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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE DIREITO LETÍCIA DE SOUZA FURTADO A TEORIA DO BODE EXPIATÓRIO, DE RENÉ GIRARD, APLICADA À CHACINA DE MATUPÁ. PORTO ALEGRE 2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO

SUL

FACULDADE DE DIREITO

LETÍCIA DE SOUZA FURTADO

A TEORIA DO BODE EXPIATÓRIO, DE RENÉ GIRARD,

APLICADA À CHACINA DE MATUPÁ.

PORTO ALEGRE

2013

A TEORIA DO BODE EXPIATÓRIO, DE RENÉ GIRARD,

APLICADA À CHACINA DE MATUPÁ.

Trabalho acadêmico apresentado como requisito para a conclusão do curso de Ciências Jurídicas e Sociais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Orientador: Prof. Dr. Álvaro Filipe Oxley da Rocha

PORTO ALEGRE

2013

A TEORIA DO BODE EXPIATÓRIO, DE RENÉ GIRARD,

APLICADA À CHACINA DE MATUPÁ.

Trabalho acadêmico apresentado como requisito para a conclusão do curso de Ciências Jurídicas e Sociais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Aprovado(a) em____ de__________________ de ________.

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Álvaro Filipe Oxley da Rocha

________________________________

________________________________

________________________________

Dedico este trabalho a minha mãe: uma

mulher de sensibilidade e inteligência incríveis, com quem eu tenho a sorte e o prazer de compartilhar a vida.

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Professor Doutor Álvaro Filipe Oxley da Rocha, meu orientador;

aos mestres pesquisadores Wilson Franck Junior e Milton Gustavo Vasconcelos

Barbosa, sempre tão generosos comigo; à Professora Mestra Ana Márcia Martins

Silva, por ter apresentado a mim o caso que analiso neste trabalho; à turma 189, meu

porto seguro na PUCRS durante esses anos, sobretudo à Silvana e ao Felipe, por

iluminarem em mim o que tenho de melhor; aos meus amigos Regina, Dr. Rodrigo,

Carlos, Paula e Arthur, pelo afeto e acolhimento; e à minha família, que acompanha,

atenta, a todos os meus passos.

“A solidão multiplica o ser.” Letícia Furtado

“Bastava proibir-lhe alguma coisa, e isso tornava-se logo o maior

desejo de seu coração.” George R. R. Martin

RESUMO

O presente trabalho analisa o linchamento conhecido como Chacina de

Matupá, através da aplicação dos quatro "estereótipos persecutórios", propostos por

René Girard em sua obra O Bode Expiatório. No primeiro capítulo, o pensamento

girardiano é brevemente apresentado ao leitor, para, depois, passar-se à uma

descrição detalhada dos elementos que permitem a identificação de um "bode

expiatório", quais sejam: a "crise indiferenciadora"; os "crimes indiferenciadores"; as

"marcas vitimárias" e a violência ou expulsão coletiva. No segundo capítulo, discorre-

se acerca da origem do município de Matupá/MT e de suas características sócio-

culturais na década de 1990, partindo-se, então, para o relato pormenorizado da

Chacina de Matupá. No terceiro capítulo é realizada a análise do caso estudado, à luz

dos "estereótipos persecutórios".

Palavras-chave: Bode expiatório. Mecanismo vitimário. Crise indiferenciadora. Marcas

vitimarias. Crime indiferenciador. Chacina de Matupá. Linchamento.

ABSTRACT

This paper analyzes the lynching known as Matupá’s Slaughter, through the

application of the four "persecutory stereotypes", proposed by René Girard in his book

“The Scapegoat”. In the first chapter, Girard’s thinking is briefly presented to the reader;

then we move up to a detailed description of the elements that allow the identification

of a "scapegoat", namely: "indiferenciated crisis"; "indiferenciated crimes”; "victim’s

marks" and violence or collective expulsion. The second chapter discussions are about

the origin of the city of Matupá / MT – Brazil, and its socio-cultural characteristics in the

1990s, starting up, then to the detailed account of Matupá’s Slaughter. In the third

chapter is performed the analysis of the case study, in the light of "stereotypes of

persecution."

Keywords: Scapegoat. Victimage mechanism. Indiferenciated crises.Victim's marks.

Indiferenciated crimes. Matupá's Slaughter. Lynching.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 10

PRIMEIRO CAPÍTULO: O BODE EXPIATÓRIO. ............................................... 12

1.1 O desejo mimético e suas consequências – introdução ao pensamento

girardiano. ...........................................................................................................................12

1.2 Os estereótipos persecutórios que definem um “bode expiatório”. ....................16

SEGUNDO CAPÍTULO: A CHACINA DE MATUPÁ........................................... 25

2.1 Matupá na década de 1990....................................................................................25

2.2 A Chacina de Matupá – Todos contra três. ..........................................................27

TERCEIRO CAPÍTULO: A CHACINA DE MATUPÁ À LUZ DOS

ESTEREÓTIPOS PERSECUTÓRIOS................................................................. 32

3.1 Efeitos de um Estado distante – a crise instalada (1ª estereótipo). ...................32

3.2 A ameaça forasteira contra a família nuclear matupaense – “crime

indiferenciador” e “marcas vitimarias” (2º e 3º estereótipos). ........................................35

3.3 Linchados e queimados – o assassinato coletivo (4º estereótipo). ....................38

CONCLUSÃO......................................................................................................... 45

REFERÊNCIAS...................................................................................................... 47

10

INTRODUÇÃO

O Direito é uma ciência aberta, e, como tal, deve considerar aspectos teóricos

e metodológicos das demais ciências. Esse diálogo transdisciplinar auxilia, sobretudo

na interpretação das normas, a busca de um posicionamento justo e acertado. O

presente estudo de caso tem como objetivo identificar, à luz dos "estereótipos

persecutórios" elaborados por René Girard, elementos que permitam apontar, na

Chacina de Matupá, a existência de um ou mais bodes expiatórios.

A Chacina de Matupá, em princípio analisada sob prisma puramente legalista,

ganha nova perspectiva com os pensamentos de Girard; aplicando-os ao caso,

reflexões de cunho antropológico e sociológico são inauguradas, possibilitando melhor

compreensão do processo que desencadeia ações violentas contra uma minoria

acusada por uma massa. Tal enfoque concede às ciências jurídicas o dinamismo que

lhes é próprio, uma vez que a lei positivada – de caráter objetivo – é aplicada aos

homens de forma casuística – portanto, subjetiva.

Crimes de multidão como esse, pela sua natureza impactante, inevitavelmente

suscitam inúmeros questionamentos. A partir do método de abordagem hipotético-

dedutivo, buscar-se-á responder: se as vítimas da chacina possuíam características

que as diferenciassem dos membros da massa que as assassinou – "marcas

vitimárias –; se o município de Matupá, em Mato Grosso, vivia uma "crise

indiferenciadora"; e, em caso positivo, se aos linchados foi atribuído algum

comportamento que pudesse guardar relação com essa crise – "crime

indiferenciador". Serão citadas, essencialmente, fontes primárias, tais como

reportagens em revistas e jornais, livros, artigos, trabalhos científicos e sítios da

internet que possam colaborar com o desenvolvimento da pesquisa. A dissertação

será estruturada em três partes:

a) na primeira, a autora realizará uma introdução ao pensamento girardiano,

para então descrever com maior minúcia os "estereótipos persecutórios"

11

que servirão à investigação aqui proposta, ilustrando-os com rápidos

exemplos históricos;

b) na segunda, far-se-á breve relato acerca da origem do município e dos

aspectos sócio-culturais que o caracterizavam na época do acontecimento,

descrevendo, após, a Chacina de Matupá;

c) na terceira, por fim, o linchamento em questão será analisado à luz dos

"estereótipos persecutórios".

Ao longo do trabalho, também serão abordadas, entre outros temas conexos,

a infinitude do ciclo de vingança privada e a finalidade, eficácia e eficiência do

monopólio estatal sobre o poder punitivo.

Estudar as raízes de um comportamento é basilar para perceber até que ponto

ele é um desvio e quão culpável é. Munido dessa noção o aplicador do Direito fica

apto a interpretar as leis de forma menos mecanizada, mais humana e abrangente,

não cerceada pelo reducionismo metodológico imposto quando se ignoram os

esclarecimentos oferecidos pelas demais ciências. Naturalmente, não se tem a

pretensão de esgotar os assuntos de que trata René Girard, pois sua extensa

bibliografia é fruto de décadas de pesquisa; mas, se comprovadas as hipóteses aqui

levantadas, poderemos concluir que episódios como a Chacina de Matupá, nos quais

se executam “bodes expiatórios”, merecem ser analisados pelo Direito sob um

enfoque multidisciplinar, ganhando assim maior clareza.

12

PRIMEIRO CAPÍTULO: O BODE EXPIATÓRIO.

1.1 O desejo mimético e suas consequências – introdução ao

pensamento girardiano.

René Girard – 25 de dezembro de 1923, Avignon, França – é um historiador

conhecido pela criação da teoria do desejo mimético, a partir da qual desenvolveu, ao

longo de suas pesquisas, muitos outros pensamentos – entre eles, o “mecanismo do

bode expiatório”, o qual será detalhadamente analisado neste trabalho.

De acordo com o pensamento de Girard, os homens elegem seus objetos de

desejo por imitação. O objeto, portanto, não tem um valor em si mesmo: o desejo de

um primeiro homem – indivíduo modelo, o único que talvez demonstre alguma

criatividade nessa predileção – joga luz à coisa, dando-lhe um brilho diferenciado e

despertando o interesse do outro; este, por sua vez, serve à manutenção do interesse

daquele (O BODE..., 2004). Essa relação triangular de dois indivíduos com o objeto

representa a estrutura do desejo mimético. A partir dessa amostra, é possível

visualizar com que rapidez uma vontade individual pode se tornar coletiva, tendo em

vista que a cobiça de um homem pode ser observada e imitada por muitos outros, o

que concede à multiplicação do querer ares de uma progressão aritmética.

Quando dois homens passam a ambicionar o mesmo objeto, entram

imediatamente em conflito, pois tornam-se, um para o outro, empecilho à obtenção

exclusiva daquilo que ambos querem. O desejo mimético se fortalece na medida em

que a coisa disputada se revela fora de alcance. No estágio seguinte, consequência

dessa contenda, os rivais desenvolvem a agressividade, ficam obcecados, cegos, com

a inteligência obscurecida. A esse ponto, o objeto de desejo que colocou o indivíduo

modelo e o imitador em choque já não é lembrado, o que permanece é a reciprocidade

negativa desenvolvida por eles. Como bem expõe Milton Gustavo Vasconcelos1:

1 BARBOSA, Milton Gustavo Vasconcelos. A expansão penal na República de 1988: A ilusão mítica e os efeitos da revelação. Porto Alegre. Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do título de mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2013. p. 28, nota 108.

13

Os duplos são rivais que se atacam mutuamente, por estarem escandalizados pelo desejo sobre algum objeto. Os rivais se imitam na violência e por isso sua relação se dá em forma de escalada. Quanto mais se odeiam e se atacam, mais se parecem. Com o tempo, o objeto do desejo é esquecido, e os rivais preocupam-se apenas em atingir o outro. O conflito entre os duplos transforma-os em escravos da violência recíproca, que não pode acabar, a menos que um dos rivais renuncie ao conflito.

É que estão escandalizados. Não há como definir precisamente o significado

de escândalo; sem pretensão de esgotar o assunto, poder-se-ia dizer que “obstáculo”

é um bom sinônimo. Por obstáculo aqui, entende-se aquele que seja capaz de instigar,

provocar a teimosia, depois a impaciência, e, por fim, conduzir a impulsos violentos,

que parecerão ser a única forma, necessária e inevitável, de eliminar tal entrave.

