50 anos da ditadura - lições de resistência e democracia dos cineclubes

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50 anos da Ditadura Lições de resistência e democracia dos cineclubes 2014, ano de lembrança e reflexão Como não podia deixar de ser, este ano está sendo marcado por inúmeras efemérides relativas ao cinquentenário da ditadura que o Brasil viveu entre 1964 e 1985. É uma reflexão indispensável, trata-se do evento histórico mais importante da nossa experiência recente, riquíssimo para a compreensão da sociedade atual, que dele traz múltiplos traços. Conhecer e sobretudo compreender o melhor possível aquele período é indispensável para evitarmos toda possibilidade de renascimento do autoritarismo - ou autoritarismos, presentes em diferentes dimensões do convívio social. A maneira como a sociedade se articulou para derrubar o regime e construir novas bases democráticas é um reservatório de lições que continuam a servir para não apenas consolidarmos as instituições democráticas existentes, mas sobretudo para as estender e aprofundar no sentido de uma justiça social ainda subdesenvolvida em nossas terras. Muitos dos eventos, mostras, debates que se fizeram pelo País este ano usaram uma iconografia forte da onipresença militar no período autoritário. Nada melhor para representar a tirania em estado bruto – admitindo o jogo de palavras – que tropas armadas, 1

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50 anos da DitaduraLições de resistência e democracia dos cineclubes

2014, ano de lembrança e reflexão

Como não podia deixar de ser, este ano está sendo marcado por

inúmeras efemérides relativas ao cinquentenário da ditadura que o

Brasil viveu entre 1964 e 1985. É uma reflexão indispensável,

trata-se do evento histórico mais importante da nossa experiência

recente, riquíssimo para a compreensão da sociedade atual, que

dele traz múltiplos traços. Conhecer e sobretudo compreender o

melhor possível aquele período é indispensável para evitarmos

toda possibilidade de renascimento do autoritarismo - ou

autoritarismos, presentes em diferentes dimensões do convívio

social. A maneira como a sociedade se articulou para derrubar o

regime e construir novas bases democráticas é um reservatório de

lições que continuam a servir para não apenas consolidarmos as

instituições democráticas existentes, mas sobretudo para as

estender e aprofundar no sentido de uma justiça social ainda

subdesenvolvida em nossas terras.

Muitos dos eventos, mostras, debates que se fizeram pelo País

este ano usaram uma iconografia forte da onipresença militar no

período autoritário. Nada melhor para representar a tirania em

estado bruto – admitindo o jogo de palavras – que tropas armadas,

1

veículos blindados, cavalaria. Mas o arbítrio mobiliava todo o

cotidiano, e a força maior da opressão exercia-se no vasto campo

das instituições, na legislação de exceção, no arrocho salarial,

na censura, na repressão à diversidade comportamental, na

proibição de organização, nem sempre com grandes aparatos

visíveis. A imagem do País seria talvez melhor representada por

uma cidade vazia, um deserto, um cemitério. De forma mais ou

menos análoga, a imaginária da resistência à ditadura, nesses

eventos, tem destacado o repertório dos tombados na luta armada,

seu inegável heroísmo ressoando forte nos sentimentos de todos

nós. Mas também isso não corresponde à verdade histórica. Falta

de articulação e respaldo popular, a resistência armada foi

derrotada pela reação feroz e ilegítima do Estado e não

contribuiu efetivamente para a derrubada do regime. A lição

inestimável que tiramos da luta contra a ditadura foi que ela foi

derrubada por um amplo, longo, difícil, perigoso trabalho de

organização da sociedade civil – provavelmente com tantas ou mais

vítimas que o combate armado – que desaguou numa mobilização

crescente até tornar-se avassaladora.

Os cineclubes são um dos exemplos mais claros e instrutivos dessa

sociedade civil que se expandiu por todo o tecido social. Mas

são, também, caso exemplar do estiolamento e desagregação desse

mesmo tecido social na restauração da hegemonia dos opressores.

Seu papel ainda está para ser avaliado, e essa história, para ser

contada. Apresento aqui alguns comentários que podem contribuir

para a tarefa, se algum dia for empreendida.

2

Prolegômenos

Num livreto que escrevi em 1982 – Movimento Cineclubista Brasileiro –,

editado pelo Cineclube da Fatec de São Paulo, eu propunha uma

visão evolutiva do cineclubismo em nosso País. Partindo da idéia,

que tinha então, de que o primeiro cineclube brasileiro fora o

Chaplin Clube, via uma espécie de progressão democrática que

começava naquele clube da elite da capital nacional; passava para

o meio universitário do Clube de Cinema da São Paulo (1940-57);

espalhava-se pelos estados e pelas instituições educativas

católicas ao longo dos anos 50; chegava, através dos cineclubes

universitários a “levar cultura para o povo” em experiências mais

populares, às vésperas do golpe militar de 64. Os cineclubes dos

anos 70, pensava eu, haviam superado o paternalismo implícito na

geração cineclubista do Cinema Novo, dando origem a um movimento

autóctone nas periferias, que não mais dependia da animação

estudantil. Era o ponto de chegada de uma teleologia juvenil e

orgulhosa, de resistência à ditadura.

A reflexão um tanto simplificadora baseava-se, contudo, em

conquistas reais dos cineclubes daquela etapa da nossa história.

Os anos da ditadura militar são possivelmente os mais ricos da

história dos cineclubes brasileiros, sob vários aspectos. Marcam

a superação de um modelo elitista dominante por 50 anos e o

lançamento das bases de uma nova teoria cineclubista baseada não mais

no cinema, no texto, mas no público, no contexto. Mais que isso,

essa geração se inaugurai pelo reconhecimento da postura

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colonizada do cineclubismo até então, com o firme comprometimento

com o cinema brasileiro como expressão da nossa identidade e

cultura. E, marcada pela perseguição e pelo arbítrio, criou

instituições e modelos de gestão radicalmente democráticos que

levaram o cineclubismo a uma extensão territorial, social e

cultural inigualados em qualquer outro momento.

