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A vida inconcebível. Sobre os poemas de Wisława Szymborska Wojciech Ligęza 1 Tradução: Piotr Kilanowski 2 Wisława Szymborska não pertence aos escritores que expõem os eventos de suas próprias vidas e contribuem assim para o surgimento do mito literário. Ao contrário dos costumes vigentes atualmente, a poeta protege a privacidade: evita confissões, não fala sobre suas experiências e sentimentos. A sua maneira de conviver com os outros sempre consistiu em conversas com amigos, e não em aparecer em frente às câmeras e discursar para as multidões. A fama mundial que o prêmio Nobel de Literatura, em 1996, trouxe a Szymborska exigia 1 Historiador da literatura, crítico literário, ensaísta, professor títular no Departamento de Estudos Poloneses da Universidade Jaguelônica, vice-presidente na filial de Cracóvia da Associação de Escritores Poloneses. Autor de vários livros sobre a literatura do exílio, a poesia de Wisława Szymborska e de Zbigniew Herbert, entre outros. O presente artigo é a tradução da sua conferência proferida na UFPR, por ocasião do evento "Pelas veredas da poesia polonesa do século XX" em 2013. 2 Professor de literatura polonesa na UFPR, doutorando em literatura pela UFSC. A presente tradução foi realizada com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil. A tradução contou com a revisão de Eduardo Nadalin e sugestões de Eneida Favre, a quem devo gratidão .

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A vida inconcebível. Sobre os poemas de Wisława Szymborska

Wojciech Ligęza 1

Tradução: Piotr Kilanowski2

Wisława Szymborska não pertence aos escritores que

expõem os eventos de suas próprias vidas e contribuem

assim para o surgimento do mito literário. Ao contrário

dos costumes vigentes atualmente, a poeta protege a

privacidade: evita confissões, não fala sobre suas

experiências e sentimentos. A sua maneira de conviver com

os outros sempre consistiu em conversas com amigos, e não

em aparecer em frente às câmeras e discursar para as

multidões. A fama mundial que o prêmio Nobel de

Literatura, em 1996, trouxe a Szymborska exigia

1 Historiador da literatura, crítico literário, ensaísta,professor títular no Departamento de Estudos Poloneses daUniversidade Jaguelônica, vice-presidente na filial deCracóvia da Associação de Escritores Poloneses. Autor devários livros sobre a literatura do exílio, a poesia deWisława Szymborska e de Zbigniew Herbert, entre outros. Opresente artigo é a tradução da sua conferência proferidana UFPR, por ocasião do evento "Pelas veredas da poesiapolonesa do século XX" em 2013.2 Professor de literatura polonesa na UFPR, doutorando emliteratura pela UFSC. A presente tradução foi realizadacom apoio do CNPq, Conselho Nacional de DesenvolvimentoCientífico  e Tecnológico – Brasil. A tradução contou coma revisão de Eduardo Nadalin e sugestões de Eneida Favre,a quem devo gratidão .

sacrifícios, porque de um dia para outro uma pessoa

reservada teve que transformar-se em uma personalidade

pública.

A poeta nasceu em Kórnik, perto de Poznań, mas

toda a sua vida criativa estava ligada à Cracóvia e ao

meio literário da cidade. Ali ela estudou literatura

polonesa e sociologia, ali, no Círculo de Jovens da

Associação dos Escritores Poloneses, encontrou o ambiente

propício para seu desenvolvimento artístico. Sabe-se que

durante muitos anos trabalhou na redação do "Vida

Literária". Nesse semanário de Cracóvia ela publicou a

série de textos Leituras obrigatórias [Lektury obowiązkowe],

coordenando também - juntamente com Włodzimierz Maciąg -

o departamento Correio literário [Poczta literacka], provavelmente

o único desse tipo na Polônia, considerando-se o contato

direto com os leitores e um rebuscado senso de humor.

Szymborska estreou com o poema "Procuro palavras"

["Szukam słowa"], no caderno anexo ao "Diário polonês"

intitulado "A luta" (1945 n º 3) . Em versos publicados

na imprensa, que fazem referências às conquistas das

vanguardas poéticas, a poeta faz um acerto de contas com

a experiência da guerra, recordando o horror e o trauma,

evidenciando os estragos nas mentes dos homens e no

mundo, mas também refletindo sobre a língua com a qual

não somos capazes de expressar experiências extremas. No

entanto, nos diagnósticos da situação do pós- guerra, o

otimismo coletivo daqueles tempos é perturbado em

Szymborska pela inquietação, pois é difícil esquecer as

vítimas da guerra e acreditar plenamente em um futuro

brilhante.

