aproximações ao trágico cotidiano: um ensaio metodológico
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SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo 9º. Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo
(Rio de Janeiro, ECO- Universidade Federal do Rio de Janeiro), novembro de 2011
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Aproximações ao trágico cotidiano: um ensaio metodológico
Bruno Souza Leal 1
Elton Antunes 2
Paulo Bernardo Vaz3
Resumo: O artigo apresenta um exercício metodológico que busca apreender a relação entre o discurso
jornalístico, a cotidianidade e o acontecimento morte de maneira articulada e recursivamente constituí-
das. Divido em três partes, o artigo traz a narrativa que sintetiza alguns elementos da experiência, apre-
senta o exercício metodológico em seus parâmetros e pressupostos e, por fim, traz apontamentos reflexi-
vos que abordam as relações entre a morte, noticiabilidade e a tragédia hoje.
Palavras-chave: acontecimento; morte; narrativa; metodologia; cotidiano.
1. A morte em um dia
Belo Horizonte, dia 23 de junho de 2011
Ao acordar, procedi à minha rotina: iniciar o dia lendo, ou melhor, passando os olhos,
nos dois jornais que chegam a minha casa. De início, uma primeira olhada nas capas de
O Globo e da Folha de S. Paulo, depois um passear pelos cadernos de cultura, de eco-
nomia, cidades e, por fim, nos de esporte e de política. Novamente, registro minha resis-
tência às mortes policiais: assassinatos em favelas, crimes, etc. Em O Globo, uma notí-
cia, em uma coluna pequena, deteve meu olhar: mais um assassinato por questões afeti-
vas, namorado matando namorada. A leitura do texto, porém, deixou-me surpreso, pois
a notícia reunia três mortes distintas, que ocorreram em diferentes lugares do país.
1 Bruno Souza Leal é professor do PPGCOM/UFMG
2 Elton Antunes é professor do PPGCOM/UFMG
3 Paulo Bernardo Vaz é professor do PPGCOM/UFMG
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Tratadas brevemente, as três mortes geraram um incômodo e uma grande sensação de
absurdo, pois ressaltavam o aleatório, o fortuito de seu acontecimento. A segunda morte
manteve-se mais viva na memória. O pequeno texto relatava que uma estudante tinha
sido decapitada ao por a cabeça para fora de um transporte escolar para falar com uma
amiga. Com a van em movimento, a menina bateu a cabeça num poste, sendo então de-
capitada. Segundo o texto, curto, a amiga estava em estado de choque. Também pudera!
Após a leitura dos dois jornais impressos, ainda de manhã, ligo o computador. Assinan-
te do UOL, a entrada para a caixa de mensagens pela tela inicial do portal é hábito regu-
lar e implica sempre uma rápida leitura pelas notícias da home, frequentemente selecio-
nadas pelo recurso “abrir em nova aba”. Eram 09h30min e a procura no noticiário pro-
voca um primeiro espanto: não havia nenhum anúncio de morte na primeira página do
portal naquele momento. Ao pensar sobre isto, pareceu uma quebra de expectativa, tão
natural é o hábito de verificar as mortes ali anunciadas.
Sem mortes no UOL, vamos ao o que interessa: a notícia sobre as últimas partidas do
campeonato argentino de futebol. O River Plate, um dos dois maiores times do futebol
argentino, vai disputar com o Belgrano sua permanência na primeira divisão do país e
corre sério risco de ser rebaixado pela primeira vez em sua história. A notícia é comple-
tada pela informação de que outro clube tradicional, o Hurácan, perdeu a sua partida
decisiva e foi rebaixado. O vídeo resumo do jogo destaca o choro ao final de jogadores
e torcedores. O rebaixamento à segunda divisão, percebe-se, representa uma morte sim-
bólica no futebol.
Mantenho a rotina de passar os olhos pelas versões digitais de três jornais mineiros:
Estado de Minas (portal Uai), Hoje em dia e O tempo. Privilegio as seções de economia
e de cidades. Chama a atenção uma tragédia: um ônibus transportando crianças é abal-
roado ao cruzar uma linha férrea, no interior de Minas. Todas as notícias dramatizam o
acidente, seja pela juventude das vítimas, pelo descaso das autoridades, que deixam um
cruzamento não sinalizado, seja pela precariedade do transporte coletivo. É curioso co-
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mo o acidente precisa ser explicado, inserido ou minimizado: o casual, o propriamente
acidental tende a desaparecer.