Passemos rapidamente pela história. Nos anos 50, por aqui, o

cineclubismo baseado no modelo francês de culto ao “bom cinema”

havia se conjugado de diferentes maneiras com um humanismo

cristão de inspiração católica. Cabe uma certa analogia sobretudo

com o cineclubismo parisiense do pós-Guerra, que incorporava um

pouco do humanismo de André Bazin com o vanguardismo elitista –

às vezes tratada de “cinefilia” - dos cineclubes que deram origem

aos Cahiers du Cinéma e Positif. Aqui, sob influência daquele modelo,

a década se distingue pela expansão nacional dos cineclubes, pelo

florescimento de uma crítica cinéfila em diferentes estados, pela

proliferação igualmente nacional de cineclubes católicos e,

finalmente, pelo início de uma organização autônoma do

cineclubismo como movimento culturalii. Na virada e começo dos

anos 60, o cinecubismo universitário se politiza mais,

envolvendo-se com os Centros Populares de Cultura, com o Cinema

Novo, e disputando com os cineclubes católicos dentro do

movimento.

Como eu dizia no livrinho de 1982, o golpe militar atingiu

mais esse segmento minoritário, extensão do movimento estudantil.

4

Inicialmente, a ditadura ocupa-se das organizações realmente de

massa, operárias, camponesas, estudantís. Destas últimas deriva,

portanto, a desagregação dos CPCs e o golpe duro em parte da

produção cinemanovista. A maior parte da atividade cineclubista,

sem compromisso político, foi preservada. De certa forma, a

ditadura atingiu o movimento de fato, mortalmente, em 1968: a 7ª.

Jornada foi realizada naquele ano em Brasília (!), em meio ao

golpe na sucessão do general Costa e Silva e a edição do Ato

Institucional no5. Com o recrudescimento da ditadura militar, os

cineclubes – e cineclubistas - passam a ser violentamente

perseguidos. É estabelecida na prática a censura prévia às suas

atividadesiii e todo tipo de entraves e pressões vão desmantelando

todas as entidades no País. Calcula-se que existissem cerca de

300 cineclubes em 1968, agrupados em 6 federações regionais

filiadas ao Conselho Nacional de Cineclubes. Em 1969 haveria no

máximo uma dúzia de cineclubes em funcionamento e quase todas as

suas entidades representativas haviam sido destruídas ou

abandonadas. Exceção importante, o Centro dos Cineclubes de São

Paulo subsistiu, graças principalmente ao empenho de Carlos

Vieira – então já quase vinte anos à frente da entidade.

5

Carlos Vieira, à esquerda, Hector Babenco, Roberto Santos e

Marília Santos

no Clube de Cinema de Marília

Penso que se possa agrupar esse período da história do

cineclubismo brasileiro em três fases: de reorganização, de

expansão e consolidação e, finalmente, de crise e desagregação.

Primeira fase (72-74) – reestruturação, unidade, cinema

brasileiro

Os cineclubes nunca deixam de existir, mesmo nos períodos em

que desaparecem dos espaços midiáticos e acadêmicos e exercem

pouca ou quase nenhuma influência no restante da sociedade.

6

Subsistem no isolamento, sem notoriedade, atendendo ao que penso

ser uma necessidade persistente do público. Na verdade só são

notados quando muito organizados, atuantes, de forma a se impor

nos noticiários, ou quando reconhecidos – geralmente de forma

efêmera – por correntes acadêmicas e/ou midiáticas, como nos anos

20 e 50 na França, por exemplo. Mas estão sempre por aí, meio

escondidos numa faculdade, numa forma de associação de bairro,

numa cidade do interior...

Como já mencionei, depois do “golpe dentro do golpe”

subsistiu uma certa atividade em São Paulo, principalmente em

cineclubes tradicionais do interior, como o Clube de Cinema de

Marília ou o Clube Avareense de Cinema, através do Centro dos

Cineclubes. Não podemos esquecer da Cinemateca de Santos,

identificada com a forte personalidade de Maurice Legeard,

atuando por fora. Essa atividade se dinamiza com o surgimento de

novos cineclubes estudantis e, a partir de 72, pela ação da

Cinemateca Brasileira, então mantida a duras penas por um grupo

de jovens sob a liderança inicial de Lucila Riberio Bernardet. A

circulação do acervo 16mm e a identificação de sua equipe com a

resistência dos cineclubes à ditadura logo deram à Cinemateca um

papel de liderança nesse movimento.

No Nordeste também, várias personalidades da geração

anterior do cineclubismo mantinham atividades diversas de

exibição, debate e organização em muitas cidades da região. A

Bahia centralizou de certa forma essa movimentação, que incluía

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uma produção de resistência e culminaria com a criação da Jornada

de Curta-Metragem, sob a direção de Guido Araújo, em 1972.

Mas é do Rio de Janeiro que veio o impulso fundamental

para a reorganização nacional do movimento cineclubista. Dentre

alguns cineclubes que se organizaram e recriaram a Federação do

Rio de Janeiro, destaca-se o CC Glauber Rocha, com um número

expressivo de grandes quadros cineclubistas e a liderança de

Marco Aurélio Marcondes. O “Glauber Rocha” era praticamente uma

base ou célula do Partido Comunista Brasileiro; acredito que isso

é fundamental para compreender a visão e o programa organizativo

que esse grupo ajudaria a estabelecer em seguida para todo o

País.

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O Cineclube Glauber Rocha – parte de seus membros

O último à direita, embaixo, é Marco Aurélio

Marcondes

Esse programa pode ser resumido em alguns tópicos:

unidade de todos os cineclubes; criação ou recriação de

estruturas institucionais e operacionais; cobertura nacional do

movimento e, finalmente, compromisso com o cinema brasileiro. Foi

Marco Aurélio, principalmente, que buscou e identificou os

núcleos cineclubistas existentes no País. Em São Paulo, por

exemplo, foi o maior promotor da unidade entre os cineclubes mais

tradicionais, ligados ao Centro (Carlos Vieira), e os estudantis,

à Cinemateca (Felipe Macedo).

