a reestruturação técnica na perspectiva de dois violoncelistas/professores: alceu reis e márcio...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL-REI CURSO DE MÚSICA
FREDERICO ARANTES NABLE
A REESTRUTURAÇÃO TÉCNICA NA PERSPECTIVA DE DOISVIOLONCELISTAS/PROFESSORES: ALCEU REIS E MÁRCIO
CARNEIRO
SÃO JOÃO DEL-REI
2011
FREDERICO ARANTES NABLE
A REESTRUTURAÇÃO TÉCNICA NA PERSPECTIVA DE DOISVIOLONCELISTAS/PROFESSORES: ALCEU REIS E MÁRCIO CARNEIRO
Monografia de conclusão de cursoapresentada para a obtenção dotítulo de Licenciado em Música
com habilitação em Violoncelopela Universidade Federal de SãoJoão del-Rei.
Orientador: Prof. Antônio CarlosGuimarães.
SÃO JOÃO DEL-REI2011
AGRADECIMENTOS
Ao Abel, que me mostrou o caminho; ao Alceu e ao Márcio, pela
disponibilidade e paciência.
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo discutir e definir oprocesso de reestruturação técnica no ensino e aprendizado dovioloncelo. O objeto de estudo é abordado através de uma revisãobibliográfica e dos conceitos de dois violoncelistas/professoresbrasileiros, Alceu Reis e Márcio Carneiro. Para tanto foielaborado um questionário que foi aplicado em ambospresencialmente, cujas respostas foram transcritas e embasadascom a bibliografia. Concluiu-se que, com base nas teorias deaprendizado motor, a aquisição da habilidade de reestruturaçãotécnica é algo primordial no desenvolvimento instrumental emtodos os níveis. Palavras-chave: reestruturação técnica; aprendizado motor; pedagogia do instrumento.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................4
1- O PROCESSO DE REESTRUTURAÇÃO TÉCNICA.........................8
2- ENTREVISTAS.................................................13
2.1- ENTREVISTA COM ALCEU REIS...............................13
2.2- ENTREVISTA COM MÁRCIO CARNEIRO..........................25
3- CONCLUSÕES..................................................48
3.1- CONCLUSÕES ESPECÍFICAS RETIRADAS DA ENTREVISTA COM ALCEU
REIS E DA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA..............................48
3.2- CONCLUSÕES ESPECÍFICAS RETIRADAS DA ENTREVISTA COM MÁRCIO
CARNEIRO E DA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA..........................52
3.3- CONCLUSÕES RETIRADAS A PARTIR DE RESPOSTAS SEMELHANTES DE
AMBOS ENTREVISTADOS..........................................56
3.4 - CONCLUSÕES FINAIS......................................58
REFERÊNCIAS....................................................59
ANEXOS.........................................................60
4
INTRODUÇÃO
Durante os primeiros dois períodos em que ingressei no curso
de Licenciatura em Música da UFSJ passei por um processo de
reestruturação técnica, consistiu em um estudo mínimo de
repertório paralelamente a estudos de técnica pura (cordas
soltas, exercícios de vibrato e etc.), que viabilizassem a
eliminação dos meus problemas. Além disso, o processo consistiu
em inibir antigos hábitos que se mostravam ineficientes,
principalmente com relação ao vibrato e à eliminação de tensões
corporais em geral, e estabelecer novos hábitos mais efetivos
para a execução do violoncelo. Tal processo exigiu de mim uma
força de vontade enorme e tive que confiar plenamente no meu
professor para chegar aos resultados desejados. Enquanto passava
pelo processo tive que me abster de master-classes, prática
orquestral e quaisquer outras situações em que uma possível
pressão pudesse trazer de volta antigos hábitos não desejados. Ao
mesmo tempo busquei, em outros professores ou colegas, que eram
referência para mim, um relato de alguma experiência parecida,
talvez para tentar me convencer de que aquele esforço todo
valeria a pena. E a minha surpresa foi grande quando descobri uma
5
enorme quantidade de casos, alguns de violoncelistas famosos, que
passaram por processos semelhantes. Mais tarde, quando havia
reestruturado satisfatoriamente a minha técnica, pude compreender
a importância de tal processo e entender, pelo menos
parcialmente, que a aprendizagem de um instrumento musical,
sobretudo da técnica necessária para a execução do mesmo, é algo
constante. Assim, tornou-se também óbvio que o processo de
reestruturação é uma habilidade que todo músico deve ter, ou
seja, todo músico instrumentista deve aprender a aprender.
Descobri que devemos buscar sempre uma maneira melhor de fazer as
coisas, que traga resultados mais eficientes com o menor esforço
possível, e nesta busca o processo de reestruturação é
constantemente presente. MACKIE (2006) relata, em uma entrevista
bastante informal com Joe Armstrong1, sobre os anos que passou em
Prades (França) estudando com o grande Pablo Casals2. O relato é
claramente de uma reestruturação, não somente da técnica, mas
1 Joe Armstrong: Flautista americano e professor de técnica de Alexander, co-autor do livro “Just Play Naturally”
2 Pau Casals i Defilló (1876 – 1973), mais conhecido como Pablo Casals, foi umvioloncelista catalão, considerado um dos mais importantes do século XX. “Poucos contestariam que Pablo Casals (...) teve o maior impacto na maneira de tocar violoncelo no século vinte.” (CAMPBELL, 1999, p. 80)
6
também da maneira como a autora tocava o violoncelo. O choque
inicial já se deu na primeira aula com o mestre, onde ela conta
que tentou executar o concerto de Schumann, com o qual já tinha
até ganho um concurso nos Estados Unidos:
(...) Eu comecei, e não estava causando uma boa impressão, e então Casals me interrompeu e disse, ´Apenas toque naturalmente.´ Eu disse, ´Euestou,´ mas ele balançou a cabeça e tentou achar outra palavra. Mas ele não conseguiu, então ele disse, ´Eu quero dizer, naturalmente.´ Eu pensei, ´Meu deus, ele quer dizer que com vinte e um anos de idade eu perdi a habilidade de tocar naturalmente?´ O pensamento era quase terrível demais para se contemplar, e eu o enterrei, rapidamente. Então depois que eu acabei de tocar, ele me agradeceu gentilmente, e aí disse ´Você não sabe o que está fazendo.´ (MACKIE, 2006, pág. 12, tradução doautor)3
Este trabalho divide-se em três capítulos. No primeiro busco
discutir a questão da reestruturação técnica, definindo o termo e
examinando suas implicações com base na bibliografia. Para
construir o segundo capítulo foi elaborado um questionário, que
se apresenta em anexo, em torno do aprendizado e do ensino da
reestruturação técnica, o qual foi aplicado em dois
violoncelistas profissionais, Alceu Reis e Marcio Carneiro,
transcrito e revisado, constituindo assim a parte central do 3 (…) I started off, and I wasn´t giving a good account of myself at all, and then Casals stopped me and said, ´Just play naturally.´ I said, ´I am,´ but heshook his head and tried to find another word. But he couldn´t, so he said, ´Imean, naturally.´ I thought, ´My God, does he mean that at twenty-one I´ve lost the ability to play naturally?´ The thought was just too awful to contemplate,and I buried it fast. So after I finished playing, he thanked me nicely, and then he said, ´You do not know what you are doing.´
7
trabalho. Por fim, o terceiro capítulo analisa detalhadamente as
ideias principais de cada entrevistado e faz uma comparação entre
o que ambos disseram, e relaciona suas respostas ao conteúdo
extraído da revisão bibliográfica.
Escolhi entrevistar dois professores que para mim sempre
foram um referencial e que, ao mesmo tempo, possuem maneiras
bastante diferentes de tocarem o instrumento, mas com um
resultado igualmente eficaz. Alceu Reis foi meu professor em
diversos festivais em Ouro Branco, Juiz de Fora e até na própria
São João Del Rei, e possui uma extensa carreira como professor de
diversos grandes violoncelistas no Brasil e fora, além de já ter
ocupado lugares de destaque com as maiores orquestras do país.
Mesmo conhecendo algo da sua maneira de ensinar e de pensar o
violoncelo, me surpreendi ao receber um “não” como resposta à
principal pergunta do meu questionário: “Você já passou por
alguma reestruturação técnica? Se sim, como foi?”. O que Alceu
descreveu na verdade é um processo de constante reestruturação em
que ele sempre se encontrou, questionando e buscando uma maneira
melhor de tocar o instrumento. Ele é, nas suas palavras, um
“pesquisador”. Todavia, Márcio Carneiro revelou teve um momento
8
muito claro, na sua carreira como violoncelista, em que passou
por uma reestruturação técnica. Ao ganhar uma bolsa de estudos
para a Europa, foi estudar com André Navarra4, um dos grandes
violoncelistas e professores da escola francesa, com quem passou
“realmente um semestre inteiro fazendo corda solta e um concerto de Romberg”.
Márcio atribui importância capital a esse processo de
reestruturação, sem o qual não teria sido possível continuar seus
estudos. Márcio foi professor da Musikhochschüle em Detmold (onde
Navarra também ensinou) e atualmente faz parte do corpo docente
do conservatório superior Tibor Varga em Sion, na Suíça. Foi
vencedor de diversos concursos, conquistando inclusive um prêmio
no renomado Concurso Tchaikovsky em Moscou. Reconhecido tanto
como solista quanto como professor, possui vários alunos que
seguiram carreiras internacionais. Frequento suas master-classes
regulares em Belo Horizonte desde que me iniciei ao violoncelo e
obtive alívio durante a minha própria reestruturação ao ver o
mestre descrever como tinha sido o seu processo e a importância
4 André Navarra (1911 – 1988) foi um violoncelista francês renomado, considerado por GAGNON (2005) como um grande expoente da escola francesa, professor do Conservatório de Paris e da Musikhochschüle em Detmold. Vários deseus alunos vieram a se tornar solistas de renome internacional.
9
que ele dava a isso. Talvez daí tenha nascido a idéia de realizar
este trabalho.
Busco aqui documentar as opiniões dos dois professores a
respeito deste assunto, assim como analisar sob outras óticas
algumas coisas que foram ditas nas entrevistas. Creio que o
material que foi gerado com as mesmas pode ser de extrema
valia para outros instrumentistas em geral. É um registro das
ideias de dois dos grandes violoncelistas e professores do
nosso tempo e, em alguns momentos, chega a extrapolar o
assunto principal do trabalho. São verdadeiras lições de vida,
de como lidar com a tarefa árdua que é o aprendizado de um
instrumento musical.
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1 - O PROCESSO DE REESTRUTURAÇÃO TÉCNICA
Utilizaremos o termo “reestruturação técnica” neste trabalho
para definir casos em que um determinado procedimento técnico
necessário para a execução de um instrumento musical, já
automatizado, se mostra ineficiente e deve ser substituído por
outro mais eficiente. É prudente diferenciar esse conceito da
estruturação que acontece regularmente durante as aulas, onde
pequenos pontos da técnica do aluno são adquiridos, trabalhados e
melhorados gradualmente.
Reestruturar um aspecto da técnica em um instrumento musical
é algo extremamente complexo, e passa por um processo com várias
fases. Segundo GALLWEY (1973) e ALCANTARA (1997) primeiramente é
preciso inibir o movimento ineficiente, em seguida aprender o
movimento novo e depois, provavelmente a etapa mais difícil,
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substituir gradualmente um pelo outro, dentro do contexto em que
vai ser utilizado. ALCANTARA (1997) fala do processo de
“inibição” e descreve um violoncelista chamado Robert, que tem
grandes problemas com o vibrato:
Robert, um violoncelista, tem um vibrato de mão esquerda irregulare emperrado. (...) Vibrato, um padrão parcial (...), é uma função do uso do “self”, um padrão total. (...) Para eliminar um padrão defeituoso, é necessário coordenar o padrão total que ativa e regula o parcial. (...) Outra característica do vibrato de Robert é que ele é uma reação habitual e automática a um certo estímulo. Toda vez que Robert decide vibrar, ele ativa o mal uso do mecanismo do vibrato por reflexo. (...) Já que o simples desejo deRobert de vibrar ativa um mal uso automático do “self”, a única maneira que ele pode mudar seu vibrato é parando de quer vibrar da maneira como ele entende. (ALCANTARA, 1997, p. 46, traduçãodo autor)5
SLOBODA (2008) elucida ainda mais como os movimentos já
aprendidos estão enraizados em nós, e como os obtemos:
Primeiramente, há o conceito de que a aprendizagem de uma habilidade envolve a aquisição de hábitos. A principal característica de um hábito é ser automático e usar pouca ou nenhuma capacidade mental para ser executado. Os precursores dos hábitos são comportamentos conscientes, deliberados e marcados pelo esforço, que geralmente envolvem um controle verbal. Em segundo lugar, está a noção de que, para aprender habilidades, é preciso passar de um conhecimento factual (saber o quê) para um conhecimento procedimental (saber como). (SLOBODA, 2008, p. 285)
5 Robert, a cellist, has a constricted, irregular left-hand vibrato. (…) Vibrato, a parcial pattern (…), is a function of the use of the self, a total pattern. (…) To eliminate a faulty partial pattern it is necessary to co-ordinate the total pattern that activates and regulates the partial one. (…) Another characteristic of Robert´s vibrato is that it is a habitual and automatic reaction to a certain stimulus. Every time Robert decides to vibrate, he triggers the misuse of the vibrato mechanism reflexly. (…) Since Robert´s very wish to vibrate sets an automatic misuse of the self, the only way he can change his vibrato is to stop wanting to vibrate as he understands it.
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GALLWEY (1974) nos dá uma descrição bem simples de como o
processo de aprendizado de um movimento ocorre no nosso sistema
nervoso:
É como se o sistema nervoso fosse um disco de gravação. Cada vez que uma ação é executada, forma-se uma leve impressão nas células microscópicas do cérebro, como se uma folha tivesse passado sobre a fina areia de uma praia, deixando o seu leve traço. Quando a mesma ação é repetida, a marca torna-se um pouco mais profunda. Depois de muitas ações similares, forma-se uma trilha facilmente reconhecível, para a qual a agulha do comportamento parece se dirigir automaticamente. Então o comportamento pode ser classificado como tendo um padrão, uma trilha de hábito. Pelo fatode esses padrões servirem a uma função, o comportamento é reforçado ou recompensado e tende a se repetir. Quanto mais profunda a trilha aberta no sistema nervoso, mais difícil parece ser a mudança do hábito. (...) De fato, muitas vezes, quanto mais tentamos mudar um hábito, mais difícil isso se torna. (GALLWEY, 1974, p. 103)
Gallwey sugere que, para eliminarmos maus hábitos, não
precisamos partir dos hábitos antigos, mas sim criarmos hábitos
completamente novos, sem relação com os velhos. “A inibição não
consiste em fazer algo novo, mas em não fazer algo antigo”
(ALCANTARA, 1997, p. 51, tradução do autor)6. ALCANTARA (1997),
em seguida, descreve um processo gradual para que o aluno Robert
possa ter a experiência correta do vibrato, que inicialmente é
6 Inhibition consists not in doing something new, but in not doing something old.
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intermediada quase que totalmente pelo professor, ajudando o
aluno com o movimento ao manipular o braço esquerdo do mesmo:
Assim que as novas experiências do vibrato se tornem claras, o professor pode pedir ao aluno para assumir a responsabilidade de ativar o vibrato. Primeiramente ele o faz intermitentemente: professor e aluno se revezam para ativar o vibrato, tentando não quebrar a continuidade do gesto. Finalmente o professor deixa completamente o braço esquerdo do aluno, e deixa o aluno vibrar por contra própria.Quando Robert conseguir inibir seu vibrato habitual, ele provavelmente vai ter duas sensações marcantes (...). Primeiramente, o seu novo vibrato é tão diferente do seu já conhecido que Robert sente que não é um vibrato ´real´, mas algumaoutra sensação, um efeito musical completamente diferente. Segundo, ele pode até sentir que não está vibrando – o vibrato está acontecendo por si só. (ALCANTARA, 1997, págs. 48 e 49, tradução do autor) 7
MACKIE (2006) descreve uma sensação parecida de
estranhamento positivo ao ver sua maneira de trabalhar o
violoncelo ser mudada por Pablo Casals:
(...) e eu descobri que tinha mudado, no ouvido e na minha mão e no meu cérebro, de modo que eu me sentia como outro animal à medida que íamos trabalhando da mesma maneira. (MACKIE, 2006, p. 18, tradução do autor)8
7 Once the new experiences of vibrato become clearer, the teacher may ask the pupil to take over the responsibility for the activating of the vibrato. At first he does this intermittently: teacher and pupil take turn to activate thevibrato, attempting not to break the continuity of the gesture. Finally the teacher lets go entirely of the pupil´s left arm, and allows the pupil to vibrate on his own. When Robert succeeds in inhibiting his habitual vibrato, he is likely to experience two striking sensations (…) First, his new vibrato is so different from his familiar one that Robert feels that it is not a ´real´ vibrato, but some other sensation, a different musical effect altogether. Second, he may well feel as if he is not vibrating at all – the vibrato seems to be doing itself.