Girard ensina que a palavra utilizada nos Evangelhos skandalon, comumente

traduzida como “escândalo” ou “pedra de tropeço” deriva da raiz skadzo, que significa

“eu manco”. O opositor, obstáculo da rivalidade mimética é, portanto, o escândalo de

seu duplo, aquele que o faz mancar e dificulta seu caminho. Diferente da noção

individual de “ressentimento” – ou “mau” desejo –, elaborada por Nietzsche, o

escândalo pressupõe a relação modelo-discípulo, quer dizer, trata-se de um conceito

interindividual (COISAS..., 2009). O revide de um para com o outro, a vingança, faz

os homens ingressarem num círculo vicioso para o qual a única solução pacífica é a

desistência de um dos rivais; no entanto, como atenta René Girard, os homens jamais

se entendem para preservar o objeto, mas conseguem entrar em acordo para destruí-

lo (O BODE..., 2004). Na história bíblica em que o Rei Salomão anuncia que partirá

ao meio um bebê disputado por duas mulheres que se dizem mãe da criança, por

exemplo, a mulher que não é realmente a mãe – a imitadora, a qual toma por modelo

a mãe verdadeira – consente com a destruição do objeto de desejo: “Nem teu nem

meu seja; dividi-o” (Reis 3, 26).

A violência generalizada é produto do mecanismo mimético. Em uma

sociedade na qual o desejo mimético evoluiu ao escândalo em diversas relações

interpessoais, a violência passa a ser um aspecto indiferenciador de seus membros.

Todos se encontram em uma crise idêntica, a “crise indiferenciadora” originada pelo

desejo mimético. A pessoa que acumula seus impulsos violentos não os satisfazendo

na plenitude chegará ao seu limite, fazendo-os transbordar de uma vez só; e, no auge

dessa crise, no momento de maior histeria, o desejo reprimido de violência aceita

14

vítimas substitutivas para descarregar sua energia. Em Veo a Satán caer como el

relâmpago, o escritor francês faz uma excelente analogia acerca do que ocorre2:

La verdadera fuente de susticiones victimarias es el apetito de violencia que se despierta en los hombres cuando la cólera se apodera de ellos y, por una u outra razón, el objeto real de esa cólera resulta intocable. El campo de los objetos susceptibles de satisfacer el apetito de violencia se amplía proporcionalmente a la intensidade de la cólera, de la misma manera que, en caso de una hambre extremada, aceptamos alimentos que, en circunstancias normales, rechazaríamos.

Nessas circunstâncias, o indivíduo se deixa seduzir por outros escândalos cujo

magnetismo se revele superior ao do seu e cuja força de atração será tão maior quanto

maior for o prestígio ou o número de escandalizados. Nas palavras de Girard, “os

escándalos entre los indivíduos son como pequeños riachuelos que desembocan en

los grandes ríos de la violencia colectiva”3. Ao final das incorporações de escândalos,

uma multidão resta polarizada contra um indivíduo ou uma minoria.

A etapa subsequente revela a utilidade do “bode expiatório”, sua função social.

Se a coletividade não abdica das agressões mútuas e insiste nos ataques

interindividuais e dispersos, o resultado, no grau mais extremo de violência, só pode

ser a extinção do grupo. É que, nesse caso, seria iniciado um processo semelhante

ao “mata-mata” do futebol: dois indivíduos duelariam entre si; um deles morreria; o

sobrevivente, não demoraria muito tempo para estar lutando com outro, e, assim,

poder-se-ia chegar ao momento em que não sobrasse ninguém. De outra sorte,

unindo-se para perseguir a mesma vítima, poderão saciar – embora parcial e

temporariamente – sua sede acumulada, encontrando, entre tantas divergências, um

motivo “beneficamente” convergente. O extravasamento da violência ocorre pelo

assassinato coletivo ou pela expulsão daquele que, de súbito, transfigurou-se em

culpado para todos. Assim, o “todos contra todos” gerado pela “armadilha da

circularidade mimética” (GIRARD, 2004) – o círculo vicioso – se converte no “todos

contra um”. A paz é restaurada no plano individual e também no coletivo, e a

sociedade, finalmente, vê-se unida em prol de uma causa em comum. Girard atribui a

esse mecanismo de polarização da violência um caráter fundador porque entende que

2 GIRARD, René. Veo a Satan caer como el relámpago. Traduzido do francês por Francisco Díez del Corral. Barcelona: Anagrama, 1999. p. 202. 3 Ibid., p. 43.

15

por meio dele a ordem social, outrora sob ameaça, é reafirmada, ou afirmada, se essa

ordem era ainda inexistente; os membros da comunidade se harmonizam,

consolidam-se como grupo4:

O melhor meio de fazer amigos, em um universo não amigável, é desposar as inimizades, é adotar os inimigos dos outros. O que dizemos a esses outros, nesse caso, nunca varia muito: “Somos todos do mesmo clã, formamos apenas um só e mesmo grupo, pois temos o mesmo bode expiatório”.

Contudo é preciso observar que a paz só reinará se a canalização da

agressividade contra a vítima expiatória for unânime. Na escolha do “bode expiatório”,

um dos aspectos relevantes a se atentar é a vulnerabilidade do imolado, pois, para

que o ciclo de violência realmente se interrompa, é necessário que não exista ninguém

disposto a vingar a vítima. O caráter inconsciente da unidade dos perseguidores é

também essencial ao sucesso do “mecanismo vitimário”, uma vez que cada membro

da multidão deve crer na culpabilidade do “bode expiatório” para ceder aos impulsos

de se lançar contra ele; entretanto, paradoxalmente, a mesma unidade inconsciente

tem seu aspecto racional, pois é através do consenso quanto à culpa da vítima que

ela é diferenciada dos indiferenciados. Isolada, sozinha, ninguém pode salvá-la

porque todos estão unidos contra ela, e a violência se extinguirá com sua destruição

ou expulsão, não haverá vingança.

De modo análogo, o sistema judiciário procura estancar as represálias

arrogando para si o monopólio da vingança; é uma instituição soberana que combate

a violência em nome de todos e de ninguém. Os atos da autoridade judiciária são

endereçados a um indivíduo legalmente diferenciado por meio do tipo penal; o infrator

personifica um comportamento que desestabiliza a sociedade. Para o sistema

judiciário, não há resposta violenta – em regra –, suas medidas são, portanto, tão

definitivas e finalizadoras quanto o assassinato coletivo de um “bode expiatório”. É por

isso que, para René Girard, o sistema judiciário e o sacrifício tem a mesma função:

interromper a vingança mimética (A VIOLÊNCIA..., 1990).

4 GIRARD, René. O bode expiatório. Traduzido por Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. p. 203.

16

1.2 Os estereótipos persecutórios que definem um “bode expiatório”.

Delineado o cenário no qual surge o “bode expiatório”, e a função que ele

assume frente à multidão de perseguidores, pode-se passar ao estudo mais detalhado

da figura. Para facilitar sua identificação e entendimento das questões que gravitam

em torno dessa vítima, René Girard elaborou o que denomina de “estereótipos

persecutórios”: fatores os quais, observados nos acontecimentos e personagens que

dele participam, permitem-nos afirmar a existência de uma vítima expiatória. Em sua

obra O Bode Expiatório, o autor adverte que não tem interesse no estabelecimento do

que é bom e do que é mau, e delimita sua pesquisa5: “Minha única preocupação é

mostrar que existe um esquema transcultural de violência coletiva e que é fácil

esboçar, em grandes traços, seus contornos”.

O primeiro estereótipo persecutório, inclusive quanto à lógica e cronologia, é a

crise indiferenciadora, fenômeno que representa um sentimento coletivo de confusão.

A crise, que culmina em perseguições, pode ser desencadeada até mesmo por

eventos da natureza – como uma seca extrema que coloque a população em

dificuldades; mas, nessa experiência, o social é sempre o campo de maior relevância.

As normas e instituições estruturantes preestabelecem os comportamentos dos

homens em sociedade, objetivando que as trocas entre eles ocorram sem grandes

conflitos: atribui-se a um e outro indivíduos diferentes papéis em relação a status

familiar e hierarquia. Tais distinções constituem o próprio sistema cultural, que se

manterá estável enquanto aquelas regras forem observadas. Quando as instituições

se enfraquecem, as diferenças por elas determinadas perdem seus contornos, e, sem

a determinação prévia de como as trocas sociais ocorrerão, os indivíduos se

encarregam diretamente dessa tarefa. Assim, os sujeitos se aproximam uns dos

outros, conferindo pessoalidade às tratativas; as impressões, sejam boas ou ruins, se

aceleram, porque são reflexo imediato das pessoas que estão em contato, não há a

intermediação “desresponsabilizadora” das instituições. Conforme Girard6:

As trocas se aproximam, uma reciprocidade mais rápida se instala não somente nas trocas positivas, que subsistem apenas na estrita medida

5 GIRARD, René. O bode expiatório. Traduzido por Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. p. 29. 6 Ibid., p. 21.

17

do indispensável, sob a forma de permuta, por exemplo, mas nas trocas hostis ou “negativas”, que tendem a se multiplicar. A reciprocidade que se torna visível ao mesmo tempo que se encolhe, por assim dizer, não é a de bons, mas de maus comportamentos, a reciprocidade dos insultos, dos golpes, da vingança e de sintomas neuróticos. É por essa razão que as culturas tradicionais não querem essa reciprocidade demasiado próxima.

As regras ora enfraquecidas obstavam o desencadeamento da violência

mimética, constituindo-se em verdadeira proteção aos homens, pois, quando bem

aplicadas nos princípios igualitários, impõem-se como limitação a todos, mantendo

estáveis as relações; em contrapartida, os conflitos entre os duplos sempre despertam

no imitador a impressão de estar sendo inferiorizado e injustiçado. A multiplicação das

trocas agressivas assemelha todos os membros da comunidade afetada; ao

desaparecerem as diferenças que as instituições propunham, é a própria ordem que

some, permitindo a instalação do caos. Os homens tornam-se “gêmeos da violência”

(A VIOLÊNCIA..., 1990), e passam a se parecer tanto com seu duplo – aquele com

quem estão em conflito direto –, quanto com os personagens de outros embates

particulares. A violência uniformiza o comportamento de todos ao desencadear um

“efeito dominó”. Os homens que vivenciam a crise creem na transgressão exclusiva

do outro, nunca na sua. Para cada um, sua forma de agir é a correta, percebem-se

diferentes, portanto, mas aos poucos se igualam. É como o sonho de Raskolnikov em

Crime e Castigo7:

Sonhou, durante a sua doença, que o mundo todo estava condenado a ser vítima de uma terrível, inaudita e nunca vista praga que, originária das profundidades da Ásia, cairia sobre a Europa. Todos teriam que perecer, exceto uns tantos, muito poucos, escolhidos. Surgira uma nova triquina, ser microscópico que se introduzia no corpo das pessoas. Mas esses parasitas eram espíritos dotados de inteligência e de vontade. As pessoas que os apanhavam tornavam-se imediatamente loucos. Mas que nunca, nunca se consideraram os homens tão inteligentes e perseverantes na verdade como se consideravam estes que eram atacados pela moléstia. Nunca foram considerados mais infalíveis nos seus dogmas, nas suas conclusões científicas, nas suas convicções e crenças morais. Aldeias inteiras, cidades e povos inteiros foram contagiados e enlouqueceram. Todos estavam alarmados e não se entendiam uns aos outros; todos pensavam ser os únicos senhores da verdade, e só sofriam ao verem a dos outros e davam socos no peito, choravam e ficavam de braços caídos. Não sabiam a quem nem como julgar; não podiam pôr-se de

7 DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Crime e Castigo. 1. ed. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: 34, 2001. P. 585.