A forma moderna e o tom catastrófico dos poemas do

pós-guerra de Wisława Szymborska entravam em conflito com

as premissas do realismo socialista, por isso o livro de

poesias preparado anteriormente, depois de 1949, já não

podia mais ser lançado. Durante o reinado da doutrina do

realismo socialista, Szymborska publicou os volumes de

poemas É por isso que vivemos [Dlatego żyjemy] (1952) e Perguntas

feitas a mim mesma [Pytania zadawane sobie] (1954). Embora se

possa facilmente encontrar neles os engajamentos na

agitação política, a subserviência à publicística de

jornal, a participação em rituais de realismo socialista

(a essa categoria pertence o epitáfio para o

generalíssimo Stalin), as apologias da "grande época", as

aulas de inimizade, é, porém, difícil situar Szymborska

na primeira linha da luta ideológica. Suas obras

ultrapassavam, do ponto de vista artístico, as

produções literárias medianas do realismo socialista. O

erro poético e moral trouxe frutos significativos na sua

poesia madura. A poeta deixou de sofrer as tentações da

ideologia ou os impulsos gregários, rejeitava as verdades

prontas e a sabedoria convencional. Nessa prática

criativa, foram mais valorizadas as explorações

individuais artísticas e intelectuais.

Os críticos concordam que a real estreia de Wisława

Szymborska se deu com o volume Chamando por Yeti [Wołanie do

Yeti] (1957). Desde então, as características distintivas

essenciais da sua dicção poética madura são o confronto

de vários pontos de vista, os diálogos com o leitor, a

ironia, o humor brilhante, a retórica em forma de

perguntas, a necessidade de duvidar. Em Chamando por Yeti há

um lugar separado para um acerto de contas com o sistema

depois do "degelo", em outubro de 1956. A poeta escreve

corajosamente que os segundos enterros, agora oficiais,

das vítimas do stalinismo foram celebrados pelas mesmas

autoridades que anteriormente haviam pronunciado as

sentenças de morte. Palavras que condenam à morte não

podem ser revogadas, só se pode interromper o silêncio

organizado ("Aos amigos" ["Przyjaciołom"],"Reabilitação"

["Rehabilitacja"], "Funeral de Rajek" ["Pogrzeb Rajka"]).

No volume Chamando por Yeti cristalizam-se os temas

desenvolvidos nos volumes seguintes Sal [Sól ] (1962),

Muito divertido [Sto pociech] (1967), Todo caso [Wszelki wypadek]

(1972) e Um grande número [Wielka liczba] (1976). Mencionemos

as reflexões sobre a história entendida como uma história

de escravidão ("Dois macacos de Bruegel" ["Dwie małpy

Breughla"], "Aula" ["Lekcja"]), citemos a defesa da

verdade individual, a rejeição da lei da sociedade de

massa ("Fotografia da multidão" ["Fotografia tłumu"], "Um

grande número" ["Wielka liczba"]), o interesse pelas

ciências naturais, incomum na poesia moderna, a sensação

que o ser humano tem de ser exilado do universo da

natureza ("Macaco" ["Małpa"], "Entrevista com a pedra"

["Rozmowa z kamieniem"), a reflexão sobre a antropogênese

("Nota" ["Notatka"], "Caverna" ["Jaskinia"], "Muito

divertido" ["Sto pociech"). A história não pode ser

considerada como a mestra da vida, pois em todas as

épocas, bárbaras ou iluminadas - indistintamente, o homem

parece ser uma besta sedenta por sangue, alguém que

semeia o terror e a morte, alguém que por meio da

destruição domina a terra. Contrariando o clamor dos

moralistas, o diagnóstico ainda é válido – a mudança terá

que ser transferida novamente para um futuro indefinido

("Ocaso do século" ["Schyłek wieku"]). No poema "Da

expedição não realizada para o Himalaia" ["Z nie odbytej

wyprawy w Himalaje"], Shakespeare e a música - pelo menos

no âmbito da esperança – devem compensar o mal

generalizado. No entanto, no poema "Thomas Mann" ["Tomasz

Mann"], no elo final da cadeia evolutiva das espécies é

colocado um mamífero que pode criar mundos próprios,

fazendo sinais no papel.