Em 1972, na primeira Jornada baiana, lançaram-se as bases

para a fundação da ABD e a reorganização do CNC, ambas no ano

seguinte: a ABD em setembro, na 2ª. Jornada; o CNC em outubro, em

reunião no Clube de Cinema de Marília, por ocasião da entrega do

tradicional (criado em1966) prêmio Curumin de Cinema Brasileiro.

Rio (Marco Aurélio Marcondes, Luiz Fernando Taranto), São Paulo

(Carlos Vieira, Felipe Macedo) e Nordeste (representado pela

Bahia, com o paraibano José Umbelino Brasil) foram as regiões que

participaram. A principal deliberação da “nova” entidade foi a

convocação do congresso nacional dos cineclubes já para o início

de 74.

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Jornada de Curitiba (1974): Cosme Alves Neto (Cinemateca do Museu

de Arte Moderna) em primeiro plano, e a delegação da Federação de

Cineclubes do Rio de Janeiro

A 8ª. Jornada Nacional de Cineclubes foi realizada em

fevereiro de 74, em Curitiba, com a presença de 40 entidades –

entre elas, as duas cinematecas brasileiras e a ABD recém criada.

Penso que as duas grandes resoluções da Jornada foram: a mudança

dos estatutos do CNC, que assumiu uma forma nacional e

democrática, tornando-se uma federação de cineclubes por voto

direto – antes era um conselho que reunia apenas as direções das

federações regionais – e a Carta de Curitiba, que definia o

vínculo e compromisso do cineclubismo brasileiro com o cinema

nacional. Isso significou uma ruptura histórica com a postura

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elitista e colonizada que prevalecia até então, de culto a um

“bom” cinema, fundamentalmente identificado com a produção

estrangeira. Certos autores identificam essa nova postura como

herança do Cinema Novo; equivocam-se, a origem deste novo

“nacionalismo” - sem abdicar da crítica que é inerente à prática

do cineclubismo - estava nas posições de Paulo Emílio Salles

Gomes e envolvia todo o cinema brasileiro – da chanchada e Vera

Cruz ao Cinema Novo - como expressão de uma cultura que havíamos

desdenhado e desconhecido. Carlos Vieira presidiu a primeira

diretoria do novo CNC.

Segunda fase (75-84) – A Dinafilme e um movimento social nacional

Em Curitiba já se colocava a questão fundamental: como obter

filmes para os cineclubes. Há vários aspectos a considrar nesse

tema:

Primeiro, é preciso lembrar que filme era película – e 16mm

a bitola consagrada dos cineclubes. Além da cara copiagem, a

própria circulação de filmes era um desafio logístico de

transporte e custos;

Os monopólios regionais de exibição, em acordo com as

distribuidoras americanas, não permitiam a circulação de

filmes em diversas partes do País;

Da mesma forma, filmes brasileiros raramente estavam

disponíveis e curtas-metragens menos ainda;

A Censura proibia sistematicamente filmes mais críticos e a

Polícia Federal, os serviços secretos das forças militares e

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até organizações terroristas de extrema direita assediavam e

atacavam atividades de vários cineclubes.

O movimento fez desde logo uma série de experiências de

circulação de pacotes de filmes, com resultados variados. Mas na

Jornada seguinte, em Campinas (1975), concluiu pela necessidade

de criação de uma distribuidora organizada, ligada ao CNC.

Na Cinemateca Brasileira, em 1975, tinha havido uma espécie de

luta pelo poder: um grupo mais “técnico”, vindo dos cursos de

cinema da USP e contrário a qualquer atividade que pudesse

comprometer o relacionamento da instituição com o governo

militar, acabou assumindo a direção. O pessoal que lá estava

desde 1972 foi afastado e parte dele assumiu a direção da

Federação Paulista de Cineclubes, nova denominação e estrutura

adotadas pelo Centro dos Cineclubes. A questão toda foi arbitrada

por Paulo Emílio Salles Gomes: ao mesmo tempo que sacramentava a

nova equipe da Cinemateca, doou o acervo 16 mm – duplicado de

cópias já preservadas - para a Federação. Em fevereiro de 76, na

Jornada de Juiz de Fora, foi oficialmente criada a Dinafilme –

Distribuidora Nacional de Filmes, e sua administração central

entregue à Federação Paulista que já tinha sede e acervo em duas

salas na famosa Boca do Lixo, em São Paulo. Marco Aurélio

Marcondes foi eleito presidente do CNC e Felipe Macedo,

secretário-geral e diretor da distribuidora.

O acervo inicial, de clássicos do cinema, foi sendo

incrementado com o depósito sobretudo de curtas-metragens feito

12

pelos realizadores. A Dinafilme combinava a fórmula “trabalho

legal – trabalho ilegal”, distribuindo clandestinamente os filmes

proibidos ou não submetidos à Censura (ver nota iii), mas atuando

igualmente na “legalidade”, mais ou menos dialogando com as

instituições do governo de exceção. Com a nova distribuidora, os

cineclubes de todo o País puderam ter acesso a filmesiv e o

movimento não parava de crescer, começando a ter um certo peso

político real: no fim da década, o CNC chegou a ter cerca de 600

cineclubes associados e a Dinafilme atendia a uns 2.000

“exibidores” de caráter cultural e comunitário. Em 1977, Marco

Aurélio afastiu-se formalmente da direção do CNC, tendo sido

contratado para criar um Setor 16mm na Embrafilme. Era o

complemento ideal para a programação dos cineclubes, pois só o

Estado tinha recursos para poder fazer cópias de longas-metragens

brasileiros em 16mm. Resumida e esquematicamente: o Setor 16mm da

Embrafilme fornecia longas-metragens brasileiros; a Dinafilme,

clássicos e curtas, inclusive clandestinos. No começo dos anos 80

a distribuidora cineclubista passou a distribuir também filmes

latino-americanos.

Paralelamente a esse processo, o movimento vivia uma prática

política intensa. Expandia-se horizontal e verticalmente,

espalhando-se pelo País todo, sendo adotado ou trabalhando

conjuntamente com muitos movimentos sociais e mesmo estabelecendo

relações internacionaisv. Voltarei a isso. Mas também

internamente o movimento praticava um debate político muito vivo.