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A sensação de algo completamente novo e sem relação com o
movimento antigo é justamente a criação de um novo “caminho”
neurológico, como descrito por GALLWEY (1974), que ainda
completa:
Em outras palavras, não é preciso combater velhos costumes. Simplesmente comece hábitos novos. É a resistência de um velho hábito que torna você prisioneiro dele. Começar um novo padrão é fácil quando isso é feito com uma desconsideração infantil por dificuldades imaginárias. (GALLWEY, 1974, p. 104)
Coincidentemente, na minha própria experiência de
reestruturação técnica, meu problema principal era também o
vibrato, que consistia basicamente de um “tremido” rápido e
curto, que gerava uma tensão enorme e produzia um resultado
musical quase imperceptível. Meu professor notou tal problema e
iniciamos um aprendizado lento do movimento novo, que tinha
parâmetros quase opostos do antigo: era amplo e lento. O processo
demorou, e muitas vezes eu não conseguia trazer de volta a
sensação do vibrato correto. Durante o estudo muitas vezes o
movimento antigo voltava, principalmente em trechos difíceis de
peças ou em situações de performance. Várias vezes, após um
período extenso de estudo do instrumento, eu descobria que não
8 (...) and I discovered I´d been changed, in my ear and my hand and my brain,so that I felt like a different animal as we went working in the same way.
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conseguia vibrar de forma alguma, o braço esquerdo tensionava e
perdia completamente o movimento do vibrato.
Nessa época descobri que obtinha melhores resultados quando
praticava o vibrato “novo” logo após acordar, ou quando tinha
passado um período maior sem tocar o instrumento. De fato, passar
muito tempo ao violoncelo apenas diminuía a minha capacidade de
eliminar a sensação antiga. Quanto mais eu praticava, mais a
minha vontade de querer vibrar corretamente era maior. Gallwey
faz observações valiosas que podem explicar o que foi descrito
acima:
Observe o processo sem controlá-lo. Se sentir que você está querendo ajudar, não o faça. Mas não observe com desinteresse – observe com fé. Confie ativamente no seu corpo para responder à sua programação. Quanto mais você confiar no processo natural que está em andamento, menos você tenderá a cair nos padrões comuns que interferem no aprendizado em consequência de esforço demasiado, julgamentos e pensamentos sobre o que deve ser feito. Em consequência, também diminuirá a frustração que inevitavelmenteacompanha o processo de interferência. (GALLWEY, 1974, pág. 112)
Consequentemente, com um tempo menor de estudo e uma
concentração maior, a nova técnica de vibrato gradualmente tomou
o lugar da antiga. O procedimento foi bastante demorado, durando
cerca de um ano.
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Após a reestruturação do meu vibrato não tive que realizar
nenhum processo semelhante com outro aspecto técnico, tanto da
mão direta quando da esquerda. O que houve foi uma melhora
gradual e geral, graças a uma auto-crítica mais refinada
adquirida com o tempo e com a experiência do reaprendizado do
movimento. FITTS (1964) apud SLOBODA (2008) mostra como funciona
essa “evolução” do aprendizado motor: “os processos de aquisição de
habilidades podem ser quebrados em três fases ou estágios: o estágio cognitivo, o
estágio associativo e o estágio autônomo” (FITTS apud SLOBODA, 2008, pág
286). ANDERSON (1982) apud SLOBODA (2008) descreve detalhadamente
tais estágios:
... o estágio cognitivo envolve uma codificação inicial da habilidade em uma forma suficiente para permitir que o aprendiz gere o comportamento desejado, pelo menos num nível de aproximaçãogrosseira. Neste estágio, é comum observar mediações verbais, em que o aprendiz repete as informações necessárias à execução da habilidade. O estágio associativo é aquele em que a habilidade passa a ser executada de maneira suave. Os erros na compreensão inicial da habilidade são sucessivamente detectados e eliminados. Concomitantemente, desaparece a mediação verbal. No estágio autônomo há uma melhoria gradativa e continuada na performance de uma habilidade. Frequentemente, neste estágio, as melhorias continuam indefinidamente. (ANDERSON apud SLOBODA, 2008, pág. 286)
Podemos concluir, portanto, que quando um indivíduo passa
por um processo de reestruturação técnica, ele não aprende a
reestruturar apenas a habilidade que trabalhou, mas a fazê-lo de
maneira geral. “Quando se aprende como mudar um hábito, torna-se bem mais
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fácil decidir quais hábitos modificar. Uma vez que você saiba como aprender, só precisa
descobrir o que vale a pena ser aprendido." (GALLWEY, 1974, p. 101)
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2 – ENTREVISTAS
As entrevistas realizadas foram incluídas em sua íntegra. As
primeiras perguntas não tratam diretamente da questão da
reestruturação técnica, mas contextualizam o leitor com o
processo de aprendizado do violoncelo de cada entrevistado. Em
ambos os casos foi necessária adição de uma pergunta a mais em
cada entrevista, o que não alterou o foco da mesma. Além disso, o
fato de Alceu ter respondido “Não” à pergunta “Você já passou por
alguma reestruturação de algum(ns) aspecto(s) técnico(s)? Se sim,
como foi?” fez com que o questionário aplicado a ele fosse
reduzido, pois as três perguntas seguintes, referentes ao
processo de reestruturação técnica do entrevistado, dependiam de
uma resposta positiva à mesma.
2.1 – ENTREVISTA COM ALCEU REIS
Entrevista realizada na residência de Alceu Reis no Rio de
Janeiro, em 12/10/2011
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Com qual idade e como você iniciou seu aprendizado no violoncelo?
Na realidade eu comecei com cinco anos e meio, seis anos. E
a história começou assim: eu ouvi o violoncelo no rádio, na rádio
MEC, e perguntei à minha madrasta na época “Que instrumento é
esse?”, “Isso aí é um violoncelo". Aí eu cheguei pro meu pai e
disse "Pai, eu quero aprender violoncelo", e ele disse "Tá
maluco?" (risos). "Como assim aprender violoncelo, você conhece
violoncelo?" e eu disse "Não, conheço não, mas eu quero". E ele
disse "Então vamos fazer o seguinte: quando tiver um recital de
violoncelo eu vou te levar pra você ouvir e ver se é realmente
isso que você quer". Passou uns seis ou oito meses e teve um
recital na UFRJ do professor de lá na época, que era de São João
Del Rei, Eurico Costa. Ele era muito conhecido, e eu fui lá
assistir o recital. E quando acabou meu pai me perguntou "É esse
trambolho aí que você quer tocar?" (risos) e eu disse "É, é esse
trambolho que eu quero tocar".
Naquela época meu irmão estudava piano com a Professora
Lúcia Branco, que era muito amiga do Iberê Gomes Grosso, e meu
pai falou pra ela que tinha um filho de cinco anos e meio que
queria estudar violoncelo, e que não tinha nem ideia de como ia
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começar essa história. E ela disse pra ele "Deixa comigo que eu
resolvo isso", passou o telefone do Iberê e disse "Telefona pra
esse professor porque ele é o melhor professor do Brasil". E meu
pai ligou e explicou a história toda, e o Iberê perguntou
"Quantos anos ele tem mesmo?", "Cinco", "Faz o seguinte então,
compra uma bola pra ele e quando ele tiver quatorze você me liga"
(risos). Meu pai mandou uma porção de impropérios pra ele e
desligou (risos), chegou em casa e disse pro meu irmão - que já
estudava violino - pra ele me ensinar a tocar violoncelo. Mas
antes ele me disse que eu tinha que estudar teoria e solfejo,
“quando você trouxer o livro de solfejo pronto eu arrumo um
instrumento pra você”. E meu pai falou com os meus irmãos que
eles tinham que me ensinar a solfejar. Até hoje eu me lembro o
nome do livro de solfejo, Garaudé, um livro francês. E depois de
uns quatro meses eu disse pra ele "Pode tomar", sentei na
cabeceira da mesa e solfejei 387 lições, durou umas duas horas e
pouco, nas três claves. Aí ele não teve saída, eu irritei ele
tanto que ele resolveu procurar um violoncelo pra mim. Só que na
época não existia violoncelo 1/2, ele procurou, procurou e não
tinha em nenhuma loja, ninguém sabia, ninguém conhecia. Então ele
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comprou uma viola (risos). Pegou um freio de bicicleta, fez dois
furos, botou uma borboleta, colocou o freio no meio do estandarte
e fez um espigão com o freio de bicicleta, pegou um arco de
violino, botou junto com a viola e disse pro meu irmão que tocava
violino "Agora você ensina violoncelo pra ele" (risos). Aí eu
comecei a estudar violoncelo numa viola com um professor de
violino. Era aquela confusão, eu pegava o arco exatamente como
arco de violino, e comecei a tocar essa bagunça toda.
Com o passar do tempo a professora Lúcia Branco perguntou
pro papai "E aquele garoto do violoncelo, como está?" e ele
contou a história pra ela, disse que tinha comprado uma viola e
mandado o filho mais velho que tocava violino ensinar violoncelo
pra ele. E ela disse "Que bagunça. Mas peraí, eu tenho outra
pessoa, eu vou falar com ela". Era a professora que se chamava
Carmem Braga. Por acaso aquele violoncelista que eu tinha ido
ouvir no recital tinha falecido, e ela entrou como professora
substituta na UFRJ, era amiga da Lúcia Branco. E a Lúcia falou
com ela de mim, queria que ela me ouvisse, e ela disse "Ah, deve
ser interessante um garoto tocando violoncelo numa viola com um
professor de violino, traz ele aqui que eu quero ver essa
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coisa!". Aí lá fui eu tocar pra ela. E nessas alturas, eu era
maluco e tinha composto uma valsa, que chamava "Minha primeira
valsa". E eu cheguei lá e papai disse "Toca aí a primeira valsa!"
(risos). E eu toquei a primeira valsa. E ela disse "Olha, ele é
um talentasso, eu vou dar aula pra ele". Nessas alturas eu devia
ter seis anos e meio, sete anos. E naquela época papai não tinha
grana pra pagar aula, então ela me botou como aluno ouvinte da
UFRJ, e essa foi a minha sorte, porque como aluno ouvinte naquela
época eu tinha direito de fazer as aulas teóricas, e eu comecei a
estudar com uma professora que se chamava Maria Luisa Priolli,
que foi a melhor professora de teoria de todas as épocas. Fiz uns
quatro anos com ela, então com onze anos eu estava fazendo ditado
a quatro vozes brincando. Foi muito bom.
Passaram-se uns dois anos e então teve um concurso pra
professor efetivo, e quem passou foi o Iberê. E, por sorte minha
outra vez, eu fui cair na mão dele, com dez anos. Você vê que a
história por linhas tortas dá certo, aí eu não precisei mais ter
quatorze anos, eu já estava na escola e ele foi obrigado a me dar
aula (risos). É igual o Zagallo falando "Vocês vão ser obrigados
a me aturar". E acabamos fazendo uma boa amizade. Eu fui aluno
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dele pelo menos uns seis, sete anos, e depois disso eu não quis
mais ter aula. E naquela época eu só tinha a parte prática. Eu
dei muita sorte com o Iberê, porque ele foi aluno do Alexanian,
durante quatro ou cinco anos no conservatório de Paris. E o
Alexanian foi o grande professor da época de grandes
violoncelistas como o Janigro, que foi o professor do Antonio
Meneses.
E depois apareceu uma propaganda de um curso na Argentina
pra estudar com o Fournier. Então houve uma prova interna no Rio,
onde foram aprovados dois violoncelistas pra fazer esse curso: Eu
e o Watson Clis. E era um curso bem interessante: começava com
sessenta violoncelistas, e quando acabava o dia de aula vinha o
tradutor e dizia "Amanhã continuam fulano e fulano". Quando
terminou o curso tiveram quatro diplomados: Eu, o Watson, um
venezuelano e um uruguaio. E nenhum argentino! (risos) E tinha
muitos argentinos lá. E era muito interessante também, porque eu
era um excelente imitador. E o Fournier tinha um tradutor. Então
nas primeiras aulas ele começava a tocar e eu ia imitando o que
ele fazia. Tudo que ele fazia eu imitava. Aí ele dispensou o
tradutor, falou que eu não precisava de tradutor. E eu não
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entendia absolutamente nada do que ele falava. Só que eu imitava
e depois eu ia pensar no que ele poderia ter falado. Então, esses
foram os meus professores.
Eu aprendi muito também com esse dom da imitação. Porque
naquela época não tinha Youtube, não tinha nada de mídia. Então
naquela época passavam dois ou três violoncelistas por ano por
aqui. E eu fazia questão de ir assistir, eu virava montanhas, mas
ia assistir. E o que eu fazia? Eu “filmava”, mentalmente. E
depois ia pra casa imitar pra descobrir como era a mecânica.
Porque o bom-gosto eu achava que já tinha, eu pensava "Isso aí eu
me viro". Mas o como fazer é que é o problema maior. Então, por
exemplo, se chegasse um violoncelista que tocasse com um espigão
de um palmo, durante três ou quatro meses eu só usava o espigão
com um palmo. E quando chegou o Tortelier, que usava o espigão de
dois metros, foram três meses tocando com espigão de dois metros.
E vinha um que tocava assim (sobe o braço esquerdo), outro que
tocava assim (quebra o pulso direito), e eu ia imitando.
Conclusão: eu acredito que tudo que existe no violoncelo eu
experimentei, e aí cheguei às minhas conclusões. É por isso que
eu digo, e eu estou convicto disso até hoje, que o melhor
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professor são algumas perguntas: quando, por que, pra que, como,
aonde. Quando você se pergunta por que uma passagem não está
saindo, como é que eu posso resolver, aonde que está o problema,
tudo isso se você pensar você acaba encontrando a solução.
Comente sobre sua trajetória estudantil e profissional.