É impossível ignorar os estudos poéticos de

Szymborska que tratam de um grave problema da existência

individual. O ser humano, lançado à crueldade da história

e às brincadeiras do destino, que não encontra consolo na

transcendência, está envolvido num jogo existencial de

regras pouco claras. É incrível essa natureza que não

conhece moderação na criação e na destruição ("Chegada"

["Przylot"]); impenetrável - o lugar dos seres humanos em

aterrorizantes espaços cósmicos. Por que viemos ao mundo

- agora, neste lugar, e nesta forma? Será que o arranjo

dos acasos, que é a vida, tem um significado oculto? Como

a existência humana limitada pelo tempo remete à

eternidade? Tais questões sempre estão presentes nos

poemas mencionados. Os elementos desconhecidos demandam

ordenação, mas uma resposta significativa nunca será

dada. "A vida inconcebível" ("Utopia" ["Utopia"]),

surpreendendo a cada segundo, é um desafio constante para

a mente. A abordagem de Wisława Szymborska parece ser

matreira, porque numa forma de conversa, aparentemente

trivial, muitas vezes jocosa, estão inseridas questões

metafísicas de peso.

Na base do pensamento poético de Wisława Szymborska

aparece o espanto com a multiplicidade das coisas

existentes, a surpresa com o fenômeno da existência que,

ao mergulhar no segredo metafísico, é cercada pela

onipresença do nada (ex. "O nada virou-se do avesso

também para mim..." ["Nicość przenicowała się także i dla

mnie.." ). Assim, o dom da vida, obtido sem o mérito -

como um presente de aniversário - deve ser investigado

com precisão ("Espanto" ["Zdumienie"]). É verdade que a

maioria dos fenômenos e eventos "na despercepção se

perde, /no despensamento" ("Um grande número"), mas tanto

mais é preciso cuidar para não desperdiçar a riqueza, que

é trazida pela estada temporária entre os vivos. A poeta

louva "o milagre da existência" inscrito na ordem

cósmica, reflete sobre o fenômeno da vida individual

submersa na multiplicidade dos seres ("Aniversário"

["Urodziny"], "Espanto", "Discurso na seção de achados e

perdidos" ["Przemówienie w biurze znalezionych rzeczy"]).

O milagre da existência cumpre-se continuamente, mas não

sabemos reconhecê-lo. Ele não se manifesta por meio de

metamorfoses ou intervenções de forças externas a este

mundo, muito pelo contrario: está criptografado nos

eventos cotidianos, nas coisas comuns. Em Szymborska, a

atenção e a sensibilidade revelam um excesso de

maravilhas nunca suficientemente admirado ("A Feira de

maravilhas" ["Jarmark cudów"])

Nesses poemas, à coleção de exceções maravilhosas,

deve-se incluir o amor, sobre o qual se fala muito, mas

que pode ser realmente experimentado por uma quantidade

insignificante de pessoas. A paixão amorosa rompe os

padrões da percepção, provoca, mas também dignifica, a

união dos amantes, portanto, deve ser considerada como

uma conspiração contra o mundo todo ("Amor feliz"

["Miłość szczęśliwa"]). No entanto, a pessoa amada corre

o risco de perder a força da sua identidade, tornando-se

uma outra pessoa, alguém imaginário ("Ao vinho" ["Przy

winie"]). A loucura de Ofélia pode ter o seu lugar no

palco, mas a trágica atuação amorosa em Szymborska é

sobriamente julgada ("O resto" ["Reszta"]) . A poeta

rejeita os mitos românticos e sentimentalistas, não

confia nas lamentações patéticas. Nas histórias sobre o

abandono e a rejeição usa linguagem cotidiana e gêneros

literários populares ("Balada" ["Ballada"], "Sombra"

["Cień"]). Os laços fortes entre as pessoas rapidamente

caem na rotina e na indiferença, e a separação é

acompanhada pela paralisia das capacidades de

comunicação, o drama da linguagem impotente ("O encontro

inesperado" ["Niespodziane spotkanie", "Na Torre de

Babel" ["Na wieży Babel"]) . Livrar-se das ilusões é uma

terapia dolorosa, mas também eficaz, no sentido de que o

ser humano solitário vê claramente os desafios da

existência.

