia, que teve medo de cortar a ponta da asa do anjinho por ser
“sacrilégio”. Deste modo, a religiosidade popular da criada negra está intimamente
interligada com a superstição e as crendices, vindas talvez, de outras influências
culturais, como nomeadamente a ideia do anjinho como uma “ave de Deus”. Por outro
lado, Monteiro Lobato não parece desrespeitar (idem,138) “aquele Jesus Cristo que
Dona Benta tem no oratório pregado numa cruz”, salientando que foi um grande
idealista que suportou muitas injustiças, sem entrar, porém, em discussão da sua
natureza divina ou humana. Dona Benta, também personagem não demasiado culta,
cujo nome está claramente associado ao universo cristão, parece ter algum direito a
acreditar em Deus, sem ser censurada por isso. Porém, ao discutir a morte com o
Almirante, esta personagem mostra ter a certeza de que (idem 100) “ quando chega o
nosso dia, o gancho da morte nos pesca a todos, sejamos reis ou mendigos”, sem se
pronunciar mais pormenorizadamente acerca do Além ou da vida eterna. Neste
contexto, perante o cepticismo de Dona Benta talvez seja possível vislumbrar os
14
ANTÔNIO, Izabel Cristina, Vieira, A Atuação da Personagem Emília na Obra de Monteiro Lobato:
Memórias da Emília, Universidade Estadual de Santa Catarina, Criciúma, 2005
13
vestígios do antigo motivo literário ubi sunt (onde estão?), segundo o qual o homem é
impotente e indefeso perante a implacabilidade da sua vida finita, independentemente da
condição social em que nasceu e viveu.
Emília, no seu discurso, faz algumas referências a Deus, sem pôr em causa a sua
existência. Primeiramente, discutindo os direitos do anjinho à sua liberdade, afirma que
Deus não se importaria demasiado com a ausência de uma das suas “aves”. Os seguintes
momentos em que Ele é mencionado referem-se directa ou indirectamente à Tia
Nastácia e à sua pertença racial (idem, 125) (“Quando ele preteja uma coisa, é por
castigo” , interrogando-se posteriormente como era possível Deus ter feito uma “criatura
tão boa” “preta como carvão”). Aqui muitos autores e estudiosos de Monteiro Lobato
vêem as tendências nitidamente racistas ou discriminatórias do autor, acusando-o de ser
preconceituoso e intolerante. Estas acusações podem não carecer completamente de
fundamento, pois é evidente a sua admiração pela cultura anglo-saxónica, pela raça
branca e pelo aspecto louro (cabelo claro e olhos azuis). Por isso mesmo, (idem, 100)
Emília pronuncia-se da seguinte forma acerca dos padrões estéticos valorizados pelo
autor: “Como são lindas as crianças inglesas. Para transformá-las em anjos bastaria
colar nas costas de cada uma duas asinhas”. O aspecto angelical dos meninos ingleses,
concorda com uma certa visão ariana do belo e do aceitável, contrariando o visual feio e
pouco apelativo da própria Emília e da “negra beiçuda” como a tia Nastácia, que, dada a
sua origem e condição humilde, deve ser tratada por “burrona” e por outros nomes
depreciativos. Izabel Cristina Vieira Antônio (op. cit.32-33), sem tomar uma posição
acerca das convicções do autor, refere que “preconceito é algo que sempre existiu,
preconceito em relação Ás crianças, aos idosos, aos deficientes, mas o maior de todos e
que vem se mantendo há alguns séculos é o preconceito racial. Esse tipo de preconceito
já foi muito maior do que é hoje. Monteiro Lobato, no decorrer da sua obra, revela quão
preconceituosa é a nossa cultura. E é por meio da personagem de Emília que o escritor
manifesta a dimensão do nosso preconceito cultural.” A nossa opinião pode ir ao
encontro das palavras desta autora, porque nos parece que ao constatar a existência do
racismo no Brasil, Monteiro Lobato podia ter pretendido denunciar este fenómeno e ter
deixado aos seus leitores mais novos um assunto para reflectir. Porém, as crianças
inglesas, apesar da semelhança com os anjos, entre as personagens do Sítio, provocam
um determinado receio. Pois, são potencialmente acusadas de querer furtar o anjinho.