18

acordo sobre o que fosse bom e o que fosse mau. Não sabiam a quem inculpar nem a quem justificar. Os homens agrediam-se mutuamente, impelidos por um ódio insensato. Armavam-se contra os outros em exércitos inteiros; mas os exércitos, uma vez em marcha, começavam de repente a destroçarem-se a si mesmos, as fileiras desfaziam-se, os guerreiros lançavam-se uns contra os outros, mordiam-se e devoravam-se entre si. Nas cidades passava-se o dia inteiro tocando a rebate; todos eram chamados; mas quem os chamava e para que os chamavam ninguém sabia, e todos andavam assustados. Abandonaram os ofícios mais comezinhos, porque cada qual preconizava a sua idéia, os seus métodos, e não podiam chegar a um acordo; a agricultura também foi abandonada. Em alguns lugares, homens reuniam-se em grupos, faziam certas combinações e juravam não se zangarem... Mas começavam imediatamente a fazer outra coisa completamente diferente da que acabaram de combinar, punham-se a inculpar-se mutuamente, brigavam e degolavam-se. Houve incêndios, fome. Tudo e todos se perderam. E essa tal peste crescia e cada vez avançava mais. Somente alguns homens conseguiram salvar-se em todo o mundo, homens puros e escolhidos, destinados a dar início a uma nova linhagem humana e a uma nova vida, a renovar e a purificar a Terra, mas ninguém via esses seres em parte alguma, ninguém ouvia a sua palavra e a sua voz.

A multidão, constituída pelos membros indiferenciados da comunidade, diante

da carência de ordem, assume com facilidade o papel da instituição enfraquecida; é o

momento em que está especialmente tendente à perseguição. A circularidade da

violência só pode findar de três formas:

1) Perdão, desistência e concordância entre os duplos – o que é muito

improvável, para não dizer utópico;

2) ruína completa da comunidade; ou

3) a canalização da agressividade de todos em um só homem, a

transmutação do “todos contra todos” no “todos contra um”.

O “mecanismo do bode expiatório” é, então, o meio encontrado pelos homens

para que a exasperação das rivalidades não extermine a comunidade (VEO A

SATÁN..., 1999); a “crise indiferenciadora” é a paisagem-palco disso tudo, dá início à

temporada de busca por um culpado.

Mas como a vítima é eleita? Girard sustenta que, embora sejam certas

características do sujeito que verdadeiramente acarretam sua escolha como “bode

expiatório” (O BODE..., 2004), a responsabilização ficará mais crível se for atribuída à

vítima um ato amplamente reprovável. Não é necessário que o crime tenha sido de

fato praticado, nem que tenha sido cometido por aquela pessoa; na maioria das vezes,

19

uma vinculação mentirosa basta para agitar a multidão, deixando-a irredutível quanto

à eventual defesa do perseguido. Atribuindo ao sujeito um “crime indiferenciador”, a

acusação ganha uma fina camada de credibilidade – que poderia inclusive ser

descascada com um olhar mais atento –, e esse ligeiro banho de “fatos” já concede

aos populares convicção suficiente para que se permitam não querer saber de mais

nada, tapar os olhos e os ouvidos, juntando-se aos perseguidores. Para enquadrar-se

no segundo estereótipo persecutório, então, a vítima deve se ver relacionada a um

crime ou ato comparável que seja capaz de provocar reprovação unânime dos

membros da comunidade; a isso René Girard chama de “crime indiferenciador”.

A exemplo do que ocorre em relação à crise, certos delitos revelam outro

aspecto de indiferenciação dos homens, apagam diferenças na medida em que todos

têm a idêntica percepção de que o fato imputado à vítima é extremamente nocivo à

ordem social. O “crime indiferenciador” é aquele com potencial de causar indignação

coletiva em razão do choque que representa a pilares institucionais; conforme Girard8:

“Os mais frequentemente invocados são sempre aqueles que transgridem os tabus

mais rigorosos em relação à cultura considerada”. O mal feito a um Papa, ou pelo filho

à mãe certamente têm mais aptidão para indiferenciar do que a mesma atitude

perpetrada contra alguém que não tenha tamanho valor simbólico. Um delito cometido

contra uma criança polariza as pessoas porque as crianças representam a

continuação da comunidade. A corrupção dos parlamentares denuncia a fragilidade

do sistema político que adotamos. O desrespeito ao líder religioso, aos pais, às

crianças, à coisa pública, etc. são condutas que aterrorizam a massa pois, instalando-

se no seio social, porão em colapso instituições tradicionais. A acusação padronizada

– ou, por que não, a tipificação penal das condutas – traz racionalidade ao “mecanismo

vitimário” e facilita a adesão de perseguidores.

Nem sempre os perseguidores se preocuparam em revestir a acusação com

elementos objetivos; como René Girard aponta, em sociedades ditas primitivas, para

as quais a razão não possuía a relevância que tem para nós hoje, o “pensamento

mágico” conduzia livremente a escolha do “bode expiatório” e servia de fundamento

8 GIRARD, René. O bode expiatório. Traduzido por Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. p. 22.

20

para o assassinato de bruxos. O livro Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande,

ilustra essa condição9:

Enquanto o doente continua vivo, seus parentes fazem todos os esforços polidos para persuadir os bruxos responsáveis a desistirem de suas predações noturnas. Até aí nenhuma infração legalmente reconhecida foi cometida. Morrendo o doente, porém, a situação muda completamente, pois então seus parentes se veem compelidos a se vingar. Interrompem-se as negociações com os bruxos e tomam-se providências imediatas para a execução da vingança.

O segundo estereótipo, portanto, a atribuição de um “crime indiferenciador”,

baseia-se no pensamento lógico, não sendo essencial às massas regidas estritamente

pelo pensamento mágico. Por isso, Girard entende que, na sociedade

contemporânea, o “crime indiferenciador” facilita a vinculação causal da vítima

expiatória à crise, mas que o motivo da seleção daquela não é esse. Nos dois tipos

de pensamento, “são suas ‘marcas vitimárias’ que destinam essas vítimas à

perseguição”10. Salienta-se que, ainda hoje, o pensamento mágico subsiste; onde não

o encontramos puro, encontramos seus resquícios. No dia-a-dia, por exemplo, ao nos

permitirmos dizer que alguém tem a “energia pesada” ou que pôs “olho gordo” em

nossos projetos – e não é raro invocar esse tipo de opinião, mesmo quando o prejuízo

em questão é pouco relevante –, estamos nos utilizando de crendices que levam à

responsabilização de um terceiro por nossas desventuras, ou seja, estamos imersos

em pensamento mágico. René Girard define11:

O pensamento mágico, via de regra, percebe-se como uma ação defensiva contra a magia e acaba, por isso, tendo o mesmo tipo de comportamento que o dos caçadores de bruxas ou das multidões cristãs durante a peste negra. A respeito dessas pessoas, por outro lado, dizemos com toda razão que elas raciocinam de modo mágico.

Uma multidão que responsabiliza homens comuns por grandes crises, portanto,

só pode estar influenciada pelo pensamento mágico, uma vez amplia o potencial

lesivo dos bodes expiatórios a um patamar incrível. Trata-se do pensamento mágico

9 EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Tradução de Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. P. 72. 10 GIRARD, René. O bode expiatório. Traduzido por Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. p. 30. 11 Ibid., p. 73.

21

imemorial, às vezes pincelado com um “crime indiferenciador” por exigência da nossa

época “racional”.

As “marcas vitimárias” constituem o terceiro estereótipo persecutório apontado

pelo autor. O “crime indiferenciador” satisfaz aos que precisam de um toque de razão,

e os perseguidores estão livres desse requisito, podendo tranquilizar-se e voltar à

natureza inconsciente que os levará ao clímax do “mecanismo vitimário”. O terceiro

estereótipo é como um pressentimento de assimetria ou anormalidade que coloca o

“bode expiatório” à margem do sistema, antes mesmo que a ele seja atribuído

qualquer ato verdadeiramente reprovável. Os sistemas comportam diferenças, mas

apenas aquelas que concebem. Uma diferença não-catalogável, ou que dificulte a

compreensão dos perseguidores, causa a aversão porque não encontra espaço numa

estrutura cujo caráter estático e previsível garante a estabilidade. Essa diferença, que

não coincide com nenhuma das diferenças entendidas como “normais” no meio ao

qual o portador tenta, em vão, inserir-se, sugere a exclusão natural e afinidade com a

causa da desordem. Ela coloca a comunidade frente a frente com a relatividade de

suas concepções e traz à memória das pessoas que a falência das instituições é

concomitante à confusão dos limites outrora impostos. Dito em outras palavras, a

comunidade se lembra que quando as coisas saem do definido o caos toma conta.

O “bode expiatório” possui uma característica que o destaca da massa

uniforme: a depender do caso, pode ser um fator (1) econômico – extrema riqueza ou

pobreza; (2) físico – portar grande beleza, feiura ou deformidades; (3) religioso – como

um muçulmano entre cristãos. Não importa tanto de que sorte é o traço, o indivíduo

apenas deve ser, de certo modo, estranho ao grupo de perseguidores. René Girard

também cita como exemplos os estrangeiros e os recém-chegados (COISAS..., 2009).

Estes, sobretudo, salientam-se porque chegam quando os costumes já estão bem

estabelecidos; seus hábitos diversos parecerão erros, e se tentarem copiar os hábitos

locais não o farão com perfeição, originando de imediato a apreensão maniática de

todos. Como o autor da teoria defende, esses signos diferenciadores sempre

representaram à coletividade um critério na escolha de suas vítimas. Isso se vê com

clareza em trecho do livro sagrado muçulmano, O Alcorão, um dos escritos mais

antigos de que se tem conhecimento (4:88-89):

O que voz leva a voz dividirdes em dois grupos a respeito dos hipócritas? Deus os repeliu porque o mereceram. Pretendeis guiar os

22

que Deus desencaminha? Para os que Deus desencaminha, jamais acharás uma orientação. Desejariam que fôsseis descrentes como eles: então todos vós seríeis iguais. Não tomeis amigos dentre eles até que emigrem para Deus. Se virarem as costas e se afastarem, capturai-os e matai-os onde quer que os acheis. E não tomeis nenhum deles por confidente ou aliado.

Ao que parece, os descrentes representavam uma ameaça tão grande às suas

crenças, que não bastava que fossem embora – eles poderiam voltar, ou,

posteriormente, poderia chegar à cidade alguém que tivessem doutrinado –, era

necessário exterminá-los. Possivelmente, mesmo “emigrando para Deus”, eles não se

viriam livres da perseguição, assim como não se viram os cristãos-novos, judeus e

muçulmanos convertidos na época da Inquisição.

No ápice da crise indiferenciadora (primeiro estereótipo), aquele que melhor se

enquadrar nos segundo e terceiro estereótipos (“crime indiferenciador” e “marcas

vitimárias”, respectivamente) será o ponto de canalização da violência coletiva (quarto

estereótipo). A massa escandalizada, una, uniforme na sua vontade de detectar e

apontar o escândalo – obstáculo que impede o sistema de fluir com “sucesso” –,

comporta-se de forma semelhante aos duplos escandalizados (COISAS..., 2009). Na

esfera interindividual, os duplos representam obstáculo um ao outro, o que os faz

empreender a escalada da violência recíproca, ou seja, a revanche cíclica; não é

diferente quando todos estão contra um. O “todos”, na realidade, equivale a um

apenas, pois seus escândalos passam a ter como única fonte o “bode expiatório” –

indivíduo que se transfigura no obstáculo da coletividade pelo seu enquadramento nos

estereótipos comentados acima. A mesma violência que ocorre na esfera particular é

agora reproduzida em maior escala pelo corpo social; entretanto, as chances de

vingança ou salvação de quem está sozinho na outra ponta, por motivos evidentes,

são nulas ou ínfimas. O obstáculo foi detectado, ele mancha as normas, conferindo-

lhes obscuridade. Caso ele se perpetue, com o tempo as regras inicialmente claras

serão distorcidas, e suas versões originais se perderão para sempre, o caos se

instalará.