As assembléias ou jornadas – então anuais, com eleições a cada 2

13

anos – especialmente entre 1977 e 1984 foram marcadas por intensa

disputa. Pode-se resumir um pouco essa divisão entre uma visão e

programa que defendiam o cinema brasileiro e um cineclubismo

plural, em torno das idéias gramscianas de nacional-popularvi, de

um lado, e uma posição que propugnava uma prática

internacionalista e revolucionária de inspiração trotskista. A

base social do primeiro grupo era bem ampla, nacional, indo dos

cineclubes de periferia aos mais tradicionais e organizados,

passando pelos de escolas de todos os níveis, além de movimentos

específicos de gênero, orientação sexual, etc. Os

“internacionalistas” tinham bases exclusivamente universitárias,

ligadas a algumas tendências do movimento estudantil,

especialmente em Minas (Grupo Centelha) – onde eram hegemônicos -

e no Nordeste, mas também em praticamente todos os outros estados

(Grupo Liberdade e Luta, em São Paulo, por exemplo). Menos

importante, sob alguns aspectos, tinha a vantagem da organização

através das tendências partidárias do movimento estudantil,

resultando numa maior facilidade de mobilização.

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Jornada de Caxias do Sul (1979), a maior até hoje: 124 cineclubes

com direito a voto e quase 500 participantes em renhida disputa

eleitoral.

Esse debate, especialmente no primeiro período citado,

circulava por uma robusta imprensa cineclubista e estruturas

organizativas cada vez mais radicalmente democráticas. As

federações e o CNC – e muitos cineclubes – tinham boletins

periódicos. A Dinafilme era dirigida por um Administrador eleito

na Jornada, amparado num Conselho (deliberativo) de

Administração, o CADINA, com representantes de todas as

federações e grupos de cineclubes ditos isolados. Cada região

tinha seu CADINA regional, que administrava “filiais” e acervos

circulantes da distribuidora. Nos dois níveis, nacional e

regional, também tinham seus “boletins Cadina”, com dados da

distribuição e artigos de debate. Assim, as assembleias regionais

deliberavam, em última instância, sobre o andamento da

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distribuidora entre as jornadas. Era uma prática difícil,

trabalhosa, que criava dificuldades sem conta para a gestão de

uma distribuidora independente, que precisava se custear, manter

uma eficiência – que, aliás, esteve sempre longe do ideal. Mas

que durou mais de uma década e deu uma contribuição inigualável

para a cultura e o cinema brasileiros.

Ao mesmo tempo, o reconhecimento da legitimidade dessas

instâncias garantia a base de funcionamento delas, mesmo nas

relações entre grupos francamente adversários. Nos casos de

repressão – fora os casos pontuais, que se contam às centenas, de

cineclubes perseguidos, a própria sede do CNC e a Dinafilme foram

invadidas duas vezes (77 e 79) pela Polícia Federal e o acervo

apreendido – a unidade era exemplar. Na invasão da Dinafilme de

79, a mobilização realizada em cada estado e nacionalmente foi

tão forte que o ministro da Justiça teve de receber a direção do

CNC e devolver os filmes. Foi o momento de maior exposição

midiática e social do cineclubismo brasileiro, em plena ditadura,

e a maior vitória política pontual em sua história.

O debate, a participação, a estrutura democrática

caracterizam um movimento mesmo, uma parcela significativa da

sociedade que se apoiava no cinema para se organizar como

sujeito, e sujeito político. Isso ocorria de par com a

organização da sociedade civil em escala muito mais ampla; os

cineclubes eram parte de outros movimentos e organizações

sociais, especialmente nos bairros junto a comunidades de base da

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igreja então marcada pela teologia da libertação, a iniciativas

de alfabetização, aos movimentos contra a carestia e muitos

outros. O cineclubismo também se envolveu com formas de

organização identitárias, culturais, de gênero, como se diz hoje;

na Bahia, graças ao trabalho incansável e liderança carismática

de Luís Orlando da Silva, tornou-se canal importante de expressão

do movimento negro. E cineclubes importantes marcaram também os

movimentos feminista, homossexual e outros, que se destacavam

também nas relações com o restante do movimento, nos grandes

congressos anuais.

Luís Orlando da Silva - símbolo de um novo

cineclubismo

Estes exemplos de discussão e muitas outras questões

ocupavam todos os espaços de que dispunha o movimento, em artigos

e ensaios, réplicas e tréplicas aguerridas, irônicas,

implacáveis. Essas disputas, como me parece óbvio, contribuíam e

consistiam mesmo na manifestação mais evidente do grau de

democracia que regia o movimento. Independentemente de

17

“hegemonias” locais ou nacional de uma ou outra tendência, quando

havia, as oposições sempre tinham direito e espaços assegurados

para se expressar. Tal foi, de fato, a intenção e modelo do

Conselho de Representantesvii, no CNC (que assegurava a

participação das minorias na gestão majoritária) e a forma de

administração ultraparticipativa que marcava – e às vezes até

atrapalhava – a Dinafilme. Mas, quando interesses gerais do

movimento estavam em jogo – como a manutenção dessas mesmas

instituições, políticas (da organização) ou econômicas

(basicamente a Dinafilme, mas também a organização de encontros),

a unidade do movimento cineclubista prontamente se estabelecia. O

maior e mais claro exemplo disso foram as mobilizações amplamente

nacionais quando das duas invasões e apreensões na Dinafilme pela

Polícia Federal, em 1977 e 79. E todas as Jornadas anuais - e as

Pré-Jornadas entre elas -, organizadas praticamente sem

patrocínio (mas com parcerias com prefeituras de oposição ao

regime militar, sindicatos, organizações religiosas).

Em meio a uma intensa disputa, viia o compartilhamento das

“regras do jogo”, a aceitação dos resultados eleitorais ou de

propostas programáticas por eventuais minorias - que podiam ser

bem numerosas ou majoritárias em determinadas regiões – em função

da unidade geral em torno de princípios e conquistas comuns.