Aqui revela-se o estereótipo que implica que o estrangeiro e o desconhecido são
necessariamente perigosos ou, no mínimo estranhos. Emília confirma as suas suspeitas
14
com as seguintes palavras (idem, 99) “Criança é criança. Isoladas, ainda passam, mas
em bandos são bichos mais daninhos do mundo. (…) Criança é o diabo”.
Desmitificando toda a condição de crianças enquanto inocentes e puras, Emília parece
revelar algumas verdades acerca da natureza infantil, o seu carácter e a necessidade de
serem educadas.
Nas Memórias da Emília, estão patentes também muitas desigualdades e
injustiças sociais, o problema da fome, a política, a miséria e diversos outros tópicos até
então impensáveis na literatura infanto-juvenil. A curiosidade de conhecer o ver o
verdadeiro anjo do céu levou todas as crianças do mundo a quererem visitar o sítio de
Dona Benta. Porém, dadas as capacidades limitadas da localidade, podia vir um grupo
de cada vez. Entre mais interessados em resolver os problemas das doenças e ansiedade
das crianças, surgidas por causa do intenso desejo de realizar esta extraordinária visita,
estavam algumas personagens históricas reais: o Rei de Inglaterra Eduardo VII, o
Presidente Roosevelt, o Führer da Alemanha, o Duce da Itália, o Imperador do Japão e o
Negus15
de Etiópia. Curiosamente, todos estes líderes políticos estariam de alguma
forma envolvidos na Segunda Guerra Mundial, que eclodiu apenas três anos após a
publicação das Memórias da Emília. Tendo escolhido justamente estas figuras como
potenciais visitantes do Sítio do Pica-pau amarelo, poderia parecer claro que opção
política Monteiro Lobato apoiava, querendo, talvez, incutir essas ideias às crianças que
liam a sua obra. Sendo conhecido que o autor defendia a superioridade da raça branca e
que pertencia à Sociedade Pró-Eugênica de São Paulo, não parece admirar a escolha de
figuras públicas a desejarem participar nas aventuras no Sítio de Dona Benta. Porém, a
sorte permitiu apenas ao Rei da Inglaterra, ao seu Almirante e às crianças do seu povo a
virem realmente a realizar este feito. Conjuntamente com toda a tripulação do navio
Wonderland, (que não é denominado assim por mero acaso), aparecem Alice do País
das Maravilhas, Peter Pan, Capitão Gancho e o Marinheiro Popeye, figuras importantes
do universo infanto-juvenil anglo-saxónico. O Rei de Inglaterra parece muito
benevolente com todos os habitantes do Sítio, preocupando-se com os problemas reais
que atormentavam a sociedade brasileira da época. Uma das questões que parece saltar à
vista é a fome e a falta de alimentos, manifestados na pergunta de Dona Benta (idem,
108) “Como fazemos para encher tantas barriguinhas?” e na constatação (idem) “O
mantimento que há aqui no sítio não chega para a décima parte”. Este problema é
15
Negus é o título que na Etiópia se usava para os reis. A figura aqui em questão é Hailé Selassié (nota da
autora).
15
resolvido rápida e facilmente, mediante o envio de barcos ingleses cheios de comida
(sanduíches com paio Iorque e muitos outros manjares típicos da Inglaterra). O rei, ao
saber que a vaca da Dona Benta já é muito velha e que não dá leite suficiente para
satisfazer as necessidades da casa, promete-lhe uma vaca nova e boa. Nesta atitude
generosa do rei inglês, nota-se a admiração de Monteiro Lobato por um país
economicamente mais desenvolvido, salientando a necessidade de os países mais fortes
apoiarem os mais necessitados. Uma lata de leite condensado, guloseima provavelmente
muito escassa e cara no Brasil da época, exigida por Emília, e criticada como um pedido
demasiado atrevido, reflecte a necessidade das crianças brasileiras de experimentarem
alimentos que no seu país podiam não se encontrar com tanta frequência. Tendo em
conta que as relações diplomáticas e políticas entre o Reino Unido e o Brasil, enquanto
Estado independente remontam para a primeira metade do século XIX, quendo se
intensificaram, dada a exigência britânica de se abolir a escravatura e o tráfico negreiro
no Brasil. Dada a “Questão Christie”16
, as amistosas relações entre os dois países
tinham que ser temporariamente interrompidas, para se renovarem em 1865, com o
estabelecimento das Embaixadas nos dois Estados, continuando a ser relativamente
estáveis e amigáveis.