Sob esses fundamentos, a multidão indiferenciada – gêmeos da

violência – estanca a vingança mimética pelo “mecanismo vitimário”; se a massa é

unânime quanto à culpabilidade da vítima, “apenas o “bode expiatório” poderia querer

23

se vingar e, com toda evidência, não está em posição de fazê-lo”12. Nesse aspecto, é

importante ao êxito do mecanismo que a vítima não possua ninguém disposto à vinga-

lo, caso contrário o ciclo de represálias prosseguirá (A VIOLÊNCIA..., 1990). Ainda,

mesmo que o crime pelo qual o “bode expiatório” é acusado seja real, sendo alvo de

agressividade coletiva, terá sua parcela de inocência. O comportamento do grupo se

mostra, com toda evidência, desarrazoado, desproporcional à verdadeira capacidade

do perseguido; sua culpa se restringe ao crime, não à crise inteira, como fazem

parecer os linchadores (O BODE..., 2004). A conduta violenta da massa tem nisso

uma natureza inconsciente, pois, sinceramente convencidos de que a vítima é

culpada, todos bitolam seu pensamento com a responsabilidade global que a vítima

teria sobre a crise; entretanto, o que intimamente os move é a violência particular há

muito reprimida. Cegos pela fúria, não percebem as óbvias falhas de

proporcionalidade entre a conduta do indivíduo e a punição aplicada (VEO A

SATÁN..., 1999). É para ilustrar esse contexto que Girard costuma citar em suas obras

a célebre frase bíblica: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34).

Enquanto os agressores estão certos de que fazem justiça munidos com a verdade,

sem consciência da exata representatividade de seus atos; quem procede a uma

análise neutra percebe, sem dificuldades, “uma vítima impotente, colocada em má

situação por uma multidão histérica”13. A crise que lança a horda de perseguidores

contra o sujeito tem múltiplas razões, começou nos conflitos interpessoais, é imensa

e impossível de ter sido causada por uma pessoa só. O “bode expiatório” comunitário

substitui todos os inimigos que cada membro do grupo poderia ou gostaria ter vitimado

nos seus conflitos interindividuais (A VIOLÊNCIA..., 1990). Como afirma René Girard:

“Só é possível ludibriar a violência fornecendo-lhe uma válvula de escape, algo para

devorar”14.

Chegado o momento do “todos contra um”, o primeiro a agredir encontrará mais

dificuldade, pois não terá modelo de conduta – basilar no comportamento mimético;

entretanto, desferido o primeiro golpe, os demais membros do grupo terão a quem

imitar, e, partir de então, todos se lançarão contra o “bode expiatório” encorajando-se

12 GIRARD, René. O bode expiatório. Traduzido por Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. p. 113. 13 Ibid., p. 75. 14 GIRARD, René. A violência e o Sagrado. Traduzido por Martha Conceição Gambini. São Paulo: Paz e Terra, 1990. p. 16.

24

de forma mútua (VEO A SATÁN..., 1999). O ciclo de violência mimética se interrompe

através do assassinato ou expulsão coletiva do selecionado; livre do elemento que

abalava o sistema, a comunidade tem sua ordem restabelecida ou fundada, e a paz

prevalece, graças ao “mecanismo vitimário”. Até que nova crise se desenvolva...

25

SEGUNDO CAPÍTULO: A CHACINA DE MATUPÁ.

2.1 Matupá na década de 1990.

Matupá é um município criado pela lei estadual n. 5.317/1988, localizado em

região amazônica, no Estado de Mato Grosso, dista 700 quilômetros de Cuiabá. Fruto

do Plano de Integração Nacional – elaborado na década de 1960 para distribuir a mão

de obra agrária a lugares “ociosos”, e implementado a partir da década seguinte –, na

área em que se situa, viviam primordialmente os índios Panará, também conhecidos

como Krenakore ou “índios gigantes”. Nos anos de 1970, migrando para trabalhar nas

obras da rodovia Cuiabá-Santarém – trecho da nomeada BR 163, cuja pavimentação

nunca foi concluída –, os “homens brancos” levaram consigo suas doenças e seus

conflitos por terras; pouco mais tarde, quando da descoberta de diamantes e ouro na

extensão do Rio Peixoto de Azevedo, mais de dois mil garimpeiros foram atraídos

para a localidade. Os índios, já adoentados e com a população original bem reduzida,

foram transferidos pelos irmãos Villas-Bôas ao Vale do Xingu. Após a desocupação

indígena, fazendeiros, garimpeiros e mineradoras chegaram à região derrubando

mata e poluindo rios15. No ano de 1984, a Agropecuária Cachimbo, empresa do Grupo

Ometto, projetou a cidade e colonizou a região para formar um polo de exploração de

sua atividade16; entretanto, o brilho do ouro ofuscou os planos da agropecuária.

A população de Matupá era flutuante; composta, nos anos 1980/1990, por em

torno de quinze mil colonos provenientes de diferentes regiões do país, o número de

habitantes alterava-se com a entrada e saída de garimpeiros nômades que por lá

passavam em busca de ouro17. Intenso trânsito de forasteiros e constantes casos de

estupros, assaltos e assassinatos importunavam os habitantes fixos; conforme relato

15 Informações retiradas do documentário O Brasil grande e os índios gigantes, disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=dlRTiHt9fsc>. Acesso em: 20 set. 2013. 16 Informações extraídas do sítio virtual da Prefeitura de Matupá.: <http://www.matupa.mt.gov.br/>. Acesso em: 5 out. 2013. 17 SOUZA, L. C. D. de. et all. Caracterização dos moradores do município de Matupá. Caminhos da geografia, Uberlândia, v. 8, n. 22, p. 97-104, set/2007. Disponível em: <http://www.seer.ufu.br/index.php/caminhosdegeografia/article/download/15635/8844>. Acesso em: 5 out. 2013.

26

de morador, todas as famílias locais possuíam uma história triste a esse respeito, e

era comum encontrar cadáveres pelas ruas18. Como se não bastasse, viviam todos

frequentemente acometidos por maleita, em estrutura precária e distante dos grandes

centros. A violência era rotina na região, pequenos desentendimentos eram

suficientes para embates mortais. Os corpos das vítimas de assassinato, quando

descobertos apenas depois de entrarem em decomposição, eram enterrados no local

onde encontrados. Conforme notícia veiculada pelo Jornal do Brasil publicado em 24

de março de 1991, o promotor Luiz Alberto Esteves Scaloppe estimava que, dos 123

mortos enterrados em Matupá no ano anterior, 70% teriam sido assassinados, 10%

seriam vítimas de acidentes de trabalho nos garimpos e o restante teria falecido em

decorrência de malária19.

Aliás, de uma forma geral, o Brasil vivia tempos difíceis. Em 1990, a forte

inflação irradiava seus efeitos pelo país; em uma tentativa fracassada de conter a

arrocho monetário, o Governo Federal anunciou, no dia 16 de março daquele ano –

um dia depois da posse de Fernando Collor –, o bloqueio, por 18 meses, dos saldos

de contas correntes, poupança e outras aplicações que fossem superiores à quantia

de cinquenta mil cruzados novos – o equivalente a seis mil reais atuais20. Além disso,

de acordo com os autos do Pedido de Intervenção Federal n. 114-5, interposto, em

1991, perante o Supremo Tribunal Federal, pelo então Procurador-Geral da República

em face do Estado do Mato Grosso, também os estados federados se encontravam

com dificuldade para pagar seus funcionários públicos. Quando proposta a ação

interventiva, o funcionalismo do Mato Grosso não era remunerado havia três meses,

repartições fechavam, e máquinas, veículos e serviços públicos estavam sendo

paralisados.

A delegacia de Polícia Civil do município era tão desaparelhada que a

comunidade doou uma camioneta Rural, a qual, entretanto, terminou “encostada por

falta de condições de uso”21. O delegado confirmou: a sede de Matupá realmente não

18 Revista Veja. Fiz uma reportagem. Publicado em 27/02/1991. Disponível em <http://veja.abril.com.br/acervodigital/>. 19 MOTA, Paulo. Desgraça de Matupá é ouro e chacina. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 mar. 1991. Brasil. p. 14. 20 CARVALHO, Carlos Eduardo. O fracasso do Plano Collor: erros de execução ou de concepção? ECONOMIA. Niterói. Vol.4, No.2, p.283-331, Julho-Dezembro 2003. Disponível em: <http://www.anpec.org.br/revista/vol4/v4n2p283_331.pdf>. Acesso em: 6 out. 2013. 21 Revista Veja, loc. cit.

27

possuía viatura e contava com apenas quatro agentes policiais22. Por fim, a debilidade

do Estado sugeriu que funções suas fossem privatizadas; a privatização da violência,

disseram os governadores atuantes à época no país, foi reflexo de problemas

estruturais cuja responsabilidade pertencia à União23. Fosse como fosse, o certo é

que ninguém tomava conhecimento do que ocorria em Matupá, que sequer tinha DDD

e inexistia em muitos mapas.

2.2 A Chacina de Matupá – Todos contra três24.

Na noite de 22 de novembro de 1990, em Matupá, no interior do Mato Grosso,

falta luz na cidade, que é abastecida por energia gerada a diesel. No breu, em horário

aproximado das vinte horas, os irmãos Arci e Ivanir Garcia dos Santos,

acompanhados de Osvaldo José Bachmann, invadem a casa de Carlos Mazzonetto,

dono de um garimpo, e rendem cinco crianças e duas mulheres – sendo uma delas

gestante, todos membros da mesma família. Os invasores são três forasteiros de

passagem, vindos do Paraná. A empregada dos Mazzonetto aproveita que não foi

vista pelos assaltantes e foge para buscar socorro. Policiais civis e militares cercam a

residência; aproximadamente trezentos populares, empunhando armas, dirigem-se ao

local. Por volta das vinte horas e trinta minutos, inicia-se a negociação com os

assaltantes, que exigem cinco milhões de cruzados novos em espécie, armas

municiadas e um carro para fuga, além da garantia de que não serão perseguidos.

Com a chegada do proprietário da casa, todos unem esforços para cumprir as

determinações dos invasores; entretanto, o máximo que conseguem arrecadar são

quinhentos mil cruzados novos e um quilo de ouro. Assim, é sugerido aos três que,

em troca dessa quantia, das armas e de um veículo Del Rey, libertem as crianças com

22 MATO GROSSO. Polícia Civil do Mato Grosso em Matupá. Relatório do caso Chacina de Matupá. Matupá, RS, 1991. Disponível em <http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/1291_114_relatorio.pdf>. Acesso em 6 out. 2013. 23 SOUZA, Josias de. República Federativa de Matupá. Folha de São Paulo, São Paulo, 15 abr. 1991. Opinião, p. 2. 24 A narrativa aqui realizada busca sincronizar todos os relatos pesquisados e é estruturada, principalmente, pelos seguintes documentos: reportagens A morte no fogo (revista Veja, 06/7/1991); Fiz uma reportagem (revista Veja, 27/02/1991); Morte em Matupá é o último filme brasileiro (Folha de S. Paulo, 29/03/1991); Desgraça de Matupá é ouro e chacina (Jornal do Brasil, 24/03/1991) e relatório policial do caso Chacina de Matupá.

28

a gestante, mantendo como refém a outra mulher, mas a proposta é recusada.

Prosseguem-se as tratativas madrugada adentro; depois, continuam pela manhã do

dia seguinte.

