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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ DEPARTAMENTO DE SAÚDE COMUNITÁRIA CURSO DE MESTRADO EM SAÚDE PÚBLICA EMILIO ROSSETTI PACHECO TORNAR-SE MÉDICO DE FAMÍLIA E COMUNIDADE: UM MOVIMENTO PARA ALÉM DE PARADIGMAS MÉDICOS VIGENTES FORTALEZA 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

DEPARTAMENTO DE SAÚDE COMUNITÁRIA

CURSO DE MESTRADO EM SAÚDE PÚBLICA

EMILIO ROSSETTI PACHECO

TORNAR-SE MÉDICO DE FAMÍLIA E COMUNIDADE: UM MOVIMENTO PARA

ALÉM DE PARADIGMAS MÉDICOS VIGENTES

FORTALEZA

2013

2

EMILIO ROSSETTI PACHECO

TORNAR-SE MÉDICO DE FAMÍLIA E COMUNIDADE: UM MOVIMENTO PARA

ALÉM DE PARADIGMAS MÉDICOS VIGENTES

Dissertação submetida à Coordenação do

Curso de Pós-Graduação em Saúde Coletiva,

da Faculdade de Medicina da Universidade

Federal do Ceará, como requisito parcial para

obtenção do grau de Mestre em Saúde

Pública.Área de concentração: Saúde Coletiva

Orientação de Prof. Dr. Francisco Ursino da

Silva Neto

FORTALEZA

2013

3

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Universidade Federal do Ceará

Biblioteca de Ciências da Saúde

P118t Pacheco, Emílio Rossetti.

Tornar-se médico de família e comunidade: um movimento para além de paradigmas médicos

vigentes./ Emílio Rossetti Pacheco. – 2013.

120 f.: il. color., enc. ; 30 cm.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Medicina,

Departamento de Saúde Comunitária, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Mestrado

em Saúde Pública, Fortaleza, 2013.

Área de Concentração: Saúde Coletiva.

Orientação: Prof. Dr. Francisco Ursino da Silva Neto.

1. Medicina Comunitária. 2. Cuidados Médicos. 3. Saúde da Família. 4. Ética Médica I. Título.

CDD 610.69

4

EMILIO ROSSETTI PACHECO

TORNAR-SE MÉDICO DE FAMÍLIA E COMUNIDADE: UM MOVIMENTO PARA

ALÉM DE PARADIGMAS MÉDICOS VIGENTES

Dissertação submetida à Coordenação do Curso de Pós-graduação em Saúde Coletiva, da

Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em

Saúde Pública. Área de concentração: Saúde Coletiva.

Aprovada em 28/08/2013

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________

Prof. Dr. Francisco Ursino da Silva Neto (Orientador) - UFC

__________________________________________

Profª Drª Cristiane Maria Marinho - UECE

___________________________________________

Prof. Dr. Francisco Silva Cavalcante Júnior - UFC

___________________________________________

Profa. Ms. Maria do Socorro de Sousa (convidada) - UFC

___________________________________________

Prof. Ms. Marco Túlio Aguiar Mourão Ribeiro (convidado) - UFC

5

Aos meus pais.

Aos pacientes que atendi.

6

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador Francisco Ursino da Silva Neto, fundamental paraeu realizar um trabalho

adequado às minhas características.

Aos professores das bancas de qualificação e defesa Maria do Socorro de Sousa, Francisco

Silva Cavalcante Júnior, Cristiane Maria Marinho e Marco Túlio Aguiar Mourão Ribeiro

pelas contribuições para o aprimoramento desta pesquisa.

À minha irmã Marcela Rossetti Pacheco, pela contribuição na tradução do resumo para a

língua inglesa e das referências em catalão para o português.

Ao amigo Pablo Araújo Alves, fundamental para minha decisão emrealizar Mestrado.

À minha analista Grace Azevedo Simões.

Aomeu primeiro orientador Professor Ricardo José Soares Pontes, que respeitouo tempo de

busca de minha temática.

Aos amigos da diretoria da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade,

gestão 2010-12 e 2012-14, pensadores e militantes incessantes desta especialidade no Brasil,

pela participação direta em minha qualificação, por meio de suas reflexões.

Aos amigos Frederico Fernando Esteche, Marco Túlio Aguiar Mourão Ribeiro e André Luís

Benevides Bomfim, pela fraternidadedurante minha caminhada como médico de família.

Aos amigos Rômulo Augusto Fernandes Filho e Soeli Terezinha Schabarum, meus

companheiros durante a Residência em Medicina de Família e Comunidade.

7

A educação […]não é a preparação para a vida, é a própria vida.

(John Dewey)

8

RESUMO

A pesquisa interpreta um percurso singular de nomear-se médico de família e comunidade

concomitante ao encontro dos tempos pessoal e institucional de formação. A temática surge

durante o Mestrado em Saúde Pública da UFC por intermédio da desconstrução do modo de

ser médico tradicional para promover um movimento de ultrapassagem existencial pautado na

concepção de ética-da-vida. Esse processo rompe com o modelo biomédico de formação em

saúde, iniciado durante o curso de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) sob a

influência de uma crítica psicanalítica, e afirma o modelo de Medicina de Família e

Comunidade. Estabelece a hermenêutica como base interpretativa que conduz a investigação e

utiliza a narrativa de formação como meio de ampliar as possibilidades de compreensão e de

construção de pontes para a reinvenção de si. O objetivo geral é compreender o sentido do

tornar-se médico de família e comunidade como um deslocamento para além dos paradigmas

médicos vigentes. O trabalho aponta características do modelo biomédico e da Medicina de

Família e Comunidade, contextualizadas por elaborações advindas das vivências nesses

cenários de prática.

Palavras-chave: Modelo Biomédico. Medicina de Família e Comunidade.Ética-da-vida.

Narrativa de Formação.

9

ABSTRACT

This research interprets a singular pathway of becoming a family and community doctor

concomitant of the encounter of the personal and institutional times of its training. The

subject emerges during my Master in Public Health, at the Federal University of Ceará,

through the deconstruction of the doctors’ traditonal way of practising, in order to promote a

movement of existential growth based on the conception of ethics-of-life. This decision is the

result of a breaking with the biomedical model of health training, undertaken during my times

at the University of Medicine of the Federal University of Ceará, under the influence of

psychoanalysis, which for me has contributed to the establishment of the Family and

Community Medicine model. This work has hermeneutics as the interpretative basis which

conducts the research, and uses the narrative of formation as a means of broadening the

possibilities of comprehension and the construction of new ways for the reinvention of

ourselves. The general objective is to understand the sense of becoming a family and

community doctor as a movement that goes beyond the current medical paradigms. The

features of the biomedical and the Family and Community Medicine models, in the context of

the experiences acquired in these scenarios of practice, are also described.

Keywords: Biomedical Model. Family and Community Medicine.Ethics-of-life.Narrative of

Formation.

10

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABRASCO - Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva

ACS – Agente Comunitário de Saúde

AKT - Applied Knowledge Test

APS – Atenção Primária à Saúde

CNRM – Comissão Nacional de Residência Médica

CSA-Clinical Skills Assessment

CSF – Centro de Saúde da Família

DCN – Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino de Graduação em Medicina

ESF – Estratégia Saúde da Família

IAM – Infarto Agudo do Miocárdio

INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social

IMC – Índice de Massa Corpórea

MCCP –Método Clínico Centrado na Pessoa

MEC – Ministério da Educação e Cultura

MFC – Médico de Família e Comunidade/Medicina de Família e Comunidade

MGC – Medicina Geral e Comunitária

MS – Ministério da Saúde do Brasil

OMS – Organização Mundial de Saúde

PROVAB – Programa de Valorização do Profissional de Atenção Básica

PSF – Programa de Saúde da Família

RCGP - Royal College of General Pactitioners

RSB – Reforma Sanitária Brasileira

SUS – Sistema Único de Saúde

SBMFC – Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade

SBMGC – Sociedade Brasileira de Medicina Geral Comunitária

TDAH - Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade

UBS – Unidade Básica de Saúde

UECE – Universidade Estadual do Ceará

UFC – Universidade Federal do Ceará

WBA – Workplace Based Assessment

WONCA – Organização Mundial dos Médicos de Família

11

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................12

2 O MÉTODO COMO QUESTÃO.......................................................................................17

3 NARRATIVA DE FORMAÇÃO........................................................................................20

4 O MODELO BIOMÉDICO................................................................................................50

4.1 Origens e características...................................................................................................50

4.2 Método clínico convencional............................................................................................52

4.2.1 Problemas do método clínico convencional.....................................................................54

4.3 Flexner e suas contribuições para a consolidação do Modelo Biomédico....................58

4.4 Repercussões da divisão mente e corpo para a pessoa..................................................60

4.5 Biomedicina, excesso de prevenção e produção de doenças..........................................65

4.6 Necessidade de um novo perfil de médico no Brasil......................................................71

5 A MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE............................................................73

5.1 Breve histórico...................................................................................................................73

5.2 O novo paradigma e a teoria geral de sistemas..............................................................75

5.3 Definições de médico de família e comunidade..............................................................76

5.4 Princípios da Medicina de Família e Comunidade........................................................78

5.5 Perfil da prática do médico de família e comunidade e suas diferenças com a prática

hospitalar.................................................................................................................................93

5.5.1 Sintomas indiferenciados e as dificuldades da prática da medicina de família e

comunidade...............................................................................................................................93

5.5.2 Aspectos importantes da comunicação clínica na prática da medicina de família..........97

5.5.3 Problemas de se transferir médicos sem formação para a Atenção Primária................100

5.5.4 Doenças mais comumente vistas na Medicina de Família e Comunidade....................103

5.6 O método clínico centrado na pessoa............................................................................105

5.7 Processo de Titulação em MFC no Brasil e na Inglaterra..........................................110

5.8 Prevenção Quaternária...................................................................................................111

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................113

REFERÊNCIAS.................................................................................................................118

12

1 INTRODUÇÃO

O tema desse trabalho diz respeito a uma investigação do meu modo de vida de

ser médico. Eu escolhi investigaresta dimensão de minha vidadevido ao desejo de escrever

sobre os meus movimentos individuais e coletivos, mais precisamente sobre as vivências e

experiênciasque construíramo caminho para o meu tornar-se médico de família e comunidade

(MFC), minha especialidade médica.

Este desejo de escrever sobre esse tema manifestou-seem janeiro deste ano,

quando recém-chegado de um período de férias em Barcelona, tive uma forte convicção após

um turno de atendimento, de que meus tempos pessoal e institucional de formação haviam se

encontrado.Com isso, nomeei-me médico de família e comunidade.

Esta minha afirmação como especialista nesta área ocorreu no contexto de

algumas desconstruções vividas durante os dois anos do Mestrado em Saúde Pública da

Universidade Federal do Ceará (UFC). Essa temática tem origem, no entanto, quinze anos

antes,na angústia que senti durante o curso de Medicina (UFC), por não me adaptar ao modelo

biomédico de formação médica.

Filho de pais psicanalistas lacanianos, antes e durante a faculdade ouvia deles

interpretações sobre os acontecimentos da vida baseadas nas sutilezas e metáforas da

linguagem. Desde novo, escutava falas sobre o inconsciente e os nomes deFreud e Lacan

eram corriqueiramente pronunciados durante o dia a dia de minha família.

No entanto, devido ao desejo de meus pais e estímulo de professores que viam em

minhas notas escolares uma ótima justificativa para que eu fosse médico, além de não me

colocar neste período de escolha da minha profissão, entrei para a faculdade de Medicina aos

dezoito anos, em 1998. A partir daí, comecei a sofrer pelas diferentes interpretações do corpo

que ouvia em casa e na faculdade. Nesta, presenciava avisão do corpo-máquina cartesiano, em

que as doenças ocorrem como um desequilíbrio bioquímico verificável.Em casa, ouvia que o

corpo físico adoece por conta do deslocamento de significantes inconscientes que não

passaram pela consciência e tomaram lugar no real (corpo).

As angústias aconteciam porque eu tinha uma predileção pela visão psicanalítica,

mas por outro lado não conseguia deixar a faculdade de Medicina. Como forma de solucionar

meu sofrimento, entrei na terapia e realizei algumas tentativas de cursar outras áreas como

Letras/Português, assuntocom o qual eu tinha maior proximidade na escola, e Direito. Além

disso,viajei para a Alemanha, na esperança de encontrar uma forma de vida médica diferente

com a qual eu me identificasse.

13

Após esses movimentos, conheci a Medicina de Família e Comunidade (MFC)

por meio de meu melhor amigo, que se formara comigo. Esta é uma especialidade baseada

nos relacionamentos com os pacientes que está ancorada em um paradigma com o qual me

identifiquei, que transcende a visão dualística entre mente e corpo, diferentemente do

paradigma biomédico de formação médica. Após ter realizado a Residência nesta área por

dois anos e ter sido preceptor de Residentes por um ano, entrei para o Mestrado em Saúde

Pública da UFC no início de 2011.

Durante o Mestrado, as idéiasde estudar temas como ensino ambulatorial e

avaliação do internato médico não evoluíram. A primeira, porque o projeto não se justificava,

já que a idéia de comparar modelos de ensino em ambulatório não traria grandes benefícios à

prática da preceptoria, pois o melhor para esta é conhecer os modelos e usá-los conforme as

demandas de ensino e assistência da clínica. A segunda, porque a idéia não surgia do meu

desejo, o que julgava, pela minha óptica psicanalítica, não ser a melhor forma do pesquisador

encontrar-se com sua temática.Comecei então a disciplina opcional de “Bioética e Cidadania”

em outubro de 2012, prestes a terminar o meu período de mestrado e já sem esperanças de

achar um tema de estudo.

Nesta disciplina, aprendemos o conceito de ética como ética-da-vida, um

movimento dinâmico que deve ser vivido no contexto das relações e não como ética que se

tem ou se é.Com isso, realizei uma análise ética deminhas práticas pessoais e enquanto

médico, com meus pacientes e no meu trabalho. No contexto da ética-da-vida e das

desconstruções com as práticas capitalistas e de biopodertambém propostas no Mestrado,

ocorreu um movimento de afirmação do meu tornar-se médico de família e comunidade e o

surgimento do desejo de escrever sobre os caminhos que levaram a nomear-me especialista

nesta área.

Na pesquisa, o movimento metodológico escolhido confutao discurso do

pensamento clássico e se filia ao projeto da hermenêutica existencial em que se compreende a

singularidade como uma potência capaz de expressar as possibilidades que cada um tem de

ser, no contexto do mundo vital onde cada um de nós existe. A compreensão, sendo coetânea

à nossa existência, é base de toda interpretação e chave primordial para uma aprendizagem

promotora da invenção de si.

Nessa investigação, inicio realizando uma narrativa sobre minha história de vida,

em que analiso os pontos mais importantes que foram significativos para a minha formação,

fazendo as articulações com as vivências em casa e as experiênciasna profissão que

influenciaram nesta desconstrução/reconstrução.

14

A seguir, enfoco alguns pontos do modelo biomédico de formação, intercalando

elaborações minhas sobre características deste modelo. No tópico “Biomedicina, excesso de

prevenção e fabricação de doenças”, comento o caso recente da cirurgia de retirada de mamas

da atriz Angelina Jolie e descrevo outros pontos em que a Medicina perde a sua função

benéfica e transforma-se num risco para as pessoas.

Destaco também asrepercussões da divisão mente-corpo para a pessoa, em que

descrevo o que o sistema de “fatiamento” de especialidades médicas pode causar para uma

pessoa que não tem um médico de família para coordenador seu cuidado, assim como alguns

questionamentossobre a cirurgia bariátrica.O item “Problemas do método clínico

convencional” traz contribuições para entendermos os problemas do modelo

biomédico.Baseia-se,dentre outras coisas, em relatos de pessoas que descreveram suas

experiências como pacientes. Por último, destaco o curta metragem francês La

surconsommation, que faz uma crítica sobre a cirurgia bariátrica e o modo de produção e de

consumo de alimentos atualmente.

Prosseguindo, defino a Medicina de Família e Comunidade como especialidade

com sua epistemologia própria e faço um apanhado dos principais pontos sobre esta disciplina

que achei mais interessantes para a minha formação enquanto especialista nesta área,

ilustrando comexperiências e vivências colecionadas durante o meu processo formativo.

Destaco os tópicos “Sintomas indiferenciados e as dificuldades da prática da medicina de

família”, “Aspectos importantes da comunicação clínica”, “Problemas de se transferir

médicos sem formação para a Atenção Primária” e “Prevenção quaternária”.

Esta dissertação temcomo fio condutor uma problemática baseada nas cinco

perguntas seguintes, cujas respostas serão buscadas, daqui para a frente, com o desenrolar

desta pesquisa: por que não me identifiquei com o modelo biomédico de formação? Quais

experiências pessoais foram enfrentadas para romper com o pensamento ancorado no

paradigma biomédico? Por que me identifiqueicom o paradigma da medicina de família e

comunidade? Que movimentos realizei para compreender esse paradigma, para afirmar-me

como médico de família e comunidade? Que movimentos eu experienciei para ir além desses

dois paradigmas de formação médica?

Este trabalho justifica-se no compromisso depublicizar uma narrativa de vidaque

possa contribuir com a formação de jovens que cursam graduação em saúde,principalmente

em Medicina, em que a atividade curricular ainda é muito técnica. Acrescente-se a isso, o

relevo dado à especialidade Medicina de Família e Comunidade, que mesmo sendo umaárea

15

médica com sua epistemologia e formação próprias, não é ainda adequadamentereconhecida

pelo Governo brasileiro.

Este não exige pós-graduação (Residência) para o médico trabalhar em um Posto

de Saúde. Com esta postura, admite que a faculdade, com sua formação ainda massivamente

voltada para o hospital acadêmico terciário, é capaz de formar um médico de família e

comunidade. Isto pode ser perigoso para os pacientes, já que a experiência de muitos países

mostra que a Residência médica deveria ser a única maneira para a formação deste

especialista.No Brasil, ela tem duração de dois anos, o que ainda é considerado pouco

tempoquandoconstatamos que este treinamento dura três anos no Canadá e Inglaterra e quatro

anos na Espanha e Portugal.

Os tempos institucionais de formação, entretanto, podem não coincidir com os

tempos individuais. Eu nãome achava pronto para ser médico após os seis anos de graduação

ou para ser médico de família (ou preceptor) após meus dois anos de Residência. No contexto

do curso de ética-da-vida, finalmente percebi que meu tempo havia, após 5 anos de prática em

Medicina de Família, igualado-se ao meu tempo institucional, ao título de Residência que

recebera 3 anos antes. Após esse período, finalmentepudenomear-me médico de família e

comunidade.

Avalio que essa dissertação poderá contribuir para aprimoramentos no processo

de titulação da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), por

trazer questionamentos sobre o perfil do médico de família.

Escrevo também para contribuir com médicos Residentes emMFC, trazendo

elementos que possam diminuir a angústia de estar em um Posto de Saúde, que possam

facilitar a passagem do paradigma Biomédico para o paradigma da Medicina de Família, o

paradigma da complexidade, ou biopsicossocial. E também, para contribuir com a formação

de estudantes de Medicina, que quiserem adequar-se ao perfil do médico (bastante semelhante

ao de um médico de família) que o país necessita, proposto pelas Diretrizes Curriculares

Nacionais do Curso de Graduação em Medicina (DCN, 2001, p. 1) como:

Médico com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva. Capacitado a atuar,

pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis

de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde,

na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social

e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano.

Para além da formação médica, essa dissertação poderá contribuir comgestores,

por mostrar que os países com Atenção Primária fortalecida e que consequentemente têm os

menores gastos com saúde (STARFIELD, 2002), contamcommédicos de família bem

16

formados na porta de entrada do sistema de saúde. Esse trabalho contribuirá para que avaliem

os riscospara a população de seus municípios provenientesda contratação de médicos sem

formação específica em MFC.

Por fim, coloco como objetivo geral deste trabalho, o de compreender o sentido

do tornar-se médico de família como um movimento singular, para além dos paradigma

médicos vigentes atualmente.

17

2 O MÉTODO COMO QUESTÃO

A existência é o movimento pelo qual o homem está no mundo e se modela ao

modelar as coisas. Existir significa ser efetivamente. É fazer e, em fazendo, fazer-se. Para o

filósofo Martin Heidegger (2008), é na própria vida concreta que se está ligado à questão do

ser. O fato de me compreender em meu ser é a primeira e originária abertura da qual deve

partir toda teoria sobre o ser. Não preciso buscar a minha transcendentalidade recorrendo a

um eu superior e puro (como no idealismo), basta explicitar minha existência concreta em

que, desde que sou, acontece compreensão de ser. Meu fatum (fado, destino) de ser homem

repousa nesta compreensão ontológica.

Ele propôs uma “desconstrução” da história da metafísica mediante a superação

do esquema sujeito-objeto. Foi deslocado o lugar da fundamentação que na filosofia era no

sujeito e na consciência, para um outro campo, para a idéia de mundo, para a idéia de ser-no-

mundo. Em outras palavras, houve uma passagem das teorias da consciência, da

representação, das teorias do sujeito, para uma teoria do mundo prático, para uma teoria do

modo de ser-no-mundo. Heidegger é o propositor de uma nova concepção de hermenêutica.

Hermenêutica designa uma corrente no campo do pensamento humano de longa

tradição. Originariamente, ligada à interpretação teológica, depois ao jurídico, seguindo-se

sua aplicação à história e finalmente à filosofia no século XX.

Para a nossa tradição cultural, a palavra hermenêutica foi derivada do verbo grego

hermeneúein. Este se liga ao substantivo hermeneús, associado ao nome do deus Hermês. Na

mitologia, ele é o mensageiro dos deuses que tem a missão de dizer/interpretar a mensagem

do destino. Assim, o sentido figurado de hermenêutica é o de trazer uma mensagem e

comunicá-la.

Um discípulo de Heidegger, Hans-Georg Gadamer, avançando nessa perspectiva,

elaborou uma crítica ao método estabelecido pela razão moderna. Em geral, no plano da

ciência, há uma tendência para a universalização. Esta universalidade, a partir de Descartes, é

a razão instauradora da aplicação de um método que, independente das variações de

linguagem, cultura ou história, produz os mesmos resultados e soluções.

Aqui está pressuposto que a razão dará acesso àquela universalidade que

transcende a particularidade do tempo e espaço. Se o dado é questionável, então como

devemos proceder para obter conhecimento? Se o sujeito é invariavelmente parte do cenário,

isso não faz com que todo conhecimento seja subjetivo? Esta é uma questão crucial

enfrentada pelo trabalho de Gadamer. A resposta, sob a perspectiva da hermenêutica

filosófica, é que os sujeitos e os objetos são indivisíveis.

18

No seu texto clássico, Verdadee Método, Gadamer (2003) buscou reintegrar

aspectos daquilo que perdemos quando foram adotadas com extremismos as crenças pautadas

na razão. O que se perdeu não foi somente o senso do mundo dividido pelo velho e o novo, o

clássico e o moderno, mas, sobretudo, o que ele designou como sendo tradição. Esta tradição

não se reduz simplesmente a uma sequência de “esquemas conceituais”. Ela deve explicitar

em sua própria base ontológica o que torna possível a nossa experiência de mundo com

sentido.

Gadamer indica que o sentido da pergunta conduz o direcionamento da resposta.

Esta pista nos faz perceber que o primeiro elemento com que se inicia a compreensão é o fato

de que algo nos interpela. Daqui, segue-se que em toda experiência encontra-se pressuposta

uma estrutura de pergunta. Em outras palavras, a essência da pergunta é colocar

possibilidades e mantê-las em aberto.

O pensamento dele é uma referência para o nosso trabalho. De acordo com Lawn

(2006), Gadamer rejeita a idéia de que o método dá acesso a um tipo definitivo de verdade,

pois somos parte daquilo que buscamos entender e o que seria uma lacuna entre o conhecedor

e o conhecer é, na realidade, muito mais uma fronteira móvel do que uma fenda propriamente

dita.

Isso significa superar o projeto que na filosofia estabelecia um fundamento para o

conhecimento a partir do discurso em que imperava a idéia de juízo, a idéia de síntese na

subjetividade em que se fundaria o real.

A dimensão hermenêutica se expressa no mundo no qual estamos presentemente,

este mundo no qual vivemos no sentido significativo, pois já está organizado assim. No

mundo tudo é algo como algo; esta expressão é interpretada como “algo enquanto algo” e

quer indicar o núcleo proposicional que cada sentença contém não do tipo empírico ou

determinado, mas justamente de outro caráter, pois já o trazemos conosco enquantoseres-no-

mundo.

A compreensão é o poder de captar as possibilidades que cada um tem de ser, no

contexto do mundo vital em que cada um de nós existe. A compreensão é base de toda

interpretação; é contemporânea da nossa existência e está presente em todo ato de

interpretação (PALMER, 2006). De acordo com Coreth (1973, p. 45):

Compreensão vem de “compreender”, que quer dizer “tomar junto”, “abranger

com”, entendido evidentemente aqui no sentido teórico e não material. [...] Toda

compreensão é apreensão de sentido.

19

O autor nos lembra que o sentido assim compreendido não se dá como sinônimo

de “intuição teórica”, mas como condição da própria vida onde as relações de sentido e de

valor se tornam compreensíveis em sua expressão prática e teórica.

Quando se determina e limita o sentido, por exemplo, em uma definição, há

sempre uma referência a um contexto significativo da linguagem no qual este próprio sentido

se expressa de várias formas. Em síntese, o pensamento do sentido se dá na linguagem.

Outra referência metodológica para o nosso trabalho foi Marie-Christine Josso

(2010, p. 18-19) que escreveu em seu texto Caminhar para si:

A lógica existencial adota uma perspectiva individual sobre o processo de pesquisa

na qual os saberes instituídos se apresentam como referenciais que têm lugar e

sentido na singularidade do percurso de vida do pesquisador e que alimentaram, por

sua vez, a dimensão formadora de suas experiências. Na lógica existencial, é a

perspectiva individual que dá sentido e valor à problemática.

Na interpretação do pensamento da autora, destacamos que o saber teórico é

elaborado relativamente a práticas singulares e, principalmente, que se elabora sobre situações

concretas, sobre um conjunto de interações constitutivas do contexto experiencial, dessa

forma tornando-se um conhecimento experiencial.

Josso (2010, p. 65), focando na dimensão da autocrítica e da auto-avaliação, a

partir de sua leitura de Carl Rogers, escreveu:

o aprendente desenvolve a independência de espírito, a criatividade e a confiança em

si; ele se forma em congruência consigo mesmo e dá prova de autenticidade. Essa

autenticidade implica ‘a aprendizagem de processos de aprendizagem’ e ‘a

integração do processo de mudança’ a fim de que os projetos pessoais sejam atos de

autodeterminação e criadores de si.

Assim, a princípio, poderíamos dizer que em nossa pesquisa o “objeto” é uma

forma de compreensão do pensamento do sentido que se molda em um campo do

conhecimento científico que denominamos medicina.

Para o médico de família Ian McWhinney (2010, p. 92):

O conhecimento alcançado pela hermenêutica [...], não é científico no sentido

convencional do termo. [...] A investigação hermenêutica é intersubjetiva. [...] Na

investigação intersubjetiva, nenhuma das partes fica intocada pelo processo. Nesse

caso, a pessoa poderá aqdquirir um nível mais profundo de autoconhecimento, bem

como a resolução de sua crise existencial; o médico também poderá aprender algo

acerca da condição humana, e talvez até a respeito de si mesmo. [...] Para realizar

isso de forma precisa, evitando os possíveis percalços, temos de prestar atenção às

nossas próprias emoções, interpretações e intenções. O médico nao é apenas um

observador do ser, mas um metaobservador do ser e da pessoa como um todo.

20

3 NARRATIVA DE FORMAÇÃO

Nasci no Rio de Janeiro. Na época, meus pais, Francisco Pacheco e Maria Helena

Rossetti Pacheco, tinham 50 e 35 anos, respectivamente. Eu soube depois que não fui

planejado. Meu pai já dava-se satisfeito com quatro filhos, mas minha mãe ainda não. Fiquei

quatro dias sem nome, eles queriam sentir qual se pareceria mais comigo. Um amigo deles

tinha meu nome e acharam bonito e incomum. A primeira cena que tenho recordação é a de

minha mãe sentada em um banco me assistindo jogar milho aos pombos em uma praça no

Rio. Meus pais trabalhavam muito, o que motivava minha mãe a me acordar às vezes ao

chegar do trabalho para me ver.

Fui desmamado com um mês de vida, pois “não conseguia dormir só com o leite

do peito”. Talvez seja por isso que, ao contrário de alguns alunos e residentes meus, sou

bastante tolerante com as mães que dão mingau aos filhos antes dos seis meses. Morei três

anos no Rio. Parece pouco, mas se pensarmos bem, aprender a andar e a falar são coisas

importantes. Por isso, e por causa de meu jeito descontraído, penso conservar algo de carioca.

Luz foi a primeira palavra que disse, depois de pai e mãe.

Meu pai é de Campo Maior, cidade a oitenta quilômetros de Teresina, no Piauí. O

pai dele, meu avô Ivon Pacheco, recebeu popularmente a alcunha de “capitão”, por ser um

sujeito muito destemido. Um livro foi publicado depois com relatos dealgumas de suas

lendárias histórias. Foi prefeito de Campo Maior e era dono deuma farmácia. Foi nela onde

meu pai teve as amígdalas retiradas, aos onze anos, sem anestesia.Na época realizavam o

procedimento como rotina, para profilaxia de infecções.

Na minha infância, tive muitas amigdalites. Bastava me expor ao sol em excesso

que as desenvolvia. Felizmente não precisei ser operado, apesar da possibilidade ter sido

cogitada. Anos depois, minha mãe me falou que achou bom o fato de eu não ter me operado.

Isto porque interpretou que minhas amigdalites eram um “termômetro” que identificava

quando eu não estava bem, e pensou que, sem elas, eu talvez pudesse adoecer de outro órgão

mais vital para o corpo.

Lembro de meu avô já com Alzheimer e de, com meu primo João Fernando, de

apelido “Perereca”, o provocarmos para que corresse atrás de nós.Ele morreu quando eu tinha

cinco anos. Lembro do rosto sério de meu pai no velório, mas sem chorar. Aliás, só o vi

chorar uma vez na vida, na morte do irmão. Minha avó paterna, Dagmar de Miranda, já era

paraplégica quando a conheci, sequela de uma cirurgia para retirada de um tumor benigno na

cabeça. Ela passava a maior parte do tempo em silêncio e falava com dificuldade. Lembro que

tínhamos que rezar com ela antes dela dormir.