Minha época de estudante foi essa com o Iberê. Aí depois, eu
já tinha uns 28 ou 27 anos, eu tinha um amigo contrabaixista que
se chamava Sandrino e que me perturbava dizendo que eu tinha que
tirar um diploma pra ser professor universitário. E eu falava
"Mas pra que cara? Eu já estou tão bem aqui!". Eu já era spalla
da orquestra do teatro, da sinfônica nacional, fazia todas as
programações. E ele me incomodou durante um ano. E eu acabei
fazendo o vestibular pra UFRJ. E por acaso o professor da UFRJ
era o meu colega de estante, o Eugen Ranevsky. E eu dividia a
primeira estante com ele no Teatro Municipal. Eu fiz a prova e
fui ter aula com ele. É claro que não tinha essa de professor e
aluno, éramos colegas batendo um papo. Aí eu fiz o curso com ele,
e quando eu terminei o curso abriu uma vaga para professor na
UNIRIO. E me pressionaram pra fazer a prova, me obrigaram a fazer
a prova. Quando eu vi eu era o único candidato (risos). Eu chamei
26
um monte de gente pra fazer a prova comigo, mas ninguém quis
(risos). Aí eu fui pra UNIRIO e dei aula lá durante quinze anos.
E depois eu tive um problema, porque eu tinha três empregos
públicos, e só podia ter dois. Aí eu saí da UNIRIO, porque eu já
era aposentado como funcionário da UFRJ. E como aposentado eu
ganhava quatro vezes o que eu ganhava na UNIRIO. Mas lá foi muito
bom pra mim, porque como professor eu podia fazer todas as
experiências que eu queria com as cobaias (risos). Os alunos. E
graças a deus a minha turma foi realmente excelente. E é ótimo
porque em qualquer lugar que eu vou sempre tem uma cervejinha de
graça pra tomar. O professor da Universidade de Natal foi meu
aluno. O da Universidade de Vitória foi meu aluno. Tenho três ex-
alunos que estão na OSESP. E pra mim o melhor professor pra
crianças que existe, ele é realmente formidável, foi meu primeiro
aluno, o Eduardo Belo. Excelente professor para crianças. E eu
tenho dez ou quinze profissionais de excelente qualidade que
estudaram comigo. Então sempre tem uma cervejinha e um bom papo
aonde quer que eu vá (risos).
Você já passou por alguma reestruturação técnica? Se sim,
como foi?
27
Eu diria que não, porque, veja você, eu não tive muitos
professores. Eu mudei muita coisa, mas por mim e para mim. Nunca
aconteceu essa de chegar algum professor pra mim e dizer que eu
precisava mudar alguma coisa. Eu fui procurando, porque eu sou,
em relação ao violoncelo, um pesquisador, eu estou sempre
pesquisando, sempre. Eu sempre digo que o meu maior problema com
o violoncelo é o espigão, eu nunca sei a altura dele (risos).
Porque eu estou sempre pesquisando. Eu tenho um lema. A coisa
mais importante num violoncelista, e eu falo isso em todos os
instrumentos, é justamente o relaxamento. Então eu estou sempre
procurando o relaxamento. E se tiver que haver alguma tensão, que
tenha um relaxamento automaticamente no mesmo segundo. Eu nunca
penso em manter uma tensão, nunca. Então eu diria que eu nunca
passei por nenhuma reestruturação técnica imposta por algum
professor, eu passei por milhões de pequenas reestruturações
auto-impostas.
Quando você julga necessário que algum aspecto técnico deva
ser reestruturado?
O meu professor, o grande Iberê, muitas vezes falava assim:
"Olha, você pode até tocar com o nariz, contanto que seja
28
bonito". Então eu parto do seguinte princípio: a técnica em
função da música. O bom gosto da música é que vai te dizer qual a
técnica que você tem que usar naquele momento. Eu acho que em
relação aos meus alunos, eu tento sempre explicar que o
violoncelo é exatamente como o ser humano na sua vida: se você
está com dor na perna, a primeira coisa que você tem que fazer é
ver o jeito que você anda, ou a sua postura quando senta. Isso
quer dizer que você tem que transportar essa relação do seu
cotidiano, da sua vida, para o violoncelo. E é muito interessante
que não é fácil de transmitir. Já aconteceu muitas vezes durante
a minha trajetória de eu falar alguma coisa pro aluno durante
dois meses, mas não surte resultado. Aí eu paro de falar, porque
eu tenho que deixar um tempo pra ele pensar, são aquelas grandes
questões: por que, como, onde... Aí passa mais uns quatro ou
cinco meses sem comentar aquilo. Aí eu falo outra vez e, em
geral, depois de cinco meses que o aluno não pensou naquilo, a
ficha cai e o aluno diz "Por que você não falou mais cedo? É tão
fácil!" (risos). E isso já aconteceu diversas vezes. Então isso é
uma espécie de método. É uma relação do entendimento, no momento
que você entendeu a coisa se torna fácil. Eu sempre digo aos
29
alunos "Eu nunca vou ensinar uma coisa difícil pra vocês, o
violoncelo é fácil". Agora, uma outra questão que eu sempre digo
também é que estudar comigo não é estudar violoncelo, é mudar a
mentalidade. Pra você mudar o foco do pensamento, a grande
dificuldade do violoncelo é você mudar o seu foco para aquelas
grandes questões. Porque noventa por cento dos alunos - e o
Rostropovich dizia isso, ele dizia: "O problema todo é que a
maioria dos alunos não estuda, eles curtem." - então aquele
pedaço que tá saindo bonito ele toca noventa vezes, pra se ouvir,
pra se curtir. E aquele que não tá saindo ele toca uma, duas
vezes e depois volta a curtir. E eu sempre digo "Vai estudar o
que você não sabe, não estuda o que você sabe. O que você já sabe
não precisa estudar." Então esse é um fator bastante interessante
com todos os alunos, a maioria dos alunos gosta de se curtir.
Quando você julga necessário que um aspecto técnico deva ser
reestruturado?
Justamente quando a música não está saindo bonita. A técnica
é sempre em função da música, e aí que entra o seu bom gosto. E é
claro que aí entram várias coisas para você ter um bom gosto,
digamos, inteligente. Você precisa de uma cultura, saber do
30
estilo, conhecer a relação harmônica, figurativa, conhecer a
época, a história do compositor e o momento que aquela música foi
composta, e para quê. Então disso tudo, dessa panela cheia de
ingredientes, vai sair a boa cozinha, o bom arroz ou a boa
feijoada. Ou não. Se você não conhecer as medidas certas pra essa
panela de feijão tropeiro, sai um feijão sem gosto. Por isso que
o bom gosto requer uma gama de estudos separados, pra fazer uma
cabeça.
Quais são seus objetivos ao reestruturar tecnicamente um
aluno?
São sempre os mesmos. Tem dois objetivos: entender o que
estão fazendo e fazer alguma coisa de bom gosto, que não só ele
goste mas que todos gostem. Esse é o objetivo em todas as
profissões. Veja você, o ator estuda três ou quatro meses uma
poesia e depois sobe ao palco pra recitar essa poesia pra que?
Pra que o público goste. E com o aluno a relação é a mesma: ele
tem que ficar satisfeito e os outros também, com aquilo que estão
ouvindo.
Quais aspectos técnicos você reestrutura com mais frequência
nos seus alunos?
31
Essa é complicada. Em geral os alunos têm facilidades para
alguma coisa e dificuldades para outras. O que não quer dizer que
necessitem necessariamente de uma reestruturação. Tem muita gente
que tem facilidade com a mão esquerda e dificuldade com a
direita, principalmente os canhotos. Fazem vibratos bonitos com a
mão esquerda, mas têm grandes dificuldades com a direita. E o
contrário não é real. Os destros em geral não têm a dificuldade
com a mão esquerda, até hoje eu não entendi porquê. No estudo da
técnica, quando eu tenho alunos regulares, eu gosto muito de
separar por partes. Primeiro eu tento fazer o aluno entender o
funcionamento da mão esquerda, sempre começo pela mão esquerda.
Porque eu acho que em geral o entendimento da mão esquerda em um
ano você consegue "fabricar". A mão direita já é um pouco mais
complicada, os meus alunos que tiveram mais facilidade levaram
dois anos para entenderem globalmente a mão direita. Porque a mão
direita é a voz do instrumento, pra você descobrir diferentes
timbres, golpes de arco, sonoridades, volumes. E tudo isso leva
um tempo pra você dissecar, porque você só consegue entender
depois que você faz uma dissecação. É aquilo que a gente falou
antes, do relaxamento, você tem que saber qual músculo que está
32
ativo e qual está passivo, qual o impulso necessário naquele
trecho para você alcançar o que você quer. É a resposta a uma
daquelas perguntas básicas. Então isso leva um pouco mais de
tempo, mas não é nada de difícil, só exige paciência na hora de
estudar. Estudando aquilo que você deve estudar, não aquilo que
você já está fazendo bem. (risos) Então você tem que ir devagar e
fazendo pausadamente pra você ver o que está acontecendo, pra quê
que está acontecendo, o que você quer como objetivo. Meu pai
dizia muito "As mãos só fazem aquilo que estão acostumadas, nunca
aquilo que a gente quer que elas façam". Então, veja você, pra
você ter isso como um computador - que você abre uma janela e
abre uma gaveta onde você tem todo o material que você precisa -
você precisa saber exatamente o que vai funcionar naquela hora
exata. Porque o teu cérebro não manda você fazer um stacatto, ele
manda o músculo tal fazer tal movimento. E a consequência é um
stacatto. Você tem, por exemplo, o primeiro dedo da mão esquerda
que é o dedo guia, você tem o primeiro dedo da mão direita que é
o dedo guia também, ele vai te guiar pra fazer tal serviço, tal
trabalho. Isso que eu acho que é fácil, mas complexo, leva tempo.
33
Você mantém o ensino do repertório enquanto reestrutura
aspectos técnicos?
Com certeza. Justamente por essa diretriz que os aspectos
técnicos são em função da música. Você estuda o técnico pelo
técnico justamente pra você conhecer o que vai acontecer. E a
música é a aplicação. Então automaticamente estão interligados.
Quando você pretende reestruturar diversos aspectos técnicos
do aluno, você os faz ao mesmo tempo?
Não, nunca. Porque você precisa saber o funcionamento global
de cada coisa, pra você não misturar uma coisa com a outra. Se
você vai querer uma pimentinha no feijão tropeiro você não bota
açúcar e pimenta, porque o açúcar você vai botar no café depois.
Se você misturar as coisas vira uma confusão. Então é necessário
que você saiba o que é o açúcar, a pimenta, o café e o feijão
tropeiro. Você pode até misturar se você quiser fazer outra
comida, mas aí é por sua conta. Você precisa saber bem o que
aquele movimento vai te dar como resultado, pra você escolher na
hora ou antecipadamente. Eu bato muito numa tecla. Eu acho que
nenhum golpe de arco - ou movimento da mão esquerda - começa no
exato momento em que sai o som. Sempre tem que ter uma
34
antecipação, e essa antecipação - e aí eu volto ao início da
nossa conversa, onde eu disse que você tem que trazer a vida para
o violoncelo - na vida a gente sempre faz tudo antecipadamente.
Você por exemplo veio de São João Del Rei. Se você veio de ônibus
você primeiro olhou lá na placa do ônibus se estava escrito "São
João - Rio", se você entrasse no ônibus sem olhar, sem antecipar,
você podia ter pego o ônibus "São João - Salvador". Então, essa
relação de antecipação é uma coisa da vida, e você traz a vida,
ou o cotidiano, para o violoncelo.
Que critérios você usa para estabelecer uma ordem dos
aspectos técnicos a serem reestruturados?
Eu acho que em primeiro lugar você tem que entender o que é
a sonoridade, o que é um som. Então na mão direita você tem que
fazer son filé até você descobrir o que é a profundidade do som.
E na mão esquerda você tem que começar com um dedo, depois bota o
outro, até o quarto dedo. E depois as articulações, pra você
entender quais são as mudanças. E isso vai paulatinamente, você
vai começar no arco, por exemplo, a fazer a divisão do arco, a
relação matemática, dividir em dois, quatro, oito, dezesseis,
etc. E isso com notas ligadas ou não, pra você descobrir o
35
manejo. Isso tudo é pra que você, na música, saber quanto você
gasta em uma colcheia, em uma semínima pontuada, e assim por
diante.
O que você desenvolveu sozinho (sem a ajuda de algum
professor) na sua técnica violoncelística?
É difícil eu dizer o que eu desenvolvi sozinho, porque eu
acho que tudo a gente desenvolve sozinho. Como a música não é uma
ciência exata você tem algumas sugestões, você não tem regras.
Então quando você vê na matemática que dois vezes dois são
quatro, na música dois vezes dois nem sempre são quatro. Porque o
arco seria um arco inteiro, mas você pode fazer duas notas e não
usar metade do arco. Mas são metades, ou metades de metades.
Então essa relação nunca é matemática. Existem sugestões de
resoluções de problemas, e que na realidade - e aí voltam aquelas
perguntas - você se depara com problemas. Eu sempre digo que a
gente tem que fazer um estudo inteligente. A primeira coisa é
descobrir qual é o problema. Segundo, como vou resolver esse
problema. Um estudante de matemática tem que ter a inteligência
de saber ler o enunciado do problema. Porque na realidade as
respostas estão todas no enunciado, na pergunta. Se você souber,
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tiver a inteligência pra entender a pergunta, você terá 90% da
resposta. No violoncelo, na música é a mesma coisa. No momento
que você entendeu onde é que está o problema e que tipo de
problema - porque cada problema é diferente - você entende qual é
a solução. E aí na pesquisa diária você vai encontrar a solução.
Agora tem milhões de sugestões, a literatura de violoncelo hoje
está realmente muito boa, na minha época não tinha, por isso que
eu ia “filmar” os caras fazendo (risos). Então hoje a literatura
tem milhões de sugestões, tem muitas coisas que têm o mesmo
pensamento e muitas outras que têm o pensamento diverso daquelas,
mas tem, isso que é importante. E você tem material pra garimpar.
Quais foram algumas conclusões que você chegou com suas
experimentações ao violoncelo?
A primeira conclusão é justamente na relação do relaxamento.
O relaxamento é a coisa principal no violoncelo. Porque? Porque
eu vi muita gente que teve problema de tendinite, de quebras de
tendões e o diabo, e vejo até hoje. Já tem até uma especialização
na classe médica de doenças de músico. E todos aqueles que eu vi
que tiveram problemas tinham na mesma proporção tensões. E outros
eu avisei, falei "Olha, daqui a dez anos você vai ter problema
37
aqui ou aqui". Porque eles estavam tensionando, não por
tensionar, mas forçadamente. E um músculo forçado com certeza vai
quebrar. O próprio Pablo Casals já dizia "Um músculo nunca pode
usar todo o seu potencial. Tem que ser no máximo a metade". Isso
quer dizer o que? Que tem que trabalhar com o relaxamento. Não
pode fazer muito esforço, se você fizer esforço vai ter tensão.
Se você traçar uma comparação com os próprios esportistas, você
vai ver que aqueles que levantam peso o fazem em séries. Série de
dez, descansa, série de dez, descansa. Isso aí é o princípio, não
fazer cem de uma vez. E o que a gente vê é que o pessoal fica
estudando horas e horas, forçando o corpo. Além disso você tem
que ter conhecimento do teu equilíbrio, porque cada um tem um
equilíbrio. É a mesma coisa pra andar de bicicleta, se você não
desequilibrar na hora de fazer a curva e só virar o guidom,
acabou. O que quer dizer isso em relação ao violoncelo? Que você
tem que conhecer cada pedacinho do teu corpo, se está em
equilíbrio com o resto do corpo. Eu já tive um aluno, por
exemplo, que tinha tensão no polegar do dedo do pé. Quando eu
descobri, a primeira coisa que eu falei foi "Tira o sapato que eu
quero ver uma coisa no seu pé" (risos). E ele estava com a meia
38
furada, não queria tirar de jeito nenhum. E eu disse "Se não
tirar eu não dou aula!". E aí ele tirou e eu vi que ele estava
com o dedo tensionado. E eu disse "Se você tensionar aí, aqui não
vai sair" (mexe o braço esquerdo). Então você tem que conhecer o
teu corpo. Tem que conhecer o teu equilíbrio sentado, sobre o
violoncelo. Essa relação é muito importante pra você tocar.