O fascínio pelos universos próprios da arte é outro

tema importante de Szymborska. Nas representações da

pintura, "a vida inconcebível" está sujeita às leis da

convenção, assim é controlado o caos dos acontecimentos,

sujeito a um acordo quanto às regras da estética. Mais

ainda – a mão do artista é movida pelo desejo de

perfeição, contradito pela prática da ação humana cheia

de erros ("Engano" ["Pomyłka"]). Nos poemas em que a

poeta cria excelentes correspondentes dos estilos de

pintura ("Miniatura medieval" ["Miniatura

średniowieczna"], "Mulheres de Rubens" ["Kobiety

Rubensa"], "Mosaico bizantino" ["Mozaika bizantyjska"]),

há confrontos constantes: a arte não consegue dominar a

multiplicidade da existência, mas torna-se

supraconsciente daquilo que é experimentado

espontaneamente.

As écfrases de Szymborska descrevem a pintura

realista holandesa ("Paisagem" ["Pejzaż"], "Vermeer"

["Vermeer"]), esculturas de tempos pré-históricos

("Fetiche de fertilidade do Paleolítico" ["Fetysz

płodności z paleolitu"]), a xilogravura japonesa ("Gente

na ponte" ["Ludzie na moście"]), a vanguarda do século XX

("A imagem" ["Wizerunek"]). Deve-se acrescentar que as

obras de arte em Szymborska formam a "arte da memória",

passam para a dimensão dos sonhos ("Memória enfim"

["Pamięć nareszcie"], "Elogio do sonhos" ["Pochwała

snów"]), moldam as relações interpessoais. Pintura,

música, cinema, fotografia criam mundos alternativos,

talvez melhores e mais bonitos, mas marcados pela mancha

da ruptura com a realidade. Escrevendo sobre obras-

primas, Szymborska não esquece do pavor da existência,

pois no paraíso dos estetas não foi designado espaço para

o sofrimento humano ("O clássico" ["Klasyk"]). A

contemplação da arte é para Szymborska uma espécie de

exclusão da existência, um tipo de liberdade ilegal,

quando suspendemos as obrigações diárias ("Paisagem"

["Pejzaż"]). A artista opõe-se à ação destruidora do

tempo em duas dimensões diferentes: pausa o instante

presente - e assegura a si mesma um lugar na memória

cultural ("Gente na ponte"). No entanto, em poemas

posteriores - do volume Aqui [Tutaj] - uma obra-prima da

pintura torna-se uma espécie de relógio metafísico, que

dá valor para os nossos horários e dias rotineiros. O

olhar atento do artista captou um pequeno acontecimento,

um dos muitos, e a mão do mestre eternizou na tela a

história de uma vida comum. Então se a grande arte

persiste, o mundo (pior do que aquele mostrado na imagem)

não merece ser destruído ("Vermeer").

A discrição se estende também à literatura. Partindo

do pressuposto de que a poesia deve defender a si mesma,

Szymborska não comenta diretamente as suas obras, apenas

às vezes espalha nos poemas frases sobre a linguagem e o

estilo ("Não me julgue má, fala, por tomar emprestado

palavras patéticas/ e depois me esforçar para fazê-las

parecer leves”, em "Sob uma estrela pequenina" ["Pod

jedną gwiazdką"]), ou como na famosa "A alegria da

escrita" ["Radość pisania"], cética, reflete a respeito

do mito do poder do sobre os mundos por ele criados.

Entre as exceções podemos mencionar "Resenha de um poema

não escrito" ["Recenzja z nie napisanego wiersza"]. A

palestra sobre sua própria prática criativa tem sido

relacionada aqui com a revisão dos principais temas e

inspirações filosóficas (é citado Pascal, há alusões aos

existencialistas), mas os autocomentários da poeta são

refletidos no espelho da ironia, da diversão, do grotesco

.

Em vários momentos acontecem mudanças nessa poesia

de sabedoria e experiência. Os volumes recentes de

Wisława Szymborska Fim e começo [Koniec i początek](1993),

Instante [Chwila] (2002), Dois pontos [Dwukropek] (2002), Aqui

(2009), Basta [Wystarczy] (2011) de forma mais clara do que

antes, revelam as reflexões sobre tempo, transitoriedade

e morte. O lugar de destaque é dado a elegíaca poesia do

pesar, retornam as questões sobre se existe um observador

eterno de nossas ações e escolhas e se a nossa vida não é

por acaso o objeto do experimento de poderes

sobrenaturais extraterrestres ("Talvez isso seja tudo"

["Może to wszystko"], "Komedyjki" ["Comediazinhas"]),

cresce a tensão semântica entre a alegria e o desespero.