Note-se que Alice do País das Maravilhas conseguia falar português, devido ao
facto de a obra ser traduzida para esta língua pelo próprio Monteiro Lobato.
Inicialmente, esta personagem poderia ser vista como uma típica representante de uma
grande potência colonial, que parece não apreciar demasiado a realidade do Sítio de
Dona Benta, não gosta dos nomes das frutas, não se sente à vontade ali, para, depois de
ser amavelmente acolhida, começa a mudar de opinião. É então que entre as crianças do
Sítio, surge uma extraordinária solidariedade e a necessidade de defenderem “a nossa
casa”. Perante o estrangeiro, encarado como perigo num Brasil intolerante e
preconceituoso que Monteiro Lobato retrata. Uma dose de patriotismo, ensinada às
crianças, num mundo claramente polarizado entre os poderes económicos e políticos
dos países mais desenvolvidos e fortes, neste contexto ainda parece aceitável. A
defensora mais radical do Sítio e das suas características é novamente Emília, que não
se intimida nem sequer na presença de uma figura tão mundialmente conhecida como
Alice, dizendo: “Por bem a coisa vai, por mal a coisa não vai não”, fomentando entre os
meninos o sentido de valor que se dá à união, à palavra de honra e a amizade.
16
Um dos factores que teriam levado Alice a assumir a mudança de
comportamento é o facto de no Sítio de Dona Benta ter tido a oportunidade de comer
laranja-lima junto do anjinho. Quem se recorda das aventuras de Alice no País das
Maravilhas, provavelmente tem na memória o episódio de um pote em que estava
escrito “doce de laranja”, que a menina abriu e encontrou vazio. Por estas e muitas
outras razões, a “inglesinha”, que no princípio se mostra ligeiramente reservada em
relação ao Sítio e aos seus habitantes, bem como preconceituosa relativamente à
realidade brasileira que a rodeia, chega a confessar à boneca de pano (idem, 107) “Estou
mudando de opinião, Emília. Estou achando que este Sítio de Dona Benta é ainda mais
gostoso que o nosso Kensington Garden lá de Londres.” Comparando este lugar a um
dos parques reais mais belos na capital inglesa, e falando à maneira brasileira, Alice
parece estar grata aos seus novos amigos e identificar-se com a sua cultura. Da mesma
forma, Emília revela nas suas memórias que fala um inglês perfeito, sem sotaque e que
até consegue corrigir alguns erros da própria Alice. Com este comentário, Monteiro
Lobato provavelmente pretende sublinhar uma certa superioridade da língua inglesa no
universo cultural e a obrigação de todos de a dominarem na perfeição.
Porém, não obstante a admiração do autor pelo mundo anglo-saxónico, Emília
não deixa de denunciar algumas injustiças do sistema capitalista, tais como a exploração
laboral ou o aproveitamento do trabalho dos outros para proteger os próprios interesses.
Leiam-se de passagem estas palavras da boneca falante (idem,111) “ Que negócio é um
anjinho desses nas unhas dum explorador? Já não digo para trabalhar no circo, mas no
cinema, Pedrinho. No cinema!” O Marinheiro Popeye, juntamente com o Capitão
Gancho, portadores da força física rude e dos impulsos mais baixos, suspeitos de serem
capazes de fazer mal ao anjinho, são também indirectamente acusados de exploração
laboral de um ser inocente no mundo do show business. Irónica em relação ao trabalho
do Visconde, consciente de o explorar em termos intelectuais, Emília já não parece tão
crítica como no caso do anjinho, uma vez que (idem,123) “fazer coisas com a mão dos
outros, ganhar dinheiro com o trabalho dos outros, pegar nome e fama com a cabeça dos
outros, isso é que é saber fazer as coisas”. Note-se que a expressão “saber-fazer” está
escrita em itálico, representando um decalque linguístico do termo inglês know-how,
traduzindo todo o pragmatismo e o espírito utilitário dos países desenvolvidos
capitalistas e anglófonos. A isso Emília denomina de esperteza. Izabel Cristina Vieira
Antônio (op.cit.33) “Essa esperteza não é típica de uma boneca. Essa esperteza é de
gente que vive e vive entre nós”. Aparentemente indo ao encontro das palavras da
17
autora, Emília refere que os homens que só cuidaram de si mesmos, foram os mais
felizes. Esta reacção revoltada, que aparenta defender o egoísmo e o desinteresse pelo