2.2 – ENTREVISTA COM MÁRCIO CARNEIRO
Entrevista realizada no Solar da Baronesa em São João Del
Rei e na Sala Sérgio Magnani da Fundação de Educação Artística,
nos dias 8 e 9/09/2011.
39
Com qual idade e como você iniciou seu aprendizado no
violoncelo?
Eu acho que o violoncelo a pessoa pode começar bastante
cedo. Eu comecei com a idade de cinco anos e acho que nesta
idade já é possível. Talvez corresponda ao momento que a pessoa
entra na escola. Esse início para mim não foi problema nenhum.
Posso dizer que tive a sorte de começar com professora Nydia
Soledade Otero, que foi uma das melhores pedagogas para se
iniciar no violoncelo que o Rio de Janeiro teve. Esta senhora não
era uma virtuosa no violoncelo, e apesar disso sabia cativar e
empolgar as crianças para a música e o instrumento. Ela tocava na
Orquestra Sinfônica Nacional, e tinha acompanhado em Paris
algumas master-classes de Paul Tortelier. Daí ela guardou algumas
ideias para o arco e para a mão esquerda, as quais ela exigia dos
alunos e que eram válidas e fundamentais, como, por exemplo, a
posição arredondada do braço esquerdo, que é de grande
importância para a liberdade do braço. Todo principiante quebra o
pulso porque aperta demais o polegar. A dona Nydia usava a
imagem, neste caso, que a criança tinha que deixar a mão bastante
curva para que um rato pudesse passar por baixo. Imagens deste
40
gênero eram especialidade da Nydia, e elas ficam para sempre na
memória das crianças.
Outro ponto importante é como a pessoa está sentada no
violoncelo. Quando vejo fotografias minhas tocando violoncelo no
início, me dou conta que estava sentado como se deve, quer dizer,
sem torcer a parte superior do corpo, o que eu chamo de “saca-
rolha”. Isto eu não devo ter descoberto sozinho, fazia certamente
parte das coisas que a Nydia insistia. Também o ângulo do arco e
o ângulo da mão sobre o arco, que o iniciante tende a exagerar
para a esquerda e não fazendo uma linha reta do punho com o
antebraço, faziam parte das exigências básicas da professora
Nydia.
Me lembro também dos meus estudos de Dotzauer, principalmente
primeiro e segundo livros, onde vejo escrito muitas vezes em
vermelho "de novo", isso significava que era para trabalhar de
novo, certamente duas semanas a mais. Quando havia um segundo “de
novo” este estava escrito com mais raiva porque vê-se que o lápis
entra nitidamente mais profundamente no papel. Alguns estudos
chegam a ter três vezes “de novo”. Ela era uma pessoa que
insistia. O resto eu não me lembro muito bem, mas de qualquer
41
maneira nada chegou a ser extremamente árduo. Eu tinha gosto em
trabalhar tudo o que ela pedia.
Para muitas coisas ela não dava a solução, de maneira que o
aluno tinha que procurar sozinho. Por exemplo, o prelúdio da
primeira suíte de Bach, que eu devo ter trabalhado pela primeira
vez com uns seis anos de idade. Tocava-se, naquela época, oito
notas por arco. E as mudanças de corda, sobretudo das últimas
quatro notas, eram, para um iniciante, extremamente difíceis. Eu
devo ter procurado aquilo durante horas cada dia, e me lembro
perfeitamente da minha felicidade quando comecei a compreender
qual era a solução do problema. Isto para mim foi, sem dúvida, a
primeira tomada de consciência de que o trabalho do instrumento é
um pouco como a bicicleta: parece impossível no inicio, mas se
você insiste acaba conseguindo. Este processo de aprendizado, a
meu ver, é válido em todos os níveis.
Mas como você começou a estudar? Foi iniciativa de seus
pais, sua?
Eu toco violoncelo graças à grande violinista Mariuccia
Iacovino, que faleceu no ano passado (2010) com mais de 90 anos.
Mariuccia era esposa do grande pianista Arnaldo Estrella, que
42
deveria me indicar um professor de piano. Como eram praticamente
nossos vizinhos, eu lá fui para me apresentar ao Estrella. Mas
quem me recebeu na porta foi ela, que, pegando na minha mão,
disse: "Você não vai tocar piano, mas sim violoncelo, porque há
muitos pianistas e precisamos de violoncelistas para música de
câmara". Eu disse "ok", aquilo para mim não fazia muita
diferença. Chegando em casa perguntei aos meus pais o que era um
violoncelo. Alguns dias depois tive a primeira aula coma
professora Nydia, imagino que nos bastidores devem ter acontecido
vários telefonemas. Devo dizer que eu gostei logo de cara, apesar
que violoncelo naquela época era uma coisa meio fedorenta, por
causa das cordas de tripa ao natural, que não eram lisas. Para
que as mudanças de posição fossem mais suaves a Nydia passava um
pouco de manteiga nas cordas. O calor do Rio de Janeiro,
misturado com o suor e a manteiga davam aquele cheiro! Eu me
lembro desse cheiro, até o dia que chegaram as cordas de metal e
ele desapareceu.
Eu continuei com a Nydia até a idade de 13 anos. Ela não ensinava
em nenhuma instituição, mas sim particularmente. Foi sem dúvida
uma das mais geniais professoras para crianças e jovens, mesmo a
43
sua técnica sendo limitada. Ela sabia insistir nas prioridades e
não era um problema se um aluno talentoso inevitavelmente, a
partir de um certo momento, tocasse melhor do que ela. No caso de
Antonio Meneses, isso já aconteceu certamente na segunda aula. As
aulas na casa da professora Nydia aconteciam sempre aos sábados,
porque não havia escola. Ela juntava toda a criançada e
passávamos a tarde escutando uns aos outros e comendo pastéis. Eu
me pergunto se essa ideia ela não trouxe também das master-
classes de Tortelier, que também eram conjuntas. Isto é uma coisa
importantíssima, aprende-se muito escutando os outros. Quando fui
trabalhar com Navarra as aulas também eram conjuntas e isto para
mim nunca foi estranho nem cansativo. Claro, escutar as aulas dos
outros tem momentos muito chatos onde não acontece nada, mas a
longo prazo aprende-se muito.
Devido ao fato de meus pais quererem que eu tivesse um
diploma, e também pelos cursos teóricos, eu entrei no
Conservatório Nacional de Música. Era ainda o sistema antigo, com
o conservatório preparatório, a partir dos doze anos de idade, e
o superior a partir dos dezoito, para um curso de quatro anos.
Entrei na classe de Iberê Gomes Grosso, que era uma instituição,
44
um monumento. O Iberê era uma pessoa muito séria e ao mesmo tempo
muito brincalhona, era realmente uma personalidade. Nesta época
estudavam com o Iberê, entre outros: Atelisa Salles, Marcio
Mallard, Guerrinha Vicente, Watson Clis... E esta foi a grande
classe do Iberê. Eu ficava um pouco de lado, pois era uns quatro
anos mais jovem e escutava com timidez as aulas dos grandes. Não
enturmava muito com a classe porque depois da aula eu tinha que
voltar para casa e os outros iam com o mestre “rezar” na Capela.
O Iberê adorava uma cachacinha, todos iam para esse bar que se
chamava "Capela".
Mas o Iberê era seríssimo no trabalho, ele não suportava um
aluno desleixado, e isto nos marcou muito. Iberê tinha sido
discípulo de Alexanian, isto significava muito son filé (arco
lento no cavalete) e muita articulação (ginástica de dedo – o
exercício de Casals na corda de dó do método do Alexanian). Com
esses exercícios Iberê deixava muita margem livre para que cada
um desenvolvesse a sua maneira de tocar e a sua sonoridade,
analisava-se e explicava-se muito menos ao aluno naquela época do
que hoje. Eu sou também muito grato ao Iberê pelo fato dele fazer
os alunos trabalharem uma suíte de Bach por ano. Quando entrei na
45
sua classe refiz a primeira suíte, depois no ano seguinte a
segunda e por aí em diante, você ficava o ano inteiro com uma
suíte na estante. Com dezenove anos cheguei na última suíte, a
sexta. Eu vejo com uma certa apreensão que hoje em dia pretende-
se aprender obras difíceis, como uma suíte de Bach, em pouco
tempo. Para Iberê havia também os caprichos de Servais, mas
sobretudo os doze de Piatti, que eram obrigatórios. Ficava-se
quatro ou cinco meses trabalhando um capricho, e tenho certeza
que toda a técnica que eu tinha na época foi feita com Piatti. Já
falando um pouco da reestruturação, estou convencido que não se
deve trabalhar obras rapidamente, pois não se assimila muito. O
estudo é medicina, é homeopatia, tem que se dar tempo àquilo para
fazer efeito. Outro dia um aluno me perguntou "É bom trabalhar
uma escala cada dia numa tonalidade diferente?". Eu acho que não.
Um estudante deve ficar algumas semanas numa tonalidade para
compreender as peculiaridades e as características de cada uma
delas. Quando a pessoa está começando a entrar nesse mundo da
técnica, não pode querer rapidez. A técnica é homeopatia, é uma
coisa que vai lentamente. É claro que com dezessete anos esta não
era a minha situação. Neste momento, com stress de final de
46
escola, vestibular, comecei a ter problemas sérios com a parte
superior do arco, que cansava muito. Eu me lembro que mal
conseguia chegar ao final de um prelúdio de Bach. A crispação do
braço estava muito grande, mas eu fui levando a coisa, e tinha
uma certa timidez de comentar meus problemas de arco com o Iberê.
Nesta altura (1969), para mudar de ideias, resolvi me
inscrever no curso de música de câmara do festival de ouro preto.
Tinha um professor francês, eu pensei "Deve ser divertido, vou
fazer música de câmara durante um mês em Ouro Preto, deve ser
mais fácil, e talvez o braço desemperre". Este festival em Ouro
Preto mudou a direção da minha carreira, pois fui premiado com
uma bolsa de estudos para a Alemanha. Estou seguro que aprendi
muito com Iberê, ele exigia muita coisa de fraseado, perfeição,
ele não suportava uma coisa desleixada, musicalmente ou
tecnicamente. Ele era uma pessoa muito digna, sempre muito
arrumado. E é gozado, ele tinha um lado extremamente carioca, de
futebol, de cachaça. Adorava praia - morava no Leme - apesar dele
ser de Campinas, mas foi para o Rio muito cedo. Sobrinho-neto de
Carlos Gomes, pertencia à família de músicos talvez mais
47
importante de todo Brasil. Então, continuando os meus estudos na
Europa com Navarra, a reestruturação da técnica foi inevitável.
Comente sobre sua trajetória estudantil e profissional.
A minha trajetória aconteceu sem grandes interrupções. Fui
para Europa e trabalhei cinco anos com Navarra, como estudante.
Três anos do que seria hoje em dia um "Master" em instrumento, ou
seja, um diploma final de conservatório superior. Naquela época o
professor decidia quanto tempo o aluno ia trabalhar com ele, os
critérios eram bastante diferentes do que hoje em dia.
Fundamental era a relação entre idade e capacidade. Um virtuoso
de vinte e cinco anos muitas vezes não era interessante para a
escola, porque não tinha mais tempo suficiente para uma
inevitável reestruturação da técnica. Mas um jovem de dezoito
anos com problemas, mas com possibilidades de grande
desenvolvimento, era viável como aluno, como, por exemplo, vários
diplomados do conservatório de Paris que, apesar dos méritos,
reestruturaram a técnica com Navarra na Alemanha, onde a idade
média para o diploma era entre 24 e 25 anos, o que é muito mais
realista. Fiz, portanto, três anos que correspondem ao "Master" e
depois mais dois do que seria uma pós-graduação chamada "Exame de
48
Solista", com um exame de admissão muito puxado. Esta foi a época
dos concursos, e também quando comecei a trabalhar como
assistente de Navarra. Depois disto vieram dois anos de orquestra
e os prêmios nos concursos de Moscou e de Belgrado, que ajudaram
de certa maneira. No início, quando você ganha um prêmio, tem
gente que se interessa por você e há muitos concertos, mas isso
não dura muito e logo acaba. Este foi o momento em que abandonei
a orquestra, pois comecei a gostar muito de ensinar. Nessas horas
a pessoa nunca sabe se está agindo bem ou não. A orquestra foi
substituída por uma coisa muito importante, um quarteto de cordas
do qual fiz parte durante um ano e meio. Por uma coincidência o
quarteto funcionava na mesma região, em Hannover. De certa
maneira “peguei o bonde andando”, pois o violoncelista tinha
abandonado o quarteto subitamente, e eu tive que passar semanas
terríveis, as noites inteiras com um "capacete", fones, escutando
discos de quartetos e tocando junto. Eu tinha que digerir todo
este repertório, e meus colegas foram de extrema paciência
comigo, ensaiaram mil vezes coisas que eles não teriam a
necessidade de ensaiar, pois já conheciam. Mas eles refizeram
aquele repertório todo comigo, e foi uma experiência
49
extraordinária, apesar de eu ter sentido imediatamente, já no
segundo ensaio, que eu não era um músico de quarteto. Apesar de o
quarteto ter funcionado muito bem, eles me adoravam e eu os
adorava, humanamente a coisa funcionava. Mas a maneira de tocar
num quarteto é muito diferente, mesmo comparando com a orquestra.
Ser violoncelista de quarteto é um pouco como uma vocação, é uma
forma de tocar bastante especial. Do ponto de vista humano, é
realmente um casamento a quatro. Casamento a dois já é
complicado, a quatro... Mesmo se durante um ano e meio a coisa
funcionou maravilhosamente, eu já via perfeitamente onde viriam
os problemas se eu ficasse mais tempo. Mas foi uma experiência
extraordinária.
Nesses cinco anos houve momentos de grande liberdade onde eu
era “freelance”, não tinha orquestra nem quarteto e pouco
ensinamento, só concertos e viagens. Foram anos ótimos. Depois,
contra toda a expectativa, uma professora de violoncelo na
universidade de Detmold por razões completamente inesperadas,
problemas de família, se demite, e a vaga ficou aberta. No início
eu não me interessei. Navarra nunca influenciava os alunos nessas
decisões. Alguns até não compreendiam isso. A filosofia dele era
50
ajudar enquanto professor, e ajudava muitíssimo. Eu devo dizer
que não somente me tornei muito amigo dele, mas ele foi para mim
um professor não só de violoncelo, mas de tudo. Uma pessoa
extraordinária. Mas com respeito à carreira era "Cada um por si".