No Hoje em Dia, uma matéria é especialmente incômoda. Num texto muito curto, com
cerca de 6 parágrafos de duas linhas cada, nada menos que 3 mortes. Precisei ler duas
vezes até entender. Na primeira passada de olhos, pareceu-me se tratar de uma mesma
morte e o texto ficou confuso. Na segunda leitura, ficou claro: o jornal narrava sucinta-
mente 3 mortes aparentemente acidentais, todos de rapazes jovens. Um saía de um bar,
outro andava pela rua, outro voltava para casa. As três mortes não tinham explicações,
nem ligações visíveis.
E-mail e noticiário lido, preparação para o café da manhã. A ida até a padaria do bairro
faz com que, além de pães, se escolha também um jornal – as bancas já não são mais os
lugares para se adquirir um periódico em vários bairros da capital. Estado de Minas,
tradicional jornal do estado, destaca na primeira página o acidente com ônibus escolar e
um trem, em cidade do interior. Fotos de crianças feridas no alto da página. A lembran-
ça imediata é com o jornal do meio-dia, na emissora local da Rede Globo, no dia anteri-
or: a primeira chamada, na escalada do telejornal, fora sobre o acidente. Lembro que
fiquei na expectativa de mais informações, mas assim que o noticiário começou, o ânco-
ra informa que o assunto será tratado depois, e não no início do programa. Fui “anunci-
ado” do acidente, mas fui saber das mortes no jornal impresso do dia seguinte. Em meio
ao café e pães, o interesse pela notícia não foi além da observação da primeira página. A
leitura se distribuiu por outros assuntos.
Depois de algumas tarefas domésticas, fui almoçar vendo a Globo News e seu noticiá-
rio. O acidente com o ônibus no interior de Minas foi apresentado novamente, desta vez
como tragédia e com imagens. Tentando fugir do incômodo, mudo para o MGTV 1ª edi-
ção, que também dá destaque a esse acidente. O dia seguiu e as mortes retornaram na
hora do lanche ao final da tarde. Só agora a matéria do acidente foi lida e os mortos e a
história conhecidos.
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2 – A morte e as mortes jornalísticas: um exercício
O relato acima é uma síntese dos resultados de um experimento metodológico: o regis-
tro da experiência da morte a partir do jornalismo. O exercício deu-se com pequenos
registros por parte de três pesquisadores, na quinta-feira, 23 de junho de 2011, feriado
de Corpus Christi, sob a forma de diário, que pretendia incorporar a ideia do pesquisa-
dor sempre como ator e autor, partícipe das situações de comunicação e agente que gra-
va e reflete sobre o que ocorre e o que lhe ocorre. O exercício buscou combinar um diá-
rio em que narrativas pessoais se estruturam a partir de uma percepção fundada numa
estratégia compartilhada. A articulação buscada, a construção de uma narrativa pessoal,
se deu através da figura de um “eu” fictício, fruto da síntese dos percursos individuais.
Essa espécie de etnografia “fraca”, sem maiores pretensões sistemáticas, visava materia-
lizar o que surgia como impressão ou intuição: a presença constante da morte no notici-
ário.
É acerca dessa relação entre jornalismo, cotidiano e o acontecimento morte que busca-
mos refletir nos limites dessa comunicação. Para tal, realizamos tal exercício metodoló-
gico em que essas três instâncias – o discurso jornalístico, a cotidianidade e o aconteci-
mento morte – pudessem aparecer de maneira articulada e recursivamente constituídas.
Para isso, lançamos mão de um exercício de recepção e ao mesmo tempo de experiência
das narrativas midiáticas que tocam na morte como acontecimento. Por dois dias, três
indivíduos – homens, com mais de 40 anos e moradores de Belo Horizonte – registra-
ram seu contato com tais narrativas. Esses indivíduos buscaram manter-se fiéis às suas
rotinas diárias – parcialmente alteradas obviamente pelas diversas formas de registro –
aos seus interesses e ao seu lugar ambivalente de consumidores e pesquisadores de pro-
dutos e formas midiáticas.
Esse exercício metodológico inicial é parte de um esforço coletivo4 a ser desenvolvido e
aprimorado no segundo semestre de 2011. Assim, buscou-se com a atividade tanto re-
fletir sobre desafios dessa proposta metodológica quanto sobre o tema em tela, ou seja,
a relação morte, jornalismo e cotidiano. O mote para realizar tal exercício de observação
4 Trata-se da pesquisa acerca da relação Jornalismo e Acontecimento desenvolvida por pesquisadores da
Unisinos, da UFMG, da UFRGS e da UFSC, no âmbito do convênio Procad/Capes.