São cerca de nove horas do dia 23, quando Edyr Bispo dos Santos, capitão da

Polícia Militar lotado no município de Alta Floresta – há 130 km de Matupá –, chega

ao local, acompanhado de mais agentes de segurança pública. Comandados a partir

daí pelo capitão Edyr, os policiais invadem a residência para, mais de perto, tentar

sucesso no acordo com Osvaldo, Arci e Ivanir. Do lado de fora da casa, a multidão

excitada só aumenta, e o ódio que a toma também; os assaltantes já sentem medo de

ser linchados. Um repórter grava Ênio Carlos Lacerda, delegado de Peixoto de

Azevedo, e o capitão combinarem em baixo tom de voz a execução dos três homens.

À pergunta dos soldados se iriam “fazer” – expressão que significaria matar – os

assaltantes, Ênio responde: “depois, mais na frente nós fazemos”25.

O cinegrafista amador Lino José Dürrewald filma a operação. Edyr diz a aos

invasores: “Eu te dou garantia. Eu retiro esse pessoal daí. Eu te levo para lá, rapaz.

Seria muita covardia matar vocês agora. [...] Larga de bobagem, rapaz, você me

entrega a família e sai vivo”26. Os ladrões, primeiro, aceitam trocar de reféns, liberam

a família de Carlos Mazzonetto e, no lugar deles, fica Adário Martins de Almeida –

prefeito da cidade, e Adele Schwalen – uma freira alemã que cuida dos infectados por

malária. Mais negociações. Após cerca de quinze horas de tratativas, os assaltantes

se rendem e são conduzidos ao carro Opala do prefeito, enquanto o povo grita, em

coro ritmado, “Mata! Ma-ta! Ma-ta...!” No momento em que estão sendo colocados

pelos policiais dentro do veículo, ouvem-se tiros e todos se agacham assustados –

inclusive os agentes da polícia, mas ninguém é acertado27. A freira Adele questiona

onde estão os quinhentos mil cruzados novos prometidos ao trio; não lhe dão ouvidos.

A filmagem de Lino é cortada nessa parte.

25 Trecho de voto proferido pelo desembargador do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, Antônio Bitar Filho (p. 3), em sentença datada de 04 de abril de 2001, nos autos do recurso em sentido estrito n. 1.290/99, interposto por Ênio Lacerda contra o Ministério Público. 26 Áudio e vídeo de reportagem televisiva transmitida pela Rede Record em 2011; trechos: 00'00"38 a 00’00’’46, e 00’00’56 a 00’00’59. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=iVpMvMDNo5w>. Acesso em: 6 out. 2013. 27 Conforme imagens transmitidas pela Rede Record em 2011; trecho: 00'01"13. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=iVpMvMDNo5w>. Acesso em: 6 out. 2013.

29

Durante a manobra de libertação dos reféns, atuaram vinte e quatro policiais;

na continuação, atuam cinco. São, aproximadamente, onze horas da manhã. Um

integrante da comunidade dirige o carro do prefeito, transportando os assaltantes e

um soldado. À frente, levando quatro policiais militares, uma viatura do município de

Colider faz a escolta. Antes da partida, o prefeito Adário – o qual ficou na casa dos

Mazzonetto – acionara um mecanismo de seu veículo, fazendo com que o combustível

fosse interrompido. O Opala para de funcionar algumas quadras distantes da casa

invadida. Parte da multidão os alcança; a polícia transfere os três para o Voyage de

um sujeito que passa no momento e segue em direção ao aeroporto. Os assaltantes

devem ser embarcados rumo a outra cidade, já que a delegacia de Matupá é uma

casa residencial comum e não lhes oferece segurança em relação à massa sedenta

por “justiça”. A filmagem reinicia, os policiais da escolta aguardam no aeroporto

matupaense, onde o avião aterrissa. Novo corte. Agora a gravação mostra os presos

deitados e feridos; um deles, Arci, está respondendo o interrogatório de alguém28:

- Por que vocês assaltaram? - Por falta de dinheiro – disse o assaltante. - É o seu primeiro assalto? - É a primeira vez. - Vocês iam matar os reféns? - Não, eu estava até com dó das crianças. - Toda a população está revoltada. O que vocês estão pensando? - Estou com medo de morrer. - E vocês não pensaram nisso antes de fazer o assalto? Não pensaram

em trabalhar para ganhar dinheiro, ao invés de roubar a casa de uma pessoa honesta?

- A firma em que eu trabalhava não me pagava tinha dois meses.

Alguém repreende o interrogado por falar com o rosto voltado para o chão:

“Fala para a câmera, vagabundo!” Outro preso é levantado por um policial que o

segura pelo colarinho da camisa ensanguentada. Ouve-se “Mata!”, “Vamos linchar!”

Arci leva um chute do soldado, e os três ladrões são empurrados de volta ao Voyage.

A polícia não quer ou não consegue embarcá-los na aeronave. Câmera de Lino

Dürrewald desligada; retoma-se a procissão: “escolta”, carro condutor e perseguidores

seguem em direção à BR 163. No trevo da rodovia Cuiabá-Santarém, um veículo se

28 A MORTE no fogo. Veja, São Paulo, ed. 1.168, ano 24, n. 6, pp. 77-78, 6 fev. 1991. Disponível em <http://veja.abril.com.br/acervodigital/>.

30

atravessa, obstando a passagem do carro que conduz os presos, e o povo impede o

retorno dos quatro policiais que estão na viatura. Para o momento seguinte há conflito

de relatos: conforme o relatório policial, os assaltantes, vendo-se sem escolta e

cercados pela massa enfurecida, teriam começado a gritar pedindo aos condutores

que lhes fossem retiradas as algemas, a fim de que pudessem correr; sem as

algemas, Arci, Ivanir e Osvaldo teriam fugido para o lado oposto ao qual, em tese,

correram soldado e motorista. Entretanto, segundo outros relatos, a polícia decide

espontaneamente retirar as algemas dos presos e os mandar correr.

De acordo com a segunda versão, a polícia teria dado um tiro na cabeça de

cada um dos dois primeiros que tentaram escapar por entre o povo. Um deles morre,

seus miolos vazam pela racha provocada pelo projetil; o outro agoniza; o terceiro a

correr é alvejado nas pernas e na coluna. De marginais, passaram a vítimas. O

cinegrafista amador volta a filmar. Não há mais polícia, foram embora. O povo arrasta

e empilha os três homens, um popular pisoteia o pescoço de Ivanir – aquele que

agonizava, terminando com a vida que estava por um fio. Arci sobrevive para a tortura

que virá. Um sujeito chuta o trio até lesionar o pé; Valdemir, o “Padeirinho”, crendo

estar em frente aos mesmos homens que, dias atrás, invadiram sua casa e estupraram

sua esposa, aproxima-se da pilha humana e sobre ela joga gasolina. Ao incentivo do

coro que diz “toca fogo, toca fogo” e “queima, queima”, engrossado por vereadores

presentes, alguém ateia fogo aos corpos. Arci dá um sobressalto desesperado,

agitando bruscamente as pernas no ar, a massa bate palmas e brada “Viva Matupá!”,

“Viva a Polícia!”

A vítima resiste, intercalando gritos e gemidos. O diálogo subsequente teve sua

degravação publicada na revista Veja29:

- Ai, meu pai – murmurou Arci. - Quem tem um revólver aí? Ele já sofreu o suficiente – disse alguém. - Não, deixa morrer devagarzinho – retrucou outro. - Meu pai do céu. Deixa, pai, deixa que eu morra. Deixa, paizão – implorou o assaltante. - Pede perdão, rapaz – ordenou um homem. - Perdão – obedeceu Arci. - Pede perdão para Deus. - Perdão, por tudo o que fiz.

29 A MORTE no fogo. Veja, São Paulo, ed. 1.168, ano 24, n. 6, p. 78, 6 fev. 1991. Disponível em <http://veja.abril.com.br/acervodigital/>.

31

- Quer ir para o hospital? Se você ficar bom, vai fazer outra coisa dessas? – indagou o mesmo homem. - Êh, gente, para com isso – pediu uma mulher. - Quem é o mandão do crime? Fala o nome dele – prosseguiu um morador, cuja aba do boné aparecia no lado esquerdo da tela. - É da polícia – garantiu o bandido. - Que polícia? Qual o nome? - Neco – disse Arci. - Deco? Como é o nome? Neco? É da polícia? - É. - É daqui de Matupá? - Não. Terra Nova. - É polícia civil ou militar? O bandido não conseguiu responder. - Você tem que conversar enquanto é tempo. Se não falar, ninguém o leva para o hospital – disseram para o assaltante. Os moradores concluíram que o mandante chamava-se Neco e era policial civil da cidade vizinha de Terra Nova. - Colabora com a gente – recomeçou o homem de boné. - Agora não adianta. Tenho mais é que morrer – afirmou o assaltante.

Dürrewald, o cinegrafista, desliga a câmera. Cansado, no momento em que os

linchadores resolvem separar o sobrevivente dos corpos das outras duas vítimas,

pensa em desistir da gravação; mas volta a filmar a tempo de capturar mais uma

pergunta: “Se tivesse uma chance, você ia trabalhar?”30 Não há mais chance, a vítima

sabe e se limita a murmurar. Está apenas de cueca, pois suas calças queimaram

completamente, revelando as joias antes guardadas nos bolsos. Um vereador recolhe

os adornos. Após vinte minutos resistindo ao fogo, finalmente falece.

Na delegacia do município, há aproximadamente seiscentos metros dali, o

delegado – um homem que, há nove anos, apoia-se em muletas desde que um tiro o

aleijou – vira surgir uma espiral de fumaça, entretanto pensou que a população,

frustrada por não pegar os bandidos, havia posto fogo em algum objeto; quando um

cidadão lhe conta o que ocorreu, envia dois agentes policiais ao local, mas estes

chegam tarde e, constatando a morte dos três linchados, decidem chamar Carlos

Casanova, um fotógrafo de 25 anos que, em Matupá, faz as vezes de legista.

30 A MORTE no fogo. Veja, São Paulo, ed. 1.168, ano 24, n. 6, p. 78, 6 fev. 1991. Disponível em <http://veja.abril.com.br/acervodigital/>.

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TERCEIRO CAPÍTULO: A CHACINA DE MATUPÁ À LUZ DOS

ESTEREÓTIPOS PERSECUTÓRIOS.

3.1 Efeitos de um Estado distante – a crise instalada (1ª estereótipo).

Crise e ordem são opostos, e Matupá nasceu em meio à crise. Oriri é um

vocábulo latino que significa “nascer, sair, levantar-se, surgir”, desse termo vem, por

exemplo, “origem”. Ainda no latim, de oriri surge ordiri, “começar”, e, deste, ordo,

“arranjo de elementos feito conforme certos critérios”, “exigência de disposição

regrada de elementos, comando”31. Ao assumir, em 1984 a colonização da região, o

Grupo Ometto protocolou junto ao INCRA um projeto urbanístico que visava

transformar Matupá em um polo para a atividade agropecuária32. Embora o projeto

estivesse em harmonia com as intenções que o Governo Militar possuía de tornar

produtivos os espaços “vazios” do Brasil, foi ignorado que na região preexistia uma

crise surgida nos idos de 1970, quando descoberto ouro no rio Peixoto de Azevedo,

um dos limites do município.

O Plano de Integração Nacional mal havia sido lançado e já dava sinais de

fracasso, pondo às claras a impotência estatal perante aquele território. A descoberta

do mineral dourado e precioso tornou-se semente da desordem, alterando o foco dos

colonos e fazendo com que outros sujeitos se dirigissem aos arredores do rio já com

a intenção de garimpar. O ouro – um dos principais objetos de desejo do ser humano

–, abundante no início, naturalmente foi-se escasseando. O desejo mimético

despertado em razão desse mineral dominou os habitantes do local, e o esgotamento

sistemático do produto levou os garimpos a se espalharem cada vez mais pela cidade

em busca de novas minas. Essas circunstâncias obstruíram a tentativa de

organização trazida pelo projeto urbanístico de Matupá; assim, quem migrara

seduzido por folhetos distribuídos no interior do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e

31 ORIGEM das palavras organização e ordem. Origem da palavra. Disponível em: <http://origemdapalavra.com.br/palavras/ordem/>. Acesso em: 5 out. 2013. 32 PREFEITURA DE MATUPÁ. História do município. Disponível em: <http://www.matupa.mt.gov.br/>. Acesso em: 5 out. 2013.