Com ele tinha sido assim. Navarra foi filho de gente da terra do
interior da França e ele se fez absolutamente sozinho. Com
dezesseis anos recebeu um "Premier Prix" e se viu em Paris
completamente sem dinheiro e com aquele diploma na mão. Ganhava a
vida tocando em cinema mudo. Depois tocou durante 22 anos em
orquestra, até ser reconhecido como um virtuose. Claro, ele
começou muito cedo, depois de 22 anos de orquestra tinha somente
40 anos. Voltando a Detmold, quem me influenciou foi um famoso
violista da época chamado Bruno Giurana, que ainda vive, dirige
de vez em quando e ensina como professor honorário na Academia de
Fiesole na Itália. Apesar da diferença de idade - 20 anos a mais
– nós éramos bons amigos e foi ele que me telefonou: "Eu soube
que você não se candidatou para a cátedra", eu respondi que nâo
estava interessado, “a Alemanha eu já conheço, eu quero ir para
França...", eu disse umas besteiras assim. E ele passou uma hora
no telefone me convencendo: "Você é um idiota se não se
51
candidatar, lugar igual a esse não existe outro!". E então, para
agradá-lo, eu me inscrevi e me tornei professor em Detmold, onde
fiquei 30 anos. Nos primeiros anos eu me tornei então colega do
Navarra e ele me deu muitos conselhos, além de "herdar" alguns
alunos quando a sua classe estava cheia demais. Era outro nível
de contato com meu antigo mestre, e isso foi muito bonito. Eu
cheguei como um brasileiro todo temeroso e Navarra demorou para
me registrar. Na classe ficava todo mundo sentado e ninguém sabia
quando ia tocar. Ele me olhava e dizia "Agora é o argentino que
vai tocar." Eu não me preocupava, pois sabia que um dia ele iria
aprender o meu nome e entender que o argentino era brasileiro.
Demorou um ano! O maior elogio de Navarra na aula - quando o
aluno tocava maravilhosamente - era: "Não está mal". Quando ele
dizia "Não está mal" você podia ficar contente. Um dia escuto o
mestre dizer a um ex-aluno, enquanto eu afinava: "Você vai ver,
esse aí toca muito bem". Essas coisas ficam na memória. Acho que
nunca toquei um Katchaturian tão espetacular. A pedagogia dele
era assim. A partir daí ele soube que eu era um aluno sério, que
"mandava brasa", e começou a me respeitar. Alguns anos depois
houve o momento em que ele me chamou para ser seu assistente e
52
depois, na última fase, quando eu voltei a Detmold para ser
professor, éramos colegas. Esses degraus de afinidade eram muito
claros para ele: Você é estudante, você é amigo, você é colega.
Ele me tratava sempre pelo tu, e eu óbviamente sempre o tratava
pelo vós. Isso era o velho estilo...
Você já passou por alguma reestruturação técnica? Se sim,
como foi?
Eu acho que meu caso não foi excepcional. Vários fatores
como o final da escola, vestibular, stress psíquico de todos os
jovens neste momento, aquela indecisão, mas sobretudo, a meu ver,
o lado físico, o fato do corpo chegar ao seu desenvolvimento
adulto, e a necessidade de tocar não mais como um jovem mas sim
como um profissional, facilitam a entrada numa crise instrumental
que pode tomar, a meu ver, uma proporção bastante dramática. Você
pode observar que quanto maior for o talento ou se se tratar de
um "prodígio" mais difícil será passar por esta fase. Claro que o
professor pode ajudar e aconselhar muito numa hora assim. Quando
fui para Europa eu estava num estado no qual mal conseguia chegar
no final de um prelúdio de Bach. Tocava bem, a mão esquerda
53
funcionava, mas o braço direito estava absolutamente emperrado.
Me lembro que toquei para Navarra o concerto de Schumann, e o
prelúdio da Sexta Suíte de Bach. Ele tinha, claro, uma certa
experiência e me disse: "Olha, se você quiser trabalhar comigo
você vai ter que fazer seis meses de corda solta, exercícios e
mais nada". E eu me lembro que respondi: "Maestro, o senhor faça
comigo o que quiser, porque de qualquer maneira eu não sei
tocar". O absurdo no sistema atual nas Universidades de música,
que consideram os estudos instrumentais quase como uma ciência, é
que não colocam o tempo necessário à disposicâo do aluno para
reestruturar sua técnica. Estudar entre a idade de 18 e 24 anos
instrumentos como o piano e as cordas é ter de 5 a 6 horas por
dia de trabalho consigo e o instrumento e não ser ocupado com
projetos muito interessantes, mas que não são fundamentais.
Naquela época um Navarra, por exemplo, exigia que ELE decidisse
quem ia tocar na orquestra, quem ia fazer música de câmara, e
durante os primeiros três semestres ninguém fazia mais nada além
daquilo que ele quizesse. Eu passei realmente um semestre inteiro
fazendo corda solta e um concerto de Romberg (para não desesperar
musicalmente), além de um estudo aqui e outro ali. Navarra foi um
54
dos professores que mais dava importância à reestruturação
técnica. Tortelier também, mas era uma personalidade mais
difícil, Gendron muito menos e com Rostropovich era cada um por
si, ele não dizia quase nada de técnica. Navarra - e isso talvez
um pouco como o Iberê, num outro nível - não suportava que alguém
tocasse uma peça que não estivesse, do ponto de vista
instrumental, perfeita, porque considerava que era blefe, que era
amador. Ele estava muito consciente dos perigos físicos do
violoncelo, sobretudo numa formação de músico de orquestra -
depois de vinte anos de repente emperra aqui, emperra ali. Ele
dava uma importância enorme da pessoa ter uma maneira de tocar
que não fosse contra o físico.
Na mão esquerda aquilo que ele exigiu na reestruturação
foram coisas que eu já conhecia, mas nunca tinha chegado às
últimas consequências (como se voce soubesse onde fica o “fitness
center” mas nunca ter entrado). Ele fez trabalhar muitos
exercícios, muito Feuillard e coisas assim, e eu me lembrava
constantemente da Nydia com a história do punho redondo e do
Iberê com o método de Alexanian. Então, os exercícios de mão
55
esquerda e também a maneira de fazer escalas não eram "chinês"
para mim, aquilo tudo eu sabia, apesar de não conseguir fazer.
Comecei o trabalho com Navarra em abril e em julho eu fui fazer
um curso de verão, onde ele me botou trabalhando com um
assistente italiano, já que eu não tocava nada além de corda
solta e escalas - das quais eu não conseguia tocar as duas
últimas oitavas porque a coisa não estava coordenada. Você vê
mais ou menos a situacâo: eu tocava o concerto de Schumann quando
saí do Brasil, mas era incapaz de tocar as duas últimas oitavas
da escala de quatro oitavas como se deve. Todo o meu Schumann
era, certamente, condicionado a este nível técnico! Eu passava
horas e horas trabalhando aquilo, certamente com pouco resultado.
Eu não me lembro, mas minha mão direita - ou seja, a ponte
que liga o braço ao arco -devia estar muito crispada, com pouca
flexibilidade, como um automóvel sem amortecedores (faz
movimentos com o braço inteiro, sem flexibilizar a mão). O
polegar devia estar apertando enormemente, e aí comeca o bloqueio
do braco. Navarra insistia muito na flexibilidade do punho e na
consciência da atividade de cada dedo da mão direita, fator
56
primordial da sua técnica de arco, que decorria dos princípios de
Flesch, com o qual ele pode discutir e que o influenciou
decisivamente. Aquilo para mim era complicado, pois não tinha o
hábito de trabalhar o arco neste nível. Navarra dizia sempre
quando chegava um aluno "Você precisa ter paciência durante dois
meses". Na realidade é bem mais do que isso. Me lembro de ficar
no primeiro semestre horas e horas, homeopaticamente (aquilo
cansava a cabeça, aí eu fazia uma pausa) na frente do espelho
procurando e exercitando. Apesar de não conseguir fazer aquilo
que ele queria eu sabia muito bem onde eu iria chegar, sabia
perfeitamente o que ele queria. Navarra tocava muito na aula. Nós
estávamos todos ali sentados e ficávamos escutando e observando
como sua técnica funcionava. Isto ajuda muito, entra na memória,
você "fotografa" e depois em casa tenta fazer o mesmo. Naquela
época era obrigação de cada aluno escutar as aulas de todos os
outros, era um fator extremamente importante. As escolas
superiores hoje em dia dificultam isso, porque os alunos estão
exageradamente ocupados. Um aluno que diz não ter tempo para
escutar a aula de outro que toca a mesma peça é inimaginável,
incompreensível! Eu estou seguro que num período de quatro a
57
cinco anos de trabalho com um mestre, aprende-se não menos
escutando os outros do que na própria aula.
Com Navarra a reestruturação técnica acontecia com
exercícios bastante definidos. Havia o exercício de dedos no
talão, para provocar a forca e a flexibilidade dos dedos,
sobretudo o relaxamento do polegar. O equivalente na ponta
provocava a estabilização do primeiro dedo como ponte por onde
passa o peso dos ombros para chegar ao arco, e a consciência do
contrapeso. Não se deve esquecer que em toda performance física a
flexibilidade ou impressão de facilidade e leveza só será
possível se os alicerces necessários estão bem estáveis.
“Flexibilidade não é moleza” dizia Navarra frequentemente. Para
esses exercícios que também eram trabalhados no ponto de
equilíbrio do arco (spicatto) usava-se o sétimo estudo de Duport
em inúmeras variações. Outro exercício excelente fazia-se com o
segundo estudo de Duport, com arcadas especiais e numa velocidade
enorme. Aquilo obrigava você a relaxar o braço, o braço entendia
a coisa, senão você não conseguia tocar. Eu me lembro que com
esses exercícios de arcos rápidos o braço liberou. Na base, o
58
trabalho do arco (son filé) faz-se lentamente. Quando a pessoa
está trabalhando arco, imagina uma coisa lenta, e isso é válido.
Mas os exercícios de rapidez de arco, e mesmo de muita rapidez,
são importantíssimos, eles provocam de repente um clique. Eu me
lembro desse dia exatamente. Estou convencido de que o progresso
técnico não são linhas contínuas. De repente faz clique. Você
investe, investe e aquilo fica como burro na ponte, não avança, e
de repente funciona. E o processo inverso é a mesma coisa. Quando
você começa a usar o tanque de reserva, ou a queimar as reservas,
parece que ainda funciona e de repente voce nâo está mais em
forma. Mas precisará de dois meses árduos para voltar ao nível de
antes. É estranho isso. Da mesma forma o trabalho com um mestre
exige muita confianca e paciência, pois no início pode-se mesmo
ter a impressão que a coisa regride. Os momentos de progresso são
repentinos e acontecem só depois de grandes fases de
investimento. O professor deve explicar com palavras simples, a
explicação não pode ser complicada, palavras simples, metáforas.
Insisto na necessidade de observar o professor, porque aquilo
fica na memória visual e depois você senta na frente do espelho e
tenta fazer uma coisa parecida. Com um exemplo nítido na memória
59
tudo fica mais fácil e a confiança é maior. O professor estará
sempre à disposição, claro, para dizer se tudo está indo numa boa
direção. Um outro elemento fundamental na reestruturação é a
posição ou postura, quer dizer, a maneira como se está sentado
com o violoncelo. Para mim isto foi relativamente fácil,
certamente graças à Nydia e ao Iberê, que insistiam neste aspeto.
O corpo não deve sofrer nenhuma transformação para se adaptar ao
instrumento. A posição tipo “saca-rolha” da qual falamos antes é
um defeito muito sério. Eu noto que há um grande número de alunos
que têm esse problema, e que não estão conscientes disso. Com uma
postura assim a coisa já emperra muito mais facilmente. Navarra
me dizia às vezes "Teu espigão está alto demais ou baixo demais"
mas, no mais, parecia sempre contente com minha posição.
Resumindo, a crítica da posição é o primeiro ponto numa
reestruturação técnica.
Dois elementos que são também importantes numa
reestruturação são a respiração e o que chamo de fluidez do arco.
Tortelier fala da respiração consciente já no início de seu
método, aconselhando exercícios simples, como escalas de duas
60
oitavas com um arco lento, para baixo inspirando e o arco para
cima expirando. Isso é muito bom, pois desenvolve o hábito de não
parar de respirar diante de um problema técnico, o que acontece
mais frequentemente do que se pensa. Quanto à fluidez do arco,
trata-se de mantê-lo sempre no bom eixo, de maneira que nada
impessa seu caminho em qualquer velocidade (distância do
cavalete) desejada. O que se chamava de arco “paralelo”. Eu
prefiro a expressão “arco sem tendência” de mudar de velocidade
(distância do cavalete) independente da vontade do artista. Noto
que muitos estudantes não estão conscientes da importância disso
e das consequências musicais (ritmo, acentos, dinâmicas,
colorido) que uma boa ou má fluidez do arco pode provocar. Na
classe de Navarra esse ponto, como também a afinação, eram
óbvios. Ele explicava uma vez e você tinha que demonstrar ter
aquilo como prioridade fundamental. Como as aulas eram num bloco
de quatro dias por mês e com uma noção de disciplina um pouco
antiga, voce não podia desleixar, sabendo que a aula podia acabar
depois de três minutos se o mestre notasse que o aluno não tinha
feito o esforço que ele esperava. (Imagine isto hoje...). Ele
tinha uma frase terrível: "Você pode enganar a você mesmo, mas
61
não a mim, vai trabalhar". E a aula acabava. Esse lado da
motivação psíquica, da pessoa realmente fazer um esforço, é
extremamente importante, ou seja, o "medo" da reação do seu
professor, dele ficar desapontado e, sobretudo, as aulas sendo
conjuntas, não querer passar vergonha na frente dos colegas. O
professor é como um médico, mas os colegas representam um lado
psicológico importante para que a medicina funcione. Nessa
reestruturação técnica, que necessita muita coragem, esses
fatores também têm um papel importante. Você quer o progresso,
você insiste para poder levantar a cabeça na frente do professor
e dos colegas que estão assistindo a aula. Não se deve
menosprezar esses fatores.
É interessante observar como uma reestruturação técnica pode
acontecer em vários momentos da vida, mesmo anos depois da época
de estudos. Me lembro, por exemplo, durante a minha época
"freelance", sendo já um profissional que tem a sensação de poder
realizar o que quer com a mão esquerda, de gravar para a
televisão no Rio de Janeiro a Sonata Arpeggione, e ver o programa
alguns dias depois. Gostei musicalmente de muita coisa, também o
62
arco e a mão esquerda me impressionaram positivamente, mas eu
fiquei chocadíssimo com o vibrato! Eu me disse "pensei que eu
vibrava, mas o vibrato está uma catástrofe". O vibrato era o
tempo todo rápido demais, e não mudava. Isso depois de toda a
reestruração técnica, eu já era profissional, já tinha ganho
concursos. Me dei conta que ali havia uma coisa enorme a
descobrir. Resolvi então atacar o problema e trabalhei o
movimento do vibrato durante uns seis meses, uma meia hora por
dia, para que se tornasse mais condutível e para que eu tivesse
maiores possibilidades de expressão. Descobri muita coisa não
somente para o vibrato, mas também, por exemplo, para poder tocar
rápido. Não quer dizer que eu não sabia tocar rápido antes, mas
certamente gastava muito mais energia do que precisava. O grande
responsável era evidentemente o polegar, e eu me lembrava de uns
comentários de Navarra a este respeito durante meus estudos. Hoje
estou seguro que ele não considerava na época o trabalho no
vibrato uma prioridade para mim e que eu teria que desenvolver
outras coisas antes, esperando que um dia me interessasse pelo
vibrato, o que por sorte aconteceu. Estes são os grandes mestres
que trabalham as prioridades na ordem certa. Uma vez, para um
63
jornal francês, eu disse que um professor como Navarra era para
toda a vida, pois muitos dos seus ensinamentos só revelam seu
sentido com o passar do tempo. Essa história é interessante, ela
revela que uma primeira reestruturação é imprescindível entre 18
e 23 anos, quando o físico se desenvolve como adulto, junto com a
necessidade de uma técnica profissional, mas depois pode ocorrer
a qualquer momento para complementar alguns aspectos, se a
crítica e a vontade existirem no artista.
Qual a importância que você atribui ao seu processo de
reestruturação?