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do fenômeno da morte reportado pela cobertura jornalística envolvia alguns pressupos-
tos:
As mídias não desencadeiam de maneira unilateral o interesse da audiên-
cia por determinados assuntos ou os torna visíveis segundo exclusiva-
mente o seu critério.
O contato com os produtos midiáticos é uma atividade diária, imersa,
constituída, constituinte e envolvida por esse cotidiano.
Os fragmentos foram ordenados em um relato encadeado coletivamente para dar sentido
à ideia de como a morte aparece no discurso midiático. Tratou-se de realizar uma imer-
são controlada na realidade dos acontecimentos reportados. O diário baseou-se em ob-
servação na mídia do ato de reportar mortes, da caracterização do momento em que o
pesquisador se apercebeu de tal evento, e da articulação que ele faz de outros aspectos
que produziram a articulação entre o discurso jornalístico, a cotidianidade e o aconteci-
mento em tela. Assim, o movimento do diário foi o de realizar uma descrição reflexiva
dando conta da dimensão antropológica do acontecimento, do poder de afetação e o
movimento que desencadeia a partir das diferentes sensibilidades. Buscou-se, portanto,
a exposição às mortes midiáticas, percebê-las pontuando certo período de tempo e veri-
ficar seu movimento, disseminação e fluxo no cotidiano.
Com o diário aventava-se ainda a possibilidade de evidenciar:
A morte inscrita no sistema midiático e menos nas estratégias de noticiar,
num esforço de superar ou complementar metodologias que ainda su-
põem uma visada midiacêntrica, mantendo o foco na integração mí-
dia/vida social.
Os lugares diversos e arbitrários de acionamento das mídias. Atenta-se,
assim, para a própria peculiaridade da visada de pesquisa e busca-se o di-
álogo entre vida cotidiana e as mídias.
Os processos de disseminação midiáticos alicerçados numa lógica de dis-
persão, circulação e negociação intermitente, baseados em múltiplas bio-
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grafias dos sujeitos engajados em cada situação, em experiências espacial
e temporalmente referenciadas.
A presença da mídia como “zonas de interseção” de diferentes dimensões
da experiência.
Certamente, alguns desses objetivos e pressupostos não foram atingidos, mas o exercí-
cio apontou alguns elementos importantes, tematizados a seguir. Ao mesmo tempo, a
validade do exercício está aberta ao debate, nessa tentativa de buscar caminhos para
produzir uma experiência metodológica que dê conta de ver o “fluxo” midiático no
“fluxo” cotidiano. Em função do tempo e do espaço disponíveis para este trabalho, a-
presentaremos algumas reflexões elaboradas a partir desse exercício, deixando a discus-
são metodológica para o debate com os colegas da mesa e os presentes. Menos que cer-
tezas e avaliações finais, portanto, apresentamos um percurso investigativo aberto a
inconclusões.
3 – Aproximações ao trágico cotidiano: reflexões
Como pudemos registrar, diariamente identificamos na cobertura jornalística relatos ou
assinalações da ocorrência de diversas mortes, resultantes de toda ordem de causalida-
des: acidentes, violência, naturais, doenças etc., em um extenso catálogo editorial de
acontecimentos. Se as mortes são expostas continuamente, fazendo do jornalismo uma
narrativa e um testemunho desse “morrer”, cabe-nos indagar se e quais as figurações
invoca, que sensibilidades seriam essas que colocam o relato das mortes como elemento
articulador para compreensão da dinâmica social e comunicacional contemporânea. Não
haveria nessas notícias uma sorte de ritualização da visada jornalística que faria do fe-
nômeno da morte, aparentemente dissolvido em uma infinidade de episódios, uma porta
de entrada para se observar modos, limites e tensões que formatam um olhar sobre o
mundo, contribuindo também para os sentidos cotidianos do morrer?