21

Meu pai foi morar no Rio de Janeiro aos quinze anos com um tio paterno,

Sigefredo Pacheco, que era médico e Senador pelo Piauí. Ficou no Rio trinta anos e se formou

em Medicina na UFRJ. Sempre considerou esse tio como pai. Tio Sigefredo era clínico geral,

como eu. Meu pai trabalhou como psiquiatra poralgum tempo depois da faculdade, mas é

psicanalista há cinquenta e três anos. Ele lê todos os dias desde que tenho registro. Os autores

que sempre o acompanharam foram James Joyce, Nelson Rodrigues, Freud, mas o preferido é

Shakespeare. Hamlet, em especial. Eleteve o sonho de ser diretor de teatro. Curioso é que

anos depois, antes de saber desse desejo de meu pai (nem de sua admiração por essa peça), fiz

um curso de teatro em Berlim em que fui designado para interpretarHamlet. Meu pai também

é escritor de contos e poesias surrealistas. Veio dele o meu desejo pelas letras.

Minha mãe, formada em psicologia, também é psicanalista. Nasceu em Piracicaba

(SP), mas foi para a capital paulista logo em seguida. Mesmo assim, ainda hoje se diz caipira,

quando afirma: “a cidade em que nascemos marca a gente”. Talvez seja por isso que dei

importância ao fato de ter nascido no Rio. Minha mãe também tem cidadania italiana, por

causa de seu avô, nascido em Turim.

Minha mãe tem uma grande capacidade de escutar. Acompanha a fala das pessoas

com mímicas no rosto, principalmente com os olhos, arregalando-os mais ou menos a medida

que o assunto ganha ou perde intensidade. Por isso, muita gente gosta de conversar com ela.

Penso que herdei essa característica, pois muitos pacientes que atendi me perguntavam se eu

também era psicólogo.

Meu bisavô materno, Tomazzo Pozzo, de Turim, veio para São Paulo encarregado

de fazer as vinícolas de São Roque. Sua esposa morreu de tuberculose em um navio a

caminho do Brasil. Contam que era bonito, e que caiu nas graças de sua patroa, uma mulher

muito rica de São Paulo, que lhe presenteou uma fazenda. Assim começou sua vida em terras

brasileiras. Seu irmão era técnico de futebol, chegando a ganhar duas copas do mundo com a

seleção italiana, em 1934 e 38. Quando quero conquistar a simpatia de um italiano, é só contar

que o técnico Vittorio Pozzo era irmão de meu bisavô.

Meu pai teve três filhos do primeiro casamento, Ivon, Adriana e Francisco

Antônio Pacheco, nesta ordem. Conheceu minha mãe em Londres, em um congresso de

psicanálise. Ela morava em São Paulo, mudando-se para o Rio depois de conhecê-lo. Lá viveu

com ele por sete anos. Casaram e tiveram dois filhos, eu e Marcela Pacheco, quatro anos mais

velha. Mudaram-se para Fortaleza em fevereiro de 1983, trazendo três dos cinco filhos:

minhas irmãs e eu. Meus dois irmãos não vieram conosco. Ivon não queria deixar o Rio, por

conta de sua paixão pelo surf.

22

Francisco Antônio viria 6 meses depois de nós, nas férias de julho. Infelizmente,

algo terrível aconteceu. Depois de passar um final de semana em Petrópolis, uma zona

endêmica para herpes zoster, contraiu uma infecção cerebral por esse vírus, que lhe tirou a

vida aos 15 anos. Isto só foi descoberto na autópsia.

No contexto de sua morte, estavaa separação da mãe dele com meu pai.Eu ouvia

em casaque isso teve influência em seu adoecimento, mas não entendia por quê. Eu de certa

forma não compreendia bem algumas articulações de pensamento que meus pais faziam,

principalmente com relação às doenças. Talvez porque na infância eu não participava tanto

(fugia para ir brincar) das conversas familiares que ocorriam em minha casa. Ficava inquieto

quando meus pais diziam que a família precisava conversar. Marcela participava mais que eu

destas conversas. Talvez por isso tenha se formado em psicologia. Ela já foi psicanalista, mas

hoje é professora de línguas em Barcelona.Nesta narrativa, vou me referir a ela por “minha

irmã”.

O meu terceiro aniversário aconteceu um mês depois da chegada de minha família

a Fortaleza. Por ter crescido no Ceará, digo que sou daqui quando me perguntam, apesar de

sempre surgir uma dúvida antes de responder. Por ter influências do Piauí, de São Paulo, do

Ceará, da Itália e por ter morado na Alemanha e na Inglaterra, ainda tenho dificuldade para

precisar de onde sou.

Viemos pra cá porque minha avó paterna estava bastante idosa em Campo Maior

e meu pai queria estar perto. Tão perto não deu para ficar. Pensavam que Teresina não seria o

melhor lugar para praticar psicanálise, pois ainda bastante interiorana. Meu pai que já havia

morado em Fortaleza como interno do Colégio Cearense, achava que a cidade seria mais

propícia ao trabalho deles por ser mais desenvolvida. Uma tia materna de meu pai nos deu

casa no início.

Aqui em Fortaleza, após um período na residência dos parentes, aproximadamente

três meses, mudamos para uma casa grande, com piscina. Minha mãe ficou com medo e tratou

logo de me ensinar a nadar. Fui atleta de natação por muitos anos. Foi o esporte em que mais

fui premiado, apesar do tênis ser meu esporte favorito. Ainda bem novo, dava aulas de

natação em casa para o namorado de minha irmã mais velha, de manhãzinha cedo. Também

ensinei duas crianças a nadar. Estas foram minhas primeiras experiências com ensino. Achava

que aprender a nadar estava relacionado a um estado de tranquilidade e me empenhava em

transmitir calma à criança.

23

Meu primeiro colégio chamava-se “Sítio do Pica Pau Amarelo”. A personagem

“Emília”, de Monteiro Lobato, estava em muitas paredes da escola. Eu me irritava quando os

colegas de turma trocavam trocavam meu nome pelo dela.

Para cursar a alfabetização, fui transferido para o Instituto Educacional José de

Alencar, também chamado de “Escolinha”. Era uma escola tradicionalmente mais livre, para

onde fomos por indicação de professores universitários amigos de meus pais. Lá estudavam

também crianças com retardo mental ou físico.

Aos seis anos, ingressei no Colégio Geo Stúdio, de ensino mais exigente que a

escola anterior. Meus pais o escolheram por não ser uma escola religiosa, para que eu ficasse

livre para minhas escolhas nesse campo.

Eu morava perto do colégio, e íamos (eu e minha irmã) para a aula a pé. Minha

babá Irene, minha segunda mãe, nos levava e trazia. Fora isso, meu transporte principal na

infância e adolescênciafoi o táxi, pois meus pais sempre trabalharam muito e tinham medo

que andássemos sozinhos de ônibus. Entendo que isso me privou um pouco de experienciar a

vida que acontecia na cidade. Estudávamos no período da tarde. Em casa, televisão era bem

restrito: minha mãe deixava-nos escolher dois desenhos por dia para assistir. Ela queria

estimular a leitura, pois havia também, a exemplo de meu pai, lido muito na infância: a

coleção de Monteiro Lobato, as aventuras do barão de Münchhausen, contos dos irmãos

Grimm, dentre muitos outros livros infantis.

No entanto, eu gostava mais de brincar do que de ler. Eu e minha irmã

brincávamos muito. O quintal era grande, com trinta coqueiros, mangueira, cajueiro.

Ajudávamos o jardineiro a carregar côcos, tomávamos banho de piscina, subíamos em

árvores, brincávamos com os gatos de rua que terminavam adotados por mim e minha irmã.

Os consultórios de meus pais eram em casa, e por isso minha mãe tinha sempre contato

conosco no intervalode atendimento de seus pacientes.

Outro marco da minha infância foram as fazendas, de ambas as famílias. Aos

cinco anos, caí a primeira das dezessete vezes de um cavalo, em uma das fazendas de meu

avô, no Piauí. A empregada de minha avó, na garupa, fez um gesto brusco e o cavalo disparou

conosco. A sela não estava tão apertada e eu caí por cima do braço. Viajamos quarenta

quilômetros para chegar ao médico.

Essa foi minha primeira experiência como paciente que tenho lembrança, a qual

foi bastante dolorosa. O médico apertou o local da fratura com força, perguntando se era alí a

dor. Os ortopedistas fizeram isso comigo mais algumas vezes nas inúmeras vezes em que

engessei braços e pernas. Sempre fui muito intenso nos esportes. Por isso me machuquei

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tanto. A fratura do braçoocasionada pela queda de cavalo não se consolidou da melhor forma

e o calo ósseo deixou o cotovelo defeituoso. Comecei a natação para corrigir esse problema,

por recomendação médica. Depois virei atleta desse esporte e passei a competir. Apesar de ter

feito bem ao corpo, achava natação monótona e solitária e a vida de atleta exigia treinos

diários muito puxados. Tenderia a preferir os esportes com bola.

Nos feriados prolongados do primeiro semestre do ano, período de inverno,

quando o clima em Campo Maior era agradável, íamos para o Piauí. A fazenda herdada por

meu pai tinha o nome de Furnas, nome dadoao lugar onde as onças dormem. Tinha uma casa

centenária, de paredes de pedra, teto sem forro, com os crânios e respectivos chifres enormes

de bois da época de meu avô, pendurados em colunas de carnaúba que davam sustentação à

casa rudimentar. Não tinha energia (esta chegaria muito tempo depois), e de noite um lampião

e algumas lamparinas nos davam os contornos das coisas, por vezes deturpados pela minha

imaginação tomada pelas histórias de assombração que cercavam a antiga fazenda.

A casa ficava assim assustadora à noite e o medo acabava por espantar o sono.

Dormíamos de rede, e, mesmo se estivesse calor, o lençol cobria o corpo do pescoço aos pés.

O risco de receber algum toque indesejado parecia enorme se ficasse alguma parte descoberta.

Raiva grande eu tinha quando “Perereca” dormia antes e me deixava acordado sozinho. Aí o

jeito era cobrir o rosto também. Para piorar, essa casa exacerbava meu sonambulismo. Por três

vezes, fui acordado à noite tateando a parede da sala dos potes, por nós a mais temida, pois

eram lá que ocorriam as aparições narradas nas histórias.

O dia era curto para o tanto de atividade que podíamos fazer: andar a cavalo,

ajudar a tirar leite no curral, tomar banho de açude, plantar roça de milho e feijão, tocar e

aboiar gado. Gostava tanto das tarefas que minha primeira profissão que desejei ser foi a de

vaqueiro. Queria passar as férias na fazenda, sem os pais. Na primeira tentativa, não consegui

ficar muito tempo. Depois de dois dias que meus pais haviam ido embora, cortei a mão ao

puxar uma faca enfiada no guidão de uma bicicleta, que cortou a bainha e a mão juntas.

Novamente, viajei quarenta quilômetros para ir ao médico. Desta vez, na garupa de uma

bicicleta, da fazenda até a estrada de asfalto. De lá, de carona em um caminhão, até a cidade.

Estava muito impressionado com o corte, era fundo e o osso aparecia. O médico chegou com

um olhar firme, sério, e assim ficou depois de ter visto o ferimento. Isto foi bom, pois me fez

pensar que não era grave.

Insisti e passei duas férias de dois meses nas Furnas. Ficava com a família do

vaqueiro. Tinha amigos na vizinhança que vinham dormir lá. Ali eu tentava ser como eles.

Trocava o garfo por colher. Colocava os ossos sobre a mesa para depois arrastá-los para o

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prato após a refeição. Falava o linguajar caboclo, mesmo que “errado”. Sempre fui bom

imitador, por isso tive facilidade para aprender sotaques e línguas estrangeiras. Foi lá também

que emagreci. Estava com sobrepeso aos treze anos, pois havia parado a natação. Depois de

minhas últimas férias nesta fazenda, por conta dasconstantes atividades, perdi mais ou menos

oito quilos. Os amigos do colégio se impressionaram em minha volta às aulas e brincavam

dizendo que eu havia passado as férias “no banheiro”.

Para a fazenda (Cassinha) de meus avós maternos, Paulo e Helena, em Monte Mor

(SP), íamos uma vez por ano, nas férias de julho. Meu avô, agrônomo, morava lá com minha

avó. Ele vivia da plantação e venda de laranja. A fazenda tinha uma estrutura mais moderna

que a do Piauí. Casa de máquinas, casa de ração, sala de arreios, fonte de água mineral, horta

e diversas frutas. Tinha também açude, cachorro, cavalo, um laboratório com cobras

conservadas em formol e um lugar onde sabíamos haver escorpiões e aranhas, embaixo de

umas pedras. Divertíamo-nos colocando-os para se enfrentar. Havia ainda um grande amigo,

Roberto, o filho do agrônomo que a administrava. Não lembro de outros momentos de

felicidade tão plena como a que senti nesse lugar. Passava o ano esperando o momento de ir

para lá.

Na Cassinha eu também não conseguia dormir, desta vez pela excitação em querer

que chegasse logo o outro dia. Minha avó só abria a porta de casa às nove, mas Roberto batia

em minha janela às seis da manhã, para aproveitarmos ao máximo o dia. Quando ele me

chamava, já estava pronto há algum tempo.

Lá tive contato com o tipo caipira de São Paulo. Tinha também grande amizade

com o vaqueiro e sua esposa. Tinham um sotaque típico do interior paulista, com exagero no

som do “r”. Eu e minha irmã sempre nos divertimos ao imitar os sotaques de São Paulo.

Tinha também contato com meu avô Paulo, que contava histórias em francês, italiano e

alemão. Ele morreu anos depois no Ceará, vítima de iatrogenia. Passou os últimos meses de

sua vida internado e, por não terem feito uma radiografia de controle após a troca de sua

sonda gástrica, não perceberam que ela não havia sido posicionada no lugar correto. O

alimento foi para o peritônio e uma peritonite grave o tirou a vida.

O contato com o campo e com as pessoas que lá viviam foi um ensaio de

comunicação com pessoas que não receberam educação formal, caso de muitos pacientes que

eu futuramente atenderia em um Posto de Saúde. Apesar disso, essas pessoas eram

conhecedoras das nuances da natureza e do comportamento dos bichos, e a minha vontade de

aprender o que sabiam e me comunicar com elas criou laços fortes de amizade, por se

sentirem valorizadas no que faziam. O fato de eu ainda ser criança, e por isso ainda destituído

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de visões políticas ou de classe, me possibilitava essa entrada num mundo que tanto admirava.

O contato com minha segunda mãe (minha babá na infância) também foi importante para isso.

Ela trabalhou durante trinta anos em minha casa.

Meu pai também me levava a um evento que gostava muito, as caçadas, que

vinham de gerações no Piauí. Fui a três. Nos encontrávamos em Teresina na casa de meu tio e

partíamos em comboio de carros rumo ao sul do Estado. No grupo, tinha também amigos de

meu pai e um sujeito que ia com finalidade exclusiva de contar histórias. Era um sujeito

simples, mas de humor refinadíssimo. Devo a ele minha primeira orientação sexual, com uma

técnica de dar prazer a uma mulher que segundo ele era infalível. Meu pai diz que “aprendi” a

comer em uma caçada, quando ficamos um dia sem comida. Dizia que antes desse dia eu não

tinha gosto por comida. A culinária e a alimentação viriam a ser uma questão fundamental em

minha vida.

Fui transferido ao Colégio Geo Stúdio aos sete anos. Neste mesmo ano, havíamos

nos mudado da casa que morávamos, que estava ficando perigosa pelo aumento da

criminalidade, para um apartamento na mesma rua, dez quarteirões mais abaixo. Sempre fui

bom aluno durante o colégio, mas aos dez anos conheci um amigo que mudaria minha forma

de estudar, o que teria alguma influência para eu me tornar médico. Ele era bastante

pressionado pelo pai para ser o número um da classe (que naquela época recebia bolsa de

estudos) e estudava por memorização.

Ficamos muito amigos e começamos a estudar juntos. Passei então a adotar a

mesma técnica de estudo. Decorávamos tudo, com bastante obsessão. Muitas vezes

acordávamos às cinco da manhã para retomar o que havíamos memorizado na tarde anterior.

O problema era que usávamos esse método para todas as matérias. Penso que isso atrasou a

minha iniciação às áreas Humanas. Lembro de decorarmos parágrafo por parágrafo os

capítulos para as provas de história, mesmo sem entender o que continham. Não foi por acaso

que esta seria a matéria que eu teria mais dificuldade no vestibular, anos depois.

Com a técnica de memorização, tirava notas boas e estava sempre entre os

melhores alunos. Isso me estimulou a competitividade, pois também passei a vislumbrar a tal

bolsa, para receber uma parte do dinheiro que meu pai não mais destinaria à escola. Nunca

consegui. Tinha que ser o primeiro colocado geral de todas as séries e o máximo que

atingiaera o primeiro posto de minha turma.

As boas notas também deram início ao coro dos coordenadores e professores do

colégio para eu ser médico, pois “aluno bom tinha que fazer medicina”. Isso aliado a uma

frase que ouvia meu pai dizer, que médico “tinha emprego até na guerra”, fui me

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convencendo de que iria ser médico, sem nunca ter questionado de fato, antes da faculdade, se

era isso que queria.

Lembro de ter participado de um teste de aptidão na escola, acho que por não

querer questionaro meu futuro, que já estava traçado. Não respondi às perguntas de acordo

com o que gostava, e induzi o teste para que apontasse uma aptidão para a Medicina. Penso

que minha escolha em ser médico deu-se muito porque sentia que era um desejo de meus pais

e professores e por não saber direito o que queria para mim. O confrontamento não era uma

de minhas características na época e aceitava muito o que me era sugerido. Isso me remete ao

fato de ter escrito antes que era um bom “imitador”, pois repeti a profissão de formação de

meu pai, que repetiu a de seu tio pai.

Com isso, após oito anos no colégio Geo, mudei aos quinze para as “turmas

especiais” da mesma escola, para cursar o científico e me preparar para o vestibular de

Medicina. Minha turma de amigos mais próximos, composta por nerds, como eu, foi junto.

Falávamos de futebol, jogos de computador, estudo e de mulheres. Estas últimas ainda eram

para mim algo inatingível. Comecei a namorar somente depois de passar no vestibular. Nesta

época, com quinze anos,ainda não tinha posição política, paixão por filosofia, ou desejo de

realizar trabalhos sociais, o que desenvolvi tempos depois com a entrada para a Medicina de

Família e com o Mestrado.

A leitura no período de colégio era restrita aos livros paradidáticos obrigatórios da

escola. Os que mais gostei foram os livros de Graciliano Ramos (São Bernardo e Vidas

Secas). Gostei também de José Lins do Rego (Menino de engenho), Lígia Fagundes Teles

(Dizem que os cães vêem coisas), Jorge Amado (Capitães da areia) e Machado de Assis (Dom

Casmurro e O alienista). Não gostava do estilo de escrita de José de Alencar, por isso não

consegui ler “Senhora” até o fim. Achava descritivo demais. Fora isso, li inúmeros livros

sobre animais: cachorros, cavalos, felinos, cobras, escorpiões e aranhas. Sabia muito sobre

esses bichos.

Quando mudei para as “turmas especiais”, conheci um amigo, Sidney, que era

vizinho de prédio. Ele era bem diferente de mim, havia repetido de ano várias vezes, era

muito esperto e tinha grande facilidade de se relacionar com as mulheres, porser muito

engraçado. Ficamos muito amigos durante muito tempo, e penso que me transmitiu algumas

dessas características. Ele foi importante para mim principalmente nas questões do humor, da

perda de timidez e porque me apresentou minha primeira namorada.

No terceiro ano, mudei-me para o colégio Espaço Aberto seguindo os conselhos

de minha irmã que fazia cursinho pré-vestibular nesta escola e gostava muito da metodologia

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de ensino. Sabia que a preparação do Geo seria boa, então a mudança não foi tanto por uma

melhora de qualidade, mas sim uma tentativa de mudar de ares e fazer novas amizades.

Conheci um grande amigo neste colégio, Liêvin Rebouças, que partilhava os gostos pelo tênis

e pelo mesmo time de futebol, além do gosto musical. Ao contrário de minha irmã, que

sempre teve grande interesse por música, minha cultura musical só foi iniciada durante o

terceiro ano, quando as músicas de Djavan me consolavam por um amor não correspondido.

O ano de 1997 foi marcante em minha vida pelo investimento em passar no

vestibular de Medicina. Não lembro de uma vez sequer neste ano em ter duvidado de minha

escolha. Dez horas por dia de estudo, durante a semana, e a partir do segundo semestre,

acompanhado de Liêvin, mantínhamos esse ritmo, a ainda as noites de sexta e sábado. A única

distração era o tênis. Comecei a fazer aula uma vez por semana este ano.

Na época, dos aprovados no vestibular, a segunda metade dos candidatos na

ordem de colocação, meu caso, só começaria a faculdade no segundo semestre do ano

seguinte. Quando pensei que iria ter um semestre para descansar da empreitada do ano

anterior, meus pais me deram a idéia de realizar um intercâmbio em um país de língua

inglesa. Iria para os Estados Unidos, mas na época as moedas americana e inglesas tinham

valor equiparável. Meus pais pensaram que Londres seria uma cidade mais interessante que a

Filadélfia.

Ainda no ritmo do vestibular, ia para a escola um período e passava o outro

estudando a língua, com a obsessão de sempre em memorizar. Meus pais me ofereceram a

chance de ficar mais quatro meses por lá, pois a faculdade no Brasil estava em greve, o que

atrasaria o início das aulas. Desta vez não escolhi o estudo. Queria voltar ao Brasil e ter um

tempo livre para descansar, depois do investimento feito no vestibular. Com essa opção, aos

dezoito anos, comecei um movimento para me colocar nas minhas decisões.

Já no primeiro semestre de Medicina, os questionamentos sobre ser médico

começaram, o que me fizeram procurar terapia, um recurso que era comum para mim, porque

em casa, as discussões sobre psicanálise eram muito comuns. Meus pais tinham um jeito

diferente de enxergar as coisas, gostavam de metáforas, faziam interpretações que por muito

tempo não entendia, mas vejo que herdei bastante essa forma de pensar e hoje em dia o que

me dá mais prazer na vida são os fatos que cercam a linguagem.Sintoma foi uma palavra que

escutei muito, além de associação livre e inconsciente. Falavam no sintoma psicanalítico e

também dos sintomas do corpo, que poderiam ser um deslocamento de algo do inconsciente

direto para o real (corpo), sem passar por uma elaboração na consciência.

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No inconsciente, estão as coisas que não sabemos sobre nós. Para acessá-lo por

intermédio de terapia, deve-se falar em associação livre (dizer o que vem à mente sem se

preocupar com o sentido), o que propicia o surgimento de atos-falhos, quando “se diz uma

coisa quando se quer dizer outra”. Além dos atos-falhos, os sonhos também são manifestações

inconscientes, assim como a linguagem. Na terapia, o analista busca estas manifestações

inconscientes que apontem para características importantes da pessoa, para que ela vá

reconstituindo sua história, e fazendo suas interpretações e entendimentos sobre o que a faz

sofrer.

Um analista faz metáforas acerca dos sintomas da pessoa. Conto um caso que

Lacan (2005) atendeu, sobre uma jovem que tinha vitiligo, cuja família "não admitia manchas

(na moral familiar)", o que o levou a pensar: “O que se escrevia com aquelas manchas em seu

corpo?”, “O que dizia ela quando se referia às manchas?”, “A quais delas se referia, às

corporais ou às "morais?". “E por que à medida que sua análise prosseguia, ela "piorava" em

sua vida, sobretudo amorosa, mas as manchas se tornavam menos marcadas?”. Essa paciente

também visitava um dermatologista, que lhe indicara a fazer análise, e usava um

remédiocubano muito em voga à época.

Era muito difícil ouvir esse discurso todos os dias em casa e na faculdade ver uma

visão do corpo interpretado como órgãos que se comunicam bioquimicamente. A tarefa de

aprender um método clínico que só perguntava sobre alterações do corpo, alémde decorar

características de doenças, era uma tarefa que não me despertava desejo, nem fazia sentido.

As provas cobravam essas informações. Percebi que meu sistema de estudos, com base na

memorização, se adequaria perfeitamente ao que me era cobrado, mas aquela forma de estudo

não me contemplava mais.Assim, não tinha facilidade de guardar as informações que

aprendia. Isso fez cair meu rendimento, o que também me inquietava, pois era bom aluno e eu

tinha a sensação de estar-me “desperdiçando” alí. Inquietava-me ainda o fato de agrande

maioria dos alunos se enquadrar muito bem naquele modelo, e eu me perguntava se havia

algo de errado comigo.

O quarto semestre de curso, no entanto, foi o único que gostei, pois foi umperíodo

de ensino com uma metodologia diferente de aprendizagem (Aprendizagem Baseada em

Problemas), em que eu tinha que prestar conta do conhecimento duas vezes por semana em

grupos pequenos, de oito pessoas mais um tutor. Neste método, o aluno deixa de ser anônimo

na faculdade com modelo tradicional de ensino, em que o professor leciona para oitenta

alunos, e passa a ser chamado pelo nome pelo tutor de seu grupo. Neste semestre meu

sofrimento com a faculdade diminui um pouco.

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Entretanto, no geral, após três anos de análise, concluí que deveria deixar a terapia

ou a Medicina. Não fazia sentido ir à terapia semanalmente falar que sofria por causa da

faculdade e não tomar uma decisão. Mas abandonar a faculdade implicaria numa mudança de

um lugar que eu achava que meus pais esperavam de mim. Também achava muito difícil ir

contra a sociedade, que tanto valorizava a minha profissão. Por muito tempo, desloquei para

os meus pais a culpa pelo meu sofrimento, o que só desconstruí muito tempo depois.

Não tive coragem edeixei a terapia. Apoiei-me nos grandes amigos de turma para

continuar. Apoiava-me no meu interesse por cinema, principalmente por Woody Allen.

Apoiava-me no tênis, que praticava quase diariamente. Apoiava-me no namoro que tive

durante quase toda a faculdade, e também no estudo de francês na casa de cultura da

Universidade. Apoiava-me também na amizade dos professores Armênio Santos e Hélio Rôla,

que conseguiam dar tonshumanos, por meio depoesias e pinturas, ao ambiente estéril do

curso.

Também me apoiava em um projeto de extensão universitária na comunidade

Maravilha, em Fortaleza, com mais oito colegas de turma. Nosso objetivo era identificar as

pessoas acima de vinte anos com hipertensão naquela comunidade, para depois realizarmos

um trabalho educativo de alimentação junto a elas. Freqüentamos esse lugar por dois anos,

uma vez por semana. Por causa de minhas vivências nas fazendas, o contato com as pessoas

da comunidade me era familiar, pois muitos moradores eram do interior. Infelizmente, após

termos coletado os dados que precisávamos para começar o trabalho educativo, um dos

nossos integrantes perdeu a pasta com os dados de dois anos de projeto, um fato tragicômico

que nos desencorajou a continuá-lo.

Enganei-me ao pensar que sair da terapia me faria sofrer menos. Busquei então

alternativas para solucionaro meu problema.Pensava em meus tempos de colégioe o português

era a coisa que mais gostava: gramática, redação e interpretação de textos.O fato de ter

passado no vestibular principalmente por ter tirado nota máxima emredação me fez achar que

isto era mais uma evidência de minha ligação com a língua.

Em 2001, no início da segunda metade do curso de Medicina, passei para Letras

na Universidade Estadual do Ceará (UECE). Lá, meus colegas vinham do trabalho direto para

a aula. Apesar de eu também estar ocupado o dia inteiro por fazer dois cursos, eles viviam

uma realidade mais dura que a minha, pois muitos se sustentavam. Talvez por isso me

chamassem de louco quando eu falava em deixar de ser médico para ser professor de

português.

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Na UECE, tive aulas de lingüística, sobre os significantes de Saussure que

escutava em casa. Tive também uma disciplina de Latim, e de introdução à gramática. Tinha

facilidade de assimilar aqueles assuntos e consegui bom desempenho neste período. No

entanto, faltou-me a coragem de ruptura, e novamenteoptei pela Medicina, deixando este

curso após seis meses.

Dois semestres depois, aos vinte e dois anos, entrei para Direito na Universidade

de Fortaleza, por achar que seria uma área possível dentro das Humanas. No entanto, percebi

logo que ainda estava preso na idéia das profissões clássicas, e com isso sobrepujando o

prestígio social ao meu desejo novamente. Também tinha pressa para conhecer a área com

profundidade, para ver se tinha afinidade. Queria logo ir para o quinto semestre, pois me

diziam que só a esta altura do curso teria contato de fato com o Direito. Mas no primeiro

semestre, os alunos, na maioria mais novos que eu, estavam a combinar churrascos e

comemorações. O ritmo das aulas era lento ena sexta-feira da quarta semana de faculdade, ao

ver a professora acabar mais cedo a aula por causa da “cervejinha”, foi meu último dia neste

curso.

A minha angústia com a Medicina piorou muito a partir do primeiro dia de

internato, no dia dez de março de 2003. Este é o período final do curso em que o aluno

depara-se diariamente com a prática. Tinha duração de um ano e meio, e era dividido em

estágios nas áreas básicas: Gineco-Obstetrícia, Pediatria, Clínica Médica e Cirurgia Geral.

Não havia Medicina de Família em minha grade curricular. A transição do curso médico nos

moldes “aula e prova” para o cuidado intensivo e diário de pacientes muitas vezes em estado

grave foi súbita e sem instruções prévias.

Meu primeiro rodízio foi na enfermaria de Hematologia do Hospital Universitário

Walter Cantídio (HUWC), por muitos internos considerada a mais “pesada” de todas. Tive a

chance de não escolher esse estágio no sorteio do internato, mas achei importante porque

queria aprender a interpretar um hemograma, um exame básico em medicina que eu não

dominava. No entanto, havia na enfermaria somente pacientes em estado muito grave, a

maioria com câncer, realizando quimioterapia. A morte fez-se presente pela primeira em meu

percurso formativo e com freqüência maior que em toda a graduação, levando três pacientes

que eu cuidava.

No primeiro dia me falaram que meu trabalho era “evoluir” os pacientes. Eu não

sabia o que isso significava e olhava os outros internos, também iniciantes como eu, passando

com os prontuários dos pacientes pra cima e pra baixo, como se já conhecessem aquele

processo de trabalho. Perguntei-me onde eles haviam aprendido aquilo, pois não tivemos

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instruções no primeiro dia. À tarde, entendi que “evoluir” era conversar com os pacientes para

saber como se sentiam desde o dia anterior, examiná-los e escrever os resultados desta

interaçãono prontuário. Neste dia, quis discutir detalhes de exame físico com os Residentes

que me supervisionavam. No entanto, os dois estavam em seu primeiro dia de Residência em

Clínica Médica, e não tinham tempo para estas discussões, pois eram responsáveis por todos

os pacientes da enfermaria.

Depois vim a entender que o exame físico não era tão importante naquele estágio.

O essencial era checar os hemogramas dos pacientescom câncer duas vezes por dia, para

avaliar se estavam “respondendo” à quimioterapia.A função do hemograma ali era então

somente a de acompanhar a quantidade de células cancerígenas e meu objetivo de

aprendizagem não foi cumprido. Ainda no primeiro dia, às nove da noite, após terminarmos o

trabalho, fui ao quarto de repouso dos internos, ao banheiro. Para minha surpresa, minha urina

estava vermelha e eu pensei de súbito que estava com hepatite, pois já havia tido. Parei um

pouco para pensar e me aliviei quando percebi que não haviabebido água o dia inteiro.