Um novo tipo de cineclubismo

A própria conjuntura autoritária e a repressão à organização

da sociedade civil acentuaram o caráter político da organização

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cineclubista, que passou a valorizar o público em detrimento do

cinema - valor maior da cinefilia consagrada pelo cineclubismo

elitista, especialmente francês, dos anos 20 e 50. Recuperando os

valores originais dos primeiros cineclubes, de origem socialista

e anarquista - o humanismo cristão e a valorização do público

trabalhador e feminino - o cineclube brasileiro do período da

ditadura passou a definir-se majoritariamente como uma organização

do público com vistas à apropriação e à construção de um novo

cinema (expressão de uma nova sociedade), e não mais como um

grupo de apreciadores de uma expressão artística, comprometidos

apenas com a sua dimensão estética (independentemente da

sociedade).

Essa postura mais ou menos comum em toda a América Latina,

que vivenciava condições políticas e sociais muito semelhantes,

foi possivelmente expressa de forma mais consciente no Brasil,

onde um movimento mais vigoroso e numeroso deu margem a um debate

e uma certa produção teórica mais importante. A influência do

pensamento gramsciano – e particularmente sua concepção das

instituições geradoras de valores éticos e culturais - também está

certamente associada ao desenvolvimento desse pensamento.

Concorre para demonstrar isso o fato de que uma reflexão

semelhante, colocando o público na centralidade da questão do

cinema, também surgia, na mesma época, na Itália, com os

cineclubistas Fabio Masala, da Sardenha, e Filippo De Sanctis.

19

O associativismo é a premissa maior dessa concepção, que

reelabora essa base geral e originária do cineclubismoviii e a

aproxima da idéia das instituições valorativas de Gramsci,

essenciais para a construção de uma sociedade efetivamente

democrática. Mas também para a consttrução de um cinema que

expresse a cultura e os interesses do povo – em oposição a um

cinema espetáculo comercial que atende essencialmente às demandas

do capital. Assim, como bem ilustra a foto, mais acima, do

Cineclube Glauber Rocha (foto em que não cabem todos os membros

do cineclube), os cineclubes típicos do período tinham dezenas de

associados e militantes. Tal conjuntura (“beneficiada” por um

clima repressivo e de relativa ausência de manifestações

críticas) criava um campo de debate interno também bastante

intenso, e uma grande criatividade, gerando idéias e ações que

atraíam e mobilizavam grandes públicos. Sessões, inclusive

clandestinas, tanto nas universidades como nos bairros, não raro

reuniam públicos de muitas centenas de pessoas.

O modelo, creio, se estende e contamina as organizações que

o movimento cria: daí as diversas instâncias participativas já

mencionadas, como os conselhos de representantes do CNC e de

gestão da Dinafilme. Também as Jornadas eram abertas a amplas

participações e os cineclubes compareciam com diversos membros,

em delegações numerosas de até dez ou mais pessoas.

Já mencionei a idéia de democratização paulatina do

cineclubismo brasileiro, expressa no livrinho de 1982. De certa

20

forma – e recusando a linearidade e teleologia do raciocínio – o

cineclubismo brasileiro do período ditatorial (retomou e) superou

a geração anterior e suas ações de “levar a cultura para o povo”.

Os cineclubes de bairrros de periferia e de comunidades e

movimentos culturais populares – como o dos negros, especialmente

na Bahia – eram autogeridos, sem “orientações” externas e

participavam em igualdade com todos os outros tipos de cineclubes

do movimento. Já no fim dos anos 70 esses cineclubes tornam-se

maioria nas jornadas.

Certamente contribuíram para essa expansão com autonomia

alguns programas de criação de cineclubes coordenados

principalmente por federações regionais, como as de São Paulo -

Projeto “Intercine” (Plano de Interiorização do Cinema Cultural),

que chegou a até 80 cidades na terceira edição) e Espírito Santo,

já com apoios dos governos estaduais. Outra instituição das

federações no período da ditadura foi o Mês do Cinema Brasileiro,

quando todos os cineclubes de sua base regional programavam

filmes nacionais, e outras atividades sobre o tema.

Exceção muito importante a considerar nessa tendência

democratizante foi a dos cineclubes propriamente operários. Os

sindicatos são uma base ideal para o desenvolvimento do

cineclubismo: geralmente contam com sede, instalações e recursos,

além de serem virtualmente um polo de afluência de trabalhadores

com alto grau de identidade. Isso, sem me estender sobre o papel

central que tem a classe operária na construção de uma sociedade

21

efetivamente democrática. No entanto, pouquíssimos foram os

sindicatos que aceitaram ou adotaram cineclubes em sua

estruturaix. Na greve do ABC, em 1978, a Dinafilme montou equipes

móveis de projeção, que exibiam filmes do movimento operáriox,

mas a própria diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos proibiu a

criação de um cineclube em sua organização – embora contratasse a

produção de vários filmes com um realizador. Essa estreiteza do

movimento sindical com relação à organização cultural – muitos

sindicatos e centrais sindicais promoviam (e o fazem atualmente)

espetáculos totalmente comerciais e anódinos, mas não estimulam a

iniciativa cultural operária.

Influência no cinema brasileiro

Cartazes de lançamentos da Dinafilme

Uma crítica comum ao novo modelo de cineclubismo era a da

sua politização, supostamente sinônimo de descompromisso e22

instrumentalização do cinema. Como se verá mais adiante, esse

elemento estava presente, mas essa politização também representou

interação e influência no cinema brasileiro. Um grande número de

cineastasxi trabalhava orgânicamente com o movimento, cedendo

seus filmes para a Dinafilme – e vários foram produzidos

especialmente para ela e para o grande circuito de exibição que

ela atendia, inclusive clandestinamente. Já mencionei que, em

determinado momento, a Dinafilme atendia 2.000 pontos de exibição

no País.