O ponto marcante é definido pelo volume Fim e começo, no

qual o tom escuro da poesia sobre o definitivo acerto de

contas apenas ocasionalmente, como se por um momento, é

iluminado pelas luzes do humor, suavizado pela ironia,

uma arma bastante ineficaz na luta contra o inevitável.

A linha da dúvida filosófica e da quebra das ideias

estabelecidas é prorrogada. Por exemplo, no poema "Céu"

["Niebo"] a misteriosa esfera paradisíaca é identificada

com o ar, é algo comum, mas, preenchendo o ser humano

traz também a condenação existencial. A existência real,

diante da qual não há recurso, nem possibilidade de fuga

para os sonhos ou para as fantasias ontológicas, oferece

apenas roteiros prontos e, sendo assim, a complementação

da vida pela morte ("O estado de alerta" ["Jawa"]). O ser

humano de Szymborska resulta ser um refém da existência,

alguém apanhado na armadilha do existir.

Nos poemas de Szymborska do período tardio são

superados os gêneros tradicionais de lamentos e elegias.

Temos de lidar com a aritmética metafísica cotidiana, com

a contabilidade da morte, ao invés de um resumo

definitivo. Por enquanto, ainda se pode trocar com Parca

palavras aparentemente banais "Até mais" ("Entrevista com

Átropos" ["Wywiad z Atropos"]), pois, afinal, um dia –

como diz a poeta – será preciso pagar com o corpo, pelo

corpo cedido para o uso ("Nada dado" ["Nic darowane"],

"Aqui"). O grande desafio para a imaginação é o mundo

após a partida do ser humano ("No dia seguinte - sem nós"

["Nazajutrz - bez nas"]). O escândalo da morte, que é

comum no mundo natural, pode ser contrastado com a

tristeza impotente ("A cada um, um dia" ["Każdemu,

kiedyś"]), pois se cumpre a lei biológica e apenas a

nossa consciência dá o sentido trágico à morte. Para que

a ausência seja capturada de uma forma dramática, a morte

de um ente querido é observada a partir da perspectiva de

um gato ("Gato num apartamento vazio" ["Kot w pustym

mieszkaniu"]). É interessante notar que a linguagem que

multiplica perífrases, que reúne suposições não é

adequada para dizer algo relevante sobre o fenômeno da

morte ("Cálculo elegíaco" ["Rachunek elegijny"]). É

possível fazer cáculos estatísticos particulares (com

base na especulação), nos quais poderia determinar-se um

aspecto da condição humana, ou uma característica, mas a

propriedade mais certeira de cada ser humano, confirmada

em cem por cento dos casos é a sua morte ("Contribuição

para a estatística" ["Przyczynek do statystyki"]).

O pensamento e a ação humana ainda (imprudentemente)

giram em torno da vida. A terra destruída renasce após

cada derrota, a vegetação cobre os campos de batalhas, as

pessoas se restabelecem nas ruínas ("Realidade exige"

["Rzeczywistość wymaga"], "Fim e começo"]). O ser humano

- um ser mortal procura substitutos da imortalidade

tentando ir além do "aqui e agora". Na desventura da

existência não se deve menosprezar o papel reconfortante

da arte, que muitas vezes pode parecer uma mensagem do

mundo superior ("Ella no céu" ["Ella w niebie"]). Um

momento vivido intensamente, quando o tempo pára de

fluir, é livre do pavor existencial ("Instante", "Pode

ser sem o título" ["Może być bez tytułu"]). Voltam a

aparecer as questões sobre o endereço cósmico do ser

humano ("Aqui", "Desatenção" ["Nieuwaga"]) e sua

incompreensível existência no remanso do universo

("Baile" ["Bal"]). Os temas de estar no mundo, das

atitudes do ser humano diante do mistério da existência,

as referências cósmicas da vida humana, as destinações

finais e a morte nos volumes Todo caso e Um grande número

são reforçados pela meditação filosófica poética. No

entanto, são as perguntas sobre a possibilidade da

existência do Absoluto, sobre a desconhecida Mente

Eterna, que (talvez) gerencia as atividades humanas e

apaga a persistente sensação de aleatoriedade da

existência, que com mais intensidade aparecem nos volumes

de Fim e começo, Instante, Dois pontos, Aqui, Basta .

A hipótese da existência de um Ente desconhecido que

tem o poder de criar e de "controlar" a vida humana é

formulada de um modo muito cuidadoso, pois nos poemas de

Szymborska predominam as perguntas, dúvidas e suposições.