Nesse contexto, as angústias ganharam voz em meu corpo. Ainda no primeiro dia

de internato, comecei a sentir uma estranha falta de ar. Ela desaparecia quando bocejava, mas

somente por alguns minutos. Passei então a tentar provocar os bocejos, o que exigia esforços

constantes e mímicas constrangedoras. Sabia que esse sintoma tinha relação comminha

angústia, por isso não procurei um médico.

A rotina do internato eraintensa. Tínhamos que diariamente registrar as notas de

evolução de quatro pacientes em média pelos quais éramos responsáveis. Transmitíamos

então as informações aos Residentes, nossos supervisores diretos, para que tomássemos as

condutas e fizéssemos as prescrições. Além disso, tínhamos que fazer os resumos de alta

hospitalar, admitir novos pacientes e ir para os plantões. Os piores momentos ocorriam duas

vezes por semana, nas visitas, em que o mestre percorria a enfermaria proferindo mini-aulas

sobre as doenças de cada paciente, ao mesmo tempo em queargüia os alunos. Os pacientes

eram ali objetos de estudo, pois não entendiam a linguagem dos médicos.

O medo dos estudantes de serem ridicularizados diante dos colegas era o motor do

aprendizado. Também sobrava pouco tempo para o contato com os pacientes, pelas tantas

demandas administrativas que tínhamos. O contato ficava então bastante centrado nos

detalhes técnicos, pois eles seriam perguntados nas visitas. Mesmo assim, queria saber sobre a

vida dos pacientes, mas não sabia o que fazer com as informações nem a quem contar. Tinha

boa relação com meus pacientes, que gostavam de mim. Depois de aprender as tarefas como

33

interno, o trabalho passou a ser menos ruim, mas porque passei a desempenhá-las de modo

automatizado.

Em 2004, a dois meses da formatura, conheci uma estudante de Medicina alemã.

O relacionamento e o desejo de conhecer a prática médica na Europa me impulsionaram a ir

para Berlim realizar os dois últimos meses de internato. Tinha esperanças de encontrar outra

prática de Medicina por lá. Estando próximo de me formar e de me sustentar pela primeira

vez, fiquei com vergonha de pedir a meus pais que financiassem a viagem. Quis propor a eles

que eu trabalharia e pagaria a eles o investimento quando voltasse de lá.

No entanto, eles ficaram muito felizes com minha oportunidade e me

presentearam a viagem. O passaporte italiano que minha mãe batalhara treze anos para nos

proporcionar facilitou a minha ida, por não precisar de visto. Quando decidi ir para Berlim,

nunca havia tido contato com a língua. Fiz então aula particular diariamente por três semanas

com uma professora suíça, memorizei um texto de apresentação em alemão para minha

chegada no hospital e parti.

Os dois meses de internato aconteceram em um hospital da periferia de Berlim, o

HELIOS Klinikum Berlin-Buch.Percebi logo no início que a maioria dos médicos e dos

internos alemães tinha uma prática mais humana do que a que estava acostumado a ver aqui.

Tratavam as crianças com muita delicadeza e humor.A maioria dos médicos que conheci não

tinham carro, indo para o trabalho de bicicleta e metrô. Não tinham o discurso que via aqui,

de “viver para trabalhar”. Tinha a impressão de que eram médicos mais “normais” que os de

aqui, o que me agradou muito.

O investimento hospitalar em atividades lúdicas também me impressionou. Na

enfermaria de reumatologia infantil, o momento mais esperado pelas crianças acontecia

semanalmente quando tinham a possibilidade de montar um cavalo e um pônei que eram

trazidos para o jardim. Com a mesma freqüência, eram levadas a uma piscina próxima e na

enfermaria havia umasala com os mais variados jogos.

A primeira passagem por Berlim durou quatro meses. Poderia ter durado só dois

se tivesse voltado para minha festa de formatura. Já havia participado de muitas festas durante

a faculdade e não me incomodei em perder o que pensei ser mais uma comemoração. Meus

amigos me representaram nas celebrações vestindo um boneco (manequim) com um paletó,

colocando-lhe uma placa com meu nome. Depois brincaram comigo ao dizer que se

divertiram mais com o boneco do quese estivesse presente.

Optei também por ficar esse tempo a mais para me dedicar só ao estudo da língua.

Para aprender alugava filmes, colocava legendas originais e parava e anotava as falas.

34

Também li os três livros do curso de alemão que minha irmã havia feito na casa de cultura. A

língua alemã causa um estranhamento interessante. Por mudar a ordem das palavras na frase,

causa choques com a língua materna, o que é um desafio a mais para a diferença na escrita das

palavras. Minha capacidade de imitação me deu muita facilidade com a pronuncia. Tive muito

prazer em aprender esta língua.

Voltei ao Brasil porque este já era o plano de minha namorada, que tinha que

coletar os dados de sua pesquisa de doutorado. Eu achei pertinente porque eu precisava juntar

dinheiro pra voltar para a Alemanha em definitivo. Tive então o meu primeiro emprego como

médico, na Estratégia Saúde da Família (ESF), onde trabalhei sete meses. Durante este

período, encaminhava muitos pacientes por inexperiência clínica e apesar de minhas

influências psicanalíticas de casa, minhas práticas eram ainda bastante biomédicas. Como na

faculdade, não sabia o que fazer com as informações subjetivas que coletava. Este período foi

no entanto tranqüilo, porque sabia que seria curto.

Retornei novamente à Alemanha, e fiquei trêsanos, até 2008. Lá tive quatro

empregos. Primeiro fuibaby-sitter do filho de amigos alemães que eu havia conhecido em

Fortaleza, que me convidarampor eu falar português,pois Kaspar Nilo havia nascido no Brasil

e os pais queriam que ele mantivesse a língua.Foi uma experiência interessante, porque

aprendi os cuidados com um bebê de seis meses, banhar, ninar, trocar fraldas, fazer papinhas.

Algum tempo depois, inquietei-me com um email da lista eletrônica de minha turma de

faculdade que articulava as comemorações de cinco anos de formatura, ao ler a mensagem de

uma médica dizendo que o preço do Buffetera a metade para as babás, pois estas “mal

comem” e “não bebem”. Não me lembro de ter deixado de fazer estas coisas quando erababy-

sitter.

Paralelamente a esta atividade, exercia uma função parecida com a de um auxiliar

de enfermagem, na Schlossparkklinik, em um departamento de pesquisa clínica que testava

novas drogas em pessoas com problemas reumatológicos. Elas visitavam a clínica

mensalmente e eu era responsável por administrar a medicação. É interessante lembrar disso

porque hoje combato o poder destruidor da indústria farmacêutica em medicalizar a vida.

Consegui por meio de um amigo de minha namorada, queera Residente de Reumatologia

nesta clínica.

Um dos programas favoritos que tinha em Berlim era ir com a namorada para

sessões de cinema na casa de um amigo dela de infância, o mesmo que havia intermediado

meus dois meses de internato em Berlim, pois era Residente de Pediatra naquele hospital. Eles

me prometeram mostrar os grandes filmes que haviam visto. AssistimosApocalipse now

35

(1979), “A vida de Brian” (1979), do grupo de comédia inglês Monty Python, “Fitzcarraldo”

(1982), do diretor alemão Werner Herzog, dentre outros.

Mas um filme em especial me marcou fortemente: “O profissional” (1994), com

Jean Renoe Natalie Portman (ela fazia seu primeiro papel, aos onze anos). Ele interpretava

um matador de aluguel implacável, mas ao mesmo tempo mostrava uma ingenuidade

impressionante para cuidar destamenina que foi parar em seu apartamento por conta de uma

tragédia ocorrida com sua família. A atuação dele me impressionou muito e fiquei com desejo

de ser ator. Decidi então fazer um curso de teatro.

Era um curso para iniciantes, que durou três meses. Depois de terminado, me

escrevi na Universität der Kunst (Universidade de Artes) de Berlim. Para o teste de admissão,

eu deveria interpretar três peças, cantar uma música, e fazer uma performance de dança. Fui à

casa do professor do curso lhe perguntar quais peças eu poderia interpretar com maior

facilidade em alemão. Ele me emprestou uns livros, mas disse que a vida de ator em Berlim

estava muito difícil. A concorrência desta Universidade era de mil candidatos para dez vagas.

Eu não sabia cantar e nem dançar. Por todos esses motivos, acabei por desistir do teste.

Após algumas tentativas frustradas de largar a Medicina, com a Letras, o Direito e

o Teatro, decidi tentar algo na área médica novamente. Já falava bem o alemão e me achei

preparado para assumir um emprego de maior responsabilidade. Fui então assistente em um

laboratório de pesquisa em uma clínica de Ginecologia, que tinha uma cooperação com uma

clínica de Patologia. Consegui o emprego por meio de meu melhor amigo na Alemanha, que

depois dividiu apartamento comigo e com uma amiga dele (nesta época,o meu relacionamento

havia terminado). Entretanto, não havia vagas para Residentes nesta clínica, e eu apliquei para

outra, no hospital Vivantes Klinikum am Urban, porque era perto de minha casa. A entrevista

de emprego foi no dia de meu aniversário de 27 anos. Trabalhei nesta clínica por um ano.

A escolha por essa área se deu por ter trabalhado, durante a faculdade, três anos na

função de macroscopista em um laboratório de Patologia. Pensei que a escolha por uma área

em que não precisasse atender pacientes, não iria confrontar-me com o modelo biomédico,

exatamente o que não gostava durante a Faculdade. O trabalho como patologista, no entanto,

lida com o sintoma em sua última forma de manifestação, “na própria carne”. Realizar

autópsias também era uma atividade desagradável(não me acostumava com os cheiros de

urina e sangue expelidos durante o procedimento) e não me dava por satisfeito com esse

emprego. Minha escolha profissional estava ainda longe do meu desejo. Percebi que o que me

agradou no laboratório enquanto estudante era mais a amizade com os funcionários e o ato de

escrever/descrever as peças cirúrgicas do que propriamente o saber médico da Patologia.

36

Percebi que muitos colegas da clínica haviam escolhido esta especialidade por meio de

exclusão, assim como eu.

O período na Alemanha me foi muito valioso principalmente para experienciar

uma prática de comunicação bastante direta, o fato principal para que tenham a fama de frios

e distanciados. Habituado ao estilo de comunicação brasileira, cheia de arrodeios, no começo

foi difícil me adaptar a esta parte da cultura deles. Os alemãesnão se furtam de conversar se

algo na relação pessoal ou profissional estiver causando incômodo e isto é interessante porque

há menos espaço para mal entendidos e também maior profundidade nas relações.

Por achar que já havia dado todas as chances possíveis à práticamédica, decidi

tentar novamente estudar Letras. Eu pensei em ir para Lisboa, mas não quis começar uma vida

novamente em outro país, sem conhecer ninguém. O plano então era terminara faculdade de

Letras na UECE para ser professor de Português. Necessitava, no entanto, de um emprego que

pudesse me sustentar nessa fase de transição. Com isso, o rompimento com a Medicina não

foi completo.

Em janeiro de 2008, vim para Fortaleza planejar o retorno à UECE e conseguir

um emprego como médico. Foi quando o melhor amigo e colega de turma, Pablo Alves, na

época Residente de Medicina de Família e Comunidade, especialidade até então por mim

desconhecida, convidou-me para conhecer o Posto de Saúde onde trabalhava, no bairro do

Pirambú. Ele não me explicou o motivo da visita, mas nos entendíamos bem e pensei que

quisesse me mostrar algo importante. Saímos do Posto e fomos até a praia, e ele foi me

mostrando os barracos (apontando a discrepância de que quase todos tinham uma televisão

moderna) e o lixo que era jogado a céu aberto, ou nos córregos perto da praia.

A desigualdade social que presenciei naquela visita me despertou um sentimento

novo. Eu estava naquele momento aberto para experimentações, pois apesar de ter decidido

estudar Letras, esta também seria uma tentativa. A experiência no Pirambú foi marcante, pois

pensei queseria interessante realizar um trabalho social. A proposta de Medicina apresentada

pelo Pablo também me deixou curioso, pois não era umaclínica biomédica. Penso que tive

uma visão bastante romântica daquela prática médica aquele dia, e comecei a projetar como

eu seria como médico de família. Não sei bem porque, mas pensei como seria bom fazer um

grupo para pessoas com sobrepeso, em que elas pudessem compartilhar suas vivências.

Penso que a Alemanha foi fundamental para que eu ficasse sensível ao passeio

pelo Pirambú, pois eu tive uma experiência marcante de cidadania naquele país.Eles têm um

povo que zela pelo respeito e pelo espaço do outro. A cidadania também vinha do Estado, que

proporcionava dignidade mesmo aos mais pobres.

37

Na época, o salário do Residente de MFC era o mesmo de um médico da ESF,

fruto de uma política municipal de atrair candidatos para essa Residência pouco procurada.

Isto também foi um fator importante para eu optar pela Residência, pois eu pude me sustentar

com o que ganhava. Ela também me daria a chance de me qualificar no trabalho, o que iria

complementar minha formação médica, o que não ocorreria se fosse trabalhar na ESF.

Coincidentemente, a Residência realizou prova de seleção na semana seguinte à visita ao

Pirambú.

Voltei então para a Alemanha para cumprir um mês de trabalho, cláusula de meu

contrato com o hospital Vivantes, retornando em seguida a Fortaleza para o início da

Residência, em março de 2008, no Centro de Saúde da Família (CSF) Francisco Domingos da

Silva, na Barra do Ceará.

Chegar depois de um longo período na Alemanha em um dia e começar o trabalho

em um Posto de Saúde nodia seguinte foi um choque. O Posto parecia não terregras. Muitos

entravam na sala enquanto eu estava atendendo: a coordenadora para buscar algo no armário,

a enfermeira para eu carimbar uma receita, o próximo paciente para perguntar se eu ainda iria

demorar muito. Estava também “enferrujado” por ter passado três anos e meio sem atender,e

o fato de ter internos de medicina dentro do consultório me acompanhando foi delicado

porque tinha vergonha em não saber resolver as queixas dos pacientes. Também me sentia

testado pela enfermeira. Por esses motivos, o período inicial foi bastante difícil.

Mesmo sem entender a nova especialidade ainda, achei desafiador trabalharnum

cenário de grandes adversidades sociais, assim como parecia grande o desafio de ter que

aprender uma disciplina do início. Como na medicina de família podiam me procurar pessoas

com qualquer problema, achava que o ideal seria fazer Residência em todas as áreas básicas

antes de estar ali. Tentei retomar a faculdade de Letras no segundo mês de Residência, mas

não pude por questões burocráticas da UECE. Não me abalei, pois já estava implicado com a

nova especialidade.

Dentre as adversidades da Residência, tive uma grande aliada, a outra

Residenteselecionada para o meu Posto. Ela havia sido camponesa durante toda a infância no

interior de Santa Catarina, e foi aos dezenove anos para Porto Alegre, trabalhar como

empregada doméstica. Aprendeu a ler com esta idade, com os filhos de sua patroa. Evoluiu

rápido e realizou um supletivo para recuperar o tempo escolar. Pelo seu destaque, foi enviada

para estudar Medicina em Cuba pelo Movimento dos Sem Terra (MST) o qual fazia parte.

Para completar sua fantástica história,teve as maiores notas entre cinco mil alunos

da Escola Latino Americana de Medicina. Esta mulher era uma inspiração para mim e me

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ajudou a desconstruir o preconceito de que o MST era composto por vândalos que invadiam

propriedades rurais,construído pelo que via na televisão e acentuado pela minha falta de

formação política.Ela era estudiosa, inteligente e esforçada. Não faltou um dia sequer em dois

anos de Residência. Foi uma amizade marcante para mim. Meu preceptor durante o primeiro

ano, Rômulo, nos transmitia a calma necessária para sobreviver naquele cenário de alta

complexidade. Ele foi fundamental para o meu crescimento nos conhecimentos clínicos, até

então bastante deficientes.

Outra dificuldade que apresentei foi que não lidava bem quando chegava ao Posto

pela manhã e vinham muitos pacientes falar comigo ao mesmo tempo. Achava um absurdo

não ter uma entrada separada para não termos que passar por aquilo. Quando estava

atendendo, pensava duas vezes antes de ir ao banheiro com medo de ser abordado no corredor

por algum paciente que queria “dar uma palavrinha” comigo. Já achava muito ter que atender

dez pacientes por turno, pois a maioria deles nunca tinha uma queixa sódurante as consultas.

Tentava assim ao máximo manter o número de atendimento em dez pessoas. Com isso, criava

atritos com a coordenadora do posto e com alguns profissionais que queriam me pedir para

atender mais pacientes.

Com as agendas sempre lotadas, não sabia como dar conta dos pacientes que

vinham no dia sem consulta marcada. Para eles, nosso posto criara um sistema de

atendimentos que deixava o clima bastante tenso, pois era muito excludente. Antes de atender

os pacientes agendados, cada equipe de saúde tinha que realizar, três turnos na semana (de

segunda a quarta pela manhã), o atendimento das dez primeiras pessoas que chegassem

naquele dia sem marcar consulta (chamávamos esse processo de “acolhimento”).

Para ter direito a uma dessas vagas, os pacientes chegavam aproximadamente às

cinco horas da manhã. Havia uma verdadeira “guerra” entre os pacientes por essas vagas.Eu

soube depois que havia gente que permanecia nesta fila para vender seus lugares. Não

percebia esses problemas na época. Somente depois, com a relativização do meu processo de

trabalho no meu Posto seguinte, fui perceber quão cruel era o nosso processo de trabalho. Eu

não enxergavaantes porque também estava em uma perspectiva de sobreviver em meio à

“guerra”.

Curioso que o significante “guerra” que meu pai falava agora aparecia em minha

vida. Se ele dizia que médico tinha emprego até na “guerra”, ali estava eu. As tensõescom o

“acolhimento” eram provocadas exclusivamente por nós profissionais, que não sabíamos

organizar o processo de trabalho. Mas havia também outras guerras, entre os pacientes que

transferiam sua indignação com a desigualdade social aos profissionais, e estes que, sem

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preparo para estarem num ambiente complexo como um Posto de saúde, transferiam a tensão

de volta aos pacientes e aos outros profissionais, num choque de relações alucinante. A

linguagem biomédica também usa alguns termos e frases do contexto bélico, como

“tratamento agressivo”, “vamos ter que ser mais invasivos”, ou “o paciente não respondeu à

fase de ataque do tratamento”.

As agendas também eram dispostas com base no que preconizava o Ministério da

Saúde. Havia um turno para cada grupo populacional. Um turno para realizar atendimento

pré-natal, um para puericultura, um para atender pacientes com diabetes e hipertensão, outro

para atender crianças com asma, e assim por diante. Era uma prática ainda centrada em

doenças. Minha preceptora em meu turno de atendimento a pessoas com diabetes era

especialista nesta doença.

Quando um paciente apresentava uma queixa que não fosse relacionada à doença,

eu o agendava para o turno de atendimento de adultos. Era um fatiamento do paciente

semelhante ao que fazem as especialidades médicas. Como conseguir ser generalista diante

desse sistema de agendamentos?A agenda deveria ser composta por turnos de atendimento

geral independente de doença todos os dias. Assim seguiria os princípios da especialidade.No

meu primeiro ano, me centrei bastante na clínica das doenças. Estudei muito sobre elas, como

nunca havia feito. Eu não tinha prática para manejar as doenças mais comuns e queria

cometer o mínimo de erros possíveis.

No final do primeiro ano de Residência, tive a sorte de receber em Fortaleza um

médico de família belga, Marc Jamoulle, um senhor de 70 anos que é médico da mesma

comunidade háquarenta anos. Ele é conhecido mundialmente por ter criado o conceito de

prevenção quaternária, que é o de proteger os pacientes sob risco de medicalização. É um

homem simples e carinhoso, que me lembra meu avô materno. Ele já cuidou de quatro

gerações de famílias e eu, um iniciante curioso pela MFC, tive três dias de conversas intensas

sobre a especialidade com Marc, nos dias que passou em Fortaleza. Ele ficou sendo uma

figura de inspiração durante a minha formação e o é até hoje.

No segundo ano, com a saída de Rômulo da preceptoria, entrou em seu lugar

Pablo, que havia terminado sua Residência. Ele trouxe algumas mudanças bastante

interessantes. Nos turnos de “acolhimento”, os pacientes passaram a decidir junto com a

equipe de saúde a ordem em que eles seriam atendidos. Desfazíamos então a ordem de

chegada que, segundo Pablo, era injusta porque o paciente mais debilitado chegaria por

último. Essa atitude aparentemente simples era muito louvável porque implicava os pacientes

no processo de trabalho, lhes dava voz. Isso atenuou o clima tenso que antes existia no

40

acolhimento.Pablo também me falava, quando eu ia lhe passar um caso, para euampliar a

clínica, e considerar outros aspectos no adoecimento.

Tínhamos discussões diárias sobre o que era Medicina de Família. Pablo também

convidava um mestrando em saúde pública da UFC uma vez por mês para nos falar sobre a

questão do lixo e da qualidade da água e suas influências na saúde. O processo de

desconstrução com o Pablo iniciou a minha relativização do sujeito como sendo o único ator

do adoecimento, como eu pensava antes, e que havia algo para além do sujeito no

adoecimento do qual não temos controle.O segundo ano de Residência era um momento mais

propício para essas mudanças, já que eu estava mais preparado para resolver os problemas

clínicos, e então podia ouvir mais os pacientes.

Para praticar a medicina de família, era necessário um método clínico diferente,

centrado na pessoa,que tem como objetivo sistematizar os passos que permitam ao médico

cuidar do paciente de forma holística. No entanto, não compreendia este método e achava sua

aplicabilidade difícil. Outros acontecimentos, externos à Residência, me levaram à

compreensão dele, algum tempo depois.

Envolvi-memuito com a especialidade durante a Residência, sempre em busca de

algum conceito ou fundamento teórico novo que me fizesse prosseguir em meu entendimento

sobre a MFC. A estranha falta de ar da faculdade desaparecera, confirmando a hipótese de que

o sintoma estava mesmo relacionado com ela. A faculdade de Letras não me fazia falta, pois

percebi que o português estava incorporado em minha vida no dia a dia, através da escrita e da

comunicação com os pacientes.

Em meu último mês de Residência, fiz meu estágio optativo em Betim (MG),

como sugestão do casal de amigos Tatiana Fiúza e Marco Túlio Ribeiro, ambos médicos de

família mineiros quevieram para Fortaleza coordenar a Residência de medicina de família

daqui. Eles me indicaram Minas porque eu teria hospedagem na casa dos pais dela, em Belo

Horizonte.Tatiana me ligou algumas vezes este mês, perguntando-me se não gostaria de ser

preceptor quando voltasse para Fortaleza. Eu ficava devendo uma resposta, pois não me sentia

preparado para isso. Achava que dois anos de Residência haviam sido pouco tempo de

formação.

Em Betim, acompanhei uma Residente que estava iniciando o segundo ano de

treinamento. Sua mãe,Janine LeSan,uma francesa que morava em Minas havia quarenta

anos,era especialista em comunicação oral e conversávamos muito, pois eu estava exatamente

querendo melhorar minha prática de falar em público. Falava para ela desta necessidade, pois

tinha o desejo de ser professor.

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Em minha última noite em Minas Gerais, em um jantar de despedida na casa de

Janine,ela me relatou algumas experiências e técnicas sobre comunicações orais, mas

finalizou dizendo que eu só aprenderia aquilo praticando e que eu não perdesse, dali em

diante, nenhuma oportunidade de falar em público. Neste exato momento, falei para ela:

“então eu vou ser preceptor!” e aceitei o convite de Tatiana.Isto foi fundamental para eu

continuar minha formação como médico de família.

Como disse, não me sentia ainda totalmente preparado para assumir esse cargo,

pois achava que teria que tirar todas as dúvidas dos internos e residentes. Por isso escolhi o

tema preceptoria para minha monografia de conclusão de Residência, realizando uma revisão

bibliográfica sobre “modelos de ensino ambulatorial”. Antes de assumir este trabalho, voltei

para a terapia, desta vez com outra analista. Arrependo-me de não ter ido para a análise logo

no início da Residência, para trabalhar as novas experiências que vivi no Posto de Saúde.

No final de meu primeiro ano como preceptor, em 2010, recebi o convite para

assumir a diretoria de titulação da Sociedade Brasileira de Medicina e Comunidade, onde

ainda permaneço. No Brasil, há dois caminhospara um médico se tornar especialista em

Medicina de Família: realizar os dois anos de Residência ou ser aprovado na prova de título

da SBMFC, sendo pré-requisito para realização do exame o trabalhocomo médico na Atenção

Primária(geralmente no Posto de saúde) por no mínimo o dobro do tempo de duração da

Residência.

Quando fui assumir as tarefas desta diretoria em Florianópolis, na sede da

SBMFC, fui recebido pelo presidente da entidade, Gustavo Gusso. Em um contato de um dia,

ele compartilhou suas elaborações sobre a especialidade.Ele tinha contato com Médicos de

Família de várias partes do mundo e era um estudioso na área. Dizia que na ESF, o fato dos

médicos atenderem pacientes de uma área geográfica prejudicava aqueles que não gostavam

de seu médico, pois não poderiamser atendidos por um médico de “outra área”. Dizia que para

evitar isso deveríamos seguir o exemplo da Inglaterra, em que os pacientes têm a liberdade

para escolher os médicos por quemdesejam ser atendidos. Recomendou-me muito que eu

deveria viajar para conhecer a MFC em outros países. E ainda me recomendou três livros que

foram fundamentais para minha formação: “Manual de Medicina de Família e Comunidade”,

“Medicina Centrada na Pessoa” e “Estratégias de Medicina Preventiva”.

Organizar e elaborar questões para a prova de título de especialista em MFC foi o

compromisso que assumi com a SBMFC. Essa tarefa foi significativa para minha formação,

pois junto com os membros da comissão de titulação, os amigos e médicos de família André

Bomfim, Frederico Esteche e Marco Túlio Ribeiro, pois elaborar questões demandou estudo e

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aprofundamento na área. Além disso, a SBMFC proporcionou-me atroca de experiências com

médicos de família nacionais e internacionais, nos Congressos e através da lista de correio

eletrônico da diretoria.

No início de 2011, após três anos no Centro de Saúde onde fiz Residência, recebi

convite para ser preceptor em outro Posto, onde faria parceria com Frederico. A possibilidade

de trabalhar com um amigo e fundar um núcleo de formação para cinco residentes foram os

motivos de minha ida ao CSF Frei Tito de Alencar, na Praia do Futuro, onde permaneci dois

anos.

No Posto anterior estava sozinho como preceptor(com dois Residentes), e sentia

que a Residência era hostilizada por outros profissionais pelo fato de que a agenda dos

Residentes era reduzida para que pudéssemos discutir os casos, e pelo fato de eu não ter uma

agenda de pacientes, para ficar livre para o ensino. Hoje percebo que o fato de eu não ter tido

agenda de pacientes como preceptor foi péssimo para minha formação, pois atendia pacientes

sem continuidade e prestava ensino sobre algo que não estava praticando.

Concomitantemente à minha transferênciaao Frei Tito, Pablo me daria novamente

contribuições à minha formação, falando-me de uma nova linha de pesquisa no Mestrado em

Saúde Pública da UFC, em ensino médico. Como trabalhava com formação de Residentes,

Internos e alunos de graduação, interessei-me pelo tema.

No início do mestrado, pensei em dar continuidade à minha monografia, desta vez

comparando os métodos de ensino ambulatorial que havia encontrado em meu estudo. No

entanto, avaliei que os diferentes métodos de ensino tinham sua importância de acordo com o

tempo que dispunha para ensino, e percebi que não era interessante compará-los.

O mestrado deu início a um novo processo de formação. A primeira disciplina

mostrou a evolução do pensamento desde a Grécia antiga até os tempos atuais, passando por

todos os pensadores e pelo surgimento da Igreja e da Ciência. Na sala de aula única do curso,

havia pendurado no mural, um papel com a frase grega que fora inscrita no templo de Apolo:

“conhece-te a ti mesmo”.

Na disciplina seguinte, a professora Raquel Rigotto, do Núcleo de Trabalho, Meio

Ambiente e Saúde para a Sustentabilidade do Mestrado,desmascarou o capitalismo

violentamente com suas observações acerca das condições dos trabalhadores que sustentam

esse sistema. Mostrou o caso de alguns empregados de empresas de produtos do côco, cuja

meta era descascar mil frutas dessas por dia, e de trabalhadores de fábricas de Jeans, que

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tinham um limite de vezes em que podiamusar o banheiro, para exemplificar o trabalho como

produtor de doenças.

Descreveu também as práticas cruéis da criação de camarão, em que os olhos das

camarões fêmeas eram retirados para que a glândula que ficava posteriormente a eles, que

regulava a ovulação, fosse também retirada e elas ovulassem sem limite, até a morte.

Eu recebia aquelas informações de forma trágica. Sofri muito a cada aula desta

disciplina.Não quis me matricular na segunda parte desta, a de “tópicos avançados em saúde

do trabalhador”, que era opcional. No segundo semestre do primeiro ano, durante a disciplina

do professor Ricardo Pontes, de políticas públicas, emocionei-me algumas vezes com filmes

sobre os movimentos políticos da história recente do Brasil.Permaneceuem minha cabeça a

frase do professor:“Vocês têm que se posicionar politicamente!”.

Em meu primeiro ano de Frei Tito, que ocorreu de forma concomitante ao

primeiro ano de mestrado, o acolhimento funcionava muito bem, em todos os turnos e sem

limitação de número de consultas. Essa organização do trabalho já diminuía enormemente as

tensões (para os pacientes) em relação ao Posto anterior. Montamos um grupo de discussão

com os Residentes duas vezes por semana, com base em um dos livros indicados por Gustavo

Gusso.Eu trazia também as discussões que presenciava no mestrado.

No segundo ano do curso (2012), decidi avaliar o Internato em Saúde Comunitária

da UFC, temática sugerida gentilmente pelo amigo Marco Túlio. Entretanto, por mais que me

implicasse com o tema, minha intuição psicanalítica inquietava-me, pois tinha fortes

convicções de que a temática de estudo deveria brotar do desejo do próprio pesquisador.

No segundo ano no Frei Tito, criei junto com Frederico uma escala de plantão

com médico e enfermeira livres em cada turno, a exemplo do que fazíamos durante a

epidemia de dengue, para atender os pacientes que procuravam o posto sem ter consulta

agendada. Assim, os outros profissionais que não estivessem no plantão poderia atender

tranquilamente seus pacientes marcados.

No entanto, vimos que isto descaracterizou um dos princípios da Atenção

Primária, de opaciente ser cuidado continuamente pela mesma equipe de profissionais.No

entanto, com a escala de plantão, os pacientes que não tinham consulta marcadapoderiam ser

atendidos por vários profissionais diferentes, que variavam de acordo com os turnos da

semana.Com isso, interrompemos este sistema de atendimentos.

Em outubro de 2012, ainda sem um tema para desenvolver, iniciei no mestrado a

disciplina opcional de “Bioética e Cidadania”, com o Professor Ursino Neto, que fez questão

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de nomear a disciplina de curso, para dar-lhe uma idéia de movimento, a de que iríamos

percorrer um caminho.