Afinal, a morte, a princípio, seria o acontecimento noticiável por excelência. Ainda que
muitas vezes não se configure como valor-notícia por si só (GALTUNG; HUGE, 1999;
WOLF, 1987), ela parece permear um conjunto amplo desses critérios de seleção, como
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impacto, dramatização, etc. Não é à toa que Traquina, na sua revisão da literatura acerca
do tema, conclui que a morte é o “valor-notícia fundamental” (2002, p.187), e afirma
que, em função dela, todos seremos notícia “ao menos uma vez”, no dia seguinte ao
nosso fim. No entanto, alerta ele, essa notícia pode ocupar as “páginas interiores” ou a
capa de um periódico em função da associação da morte com outros critérios de seleção
de acontecimentos noticiáveis, como notoriedade, proximidade, etc.
A importância da morte como fator de noticiabilidade, nessa perspectiva, parece ser
coerente com o que observa Gérard Imbert (2008), quando diz que os meios de comuni-
cação se constituem hoje como uma espécie de “agentes de atualização” que a reintro-
duzem no cotidiano. Afinal, lembra ele, a morte já cumpriu um papel exemplar, deteve
uma função instrutiva, como no caso das execuções públicas de bruxas ou de opositores
de tal ou qual regime político. Ao analisar o mundo quando este era “cinco séculos mais
jovem”, Huizinga (2010), por sua vez, mostra como a morte, dentre os grandes e peque-
nos fatos que organizavam a vida social, era marcada e contrastada com o cotidiano sem
perder tal função. O “Cemitérios dos Inocentes”, na Paris do século XVI, “em meio ao
constante enterrar e desenterrar, era um lugar para passear e um ponto de encontro”, diz
ele (HUIZINGA, 2010, p.240). As lápides e ossários que se erigiam e se retiravam fazi-
am do local algo em que o horripilante, a morte, era trazido para esfera do familiar.
Nessa perspectiva, instaura-se um aparente paradoxo, no qual as mídias têm papel fun-
damental: por um lado, a morte foi historicamente higienizada, afastada da vida social,
através do enfraquecimento de rituais antigos que a inseriam no cotidiano institucional e
familiar; por outro, ela ressurge no dia-a-dia das mídias, nos relatos jornalísticos, nas
produções ficcionais as mais diversas, nos programas de entretenimento. Para Imbert,
sem dúvida, se produz aqui uma perda simbólica: a desaparição de seu cará-
ter excepcional e da atitude reverencial frente à morte, substituídos por uma
relação consumista, de fruição, dentro de uma atitude frequentemente lúdica,
que desvirtua o objeto, o despoja da carga de mistério, para equipará-lo e in-
tegrá-lo a outros objetos de consumo massivo, como recurso quase inevitável
da narrativa mediática (IMBERT, 2008, p. 179, no original em espanhol)
Caso concordemos com Imbert, duas consequências são inevitáveis. Primeiro, a obser-
vação de que as narrativas midiáticas, ao instaurarem a essa perda simbólica, transfor-
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mam a morte ambiguamente no grande ausente/presente das representações televisuais,
jornalísticas, etc. Nessas narrativas, não se narra a morte, mas algo a ela associado, co-
mo a dor, a superação, o saber médico ou a ritualidade familiar. Em outras palavras,
para Imbert, mediada pelas palavras e pelas imagens midiáticas, hipervisibilizada dessa
forma, a morte integra-se a narrativas que se organizam em torno de outro tema, de con-
sumo mais acessível e constante, de sabor mais palatável à dicção rotineira das mídias.
A morte se constitui, nessa perspectiva, numa espécie de fantasma, de não-dito das nar-
rativas midiáticas, que mesmo quando falam de acidentes ou da perda de uma grande
figura pública, afastam-na como assunto, privilegiando dimensões mais objetivas e a-
cessíveis, como a má condição das estradas, o aumento ou não do número de colisões
ou os grandes feitos desse ou daquele indivíduo.
Seguindo-se nessa linha, em segundo lugar, a perda simbólica da morte como aconteci-
mento midiático contradiz a perspectiva de Traquina de que todos seremos notícia no
momento do fim de nossas vidas, em função de um valor-notícia fundamental. Ao con-
trário, só seremos notícia se nossa morte servir a um relato sobre outro assunto, seja o
absurdo dos atentados políticos, caso sejamos vítimas de um extremista – este sim o
protagonista da notícia – , seja o malefício das drogas que ceifam jovens e promissores
talentos – caso sejamos cantores pop; seja por sermos vítimas de um motorista bêbado –
ou, talvez, condutores irresponsáveis. Seja como for, a morte não se constituiria como
valor-notícia fundamental, mas, sim, como uma espécie de limite da noticiabilidade,
como o inoticiável. Nos relatos com que nos deparamos, no exercício metodológico, a
morte parece surgir nesse lugar ambíguo: não é ela o tema central, mas sim o acidente, o
crime, a polícia, mas ela está ali, como informação, discreta, fantasmagórica, inenarrá-
vel.