João Batista de Andrade, Leon Hirszman, Tizuka Yamasaki,

Jorge Bodanski, Osvaldo Caldeira, Renato Tapajós, Roberto

Gervitz, Sergio Toledo, Carlos Reichembach, Sílvio Tendler, Alain

Fresnot, Agnaldo “Siri” Azevedo, Orlando Bomfin, são alguns dos

muitos realizadores que interagiam com o movimento cineclubista e

recebiam sua influência pelos resultados da circulação de seus

filmes. Além de participarem de debates sobre seus filmes, a

Dinafilme também estimulava a elaboração de relatórios de sessão,

inclusive mais informais, o que tinha bastante impacto junto aos

realizadores. Assim, filmes como O Homem que Virou Suco; Eles não Usam

Black-tie; Gaijin; Projeto Jari; Passe Livre; Linha de Montagem; Braços Cruzados,

Máquinas Paradas; Os Anos JK;Trem Fantasma, entre muitos outros, são

exemplos de filmes que dialogam e incorporam em graus variados a

inflluência dos cineclubes e, principalmente, do público que eles

reuniam e representavam. O cineclubismo está presente na

estética, como na política, do cinema brasileiro daquele período.

23

Tendo sido uma das primeiras entidades do cinema brasileiro

a se organizar depois da instalação da ditadura, o CNC e o

movimento cineclubista criaram e participaram de todos os eventos

e reuniões importantes (festivais, congressos, etc.) do meio

cinematográfico brasileiro e mantiveram diálogo com todas as

instituições existentes ou que foram surgindo: Associação

Brasileira de Cineastas, Associação Paulista de Cineastas,

Sindicatos de Artistas e Téccnicos, etc.

Baseada num texto de Antonio Gouveia Jr. (criador do

cineclube do Sindicato dos Jornalistas e do CC Bixiga), uma

Resolução do Conselho Nacional de Cinema (o então órgão normativo

do cinema no País) regulamentou a atividade cineclubista,

reconhecendo no CNC a exclusividade de registro das entidades de

base (que, assim, não precisavam entrar em qualquer contato com a

Polícia Federal ou outros órgãos de controle).

24

1980: Gaijin recebe o prêmio Curumin de melhor filme brasileiro,

do Clube de Cinema de Marília. A partir da esquerda:

diretora do Clube de Cinema; Felipe Macedo, da Dinafilme;

Orlando Fassoni, crítico de cinema, e a diretora Tizuka Yamasaki

Presença internacional (77-84)

A partir de 1977, o CNC passa a participar da Federação

Internacional de Cineclubes, sendo incorporado ao seu Comitê

Executivo em 1977, em Figueira da Foz, Portugal. O Secretário-

geral da FICC, Jean-Pierre Brossard, participa das Jornadas de

Caxias do Sul (78) e Campo Grande (80). Em 1979, Macedo é eleito

novamente para o Comitê, desta vez em assembléia realizada em

Marly-le-roi, perto de Paris. Em 1981, na primeira assembléia da

FICC realizada na América Latina (Havana, Cuba, durante o

Festival del Nuevo Cine), é eleito Secretário Latino-americano.

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A relação com a FICC foi praticamente irrelevante, exceto

quanto à América Latina. A organização era extremamente centrada

na realidade européia, onde o intercâmbio entre federações

nacionais fortes, sustentadas por países desenvolvidos ou

socialistas, era uma realidade. Mas a entidade eurocêntrica não

fazia quase nenhuma ação concreta em relação ao resto do mundo.

O encontro de Havana, porém, reuniu diversos países latino-

americanos que compartilhavam uma mesma conjuntura de repressão

e, mesmo sem muitos recursos, dispunham de vontade política para

se aproximarem. Felipe Macedo e Diogo Gomes dos Santos, então

diretor da Dinafilme, conseguiram trazer clandestinamente para o

Brasil os filmes mais importantes do Festival e celebraram um

acordo com a distribuidora mexicana Zafra para intercâmbio de

filmes. Assim, no começo da década de 80, a Dinafilme distribuiu

diversos documentários latino-americanos, inclusive das

sublevações populares de El Salvador e Nicarágua.

Terceira Fase (84-89) – desestruturação

Se num primeiro período – especialmente entre 1977 e 1980 –

o movimento se dividia em tendências ideológicas e programáticas

mas conseguia preservar a unidade política, a partir de 1982 ele

passa a se desentender num plano quase de classe, em que a

intolerância impede a convivência. É um dos fatores da sua

desagregação.

A maioria dos cineclubes, de 1974 a 1982, se identifica com

os pressupostos aqui descritos, de primazia do público, do

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associativismo democrático, de defesa e participação no cinema

brasileiro. Entre a Jornada de 1977 (Campina Grande) e a de 1978,

em Caxias do Sul, algumas tendências de orientação trotskista no

movimento estudantil se organizam para disputar as eleições (em

78). A disputa foi acirrada e a vitória daquela maioria foi

apertada. No entanto, como parte da “frente” estudantil visava

mais a tomada da entidade que a prática cineclubista, grande

parte desse grupo se desestruturou completamente logo após a

Jornadaxii. Mas a Federação de Minas continuou, assim como um ou

outro cineclube paulista. Na Jornada de Brasília, dois anos

depois, essa oposição havia quase desaparecido e uma espécie de

unanimidade parecia abrir caminhos interessantes numa conjuntura

em que a ditadura se enfraquecia lenta, mas consistemente.

Foi em 1982 (Jornada de Piracicaba) que a nova forma de

divisão do movimento se revelou. Ao não ser contemplado

especificamente com o cargo de vice-presidente na chapa montada

em reuniões muito amplas, que envolviam quase a totalidade dos

cineclubes presentes, Diogo Gomes dos Santos revelou e dirigiu um

“racha” inusitado: cerca de um terço dos cineclubes votaram

favoravelmente ao programa da chapa, mas se abstiveram na

eleição.

Era uma forma de tendência política diferente: não defendia

um programa, mas pessoas. De fato, havia um clima incômodo, algo

como o que Franscisco Foot Hardanxiii chamou de estratégia do desterro,

referindo-se ao purismo dos anarquistas no começo do século

27

passado. De forma semelhante, a maioria dos cineclubes de

periferia – especialmente de São Paulo – e da Federação da Bahia,

isolaram-se num discurso “anti-burguês” (em que burguês era a

mera aparência da pessoa, não sua ideologia ou mesmo a classe

social real). Essa postura preconceituosa encontrou seu par num

troféuxiv dado ao grupo na Jornada de Petrópolis, depois de uma

confusão no alojamento: Feios, Sujos e Malvados (referência ao

filme de Ettore Scuola). Gomes dos Santos capitalizou o episódio

e o grupo passou a assumir essa denominação. Uma nova prática

política surgiu; diferentemente dos embates orais ou escritos

entre as antigas tendências do movimento, os Feios, Sujos e

Malvados promoviam apenas reuniões fechadas onde agregavam novos

aderentes. As duas maiores tendências do cineclubismo não

discutiam, não conversavam, mal conviviam.