A principal contribuição e desconstrução deste curso foi a perspectivade ética

comoética-da-vida (SILVA NETO, 2011), e que a ética-da-vida devemos praticar, viver, pois

ela é dinâmica, está nas relações, nofluxo-entre. Ética não é estática, não se pode possuir, mas

sim praticá-la. Isto é um conceito que move aquilo que está parado.

Mais do que um curso para estudar temas clássicos de Bioética como pesquisa

com células tronco ou aborto, vivi ali a maior experiência educacional que já havia

presenciado, pelo que comemorei, pois essa era minha razão para ter entrado no Mestrado.

O professor Ursino mostrou a gravura de uma ponte construída pela metade. Cada

um deveria completá-la durante aquele curso, à sua maneira.Falou sobre a construção de uma

metáfora:o processo de subirmos ao topo de uma montanha juntos, e que o vôo lá de cima

deveria ser individual, que o salto cada um deveria dar. Passou entre os alunos o martelo, para

representar apossibilidade de desconstrução de si, um caleidoscópio, para simbolizar que um

fenômeno poderia ser visto por diferentes ângulos, e um instrumento de palmatória, para

simbolizar que ali o poder seria compartilhado.

Falou sobre o estímulo à singularidade, sobre a hermenêutica, a arte, o cinema, a

poesia de Fernando Pessoa, sobre Educa, uma das raízes possíveis para a palavra educação, ou

a Deusa grega que ensinava as crianças a comer. Com a calma e delicadeza de Sócrates no

filme de versão italiana (1971) sobre o filósofo grego, em que ele saiu para comprar o pão e

voltou para casa três dias depois (com um polvo),porque perdera-se em argumentações com

seus seguidores, o professor falou de um saber com sabor, jáque essas palavras também

tinham raízes epistemológicas comuns.Com isto, revezávamo-nos na tarefa de trazer para a

aula um alimento de nossa preferência.

Na segunda parte do curso, os alunos deveriam trazer seus “saberes-experiência”,

práticas profissionais ou de vida que julgássemos interessante compartilhar com os colegas.

Estudamos também o conceito de poder para Foucault. Durante este curso, passei a avaliar

minhas relações éticas e as relações de poder presentes em minha prática como médico, com

“meus” pacientes.

Vi-me então como intermediador da prática de exploração de uma faculdade

particular de Medicina. Esta explorava a mim, financeiramente, e ameus pacientes,

moralmente. Mesmo sem concordar, eu consentia com esta faculdade,pois permitia que quatro

a cinco alunos fossem colocadosjuntospara atender uma única pessoa, inclusive meus

pacientes. Assim, eu não estava protegendo a privacidade deles e o espaço de comunicação,

45

ferramenta mais importante da Medicina de Família. A grande dificuldade desta especialidade

é descobrir o motivo real pelo qual a pessoa foi buscar atendimento, e com muitos alunos na

sala a inibição do paciente era muito maior.

Porque isto ocorria no Posto de Saúde onde trabalhava? Porque a faculdade

particular não levava seus alunos para aprender em um hospital privado? Será que o público

destes hospitais permitiria ser atendido por cinco alunos de uma só vez?

Percebi-me nocivo aos pacientes.Apesar da questão desta faculdade me

incomodar havia muito tempo eu demonstrava com aquela atitude um preconceito que não

enxergava. Veio-me também à consciência as formas excludentes de agendamento de

pacientes que eu havia praticado em meu Posto anterior.

Avaliei também o meu papel em meio às relações de poderexercidas pelo

Estado.Portanto, analisei a política para a qual eu trabalhava, a ESF.Vi-me como participante

de uma política que não exigia qualificação profissional para estar no Posto de Saúde, um

cenário de grande complexidade. Por que o Governo não exigia qualificação para estar ali?

Seria porque para atender pacientes pobres, qualquer profissional “serviria”?Não estaria eu

respaldandoo descaso do Estado com a população ao trabalhar para esta política?

A ESF é uma política que paga um salário fixo aos profissionais.Não há qualquer

cobrança por quanto ou como os profissionais trabalham. Em termos salariais, quem atende

uma, vinte ou cinqüenta pessoas por diatêm os mesmos rendimentos ao final do mês.

Indiretamente, istoestimulava os profissionais do Posto a trabalharem menos.Enxerguei-me

como alguém querendo estimular a qualificação entre os profissionais naquele ambiente, mas

percebi que estava indo contra uma lei que não exigia a qualificação.

Enxerguei-me em um modelo de cuidados que no geral era voltado para a doença

e para o remédio, pois a maioria dos profissionais carregava as visões biomédicasda faculdade

para aquele lugar. Sem um movimento conjunto de qualificação de todos os funcionários, a

desconstrução daquela mentalidade seria muitoimprovável.

Continuei a investigação de minhas práticas.Trouxe como meu “saber-

experiência” o tema das práticas dos profissionais de saúde em meio à situação de pobreza.

Na aula pela qual fiquei responsável, mostrei a filmagem da casa de Seu Sebastião, um

paciente idoso que cuidava e por quem nutria grande carinho. Morava sozinho, em condições

precárias, abandonado pelas filhas que se mudaram para outro Estado. Apesar disso, sua

vontade de viver e simplicidade eram comoventes, por issoquis compartilhar sua vida com os

colegas.

46

Trouxe a questão das práticas em meio à pobreza porqueme incomodava a

maneira preconceituosa com que alguns profissionais no Posto de saúde tratavam os pacientes

(falo aqui de uma violência direta, manifestada no tratar mal). Mas a escolha do caso também

tinha a ver comigo. Incomodava-me também o fato de eu atender e conviver com pessoas em

condições difíceis socialmente não me indignar mais. Pergunteipor que me acomodava frente

à situação de meus pacientes.

Pensei que para viver na 5ª cidade do mundo em desigualdade social (Fortaleza),

cria-se um “escudo” para não se perceber frio por nada fazermos diante da condição do

outrocom necessidades básicas de vida. Percebi que esse “escudo” me acompanhava para

dentro da Unidade de Saúde, em minha relação com a faculdade particular, em minhas

práticas excludentes de marcação de pacientes no Posto anterior.

Evita-se os olhos de alguém que vem pedir algo no sinal na tentativa de proteção

porque o olhar permite fluxo, e com isso relação e surgimento de sentimentos que podem ser

incômodos. Evita-se o olhar no intuito de não “entrar” na esfera humana com aquela pessoa, o

que é ilusório, pois a opção de negação do olhar também é humana.Sem o olhar, o outro

sente-seinvisível.Pensei que isso eramdefesas que criávamos como forma de sobrevivência

para não sofrer.

Quando me referia com orgulho aomeu trabalho em um Posto de saúde, por cuidar

de pessoas de uma comunidade pobre, percebi um preconceito inconsciente (até então

ocultado por este “escudo”),pois se me orgulhava de cuidar delas é porque de certa forma

julgava que eram inferiores.

Eu deveria me orgulhar deste trabalho pelo fato de cuidar de pessoas como

quaisquer outras, independente de suas condições. Foi um choqueavaliar minhas relações e

práticas no Posto. Tinha um conceito estático de que era ético, mas percebi-me com algumas

atitudes em que não praticava ética.

Assim, dava intensidadeao “conhece-te a ti mesmo” pendurado no mural do

Mestrado, junto com meus anos de terapia, junto com a avaliação das práticas de poder e de

ética-da-vida, junto com as contribuições da professora Raquel Rigotto sobre o capitalismo e

do Professor Ricardo Pontes sobre a necessidade de um posicionamento político. A visão

romântica que tinha sobre eu ser especial por ser médico de família que não fazia

compromisso com doenças ou órgãos e que protegia o paciente dos riscos de medicalização

subitamente caía em meio a essas reflexões.

A ética-da-vida e a crítica ao poder médico quebravam o escudo atrás do qual me

escondia (que me ligava a uma visão dominante de classe) e me lançavam no mundo. Tive a

47

forte sensação de estar livre para as relações humanas e finalmente entendia o que era ser

centrado nas pessoas. Se a Medicina de Família é uma especialidade que tem seu cerne nas

relações, senti-me depois de cinco anos de prática médico de família e comunidade. Percebi

uma prática como MFC em que passei a estar presente ali de uma maneira entregue para viver

cada história, o que revelou uma clínica poderosa que até então não havia experimentado.

Senti com essas descobertas uma inédita vontade de vida, uma energia muito forte

em meu corpo.Este não é uma coisa que se sente normalmente, pois seu funcionamento é

involuntário,não percebemos a respiração ou a tireóide liberando seus hormônios. Mas eu

estava sentindo essas mudanças em meu corpo, que estava vivo. Passei a entendê-lo como

uma forma de comunicação.

Esses sentimentos ocorreram em janeiro deste ano, após o curso de ética-da-vida,

e depois de ter passado o final de ano em Barcelona com meus pais, irmã, cunhado e

sobrinho, e de ter vivido fluxos-entre neste período que parecem ter sido muito significativos.

Entendi que essas práticas opressoras estavam impregnadas por uma

insensibilidade que pensei terem origem nas práticas capitalistas e na despersonalização que

elas causam. Isto me gerou uma revolta com minha participação neste sistema.

Com isso, rompi o vínculo com a faculdade de Medicina particular para a qual

trabalhava. Decidi morar em Barcelona para recomeçar minha vida em uma cidade

socialmente menos desigual, em que minha especialidade fosse valorizada. Entendi que

deveriapagar por minha cirurgia do punho na tentativa de excluira Unimedda intermediação

de meu cuidado, já que ela havia autorizado para minha primeira cirurgia um material de má

qualidade. As duas últimas coisas ainda não pude praticar.

Com relação ao meu emprego na ESF, deixei-o em fevereiro após um

desentendimento com uma profissional de meu Posto que imprimiu um email em que eu a

criticava e também alguns setores do Posto. O documento, que pensava ser parte de uma

conversa particular em que chegaria a uma melhora na relação com esta profissional, foi

impresso emostrado a muitos profissionais, gerando-me um grande mal estar.

Planejava sair do Posto somente quando estivesse prestes a ir para a Espanha,

então decidi adiantar minha saída após este episódio, o que seria bom por conta do Mestrado.

Achei que seria coerente também por não estar satisfeito com as políticas do Governo para a

Saúde. Fiquei trabalhando então como supervisor do PROVAB, um programa de fixação de

médicos no interior e periferia de grandes cidades.Eusupervisiono dez médicos, em Paracuru

e em Fortaleza.

48

A saída da ESF em um momento em que minha prática chegava ao melhor

momento era delicada por um lado, mas senti-me bastante aliviado em “dar um tempo” após

cinco anos no front de batalha do sistema de saúde. Pensava que na Espanha iria ter uma

prática mais sã, pois lá exige-se qualificação dos profissionais para trabalhar na Atenção

Primária.Depois que tive a sensação de ter me tornado médico de família, gostaria de praticar

em outro lugar que não fosse um plano de saúde.

A perspectiva das relações ampliou minha visão psicanalítica centrada no sujeito.

Até então, pensava que poderia propor uma desconstrução de minha vida em um consultório

de psicanálise e sair da porta praticando uma nova vida. Negava a influência das relações e do

estar-no-mundo, sendo escravo de um sujeito que poderia controlar todos os fatores externos

a ele por meio da linguagem.

Nesse contexto, busquei também uma nova ressignificação alimentar em que parei

de comer carne vermelha e frango, assim como leite e todos os derivados de produtos animais.

Isto ocorreu primeiro por questões alimentares, e depois como posicionamento para não

financiar o sofrimento de animais e não participar dos prejuízos ambientais advindos da

produção da carne, apoiando-me em um documentário que assisti, “A carne é fraca”, que

desmascarou as práticas violentas com estes animais. Perdi oito quilos com esta atitude.

Chamei-a de uma devolução ao capitalismo do peso que havia ganhado por cair em suas

armadilhas do trinômio sal, gordura e doce, quando temos mais de dois mil temperos e

sabores a experimentar. A saída do trabalho também desempenhou um papel interessante em

meu emagrecimento, pois tinha tempo para cozinhar. Plantei também a minha horta.

Gostaria também de relatar brevemente uma experiência que ilustrou a idéia das

relações. Em um posto de gasolina perto de casa, estava a conversar no estacionamento com

dois amigos, quando abordou-nos um rapaz de uns 27 anos, negro, com as roupas sujas. Veio

com educação, e gostaria de um tempo de nossa atenção. Meus amigos, protegidos em seus

“escudos”, tentaram encurtar logo o assunto dizendo que nada tinham ali. Perguntei seu nome.

Chamava-se Felipe. Conversamos, eu mais escutava do que falava, olhando fixamente para

ele. Pensei no que poderia ganhar de forças com aquela relação.

Pediu-me vinte reais para ajudar a consertar sua moto, para poder ir pra casa. Eu

emprestei o dinheiro, e continuamos conversando. Disse-me que morava na praia do futuro

(onde trabalhei) e descobrimos que eu conhecia seu agente comunitário de saúde. Meus

amigos decidiram ir embora, então me despedi dele.

49

Nesta hora, Felipe chorou copiosamente. Me abraçou e agradeceu-me por tê-lo

escutado, falou-me que nunca havia acontecido. Depois, quis devolver o dinheiro que eu

havia dado, pois disse que havia mentido pra mim. Revelou-me que morava em um Posto de

gasolina vizinho, e não tinha um moto.Pediu desculpas por ter mentido, e não quis aceitar o

dinheiro. Abracei-o e fui embora. Dias depois, encontrei-o no posto onde morava. Ao vê-lo

caminhar em nossa direção, um outro amigo que estava comigo disse-me para eu tomar

cuidado. Eu então disse que oconhecia.

Coloco a experiência para representar a mudança de enxergar as pessoas como

forma de relação, independente do que sejam. Isto dá uma sensação de liberdade, e uma nova

perspectiva para a vida.

O curso de ética-da-vida foi o gatilho de um processo de transformação em

alguém que já vinha em movimento desde a faculdade de Medicina, que continuou com a

entrada para a Medicina de Família. As amarras inconscientes que me atrapalhavam de ser

centrado nas pessoas finalmente afloravam e finalmente podia evitá-las.

O Mestrado participou ativamente de minha formação enquanto médico de

família,um resultado que eu não esperava ao iniciar este processo. Senti então a necessidade

de escrever sobre meus movimentos para tornar-se médico de família (tornar-me não foi

usado propositalmente para colocar esse movimentoem uma perspectiva para além do

sujeito), para compartilhar com jovens Residentes (ou alunos de graduação em saúde)

experiências que julguei importantes para a minha formação. Achei assim a temática de

minha dissertação de mestrado, que tanto buscava em minhas sessões de terapia.

Esses movimentos pelos quais passei devem ser reafirmados e alimentados

sempre, para que não enfraqueçam e não sucumbam diante das muitas resistências que

encontramos.

50

4 O MODELO BIOMÉDICO

4.1 Origens e características

Segundo Franco e Galavote (2010), nos primórdios da civilização, a Medicina não

era considerada um saber científico, e o cuidado era baseado no conhecimento instintivo, na

sensibilidade individual, na busca pelo conforto, o alívio da dor edo sofrimento. Em outras

palavras, neste período,não havia um saber único, soberano, ou seja, um saber que instituía o

critério de verdade sobreo corpo e sobre as práticas de cuidado. O saber era entendido como

algo de posse de todos, e por issoera produzido coletivamente.

O que eraconsiderado como um fator de alívio do sofrimento era transmitido

como um conhecimento sobre si. Deste saber de si, extraía-se também o ato de cuidar. Gestos

singelos a exemplo da mudança de posição sobre o leito, a busca do conforto, eramexpressões

de que, um sujeito que sofre,era ao mesmo tempo objeto e sujeito do cuidado.A Medicina era

praticada desta forma por todos e as experiências de cada um em sua prática eram

comunicadas a outras pessoas e assim os conhecimentos eram passados de geração a geração.

(FRANCO; GALAVOTE, 2010).

No entanto, essa concepção de Medicina mudaria para a forma que a conhecemos

atualmente com a consolidação do paradigma newton-cartesiano nos séculos XVI e XVII, a

partir de estudos nos campos da matemática, da astronomia e da física, que foram a base para

o surgimento da ciência. Nesse paradigma, procurava-se explicar a verdade sobre os

fenômenos de forma mais objetiva, por meio da separação e entendimento de suas partes para

se ter uma explicação sobre o todo.Desta forma, qualquer objeto material poderia ser

conhecido, pois regidos por leis mecânicas que eram aplicáveis a todos. (RODRIGUES;

ANDERSON, 2012).

Para estender estas idéiassobre os objetos ao estudo do ser humano, foi necessário

estabelecer hipoteticamente algumasdualidades, como a disjunção entre razão e emoção, entre

mundos material e espiritual, ser humano e mundo, natureza e cultura e entre a mente e o

corpo. (BOFF 1999 apud RODRIGUES; ANDERSON, 2012).

Adivisão entre mente e corpo foi concebida por Renée Descartes, a figura que

mais teve influênciana medicina e na ciência atual. O filósofo e matemático foi o responsável

por um método e uma escola filosófica pioneira na habilitação privilegiada do sujeito que

conhece (res cogitans) frente ao objeto ou realidade externa a ele que deverá ser conhecida

(res extensa). (BARROS, 2002).

Ainda segundo este autor (2002), no livro“Discurso do Método”, Descartes

formula as regras que fundamentam seu novo enfoque sobre o conhecimento e que persistem

51

hegemônicos no pensamento médico ainda hoje. A primeira destas regras preceitua que não se

deve aceitar como verdade nada que não possa ser identificado com toda evidência, ou seja,

deverão ser cuidadosamente evitados a precipitação e os preconceitos, não ocupando o

julgamento com nada que não se apresente tão claramente à razão que não haja lugar para

nenhuma dúvida.

É correto que, em sua origem, o conceito de ciência abrigava a pretensão de ser

um conhecimento que incluísse uma garantia da própria validade, acedendo ao patamar

máximo do saber, a interminável tarefa do determinar. O discurso científico atravessa e

normatiza de forma crescente a vida social de uma maneira geral e se pretende uma validade

de certeza com seus enunciados. (GADAMER, 2011).

Gadamer continua sua crítica:

A experiência elaborada nas ciências tem agora não apenas a preferência de ser

passível de comprovação e acessível a qualquer um: com base no seu procedimento

metodológico, ela também reivindica ser a única experiência segura e ser o saber

através do qual qualquer experiência seja, primeiramente, legitimada. Aquilo que, da

maneira descrita, sobre o saber da humanidade é reunido da experiência práticae da

tradição fora da ‘ciência’, não apenas deve ser submetido a comprovação pela

ciência, mas, se for aprovado, ele mesmo pertencerá ao campo da análise da ciência.

Em princípio, não há nada que, desse modo, não esteja subordinado à competência

da ciência. (2011, p.10).

Seguindo a linha de pensamento de suas regras, Descartes, em sua obra “Tratado

do homem”, descreveo corpo como uma “[...] máquina, composta de nervos, músculos, veias,

sangue e pele, construída de forma que, mesmo que não houvesse uma alma dentro dele, não

deixaria de ter as mesmas funções” (1634 apud STEWART et al., 2010, p. 36). O corpo

poderia, desta forma, ser comparado a um relógio, que, quando quebrado, poderia ser

desmontado e reconstituído novamente após a parte defeituosa ter sido consertada.

Foram instituídas assim as bases científicas que influenciaram a medicina e deram

sustentação ao modelo biomédico,em que as doenças podem ser classificadas da mesma

forma que os fenômenos naturais. Nesse modelo, a doença é entendida por desequilíbrios de

variáveis biológicas que podem ser medidas. O modelo biomédico exige que a doença, e as

variações comportamentais, sejam explicadas somente com base em processos bioquímicos

ou neurofisiológicos do corpo físico. (ENGEL, 1977 apud BROWNet al., 2010).

No paradigma biomédico, as doenças eram vistas como algo independente da

pessoa. Se dividiam em três grupos: mentais, físicas e psicossomáticas. Somente nestas

últimas, a mente parecia desempenhar algum papel na origem das doenças do corpo. A tarefa

do médico era diagnosticar as doenças e descobrir seu agente causal específico, prescrevendo

um medicamento que o anulasse.

52

O quadro a seguir reúne as principais características desse modelo:

Quadro 1 - Principais características do Modelos Biomédico

Doenças

Classificadas da mesma forma que fenômenos naturais

Interpretadas como independentes da pessoa

Divididas entre Físicas, Mentais e Psicossomáticas

Existência de um agente causal para cada uma delas

Tarefas do Médico Diagnosticar doenças

Prescrever remédios para seus agentes causais

Relação Médico-Paciente Distanciada. Instrução é não se envolver

Método Clínico Diagnóstico Diferencial ou Convencional

Fonte: MCWHINNEY; FREEMAN(2010)

4.2Método clínico convencional

No modelo biomédico, o médico utiliza como ferramenta intelectual um método

clínico que proporciona a aferição das variações somáticas, chamado também de método de

diagnóstico diferencial ou método clínico convencional. (STEWART et al., 2010).

O desenvolvimento deste método foi iniciado por Thomas Sydenham, o primeiro

médico moderno a usar a observação sistemática da pessoa, classificando as doenças em

categorias da mesma forma que espécimes botânicos e procurando um remédio para cada uma

delas.Seu método consistia em observar e registrar as alterações que ocorriam com o paciente

à beira do leito.

Acreditava que as doenças estavam subordinadas a leis que faziam com que elas

pudessem ser aplicáveis a outras pessoas.A grande novidade desenvolvida por esse médico foi

o fato de correlacionar as categorias de doenças com seu curso e desfecho, criando assim um

valor preditivo para elas. Desta forma, descobriu doenças como gota, cólera, sarampo,

escarlatina, varíola e disenteria. (STEWART et al., 2010; MCWHINNEY; FREEMAN,

2010).

Depois de Sydenham, Sauvages de Montpellier, médico e botânico, assumiu o

trabalho de classificar doenças de acordo com classe, ordem e gênero, do mesmo modo que os

biólogos catalogavam plantas e animais. Ele teve forte influência sobre o sueco Carl von

Linne, também médico e botânico, responsável pelo sistema binário de classificação botânica.

Entretanto, os sucessores de Sydenham elaboraram classificações que tinham pouco valor

prático, pois elas não eram relacionadas com o curso e o desfecho da doença (STEWART et

al., 2010).

53

Para Feinstein, essas classificações eram catálogos não relacionados de

manifestações clínicas que não tinham utilidade na prática médica, pois não apontavam

qualquer prognóstico.(1967 apud MCWHINNEY; FREEMAN, 2010)

Cem anos depois da morte de Sydenham, o método clínico convencional sofreu

grande influência da escola de clínicos patologistas franceses, que passaram a direcionar sua

atenção para o exame físico da pessoa e puderam comparar as anotações e descrições dos

sinais e sintomas das doenças com os achados anátomo-patológicos em cadáveres. Laennec

foi o grande nome desta escola e permitiu, com a invenção do estetoscópio, que pela primeira

vez osmédicos usassem instrumentos para examinar as pessoas. (STEWART et al., 2010).

Ainda segundo estes autores (2010), finalmente, a medicina tinha um sistema de

classificação baseado na correlação entre sinais e sintomas, e a aparência dos órgãos e tecidos

após a morte, o que conferiu grande valor preditivo a esse método clínico, que recebeu

contribuições importantes quando Pasteur e Koch mostraram que algumas doenças tinham um

agente causal específico. O método clínico baseado nesse sistema desenvolveu-se

gradativamente durante o século XIX até que, na década de 70 deste século, tomou a forma

como atualmente o conhecemos.

Com seu poder preditivo e inferencial, o novo método clínico foi muito bem

sucedido. De fato, a aplicação de novas tecnologias na medicina dependia desse

método, que tinha, também, outros pontos fortes, como o fato de oferecer uma clara

injunção aos médicos: identificar a doença da pessoa ou descartar patologias

orgânicas. Isso dividiu um processo complexo em uma série de passos facilmente

memorizáveis e forneceu critérios de confirmação, pois o patologista podia dizer ao

clínico se ele estava certo ou errado. (STEWART et al., 2010, p. 39).

O objetivo do método era fornecer aos médicos uma estrutura com a qual podiam

trabalhar racional e metodicamente em direção à sua meta, a formulação de um diagnóstico

em termos de patologia orgânica. (TAIT, 1979 apud MCWHINNEY; FREEMAN, 2010).

Nessa lógica, o médico dirige o relato da pessoa e a interrompe com frequência

fazendo perguntas à semelhança de uma sabatina. […] Em seguida, procede a um

exame físico para identificar sinais que denunciem a existência de uma patologia

subjacente. Desse modo, formula uma hipótese diagnóstica. Por fim, para confirmar

essa hipótese e estabelecer um diagnóstico de certeza, centrado em bases

supostamente objetivas, recorre a um leque cada vez mais amplo de exames

complementares. No momento seguinte, é estabelecido um plano terapêutico

constando prescrições, normas, regras, cuidados, procedimentos, cirurgias e

fármacos. (RODRIGUES, 1999 apud RODRIGUES; ANDERSON, 2012, p. 61).

54

4.2.1Problemas do método clínico convencional

É importante fazermos aqui uma ponderação de que Descartes não foi o

responsável por todos os males causados pelo modelo Biomédico. Seu método de chegar ao

conhecimento, apesar de reducionista como já foi comentado, permitiu à Medicina

importantes avanços no entendimento técnico sobre as doenças, o que trouxe também

benefícios a muitas pessoas. Devemos ter claro que o fato da apropriação da Medicina pelo

Biopoder foi decisiva para que os médicos ficassem ainda mais distanciados das pessoas.

No entanto, a fragilidade que caracterizao método clínico de diagnóstico

diferencial é identificada na própria lógica que o estrutura: a da necessidade de retirar um

fenômeno do próprio ecossistema ao qual pertence para que, então, ele possa ser analisado em

si mesmo. (RODRIGUES; ANDERSON, 2012).Este método tinha, portanto, graves

problemas, pois não deixavalugar dentro de sua estrutura para as dimensões sociais,

psicológicas e comportamentais da doença. (ENGEL, 1977 apud STEWART et al., p. 26).

Para o objetivo de diagnosticar, a atenção clínica do médico é dirigida e torna-se

seletiva. (TAIT, 1979 apud MCWHINNEY; FREEMAN, 2010). Não há interesse no que o

paciente diz, mas no que ele tem. O clínico não escuta relatos, mas ouve informações. Não

consegue perceber que o relato já seja o próprio sintoma e não somente uma via para levar ao

diagnóstico. O clínico não percebe que a doença esteja presente no discurso, assim como

poderia estar no coração ou no rim. (RODRIGUES; ANDERSON, 2012).O médico procura

então excluir da fala do paciente aquilo que não é importante ou que não possa ser encaixado

nas categorias probabilísticas que ele precisa para aproximar-se de um diagnóstico.

Entretanto, como o discurso do paciente é puro, a tarefa de perguntas e respostas

para categorização da fala pode tornar-se uma verdadeira guerra entre o paciente que deseja

falar sobre uma dor e seu significado para ele, por exemplo, e o médico, interessado em saber

há quanto tempo ela ocorre, se irradia-se para alguma outra região do corpo ou se ela se dá em

“pontada”, em “peso”, ou em “barra”.

Ian McWhinney (2010, p. 141) ilustra isto por meio de um diálogo que tantas

vezespresenciei na prática dos alunos como preceptor:

Pessoa: E seguidamente me sinto como se fosse chorar.

Médico: A dor aparece em algum outro lugar?

Os diferentes objetivos entre médico e paciente foram exemplificados por

Starfield et al. (1981), ao mostrar que médicos e pacientes não identificam o mesmo problema

principal em 50% das consultas. Outro dado interessante é revelado por Beckman et al., que

mostra que 65% dos pacientes são interrompidos pelos médicos depois de 15 segundos após

55

terem começado a explicar o seu problema (1984 apud CAPRARA; RODRIGUES, 2004).

Penso que isto refletea ansiedade do médico em “pular” a parte de fala livre inicial

da consulta para a de perguntas fechadas.As pesquisas mostram que o médico deveria deixar a

pessoa falar por aproximadamente dois a cinco minutos antes de interrompê-la. Em minha

prática, inicialmente também interrompia precipitadamente o diálogo e o direcionava para o

corpo. Depois de algum tempo, passei a falar somente depois de ter escutado o suficiente para

ter identificado o motivoque levou a pessoa a buscar atendimento.

Balinttambém criticou o método de perguntas e respostas: “Se você faz perguntas,

irá receber respostas, e nada mais.” (1964 apud MCWHINNEY; FREEMAN, 2010, p. 141).

Terkel ironizou o método ao dizer que: “A técnica de perguntas e respostas pode ter certo

valor para determinar quais são seus detergentes, pasta de dentes ou desodorantes favoritos,

mas não para o descobrimento de homens e mulheres.” (1975 apud MCWHINNEY;

FREEMAN, 2010, p. 139).

Um amigo manifestou sua preocupação com o assunto, temendo que em um

futuro breve as consultas médicas seriam realizadas por telefone com um médico virtual,

semelhante ao que fazem as companhias telefônicas ao colocarem gravações de computador

para conversar com o cliente. Pensamos então em um possível diálogo. “Se você tem dor de

cabeça, tecle 1. Se está apresentando diarréia, tecle 2...”, poderia ser a mensagem inicial do

“médico”. Em o paciente optando pela opção 2, o diálogo poderia continuar: “Se você tem

diarréia há menos de duas semanas, tecle 1. Se entre duas e quatro semanas, tecle 2. Se há

mais de quatro semanas, tecle 3”). A depender da escolha da pessoa, o“médico”

entãodirecionaria seu pensamento para causas de diarréia aguda, subaguda e crônica.

Questionei-o se este modelo já não estaria em voga, protagonizado por médicos “humanos”.

Stewart et al. (2010, p. 43) descreveram esse distanciamento que me fez sofrer

durante toda a faculdade, principalmente no Internato, da seguinte forma:

O ensinamento sobre o relacionamento entre médico e pessoa costumava ser “não se

envolva”. De certa forma, o medo das emoções não era infundado. Envolver-se ao

nível de emoções não examinadas é potencialmente prejudicial. Entretanto, o que o

ensinamento não dizia era que o envolvimento é necessário se quisermos curar; além

de sermos técnicos competentes. Há formas certas e erradas de se envolver, e os

ensinamentos não ofereciam diretrizes para encontrar a forma correta. Eles eram

profundamente equivocados ao sugerir que não se pode encontrar o sofrimento a ao

mesmo tempo não ser, de algum modo, afetado por ele. Nossa resposta emocional

pode ser reprimida, mas isso tem um preço muito alto, pois a emoção contida toma

formas capazes de destruir relacionamentos.