Os limites daquilo que é diretamente percebido,

registrado pelos sentidos, parecem ser muito estreitos,

então talvez haja "algo mais", algo que poderíamos – de

modo aproximado, descrever com o nome de sacrum. Como

disse, a poeta coloca em primeiro plano a incerteza

cognitiva, por isso a leitura do mundo e do "extramundo"

não produz resultados satisfatórios. No pensamento de

Szymborska sobre transcendência, nas inquirições com

hipóteses suspensas, é importante a distância cósmica dos

pontos de observação, ou a colocação destes para além do

domínio da experiência humana.

Tomemos, como exemplo, o poema "Talvez tudo isso"

["Może to wszystko"], no qual aparece o personagem pouco

definido do "Chefe", que de longe observa a ordem

terrena, conduzindo as pesquisas "laboratoriais" sobre

humanos e comunidades. A um certo "Ele" podem interessar

algumas exceções e episódios esparsos. Estas reflexões

poéticas não definem se O Grande Experimentador, ou o

demiurgo vigilante, insone desconhecido Criador ("O

estado de alerta"), existe e pode ser descrito de acordo

com a concepção religiosa do Ser Divino. Pelo contrário,

é o ser humano que se esforça para dar sentido à sua

existência e nutre a esperança indefinida de que algum

outro, extremamente estranho, cuide de nós, ou apenas

perceba a nossa existência, e que o confinamento na

existência real não será a prisão definitiva. No entanto,

os "pesquisadores cósmicos" não conseguem comover-se com

nada, nem com o destino humano, e têm, portanto, corações

frios.

O ser humano – Joguete de Deus – na versão criada

por Szymborska é um produto de uma experiência com

propósito incerto, um figurante no grande teatro do

universo, um comediante com veia trágica. Os Anjos

"desumanos" que de longe observam o jogo da vida não se

compadecem com dilemas sublimes, nem com escolhas

existenciais servidas em grande estilo. Só podem aplaudir

com asas a farsa ou o burlesco, gêneros nos quais, como

ironicamente ensina a poeta, o homem é revelado em sua

verdadeira natureza, que é a vulnerabilidade e a ameaça

de múltiplas opressões ("Comediazinhas"). A aventura

cósmica do ser humano virada do avesso parece muito

interessante. No poema de Szymborska "A versão dos

eventos" ["Wersja wydarzeń"], cada um de nós é o

astronauta. que em vez de iniciar a conquista do espaço,

para que o desconhecido se torne conhecido, se permite

ser jogado de um não-ser longínquo no universo para

dentro da existência – arriscando a participação nos

acontecimentos estranhos da existência, pois são as

coisas terrenas que são estranhas e as pessoas acreditam

levianamente que podem ser domesticadas totalmente.

Nos encontros de Szymborska com o Mistério de nossa

existência é invariavelmente obrigatório o modo

condicional. Considerações metafísicas nas obras da

ganhadora do Prêmio Nobel também incluem viagens no

tempo, oposições entre o instante e o durar, colisões

entre as limitações da existência e o infinito, assim

como imagens fingidas de eternidade inacessíveis à mente

humana. Nos poemas tardios discutidos aqui, a exploração

poética do Espaço tem um papel extremamente importante.

Szymborska sempre retorna ao assunto da casualidade e do

lugar periférico da vida humana perante a vastidão do

universo ("Desatenção", "Baile"), do enraizamento

temporário do ser humano em um pequeno planeta –onde gira

com a Terra e participa de uma peça extraordinária "na

plateia estelar e subestelar" ("Lista" ["Spis"]). No

entanto, a reflexão sobre a efêmera presença humana

implica perguntas sobre coisas definitivas - uma viagem

em direção a outros espaços, ver-se excluído de um jogo

fascinante ("Aqui", "Lista", "Antes da viagem" ["Przed

podróżą"]).

É interessante notar que a poeta evita a

terminologia filosófica, rejeita a seriedade do discurso

existencial. Este lugar é ocupado pelas metáforas do

carnaval, dança, teatro, voo, pagamento de empréstimos

bancários. Há nisso bastante dissimulação e humor, mas a

seriedade dos assuntos inevitáveis não desaparece. O

pensamento sobre o fim não pode ser revogado, mas a

apologia do momento, o apego às coisas pequenas e aos

assuntos concretos, cada segundo de encanto e cada

partícula de tempo vivida com atenção, mesmo preenchida

com alguma atividade trivial, tornam-se a defesa contra

as lamentações antecipadas. Tudo o que está acontecendo,

contrariamente às ideias preconcebidas sobre gestos e

palavras imortais, coloca-se, se assim formos pensar, no

grande todo da existência. Szymborska aponta o triunfo do

ser sobre o nada (mesmo sendo apenas instantâneo), e, à

indiferença do cosmos, contrapõe a força da gravidade do

seu próprio pedaço de espaço particular ("Metafísica"