Em 1984, na segunda Jornada de Curitiba, Gomes dos Santos e

seu grupo ganharam as eleições por um único voto. O clima de

intolerância se manteve e se acirrou com uma compreensão muito

diferente das grandes mudanças por que passava o País, o cinema,

as tecnologias e sobre o papel dos cineclubes nessa transição.

Vamos falar um pouco disso.

Em meu artigo O Modelo de Cinema Brasileiroxv mostro como foram

fechados cerca de 80% das salas de cinema no Brasil nesta mesma

época que estamos examinando: entre os anos 70 e 80. Essa

sitiuação – além de muitos outros significados para o cinema no

País - deixou um grande número de projetores 35mm disponíveis a

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baixo preço, além de cadeiras de cinema. Desde 1982 o movimento,

e particularmente a Dinafilme, discutia a oportunidade de criar

cineclubes 35mm, com estrutura mais profissional (sem abandonar o

associativismo e os demais princípios que subscrevíamos) e como

“âncoras” para os cineclubes 16mm, que precisavam se adaptar às

novas tecnologias – então, o VHS.

O filme 16mm estava deixando de ser usado e produzido no

Brasil, com a introdução do videotape na televisão e a

disseminação de diferentes formatos profissionais ou caseiros, de

4, 2 polegadas ou VHS. Para obterem filmes os cineclubes deveriam

se adaptar a mais ou menos curto prazo. Nesse sentido, cineclubes

fortes em 35 mm, operando diariamente (e combatendo e

substituindo na prática o cinema comercial), poderiam ajudar a

capitalizar nossa distribuidora e financiar a passagem

tecnológica da maioria dos cineclubes. Desde 1982 o CC Bixiga já

operava nesses termos, com enorme sucesso.

O grupo liderado por Gomes dos Santos, assim como sua gestão

no CNC, eram, contudo, contrários aos cineclubes 35mm, que

consideravam “burgueses”xvi. Assim, essa ligação entre cineclubes

35mm, Dinafilme e cineclubes 16mm não foi feita. Um dos elementos

fundamentais para a desagregação da maioria dos cineclubes

naquele momento foi o desaparecimento gradativo do 16mm e a falta

de alternativas para substiuí-lo. Essa postura isolacionista da

direção do CNC levou também a um afastamento da maioria das

instituições do cinema brasileiro.

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Esvaziado de muitos dos mais atuantes cineclubes, um

movimento enfraquecido continuou sob controle daquele grupo que

foi capaz de eleger seus sucessores na Jornada de 1986, realizada

mais uma vez em Brasília. Um novo grupo político substituiu o de

Gomes dos Santos, com o apoio deste. E aqui entramos no terreno

da tragicomédia. A nova direção do CNC era composta por adeptos

do general líbio Muamar Gadafi. Ridiculamente, passeavam armados

na assembléia, distribuindo o “livro verde” do líder, em que se

explicava que as mulheres eram inferiores porque adoeciam uma vez

por mês – entre outras sandices. A entidade nacional do

cineclubismo também passou a opor-se à Federação Paulista porque

o presidente desta, na ocasião, era judeu. O CNC virou uma

anedota de mau gosto, que a esssa altura não chegava a ser

contada fora de um diminuto círculo de fanáticos.

Aqui cabe mais um parênteses importantíssimo: outro

fenômeno, ironicamente associado ao processo de democratização do

País, soma-se aos problemas tecnológicos e políticos do

movimento. Na medida em que o regime era obrigado a aceitar o

ressurgimento e a legalização de movimentos e organizações

sociais, um grande número de lideranças cineclubistas abandonavam

o movimento para atuar de forma mais explicitamente política nos

DCEs, na UNE, nos partidos políticos. Essa “debandada/cooptação”

foi muito importante no esvaziamento do movimento. No Rio de

Janeiro deve-se somar a isso a “privatização” do Cineclube

Estação Botafogo (1987), que transformou-se inicialmente em sala

comercial e depois em um circuito comercial importante, levando

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nesse processo também um bom número de quadros do cineclubismo

fluminense e quebrando uma trajetória e uma certa tradição. A

Federação do Rio, contudo, ainda existiria por alguns anos com

lideranças que, como em todo o País, não conseguiram deter o

processo de esvaziamento do movimento cineclubista.

Os “gadafianos” não completaram seu mandato. Foram depostos

na Jornada seguinte – realizada na “casa” deles, mais uma vez em

Curitiba (87). Uma diretoria de emergência assumiu, composta por

antigos presidentes e dirigentes do CNC. Na Jornada seguinte,

realizada em Campinas, comemorou-se o 60º. aniversário do

cineclubismo brasileiro (a partir do Chaplin Club), numa

tentativa de mobilizar e reativar o movimento, já em plena crise.

Em 1989, em Vitória, uma última tentativa marcou uma Jornada

esquelética que elegeu uma direção totalmente nova, mas que nunca

assumiu efetivamente. Institucionalmente, começava o longo hiato

que só seria quebrado em 2003.

A conclusão é sua

Reconstruir a História é sempre reinterpretá-la à luz das

condicionantes da atualidade: é, em última instância, um discurso

indireto sobre a atualidade, um instrumento para compará-la e

compreendê-la, muito mais que a vã pretensão de efetivamente

reconstruir o momento histórico, definitivamente passado. Mesmo

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quando o horizonte dessa história ainda está no campo da

experiência de quem o “reconstrói”. O que só se complica ainda

mais quando este foi e é parte da própria história assim

reconstruída. Portanto, este texto se assume em suas delimitações

– que não são limitações, precariedades -, isto é, um

engajamento, então como agora, com uma interpretação e uma

prática política em relação ao cineclubismo e ao mundo. Qualquer

outra história do período estaria nas mesmas condições.