Importância? Capital! Se eu não tivesse feito isso eu não
poderia tocar violoncelo! Eu tive a sorte de ter caído nas mãos
de um professor que queria e podia me ajudar. Também as
instituições sabiam o que era necessário no emprego do tempo para
fazer um violoncelista profissional. Alguns desses princípios,
fundamentais para o sucesso de uma formação instrumental (cordas
e piano), desapareceram completamente das universidades hoje em
dia. Isto é preocupante. É uma diferença muito, muito grande você
tocar um instrumento como adolescente e fazer isso
64
profissionalmente, quando a perfeição começa a ser necessária em
tudo o que se faz, desde a corda solta. Por isso a reestruturação
da técnica é fundamental. O meu respeito pelo pedagogo que exige
isso é enorme, não se contentando com os lados talentosos ou as
facilidades de um aluno, mas investindo nas coisas básicas onde
há lacunas. Evidentemente este tipo de trabalho requer mais
confiança, paciência, esforço e tempo. Nos grandes talentos, ou
mesmo prodígios do violino ou do piano que “quebram”, ou não
sabem mais de repente como a coisa funciona, falta o conselho de
um professor e também a coragem para refabricar ou reestruturar a
técnica. Nessa hora é necessária certa humildade para reconhecer
a urgência deste trabalho.
Quais são as dificuldades que podem ser encontradas quando
se reestrutura algum aspecto técnico?
Falta de paciência, o desespero, a pessoa se jogar num lago
com uma pedra no pé (risos). É claro que a reestruturação técnica
não é como ir no "fitness center", requer mais paciência e
intuição. Fundamental também você ajudar a memória observando o
professor e as aulas dos colegas, onde você está muito mais
65
tranquilo e objetivo do que na própria aula, onde se está sempre
um pouco “emocionado”. Quando eu escutava Navarra e observava
como ele trabalhava com outro aluno o mesmo problema da minha
aula, eu compreendia muito melhor. É importante você escutar as
aulas de outras pessoas, mesmo se há momentos vazios e chatos,
mas a longo prazo aprende-se muito. A intuição, com a ajuda do
professor, de se estar trabalhando na boa direção, e mesmo se
nada funciona ainda como você imagina, sentir que “a direção é
essa, eu vou chegar lá" necessita muita paciência, pois em certo
momento voce chega a tocar pior do que antes. Você chega mesmo a
não poder tocar! Como jovem, por exemplo, eu tocava oitavas
quando apareciam e não me preocupava, mas, quando comecei a
trabalhar oitavas como se deve, o músculo do polegar cansava
fácilmente e eu tinha que parar. Isto é normal. A intuição deve
dizer de insistir pouco a pouco até o músculo se firmar. Esses
processos são sempre bastante lentos e um perigo na
reestruturação é o aluno abandonar a “ginástica” antes do
resultado. Resumindo, paciência, confiança na sua intuição e nos
conselhos do professor e não abandonar o processo de fabricação
antes de um verdadeiro resultado me parece ser a boa receita.
66
Quais são as estratégias que você utilizou para reestruturar
um aspecto técnico?
O lado psicológico que é o da confiança: saber que você vai
chegar lá. E depois é o investimento, eu me lembro de ter feito,
por exemplo, cinco períodos de vinte minutos só de cordas soltas
e exercícios. Antes de dormir, ir para o sótão ou porão e
trabalhar mais uma hora extra, coisas assim. Estar num grupo
positivo também ajuda muito. Você ter colegas, não ser um
estrangeiro na classe, procurar o lado social, isso é
extremamente importante e depende também da vontade do professor
de criar uma atmosfera entre os alunos nas aulas conjuntas,
conversas nos bares, passeios etc. Hoje em dia eu tenho grandes
dificuldades para encontrar um horário em que durante três horas
os meus dez alunos possam estar todos ao mesmo tempo no mesmo
lugar, é impressionante. O erro está no sistema atual das
escolas, sem dúvida alguma. A ocupação do aluno deveria permitir
que um professor de instrumento principal violoncelo (não é
matéria paralela) pudesse reunir sua classe com mais facilidade.
Isso seria óbvio, mas hoje em dia é bastante impossível. Alguma
67
coisa está errada. Então, essa força do grupo, de você ter amigos
com quem discutir e que estão passando pela mesma coisa, é uma
grande ajuda. Eu tive dois momentos durante a época difícil da
reestruturação técnica onde quem me ajudou não foi o Navarra, mas
justamente os colegas que escutavam a aula. Estou seguro que eu
também ajudei vários colegas da mesma maneira. Depois da aula
você está na cantina conversando e o teu amigo violoncelista diz
"Mas Márcio, porque você não faz assim? Eu acho que o que o
Navarra está querendo é isso!". Entende? E eu dizia "Mas é claro!
Porque que eu não pensei nisso antes?". Coisas assim só podem
acontecer se você tem colegas escutando a tua aula, e vice-versa.
Outra estratégia tem a ver com os momentos de descanso. Voce já
notou que se, por uma razão ou outra, a pessoa não pega no
violoncelo durante quatro dias, no quinto tudo funciona muito
melhor (risos). A conclusão errada seria: "Não vou trabalhar
mais, porque quando a pessoa não trabalha tudo fica melhor". A
razão tem a ver com o físico e a cabeça, que necessitam uma pausa
de descanso. A cidade pequena dá ao estudante nesse sentido
grandes vantagens. Não há nada para fazer, trabalha-se muito,
economiza-se e quando, depois de algumas semanas, chega-se a uma
68
saturação, deixa-se o violoncelo na cidade pequena, pega-se um
ônibus com o dinheiro economizado e faz-se três dias no Rio de
Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, sem violoncelo, para ir ao
concerto, ao museu, ao nightclub, ao show, etc. Você volta com a
cabeça mais leve e deu três dias ou quatro ao físico e ao cérebro
para se refazerem. Tudo vai funcionar melhor, se o investimento
anterior foi suficientemente grande. Alunos que mantém um rítmo
assim conseguem um desenvolvimento mais sadio. Eu acho que as
estratégias são mais psicológicas do que qualquer outra coisa.
Por exemplo, o tempo de repetição de um movimento ou de uma
passagem não deve ser demasiado longo, mas sim em várias doses
“homeopáticas”, com atividades diferentes entre elas. A
concentração nesse gênero de coisas não dura mais do que vinte
minutos, isso é provado. Os exercícios de reestruturação técnica
devem ser feitos assim, homeopáticamente. Mesmo para um movimento
simples, como uma mudança de posição, eu acho que vinte minutos é
quase demais. Fazer um exercício cinco vezes quinze minutos, dá
uma hora e meia. Mas se você fizer uma hora e meia sem parar é
muito menos produtivo.
69
Quando você julga necessário que um aspecto técnico deva ser
reestruturado?
Na verdade o professor e o aluno que é crítico e
consciencioso estão sempre reestruturando algum detalhe
instrumental. São os defeitos que se pode adquirir pouco a pouco
ou simplesmente coisas que ainda não estão bem assimiladas e que
o professor deve constantemente relembrar. Compreende-se tudo
rapidamente na cabeça, mas até o físico assimilar e coordenar um
movimento ou as mãos se “modelarem” para o instrumento é preciso
um certo tempo e um trabalho de educação árduo. Acho que a
reestruturação da qual você está falando é aquela essencial que
tem a ver com estudos profissionais e que em regra como já vimos
ocorre entre os 16 e 22 anos, quando o físico já se desenvolveu
como adulto. O lado intelectual também tem grande importância.
Para evitar problemas no futuro, a técnica numa reestruturação é
consciente. Sabe-se, quando se trabalha, exatamente o que se está
fazendo, muitas vezes ao milímetro, para depois com um grande
esforço tentar não pensar em nada disso quando se toca. A
intuição, o talento até chegar nos prodígios infelizmente não são
70
uma garantia para a idade adulta. Quanto maior o talento mais
difícil e sensível será a conscientização da técnica. Um trabalho
assim não deve ser feito com crianças ou adolescentes, pois corre
perigo de inibir a naturalidade e o amor pela música e pelo
instrumento. A “ciência” deve se resumir a algumas poucas ideias
simples e claras, deixando muito campo para a intuição, energia e
musicalidade espontânea. Sempre recusei e lutei para convencer os
pais de alunos com grande talento de não retirarem os filhos da
escola com o pretexto de poderem estudar música o dia inteiro.
Isto não é bom. Cada coisa no seu momento.
Quais são seus objetivos ao reestruturar tecnicamente um
aluno?
Primeiramente fazer soar o instrumento da melhor maneira
possível. Isso é a técnica de arco básica, a corda solta de mesma
velocidade. Depois exercitar o que chamo de condutibilidade do
arco, ou seja, a capacidade de poder realizar qualquer ritmo e
qualquer dinâmica que a música exija, controlando as diferentes
velocidades do arco e as suas consequências. A reestruturação da
técnica de arco é quase sempre um trabalho de flexibilização para
71
acabar com tensões e crispações. Para o braço esquerdo é a mesma
coisa, o objetivo é exercitar o seu relaxamento e a articulação
dos dedos para que se consiga uma regularidade absoluta das
notas, velocidade e vibrato. A técnica de todos os instrumentos,
também dos cantores, é fisicamente e psicologicamente ligada a
tensões físicas. Para um cantor, um trombonista ou um flautista
fazer funcionar o instrumento ou a voz num nível profissional, é
um grande esforço físico. Porém este esforço não deve se
transformar numa tensão, numa luta. A técnica profissional é
baseada na ginástica necessária, para que os músculos que têm que
ser estáveis estejam estáveis e aquilo que tem que ser flexível
seja flexível. O violoncelo é um instrumento que necessita de
bastante peso sobre o arco (bem mais do que o violino). Os
exemplos demonstram que é praticamente impossível uma criança ou
um adolescente conseguir gerar esse peso, como faria um adulto.
Para mim isto poderia ser uma razão porque os prodígios como no
piano ou violino não existem no violoncelo. É muito interessante
notar que um adolescente que “manda brasa” para ter uma grande
sonoridade no violoncelo, mesmo se um pouco duro e crispado, terá
como adulto uma expressão melhor do que aquele que sempre quis
72
tocar “bonito” e inevitavelmente demasiado leve e superficial.
Resumindo, voltamos à ideia de base como qual o momento de uma
séria reestruturação da técnica não será antes do pleno
desenvolvimento físico..
Quais aspectos técnicos você reestrutura com mais frequência
nos seus alunos?
O que eu vejo é, em geral, um grau de tensão maior ou menor.
Aquilo que se refaz é mais ou menos a mesma coisa. O que muitos
grandes artistas se lembram e dizem numa frase curta, significa
na realidade um grande esforço: “fui trabalhar com David
Oistrakh, recomecei do zero" ou "Fui trabalhar com Martha
Argerich, recomecei do zero". Antonio Meneses foi trabalhar com
Janigro e recomeçou do zero. Eu fui trabalhar com Navarra e
realmente recomecei do zero. Evidentemente trata-se de um
recomeçar do zero já conhecendo muita coisa, mas tudo deve de uma
certa forma ser refeito num parâmetro profissional. Algumas
coisas vão vir mais facilmente, outras mais dificilmente, mas
isso só se saberá mais tarde. Eu acho que a reestruturação será
sempre necessária independentemente do talento, da bagagem que a
73
pessoa já traz. É interessantíssimo observar que um talento maior
não será uma garantia de sucesso na reestruturação técnica, muito
pelo contrário, pode ser até psicologicamente um empecilho.
Muitas vezes quanto maior for o talento, menor parece ser a
paciência para um trabalho do gênero. Quando fiz a minha
reestruturação técnica não conseguia tocar, então eu não tinha
alternativa. Mas se eu fosse um virtuoso, digamos um Menuhin,
poderia me perguntar: "Mas porque que eu preciso disso?", e
continuar impressionando com meu talento. Infelizmente a
probabilidade é muito grande da técnica de repente vir a ter
sérios problemas.
Você mantém o ensino do repertório enquanto reestrutura
aspectos técnicos do aluno?
Sim, mas do repertório adequado à reestruturação. Isso é, na
pedagogia, um fator extremamente importante. Dito claramente, a
qualidade de um professor pode ser avaliada em grande parte pelas
obras que ele faz o aluno trabalhar.
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Quando você pretende reestruturar diversos aspectos técnicos
em um aluno, você os faz ao mesmo tempo?
Boa pergunta. Não.
Porque?
É claro que num instrumento de cordas o arco vem primeiro.
Se você faz uma reestruturação técnica tem que começar com a
qualidade da “voz”, ou seja, com a corda solta. Pode-se imaginar
um pouco como o motor de um órgão que produz o ar necessário para
as notas, ou a mecânica que Steinway produz para os pianistas. O
arco é sempre a primeira preocupação, ele é o Artista! Navarra
criticava sempre: "Você trabalha a mão esquerda e esquece o arco!
Trabalhe a mão esquerda E trabalhe o arco!" Quando a mão esquerda
não está segura você tenta fazer tudo ao mesmo tempo (esquerda e
direita, notas e música) e há uma acumulação de dificuldades que
vai chegar dificilmente a um bom resultado. Eu considero um
excelente método de exercitar separadamente a mecânica das notas
com um ritmo regular, como se fosse o afinador de um piano, de
maneira que ao trabalhar a frase (ritmo, dinâmica), a
concentração esteja realmente no arco, ou seja, na música que se
75
está realizando, e não somente no fato de tocar as notas certas e
afinadas. Nota-se que a concentração da maioria dos alunos que
chegam ao nível superior e ao inevitável momento de uma
reestruturação, está mais habituada a controlar as notas do que o
arco. Usando um repertório adequado deve-se despertar e elevar
pouco a pouco a crítica e os objetivos musicais que vão
justificar o esforço para alcançar uma técnica condizente.
Da sua maneira de tocar o que você desenvolveu sozinho?
Na realidade tudo! Mesmo quando eu passava horas na frente
do espelho tentando imitar o meu professor, aquilo era eu. De
qualquer maneira você vai ser sempre você. Toma-se um modelo, mas
depois tudo é você que desenvolve.
Houve alguma outra coisa que você mudou tecnicamente depois
de trabalhar com o Navarra, por conta própria? Como por exemplo o
caso do vibrato?
Assim, de maneira radical foi só o vibrato. Mas é claro, o
"escutar e não gostar" é diário. Você está vendo, controlando e
ouvindo diariamente. Com o passar do tempo tenho cada vez menos a
impressão de estar procurando coisas que nunca soube fazer, como
76
na época dos estudos ou como no exemplo do vibrato. Apesar de ter
dedicado numa época muita atenção ao controle das mudanças de
posição e sua coordenação, o que me elucidou muitas observações
de Navarra, o trabalho técnico passa a ser mais uma manutenção do
que uma viagem de descobertas! Creio que já comentei isso antes,
mas todas as “descobertas” que realmente aconteceram mesmo vários
anos após a época estudantil eram simplesmente a compreensão
daquilo que o professor exigia. Um pouco diferente da mentalidade
atual e considerando que são poucos os mestres que podem exigir
isto, eu estou contente de ter levado muito a sério um dos
conselhos famosos de Navarra: “Durante os quatro ou cinco anos de
estudo comigo você faz o que EU quero, e depois tem toda a vida
para fazer o que VOCÊ quer”....