33

Paraná, estampados com promessas de desenvolvimento e segurança33, logo viu

seus ideais frustrados.

Quando se lida com objetos de desejo mimético, os impeditivos fazem parte do

jogo: obviamente, homens armados protegiam as caixas de garimpo, onde o ouro

extraído era despejado34. Onde há obstáculo, há escândalo. Aliás, as armas de fogo

não eram exclusividade desses guardiões, na época em que ocorreu a chacina,

comentava-se que cerca de 90% dos moradores de Matupá andavam armados. A

riqueza da região provocava grande fluxo de forasteiros na cidade, os assaltos eram

constantes, assim como os assassinatos; mas os crimes não eram solucionados, tanto

em razão do trânsito intenso de sujeitos que partiam sem que se soubesse deles mais

do que o apelido, quanto porque o município dispunha de apenas quatro agentes

policiais lotados em uma delegacia desaparelhada. A diferença entre os policiais e os

civis de Matupá se limitava ao uso de uniforme por aqueles; o porte de arma, que,

pela noção convencional, caracteriza um policial, era um ponto de semelhança entre

os dois grupos, e não de distinção. Estavam iguais, portanto, como ficam os homens

nas “crises indiferenciadoras”. O baixo efetivo policial diluía a autoridade dos agentes

em meio à população de pelo dez mil habitantes. O próprio Estado distante, que em

teoria representavam, parecia ter cortado relações e, indiretamente, os deposto de

seus cargos: não bastasse a falta de assistência – sequer possuíam viatura –, quando

a notícia da chacina veio à tona, há três meses não eram remunerados. Nos dias de

hoje, muito se comenta sobre a estabilidade dos servidores públicos. Estabilidade é

ordem, a garantia de boa fluência das relações sociais. O que falar de um Estado

inadimplente até mesmo frente a seus funcionários?

Os agentes policiais estavam tão vulneráveis quanto os civis, pois vivenciavam

os problemas da comunidade da mesma forma, com a mesma impotência. Quando,

no dia 22 de novembro de 1990, a casa dos Mazzonetto foi invadida, quem chamou a

polícia da região talvez nutrisse alguma fustigada esperança no ordenamento legal,

mas, para garantir que haveria a “devida” repressão à conduta dos três assaltantes,

os moradores da cidade foram pessoalmente, com escopetas e pistolas, reforçar o

33 MOTA, Paulo. Desgraça de Matupá é ouro e chacina. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 mar. 1991. Brasil. p. 14. 34 MOTA, Paulo. Desgraça de Matupá é ouro e chacina. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 mar. 1991. Brasil. p. 14.

34

corpo policial tão minguado quanto irrespeitável. Policiais tão indignos de respeito e

desprovidos de autoridade, que, ao conduzirem os invasores de dentro da casa para

o Opala, precisaram desviar dos tiros endereçados de um jeito “meio torto” aos

ladrões. Parece que se os projetis atingissem os policiais, bom, seria porque estavam

na frente, paciência.

Na realidade, diversas crises contribuíram para o colapso de Matupá nos anos

1990. Mesmo a Guerra do Golfo – a qual, certamente, pode ser explicada pelo desejo

mimético que circunda o petróleo, o “ouro negro” – produzia seus efeitos nessa

comunidade isolada35. No horário em que os três forasteiros renderam mulheres e

crianças na casa invadida – aproximadamente às 20 horas –, a energia da cidade,

gerada a diesel, já havia sido cortada, por medida de racionalização dos derivados de

petróleo, em decorrência daquela guerra distante. No cenário nacional, o Plano Collor,

implementando medidas polêmicas para contornar a forte inflação, causava seus

estragos. Com o congelamento da liquidez monetária, as indústrias do país reduziam

a produção, demitiam seus funcionários, enfim, arranjavam-se como podiam36. O

assaltante Arci, por exemplo, ao ser interrogado por um popular, alegou que há dois

meses não era remunerado pela empresa em que trabalhava; efeitos da crise remota.

Mas a recessão econômica vivida pelo país, e a Guerra do Golfo eram problemas

sobre os quais os habitantes de Matupá não poderiam agir, de forma que suas

atenções voltaram-se para as questões locais, as quais estavam ao seu alcance.

Todos os espectros de poder estatal não vingaram para os matupaenses: a

Agropecuária Cachimbo, a qual ficara incumbida de colonizar aquela localidade nos

moldes e interesses do Governo Militar, nada pôde contra a hipnose violenta do ouro;

a malária, que colecionava vítimas – e também era ela colecionada pelos sujeitos que

sobreviviam a mais de uma –, não podia ser tratada no posto de saúde, porque este

estava fechado37. E é na omissão do Estado que a massa improvisa.

35 ALMEIDA, Denise de. A guerra transmitida pela TV. Hoje na história, 17 jan. 2009. Disponível em: <http://www.jblog.com.br/hojenahistoria.php?itemid=11112>. Acesso em: 19 out. 2013. 36 DE TONI, Miriam. Plano Collor e trabalhadores: um cenário de cores incertas. Indicadores Economicos, Porto Alegre: FEE, v. 18, n. 1, ABR/90. p. 87. Disponível em: <http://revistas.fee.tche.br/index.php/indicadores/article/view/296/512>. Acesso em 5 Out. 2013. 37 MOTA, Paulo. Desgraça de Matupá é ouro e chacina. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 mar. 1991. Brasil. p. 14.

35

Já demonstradas inúmeras falhas estruturais da cidade, resta-nos ainda

analisar o comportamento de suas autoridades políticas, do que se pode extrair

importantes revelações. Em 1988, Matupá teve seu status de município reconhecido,

passando a possuir eleições para prefeito e vereadores; entretanto, assim como o

projeto urbanístico da cidade não foi capaz de desconstituir o caos já instalado

naquelas terras, investir em cargo político alguém cuja conduta se consolidou

desregrada – ainda que essa investidura ocorra de forma legal – não é o mesmo que

lhe conceder noção de ordem. Os munícipes, até por força das circunstâncias, tinham

o espírito do improviso; logo, aqueles escolhidos para ser agentes políticos, cidadãos

comuns de Matupá que eram até então, naturalmente pautavam seus atos na

conveniência e nos favores, não na lei. O Capitão Edyr, o qual conduziu com sucesso

a operação que libertou os reféns, declarou à câmera de Lino Dürrewald: “Agir com

cautela. Há vidas humanas em jogo. Uma questão de nobreza, sou pai de família.

Trata-se da honra do prefeito, etc”38. O que um policial lotado em Alta Floresta deve à

honra do prefeito de Matupá? Não haveria de ser nada que tivesse respaldo legal.

Cruzando essa frase com a informação de que o capitão teria combinado com seus

soldados a execução posterior dos bandidos, a interrupção do combustível do Opala,

provocada pelo prefeito Adário, adquire um viés ainda mais suspeito. Proatividade

clandestina. Matupá era visivelmente carente de regramento, e se o contrário de

ordem é crise, eis o que vivia o município.

3.2 A ameaça forasteira contra a família nuclear matupaense – “crime

indiferenciador” e “marcas vitimarias” (2º e 3º estereótipos).

Violência disseminada em níveis insuportáveis. Sede de vingança sempre

latente. O sangue dos matupaenses fervia no “todos contra todos”. O fato ocorrido nos

dias 22 e 23 de novembro de 1990, por suas características, revelou à população uma

oportunidade de se unir para canalizar, contra os assaltantes, sua agressividade até

então aplicada de forma dispersa. Osvaldo, Arci e Ivanir não poderiam ter feito escolha

38 JABOR, Arnaldo. Morte em Matupá é o último filme brasileiro. Folha de São Paulo, São Paulo, 29 mar. 1991. Brasil, p. 1.

36

pior quanto às vítimas. Carlos Mazzonetto, o proprietário da casa assaltada, tinha

migrado de Frederico Westphalen, no Rio Grande do Sul, há três anos – em meados

de 1987, antes da emancipação de Matupá –, comprara um sítio na cidade, onde

descobriu um veio de ouro, que passou a explorar com alguns conhecidos 39 .

Simbolizava perfeitamente o colono trabalhador, chegado do Sul do país em busca de

melhores condições de vida, e com o qual todos os munícipes que se considerassem

homens “de bem” poderiam se identificar. Para completar, fazia doações às obras de

caridade da região, um estímulo à empatia. Carlos era casado com Eleni, com quem

teve quatro filhos, constituindo uma família nuclear – aquele tipo clássico, formado por

pai, mãe e prole40. Afetá-los foi um golpe em uma das únicas noções de ordem

existentes em Matupá. A família, instituição tradicional que figura como a menor célula

da sociedade – sua base –, é um ambiente que pressupõe organização e estabilidade,

e no qual se cultivam valores. Por isso, condutas praticadas contra famílias sugerem

vínculo à crise – desrespeito, desordem – e tendem a gerar forte comoção social.

Carlos Mazzonetto, por estar do lado de fora da casa, à vista da multidão,

mantinha em todos a lembrança de que era um pai de família injustamente ameaçado.

Dentro da residência, estavam sua esposa, os quatro filhos – com idades entre um e

quatorze anos –, e dois sobrinhos – um adolescente e uma mulher grávida. Os

assaltantes gritavam com os reféns, dizendo que matariam uma criança por vez. O

fato de o crime envolver crianças e uma grávida inflou ainda mais a indignação

popular, pois seres dessas qualidades além de parecerem especialmente frágeis,

remetem à ideia de recomeço, esperança e continuidade familiar. A conduta dos três

forasteiros representou, assim, um “crime indiferenciador”, capaz de conduzir todos

os membros da multidão ao juízo unânime de abalo a um pilar social.

Para desencadear o assassinato coletivo, conforme já foi visto, não é

necessário que tenha ocorrido um “crime indiferenciador”; faltando elementos

objetivos de responsabilidade, o povo poderia criá-la por meio do pensamento mágico.

Ou, tendo ocorrido o crime, este poderia ser facilmente imputado a quem não o

39 MARCELO, Antônio. Moradores de Matupá apontam líderes da chacina dos ladrões. O Estado de São Paulo, São Paulo, 7 fev. 1991. Polícia, p. 24. 40 LEGNANI, V. N. et all. Família Nuclear: um ideário de proteção contra a violência. Anais do XV ENABRAPSO. Macéio, 2009. Disponível em <http://www.abrapso.org.br/siteprincipal/images/Anais_XVENABRAPSO/276.%20fam%CDlia%20nuclear.pdf>. Acesso em 5 out. 2013.p. 2.

37

cometeu, pois, muitas vezes, para lançar a massa contra alguém, basta a acusação,

uma vez que a horda se alimenta das informações produzidas por ela mesma (O

BODE..., 2004). Entretanto, no caso analisado nesse trabalho, os “bodes expiatórios”

realmente praticaram o crime: invadiram a residência de uma família nuclear,

renderam os membros e ameaçaram-nos por cerca de quinze horas. Se uma

acusação baseada em critérios objetivos – fatos possíveis – é suficiente para

tranquilizar a massa quanto à justiça de sua perseguição, ainda que se fundamente

em mentiras; quando o povo assiste ao fato, vê com os próprios olhos os realizadores,

muito mais facilidade tem de se juntar para perseguir.