["Metafizyka"]). Nesses versos, os exercícios de

imaginação cósmica não estão ligados apenas às deduções

sobre a estranheza de outros seres, à incansável

admiração metafísica e ao estudo de sua própria

ignorância ("Aqui", "O microcosmo" ["Mikrokosmos"]), mas

também às perguntas cognitivas e à visão das coisas a

partir de vários pontos de vista. Para perceber a

multiplicidade dos "pontos de vista" diferentes e a

relatividade dos nossos diagnósticos, basta olhar para o

céu estrelado ("Velho professor" ["Stary profesor"]).

A obra madura sintetiza experiências, não recria

mundos poéticos, mas sim complementa os temas e mensagens

antigos, e, em vez das repetições, a autora apresenta

desenvolvimentos significativos. Nos poemas tardios de

Wisława Szymborska, generalizemos, nenhuma certeza é

alcançada e os problemas cognitivos mais importantes

permanecem em aberto. E assim voltam as reflexões sobre a

história, o destino, o crime e a crueldade ("Um monólogo

do cão enredado na história" ["Monolog psa zaplątanego w

dzieje"], "Algumas pessoas3" ["Jacyś ludzie"], "Fotografia

de 11 de Setembro" ["Fotografia z 11 września"]), a

ambiguidade do tempo que salva ("A vida difícil com a

memória" ["Trudne życie z pamięcią"]), as ações estranhas

do acaso ("Sessão" ["Seans"], "Ausência"

["Nieobecność"]), a proximidade e o afastamento dos

outros seres da natureza ("Silêncio das plantas"

["Milczenie roślin"], "O auto da moralidade florestal"

["Moralitet leśny"]). Dosados com moderação, os

fragmentos de autobiografia tem na obra de Szymborska

caráter generalizador. O "Eu" de tempos passados surge3 O título do poema na coletânea traduzida por Regina Przybycien ficou como "Certa gente".

como um estranho, pois provavelmente a continuidade da

vida é uma ilusão ("Adolescente" ["Kilkunastoletnia"]).

Às vezes, uma descrição dos medos da infância torna-se o

ponto de partida para uma reflexão sobre a mente madura,

que distingue os terrores fantasiosos do horror do mundo

real ("Poça" ["Kałuża"]).

A pessoa não consegue mais apoiar-se em sua memória,

a continuidade da biografia é questionada, as memórias

não se organizam em histórias claras. À ilusão

sentimental de que as lembranças do passado transmitem

algo de significativo, a poeta opõe uma visão dos eventos

passados – desenhados de um modo esquemático e pouco

original – do aprisionamento em um mundo do passado, da

interrupção no desenvolvimento, quando o interesse

naquilo que está por vir enfraquece ("A vida difícil com

a memória"). O sentimento de casualidade, ou - em outras

palavras - o jogo dos acasos que poderiam compor

diferentemente as sequências de cada vida, derruba a

convicção de um assentamento seguro no tempo-espaço que

nos foi dado. Mesmo numa ingênua imagem da escola, ou em

uma bela história sobre a genealogia familiar fica

sublinhada a preocupação com a relatividade de quaisquer

fatos consumados ("Ausência").

Szymborska acrescenta epílogos a suas próprias

considerações sobre o amor feliz e infeliz, vendo essas

questões a partir de uma perspectiva remota e, com o

aumento da distância, cresce a empatia para com os

fascínios amorosos e as decepções enfrentadas pelos

outros ("O primeiro amor" ["Pierwsza miłość"], "Divórcio"

["Rozwód"], "Perspectiva" ["Perspektywa"], "No aeroporto"

["Na lotnisku"]). A cuidadosa observação da vida nesses

poemas não é separada dos estudos poéticos sobre os

artistas e a arte. A poeta trata as grandes figuras do

passado como pessoas amigas, o que não tem nada a ver com

falta de respeito ou de admiração. O material para as

reflexões é extenso e os tipos de comentários,

frequentemente quebrando paradigmas discursivos adotados

pela crítica, parecem ainda mais surpreendentes. Por

exemplo, a conversa imaginária com Słowacki torna-se um

pretexto para refletir sobre o papel da imaginação que

apenas compensa a impossibilidade de plena participação

nos eventos do passado ("Na diligência" ["W

dyliżansie"]). Esse passado por meio da descrição de

realidades experimentadas sensorialmente ressuscita na

palavra poética. Por sua vez, a assombrosa obra de Proust

sobre o tempo redescoberto, recuperado na memória e na

escrita, provoca considerações (ridicularizantes e

sérias) sobre a mudança rápida e a leviandade da cultura

de massa em nossos tempos aparentemente felizes ("Falta

de leitura" ["Nieczytanie"]) .