É interessante contar a história de Navarra, ele fez a
técnica de arco dele toda depois de uma conversa de trinta
minutos com Carl Flesch. Se você vê fotografias de Navarra antes
dessa conversa, existe uma famosa dele tocando com Cortot já bem
velho, ele já era um jovem virtuoso, e você a mão do arco dele e
77
diz "Mas o que é isso?“. Ele teve a coragem de fazer a
reestruturação técnica depois de já ser um virtuoso. Na verdade,
ele SE reestruturou. Isso ele contava assim e não parecia nada,
mas se você pensa bem é uma força de vontade incrível. Ele tocou
durante 22 anos em orquestra, e durante os intervalos, enquanto
os colegas iam na cantina beber ou comer alguma coisa, ele ia
para trás das cortinas e ficava fazendo os exercícios que tinha
aprendido com o Flesch. Mas o contato com Flesch durou no máximo
meia hora, num camarim depois de um concerto. É claro, Flesch deu
atenção a Navarra porque Navarra era conhecido na época, era um
jovem virtuoso francês. Navarra deve ter perguntado a ele "Olha,
o seu arco é uma maravilha, como é que você faz isso?“. E Flesch
deu, em meia hora, algumas dicas para ele. E com essa ideias
Navarra foi para casa e reestruturou a técnica. E porque ele
sentiu a necessidade de fazer isso? Eu nunca perguntei a ele, mas
certamente ele deve ter pensado que se continuasse tocando
daquela maneira antiga, não iria longe.
78
3 - CONCLUSÕES
Neste capítulo serão cruzadas as principais ideias
apresentadas pelos entrevistados com o levantamento
bibliográfico.
Este capítulo está organizado em três partes: a primeira
trata-se do cruzamento dos conteúdos apresentados por Alceu Reis
com a revisão, a segunda faz o mesmo com os conteúdos
apresentados por Márcio Carneiro e, por fim, a terceira apresenta
os pontos comuns abordados por ambos os entrevistados, também
embasados pela bibliografia. Não houve opiniões divergentes entre
os entrevistados.
3.1 - CONCLUSÕES ESPECÍFICAS RETIRADAS DA ENTREVISTA COM
ALCEU REIS E DA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
79
Alceu faz referência ao seu processo de auto-
aperfeiçoamento, dizendo que um constante auto questionamento
torna-se central para que o mesmo aconteça:
É por isso que eu digo, e eu estou convicto disso até hoje, que o melhor professor são algumas perguntas: quando, por que, pra que, como, aonde. Quando você se pergunta por que uma passagem não estásaindo, como é que eu posso resolver, aonde que está o problema, tudo isso se você pensar você acaba encontrando a solução.
A ideia de que o auto questionamento se apresenta como um
caminho para o aprendizado aparece diversas vezes durante a
entrevista. Gallwey (1974) corrobora esta ideia com Alceu, ao
descrever que o jogador de tênis deve primeiramente se indagar
sobre vários pontos antes de tentar corrigir um procedimento
técnico:
Observe a movimentação do seu pulso. Ele está relaxado ou tenso? Tem uma empunhadura completa ou quase completa? (...) Vivencie o seu movimento. A bola vai ao mesmo lugar todas as vezes? Onde é esse lugar? (GALLWEY, 1974, p. 105 e 106).
Ao adquirir essa capacidade de auto indagação, a pessoa
torna-se consciente de seus próprios problemas e, mais
importante, de como melhorá-los. É o estágio autônomo citado
anteriormente no primeiro capítulo, nas citações de Anderson
(1982) apud Sloboda (2008). Tal estágio parece já estar presente
na formação de Alceu como instrumentista desde cedo. Ele afirma
80
não ter passado reestruturações técnicas imposta por um
professor, mas sim “por milhões de pequenas reestruturações auto-impostas.”.
Magill (1998) detalha ainda mais o estágio autônomo:
Depois de muita prática e experiência, que pode levar vários anos,algumas pessoas passam para o estágio autônomo, que é o estágio finalda aprendizagem. Neste ponto a habilidade se tornou praticamenteautomática ou habitual. Nesse estágio, as pessoas não pensamconscientemente no que estão fazendo enquanto desempenham ahabilidade, porque já não necessitam mais dessa instrução prévia.Frequentemente conseguem desempenhar outras tarefas ao mesmo tempo(...) A variabilidade do desempenho é muito pequena durante esseestágio; pessoas capacitadas desempenham a habilidade com boaconsistência entre tentativas subsequentes. Além disso, essespraticantes experientes conseguem detectar seus próprios erros efazer os ajustes necessários para corrigi-los. Fitts e Posnerdestacaram a possibilidade de que nem todas as pessoas queaprendem uma habilidade atingem esse estágio autônomo. A qualidadedas instruções e a qualidade e a quantidade da prática são fatoresimportantes para se chegar a esse estágio final. (MAGILL, 1998,págs. 150 e 151)
De maneira semelhante, Gallwey (1974) explica, com base na
sua teoria das trilhas de hábitos, como se faz para mudar um
hábito e sugere que, para chegar à conclusão que se deve mudar
algo, deve-se observar o movimento automático, sem interferência,
e em seguida julgar onde estão as tensões e se o movimento é
eficaz. Parte disso vem de observar o resultado de seus
movimentos, se satisfatórios ou não. Dentro do esporte do tênis,
o processo se divide em quatro estágios, chamados pelo autor de
81
“O modo de aprendizado do jogo interior”, que pode ser facilmente
convertido para o aprendizado de um instrumento musical:
1. O jogador observa o comportamento existente sem julgar
2. O jogador pede a si mesmo para mudar, programando com imagens e sensações
3. O jogador deixa acontecer
4. O jogador observa os resultados com calma e sem julgamento, vivenciando um processo contínuo de constatação até que o comportamento adotado para realizar as mudanças torne-se automático. (Grifo do autor) (GALLWEY, 1974, págs. 108 e 109)
Outro conteúdo que pode ser discutido no processo de
reestruturação e surge nas respostas de Alceu é a imitação como
principal forma de seu aprendizado:
Eu aprendi muito também com esse dom da imitação. (...) se chegasse um violoncelista que tocasse com um espigão de um palmo, durante três ou quatro meses eu só usava o espigão com um palmo. Equando chegou o Tortelier, que usava o espigão de dois metros, foram três meses tocando com espigão de dois metros. E vinha um que tocava assim (sobe o braço esquerdo), outro que tocava assim (quebra o pulso direito), e eu ia imitando. Conclusão: eu acreditoque tudo que existe no violoncelo eu experimentei, e aí cheguei àsminhas conclusões.
Assim, a imitação se adequa no processo de reestruturação,
na fase em que o violoncelista busca um novo padrão técnico a ser
colocado no lugar daquele que se deseja substituir.
Alcantara (1997) corrobora com Alceu Reis ao afirmar que:
“Seres humanos não poderiam crescer e aprender, ou até mesmo sobreviver, se eles
não possuíssem poderes inatos e marcantes de imitação. A imitação está presente em
82
todas as esferas da atividade humana, incluindo todos os aspectos do fazer musical.”
(ALCANTARA, 1997, pág. 249, tradução do autor9)
Entretanto, Alcantara (1997) indica que nem todo conteúdo da
imitação deve ser necessariamente utilizado e recomenda que
saiba-se reconhecer os pontos positivos e negativos do conteúdo
ser imitado, selecionando aqueles que se adequam melhor ao seu
corpo.
Alceu descreve suas aulas com Pierre Fournier10 na Argentina,
e diz que o mestre dispensou o tradutor para ensiná-lo,
exemplificando mais uma forma de aprendizado por imitação:
E depois apareceu uma propaganda de um curso na Argentina pra estudar com o Fournier. Então houve uma prova interna no Rio, ondeforam aprovados dois violoncelistas pra fazer esse curso: Eu e o Watson Clis. (...) E era muito interessante também, porque eu era um excelente imitador. E o Fournier tinha um tradutor. Então nas primeiras aulas ele começava a tocar e eu ia imitando o que ele fazia. Tudo que ele fazia eu imitava. Aí ele dispensou o tradutor,falou que eu não precisava de tradutor. E eu não entendia absolutamente nada do que ele falava. Só que eu imitava e depois eu ia pensar no que ele poderia ter falado.
Alcantara (1997) nos mostra ainda que um grande domínio
técnico e corporal é necessário para que se imite alguém:
9 Human beings could not grow and learn, or even survive, if they did notpossess remarkable innate powers of imitation. Imitation is present in every sphere of human activity, including all aspects of music-making.10 GAGNON (2005) cita Fournier como um dos principais expoentes da escola francesa, sendo influente tanto como instrumentista quanto como professor, um dos pedagogos franceses mais populares ao lado de André Navarra.
83
O grande cantor está no comando seu próprio uso, e pode, portanto,produzir tudo o que quiser com a sua voz, inclusive dezenas de imitações e caricaturas de outros cantores. Mas pode o cantor inferior imitar o grande? Não antes de adquirir o mesmo domínio deseu uso. (ALCANTARA, 1997, pág. 253, tradução do autor11)
Em seguida, Alceu sugere que dois pontos são primordiais no
aprendizado do instrumento: a eliminação de tensões e a
importância da técnica estar em função da música:
Eu tenho um lema. A coisa mais importante num violoncelista, e eufalo isso em todos os instrumentos, é justamente o relaxamento.Então eu estou sempre procurando o relaxamento. E se tiver quehaver alguma tensão, que tenha um relaxamento automaticamente nomesmo segundo. Eu nunca penso em manter uma tensão, nunca.(...)O meu professor, o grande Iberê, muitas vezes falava assim: "Olha,você pode até tocar com o nariz, contanto que seja bonito". Entãoeu parto do seguinte princípio: a técnica em função da música. Obom gosto da música é que vai te dizer qual a técnica que você temque usar naquele momento.
Também descreve que passou por várias situações onde
trabalhou algum aspecto técnico com o aluno sem resultado e, após
deixar tal trabalho de lado por um tempo e retomá-lo, os
resultados são quase instantâneos. Utilizando-se de uma metáfora
de ingredientes para um prato culinário, diz que o instrumentista
deve dispor de um leque variado de possibilidades técnicas à sua
11 The great singer is in command of his own use, and can therefore produce all that he wishes with his voice, including dozens of imitations and caricatures of other singers. But could the lesser singer imitate the greater one? Not before he aquires the same mastery of his use.
84
disposição, para que possa escolher qual utilizar em determinadas
situações.
Por fim, outro aspecto interessante da abordagem de Alceu
está incluso no caso que ele descreve em que um aluno seu tocava
com o dedão do pé tenso:
Eu já tive um aluno, por exemplo, que tinha tensão no polegar dodedo do pé. Quando eu descobri, a primeira coisa que eu falei foi"Tira o sapato que eu quero ver uma coisa no seu pé" (risos). Eele estava com a meia furada, não queria tirar de jeito nenhum. Eeu disse "Se não tirar eu não dou aula!". E aí ele tirou e eu vique ele estava com o dedo tensionado. E eu disse "Se vocêtensionar aí, aqui não vai sair" (mexe o braço esquerdo). Entãovocê tem que conhecer o teu corpo. Tem que conhecer o teuequilíbrio sentado, sobre o violoncelo. Essa relação é muitoimportante pra você tocar.
Alcantara (1997) descreve um processo muito semelhante, em
que um aluno seu, Mark, insiste em olhar para o espelho do
violoncelo enquanto toca, descrevendo os problemas que isso pode
causar e a importância da relação entre partes individuais do
corpo e o todo:
O Controle Primário é aquele ´mecanismo do padrão total´ no uso do“self”. Idealmente o padrão total (...) deve ter precedência sobretodos os padrões parciais (cultivados individualmente). Em outraspalavras, qualquer ação localizada – a atividade dos membros,mãos, e dedos, e dos lábios, língua e maxilar - deve ser executadaem harmonia com a coordenação da cabeça, pescoço e costas. Markpresta atenção indevida a um padrão parcial, o uso da sua cabeça,pescoço e costas. O mal uso resultante afeta cada parte do seuorganismo, dos pés à cabeça, e cada aspecto do seu funcionamento,do vibrato, afinação, e mudanças de posição até a produção de som,
85
respiração e bem-estar geral. (ALCANTARA, 1997, pág. 26, traduçãodo autor12)
3.2 - CONCLUSÕES ESPECÍFICAS RETIRADAS DA ENTREVISTA COM
MÁRCIO CARNEIRO E DA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Para Márcio a reestruturação técnica deve acontecer em um
momento muito específico, quando o indivíduo decide se
profissionalizar e “a perfeição começa a ser necessária em tudo o que se faz,
desde a corda solta”. Também diz acreditar que os problemas técnicos
geralmente aparecem logo após da puberdade, quando as mudanças
físicas drásticas ocorrem, tornando-se também necessária a
reestruturação. Esse foi o seu caso, que consistiu principalmente
em adquirir uma consciência mais refinada do manejo do arco:
Eu não me lembro, mas minha mão direita - ou seja, a ponte que liga o braço ao arco -devia estar muito crispada, com pouca flexibilidade, como um automóvel sem amortecedores (faz movimentoscom o braço inteiro, sem flexibilizar a mão). O polegar devia estar apertando enormemente, e aí comeca o bloqueio do braco. Navarra insistia muito na flexibilidade do punho e na consciência da atividade de cada dedo da mão direita, fator primordial da sua
12 The Primary Control is that ´mechanism of the total pattern´ in the use of the self. Ideally the total pattern (…) should take precedence over all thepartial patterns (individually cultivated). In other words, every localized action – the activity of limbs, hands, and fingers, and of lips, tongue, and jaw – should be executed in harmony with the co-ordination of the head, neck and back. Mark pays undue attention to a partial pattern, the use of his head,neck, and back. The resulting misuse affects every part of his organism, from head to toes, and every aspect of his functioning, from vibrato, intonation, and shifting to sound-production, breathing, and general well-being.
86
técnica de arco, que decorria dos princípios de Flesch, com o qualele pode discutir e que o influenciou decisivamente. Aquilo para mim era complicado, pois não tinha o hábito de trabalhar o arco neste nível. (...)Me lembro de ficar no primeiro semestre horas e horas, homeopaticamente (aquilo cansava a cabeça, aí eu fazia uma pausa) na frente do espelho procurando e exercitando.
Magill (1998) corrobora com Márcio Carneiro ao afirmar a
necessidade da presença de uma referência visual:
De todos os sistemas sensoriais, os seres humanos tendem a utilizar e confiar principalmente na visão. Por exemplo, quando você começou a aprender a digitar ou tocar piano, inevitavelmente pensou que, se não pudesse ver seus dedos pressionando as teclas, jamais poderia realizar a tarefa corretamente. (MAGILL, 1998, pág. 61)
Gallwey (1974) também relata que, ao ensinar um aluno a
mudar um movimento com a raquete de tênis, ele teve que
primeiramente mostrar como ele o realizava de fato, na frente de
um espelho:
Fomos até um espelho, onde lhe pedi para repetir e observar o seu movimento. Ele assim fez, refazendo sua característica puxada paracima antes de voltar com a raquete, mas desta vez ficou surpreso com o que viu. “Eu realmente levanto muito a minha raquete! Ela passa dos meus ombros!” (...) Vendo no espelho seu golpe tal qual era, Bill passou a manter a sua raquete baixa, sem ter de se esforçar para isso. (GALLWEY, 1974, págs. 45 e 46)
Márcio faz ainda outras referências à importância da
referência visual do professor, durante suas aulas em grupo com
André Navarra:
87
Nós estávamos todos ali sentados e ficávamos escutando e observando como sua técnica funcionava. Isto ajuda muito, entra namemória, você "fotografa" e depois em casa tenta fazer o mesmo.
Márcio demonstra a importância da referência visual como
modelo para o elemento técnico a ser reestruturado.
Ele ainda aconselha que, quando se reestrutura algum aspecto
da técnica, deve-se fazê-lo em vários blocos pequenos, e nunca
trabalhar muito tempo de uma só vez:
Por exemplo, o tempo de repetição de um movimento ou de uma passagem não deve ser demasiado longo, mas sim em várias doses “homeopáticas”, com atividades diferentes entre elas. A concentração nesse gênero de coisas não dura mais do que vinte minutos, isso é provado. Os exercícios de reestruturação técnica devem ser feitos assim, homeopáticamente. Mesmo para um movimento simples, como uma mudança de posição, eu acho que vinte minutos é quase demais. Fazer um exercício cinco vezes quinze minutos, dá uma hora e meia. Mas se você fizer uma hora e meia sem parar é muito menos produtivo.