As insatisfações com médicos formados nessa tradiçãolevou muitas pessoas a

escreverem sobre sua condição de estarem doentes e de como se sentiam ao serem cuidadas

56

sob a perspectiva do modelo biomédico, um gênero literário que ficou conhecido por

patografia. Toombs (1992 apud STEWART et al., 2010, p. 41) escreveu:

a pessoa se sente reduzida a um organismo biológico defeituoso. Nenhum médico

me perguntou como é viver com esclerose múltipla ou vivenciar uma das

deficiências decorrentes da doença... Nenhum neurologista jamais me perguntou se

eu tinha medo, ou... nem mesmo se eu estava preocupado com o futuro.

Stetten (1981 apud MCWHINNEY; FREEMAN, 2010, p. 106) escreveu a

respeito de sua experiência de perda progressiva da visão causada por degeneração macular:

Ao longo de todos esses anos e apesar de muitos encontros com profissionais

capazes e experientes, qualquer oftalmologista em momento algum sugeriu qualquer

aparelho que pudesse me ajudar. Nenhum oftalmologista mencionou qualquer das

formas para fazer parar a deterioração de minha qualidade de vida. Felizmente,

descobri uma série de meios para ajudar a mim mesmo, e o objetivo desse artigo é

chamar atenção do mundo da oftalmologia para alguns desses aparelhos e, de forma

cortês mas firme, lamentar o que parece ser a atitude geral dos oftalmologistas:

‘estamos interessados na visão, mas temos pouco interesse na cegueira’.

McWhinney e Freeman (2010, p. 106, grifo nosso) comentaram seu relato:

“Parece que para esses oftalmologistas a degeneração macular é uma condição da retina, não

uma experiência humana.”

Arthur Frank teve câncer testicular aos 40 anos, e escreveu:

Se eu ficasse gravemente doente, os médicos, mesmo sobrecarregados de trabalho,

reconheceriam, de alguma forma, o que estava acontecendo comigo. Não sabia que

forma de reconhecimento seria, mas acreditava que isso aconteceria. O que vivenciei

foi exatamente o oposto. Quanto mais crítico era o meu diagnóstico, mais relutantes

eram os médicos em falar comigo. Tive dificuldade em fazê-los manter contato

visual comigo; a maioria apenas vinha ver minha doença. Essa ‘coisa’ dentro do

corpo era seu campo de investigação; o ‘eu’ parecia existir além do horizonte de

seu interesse […] depois de cinco anos lidando com profissionais da medicina no

contexto de uma experiência com a doença crítica, em contraste aos problemas

rotineiros que eu tivera no passado, tenho que aceitar os seus limites, mesmo que

nunca tenha me sentido à vontade com tais limites. Talvez a medicina deva se

reformar e aprender a compartilhar a fala sobre a experiência com a doença com as

pessoas em vez de impor a fala das doenças às pessoas. Ou talvez os médicos e

enfermeiros devessem simplesmente fazer o que já fazem tão bem: tratar os colapsos

e abandonar a pretensão de fazer mais do que isso. (1991 apud MCWHINNEY;

FREEMAN, 2010, p. 105, grifo nosso)

Reynold Price falou sobre seus encontros com médicos no contexto da

experiência com um tumor de medula e a consequente paraplegia:

[…] com certeza, deve-se esperar que um médico compartilhe e ofereça, em todos os

momentos apropriados, a habilidade que esperamos de um professor, de um

bombeiro, de um padre, de um policial, do entregador de leite do bairro ou do

administrador do canil municipal. Essas são apenas habilidades de simpatia humana,

as habilidades de deixar que outra criatura saiba que a sua preocupação é

reconhecida e valorizada; sendo ou não possível conseguir uma cura, todos os

esforços possíveis serão feitos para alcançar aquela meta ou para aliviar a agonia

incurável em direção a seu fim bem vindo. Tais habilidades não são raras no mundo

natural. O que, além do anseio em usar e aperfeiçoar tais habilidades em relação a

outros seres humanos necessitados, poderá levar um homem ou mulher para a

medicina? O que, além da falha completa em reconhecer as próprias emoções

57

atrofiadas antes de esbarrar no tecido vivo? Isso além da avidez por dinheiro e

poder? E tendo esbarrado em outras criaturas, como esse indivíduo desajeitado pode

não tentar mudar? Será ele ou ela legalmente cego também? Talvez tenhamos o

direito de exigir que tal profissional tão cheio de defeitos coloque um alerta na porta

de seu consultório ou em seu jaleco engomado, como em tantas outras apostas

duvidosas: Técnico especialista. Resultados limitados. A qualidade de sua vida e sua

morte são problemas seus. (1991 apud MCWHINNEY; FREEMAN, 2010, p. 105,

grifo do autor)

Para Gadamer,

[…] nenhuma pessoa, que se veja apenas como um ‘caso’, pode ser realmente

tratada e nenhum médico pode ajudar um ser humano a superar uma enfermidade

grave ou leve, com a qual ele tem de lidar, se esse médico empregar apenas o ser-

capaz-de-fazer rotineiro de sua especialidade. Em ambas as perspectivas somos

parceiros de um mundo-da-vida (em alemão, Lebenswelt) que nos carrega. E a

tarefa, colocada a todos nós como seres humanos, é, a saber, a de encontrarmos

nosso caminho nesse mundo-da-vida e aceitarmos nossas verdadeiras

condicionalidades. (2011, p. 108).

Percebe-se que o que está aqui em jogo para Gadamer é uma tarefa que remeta a

uma totalidade, uma tarefa unificadora, muito embora operacionalizável de tantas formas

quanto seres-aí hajam, já que se trata de encontrar caminhos para existir, para domiciliar-se

no mundo. Essa totalidade permanence como pano de fundo em todo momento, ecoando em

sua voz seja quando fala da ciência moderna, da experiência do adoecer, do saber da

medicina, da capacidade de destruição que se possui na contemporaneidade ou do que ocorre

no espaço da clínica. De fato, para ele, nada está solto, desconectado, e o tratamento

dispensado ao corpo adoecido é também um movimento que provoca fluxos éticos, politicos,

psiciológicos, religiosos, etc.

Inaugurava-se assim a “clínica do olhar”, como fonte de saber e conhecimento

validado pelo critério de verdade que surge com o conhecimento do corpo anátomo-clínico,

que surgiu do estudo e conhecimento sobre a geografia dos órgãos, mas impede que se

enxergue o sujeito que habita o corpo, perdendo sua complexidade, profundidade, e outras

dimensões da vida que pulsa neste corpo, e se inscrevem na sua subjetividade.O

aprisionamentoao conceito de que o corpo fala pela sua geografia e estrutura dos órgãos,

impõe como tarefa à clinica decifrar e atuar sobre a sua morfologia. (FRANCO;

GALAVOTE, 2010).

E de que olhar se está falando? Notadamente o ‘olhar retina’, […] o que enxerga as

estruturas, o plano do visível, um olhar raso, incompleto sobre o próprio corpo, um

simulacro. Isto porque não enxerga o sujeito que o habita. (ROLNIK, 2006 apud

FRANCO; GALAVOTE, 2010, p.7).

Esse distanciamento e sentimento de “objeto defeituoso” levou muitos pacientes

insatisfeitos a procurar alternativas, conforme descreve Boom et al.:

As limitações do modelo médico convencional levaram muitas pessoas a buscar

ajuda na medicina alternativa ou complementar e nas medicações populares, para

58

que todas as suas necessidades de assistência médica fossem atendidas. Algumas

sentem que seus médicos não crêem no efeito desses tratamentos ou se opõem a eles

e relutam em lhes revelar que estão fazendo uso da medicina complementar ou

alternativa, mesmo correndo o risco de efeitos adversos. (1999 apud STEWART et

al., 2010, p. 30).

Entendo a faculdade como um período de metamorfose do estudante, que chega

com suas experiências humanas no início, sofre um processo de racionalização para

aprendizagemde um método clínicode perguntas de acesso ao corpo e, no fim,o aluno

transforma-seno método, deixando suas experiências humanas de lado.O aluno passa então a

reproduzir o método em todos os seus contatos com os pacientes, como se condicionado a

diagnosticar, semelhante ao que fez Chaplin na clássica cena de “Tempos Modernos”

(1936),ao apertar os botões do vestido da senhora após confundi-los com os parafusos da

esteira que não parava.

Muitos alunos na faculdade conseguem se adaptar a esse modelo e seguem a

tarefa à risca. Inúmeras foram as vezes que ouvi histórias clínicas relatadas por alunos no

Posto de Saúde que bem poderiam ser a descrição de uma planta ou objeto, pois destituídas de

qualquer signo que remetesse a alguma característica humana.Provavelmente isto tem ligação

com o fato de que os botânicos, conforme vimos, tiveram grande influência no

desenvolvimento do método clínico e classificação das doenças.

Médicos sensíveis ficam insatisfeitos com o referido modelo, não propriamente

porque o mesmo não responde aos questionamentos clínicos, mas porquese dão conta das

reações psicológicas dos seus pacientes e dos problemas socioeconômicos envolvidos na

doença, mas não vêem como incorporar essas informações na formulação diagnóstica e no

programa terapêutico. (BENNET, 1987 apud BARROS, 2002). A capacidade da medicina de

família conseguir juntar esses aspectos é uma das características da especialidade com as

quais mais me identifico.

4.3Flexner e suas contribuições para a consolidação do Modelo Biomédico

Após o surgimento do modelo biomédico, Abraham Flexner foi uma figura

importante na disseminação e consolidação desse modelo na Medicina, ao praticamentetornar

o Ensino Médico nos Estados Unidos e Canadá exclusivamente baseado no método científico,

o que viria posteriormente influenciar a educação médica em muitos países, incluindo o

Brasil.

Abraham Flexner nasceu em 1866 em Lousville, nos Estados Unidos. Filho de

pais judeus alemães, entrou na Universidade John´s Hopkins aos 17 anos, graduando-se

ironicamente aos 19 em Artes e Humanidades. Flexner teve grande influência do modelo

59

alemão de ensino médico, baseado na pesquisa experimental e em laboratório que ganhava

força na Europa, em detrimento do antes pioneiro modelo de ensino médico francês,

fundamentado em pesquisas clínicas e na observação de pacientes à beira do

leito.(PAGLIOSA; DA ROS, 2008).

Completou seus estudos de pós-graduação em Harvard e depois em Berlim, para

onde mudou-se com a família em 1906. No ano seguinte, escreveu o livro The American

college: a criticism, onde criticou o sistema educativo norte-americano. Após isso, foi

convidado pela Carnegie Foundation (EUA) para avaliar os cursos de medicina dos EUA e

Canadá, em um contexto em que as escolas tinham pouca uniformidade em seu

funcionamento, com currículos diferentes e tempos de graduação diversos, e não era

necessária a concessão do Estado para abertura de cursos de Medicina, nem de que esses

fossem ligados a Universidades. Nesta época, eram também comuns escolas médicas com

base em linhas curativas fitoterápicas, que tinham inclusive grande aceitação na sociedade.

Paralelamente, ganhavam força, devido ao crescimento das pesquisas experimentais, as

indústrias farmacêuticas, que passaram a pressionar os Governos e Universidades a

implementarem a “medicina científica” em seus currículos. (PAGLIOSA; DA ROS, 2008).

Flexner visitou 155 escolas médicas nos EUA e Canadá em 180 dias, e publicou

seu célebre relatório em 1910, intitulado de Medical Education in the United States and

Canadá, o que culminou, algum tempo depois, no fechamento de algumas escolas de

medicina americanas, dentre elas as faculdades cujas bases epistemológicas apoiavam-se na

fitoterapia, assim como no descredenciamento de todas as escolas médicas para negros.Apesar

de Flexner criticar as escolas médicas que visavam o lucro, e defender que elas deviam servir ao

interesse público, ele via a educação médica como destinada a pessoas de elite, com o aproveitamento

daqueles“mais capazes, inteligentes, aplicados e dignos”. (KEMP; EDLER, 2004 apud PAGLIOSA;

DA ROS, 2008, p. 496). Supostamente vieram daí as razões de Flexner ter sido acusado de ter

preconceito quanto a pobres, negros e mulheres. (TOMEY, 2002 apud PAGLIOSA; DA ROS, 2008).

A principal crítica à elaboração desse extenso relatório foi a de que 155 escolas

médicas foram visitadas em 180 dias apenas o que, contando-se com finais de semana e

períodos de deslocamento, restava praticamente um dia para cada Instituição. (PAGLIOSA;

DA ROS, 2008). Outro problema era que Flexner não tinha um modelo validado de avaliação

e chegou a escrever, em sua autobiografia, que “Em umas poucas horas, uma estimativa

confiável pôde ser feita a respeito das possibilidades de ensinar medicina moderna em quase

todas as 155 escolas que visitei”. (HIATTet al., 1999 apud PAGLIOSA; DA ROS, 2008, p.

494, grifo do autor).

60

O relatório criticava a má qualidade de professores e escolas médicas desses

países, os currículos e as instalações inadequadas de algumas delas e a falta de uma

abordagem científica de preparação para a profissão médica, o que contrastava com o sistema

de educação médica da Alemanha, centrado na Universidade. (IRBY, 2006).

O resultado do que ficou conhecido como “relatório Flexner”, foi a uniformização

do ensino médico nas escolas americanas para o tempo de 4 anos, com metade para o ciclo

básico, realizado em laboratório, e a outra para o ciclo clínico, realizado em ambiente

hospitalar, pois ali se encontra o local priviliegiado para estudar as doenças. Para ele, “O

estudo da medicina deve ser centrado na doença de forma individual e concreta.” (FLEXNER

apud PAGLIOSA; DA ROS, 2008, p. 496).

A partir de então,

Os hospitais se transforma[ra]m na principal instituição de transmissão do

conhecimento médico durante todo o século XX. Às faculdades resta[va] o ensino

de laboratório nas áreas básicas (anatomia, fisiologia, patologia) e a parte teórica das

especialidades. As posturas eram assumidamente positivistas, apontando como único

conhecimento seguro o científico, mediante a observação e a experimentação. A

ciência substitui a arte. O método científico, assumido como a forma legítima de

produzir conhecimento, exprime o processo de racionalização que atinge o Ocidente.

E a medicina ilustra claramente este processo. (LUZ, 1993 apud PAGLIOSA; DA

ROS, 2008, p. 496) […] a ênfase no modelo biomédico, centrado na doença e no

hospital, conduziu os programas educacionais médicos a uma visão reducionista.

(PAGLIOSA; DA ROS, 2008, p. 496).

Apesar da importância de Flexner para a educação médica, Pagliosa e Da Ros

(2008) acreditam que tenha sido dado crédito em demasia para ele, com a argumentação de

que ele somente legitimou um processo em curso que não tinha mais volta, o da introdução da

“medicina científica”, apoiada no Positivismo, nas Universidades, que ganhava força a

medida que desenvolvia-se a indústria farmacêutica. Seu reconhecimento deu-se

principalmente pela exigência de excelência na formação médica.

4.4Repercussões da divisão mente e corpo para a pessoa

A divisão entre mente e corpo proposta pelo modelo biomédico traduz-se na

prática médica da seguinte forma: de um lado, as especialidades que cuidam do corpo, como a

Medicina Interna e a Cirurgia.Do outro, as que cuidam da mente, como a Psiquiatria e a

Psicologia Médica. “Na prática clínica, os médicos internistas e os cirurgiões não avaliam, em

geral, as emoções; os psiquiatras não avaliam o corpo”. (MCWHINNEY; FREEMAN, 2010,

p. 30).

Em um sistema de saúde em que a pessoa não deve ir primeiro a um médico de

família como no Brasil,ela é consequentemente dividida. Primeiramente, vai a especialistas

focais. Assim, as investigações são voltadas inicialmente ao corpo. Se alguma alteração

61

patológica for identificada, tenta-se classificá-la em doença e é instituído tratamento,

encerrando-se o caso e o contato com o médico. Somente se nada for encontrado no corpo em

termos de uma patologia orgânica, será considerada a possibilidade de influência de outros

aspectos (sociais, psicológicos, etc.) no adoecimento.

Este seria o momento em que o médico poderia dizer a ela: “não achamos nada

em seu corpo, seu problema é psicológico”.Nesse momento, poderia pensar a pessoa: “como

ele disse que não tenho nada em meu corpo, se me sinto doente?” A mesma seria então

referenciada ao especialista que ocupa-se da parte psicológica,o psiquiatra. O método de

investigação das emoções da pessoa pela psiquiatria, entretanto, é o de perguntas e respostas,

tal e qual o do corpo. O objetivo também é o diagnóstico em termos de patologia para

instituição de tratamento, muitas vezes com drogas que irão calar a angústia da pessoa, que

por muitas vezes precisava ser escutada.

No Brasil, esta é a tônica nos Postos de Saúde que não contam com médicos de

família de formação, que encaminham muitos pacientes para especialistas focais quando

deveriam eles mesmos cuidar daquelas pessoas.No sistema privado isto também ocorre.O

paciente dispõe de um catálogo de especialistas focais para dirigir-se dependendo de sua

queixa.Cria-se assim um sistema de “fatiamento” em que cada médico cuida de uma parte da

pessoa, propondo uma intervenção sem comunicar-se entre si. Portanto, primeiro, investiga-se

o corpo para só depois, caso a investida seja em vão, buscar-se outros fatores que influenciam

no adoecimento.

Pergunto-me a quais investigações eu poderia ter sido submetido, caso minha falta

de ar que sentia durante o Internato fôsse interpretada por um pneumologista com lentes

biomédicas. A que exames eu poderia ter-me submetido? Raio-x? Espirometria? Não seriam

exames desnecessários e até mesmo perigosos? Que nomenclatura de doença um

pneumologista tenderia a buscar em suas bases de referência, por natureza generalizadoras,

para tentar explicar minha experiência única de doença?

Uma pessoa conhecida que estava em acompanhamento com reumatologista no

sistema privado, pôdeinfelizmente experienciar o sistema de “fatiamento” acima exposto.

Portadora de artrite reumatóide juvenil refratária a tratamento desde a adolescência, o

acometimento de um dos joelhos causara-lhe um certo grau de limitação, além de dores

fortíssimas que a impediam de dormir e motivavam faltas esporádicas ao trabalho.

Com isso, tinha de fazer uso de altas doses de corticóide, um potente

antiinflamatóriopara conter a dor e desenvolveu, devido ao fármaco, pressão alta, diabetes,

obesidade, esteatose hepática (“gordura no fígado”) e ansiedade. Por conta da outra

62

medicação que utilizava para sua artrite, que baixava-lhe a imunidade, desenvolvia abscessos

constantes no braço, além de resfriados que levavam mais tempo para curar. Por conta da

diabetes,foi encaminhada ao endocrinologista. Devido ao quadro hepático, foi enviadaao

gastroenterologista, que prescrevera-lhe metformina, uma medicação para diminuir a gordura

aculuada no fígado. Por não saber se a ansiedade devia-se ao corticóide, a pessoa ficou

tentada a usar uma medicação ansiolítica, mas felizmente não chegou a fazê-lo.

Em suma, ao passar pela “porta de entrada” da Biomedicina estava com um

problema. Ao sair, estava com sete, o que entrou, mais os seis problemas advindos das

intervenções dos três especialistas.A esse respeito, Gérvas e Pérez (2011) afirmam estar “[…]

demonstrado que quanto maior o número de especialistas que não médicos de família numa

determinada área geográfica, maior a mortalidade.” Como esta pessoa estava sem ninguém

para coordenar sua ida aos vários especialistas e suas intervenções, indiquei-lhe um médico de

família, mas ainda não procurou um. Um psicanalista atento desconfiaria da presença do

significante “eumato” no nome da especialidade médicade seu médico principal.

Diante deste contexto, Francis Peabody (apud SOUZA 2008, p. 47), Professor de

Medicina de Havard no período de 1921 a 1927, escreveu que:

Nunca o público precisou tanto de conselheiros inteligentes e bem treinados quanto

hoje em dia para guiá-lo através do complicado labirinto da medicina moderna. O

extraordinário desenvolvimento da ciência médica, com sua conseqüente diversidade

de especialidades clínicas e as limitações cada vez maiores na delimitação de cada

uma dessas especialidades – na realidade, os muitos fatores que estão criando

especialistas, por si só criam uma nova demanda, não de especialistas com

horizontes estreitos, mas de médicos com muitos horizontes.

A visão do corpo como máquina pode ser também expressada pelo tratamento de

pessoas obesas por meio da cirurgia bariátrica, fato que me preocupa por gostar do tema

alimentar, conforme já escrevi.Esta técnica foi a solução biomédica para umproblema de

saúde pública de grandes proporções, em que a estimativa pela Organização Mundial da

Saúde (OMS)seja de que pelo menos 1 bilhão de pessoas no mundo estejam com excesso de

peso e aproximadamente 300 milhões sejam obesas (HASLAM; JAMES, 2005).

Esse procedimento é indicado para pessoas com Índice de Massa Corpórea (IMC),

calculado pela divisão do peso corporal pela altura elevada ao quadrado, maior que 40 Kg/m2

ou para pessoas com IMC maior que 35 Kg/m2que apresentemtambém outras doenças como

hipertensão arterial, dislipidemia, diabetes tipo 2, apnéia do sono,entre outras(FANDINÕ et

al., 2004).Ele começou a ser desenvolvido pois muitas vezes, dietas nutricionais, tratamentos

farmacológicos e melhoria da qualidade do estilo de vida das pessoas com obesidade, tinham

resultados decepcionantes e recidivas constantes (VALENTE; TERZI, 2012), pois cerca de

63

95% dos pacientes com obesidade mórbida retomavam o ganho de peso igualando ou

superando os níveis iniciais em até dois anos com estas medidas. (ALMEIDA; ZANATTA;

REZENDE, 2012).

Almeida e Zanatta (2012) definem a obesidade como um problema que tem

influências de várias causas, comogenética, ausência de atividades físicas, além

decomponentes psicológicos e sociais. A visão biomédica do corpo máquina desconsidera a

múltipla etiologia do problema, reduzindo-o ao corpo, raciocinando que a redução do espaço

do estômago fará com que pessoas obesas comam menos, tal qual fizeram os ratos

previamente submetidos ao procedimento.Parece-me queo maior objetivo da biomedicina de

hoje seja descobrir como transformar o homem em rato.

Elaelege o fatodessas pessoas terem estômagos aumentados como seu ponto de

intervenção. Ignora, entretanto,uma experiência humana, cultural e social comum entre essas

pessoas:“comer”. Neste caso,“comer muito”.Para a psicanálise, cada um teria suas razões para

o sintoma “comer muito”.A cirurgia bariátricaignoraisto e opera um sintoma cuja origem não

estaria somente no corpo, realizando uma cirurgia de ablação simbólico-subjetiva no sujeito

que apresenta a experiência humana “comer muito.”

A indicação do procedimento com base em um número (IMC) também mostra-se

perigosa.Em uma sociedade em que a biomedicina garante seu sucesso pelas soluções

mágicas que oferece, isso pode servir de estímulo às pessoas a, em vez de emagrecerem por

vias naturais, aumentarem seu IMC para preencherem os critérios da cirurgia. Isto aconteceu

com dois amigos,sendo que um deles foi orientado por seu médico a iniciar a dieta de preparo

para a cirurgia, que deve reduzir 10% do peso corporal, somentedepois da autorização desta

pelo auditor do plano de saúde!

Após a cirurgia, cria-se uma situação artificial que obriga a pessoaauma grande

restrição alimentar. Volta-se a uma experiência humana para emagrecer: dieta.Mas a pessoa

não poderia ter optado por essa escolha sem ter de colocar-se nessa situação?Agora deve

submeter-se a uma rigorosa dieta, que dará resultados rápidos. Passará oprimeiro mês após o

procedimento a ingerir a cada dez minutos pequenas quantidades de líquidos em copinhos

plásticos de café, quinze horas por dia, alternando água, água de côco e isotônicos. Isso

condicionará seu cérebro a habituar-se à ingesta de pequenas quantidades de comida, em um

procedimento comportamental, método desenvolvido pelo russo Pavlov com a célebre

experiência dos cachorros que aumentavam a secreção de suco gástrico após ouvirem tocar o

sino que precedia a alimentação.

Deve-se lembrartambém que para engordarmos nãonecessitamos deuma cirurgia

64

de aumentodo estômago. Se para a biomedicina emagrecer é meramente uma questão de

redução do espaço gástrico, como dará conta de casos em que a pessoa, mesmo após a

cirurgia, ignora o tamanho reduzido de seu estômago ao optar por comer tal e qual fazia antes,

optando por vomitar em seguida, como foi o caso de um familiar? E o que a biomedicina

poderá fazer pelos que não elaboraram a experiência humana “comer muito”, e a deslocam

paraa ingestão de bebidas alcóolicas em grande quantidade, conforme a situação de outro

familiar que me abordou para perguntar o que deveria fazer por estar há quarenta e três dias

seguidos em uso de aguardente?

Um estudo que acompanhou seis pessoas que submeteram-se ao procedimento,

com o objetivo de conhecer as repercussões do mesmo para sua saúde, reflete em parte estas

experiências que presenciei:

todos os [seis] sujeitos criaram limitações psicossociais significativas em

decorrência da insegurança e dos receios quanto aos resultados da cirurgia, o que

provocou exacerbação de algumas características de seu estado anterior.A questão é

ainda a compulsão por comida. Com a cirurgia o indivíduo se sente impedido de

comer como antes, mas continua compulsivo, o que faz com que desenvolva outros

distúrbios afins, como forma de compensação. […] este estudo também evidenciou

que uma parcela de ex-obesos mórbidos, depois de emagrecer com a cirurgia

bariátrica desenvolve depressão, bulimia, anorexia, dependência de álcool e outras

drogas, compulsões por jogos, compras ou sexo. Um dos motivos seria porque a

redução do estômago não permite que eles descontem mais nos alimentos as

carências afetivas, entre outras razões inconscientes que os levaram a engordar.

Por isso, é comum procurarem novas válvulas de escape. (MARCELINO;

PATRÍCIO, 2011, p. 4773, grifo nosso).

O mesmo estudo mostrou que a perda rápida de peso também trouxe problemas a

essas pessoas, pela

recorrência da baixa autoestima em relação à imagem corporal, agora atribuída aos

resultados provenientes da perda ponderal acelerada, a qual confere ao corpo

grandes excessos de pele na forma de flacidez localizada. Confirmando a força do

fator estético que dirigiu essa população para se submeter à cirurgia, a insatisfação

com a nova aparência física gerou a necessidade de corrigir as “imperfeições” por

meio da cirurgia plástica. (MARCELINO; PATRÍCIO, 2011, p. 4773).

Além desses problemas, há também o risco de suicídio, que não é incomum no

periodo pós-cirurgia (MARCELINO; PATRÍCIO, 2011).Estasolução biomédica perigosa que

ultrapassa a experiência humana individual, ignora também outro problema, o do problema do

excesso de consumo de alimentos no mundo, conforme mostra o curta-metragem francês La

surconsommation1, que mostra a relação da cirurgia bariátrica e a cadeia de produção

capitalista. Interpretei como se ela fôsse um instrumento para tornar o indivíduo novamente

apto a consumir. Recomendo a visualização deste vídeo de aproximadamente seis minutos

1Link para o vídeo: http://player.vimeo.com/video/57126054#at=0

65

para a elaboração do que foi discutido até aqui, e para preparar o sentimento do leitor para o

que será mostrado no próximo tópico.

4.5Biomedicina, excesso de prevenção e produção de doenças

Além dos problemas apontados anteriormente, mostraremos agora mais alguns

estudos,casos e opiniõesque sugerem os riscos que os médicos ou as recomendações

biomédicas podem oferecer às pessoas.

A expectativa geral é a de que greves de médicos conduziriam a declínios no

cuidado e aumento na mortalidade da população. No entanto, vários estudos têm sugerido

que, quando os médicos fazem greve, as taxas de mortalidade paradoxalmente caem. Um

artigo de revisão sistemática da literatura abordando greves de médicos e sua influência sobre

a mortalidade identificou sete artigos que avaliavam alterações de mortalidade durante cinco

greves no mundo, sendo duas em Israel, e uma na Espanha, Croácia e Estados Unidos. Em

quatro dos sete artigos, os dados encontrados mostraram que a mortalidade caiu em

consequência da greve dos médicos. (CUNNINGHAMet al., 2008).

Juan Gérvas, médico de família espanhol, dedica sua produção acadêmica ao

combate aos efeitos nocivos causados pelo excesso de prevenção, termo que nomeou de

“pornoprevenção”.Ele (2012) afirma que nos Estados Unidos, o excesso de cuidados do

sistema de saúde causa a morte de 225.000 pessoas por ano.

Gérvas (2013) alerta que na Espanha e em outros países desenvolvidos há uma

febre pelo diagnóstico de câncer de mama, e que em 2007, 15.000 novos casos foram

diagnosticados e em 2011, o número subiu para 22.000. Esse fenômeno está associado à

triagem (screening) com mamografia, que promove a esperança de facilitar a cura mediante o

diagnóstico precoce, o que infelizmente nãotrouxe uma diminuição proporcional de mortes

por câncer de mama.

Na verdade, o rastreio com mamografia aumenta o número de casos de câncer

porque diagnostica muitos que desapareceriam espontaneamente, não cresceriam, ou não

dariam metástases, de forma que um desserviço é feito ao diagnosticá-los. Na Catalunha, estes

diagnósticos desnecessários chegariam a 47% de todos os casos de câncer de mama

diagnosticados. (GÉRVAS, 2013).

Isso quer dizer que muitos cânceres de mama diagnosticados e tratados não são

perigosos à saúde (cânceres histológicos), por não se tratarem de cânceres biológicos, que

oferecem risco de vida. Em média, estima-se em mais de 30% o sobrediagnóstico de câncer

de mama por meio de mamografias. Isto representa, por exemplo, que nos Estados Unidos

1.300.000 mulheres tornaram-se falsas sobreviventes de câncer de mama nos últimos 30 anos.

66

(GÉRVAS, 2013).

Essas falsas sobreviventes submetem-se ao sofrimento de todo o tratamento e

acompanhamento sem necessidade. Portanto, o rastreio com mamografia produz um falso

aumento na sobrevida após o diagnóstico de câncer em cinco anos, pois muitos casos são de

cânceres que nunca teriam ameaçado a vida. Ao contrário, produzem alguns anos terríveis,

além do peso para a mulher de ter tido câncer. A triagem com mamografia não reduz a

mortalidade e nem prolonga a vida, e reduz desnecessariamente a sua qualidade. (GÉRVAS,

2013).

Isso produz uma perigosa reação em cadeia, pois rotula as familiares dessas

pacientes como sendo pacientes de risco, o que também é falso. Para ser considerada como

tendo alto risco para desenvolver câncer de mama, uma mulher teria de ter duas familiares

diretas (mãe, filha ou irmã) com o câncer, sendo que uma delasdeveria ter desenvolvido a

doença antes dos 50 anos. Pelo grande número de sobrediagnósticos, muitas mulheres serão

colocadas em risco erroneamente. Essa epidemia de diagnósticos de câncer de mama cria um

medo enorme da doença, e as mulheres “terminam por olhar os seios como algo perigoso.”

(GÉRVAS, 2013, p. 2).