De acordo com o noticiado na época, os ladrões vinham do Paraná41, errantes

que estavam de passagem por Matupá. Não pertenciam àquelas terras, nem tinham

o objetivo de pertencer; não possuíam vínculos positivos com ninguém na cidade. Ao

entender dos comunitários, eles representavam uma classe de pessoas que impedia

a paz, a ordem e o progresso da região; forasteiros, como muitos outros que por lá

transitavam sem contribuir com nada, sem firmar qualquer tipo de compromisso com

a comunidade, deixando apenas rastros indesejados: mortes, assaltos e estupros.

Hoje, inclusive, é possível afirmar que herança dos forasteiros é genética, muitos dos

jovens de Matupá não conhecem seus pais, são frutos dessas aventuras nômades42.

A população sentia que, pela própria condição aleatória dos forasteiros, eles

jamais fariam parte do sistema local, a estabilidade é requisito básico às estruturas.

Esse não pertencimento à comunidade, o fato de serem forasteiros, os diferenciava,

essa era a “marca vitimaria” dos três transgressores. Embora o número de garimpeiros

itinerantes no município fosse elevado, a autonomia e fluidez que lhes eram

características impediam que se tornassem um grupo. Talvez os nômades nem

percebessem, mas a falta de união se consolidava para eles como fator de

vulnerabilidade. Conforme Girard43:

41 TURCATO, Márcia. Filme revela chacina em Mato Grosso. O Estado de São Paulo, São Paulo, 31 jan. 1991. Polícia, p. 21. Disponível em <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19910131-35571-nac-0021-999-21-not>. Acesso em 5 out. 2013. 42 CASARA, Marques; CARDEAL, Tatiana. Castelo de Sonhos. Na mão certa, São Paulo, n. 2, p. 63-69, set. 2008. Disponível em: <http://www.namaocerta.org.br/revista/02/WCF_Reportagem.pdf>. Acesso em 6 out. 2013. 43 GIRARD, René. O bode expiatório. Traduzido por Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. p. 55.

38

A representação persecutória conserva certas características de uma representação coletiva no sentido de Durkheim. Vimos no que consiste esta crença. Vastas camadas sociais se encontram às voltas com flagelos tão terríveis como a peste ou por vezes com dificuldades menos visíveis. Graças ao mecanismo persecutório, a angústia e as frustrações coletivas encontram uma satisfação vicária sobre vítimas que facilmente provocam a união contra elas, em virtude de sua pertença a minorias mal integradas etc.

Os moradores de Matupá, por mais desordenados que fossem, possuíam uma

certa estabilidade como diferencial. Eram habitantes fixos, conheciam-se e, com isso,

continham um potencial colaborativo. Os homens que renderam a família Mazzonetto

eram dotados da fragilidade conveniente aos perseguidores; o laço mais forte de que

gozavam na cidade estava neutralizado – Arci e Ivanir eram irmãos, talvez Osvaldo

de ambos, mas todos estavam encurralados, ninguém os vingaria.

3.3 Linchados e queimados – o assassinato coletivo (4º estereótipo).

Quando, cercando o imóvel, a população passou a bradar “mata, mata”, a

sentença estava prolatada. O Poder Judiciário em Matupá – que até 2004 pertencia à

comarca de Peixoto de Azevedo44 – era falho como qualquer outra sombra de aparato

estatal disponível na região, e, na omissão do Estado, o povo faz do seu jeito. Depois

de aproximadamente quinze horas de negociação, os assaltantes se entregaram. Foi

tempo mais do que suficiente para ficar muito bem definido que eles eram os “outros”.

Estavam agora desarmados e haviam libertado os reféns sem tê-los ferido; no entanto,

isso não importou à população, já convicta do potencial lesivo daqueles homens.

É esse o momento no qual os criminosos começaram a se transmutar em

vítimas; iniciou-se o processo que culminaria em um castigo completamente

desproporcional. A comunidade matupaense finalmente iria dar sua resposta a todos

os forasteiros, utilizando-se da pele de apenas três. Não há dúvidas de que Arci, Ivanir

e Osvaldo cometeram uma transgressão; no entanto, isso não anula a possibilidade

de enquadrá-los também como bode expiatórios. Perseguidores e simpatizantes a

44 MATO GROSSO, Brasil. Lei complementar n. 191, de 25 de novembro de 2004. Cria a comarca de Matupá. Diário Oficial: Cuiabá, MT, p. 1-3, 25 de novembro de 2004.

39

perseguições constantemente argumentam em favor do uso de medidas extremas

como retribuição e prevenção a crimes, desdenhando das tentativas de bem dosar a

resposta aos delitos como se fosse algo piegas, frouxo, coisa do “pessoal dos direitos

humanos”. A linha que distingue criminoso e vítima expiatória não é tão sensível a

essas opiniões, o que a posiciona é um misto de intranscendência da pena com

proporcionalidade. Quando a punição é desproporcional, provavelmente o é por

acúmulo da culpa alheia, da transcendência. Nessas circunstâncias, alguém que é

punido por algo que não cometeu, está investido na figura de “bode expiatório”.

Os três errantes personificaram a causa do caos na cidade, apesar de a crise

ser obviamente grande demais para ter sido provocada pelos reles mortais que

provaram ser. O crime fora praticado contra os Mazzonetto, os quais, ao que se sabe,

não participaram do linchamento. Os indivíduos que compunham a multidão não foram

diretamente atingidos pelo crime ocorrido, mas substituíram desafetos particulares

pelos invasores; a paixão que moveu o povo ao assassinato dos forasteiros foi

recheada por lembranças pessoais de crimes passados, cometidos por outros sujeitos

que não aqueles três. É isso que se depreende do relato que Lino Dürrewald fez sobre

Matupá e a chacina, para a revista Veja45:

É difícil achar uma família que não tenha uma história triste de assassinato ou assalto a um parente ou vizinho para contar. Não é raro andar pelas ruas da cidade e encontrar um cadáver. Só posso pensar nisso para explicar por que somente eu e aquela senhora tentamos impedir a chacina. [...] Na primeira missa de domingo, o padre fez um sermão condenando o crime, dizendo que ninguém tem o direito de tirar a vida de outra pessoa. Mas não chegou a ser um sermão indignado, de quem está com o chicote na mão. Ele conhece a realidade local, é ele quem enterra pais e mães de família vítimas dos assaltos e estupros.

Diferentes agressores haviam provocado, ao longo do tempo, em cada

indivíduo do município, o desejo de vingança. Sem ter aqueles ao seu alcance, o povo

de Matupá terminou os substituindo, pois “a violência não saciada procura e sempre

acaba por encontrar uma vítima alternativa”46. A vítima expiatória é eleita por puro

mimetismo (VEO A SATÁN..., 1999), ou seja, não há acordo prévio, concordâncias

45 Revista Veja. Fiz uma reportagem. Publicado em 27/02/1991. Disponível em <http://veja.abril.com.br/acervodigital/>. 46 GIRARD, René. A violência e o Sagrado. Traduzido por Martha Conceição Gambini. São Paulo: Paz e Terra, 1990. p. 14.

40

explícitas; o número de perseguidores e sua fúria estimulam naturalmente a adesão

de novos membros à massa, pois, conforme explica Milton Gustavo Vasconcelos, “O

simples fato de ser perseguido assina a veracidade das acusações e legitima toda

sorte de violência”47. Então, quando no relatório policial é descrito que “a situação se

tornava, a cada minuto que passava, insustentável, com a multidão armada

aumentando a todo instante”48, está-se a falar do mimetismo provocado pelo primeiro

grupo que cercou a casa. Dessa maneira, a comunidade se uniu gradativamente,

transformando o “todos contra todos” no “todos contra um” – nesse caso, três.

Se é verdade que Edyr, capitão da Polícia Militar, e o prefeito Adário

contribuíram de forma velada para o assassinato coletivo, fizeram-no aproveitando-se

da ira já encrustada no povo; para atingir seu objetivo sem sujar as mãos, teriam

utilizado como ferramenta “uma massa eminentemente manipulável, ou seja, de

pessoas suscetíveis de se deixar prender no sistema da representação persecutória,

pessoas capazes de crença sob o aspecto do bode expiatório”49. Passado o transe, é

possível que os populares tenham, inclusive, concluído que lhes fizeram de fantoches;

mais de dois meses depois da chacina, um morador não identificado de Matupá

declarou ao jornal O Estado de S. Paulo: “Adário tem que tomar cuidado. Aqui há

muita gente que espera sua volta só para assistir à sua morte”50. O capitão, com sua

boa lábia, foi quem conseguiu, em pouco tempo, o que Oswaldo Florentino Ferreira,

delegado de Matupá, não conseguiu em doze horas: libertou os reféns e fez com que

os assaltantes se rendessem, garantindo a eles que ficariam seguros. Noutro plano,

combinou com seus soldados a execução dos bandidos. O dissabor de não ter obtido

ele mesmo o sucesso nas negociações pode ter sido, para Oswaldo Ferreira, a gota

47 BARBOSA, Milton Gustavo Vasconcelos. A expansão penal na República de 1988: A ilusão mítica e os efeitos da revelação. Porto Alegre. Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do título de mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2013. p. 28, nota 108. 48 MATO GROSSO. Polícia Civil do Mato Grosso em Matupá. Relatório do caso Chacina de Matupá. Matupá, RS, 1991. Disponível em <http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/1291_114_relatorio.pdf>. Acesso em 6 out. 2013. 49 GIRARD, René. O bode expiatório. Traduzido por Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. p. 56. 50 MARCELO, Antônio. Moradores de Matupá apontam líderes da chacina dos ladrões. O Estado de São Paulo, São Paulo, 7 fev. 1991. Polícia, p. 24. Disponível em <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19910207-35577-nac-0024-999-24-not>. Acesso em 5 out. 2013.

41

que lhe faltava para se entregar ao mimetismo da multidão. Como um Pilatos que lava

as mãos, deixou o caminho aberto aos supostos planos de Edyr, voltando com seus

agentes à delegacia ao invés de acompanhar a condução dos presos até o aeroporto.

Apenas os soldados e um cidadão conduziram os assaltantes. Os perseguidos

seriam levados a outra cidade, o avião os esperava, mas a comunidade entendeu que

a expulsão não era o bastante. O povo perseguiu o carro no qual estavam os bodes

expiatórios, ratificando sua disposição de linchá-los. Ainda dentro do veículo, os

condutores espancaram os presos; no entanto foi ao balearem cada um dos três que

assinaram sua unidade com a massa e deram a bandeirada para o início das torturas.

“Viva Matupá! Viva a polícia!” Estimulados pela adesão policial, os matupaenses

deram continuidade a sua violência cega, ainda mais mergulhados na ilusão de que

faziam justiça. Na realidade, como é característico às turbas, não sabiam o que

faziam. Valdemir Bueno, ou “Padeirinho”, o homem que aparece no vídeo da chacina

jogando gasolina nos forasteiros, disse à revista Veja: “Eu gritava como as outras

pessoas, mas não sei direito por quê”. Sobre o que sentiu depois, alegou: “Achava

que tinha feito a coisa certa e contei tudo para a minha mulher”51. É como diz Girard:

“Los perseguidores piensan que actúan bien, creen que actúan por la justicia y la

verdad, para salvar a su comunidad”52. O sentimento de justiça feita não desabrochou

apenas em “Padeirinho”: “Nas discussões, quando não se concordava com a

selvageria de atear fogo nos três corpos, pelo menos argumentava-se que era justo

que os assaltantes morressem”53.

Sob gritos de “queima, queima”, um galão de gasolina foi entregue a Valdemir

Bueno. Já sabemos que, por carecer de modelo a ser imitado, o responsável pelo

primeiro ato é sempre o que mais hesita; mas bastou que o padeiro despejasse o

combustível sobre os homens, para que alguém riscasse um fósforo e lhes ateasse

fogo. Alucinado de dor, Arci, tal como Cristo, resignou-se com a morte e suplicou que

seu “Pai do Céu” o deixasse morrer.