MAGILL (1998) corrobora o que foi dito por Márcio:
Embora não haja um grande número de pesquisas analisando o número e a duração ideal das sessões de prática, as evidências experimentais disponíveis indicam que a prática distribuída é benéfica. Em geral, os resultados de experimentos que comparam poucas sessões de prática longas com maior número de sessões de prática curtas mostram que a prática de habilidades com sessões mais curtas produz melhor aprendizagem. (MAGILL, 1998, p. 259)
Um dos pontos mais abordados por Márcio é a importância das
aulas em conjunto e de se observar os colegas, em todos os
estágios do aprendizado durante a reestruturação técnica:
Isto é uma coisa importantíssima, aprende-se muito escutando os outros. Quando fui trabalhar com Navarra as aulas também eram
88
conjuntas e isto para mim nunca foi estranho nem cansativo. Claro,escutar as aulas dos outros tem momentos muito chatos onde não acontece nada, mas a longo prazo aprende-se muito.(...)Naquela época era obrigação de cada aluno escutar as aulas de todos os outros, era um fator extremamente importante.(...)Eu estou seguro que num período de quatro a cinco anos de trabalhocom um mestre, aprende-se não menos escutando os outros do que na própria aula.
Moraes (1997) ressalta que “A motivação e a interação social são os
elementos apontados como os grandes responsáveis pelo incremento do aprendizado
musical”, e descreve a proposta educacional do Aprendizado
Colaborativo, que é definida como “uma forma de aprendizado que ocorre
através da interação social entre elementos de um grupo, que se motivam, se instruem,
se orientam e se avaliam mutuamente.” (MORAES, 1997, pág. 71)
Márcio também relata como foi de grande importância a
presença dos colegas em seu processo de reestruturação técnica:
Eu tive dois momentos durante a época difícil da reestruturação técnica onde quem me ajudou não foi o Navarra, mas justamente os colegas que escutavam a aula. Estou seguro que eu também ajudei vários colegas da mesma maneira. Depois da aula você está na cantina conversando e o teu amigo violoncelista diz "Mas Márcio, porque você não faz assim? Eu acho que o que o Navarra está querendo é isso!". Entende? E eu dizia "Mas é claro! Porque que eunão pensei nisso antes?"(...)O professor é como um médico, mas os colegas representam um lado psicológico importante para que a medicina funcione. Nessa reestruturação técnica, que necessita muita coragem, esses fatorestambém têm um papel importante. Você quer o progresso, você insiste para poder levantar a cabeça na frente do professor e dos colegas que estão assistindo a aula. Não se deve menosprezar essesfatores.
89
Quadro semelhante é descrito por Moraes (1997), que diz que
no ensino em grupo “o professor tem o papel de consultor, facilitador e líder
democrático” (MORAES, 1997, pág. 71), promovendo um ambiente
adequado que possa fortalecer o aluno em um processo tão delicado
como o da reestruturação técnica.
O entrevistado também constata uma opinião interessante
sobre o aprendizado de novas habilidades:
Estou convencido de que o progresso técnico não são linhas contínuas. De repente faz clique. Você investe, investe e aquilo fica como burro na ponte, não avança, e de repente funciona.(...)Da mesma forma o trabalho com um mestre exige muita confianca e paciência, pois no início pode-se mesmo ter a impressão que a coisa regride. Os momentos de progresso são repentinos e acontecemsó depois de grandes fases de investimento.
Márcio menciona um importante relato em que mudou
drasticamente um aspecto da sua técnica, quando já era
profissional e não era mais aluno de Navarra:
É interessante observar como uma reestruturação técnica pode acontecer em vários momentos da vida, mesmo anos depois da época de estudos. Me lembro, por exemplo, durante a minha época "freelance", sendo já um profissional que tem a sensação de poder realizar o que quer com a mão esquerda, de gravar para a televisãono Rio de Janeiro a Sonata Arpeggione, e ver o programa alguns dias depois. Gostei musicalmente de muita coisa, também o arco e amão esquerda me impressionaram positivamente, mas eu fiquei chocadíssimo com o vibrato! Eu me disse "pensei que eu vibrava, mas o vibrato está uma catástrofe". O vibrato era o tempo todo rápido demais, e não mudava.(...)Resolvi então atacar o problema e trabalhei o movimento do vibratodurante uns seis meses, uma meia hora por dia, para que se
90
tornasse mais condutível e para que eu tivesse maiores possibilidades de expressão. Descobri muita coisa não somente parao vibrato, mas também, por exemplo, para poder tocar rápido.
Com estes relatos, mais uma vez podemos ver claramente um
exemplo do estágio autônomo do aprendizado motor descrito por FITTS
apud SLOBODA (2008) e MAGILL (1998).
Márcio também descreveu que seu processo constante de auto-
aperfeiçoamento tem diminuído, mostrando uma possível
solidificação da técnica após muitas décadas e a importância das
orientações de seu professor:
Com o passar do tempo tenho cada vez menos a impressão de estar procurando coisas que nunca soube fazer, como na época dos estudosou como no exemplo do vibrato. Apesar de ter dedicado numa época muita atenção ao controle das mudanças de posição e sua coordenação, o que me elucidou muitas observações de Navarra, o trabalho técnico passa a ser mais uma manutenção do que uma viagemde descobertas! Creio que já comentei isso antes, mas todas as “descobertas” que realmente aconteceram mesmo vários anos após a época estudantil eram simplesmente a compreensão daquilo que o professor exigia. Um pouco diferente da mentalidade atual e considerando que são poucos os mestres que podem exigir isto, eu estou contente de ter levado muito a sério um dos conselhos famosos de Navarra: “Durante os quatro ou cinco anos de estudo comigo você faz o que EU quero, e depois tem toda a vida para fazer o que VOCÊ quer”
As últimas linhas de sua entrevista revelam o relato
impressionante que descrevem a reestruturação técnica vivenciada
por André Navarra, que mudou completamente sua técnica de arco
91
após uma pequena conversa pequena Carl Flesch13. Este relato
demonstra que Navarra foi um caso extremo do já mencionado estágio
autônomo da aprendizagem motora. A técnica de arco que ele
desenvolveu praticamente sozinho, apenas com algumas dicas de
Flesch, representa um dos pilares da escola francesa.
3. 3 – CONCLUSÕES RETIRADAS A PARTIR DE RESPOSTAS SEMELHANTES DE
AMBOS ENTREVISTADOS
Tanto Márcio quanto Alceu iniciaram o aprendizado do
instrumento por volta dos cinco anos de idade e tiveram o mesmo
professor numa certa altura (Iberê Gomes Grosso), relatando mais
tarde terem passado por processos de reestruturação técnica.
Para Alceu a imitação sempre foi um dos principais processos
de seu aprendizado. Ele diz que imitava os violoncelistas que
assistia, habilidade que também utilizou nas aulas com Fournier.
13 “Flesch, Carl. Violinista húngaro e professor. (…) Flesch era famoso porsua pureza clássica, sua técnica impecável, e sua abordagem intelectual de estilos. (...) Ele não era um violinista ´nato´ mas desenvolvido através de constante análise e auto-crítica” (GROVE, 1980, vol. 6, pág 638, tradução do autor) - Flesch, Carl. Hungarian violinist and teacher. (…) Flesch was famous for his classical purity, his impeccable technique, and his intellectual graspof styles. (…) He was not a ´born´ violinist but developed through constant analysis and self-criticism.
92
Márcio também considera a imitação de um bom referencial um
ponto crucial na reestruturação técnica:
Insisto na necessidade de observar o professor, porque aquilo ficana memória visual e depois você senta na frente do espelho e tentafazer uma coisa parecida. Com um exemplo nítido na memória tudo fica mais fácil e a confiança é maior.
Isso se trata da importância da referência visual de outros
violoncelistas, que foi aspecto chave na formação de ambos os
entrevistados. Márcio conta das aulas coletivas de Navarra:
Nós estávamos todos ali sentados e ficávamos escutando e observando como sua técnica funcionava. Isto ajuda muito, entra namemória, você "fotografa" e depois em casa tenta fazer o mesmo.
Já Alceu buscou seu referencial nos violoncelistas que viu
tocar nos palcos:
(...) naquela época passavam dois ou três violoncelistas por ano por aqui. E eu fazia questão de ir assistir, eu virava montanhas, mas ia assistir. E o que eu fazia? Eu “filmava”, mentalmente. E depois ia pra casa imitar pra descobrir como era a mecânica.
Tal referencial visual é crucial quando se reestrutura algum
aspecto técnico, como frisado por ambos.
Ambos também falam da importância do estudo e do fazer
musical consciente. Alceu diz que uma das primeiras etapas numa
reestruturação é fazer com que o aluno entenda o que está
realizando. E ainda completa:
O melhor professor são algumas perguntas: quando, por que, pra que, como, aonde. Quando você se pergunta por que uma passagem não
93
está saindo, como é que eu posso resolver, aonde que está o problema, tudo isso se você pensar você acaba encontrando a solução.
Márcio fala da importância dessa consciência dos objetivos
de uma reestruturação:
Para evitar problemas no futuro, a técnica numa reestruturação é consciente. Sabe-se, quando se trabalha, exatamente o que se está fazendo, muitas vezes ao milímetro, para depois com um grande esforço tentar não pensar em nada disso quando se toca.
Os dois entrevistados ressaltam a importância de uma boa
sonoridade na reestruturação e em geral. Márcio diz:
É claro que num instrumento de cordas o arco vem primeiro. Se vocêfaz uma reestruturação técnica tem que começar com a qualidade da “voz”, ou seja, com a corda solta. Pode-se imaginar um pouco como o motor de um órgão que produz o ar necessário para as notas, ou amecânica que Steinway produz para os pianistas. O arco é sempre a primeira preocupação, ele é o Artista! Navarra criticava sempre: "Você trabalha a mão esquerda e esquece o arco! Trabalhe a mão esquerda E trabalhe o arco!"
Alceu aborda o tema de maneira semelhante:
Eu acho que em primeiro lugar você tem que entender o que é a sonoridade, o que é um som. Então na mão direita você tem que fazer son filé até você descobrir o que é a profundidade do som.
Nenhum dos entrevistados reestrutura mais de um aspecto
técnico por vez nos alunos. A luz disso, MAGILL (1998) revela:
A prática como um todo é aconselhável, quando a habilidade a ser aprendida é de baixa complexidade e de alta organização. A práticaem partes é recomendada, quando a habilidade é mais complexa e envolve menos organização. (MAGILL, 1998, págs. 283 e 284)
O estágio autônomo do aprendizado motor se encontra em diversos
pontos na carreira de ambos. Márcio diz, no fim da entrevista,
94
que passou vários anos realizando “descobertas” após estudar com
Navarra. Alceu diz que, em relação ao violoncelo, ele é um
“pesquisador”, sempre experimentando coisas novas.
3.4 - CONCLUSÕES FINAIS
Um dos principais conceitos abordados neste trabalho foi o
dos vários estágios de aprendizado motor elaborado por FITTS
(1964), particularmente o estágio autônomo. É um conceito chave
para se entender como o processo de reestruturação técnica
funciona. Com base nesse conceito e através das respostas de
ambos os entrevistados é possível concluir que o processo de
reestruturação técnica é de grande importância no desenvolvimento
instrumental e que, uma vez que o indivíduo passou por tal
processo, a habilidade adquirida pode ser utilizada para
reestruturar outros aspectos diferentes daqueles trabalhados
anteriormente, com ajuda mínima ou até mesmo sem a ajuda de um
professor, como relatado por ambos os entrevistados.
95
REFERÊNCIAS:
ALCANTARA, Pedro de. Indirect Procedures: A Musician´s Guide to
the Alexander Technique. Clarendon Press: Oxford, 1997.
GAGNON, Marie-Elaine. The influence of the French cello school in
North America. Tese de doutorado. Universidade de Miami, 2005.
GALLWEY, Timothy W. O Jogo Interior de Tênis. São Paulo:
Textonovo, 1974.
MAGILL, Richard A. Aprendizagem Motora: Conceitos e Aplicações.
Editora Edgard Blücher Ltda., 1998.
MACKIE, Vivien. ´Just play naturally´: an account of her study
with Pablo Casals in the 1950s and her discovery of the resonance
between his teaching and the principles of the Alexander
Technique. Duende Edition, 2006.
MORAES, Abel. Ensino Instrumental em Grupo: Uma introdução.
Música Hoje: Revista de pesquisa música nº 4, 1997.
SLOBODA, John A. A mente musical: a psicologia cognitiva da
música. Londrina: Eduel, 2008.
96
The New Grove Dictionary of Music and Musicians, Edited by
Stanley Sadie. Macmillan Publishers Limited, London, 1980.
ANEXOS:
QUESTIONÁRIO COMO FOI APLICADO EM ALCEU REIS:
Com qual idade e como você iniciou seu aprendizado no violoncelo?
Como se deu a sua formação no violoncelo? Quais foram seus
professores de violoncelo e de que maneira eles influenciaram o
seu aprendizado instrumental/musical?
Comente sobre a sua trajetória estudantil e profissional.
97
Você já passou por alguma reestruturação de algum(ns) aspecto(s)
técnico(s)? Se sim, como foi?
Quando você julga necessário que um aspecto técnico deva ser
reestruturado?
Quais são seus objetivos ao reestruturar tecnicamente um aluno?
Quais aspectos técnicos você reestrutura com mais frequência nos
seus alunos?
Você mantém o ensino do repertório enquanto reestrutura aspectos
técnicos do aluno?
Quando você pretende reestruturar diversos aspectos técnicos no
alunos, você os faz ao mesmo tempo?
Sim - porque?
Que critérios usa para estabelecer uma ordem dos aspectos
técnicos as serem reestruturados?
O que você desenvolveu sozinho (sem a ajuda de algum professor)
na sua técnica violoncelística?
Quais foram algumas conclusões que você chegou com suas
experimentações ao violoncelo?
98
QUESTIONÁRIO COMO FOI APLICADO EM MÁRCIO CARNEIRO:
Com qual idade e como você iniciou seu aprendizado no violoncelo?
Mas como você começou a estudar? Foi iniciativa de seus pais,
sua?
Como se deu a sua formação no violoncelo? Quais foram seus
professores de violoncelo e de que maneira eles influenciaram o
seu aprendizado instrumental/musical?
Comente sobre a sua trajetória estudantil e profissional.
Você já passou por alguma reestruturação de algum(ns) aspecto(s)
técnico(s)? Se sim, como foi?
Qual a importância que você atribui ao seu processo de
reestruturação?
Quais são as dificuldades que podem ser encontradas quando se
reestrutura um aspecto técnico?
Quais são as estratégias para se reestruturar um aspecto técnico?
99
Quando você julga necessário que um aspecto técnico deva ser
reestruturado?
Quais são seus objetivos ao reestruturar tecnicamente um aluno?
Quais aspectos técnicos você reestrutura com mais frequência nos
seus alunos?
Você mantém o ensino do repertório enquanto reestrutura aspectos
técnicos do aluno?
Quando você pretende reestruturar diversos aspectos técnicos no
alunos, você os faz ao mesmo tempo?
Sim - porque?
Não - porque?
Que critérios usa para estabelecer uma ordem dos aspectos
técnicos as serem reestruturados?
Da sua maneira de tocar, o que você desenvolveu sozinho?