Para minimizar esses efeitos, um grupo de especialistas (ESSERMAN;

THOMPSON; REID, 2013) conselheiros do Instituto Nacional de Câncer dos EUA

recomendou mudanças na forma de detectar e tratar os tumores, incluindo alterações na

definição da doença e até a eliminação da palavra "câncer" de alguns diagnósticos. Segundo

eles, condições pré-malignas, como o carcinoma ductal in situ na mama, lesão localizada que

muitos médicos não consideram como câncer, deveriam ser rebatizadas sem a palavra

carcinoma. Assim, os pacientes ficariam com menos medo e procurariam menos tratamentos

desnecessários e arriscados como a remoção das mamas.O grupo também sugeriu que muitas

lesões detectadas em exames de mama, próstata, tireóide e pulmão não deveriam ser

chamadas de câncer, mas de IDLE (lesões indolentes de origem epitelial).

A idéia de prevenção, no entanto,é levada ao extremoem casos como o da atriz

americana Angelina Jolie. Motivada pela perda de sua mãe aos 56 anos devido ao câncer de

mama, a atriz, que descobriu por meio de um teste sanguíneo ser portadora de um gene

defeituoso (BRCA1) que lhe conferia um risco de 87% de desenvolver a mesma doença, além

de 50% de chance de desenvolver câncer nos ovários, submeteu-se a uma cirurgia preventiva

para retirada de ambos os seios.

Depois de realizar o procedimento, publicou um artigo no jornal The New York

Times “para que outras mulheres se beneficiassem de sua experiência”. Destaco alguns

67

trechos do artigo (tradução nossa):

Decidi ser proativa e minimizar os riscos o máximo que eu podia. Decidi realizar

mastectomia preventiva bilateral. Comecei pelos seios pois meu risco de câncer de

mama é maior do que o de câncer de ovário, e a cirurgia é mais complexa. […] Eu

queria escrever isso para dizer às outras mulheres que a decisão de ter uma

mastectomia não foi fácil. Mas é que estou muito feliz por ter feito. Minhas chances

de desenvolver câncer de mama cairam de 87 por cento para menos de 5 por cento.

Posso dizer para meus filhos que eles não precisam temer que irão perder a mãe para

o câncer de mama. Étranqüilizador que eles não vejam nada que possa incomodá-

los. Eles podem ver as minhas pequenas cicatrizes e é isso. O resto é ‘só a mamãe’,

o mesmo que ela sempre foi. E eles sabem que eu os amo e farei qualquer coisa para

estar com eles, enquanto eu posso. […] Eu decidi contar minha história, porque há

muitas mulheres que não sabem que podem estar vivendo sob a sombra do câncer.

Minha esperança é que elas também serão capazes de fazer o teste genético, e, se

tiverem risco alto, saberão que também têm boas opções.

Gérvas (2013) também publicou um artigo sobre o caso, em que relata que,

mesmo aos olhos da ciência,a decisão de Jolie seria injustificada, pois o antecedente da mãe

ter tido câncer antes dos 50 anos não colocaria Angelina como tendo alto risco para

desenvolver a doença, e que o risco de 87% seria o risco acumulado aos 75 anos, não o risco

nos próximos anos. Diz ainda que (2013, p. 2)

Ter uma mutação do gene BRCA1 não significa que você terá câncer ou muito

menos que irá morrer se tiver. Há pessoas que podem desenvolver e pessoas que não

e não sabemos totalmente por quê. Não tenho nada a dizer sobre o caso particular de

Jolie, porque tem a ver com como as pessoas controlam os seus medos, o problema

é que o caso é apresentado como exemplo e ela sugere que todas as mulheres têm

que fazer testes para determinar se elas têm o gene […] o que é um crime. A

prevalência da mutação do gene BRCA1 é muito pequena.

Débora Diniz (2013), antropóloga eprofessora de Bioética da Universidade de

Brasília, em artigo intitulado de “Mercado do medo”, publicado no jornal “Estadão”, comenta

que a atriz “retirou os dois seios como medida preventiva para desautorizar o destino

anunciado em seus genes. Angelina não estava doente – o câncer era uma probabilidade. A

estatística genética a sentenciou à morte e o mesmo bisturi que a mutilou reconstruiu seu

corpo.”, referindo-se por último à reconstrução das mamas com prótese de silicone à qual a

atriz se submeteu após o procedimento. A antropóloga contrapõe, em seguida: “Mas

probabilidade não é predestinação. Nem na genética nem em nenhum outro campo da

medicina. A diferença é que a medicina genética se move por um poder de sedução que

revolucionou as políticas populacionais – a métrica estatística.”

A antropóloga escreveu ainda que

Risco não é somente um fenômeno estatístico, mas uma categoria moral e uma

mercadoria. Minimizar o risco do adoecimento genético ofereceu a Angelina um

sentimento de controle sobre o futuro e acerto de contas com o passado: os filhos

não vivenciariam sua história de orfandade. Ou, ao menos, assim o mercado dos

testes genéticos a faz crer.[…] O admirável mundo novo da genética […] atiçou um

extenso mercado de medos e novas necessidades. […] A mutação genética está em

seu corpo e o mercado que a identificou oferece promessa de solução. […] nosso

68

estranhamento não deve ser à história de Angelina Jolie, sua mutilação e

reconstrução corporal, mas ao discurso médico e de consumo que nos oferece

destinos. Mesmo que a escolha pela mutilação venha a ser considerada a mais

razoável, ela é apenas uma tentativa de controlar o acaso da vida humana e seu

eterno jogo com o adoecimento.

Um fato curioso, é que, nos dias que sucederam a publicação do artigo de

Angelina Jolie, as ações da Myriad Genetics, empresa que patenteou o teste genético nos

Estados Unidos, subiram nas bolsas de valores americanas. Esta empresa não compartilha as

informações sobrea associação de algumas mutações específicas e o prognóstico dos cânceres

com base em seu banco de dados, como é comum na ciência da investigação, com o objetivo

de manter o seu monopólio e o preço abusivo do teste (cerca de três mil dólares). (GERVAS,

2013).

Assim como o exemplo da cirurgia bariátrica, este caso ilustra bem a separação

mente e corpo proposta pela biomedicina, que restringiu-a ao corpo máquina, ao tomar uma

decisão com base em probabilidades que desconsideram a vida pessoal, descaracterizando sua

própria condição humana.Contando que as mutações prejudiciais do gene BRCA associam-se

mais frequentemente a cânceres de estômago, pâncreas, testículo, próstata e pele (melanoma)

(GERVAS, 2013), espero que as medidas preventivas da atriz parem por aí.

Com efeito, depois do caso de Jolie, foi a vez de um inglês de 53 anos tornar-se o

primeiro homem no mundo a realizar uma cirurgia para excisão profilática da próstata,

também após descobrir uma mutação no gene BRCA. Seu médico, justificou o procedimento:

“Saber que você carrega este gene é como ter a espada de Dâmocles pairando sobre você.

Você está vivendo em um estado de medo constante. Tenho certeza de que mais portadores do

gene se submeterão ao procedimento.”(2013)

A demanda por exames preventivos é tanta que hospitais vêm inaugurando

unidades inteiras dedicadas exclusivamente à realização de check-ups. O Hospital Albert

Einstein, em São Paulo, cobra em média 1.500 reais por um pacote destes exames. Este ramo

de negócios foi batizado de “health tourism” ou “turismo da saúde”. Alguns spas e hotéis

luxuosos também oferecem pacotes de check-up completo: exames de sangue e de urina,

avaliações dentárias, tomografia computadorizada do corpo todo e assim sucessivamente. Isto

teve início na Califórnia, nos Estados Unidos, e se espalhou pelo mundo. Na Índia, nas

Filipinas, na Indonésia e em Portugal pode-se fazer um check-up cinco-estrelas. Um hotel no

Havaí (Hilton) oferece três diferentes pacotes. O mais caro dura sete dias e seis noites e custa

12.000 dólares. O hóspede pode assim, entre uma aula de caiaque e de surfe,passar por uma

colonoscopia, densitometria óssea ou tomografia. (Revista Veja 23/04/2003 apud CUNHA,

69

2004).

Em relação à prevenção, a psicanálise pondera que o médico, ao procurar doenças

não manifestas em seus pacientes, estaria “apostando” na doença deles. Isto seria perigoso,

pois a palavra do médico, vinda de um lugar de autoridade, pode ter poder sobre o corpo do

paciente na produção dessas doenças. Entendo a psicanálise como uma forma de prevenção

primária, por impedir por meio da elaboração consciente a passagem de sintomas

inconscientes diretamente para o real (corpo), evitando o adoecimento. No entanto, a análise

nunca poderá ser um processo indicado para todos como prescrição, como fazem as diretrizes

preventivas biomédicas, pois tem que partir do paciente o desejo de entrar em terapia.

A jornalista, escritora e documentarista brasileira Eliane Brum (2013), no artigo

intitulado de “Acordei doente mental” publicado na Revista Época, faz críticas à nova edição

do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico

de Transtornos Mentais), a “Bíblia da Psiquiatria” ou DSM-5, lançada este ano pela

Associação Americana de Psiquiatria. Ela refere que “Está cada vez mais difícil não se

encaixar em uma ou várias doenças do manual.”, e afirma que, com a nova publicação,“[…] o

número de pessoas com doenças mentais vai se multiplicar. E assim poderemos chegar a um

impasse muito, mas muito fascinante, mas também muito perigoso: a psiquiatria conseguiria a

façanha de transformar a ‘normalidade’ em ‘anormalidade’. O ‘normal’ seria ser ‘anormal’.”

Destaco ainda alguns trechos do artigo:

A nova edição exibe mais de 300 patologias, distribuídas por 947 páginas. […]

Descobri que sou doente mental ao conhecer apenas algumas das novas modalidades

[…]Tenho quase todas. “Distúrbio de Hoarding”. Tenho. Caracteriza-se pela

dificuldade persistente de se desfazer de objetos ou de “lixo”, independentemente de

seu valor real. Sou assolada por uma enorme dificuldade de botar coisas fora, de

bloquinhos de entrevistas dos anos 90 a sapatos imprestáveis para o uso, o que

resulta em acúmulos de caixas pelo apartamento. Remédio pra mim. “Transtorno

Disfórico Pré-Menstrual”, que consiste numa TPM mais severa. Culpada. Qualquer

um que convive comigo está agora autorizado a me chamar de louca nas duas

semanas anteriores à menstruação. Remédio pra mim. “Transtorno de Compulsão

Alimentar Periódica”. A pessoa devora quantidades “excessivas” de comida num

período delimitado de até duas horas, pelo menos uma vez por semana, durante três

meses ou mais. Certeza que tenho. Bastaria me ver comendo feijão, quando chego a

cinco ou seis pratos fundos fácil. Mas, para não ter dúvida, devoro de uma a duas

latas de leite condensado por semana, em menos de duas horas, há décadas,

enquanto leio um livro igualmente delicioso, num ritual que eu chamava de

“momento de felicidade absoluta”, mas que, de fato, agora eu sei, é uma doença

mental. Em vez de leite condensado, remédio pra mim. Identifiquei outras

anomalias, mas fiquemos neste parágrafo gigante, para que os transtornos

psiquiátricos que me afetam não ocupem o texto inteiro.

Brum (2013) escreve ainda que o psiquiatra americano Allen Frances (2013),

coordenador da versão anterior do Manual, publicada em 1994,agora faz duras críticas à nova

edição:

70

Entre suas críticas mais contundentes está o fato de o DSM-5 ter transformado o que

chamou de “birra infantil” em doença mental. A nova patologia é chamada de

“Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor” e atingiria crianças e

adolescentes que apresentassem episódios frequentes de irritabilidade e descontrole

emocional. No que se refere à patologização da infância, o comentário mais incisivo

de Allen Frances talvez seja este: ‘Nós não temos idéia de como esses novos

diagnósticos não testados irão influenciar no dia a dia da prática médica, mas meu

medo é que isso irá exacerbar e não amenizar o já excessivo e inapropriado uso de

medicação em crianças. Durante as duas últimas décadas, a psiquiatria infantil já

provocou três modismos — triplicou o Transtorno de Déficit de Atenção, aumentou

em mais de 20 vezes o autismo e aumentou em 40 vezes o transtorno bipolar na

infância. Esse campo deveria sentir-se constrangido por esse currículo lamentável e

deveria engajar-se agora na tarefa crucial de educar os profissionais e o público

sobre a dificuldade de diagnosticar as crianças com precisão e sobre os riscos de

medicá-las em excesso. O DSM-5 não deveria adicionar um novo transtorno com o

potencial de resultar em um novo modismo e no uso ainda mais inapropriado de

medicamentos em crianças vulneráveis.’

Com efeito, o Centers for Disease Control and Prevention americano relata em

seu relatório anual (2011) que quatro milhões de crianças e quatro a oito milhões de adultos

no mundo tem o diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).

Entretanto, o neurologista Leon Eisenberg, “pai” da doença, teria dito, sete meses antes de sua

morte, segundo o periódico alemão Der Spiegel (2012), que o TDAH é um “excelente

exemplo de uma doença fabricada”.Para a psicanálise, esta doença é ocasionada pela falta de

desejo da mãe pela criança, que torna-se “hiperativa” com o objetivo de despertar o desejo

desta.

Por último, uma revisão da Cochrane (2012 apud HEATH, 2013) mostrou que a

farmacoterapia para hipertensão estágio 1 (pressão arterial sistólica entre 140-159 mmHg e/ou

pressão arterial diastólica entre 90-99 mmHg) usada em indivíduos outrora saudáveis não

mostrou diminuição da morbimortalidade nesses indivíduos, levando a um grande númerode

sobrediagósticos e tratamentos desnecessários.

Entendo que ser médico nos tempos atuais está muito difícil, pois não se sabe ao

certo até que ponto as recomendações médicas guardam conflitos de interesses com grupos

que se beneficiam com a indústria da doença. Penso que a melhor saída para isso é a

comunicação aberta com os pacientes, explicando o contexto da ciência médica atual para

tomar decisões compartilhadas. Os médicos que aceitam presentes e convites para Congressos

com despesas pagas por laboratórios devem se decidir com quem irão fazer compromisso, se

com a indústria, ou com seus pacientes. Eu optei pelos pacientes.

Cabe ressaltar que a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade

tem a política louvável de não aceitar o patrocínio da indústria farmacêutica nos Congressos

que organiza. Uma das principais funções do médico de família, como veremos adiante, é

combater o excesso de prevenção e a hipermedicalização, e a SBMFC mostra com esta atitude

71

sua fidelidade a esses princípios.

4.6 Necessidade de um novo perfil de médico no Brasil

No Brasil, que “copiou” o modelo flexneriano em suas escolas médicas, as

tentativas de reformar o ensino médico surgiram na década de 1960 com o movimento de

reforma sanitária, e intensificou-se no final do século XX e início do século XXI. (LAMPERT

et al., 2009).

A expansão do conhecimento de aspectos do processo saúde-doença e seus

determinantes, que estão além do biológico do indivíduo, leva tacitamente a analisar

e a construir mudanças ao se tratar de saúde. Aspectos que compõem o

desenvolvimento saudável da vida humana, mais bem conhecidos, questionam a

forma demasiado técnica de abordar os problemas de saúde da população. Os

avanços científicos e tecnológicos minuciosamente elaborados ficam insuficientes

diante da assistência com visão fragmentada e descolada da integralidade do

indivíduo. A abordagem da saúde fica, assim, desumana enquanto não atende às

necessidades básicas de saúde do ser humano quando este não é acolhido e tratado

em sua unidade ímpar. A articulação de diversos saberes e múltiplos profissionais se

faz necessária quando se concebe o sistema de saúde proporcionando atendimento

integral. (LAMPERT et al., 2009, p. 6).

Nesse contexto, ocorreu a Conferência de Alma-Ata (1978), ou

Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, reunida em Alma-

Ata […], expressando a necessidade de ação urgente de todos os governos, de todos

os que trabalham nos campos da saúde e do desenvolvimento e da comunidade

mundial para promover a saúde de todos os povos do mundo. (DECLARAÇÃO DE

ALMA-ATA, 1978, p. 1).

O Brasil vive, nesse início de século, uma situação de saúde que combina uma

transição demográfica acelerada e uma transição epidemiológica singular expressa na tripla

carga de doenças: uma agenda não superada de doenças infecciosas e carenciais, uma carga

importante de causas externas e uma presença fortemente hegemônica das condições crônicas.

(VILAÇA, 2012). Essa mudança do perfil epidemiológico da população brasileira, exigiu um

reordenamento das ações e estratégias na saúde, com sérias implicações na formação dos

profissionais. (PAGLIOSA; DA ROS, 2008).

Assim, o ensino médico começava a voltar-se para as necessidades sociais e

deveria incorporar de vez a Atenção Primária como espaço de ensino-aprendizagem. As

necessidades envolviam um “conjunto de ações médicas sanitárias e clínicas que resultariam

num trabalho complexo, ao atender a requisitos de alta capacidade resolutiva e, ao mesmo

tempo, de alta sensibilidade diagnóstica.” (LAMPERT et al., 2009, p. 6).

Um novo perfil de médico era necessário para desempenhar essas funções, o que

motivou o Ministério da Educação e Cultura (MEC) a elaborar novas Diretrizes Curriculares

Nacionais para o Ensino de Graduação em Medicina no Brasil, já mencionadas anteriormente,

mas propositalmente aqui repetidas, pois mais bem contextualizadas em contraste ao modelo

72

biomédico. O novo profissional deve ser um:

Médico com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva. Capacitado a atuar,

pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis

de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde,

na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social

e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano.

(DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS DO CURSO DE GRADUAÇÃO

EM MEDICINA, 2001, p. 1).

Apesar dos esforços das Universidades brasileiras em reformular seus currículos

para a formação desse médico, a experiência como preceptor de alunos de graduação e

Internato mostra que as reformas têm ainda um longo caminho a percorrer para atingir esse

objetivo. A formação ainda é fragmentada e os contatos pontuais (quinzenais na maioria das

Universidades) que os alunos de graduação têm com a MFC não são suficientes para

desconstruir a visão que Flexner advogava para os médicos.

Com isso, a formação do médico com o perfil desejado pelo MEC reserva ao

acaso o fato de o aluno não se identificar com o modelo biomédico de formação que o faça

procurar outra linha de atuação dentro da Medicina, fato raro, já que a grande maioria dos

docentes das Universidades são especialistas focais apoiados no paradigma biomédico de

formação. Em cinco anos, conheci alguns alunos que se interessaram pela medicina de

família, mas não conheci nenhum que tenha seguido a área.A minha escolha pela Medicina de

Família também não foi motivada pela faculdade. Talvez eu tivesse sofrido menos se ela

estivesse presente em meu currículo.

5 A MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE

5.1 Breve histórico

Segundo Ian McWhinney e Thomas Freeman (2010), há três maneiras pelas quais

podem surgir novas especialidades:pela transformação de uma especialidade anterior, pelo

retorno de uma especialidade que estava abandonada ou por meio da fragmentação de uma

área mais ampla, caso da Medicina de Família e Comunidade.Ela surgiu a partir de uma

73

ramificação da clínica geral, em que médicos faziam atendimentos gerais ainda sem ter pós-

graduação específica na área. A Clínica Geralera o cerne da Medicina praticada em toda a

Europa e a América do Norte durante o século XIX, quando ainda não existiam as

especialidades médicas.

Com o advento do século XX, após a já descrita reforma do ensino médico

proposta por Abraham Flexner, os currículos das Universidades passaram a ser baseados em

especialidades médicas.À medida que a era da especialização chegava ao seu clímax,

principalmente a partir da segunda metade do século XX, surgia também no mundo a

necessidade de um novo tipo de clínico geral, um médico que tivesse um conjunto definido de

habilidades (um “especialista da generalidade”), que fosse diferente do clínico geral antigo,

sem treinamento ouqualificação específicas.

Surgiu assim a Medicina de Família e Comunidade e, a partir das décadas de 50 e

60, surgiram os primeiros cursos de pós-graduação no Reino Unido, Holanda, Canadá e

Estados Unidos. Em 1972, foi fundada a WONCA,ou Organização Mundial de Médicos de

Família.(MCWHINNEY; FREEMAN, 2010).

No Brasil, a Medicina de Família tem seu início em 1976, quando surgiram os três

primeiros Programas de Residência Médica dessa especialidade no país, no Rio de Janeiro,

Rio Grande do Sul e em Pernambuco. Nesse período, as Residências ainda não tinham um

nome único e não contavam com um respaldo legal. As vagas de trabalho para os recém-

egressos desse Programas eram poucas e limitavam-se aos próprios Programas de Residência,

fazendo com que muitos migrassem para outras especialidades, principalmente para a saúde

pública. (FALK; GUSSO; LOPES, 2012).

Em 1981, a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) publicou uma

Resolucão que formalizou os Programas de Residência nessa área no Brasil.O primeiro nome

dessa especialidade no país foi Medicina Geral Comunitária (MGC). Nesse mesmo ano, o

grupo pioneiro dessa especialidade no país, composto por psiquiatras, sanitaristas, clínicos,

infectologistas, etc., fundou a Sociedade Brasileira de Medicina Geral e Comunitária

(SBMGC). (FALK; GUSSO; LOPES, 2012).

Essa especialidade, no entanto, sofreu muitas resistências no Brasil, pois foi

considerada pela corporação médica e pela direita como “medicina de comunista”, estatizante,

e pela esquerda, pela Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva

(ABRASCO) e por alguns sanitaristas, como a “medicina de família americana disfarçada da

época” – ou um modelo de “saúde pobre para gente pobre”. Assim, em 1987, o Instituto

Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (INAMPS), cuja presidente era ligada à

74

ABRASCO, cortou subitamente todas as bolsas de Residência para Medicina Geral e

Comunitária, e muitos Programas foram extintos; outros, mudaram de nome para Medicina

Preventiva e Social para não fecharem. (FALK; GUSSO; LOPES, 2012).

Assim começoua rixaentre sanitaristas e médicos de família no Brasil, que persiste

até hoje, conforme posso observar na lista eletrônica aberta da Sociedade Brasileira de

Medicina de Família e Comunidade (SBMFC). Os primeiros, alegam que os médicos de

família são corporativistas. Por vezes têm razão. Os últimos, irritam-se com o fato dos

sanitaristas não atenderem pacientes e quererem interferir em políticas que dizem respeito à

prática da medicina de família. Por vezes têm razão. Não pelo fato de os sanitaristas não

atenderem. Mas porque algumas políticas são iatrogênicas e perigosas para a população. No

geral, a briga só isola politicamente os dois grupos, que deveriam ser unidos, pois cada um

tem papel diferente para a saúde do país. Isto enfraquece o Sistema Único de Saúde (SUS), o

que beneficiaa medicina corporativa e os planos de saúde.

Em 1994, foi criado no Brasil o Programa de Saúde da Família (PSF), com o

objetivo de prestar cuidados primários à população. Em 1997,passou a chamar-se Estratégia

Saúde da Família (ESF), sendo responsável atualmente pelo cuidado de 100 milhões de

pessoas.Com isso, o mercado de trabalho ligado à APS (e com isso à MGC) aumentou muito,

superando a capacidade de formação de médicos gerais e comunitários, pois havia poucas

Residências desta área. No ano 2000, a ESF contava com 32 mil equipes de saúde da família

no país, e a partir de então houve uma expansão dos Programas de Residência, que atualmente

chegam a 120 no Brasil. (CNRM, 2013). Em 2001, a SBMGC passou a chamar-se Sociedade

Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, já adotando o novo nome da especialidade,

Medicina de Família e Comunidade, decidido pelos sócios da entidade após votação online.

(FALK; GUSSO; LOPES, 2012).

Entendo que o nome Medicina de Família e Comunidade mostra, entretanto, uma

fragilidade semântica importante, que dificulta a divulgação e o consequente

impulsionamento desta especialidade no Brasil. Este nome não remete imediatamente à

consciência de pessoas leigas quais atividades são exercidas pelos médicos que praticam essa

especialidade, além de ser de difícil memorização. Isto pude constatar nas inúmeras vezes em

que tenho dar explicações complementares quando digo para alguém que sou médico de

família (muitos, como eu, poupam a segunda parte do nome, outro ponto negativo), para

quase sempre escutar depois de minha explanação, a pergunta conclusiva: “é clínico geral

né?”. Respondo que sim, mas que existe uma Residência que prepara este médico. Este termo

está portanto no imaginário das pessoas, e muitas vezes remete a elas a idéia do médico

75

antigo, que cuidava da família. Penso que isso seja bom, pois as pessoas têm boas recordações

desses médicos e porque o que de fato queremos é um resgate ao passado (no sentido de que

estamos na contra mão da ultraespecialização). Além disso, o termo mostra no ato que somos

“gerais”, “amplos”.

Por esses motivos e pelo fato de sermos médicos de pessoas, antes de sermos

médicos de famílias e de comunidades (não atendia famílias inteiras, mas os membros desta),

penso que seja um termo muito mais apropriado e estratégico. Na Inglaterra, um dos berços da

especialidade, é também onde esse especialista tem maior valorização e importância no

sistema de saúde. Lá somos conhecidos como clínicos gerais. O termo, no entanto, conforme

vimos antes, traria-nos o problema de não nos diferenciar de médicos sem pós-graduação.

Penso que mesmo assim teríamos um benefício, o de só precisar explicar que existe uma

Residência que prepara este médico. Seria um trabalho a menos.

5.2 O novo Paradigma e a teoria geral de sistemas

O modelo biomédico foi e continua bem sucedido no hospital escola. Fora dele, as

coisas são muito diferentes. Até há pouco tempo, os médicos de família eram treinados em

hospitais-escola, mas descobriam na prática que muitas pessoas que atendiam tinham

problemas que não se encaixavam em nenhum diagnóstico, pois apresentavam experiências

de adoecimento que não tinham classificação.(MCWHINNEY; FREEMAN, 2010).

Portanto, ainda segundo estes autores (2010), as primeiras tentativas de reformar o

modelo médico vieram de um grupo de médicos de família. Eles trabalhavam com Balint, um

psicanalista e médico húngaro que ajudava esses médicos em seus relacionamentos difíceis

com os pacientes. Balint teve importantes influências na Medicina de Família e seus livros e

seminários marcaram uma importante ruptura com o modelo biomédico.

Vinte anos depois, Engel, outro psicanalista, propôs um modelo biopsicossocial

baseado na teoria geral de sistemas. Não satisfeito ainda com o nome, preferiu o nome

proposto por Foss e Rothenberg, ou modelo infomédico. Entretanto, o novo Paradigma foi

chamado de Goldstein, em homenagem a Kurt Goldstein, um neurologista e psicólogo, pai da

abordagem holística na Medicina. (MCWHINNEY; FREEMAN, 2010).

A essência do novo paradigma é “entender a pessoa como um todo, um ser

integrado com sua história, um presente e um futuro em que se aninham um número infinito

de realidades, relacionamentos sociais e desafios ambientais contra um pano de fundo de

propensões genéticas.” (MCWHINNEY; FREEMAN, 2010, p.83). O paradigma propõe uma

estrutura ontológica em que os sintomas são considerados como uma manifestação dos

organismos tentando alcançar uma nova adaptação às circunstâncias trazidas por uma doença

76

ou acidente. Essas adaptações podem ir além do problema original. Para entender o complexo

dos sintomas, é necessária uma visão holística.

O pensamento sistêmico é constituído de vários níveis, não sendo linear. Ele

denota que os organismos se mantêm num equilíbrio dinâmico por meio de um fluxo de

informação entre todos os níveis, e entre o organismo e o ambiente. Em níveis mais baixos, a

informação é transmitida por hormônios e neurotransmissores. No nível do organismo como

um todo, transmite-se a informação com palavras ou outros símbolos que representam os

relacionamentos humanos. (MCWHINNEY; FREEMAN, 2010).

O indivíduo está, na teoria geral de sistemas, se pensarmos em termos de sistemas

humanos, no nível mais alto da hierarquia sistêmica, e no mais baixo da hierarquia social. Um

sistema não pode ser entendido pelo estudo de suas partes individualmente. Um sistema vivo

não pode ser entendido em termos de física ou química. (MCWHINNEY; FREEMAN, 2010).

No Brasil, o paradigma da Medicina de Família ficou conhecido por

biopsicossocial, ou paradigma da complexidade (RODRIGUES; ANDERSON, 2012).

Modelo infomédico é para mim um nome mais representativo, no entanto, por sugerir

claramente comunicação, informação.

5.3 Definições de Médico de Família e Comunidade

Apresento a seguiras principais definições de médico de família, pelos grupos e

associações internacionais. O grupo europeu da Organização Mundial dos Médicos de Família

(2002) definiu o médico de família da seguinte forma:

O médico de família é o médico principalmente responsável pela prestação de

cuidados abrangentes a todos os indivíduos que procuram cuidados médicos, bem

como por providenciar a prestação de serviços de outros profissionais de saúde,

sempre que necessário. O Médico de Família funciona como um generalista que

aceita todas as pessoas que o procuram, enquanto outros prestadores de cuidados de

saúde limitam o acesso aos seus serviços com base em idade, sexo ou diagnóstico. O

Médico de Família cuida do indivíduo no contexto da sua família e cuida da família

no contexto comunitário, independentemente de raça, religião, cultura ou classe

social. É clinicamente competente para prestar a maior parte dos seus cuidados,

levando em consideração o pano de fundo cultural, socioeconômico e psicológico.

Além disso, assume uma responsabilidade pessoal pela prestação de cuidados

abrangentes e continuados aos seus pacientes. O Médico de Família desempenha o

seu papel profissional quer prestando cuidados diretos, quer por meio dos serviços

de outros, consoante as necessidades de saúde das pessoas e os recursos disponíveis

no seio da comunidade servida(apudLOPES, 2002, p. 2).

Conforme Olesen et al. (2000),

O Médico de Família é um especialista formado para trabalhar na linha de frente do

sistema de saúde e para dar os passos iniciais na prestação de cuidados para qualquer

problema de saúde que as pessoas possam apresentar. O Médico de Família cuida de

pessoas no seio da sua sociedade, independentemente do tipo de doença ou de outras

características pessoais ou sociais, organizando os recursos disponíveis no sistema

de saúde em benefício das pessoas doentes. O Médico de Família interage com

indivíduos autônomos nos campos de prevenção, diagnóstico, cura,

77

acompanhamento e cuidados paliativos, usando e integrando as ciências da

Biomedicina e da Psicologia e Sociologia Médicas.(apud LOPES, 2012, p. 2).

McWhinney e Freeman (2010, p. 83, grifo nosso) deram a definição mais

representativa de nossa especialidade em minha opinião, pois são os únicos que mencionam

os relacionamentos como base da especialidade, alémdos sintomas indiferenciados, nossa

habilidade especial:

[…] nos definimos em termos de relacionamentos, não por meio de doenças ou

tecnologias. Formamos relacionamentos com as pessoas antes de saber o que serão

suas experiências com doenças. Nosso compromisso com essas pessoas, nesse

sentido, é incondicional. Estamos disponíveis para buscar resolver qualquer

problema que possam nos trazer. Nossa habilidade especial é a avaliação de

problemas clínicos não diferenciados. Nossos relacionamentos de longa duração

com as pessoas e suas famílias nos dão um conhecimento privilegiado sobre suas

vidas, coletado frequentemente porque escutamos suas histórias. Consequentemente,

pensamos em termos de indivíduos, de pessoas, e não de abstrações. A clínica geral

é o único campo importante da medicina que transcende a visão dualística

entre mente e corpo. É importante notar, entretanto, que isso não significa juntar a

mente e o corpo, uma tarefa muito mais difícil.