A etapa seguinte na trajetória do cineclubismo brasileiro

como movimento – porque como já disse, cineclubes sempre há –

começa já neste século. Numa abordagem formal e superficial, é um

quadro completamente diferente: padrão de normalidade

democrática, e outro paradigma tecnológico, resultando em

facilidade de comunicação e acesso que não têm paralelo com os

anos que comentei aqui. E um Estado que não persegue, antes

procura fomentar à sua maneira o que entende por cultura.

Penso, entretanto, que numa perspectiva mais profunda, a

situação permanece substancialmente igual: a sociedade continua

reprimida e controlada pelos mesmos e o Estado a serviço deles.

Tanto a reconstrução democrática formal a partir de 1985, como a

apropriação social (na verdade, privatização) dos extraordinários

avanços tecnológicos que se estendem pelos últimos 50 anos,

resultaram na reorganização do controle social – ainda que mais

pela desmobilização e alienação que pela repressão direta (também

32

presente) e na apropriação indevida do trabalho e do produto de

todos por muito poucos, agora até no plano virtual.

Por isso, a descrição dos mecanismos da resistência e da

construção de instituições e organizações populares e

democráticas me parece ter a maior importância para

compreendermos nosso momento atual. Acredito que os cineclubes

estão entre as mais importantes dessas instituições da sociedade

civil que constroem em sua prática de hoje os fundamentos de uma

sociedade livre amanhã. Acredito, como dizia no meu livrinho de

1982, que “os cineclubes são o embrião da superação do cinema

comercial” numa prática que elimina a divisão do trabalho e a

alienação do produtor-consumidor (ou produtor-público). E

desistir dos cineclubes é desistir disso.

São Paulo, agosto de 2014.

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i Carta de Curitiba – documento final da 8ª. Jornad Nacional de Cineclubes, Curitiba, 1974.ii 1956 – fundação do Centro de Cineclubes; 1958 – Federacão do Rio de Janeiro;1959 – 1ª. Jornada Nacional de Cineclubes; 1960 – Federação de Minas Gerais; 1961,Federação do Rio Grande do Sul e fundação do Conselho Nacional de Cineclubes.iii Ironicamente, contra a letra da Lei 5.536, promulgada a poucos dias do AI-5, queliberava os filmes exibidos em cineclubes da apresentação de Certificado deCensura.iv O Clube Teresinense de Cinema, por exemplo, durante anos reunia seus membros para discutir filmes do circuito comercial; só começou a exibir, a programar filmesde sua escolha, a partir da criação da Dinafilme.v O então presidente do CNC, Felipe Macedo, foi eleito para o Comitê Executivo daFederação Internacional de Cineclubes em 1977 e 79, e Secretário Latino-americanoda entidade em 1981.vi Além de Antonio Gramsci, os escritos de Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder,Vianinha, Paulo Pontes, entre outros, foram importantes na elaboração da “teoria” eprograma político dessa corrente majoritária no plano nacional entre 1972 e 1984.vii O CR teve sua composição e objetivos mudados posteriormente, já neste século, epassou a representar as regiões do País, com um enfoque diferente daquele derepresentação de posições diferentes ou minoritárias.viii A forma de associação característica do cineclube é herança das organizaçõesproletárias que se desenvolveram em todo o Mundo ao longo do século XIX – os clubesde trabalhadores. Essa forma adquiriu uma dimensão institucional mais permanente apartir da chamada “lei de 1901”, na França, que reconhecia as associações livres,sem fins lucrativos, inclusive as informais.ix Duas importantes exceções foram os sindicatos dos Metalúrgicos e dos Petroleiros, ambas de Santos (SP), que mantiveram cineclubes e participaram do movimento cineclubista.x Greve!, de Joâo Batista de Andrade; Greve de Março, de Renato Tapajós (produzido peloSindicato dos Metalúrgicos do ABC), finalizados quase imediatamente, faziam partedessas projeções que foram feitas durante a trégua decretada no meio daa greve.Vários outros filmes sobre os movimentos operários e populares foram distribuídospela Dinafilme.xi É importante lembrar que a realização em película exigia uma produção bem maiscomplicada e cara que a de hoje: o termo “cineasta”, nesse contexto, refere-se auma categoria profissional bem definida.xii Essa “frente” era formada pelo grupo Centelha, que controlava a Federação deMinas Gerais, diversos grupos ligados a organizações clandestinas que tinham adireção da Federação Nordeste e outros poucos cineclubes, com uma importanterepresentação do grupo Liberdade e Luta, de São Paulo – cuja federação estava emmãos da maioria, como também as federações do Rio de Janeiro (presidida por NelsonKrunholz), do Espírito Santo (Claudino de Jesus) e de Brasília (Antenor GentilJr.). Quase todos os cineclubes das demais regiões, onde não havia federação,estavam com a maioria. A direção da Federação Nordeste debandou e acabou com aentidade imediatamente após as eleições nacionais de Caxiasxiii Hardman, Francisco Foot. 2002. Nem Pátria NEM Patrão!: memória operária, cultura e literaturano Brasil. Editora UNESP – São Pauloxiv Uma tradição nas Jornadas, havia sempre um painel de “troféus” atribuídosanonimamente a pessoas, cineclubes, grupos presentes, ou mesmo a coisas externas à

Jornada. Alguém recebia o prêmio Stálin, identificando-o como autoritário, ou demusa sa Jornada, para uma moça bonita. O bom gosto e a educação nem semprecompareciam...xv Macedo, Felipe. “O Modelo Brasileiro: um estrangeiro em nossas telas”, em Moraes, Geraldo (org.). 2008. O Cinema de Amanhã. Ed. Congresso Brasileiro de Cinemae Coalizão Brasileira pela Diversidade Cultural. Brasília. Disponível também na internet.xvi O que não impediu que, uns anos depois, assumissem o controle do CC Bixiga, que pouco depois venderam para o empresário André Sturm, que o transformou em cinema comercial e, em seguida, o fechou.