Uma possível explicação para a morte como um não-dito, como o limite da ação jorna-
lística, está na sua associação com o trágico. Para Hans Gumbrecht (2001), “...não há
tragédia sem a presença ameaçadora da morte” (2001, p.11), pois o trágico5 se constitui
5 Temos consciência da distinção entre “tragédia” e “trágico”, tal como esclarece Glenn Most (2001),
entre outros. No entanto, optamos aqui por manter o uso aproximado dos termos, por acreditar não haver
prejuízo de sentido e para sermos fiéis à reflexão de Gumbrecht, que opera essa aproximação.
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na tensão entre a agência humana e uma ordem objetiva, inalterável ou inalcançável ao
poder transformador do agir e do agente. Assim, a morte se impõe como o elemento
trágico fundamental por ser intransponível, por estar além de qualquer planejamento,
estratégia ou paixão humana. Nesse sentido, Gumbrecht considera que as sociedades
ocidentais convivem cotidianamente com uma bifurcação paradoxal, entre um “espaço
público tragicofóbico” e uma esfera privada “tragicofílica”. No primeiro caso, ele ob-
serva, há uma indústria, “altamente diversificada”, busca evitar a tragédia, ou seja, ludi-
briar os limites da ação humana. Ele exemplifica:
Você nasceu americano e “sente-se brasileiro”? Muito bem, solicite a cidada-
nia brasileira (...) Razões físicas ou psíquicas impedem-no de procriar, quan-
do você tem “vocação para tornar-se pai/mãe”? É só contratar uma agência
especializada em adoção, e, se, para você, isso não basta, procure um doador
de esperma ou óvulos. Você está convencido de que é “uma mulher”, a des-
peito de seu corpo ser masculino? Uma cirurgia transexual vai fazê-lo sentir-
se bem melhor (GUMBRECHT, 2001, p.16).
Esse conjunto de “soluções” para as impossibilidades humanas, porém, se afasta a tra-
gédia do cotidiano, não consegue superar a morte, por mais que ela esteja confinada a
espaços demarcados. Com isso, certo fascínio permanece no dia-a-dia, que envolve a
morte e que diz respeito aos limites da ação humana, à tragédia intransponível. Nesse
sentido, ao configurar a “esfera privada tragicofílica”, Gumbrecht apresenta uma frase
lapidar: “Quando o assunto são terremotos, quedas de avião e casos do crime organiza-
do – e a vítima de tais sucessos – não há quem se sacie de ler, ver e ouvir” (2001, p.17).
Nessas notícias exemplificadas pelo pensador teuto-americano, o assunto não é a morte,
mas um outro acontecimento. A morte surge nessas narrativas como um substrato, um
dado, um resíduo, uma presença indicial, que fascina por motivos para Gumbrecht ainda
misteriosos. De qualquer modo, é importante observar que certo “sentido do trágico” é
fortemente estruturador do discurso jornalístico contemporâneo em torno da morte, que
não se restringe ou pode ser apreendida apenas em termos da noticiabilidade.
Muitas vezes, diz-se que quando o jornalismo se volta para a morte o relato do trágico é
tão somente para realizar operações de espetacularização dos acontecimentos com vistas
a produzir sobre o público um perverso efeito de catarse. Alinhavados a partir de narra-
tivas marcadas pela estética do hiper-real, os acontecimentos jornalísticos apareceriam
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como fruto de uma demanda por parte do próprio público e condenados a dissimular a
compreensão da realidade. Esse, contudo, parece-nos um caminho por demais tradicio-
nal de se olhar para as narrativas jornalísticas. Afinal, a morte está ali, presente num
esforço narrativo que tenta ludibriá-la. Vivemos, talvez, nessa constante bifurcação de
que fala Gumbrecht, entre as narrativas midiáticas que falam de outra coisa e nosso
contato, através delas, com o trágico de nossa existência. Poderíamos, então, de fato,
falar em termos de “perda simbólica”? Ou falaríamos, enfim, de um esforço cotidiano,
midiático, de sobreviver ao trágico, de superá-lo pelo desvio, de manter-se vivo (o jor-
nalismo, a narrativa, o leitor, a notícia), apesar da morte?
Referências
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