No início da Residência em Medicina de Família, o fato de atender pessoas

independentemente da queixa me fazia pensar que tinha que dominar toda a Medicina.

Pensava que a medicina de família era uma fusão de todas as áreas básicas. Esse é um

equívoco cometido por muitos iniciantes na área, principalmente para eu que não havia tido

contato com a especialidade na graduação. Só depois entenderia que a MFC é um campo

específico de atuação, com epistemologia própria.

Durante a Residência, tinha conversas frequentes com meus preceptores, sobre o

que era Medicina de Família. Após cinco anos, depois das contribuições do Mestrado, cheguei

a esta definição:“Médico que faz dos relacionamentos com os pacientes o pilar de sua

atuação. Para isso, deve praticar ética-da-vida e o autoconhecimento. Este médico deve estar

preparado para resolver os problemas clínicos mais comuns apesentados pelas pessoas, assim

como para manejar osque são indiferenciados, em que a observação clínica cuidadosa será um

de seus únicos recursos. Deve proteger as pessoas dos efeitos nefastos da hipermedicalização

da vida, da prevenção excessiva e da clínica que privilegia o diagnóstico de doenças ao

diagnóstico de pessoas. É um médico que investe na comunicação, sua principal ferramenta

de trabalho. Deve desenvolver uma clínica que junta mente e corpo desde o início do

acompanhamento e que considera as peculiaridades de cada pessoa, respeitando suas

preferências. É um médico que disponibiliza tecnologia humana de alta complexidade para as

pessoas que atende.”

5.4 Princípios da Medicina de Família e Comunidade

78

Ian McWhinney e Thomas Freeman (2010) descrevem a medicina de família e

comunidade por meio de nove princípios, nenhum exclusivo dessa disciplina, pois nem todos

os médicos de família são necessariamente exemplos de todos os princípios. Estes, entretanto,

quando vistos como um conjunto, representam uma visão de mundo diferente, comum à

forma de pensar dos médicos de família. São eles:

1. Os médicos de família e comunidade são comprometidos, em 1º lugar, com a

pessoa, e não com um conjunto de conhecimentos, grupo de doenças ou técnica especial. O

comprometimento é aberto em dois sentidos. Primeiro, não se limita pelo tipo de problema de

saúde. Os médicos de família estão disponíveis para qualquer problema de homens e mulheres

de qualquer idade. A prática desses médicos não é limitada a problemas de saúde rigidamente

definidos: a pessoa define o problema. Isso significa que o médico de família e comunidade

nunca poderá dizer “sinto muito, mas a sua doença não está no meu campo de

especialização.” Qualquer problema de saúde de uma pessoa está dentro de nosso campo de

trabalho. Talvez tenhamos que encaminhar a pessoa para tratamento especializado, mas

continuaremos responsáveis por sua avaliação inicial e pela coordenação e continuidade do

atendimento. Em segundo lugar, o comprometimento não tem um ponto final definido. Não se

encerra na cura de uma doença, ao final de um tratamento, ou no fato de uma doença ser

incurável. Em muitos casos, o compromisso é estabelecido quando a pessoa é saudável, antes

de qualquer problema ter aparecido. Em outras palavras, a medicina de família e comunidade

é definida em termos de relacionamentos, o que a torna única entre as principais áreas da

medicina clínica.

Ao definirmos a medicina de família em termos de relacionamentos, assumimos

que ela é uma especialidade única, pois nenhuma outra disciplina médica define-se nesses

termos. As especialidades focais (especialistas em órgãos, grupo de doenças, ou grupo de

técnicas) constroem, logicamente, relacionamentos com os pacientes, porém, na medicina de

família, o relacionamento ocorre antes mesmo da doença acontecer. Para consultar um

endocrinologista, uma pessoa deve estar padecendo de uma doença do sistema endócrino. Só

poderá falar com o endocrinologista aqueles que tiverem diabetes, síndrome de Cushing, ou

uma doença na tireóide, por exemplo. O endocrinologista cria implicitamente assim, um

compromisso com um grupo de doenças, e não propriamente com as pessoas.

Na medicina de família, não há restrições para uma pessoa querer me consultar.

Eu estarei aberto para qualquer tipo de problema: uma mulher que está devastada com a perda

de seu pai, outra que veio renovar sua receita de anti-hipertensivos, um garoto que achou que

seu pênis estaria diminuindo e veio perguntar ao médico se isso era normal, uma mulher com

79

semblante de sofrimento extremo que suspeitava que sua filha estava sendo abusada

sexualmente pelo marido (consulta impactante para mim.Não consegui não sofrer com a

situação, após ter confirmado sinais de abuso quando examinei a criança), um senhor que já

não tinha o mesmo vigor sexual com sua esposa e por isso estava sofrendo, uma moça que

sentia-se sufocada pelo ciumento marido o que lhe causava tremedeiras e falta de ar, uma

criança que desenvolveu uma crise asmática por ter viajado no final de semana para a praia,

uma mulher obesa de meia idade que desejou falar sobre dores que apresentava em várias

partes do corpo, uma mulher que vem pedir medicação pois já não aguenta mais a

agressividade da filha adotiva que destrói objetos da casa ou um garoto de vinte anos com

uma estranha dormência no “dedão” do pé esquerdo. Estes foram alguns casos que atendi nos

últimos cinco anos.

Estar aberto para receber pessoas com qualquer tipo de problema é o princípio da

Medicina de Família que mais me identifica à especialidade e o que a torna mais interessante.

Nosso horizonte é sempre um plano em aberto, em que podemos lidar com problemas de

qualquer ordem que as pessoas venham a apresentar. É sem dúvida uma característica que

engrandece o médico, que nos relatos desses problemas, aprende e muda com as histórias de

vida das pessoas. O médico de família que realmente faz compromisso com as pessoas

aumenta sua rede simbólica com as histórias de seus pacientes, pois passa a viver um pouco

dessas histórias junto a eles, o que, se mantivermos o cuidado necessário para não transferir os

problemas das pessoas para si, torna o trabalho bastante engrandecedor e prazeroso.

Definir a medicina de família em termos de relacionamentos tem aspectos

positivos e negativos. É libertador não estar amarrado a tecnologias ou grupos de doenças,

mas a sociedade atual parece dar cada vez menos valor para os relacionamentos e costuma

priorizar breves encontros episódicos, e muitos equiparam a idéia de especialização à própria

idéia de progresso.(MCWHINNEY, FREEMAN 2010). Sempre que alguém pergunta a minha

especialidade, percebo certo ar de descrédito quando digo que souespecialista nas pessoas: “ai

você encaminha quando tem um problema né?”, perguntam-me, refletindo a cultura de

especialistas focais já impregnada no pensamento das pessoas, que não sabem que devo estar

capacitado para resolver 85% dos problemas clínicos das pessoas que chegam até mim.

2. O médico de família e comunidade procura entender o contexto da experiência

com a doença. “Para entender algo de forma correta, precisamos observá-lo tanto fora quanto

dentro de seu ambiente, e nos familiarizarmos com toda a gama de suas variações”, escreveu

o filósofo americano William James (1958 apud MCWHINNEY, FREEMAN 2010, p. 26).

Muitas experiências com a doença não podem ser completamente entendidas a não ser que

80

sejam observadas em seu contexto pessoal, familiar e social. Quando uma pessoa é

hospitalizada, muito do contexto da experiência com a doença fica distante ou obscurecido. A

atenção parece se concentrar no primeiro plano e não no pano de fundo, o que frequentemente

nos remete a uma visão limitada da doença.

O cenário hospitalar não representava a vida dos pacientes que atendia no Posto de

Saúde. No hospital, eles dispõem de moradia, alimentação balanceada por nutricionista,

saneamento básico, cuidados e segurança. Na comunidade, quando me procuravam, voltavam

a estar inseridosnas dificuldades que enfrentavam, como a insegurança, falta de saneamento,

fome.Um médico que conheça esse contexto tem maior capacidade de entender a experiência

da pessoa em adoecer.

3. O médico de família e comunidade vê cada contato com as pessoas como uma

oportunidade de prevenção de doenças ou promoção da saúde. Uma vez que os médicos de

família e comunidade vêem as pessoas, em média, quatro vezes em um ano, essas consultas

são fontes ricas de oportunidades para colocar em prática a medicina preventiva.

Este princípio deve ser utilizado cautelosamente pelo médico de família, pois

mostra um conflito de prioridades, entre o que o paciente veio resolver no encontro e o que o

médico identificou adicionalmente na consulta, que não era esperado pelo paciente. O

paciente, por exemplo, vem procurar o médico por um problema de dor nas costas, e o médico

constata que sua pressão está alta, tendo que, pelos princípios da boa prática preventiva,

compartilhar a informação com ele. O médico deve tomar cuidado para que as demandas

administrativas que exigem que ele realize prevenção, compitam com o tempo que ele deve

disponibilizar para escutar e tentar resolver a queixa da pessoa.(MCWHINNEY, FREEMAN,

2010).

Isto parece estar acontecendo na Inglaterra, berço da Medicina de Família. Os

médicos ingleses têm como uma de suas três formas de remuneração, que atingir várias metas

de prevenção estabelecidas pelo Governo (uma lista com aproximadamente cem exigências).

Se seus pacientes que têm hipertensão tiverem níveis de colesterol controlados, os médicos

ganham mais. Se o médico conseguir com que algum paciente seu pare de fumar, ganhará

mais. Isto pode ser perigoso para um médico que tem como um dos princípios de sua

especialidade o de criar compromisso incondicional com o paciente.

Geoffrey Rose (2010) escreveu que um dos pontos fracos da estratégia preventiva

é o fato da prevenção se tornar medicalizante. Isto seria ruim tanto para o paciente, como para

os custos do sistema de saúde. No caso do indivíduo, procurar o médico por uma dor e sair

81

com o rótulo de hipertenso, tendo que tomar comprimidos e consultar o médico por toda a

vida, pode ser devastador. O médico deve ser sensível para avaliar essas questões.

Percebo que muitas pessoasguardam o conceito de Médico de Família como o

“médico da prevenção”. Eu argumentava ao contrário, dizendo que em minha prática, eram

raros os casos em que as pessoas vinham somente para realizar prevenção. Entretanto,Marc

Jamoulle (2000) desconstruiu meu argumento, pois afirmou que ao ajudar a pessoa a tratar

uma doença, impedindo que a mesma evolua causando mais danos, o médico está em sua

prática sempre a realizar prevenção.

4. O médico de família e comunidade vê as pessoas que atende como uma

“população de risco”. Os outros médicos em geral pensam em termos de cada pessoa

isoladamente em vez de grupos populacionais. Os médicos de família têm de pensar das duas

formas. Isso significa que as pessoas que não fazem, por exemplo, vacinas, exames

preventivos de câncer de colo do útero ou medições de pressão arterial, constituem um grupo

de atenção para esses médicos tanto quanto as pessoas que regularmente seguem esses

procedimentos. Os registros eletrônicos facilitam muito a manutenção atualizada dos dados a

respeito de consultas de toda a população atendida pelo médico.

Da mesma forma que no princípio anterior, podem haver conflitos entre as

demandas das pessoas e as demandas de atendimento a grupos populacionais de maior risco

por parte do médico, como ocorria em minha prática.O Ministério da Saúde (MS), através de

seus Programas de controle de determinadas doenças como diabetes, hipertensão arterial

sistêmica, tuberculose, etc., condicionou muitas Unidades de Saúde da Família a organizarem

as agendas de atendimentos dos médicos e enfermeiras com base nessas doenças. Conforme

escrevi no capítulo 3, isto deixava minha prática também centrada em doenças.

Outro problema é que se criava assim um sistema de retorno do paciente como

uma forma de vigiá-lo se estaria tomando seus remédios regularmente, tirando sua autonomia.

Os pacientes iam (principalmente no exemplo de pessoas com diabetes/hipertensão) não

porque queriam, mas porque tinham que ser controlados por terem doenças responsáveis por

maior risco de eventos cardiovasculares

Rose (1985), citado por Poli e Gusso (2012, p. 162), descreveu os problemasda

abordagem populacional e individual da seguinte forma:

Há vantagens e desvantagens nas duas, mas, na abordagem individual, procura-se

trabalhar intervindo nas pessoas de maior risco. Na abordagem populacional, em

geral intervém-se no grupo como um todo, para que haja um benefício global.

Porém, o maior equívoco que tem sido cometido é propor intervenções que

deveriam ser reservadas para pessoas com maior risco para toda uma população [a

exemplo do que do que promove o Ministério da Saúde]. Portanto, é fundamental

82

avaliar riscos individuais. No grupo dos hipertensos, há os hipertensos e diabéticos;

no grupo dos hipertensos e diabéticos, há os que tiveram um infarto agudo do

miocárdio (IAM); no grupo dos não hipertensos e diabéticos, também há os que

tiveram IAM. O risco cardiovascular de um hipertenso sem IAM é menor que o de

uma pessoa que já sofreu IAM mas não é hipertensa, que é menor do que quem é

hipertenso, diabético e teve IAM. Dessa forma, pré-selecionando quem é hipertenso

e/ou diabético, corre-se o grave equívoco de negligenciar o cuidado a quem teve

IAM mas não é hipertenso nem diabético. Como demonstra Rose, usando o exemplo

do colesterol, como a maior parte da população tem colesterol normal, a maior

proporção de pessoas que tiveram IAM também tem colesterol normal, ou seja, esta

não é uma condição sine qua non.

Esses exemplos, além da experiência que tive, demonstram o risco de se priorizar

grupos populacionais no atendimento. Assim, a agenda do profissional deve ser a mais livre

possível e, quanto menos seleção de grupos populacionais, maior é a qualidade da atenção

prestada. (POLI; GUSSO, 2012).

No Centro de Saúde da Família Frei Tito, onde trabalhei por último, após lermos

este artigo citado, fizemos uma grande alteração na agenda, e criamos o “acesso avançado”.

Decidimos acabar com agendamentos e turnos específicos para cada tipo de doença e atender

a todos que nos procurassem. Acabamos assim com a diferença de demanda espontânea e

programada e consideramos todos como “pessoas que querem falar com sua equipe de saúde”.

Se quiséssemos marcar um retorno, pedíamos para a pessoa voltar em uma data específica,

mas não marcávamos em agenda; iríamos atendê-lo no dia que voltasse. Para organizar,

pedíamos aos pacientes que chegassem até as oito horas pela manhã e até as quatorze no turno

da tarde.

Falávamos então com todos para perguntar o motivo de terem vindo ao posto e

então fazíamos uma ordem de atendimento (diferente da ordem de chegada) de acordo com as

necessidades e urgências de cada um. A enfermeira de minha equipe selecionava então quais

pacientes ela poderia atender(muitos, pois era bastante preparada), e eu ficava com os outros.

Isso foi fundamental para “reconstituir as partes” dos pacientes, separadas pelo antigo modelo

de agenda, e criar de fato um ambulatório de Medicina de Família, em que o médico vê

realmente pessoas com todos os tipos de problemas em todos os turnos, o que foi importante

para minha formação. A desvantagem da agenda era que não havia limites de pacientes (ainda

mais quando chegavam pacientes depois das 8 ou 14 horas, mas isto era mais raro), e a falta

de horário marcado fazia com que alguns esperassem excessivamente.

5. O médico de família e comunidade considera-se parte de uma rede comunitária

de agências de apoio e de atenção à saúde. Todas as comunidades têm redes de apoio social,

oficiais e não oficiais, formais e informais. A palavra “rede” transmite a idéia de um sistema

coordenado. Até recentemente, com freqüência o que se via não era isso. Muitas vezes, os

83

médicos de família e comunidade, os médicos em hospitais, os responsáveis médicos pela

saúde, os enfermeiros em casas de repouso, os assistentes sociais e outros trabalhadores da

área trabalhavam de forma absolutamente isolada, sem entender o sistema como um todo.

Muitas organizações estão reformulando o atendimento de clínica geral para torná-lo um elo

importante nessa rede, o que permitirá que as pessoas se beneficiem de quaisquer encontros

com provedores de saúde que precisarem procurar.

O médico de família deve assim conhecer os equipamentos sociais existentes na

comunidade que possam beneficiar os pacientes. Nasduas comunidades que trabalhei, os mais

frequentados eram os centros que ofereciam exercícios físicos gratuitamente. Na UBS

Francisco Domingos da Silvahavia um grupo de ginástica ministrado por bombeiros (“grupo

dos bombeiros”), comboa adesão dos pacientes. Podiam contar também com o Projeto 4

varas, o mais bem estruturado centro comunitário de Fortaleza, localizado no bairro vizinho,

do Pirambú. O Centro oferecia sessões de terapia comunitáriae massagens terapêuticas em um

espaço zen,de estilo indígena. Contava ainda com horta de plantas medicinais, restaurante

(fazíamos algumas reuniões de equipe no local), escolinha de teatro e um posto de saúde.Este

projeto era como um oásis naquele lugar de condições tão precárias.

Perto do CSF Frei Tito de Alencar, o BNB Clube oferecia aulas gratuitas de

hidroginástica para senhoras, também com boa frequentação. Também havia uma escola

dirigida por freiras (“escolinha das irmãs”), que funcionava como creche, e sustentava-se por

meio de doações.Ambas as comunidades eram localizadas perto da praia, e o os calçadões à

beira mar eram uma opção barata para realização deexercícios físicos.Cito esses exemplos

como positivos, mas os recursos e equipamentos sociais eram de fato muito escassos.

Estes equipamentos sociais serviam de apoio para a equipe realizar atividades

comunitárias. Na “escolinha das irmãs”, por exemplo, um Residente chileno que graduara-se

em Cuba, Miguel Navarro, que estava sob minha tutoria, ensinava xadrez para crianças de 5

anos de idade um turno por semana.Era muito querido por elas, e o carinho era expressado por

um abraço coletivo que recebia em sua chegada e partida da escola. Este Residente me

ensinou muito sobre a parte “comunidade” presente no nome de nossa especialidade.

6. O ideal seria que os médicos de família e comunidade compartilhassem o

mesmo habitat que as pessoas que atendem. Em anos recentes, isso se tornou menos comum,

exceto nas zonas rurais, nas quais surgiu o médico visitante. Em algumas comunidades,

principalmente em áreas centrais de grandes cidades no hemisfério Norte, os médicos

virtualmente desapareceram, o que representa uma tendência recente de separação entre vida e

trabalho. Para Wendell Berry (1978 apud MCWHINNEY; FREEMAN 2010, p. 27), essa é a

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causa de muitos males modernos: “Se não vivemos onde trabalhamos, e quando trabalhamos”,

escreveu, “estamos desperdiçando nossas vidas e nosso trabalho também”. O desastre no

Love Canal nas cataratas do Niágara é uma ilustração viva do que pode acontecer quando os

médicos estão distantes do ambiente das pessoas. Esse canal abandonado havia sido usado por

uma indústria local para descartar produtos tóxicos. O canal foi, depois disso, coberto e,

alguns anos mais tarde, casas foram construídas no local. Durante a década de 1960, os donos

das casas começaram a notar que uma lama química estava brotando em seus porões e jardins.

Árvores e arbustos morreram, e a atmosfera ficou poluída com gases mal cheirosos. Por volta

da mesma época, moradores na comunidade começaram a sofrer de doenças causadas por

substâncias químicas tóxicas. Entretanto, somente após um jornalista local fazer um

levantamento sobre a saúde na área, algum estudo oficial foi realizado. Os resultados

mostraram taxas de doenças, abortos e defeitos congênitos que excediam em muito os valores

de referência. Como pode um aglomerado de doenças em um ambiente obviamente poluído

não ser notado pelos médicos locais? A única hipótese possível é a de que os médicos

tratavam as pessoas sem vê-las em seu ambiente de residência. É difícil acreditar que um

médico de família e comunidade, que visitasse pessoas em suas casas e se interessasse por

seus ambientes, tivesse ficado alheio ao problema por tanto tempo. Para ser completamente

efetivo, ainda é preciso que o médico de família e comunidade seja uma presença visível na

comunidade.

Parte desse princípio era seguido pelo Residente Miguel, quenão morava na

comunidade do CSF Frei Tito, mas fazia caminhadas frequentes por dentro dela, pelo que era

chamado de louco muitas vezes pelos funcionários do posto, que achavam que estaria

correndo riscos.Ele me dizia que tinha que ser visto por seus pacientes, pois assim eles

sentiriam que o médico não guardava uma distinção de classe.

Miguel era um exemplo de médico para mim. Nunca tive a pretensão de ensinar

meus Residentes. Quando realizei minha monografia de Residência, todos os artigos que li

diziam que o preceptor não deveria ser como o médico que faz visitas em enfermarias, que

profere mini-aulas sobre os pacientes, mas sim responsabilizar os alunos por seus casos. Com

essa postura, aprendi muito com meus Residentes e Miguel foi um dos expoentes disto.

Sua graduação e Residência em MFC em Cuba deram-lhe, segundo ele, o costume

de andar pela comunidade.No modelo cubano o médico mora na Unidade de Saúde, e há uma

maior aproximação dele com as pessoas. O fato de serem procurados constantemente pelos

pacientes fora do horário de trabalho era um ponto negativo, dizia Miguel.

85

No município do Graça, interior do Ceará, onde trabalhei por 3 meses antes de

viajar em definitivo para a Alemanha, tive a oportunidade de morar e trabalhar no mesmo

bairro que atendia. Em casa éramos (dividia moradia com outros três médicos) abordados

poucas vezes, mas no restaurante onde fazíamos as refeições, isto era bem frequente, que

reflete em parte o imaginário popular de que os médicos estão sempre de plantão. Certa vez o

porteiro de meu prédio abordou-me às três horas da manhã quando chegava de uma festa para

queixar-se de uma tosse antiga que sentia.

No Graça, não tinha formação em medicina de família e não estava atento a

possíveis problemas da cidade que pudessem influenciar no adoecimentodos pacientes. Penso

contudo que esta visão seja algo romântica.Mesmo depois de ser médico de família, não sabia

o que fazer quando identificava estes problemas.Na comunidade do CSF Frei Tito, não havia

saneamento básico e olixo era jogado em áreas inapropriadas. Conhecer e considerar isto nos

atendimentos individuais na clínica era fundamental para relativizar as condutas. Mas como

fazer algo para mudar esta realidade?

Pensava que meu trabalho seria bem feito se conseguisse dar conta da complexa

clínica da Medicina de Família e estar presente quando as pessoas precisassem de mim, para

que não procurassem Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), o que aumentaria muito o

risco de medicalização. Penso que havia muitos funcionários com tempo livreno Posto de

Saúde que poderiam tensionar e articular estas mudanças.No entanto, com coordenações na

grande maioria amadoras, pois também não é exigido no Brasil qualificação específica em

gestão para assumir este cargo, não tínhamos ninguém a altura de interferirno todo do

complexo processo de adoecimento.

Em cidades, a não ser pelo exemplo de Michael Duncan, médico de família da

favela da Rocinha no Rio de Janeiro, que alugou casa na comunidade, não escutei outros

relatos de médicos que viveram esta experiência, provavelmente pelo medo de estar sob maior

risco de violência. Eu também tenho este medo e tendo a achar que perderia a privacidade se

seguisse este princípio. Talvez pela influência de meus pais, que sempre foram discretos por

serem psicanalistas.

7. O médico de família e comunidade visita as pessoas em suas casas. Até a idade

moderna, o atendimento médico em casa era uma das experiências mais profundas da

medicina de família e comunidade. Era nas casas que muitos dos grandes eventos da vida

aconteciam: nascer, morrer, passar por doenças graves ou se recuperar. Estar presente com a

família nesses eventos dava ao médico de família e comunidade muito de seu conhecimento

sobre as pessoas e suas famílias. Conhecer a casa dava um entendimento tácito sobre o

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contexto ou a ecologia da experiência com a doença. Ecologia, palavra derivada das palavras

gregas oikos (lar) e logos, significa, literalmente, “estudo do lar”. O surgimento do hospital

moderno tirou muito dessa experiência da casa. Houve vantagens técnicas e ganhos de

eficiência, no entanto, o preço foi o empobrecimento da experiência da medicina de família e

comunidade. A redefinição atual acerca do papel do hospital está novamente alterando esse

equilíbrio, e temos a oportunidade de restaurar o cuidado domiciliar como uma das

experiências definidoras das habilidades essenciais na medicina de família e comunidade. O

médico de família e comunidade deve ser um ecologista por natureza. Entretanto, a falta de

médicos de família torna difícil a visita domiciliar para pessoas com necessidades. Ao mesmo

tempo, há novas razões para atender pessoas em suas casas. Os hospitais são perigosos para os

idosos por causa de infecções hospitalares e da rápida deterioração que promovem devido à

mudança do ambiente. Atender pessoas com problemas de saúde de curta duração em casa

impede que elas espalhem ou adquiram doenças nas salas de espera das emergências ou nos

consultórios médicos. Além disso, os avanços tecnológicos tornaram o diagnóstico e a terapia

muito mais fáceis do que no passado.

Entendo que visitar pessoas em casa deve ser feito no sentido de complementar as

informações colhidas no consultório para ampliar o entendimento sobre o problema do

paciente.Perceber algum detalhe que possa ajudar na condução do caso. No Brasil, entretanto,

os turnos de visita domiciliar viraram turnos de assistência domiciliar para pacientes

acamados. O médico conhece a pessoa já em sua casa, e não tem o contraste de ambientes

consultório/casa, o que para mim é o mais interessante.

No casode Seu Sebastião, o conheci previamente no Posto antes de ir à sua

casa.Foi importante para mim testemunhar a condição precária de moradia que ele vivia

(sozinho) para compreender porque ele ia todos os dias ao Posto e porque vivia com suas

glicemias tão altas (depois descobriria que um dos motivos era que comia “bolo mole” com

leite todos os dias na banquinha de lanches do Posto). Sua casa não tinha geladeira, e por isso

não podia armazenar a insulina prescrita para controle de diabetes. Aliado aos tremores das

mãos e a consequente falta de segurança para aplicar o medicamento sozinho, ele ia

diariamente ao Posto para uso da medicação. Sem água encanada e com sua dificuldade de

locomoção, pude compreender porque sua higiene não era tão adequada. Presenciar sua vida

em casa foi importante para eu ponderar minhas recomendações. E também pelo fato de eu ter

passado a gostar mais dele depois de ter visto onde morava. Existe algo sobre este caso que

mexeu comigo que ainda não sei explicar. Como disse, foi este paciente que trouxe para o

87

meu “saber-experiência” no curso de ética-da-vida. Seu Sebastião me remetiaà crônica “O

Banho”, de meu pai:

Era ali o lugar do predileto. O lugar que se gosta de coçar. Ora, meu amigo, como o

Mão dizia, não posso ver dinheiro dos outros esquecido. Ei! Coisa perigosa é

esquecimento... Descuido é bom para cochilo de quem tem muita preguiça. Aquele

sujeito ficava todo tempo com o braço na cadeira. Passasse hoje ou amanhã, lá

estava ele, mudar de lugar não é brincadeira, não! Dá muito trabalho. É coisa difícil

tirar o braço mesmo daquele encosto. Às vezes era o jeito, mas era tão difícil. Difícil

como parar de coçar. Para quê? Coceira não mata. É como quem não toma banho.

Tomar para quê?...Sujo não incomoda e banho é muito frio. Então para que tomar?

(PACHECO, 2004, p. 29).

Também conheci pacientes diretamente em casa. Foi assim comalguns pacientes

que mais me conectei nesses cinco anos, caso de Dona Maria de Lourdes, uma senhora de 83

anos, que relatava combastante raiva a diarréia e uma “dor de aranha” na barriga que

apresentava havia alguns anos,enquanto representava a dor com a mão “aberta”, “espraiada”

sobre o abdômen. A comunicação era difícil no começo, pois eu ainda, Residente do 2o

ano,ficava irritado ao ouvir expressões estranhas que não tivessem uma equivalência no

vocabulário médico.Dor de aranha? Este é o típico choque entre um biomédico que quer ouvir

termos já classificados e uma situação em que o discurso é genuíno, como a experiência é

sentida pela pessoa.

O fato dela falar com raiva sobre as queixas também tirava minha tranquilidade

para escutar. Não entendia o problema que tinha. Não sei bem em qual visita subsequente,

penso que foi uma solicitada de urgência pela agente de saúde, mas ao chegar à casa dela,

estava com a barriga bastante distendida.Lembrou-me um desenho qua havia visto no livro de

semiologia da faculdade. Dava para ver o intestino desenhado em sua barriga. Liguei para um

cirurgião amigo de turma, que me indicou que fizesse um toque retal. Eu não tinha boa

relação com ela, e resisti muito a considerar em fazer este exame. Falei com a enfermeira, que

me encorajou a fazer o exame. Pedi a autorização de Dona Maria de Lourdes para realizá-lo.

Surpreendentemente, concordou sem pestanejar. Senti uma pressão no dedo semelhante à

sensação que tinha quando patologista na Alemanha, quando recebia intestinos fechados em

que tinha que fazer o toque para descobrir onde estava o tumor antes de seccionar a peça.

Disse a ela que tinha uma obstrução intestinal e que provavelmente teria que submeter-se a

cirurgia. Não lembro de ter dito o que causava a obstrução.

Dona Maria de Lourdes não só não acreditou em minha suspeita, como disse que

eu queriaa sua morteao encaminhá-laa um cirurgião. Praticamente mandou-me sair de sua

casa. Dias depois, soube pela agente de saúde que ela havia sido operada de urgência e que

devíamos visitá-la, depois de ter voltado após quinze dias no hospital. Cheguei à sua casa

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bastante receoso, imaginando que sua repulsa a mim havia aumentado por ter se operado e ter

tido muitas complicações depois da operação (chegara a ir para a UTI). Para minha surpresa,

apresentouuma expressãode grande felicidade ao me ver, me abraçando calorosamente em

seguida. Foi comovente, mas eu estava ainda sem entender porque estava feliz. Disse que a

“dor de aranha” havia passado.Desculpou-se muitas vezes por não ter acreditado em minha

recomendação, e lamentava-se de não ter realizado cirurgia antes, pois agora sentia-se muito

bem.Perguntei aos familiares se ela sabia de seu diagnóstico de câncer, ao que responderam

positivamente.

Realizei muitas visitas a ela, pois havia desenvolvido escaras após o internamento,

sanados com os cuidados orientados pela enfermeira. O carinho dela por mim tornou-se

muitogrande depois disso. E era recíproco, o que mefez ir a dois aniversários em sua casa,

dela e de sua neta. Foi a experiência de relação mais impactante de minha Residência, pelas

reviravoltas que teve e porque gostava muito desta senhora.