próximo, apenas é uma denúncia da injustiça, na perspectiva de Emília (Lobato,
op.cit.138), “o maior mal deste mundo”. Uma opinião assim resulta das visões que a
boneca de pano tem de Dom Quixote e Jesus Cristo, pessoas generosas e abnegadas,
que por causa dos seus ideais sofreram muito na vida. Reagindo contra a violência, pela
boca de Emília, põem-se de manifesto os métodos disciplinares duros e inadequados
para uma educação de gerações modernas. A Emília dói-lhe sinceramente quando
(idem) “certas mães batem nos seus filhinhos”. Esta poderia ser uma denúncia clara
contra a violência doméstica, provavelmente muito presente em certas famílias
brasileiras da época, como também designaria uma educação mais liberal, que colocasse
as crianças em pé de igualdade com os adultos, atribuindo-lhes direitos e mais respeito
no seio familiar e na sociedade. No que diz respeito à educação, parece-nos importante
realçar a opinião da Tia Nastácia. Da perspectiva de criada negra, durante toda a vida
intimamente ligada ao universo da casa e das penosas tarefas domésticas, cozinhar não é
para todos e as comidas não se elaboram apenas com o conhecimento correcto da
receita. Respondendo a Alice, defende, talvez, a posição de que as meninas devem ter
uma educação diferente (idem, 119): “Isto de cozinhar, menina, tem seus segredos. Só
mesmo para uma criatura como eu, que nasceu no fogão e no fogão hei-de morrer”. As
labores domésticas, consideradas inferiores e desprezíveis, não se adequariam a uma
menina branca, célebre, sofisticada e europeia como Alice, reservando-se a uma
“criatura” como ela, sendo estas as suas únicas qualidades, que Emília chegará a
reconhecer (idem, 138) “ciência e mais coisas dos livros isso ela ignora completamente,
mas nas coisas práticas da vida é uma sábia”.
Estas parecem ser as únicas palavras de conotação positiva que a protagonista
das Memórias dirige à Tia Nastácia, suavizando ligeiramente o seu discurso racista e
preconceituoso que impregnava a obra. Relativamente às outras personagens do Sítio,
Emília é benevolente com a Dona Benta, que é (idem, 140) “boa até ali”, Narizinho,
apesar das constantes brigas, admitindo que (idem) “quem não ama, não briga”, sendo
ela “a primeira menina do mundo”, e valendo mais que a própria Alice e a “Capinha
Vermelha”. Para Pedrinho tem apenas expressões de louvor, qualificando-o de (idem)
“um excelente rapaz”, “sério” e “menino de palavras”, mostrando assim o seu lado
terno, carinhoso e atencioso, e pretendendo apagar traços do seu carácter, aparentemente
amargado e sempre descontente. No que se refere ao Visconde, apesar das constantes
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divergências, Emília e ele têm bastantes elementos em comum: ambos foram feitos pela
Tia Nastácia, a principal culpada de todas as falhas e defeitos que os caracterizam,
ambos eram imaginados como seres inanimados, que possuem o dom da fala, leitura e
escrita, o aguçado espírito crítico, gostam da sinceridade e do falar claro e sem
eufemismos, são imperfeitos, mas ao mesmo tempo, complementam-se, parecendo ser o
alter-ego um do outro, celebrando, de uma forma peculiar, um pacto de amizade e não
podendo viver um sem o outro.
Considerações finais
Crítica, irónica, implacável, preconceituosa, racista, implacável, irreverente,
muitas vezes irritante mas simultaneamente curiosa, objectiva, sonhadora, empenhada
política e socialmente, carinhosa com quem merece e igualmente depreciativa com
quem é objecto das suas palavras atrozes, Emília é uma personagem original, que
resume todos do universo ideológico de Monteiro Lobato, agradando, desagradando,
inquietando, divertindo, encantando, mas nunca deixando indiferentes os leitores,
crianças, jovens ou adultos, permanecendo actual ao longo das décadas na literatura
brasileira e universal, oferecendo sempre novas possibilidades de leitura e novas
vertentes interpretativas que tornam a obra infantil lobatiana tão interessante e viva, tão
célebre e tão marcante, convidando para uma reflexão cada vez mais profunda dos
fenómenos descritos nesta obra, digna de pertencer ao género pseudo-memorialístico.