- Pede perdão, rapaz.

51 OS HOMENS de bem. Veja, São Paulo, ed. 1.176, ano 24, n. 14, p. 47, 3 abr. 1991. Disponível em <http://veja.abril.com.br/acervodigital/>. Acesso em 6 out. 2013. 52 GIRARD, René. Veo a Satan caer como el relámpago. Traduzido do francês por Francisco Díez del Corral. Barcelona: Anagrama, 1999. p. 167. 53 MOTA, Paulo. Desgraça de Matupá é ouro e chacina. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 mar. 1991. Brasil. p. 14.

42

- Perdão.

- Pede perdão a Deus.

- Perdão por tudo o que fiz.

Cenas de um verdadeiro sacrifício. Deus, aqui, legitima a ação do perseguidor,

figurando também como elemento de expiação da carga contida no ato violento. Não

era em nome de Deus que falava o cidadão imperativo, mas da comunidade. A ordem

ali proferida transmitiu uma vontade puramente mundana; em ato falho, a primeira

frase dirigida a Arci sequer invocou o divino. Analisando o relato bíblico no qual três

“amigos” de Jó tentam convencê-lo a confessar culpa, Girard relaciona comunidade,

Deus e sacrifício54:

Nas vociferações dos amigos, o tema principal é a gigantesca mobilização suscitada pela divindade, decretada e organizada por ela contra seu inimigo, o inimigo da divindade. [...] A multidão turbilhonante é por excelência o modo de ser da vingança divina. Precipita-se sobre sua vítima e a dilacera em pequenos pedaços; em todos os participantes o terrível apetite de violência é idêntico. Nenhum deles quer renunciar a infligir o golpe decisivo. [...] Ao fazer de todas as violências dirigidas contra Jó serviços prestados à divindade, esses discursos justificam as brutalidades passadas, incitando outras. São mais temíveis do que os escarros dos miseráveis. Seu valor performático é evidente. [...] O deus dos amigos combate sempre na proporção do três contra um, de quatro, de mil contra um. Não se vê restringido por espírito cavalheiresco algum. Porém, que ociosa e arcaica ironia é a que considera o religioso em abstrato, in toto, sem se perguntar nunca o que há por trás dessas

visões. [...] Aos nossos olhos, os três amigos sacralizam a violência. Os insultos e as mesquinhas brutalidades se convertem em grandioso cumprimento de uma missão sobrenatural. Todos os participantes se convertem em guerreiros celestes: os vizinhos próximos e os mais distantes, as pessoas de bem e os esfarrapados, os jovens e os velhos, inclusive a esposa, que diz a Jó: ‘Maldiz a Deus e morre’. [...] Em toda revolta contra os chefes que o favor popular conseguiu provocar, a comunidade vê automaticamente a intervenção de uma Justiça absoluta. O que se desdobra no discurso dos amigos é uma verdadeira mitologia da vingança divina. Porque participam de seu linchamento, os amigos não compreendem o papel de bode expiatório representado por Jó. O paradoxo da violência fundadora se revela aqui de maneira espetacular. Aqueles que constroem o sagrado com sua própria violência são incapazes de enxergar a verdade.

54 GIRARD, René. A rota antiga dos homens perversos. Traduzido por Tiago Risi. São Paulo: Paulus, 2009. p. 31-32 e 33.

43

Pedindo perdão – tanto faz se a Deus ou ao povo – o forasteiro também acaba

por confessar indiretamente sua culpa. Os lúcidos sabem, confissão da culpa não é

garantia da verdade; mas, em um processo no qual a acusação vale mais do que os

fatos, a confissão é a “rainha das provas”. Por isso sua importância aos perseguidores:

ela atesta “cabalmente” que o povo tem razão no que faz. Nas palavras de Wilson

Franck Jr. e Milton Gustavo Vasconcelos55:

A confissão tem uma importância central nos ritos sacrificiais, pois redime os perseguidores e expõe a infalibilidade de sua Justiça. A confissão, portanto, é a garantia da perfeição do mecanismo vitimário, que, nesse caso, não deixaria margem a contestações e, ainda, permitiria a realização da catarse coletiva à custa do bode expiatório. Portanto, para que o ciclo da violência unânime se feche, é necessária também a adesão da vítima [...]

Depois que a última gota de alma abandonou o corpo machucado de Arci, os

linchadores foram cuidar de seus afazeres, extasiados pelo efeito catártico do

evento 56 . Nos dias seguintes à chacina, os traços primitivos continuaram a se

manifestar no povo da isolada Matupá. Um dos participantes, que se machucou

chutando as vítimas, andava pela cidade exibindo, orgulhoso, o pé enfaixado.

Estabelecimentos comerciais passaram a ostentar fotos da tortura; o proprietário de

um deles alegou que a finalidade era fazer quem pretendesse assaltar gente de bem

pensar, antes, duas vezes57. Somente cerca de dois meses e meio depois, quando o

fato ganhou repercussão nacional e internacional, a legitimidade do assassinato

passou a ser questionada – pois a população de Matupá, embora divergisse quanto

aos meios empregados, concordava de forma uníssona com a morte dos três homens.

O aspecto fundador da chacina se revelou: Matupá, antes desconhecida,

apareceu no mapa. O padre José Tencate, de Cuiabá, foi quem encaminhou uma

cópia da filmagem de Lino Dürrewald ao escritório do Movimento Nacional de Defesa

dos Direitos Humanos, em Brasília. Depois, a gravação chegou ao Ministério da

Justiça, que a enviou para a Anistia Internacional, em Londres. O caso também foi ao

55 FRANCK JR, Wilson; BARBOSA, Milton Gustavo Vasconcelos. A confissão do acusado e o fechamento do ciclo de violência mimética: para além do platonismo cultural das instituições jurídicas. In: 3º Congresso Internacional de Ciências Criminais da PUC-RS, 2012, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2012. p. 12. 56 Valdemir Bueno, o “Padeirinho”, por exemplo, segundo reportagem publicada na Veja de 3 de abril de 1991, às 14 horas, voltou para seu estabelecimento comercial. 57 O ESTADO de S. Paulo, 1991 apud Witter, 2004, p. 19.

44

Supremo Tribunal Federal, por meio do pedido de intervenção federal n. 114-5/MT,

pleiteado pelo procurador-geral da República, mas indeferido. Ainda em 1991, Arlindo

Capitani, integrante da massa e então vereador de Matupá, declarou à revista Veja58:

“Foi um acontecimento necessário para chamar a atenção das autoridades para o

problema da cidade”. Ele não imaginava que a fundação violenta de Matupá teria um

efeito colateral permanente: essa mancha de sangue jamais desbotaria. O povo

matupaense ficou estigmatizado, e, passados mais de vinte anos, quem reconhece o

nome do município logo lembra da chacina.

Esse estigma consolida nova crise, para a qual são necessários novos bodes

expiatórios. Em 2011 – quando já falecidas testemunhas importantes como o

delegado Osvaldo Florentino e a freira Adele Schwalen –, dezessete civis foram a júri

popular. A despeito de o próprio juiz substituto do município – o qual, mais tarde,

presidiu o júri – ter requerido desaforamento do feito59, o pedido foi negado, e o rito

aconteceu em Matupá mesmo, terminando com a condenação de três pessoas, entre

elas, o “Padeirinho”60. O julgamento dos sete réus do processo penal militar ainda não

ocorreu, mas, neste ano, deferindo recurso interposto pela defesa do capitão Edyr, a

primeira câmara criminal do Tribunal de Justiça do Mato Grosso anulou a sentença de

pronúncia por “absoluta falta de fundamentação”, declarando prescrito o crime e

extinta a ação penal 61 . O judiciário visivelmente fracassou na sua missão de

monopolizar a vingança; a pegou para si e não soube o que fazer. Duas décadas

depois, esse prato foi servido mais do que frio. O receio, então, é de que seja

requentado por mecanismos mais rápidos, sobretudo por não ter havido

desaforamento. Como é de saber popular, nas pequenas cidades, o que se conta para

um logo é sabido por todos. Um novo ciclo de vingança mimética estaria por começar?

Só tempo dirá.

58 OS HOMENS de bem. Veja, São Paulo, ed. 1.176, ano 24, n. 14, p. 47, 3 abr. 1991. Disponível em <http://veja.abril.com.br/acervodigital/>. Acesso em 6 out. 2013. 59 MATO GROSSO, Tribunal de Justiça. Desaforamento n. 0068218-93.2006.8.11.0000 da Turma de Câmaras Criminais Reunidas, Cuiabá, MT, 7 de dez. 2006. Diário da Justiça, Cuiabá, MT, 17 abr. 2007. 60 AQUINO, Bel. Chacina de Matupá - Matupá/MT (1990) - 2ª edição. Teratologia Criminal. Rio de Janeiro, 22 jun. 2013. Disponível em <http://teratologiacriminal.blogspot.com.br/2013/06/chacina-de-matupa-matupamt-1990-2-edicao.html>. Acesso em 19 out. 2013. 61 MATO GROSSO, Tribunal de Justiça. Recurso em Sentido Estrito n. 48.705/2012 da Primeira Câmara Criminal, Cuiabá, MT, 19 de fevereiro de 2013. Diário da Justiça, Cuiabá, MT, 11 mar. 2013.

45

CONCLUSÃO

Ao longo da presente pesquisa, foi possível confirmar a perfeita aplicabilidade

da teoria do “bode expiatório” à Chacina de Matupá. Em análise minuciosa, constatou-

se que os habitantes de Matupá encontravam-se em estado de “indiferenciação”,

gerado pela crise própria do município e por outros problemas enfrentados, na década

de 1990, em âmbito nacional – como a recessão econômica que assolava o Brasil –,

e mundial – a exemplo da Guerra do Golfo Pérsico. Foi identificado com sucesso,

portanto, o primeiro estereótipo proposto por Girard: a “crise indiferenciadora”.

Além disso, conclui-se que os assaltantes linchados preenchiam o segundo

estereótipo, as “marcas vitimarias”: eram forasteiros, pertenciam a uma minoria que,

além de ser mal integrada – o que lhes dotava da vulnerabilidade necessária para ser

um “bom” alvo da massa –, não criava vínculos sólidos de nenhum tipo com o

município, muito menos com seus moradores, restando completamente diferenciada

destes.

A conduta duplamente símbolo de desorganização que foi atribuída aos três

errantes identifica-se com o terceiro estereótipo, o “crime indiferenciador”. O assalto

praticado contra os familiares do dono de garimpo Carlos Mazzonetto, além de

representar uma das principais origens da desordem de Matupá – pois a cidade

nascera em meio à violência mimética desencadeada pelo ouro, e jamais conseguiu

se organizar –, também ameaçou uma instituição tradicional, a família nuclear, ideia

clássica de ordem.

Nunca houve dúvidas em relação ao enquadramento da chacina no quarto

estereótipo – assassinato ou expulsão coletiva –, pois o episódio até filmado foi;

entretanto, com o auxílio do pensamento girardiano, pôde-se aqui melhor analisar o

funcionamento da violência de grupo. Uma vez que foram identificados todos os

quatro estereótipos elaborados por René Girard, podemos afirmar, com segurança,

que as vítimas tratavam-se de bodes expiatórios.

Dessa forma, o estudo de caso aqui realizado cumpriu sua finalidade, obtendo

resposta positiva para todas as hipóteses lançadas na introdução, e comprovou que

46

a teoria do bode expiatório, estudada por pesquisadores de inúmeras áreas –

psicólogos, antropólogos, teólogos, sociólogos, etc. – amplia conhecimentos acerca

do comportamento humano, aprimorando, com isso, a interpretação que os

operadores do Direito darão a leis e fatos.

47

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