A poeta dá continuidade ao tema das "más notícias"

darwinianas sobre a luta das espécies, da crueldade da

natureza e da paradoxal inocência dos animais – privados

de um sentido moral, conforme lemos no poema

"Acontecimento" ["Zdarzenie"]. Os seres humanos também

não estão livres da lei de devorar – incorrigíveis

carnívoros de "corações sensíveis" ("Coerção"

["Przymus"]). Os grandes criminosos constituem um

mistério incomum, porque afinal de contas, as condições

biológicas não dizem nada sobre a propensão para o mal

("Palma da mão" ["Dłoń"]). Nos poemas tardios, não se

pode ignorar os relatos de sonhos (ex. "Os sonhos"

["Sny"], "Adormecida" ["W uśpieniu"]), distinguindo-se

também um esboço poético dedicado à "pequena criação" que

se repete, isto é, à nova criação do mundo, quando das

sombras surgem os contornos das coisas ("Primeiras horas"

["Wczesna godzina"]). Aos temas prediletos de Szymborska

devemos acrescentar os tratados linguísticos - sobre as

possibilidades da fala, as usurpações da linguagem, a

estranheza dos procedimentos literários, o diálogo com o

leitor e o destino incerto dos poemas ("Tudo"

["Wszystko"], "Ideia" ["Pomysł"], "Para o meu próprio

poema" ["Do własnego wiersza"]). Nos poemas "As três

palavras mais estranhas" ["Trzy słowa najdziwniejsze"] e

"Basicamente cada poema" ["Właściwie każdy wiersz"] pode-

se realmente captar o esboço do programa poético - o

artista da palavra pode transmitir apenas um estilhaço da

existência, capturar um instante, registrar uma

experiência momentânea, deve contar com a volatilidade da

existência, a transitoriedade dos acontecimentos, deve

suspender o juízo definitivo, aperfeiçoando-se na arte de

fazer perguntas.

No volume Basta Szymborska contrapõe a elegias e

despedidas a curiosidade incansável pelo mundo, mesmo que

os costumes e a cultura contemporâneas revelem extrema

estranheza. Se a presença vigilante fosse rejeitada, e

nos poemas encontrássemos a renúncia, a poeta teria

negado os principais pressupostos éticos e estéticos do

seu trabalho. Métodos especializados de análise, grandes

programas de computador conseguem explicar tudo, ler cada

mensagem, a não ser os sentimentos e o mistério da

existência individual ("Confissões de uma máquina

leitora" ["Wyznania maszyny czytającej"]). Nesse livro

desenvolve-se uma discussão antropológica, a morte do ser

humano desperta inquietação. Nos poemas "Alguém que

observo há um certo tempo" ["Ktoś, kogo obserwuję od

pewnego czasu"] e "Existem aqueles que" ["Są tacy,

którzy"] Szymborska, referindo-se às ideias anteriores em

sua poesia, volta a defender a existência individual,

escreve sobre o direito a uma vida periférica, sobre a

opção pela privacidade. Aprecia também as ambições

modestas de pessoas desconhecidas, anônimas, louva as

buscas e dilemas, faz apologia da incerteza e da

admiração. Rejeita a visão perturbadora do homem-ciborgue

– escravo da pragmática, um conformista perfeito.

A vida seria muito superficial, banal, desprovida de

valor se desaparecessem a inquietação e o mistério

("Terrível sonho do poeta" ["Okropny sen poety"]). O ser

humano, que não para de surpreender a poeta, é um ente

compassivo e criminoso, trivial e sutil, perdido e doador

de sentido ao mundo existente, totalmente corpóreo e

tecido com ideias abstratas. O ser humano, há séculos, dá

esperanças de melhorar, mas estas não se concretizam, é

uma constante potencialidade, um indivíduo em conflito

consigo mesmo, um misterioso monstro com reações e

possibilidades imprevisíveis.