8. O médico de família e comunidade dá importância aos aspectos subjetivos da

medicina. Durante muitos anos, a medicina foi dominada por uma abordagem estritamente

objetiva e positivista dos problemas de saúde. Para os médicos de família e comunidade, essa

abordagem sempre teve de ser conciliada com a sensibilidade aos sentimentos e o

entendimento dos relacionamentos. Para entender os relacionamentos, é preciso conhecer as

emoções, inclusive as nossas próprias. Em consequência, a medicina de família e comunidade

deve ser uma prática de autorreflexão.

A maioria do tempo de minha prática em MFC foi realizando autoconhecimento

na análise. McWhinney não propõe uma forma de autoconhecimento nem escreve como

desenvolveu isto em sua prática. Segundo ele (2010, p. 119, grifo nosso):

O que torna difícil a intrusão das emoções egoístas no relacionamento entre o médico e a

pessoa é o fato que essas emoções estão frequentemente no nível inconsciente. Na

psicanálise, esse processo é chamado de transferência e contra-transferência. A

transferência no relacionamento clínico denota o deslocamento, por parte da pessoa, e

externalização de questões internas colocadas no médico; a contra-transferência denota o

oposto. Em análise, o terapeuta deliberadamente não responde intuitivamente à

transferência porque quer que a pessoa encare a resposta imatura que esse comportamento

representa. O terapeuta deve tentar identificar respostas que venham de sua própria contra-

transferência, de forma a evitar o dano que possa ser causado se esses sentimentos se

tornarem ações. Levou muito tempo até compreendermos que essas noções se aplicam a

todos os relacionamentos terapêuticos, inclusive àqueles na medicina de família e

comunidade. Freud descreveu três tipos de transferência. A transferência negativa é o

direcionamento de sentimentos hostis para o analista; na transferência erótica, o analista

torna-se o objeto do amor erótico. As duas obstruem a cura e devem ser expostas e usadas

para que se aprenda com elas. No terceiro tipo (a transferência positiva), o terapeuta é visto

como um aliado que dá apoio ao processo de cura. Disse Freud que é ‘essencialmente uma

cura por intermédio do amor’.

89

Se esses fenômenos inconscientes se aplicam também aos relacionamentos

terapêuticos na MFC, não seria importante que os médicos de família, por terem como pilar

fundamental de sua especialidade os relacionamentos, se submetessem, tal como se exige dos

psicólogos clínicos, a algum processo terapêutico para trazerem esses fenômenos do

inconsciente para a consciência, para que impedissem processos de contra-transferência que

pudessem prejudicar a cura do paciente? Se não identificamos conscientemente nossas

emoções egoístas, não estariam elas mais passíveis de serem transferidas aos

pacientes?McWhinney (2010, p. 43) afirma, a esse respeito, que “apenas o autoconhecimento

consegue nos proteger dos perigos do envolvimento em nível de nossas emoções

egocêntricas”.

O primeiro cirurgião de mão que fui após uma lesão no punho ocasionada em um

jogo de tênis em 2010estava em sua cadeira olhando para o computador quando entrei na sala.

Me aproximei e continuou com o olhar fixo no monitor, estendendo-me a mão esquerda, em

um gesto desinteressado. Meu punho apoiava-se em uma tipóia e ele perguntou-me, de súbito:

Médico: O que foi isso aí?

Eu: Tênis.

Médico: Tênis é? Pode esquecer. O seu esporte agora é hidroginástica.

Além de sua falta de treinamento em comunicação clínica (indica que devemos

dizer somenteo que o paciente deseja saber), fiquei desconfiadosobre os motivos de ter

antecipado meu futuro quando nem passava por minha cabeça voltar a jogar naquele

momento, mas sim escrever, comer, ir ao banheiro e calçar os sapatos. Será que transferia

algo de si para mim? Independente disto,sentenciou-me ao fim de um relacionamento de treze

anos com meu esporte favorito.

Entendo que no “ringue” da “luta” do paciente contra sua doença, o médico

deveria assumir o papel de “técnico”, orientando o paciente de fora do “ringue”.O médico que

não aprofunda o conhecimento sobre siprovavelmente correrá mais riscos de entrar no

conflito paciente x doença, pois poderá trazer problemas seus que nem mesmo sabe que tem

para a relação, oferecendo um adversário extra ao paciente. Muitas vezes as pessoasquerem

atrair o médico para o“ringue”. Este deve estar atento para sustentar seu papel e não permitir

que a transferência negativa evolua. Penso que os seis anos de análise me ajudavam a cada

vez menos entrar no “ringue”.

Nos últimos cinco anos como médico de família, foram incontáveis as vezes

quepresencieiInternos e Residentes repreendendo pacientes por não terem seguido as

recomendações médicas, quando estes não tomavamregularmente uma medicação de uso

90

contínuoou quando interrompiam o tratamento com antibióticos antes do período

recomendado, por exemplo.Essa postura pode prejudicar a relação médico-paciente a medida

que a desloca do nível transferencial desejado para um nível pessoal, um “corpo-a-corpo”

muitas vezes improdutivo e que muito provavelmente não fará o paciente mudar sua atitude,

além de provocar sofrimento ao médico, o que o deixa mais vulnerável a sair de seu papel de

ajudar.

O oposto pensava uma Interna (inúmeros alunos repetiam isso), em seu último dia

de faculdade, quando provoquei um debate sobre o assunto, ao me interpelarcom a frase

“professor, médicos são seres humanos!”, para justificar a raiva que sentia de pacientes

“relapsos” com seus tratamentos. A esse respeito, penso que os médicos são semelhantes aos

detetives.Ambos procuram por pistas. Os detetives solucionam casos mais rapidamente,

quanto mais fidedignas forem as pistas que encontrarem. Os médicos também

precisamtrabalhar com informações verdadeiras sobre o paciente. Ao repreendermos os

pacientes por não tomarem uma medicação prescrita, possivelmente aumentamos a chance

deles omitirem informações nos próximos encontros para evitarem o conflito.

Portanto, entendo que nosso papel é o de sermos “curiosos” ao ouvirmos as

histórias das pessoas. Procurar entender os porquês delas e não confrontar suas atitudes com

as nossas. Para isso devemos encorajá-las a falar,guardando nossos dogmas para nós. Não

estamos ali para reprimir alguém que não tomou uma medicação ou não realizou exercícios

físicos conforme o recomendado, pois desta forma estaríamos colocando o fármaco e o

exercício físico acima do relacionamento com o paciente, que é o cerne da medicina de

família. Cada pessoatem seu contexto particular (e sua autonomia) que a fez não seguir as

recomendações que se julgava serem as melhores.

O médico não deve sofrer por que a pessoa não está se cuidando e sim tomar isso

como uma informação sobre o paciente. Desconstruir no internato a posturacombativajá

bastante arraigada nos alunos era das tarefas mais difíceis da preceptoria, pois tínhamos

apenas dois meses (em seis anos de faculdade) para isso.Promover essa desconstrução em um

Posto de Saúde com falta de estrutura física, profissionais despreparados, com pacientes

lutando para serem atendidos, mefazia sentir como Roberto Benigni no filme “A vida é bela”

(1998), tentando mostrar coisas boas daquele lugar para diminuir o estranhamento dos alunos.

No curso de “ética-da-vida”, no mestrado, pude perceber que essa postura dos

estudantes, que também fora minha nos primeiros anos de prática, de achar que têm “direitos

sobreo corpo do paciente”, como se os possuissem, estavarelacionada à crítica deMichel

Foucault a respeito do poder médico, em seu livro “Microfísica do poder”.

91

9. O médico de família e comunidade é um gerenciador de recursos. Como clínico

geral e médico que tem o primeiro contato com a pessoa, os médicos de família e comunidade

têm controle sobre muitos recursos e são capazes, dentro de certos limites, de controlar as

hospitalizações, os pedidos de exames, a prescrição de tratamentos, além de fazer o

encaminhamento para especialistas. Em todas as partes do mundo, os recursos são limitados;

muitas vezes, bastante limitados. Dessa forma, é responsabilidade do médico de família e

comunidade administrar esses recursos de forma que beneficie as pessoas e a comunidade

como um todo. Em certos casos, os interesses de uma pessoa podem estar em conflito com os

interesses da comunidade em geral, e tal divergência pode suscitar problemas éticos.

John Fry (1974) escreveu que o médico de família deve proteger o paciente do

especialista inadequado, assim como o especialista do paciente inadequado. O médico de

famíliadeve reservar seus encaminhamentos paraos especialistas focais para os momentos em

que seus pacientes apresentarem variantes raras de doenças, onde começa o campo de

trabalho do especialista focal. Isso irá preservar a expertise do especialista focal, além de

proteger o paciente de intervenções desnecessárias, pelo fatodos especialistas focais não

estarem habituados a manejar os problemas clínicos mais comuns, tendendo a procurar nos

pacientes doenças raras, o que pode oferecer riscos de medicalização ou diagnósticos falso-

positivos aos pacientes, conforme será discutido adiante.

Esse princípio funciona adequadamente em países em que é obrigatório passar por

um médico de família antes de ir em qualquer outro especialista, exemplos de Canadá,

Inglaterra e Holanda. No Brasil temossomente 3919 especialistas em Medicina de Família, e

não sabemos quantos destes estão trabalhando nas trinta e quatro mil equipes da Estratégia

Saúde da Família. Conclui-se, portanto, que há milhares de médicos sem formação

trabalhando nessas equipes. Como demonstrado por Ribeiro (2009), esses médicos tendem a

encaminhar pacientes com maior frequência para especialistas focais do que os médicos de

família com formação.

Eu fazia isso no período que trabalhei sem formação na ESF. Com o intuito de

proteger os pacientes de meus erros, não sabia que de fato também estaria expondo-os aos

riscos já descritos e desorganizando o sistema de serviços de saúde da região, por aumentar os

gastos do município que trabalhava (Graça) com transporte de pacientes ao município de

referência, Sobral, uma cidade a 76 km. Contribuia assimpara aumentar as já enormes filas de

espera para especialistas nesta cidade, que recebia os encaminhamentos de todos os

municípios daquela região.

Em cinco anos como MFC, de todos os encaminhamentos que realizei, só recebi o

92

retorno com a opinião por escrito de um único colega. A falta de contra-referência contribui

para o isolamento que o médico de família sente no Posto de Saúde. O especialista focal deixa

a cargo do paciente a transmissão de sua opinião para o médico de família, sem registrá-la por

escrito. O paciente não consegue transmitir a contento, e a falta de comunicação desarticula as

redes de atenção à saúde, quando “75% das reinternações hospitalares poderiam ser evitadas

por meio de intervenções que integr[ass]em os sistemas de atenção à saúde.” (IRANI et al.,

2002 apud VILAÇA, 2011, p. 157).

Na Alemanha, quando o paciente recebia alta hospitalar, saiacom consulta

marcada para o médico de família, levando uma carta do hospitalcontendo as condutas

realizadas e asorientações para o MFC sobre o seguimento do paciente.

No sistema privado brasileiro, de planos de “saúde”, também não há médicos de

família para consultarem os pacientes antes de qualquer outro especialista. Nos planos, os

médicos vivem o conflito de interesses, entre atender às demandas do plano de diminuir os

custos e fazer o que julgam ser mais adequado para os pacientes. Michael Moore (2007),

mostrou em seu documentário “Sicko: S.O.S Saúde” que os planos de “saúde”lucram com a

desgraçados pacientes. Os auditores (médicos) procuram nos arquivos médicos dos pacientes

qualquer condição clínica pré-existente que não havia sido informada ao plano no momento

de adesão (o que seria obrigatório ao paciente), que possa justificar juridicamente a negação

dos pedidos. Esses auditores ganham bônus salariais a medida que neguem mais tratamentos

ou exames aos pacientes.

Eu já sofri isto como paciente de um plano de saúde. Quando tentei realizar nova

cirurgia para minha lesão no punho em setembro de 2011 (a primeira cirurgia não havia tido

êxito), o plano autorizou um material cirúrgico diferentedo que meu médico havia pedido.

Felizmente ele ligou para o hospital na véspera da cirurgia para conferir o material. Ele me

disse que o que havia sido autorizado, uma âncora para fixar um ligamento,se soltaria com o

tempo, e cancelou a cirurgia.

5.5Perfil da prática do médico de família e comunidade e suas diferenças com a prática

hospitalar

5.5.1 Sintomas indiferenciados e as dificuldades da prática da medicina de família

O clássico estudo de Green et al. (2001)constatou que, em um mês qualquer, de

1000 pessoas na população em geral acima de 16 anos, 800 irão relatar algum tipo de sintoma

e uma irá se internar em um hospital acadêmico terciário, o que mostra a limitação do cenário

onde os estudantes de Medicina aprendem a solucionar problemas clínicos, num lugar onde as

93

enfermidades são graves e raras. No hospital, o diagnóstico da doença é o foco do

internamento, para que seja instituído tratamento específico com urgência. Os médicos são

portanto treinados a “atirar” na doença, antes que ela cause danos à pessoa. Como as doenças

são raras, o treinamento é bastante específico. Todo o meu internato foi realizado neste

cenário.

Figura 1 – Proporção de pessoas com sintomasque são internadas em um hospital

acadêmico

terciário

37

Figura 6: Ecologia dos sistemas de saúde (adaptado de Green e cols60)

A frequência considerada para a demanda ser incluída na CIAP é

baseada nas pessoas que procuram serviços de saúde. Um episódio começa

no primeiro encontro e pode acabar nele se o paciente não procurar o serviço

pelo mesmo “problema” ou se este não for mais abordado. Um episódio de

cuidado na atenção primária tem essencialmente três elementos: o motivo da

consulta, o “problema” (ou diagnóstico) estabelecido pelo médico e a

intervenção acordada. Um exemplo é ilustrado na figura 7 já com os respectivos

códigos da CIAP. O paciente queixa-se (motivo da consulta 1) no primeiro

encontro de fraqueza. Este pode não ser de fato o primeiro encontro do

paciente com este profissional da saúde mas os outros “problemas” listados no

prontuário eletrônico não são relacionados com esta nova queixa. O médico de

família caracteriza o “problema” (diagnóstico ou avaliação 1) como fraqueza

1000 pessoas em um mês

800 têm sintomas

217 procuram um médico

8 são internadas em um hospital local

< 1 é internada em um hospital terciário

Fonte: GUSSO(2009)

Na APS, onde a vida acontece em condições não estéreis como no

hospital,amplia-se de um (hospital acadêmico terciário) para mil o universo de pessoas a

serem atendidas. As doenças graves são bem menos prevalentes que no hospital e a prática

clínica, predominantemente ambulatorial, mais está em excluir diagnósticos graves para

observar e acompanhar as pessoas com segurança do que propriamente em diagnosticar

doenças (RAKEL, 2002), já que em 25 a 50% das consultas, as experiências com a doença

permanecem sem diferenciação, o que impossibilita um diagnóstico em termos de patologia.

Devemos definir a diferença entre experiência de doença, a tradução para o

português do termo em inglês illness, e doença, tradução de disease. A experiência de adoecer

é individual, e só pode ser entendida no contexto de cada paciente. São sintomas que não

foram ainda classificados pela Medicina. Doença é o que já foi categorizado, que pode ser

generalizado para as pessoas. Estas podem recuperar-se de uma doença, e mesmo assim

sentirem-se doentes. Não há métodos rígidos para avaliar a experiência de doença. Somente o

entendimento da pessoa poderá valorizar estes sentimentos. Os médicos de família lidam com

várias pessoas em que há experiência de doença sem uma doença que possa ser diagnosticada.

94

A prática ambulatorial da Atenção Primária, foi muito bem descrita por John Fry

(1974 apud DUNCAN et al., 2004, p. 131):

Fora do hospital, as doenças comuns numa comunidade se caracterizam por serem de

menor porte, benignas, fugazes e autolimitadas, com acentuada tendência para a

remissão espontânea. Sua apresentação clínica tende a ser um tanto vaga e é difícil

afixar-lhes um rótulo diagnóstico preciso. Frequentemente permanecem

indiferenciadas e não identificadas do começo ao fim do episódio. Muitas vezes a

patologia clínica vem acompanhada de problemas sociais, de sorte a exigir uma

conduta que simultâneamente faça frente a ambas.

Entendemos por sintomas indiferenciados os que nunca foram classificados ou

nomeados por um médico. Como o médico de família está na porta de entrada do sistema de

saúde, vê muitas pessoas com sintomas desta forma. Eles podem não ser classificáveis por seis

razões. A primeira é que podem ser tão transitórios, que se resolvem completamente antes que

qualquer diagnóstico pudesse ser feito. Segundo, um problema pode ser tratado pelo médico

de família tão precocemente, que não chega a um estágio de diferenciação em que um

diagnóstico fôsse possível. Terceiro, há condições limítrofes ou intermediárias na periferia de

cada doença que são difíceis ou impossíveis de classificar.

Quarto, os sintomas podem ficar indiferenciados para sempre. São os chamados

sintomas diagnósticos. Quinto, os sintomas podem levarmuitos anos antes que se diferenciem

em algo que já foi classificado. Por último, as experiências com a doença podem ser tão

associadas ao contexto pessoal de cada indivíduo que podem ser impossíveis de classificar.

São um problema daquela pessoa em particular.(MCWHINNEY; FREEMAN, 2010). Por

essas razões, não temos em nossas notas de evolução dos pacientes uma lista de diagnósticos,

mas uma lista de problemas. É importante também destacar que os livros de Medicina, que

mostram as doenças com seus critérios diagnósticos bem definidos,não nos ensinam a

diagnosticar as doenças em seus estágios indiferenciados.

Para acompanhar os sintomas indiferenciados, o médico de família deverá

desenvolver grande capacidade de observação clínica. A esse respeito, escreve Ian

McWhinney (2010, p. 201) que

O exagero na investigação é provavelmente o erro mais comum na medicina

atualmente. Algumas vezes, esse erro está relacionado a uma busca inexorável por

um diagnóstico em uma pessoa que está se recuperando de uma experiência com a

doença. Outro exemplo desse erro, frequentemente encontrado no início da

residência em medicina de família e comunidade, é o uso de exames quando a

observação clínica poderia ser uma melhor estratégia de investigação. Para muitas

situações vistas na medicina de família e comunidade, como a dor pré-erupção de

herpes-zoster, a observação clínica é a única forma de se estabelecer um diagnóstico.

Com isso, o médico de família deverá muitas vezes lançar mão de uma importante

ferramenta de trabalho, a “demora permitida”. Ela foi definida como o tempo que o médico

95

pode esperar diante de um problema de um paciente para que este se diferencie,sem colocar o

paciente em risco. Neste caso, a conduta seria a observação do paciente, pedindo para ele

voltar depois do tempo que o médico julgasse seguro esperar para aquele problema se

diferenciar. Logicamente, o médico deverá estar seguro de que não se trata de uma urgência,

pois aí estaria colocando em risco o paciente.

O médico de família ganha assim um importante aliado: o tempo. O médico

deveria pensar primeiramente se o caso é urgente e se não for, se ele pode esperar. Se sim,

deve avaliar quanto tempo pode esperar e isto deverá ser particularizado em cada caso.

(KLOETZEL, 2004).Essa estratégia clínica deve ser muito bem comunicada ao paciente, para

que ele entenda exatamente o objetivo do médico com esta atitude.Devemos transmitir nossa

incerteza com segurança, para que a pessoa sinta-se segura com esta espera.

É também interessante frisar que o médico não poderá esperar quando ele tenha

dúvidas sobre o diagnóstico por causa de uma deficiência de sua formação, pois assim estará

colocando seu paciente em risco. O médico deve então se perguntar: “Estou esperando algo

realmente indiferenciado, ou algo que está diferenciado, mas que eu não sei diagnosticar?”

Neste caso, se ele julgar que pode esperar um dia sem risco de prejuízo ao paciente, como na

maioria das vezes ocorre na Medicina de Família, o médico deverá pedir para o paciente

voltar no dia seguinte. Com isso, poderá estudar, e então decidir se pode praticar a demora

permitida, ou se deve intervir no problema naquele dia.

Deve-se ressaltar que quando os médicos de família estão diante de pessoas com

doenças indiferenciadas em seus estágios iniciais em que não se pode chegar a um diagnóstico

preciso, deverão muitas vezes buscar características naquele caso que o permita classificá-lo

em categorias binárias, para que tenham uma pista sobre se podem observar aquela pessoa

sem riscos para ela. Algumas dessas categorias binárias são: “urgente ou não urgente”,

“abdomen agudo ou não abdomen agudo”, “infecção por bactéria ou infecção por vírus”,

“infecção das vias aéreas superiores ou inferiores”, etc. (MCWHINNEY; FREEMAN, 2010).

Cito como exemplo de “demora permitida” o caso de uma mulher que veio ao

médico com uma rouquidão súbita com que acordara aquele dia, que a deixou afônica. Não

tinha febre ou qualquer outro sintoma. Por ser a rouquidão bastante comum e geralmente

benigna, tratando-se na maioria das vezes de uma laringite aguda viral, que cura

espontaneamente, o médico de família decidiu agendar um retorno para três dias. Pensou

também em outros possíveis diagnósticos, como o câncer e a tuberculose laríngea, mas, por

esses diagnósticosnão serem de início súbito, e por não evoluírem rapidamente em três dias a

96

ponto de colocar a paciente em risco, ficou tranquilo com sua decisão. No retorno, a paciente

havia recuperado o uso de suas cordas vocais.(KLOETZEL, 2004).

A “demora permitida” era um fator de desconfiança que o alunos de medicina

tinham em relação à prática da medicina de família, pois achavam que observar era “não fazer

nada”, ou uma prática de um generalista que não quer “dar o braço a torcer” que não sabe e

por isso não querencaminhar o paciente ao especialista focal, o que eradesconstruído (nem

sempre) ao longo dos dois meses de estágio no Internato.

Kurt Kloetzel (2004) também é polêmico ao se opor à prática do “exame físico

completo”, por argumentar que o exame físico jamais deixaria de ser incompleto, seja porque

uma manobra seria demorada ou complicada demais, ou porque seria inaceitável ao paciente.

Ele advoga que os achados ocasionais de um exame físico completo poderiam ser prejudiciais

ao paciente por levar a investigações desnecessárias, pois não é só a falta de informação que

traz prejuízo à consulta, mas o excesso também pode ser perigoso. Exemplifica isso falando

do caso de crianças com sopros cardíacos suaves sem maiores consequências que são

afastadas de suas atividades físicas no colégio. Ele defende, portanto, um exame físico

seletivo, voltado para a queixa da pessoa.

Isto também era difícil de ser entendido pelos alunos, que queriam examinar todos

os pacientes independentemente do motivo da consulta (lembro-me novamente de Chaplin em

Tempos Modernos). Penso que não banalizar o exame físico é uma forma de respeitar o corpo

do paciente. Entendo que, assim como os exames complementares, o exame físico é adicional,

ao qual deveremos recorrer quando necessitamos esclarecer algo que permaneceu incerto com

a comunicação, que sem dúvida é o componente da consulta mais importante para o

diagnóstico e o cuidado da pessoa, como veremos adiante. Há aqueles que defendam que os

pacientes só dão-se por satisfeitos se forem examinados. A eles, diria que uma comunicação

totalmente atenta à pessoaé o fator que a faz sentir mais satisfeita durante a consulta,

conforme constatei em minha prática.

Além dos problemas indiferenciados, outro ponto que demonstra a especificidade

e complexidadeda prática do médico de família é que as pessoas apresentam mais de três

problemas em mais de um terço das consultas. Isto é conhecido por multimorbidade, e pode

afetar as habilidades cognitivas do médico. (MCWHINNEY, FREEMAN, 2010). Aconteceu

frequentemente comigo durante a Residência, principalmente no primeiro ano, pois achava

que tinha que dar conta de todas as queixas em uma única consulta, o que demandava muito

tempo e me fazia fechar o acesso aos pacientes que diziam querer falar comigo rapidamente,

pois sempre tinha medo de eles terem muitos problemas a tratar.Com o tempo, além de ter

97

ficado mais rápido para resolver algumas queixas, fui entendendo que o contato longitudinal

me permitia negociar com o paciente o que era mais importante naquela consulta, elaborando

um plano para abordar outros assuntos em contatos posteriores. Isso permitia com que mais

pacientes tivessem acesso a mim.

Outro problema é que a maioria das diretrizes clínicas(ou linhas guia) são

destinadas para pessoascom somente uma doença. Os estudos clínicos randomizados que

servem de base para essas diretrizes tentam excluir pessoas com multimorbidade, o que torna

difícil a transferência de recomendações clínicas para a medicina de família. (MCWHINNEY,

FREEMAN, 2010).

5.5.2 Aspectos importantes da comunicação clínica

A maioria dos erros médicos não ocorrem por incapacidade técnica do médico,

mas por erros de comunicação com a pessoa. Mesmo com um diagnóstico correto, se isto não

for comunicado de forma adequada ao paciente, o tratamento poderá não funcionar.

As pessoas percebem diariamente diferenças em seus estados internos, que

indicam diferenças do estado usual das coisas: desconfortos, dores de cabeça, dores nos

músculos, má digestão, fadiga, coceira, insônia, irregularidades menstruais, etc. Essas

experiências são interpretadas de acordo com o contexto de cada um. Uma pessoa que

geralmente apresenta tosse com secreção pela manhã, não vai ter tanta informação quando

olhar para seu escarro. Se em uma manhã, o escarro vier com sangue, a pessoa vai receber

mais informação, e ficará em estado de alerta.

Uma outra que apresentar dor de cabeça pela manhã após uma noite em que

ingeriu bebida alcóolica excessivamente, não irá receber informação sobre seu estado.

Entretanto, se acordar com dor de cabeça sem nenhum motivo que possa justificar a dor,

principalmente se nunca tiver tido dor de cabeça antes, ela receberá mais informação, e

poderá ficar preocupada. Eu associei minha urina avermelhada em meu primeiro dia de

Internato à Hepatite A que havia tido na infância, para só depois lembrar que não havia

bebido água.

Às interpretações sobre o que o corpo sente e as atitudes tomadas em seguida

variam muito de pessoa para pessoa. Algumas tentarão o autocuidado por algum tempo,

outras irão buscar aconselhamento com amigos e parentes e outras, irão procurar um médico,

por decisão individual ou por pressão da família e amigos. Após decidir ir procurar um

médico, a pessoa deve decidir como irá comunicar o que está sentindo ao médico, quais

palavras irá usar e quais problemas ou sintomas irá transmitir primeiro. Frequentemente, há

98

também emoções, fantasias ou medos relacionados a esses sintomas.Aqui encontramos as

dificuldades e complexidades da comunicação entre pessoa e médico.

Para alguns sintomas, as pessoas conseguem achar facilmente uma linguagem

clara para comunicar-se com o médico, expressando-se de forma verbal sem tantos

problemas. Outros sintomas como ansiedade, tristeza, sofrimento ou culpa podem ser mais

difíceis de verbalizar, e os pacientes podem utilizar uma forma indireta de comunicação, por

meio de metáforas ou formas não verbais. Alguém que não consegue encontrar palavras para

expressar seus sentimentos de desespero, poderá optar por falar de um sintoma que apresente,

como uma dor de cabeça, por exemplo, sobre a qual seja mais fácil de falar. Entretanto, a dor

de cabeça pode ser um efeito do problema e não o aspecto central que o médico deveria se

concentrar.

Outro aspecto importante que o médico de família deve atentar para evitar

possíveis raivas ou sentimentos ruins é o fato de “que quando uma pessoa expressa

transtornos pessoais por meio de sintomas do corpo, não está inventando os sintomas nem

imaginando as sensações, mas simplesmente escolhendo os aspectos da experiência de estar

doente que mais facilmente consegue colocar em palavras.” (MCWHINNEY; FREEMAN,

2010, p. 132).

Por todas essas razões, identificar o real motivo da consulta pode ser uma das

coisas mais difíceis da prática clínica da MFC, principalmente se levarmos em conta que as

pessoas têm muitas vezes mais de três queixas por consulta. Portanto, o médico de família

deve se manter constantemente atento ao conteúdo e o modo como a pessoa está falando,

mantendo uma postura aberta para escutar, não julgadora, para que a pessoa sinta-se

confortável para falar de seus sentimentos mais íntimos, que podem levar à identificação do

problema principal. Logicamente, deve compartilhar suas interpretações com a pessoa, para se

afinar com ela na identificação do problema.

No caso de uma pessoa que veio consultar por um problema que teve dificuldade

de comunicar, ela pode deixar para relatá-lo por último. Este pode ser deixado para o

momento de saída, em que a pessoa está se aproximando da porta, sendo conhecido como

“comentário da maçaneta” ou “problema de saída”, que era o principal problema que a pessoa

queria resolver. (MCWHINNEY, FREEMAN, 2010, p. 131). Até ler sobre este problema,

ficava com raiva quando isso ocorria, pois já havia concluído a consulta. Nesses casos é

importante pedir para o paciente sentar-se e iniciar uma conversa novamente.

Outro ponto fundamental na comunicação é que, ao se dar más notícias a uma

pessoa, não se deve absolutamente ter a pretensão de precisar o tempo dos prognósticos. Além

99

da onipotência que há por trás desta atitude, o médico estará fazendo algo devastador para a

pessoa. Uma antiga Residente “minha” apresentou um caso de um paciente com um câncer

raro, que confundiu o tempo de prognóstico que seu médico havia lhe sentenciado: escutou 16

anos em vez de 16 meses. Este paciente superou inclusive os 16 anos entendidos por engano,

e ainda não havia tido recidiva da doença quando da apresentação deste caso clínico.

Meu estilo de comunicação é manter uma intensidade alta de interação, sem deixar

de fazer contato verbal e visual com o paciente quando levanto para lavar as mãos ou quando

realizo exame físico. O tempo é curto e devemos aproveitá-lo para aprofundarmos a história.

Não há condições de realizar atividades durante a consulta que compitam com o tempo para

comunicação, como anotar as evoluções nos prontuários, deixando isto para os intervalos

entre os pacientes. Outra coisa fundamental é que, quando estamos com dúvidas sobre os

casos,devemos transmitir nossa insegurança com propriedade aos pacientes, mostrando a ela

que o médico tem um plano para tentar diminuir sua incerteza.

Uma pergunta que passei a utilizar na prática clínica, em momentos em que estou

confuso com as informações coletadas com a entrevista, é: “Existe algo que você não me

contou que você acha que poderá me ajudar a pensar sobre o seu casocom maior clareza?”.

Esta pergunta foi essencial no atendimento de uma menina de dezoito anos que veio porque

acordou com uma dor na região acima do púbis, mas que não tinha queixas urinárias ou

qualquer outro sintoma, e nem eu sentia que a sua expressão corporal era equivalente à

intensidade da dor que relatava. Permaneci uns trinta minutos com ela, pois sentia que não

devia encaminhá-la à UPA (a “demora permitida” no caso não funcionaria por causa da dor).

Quando fiz a pergunta, ela revelou que havia perdido a virgindade na noite anterior, e que

achava que a dor podia ter relação com este fato. É interessante o alívio que o médico sente

nesta hora, e a alegria de ter poupado alguém do incômodo de se deslocar a outro lugar, e do

risco de medicalização que estaria exposta na UPA. Concordei com a paciente, que estava

muito bem meia hora depois, quando a vi na sala de espera (não entendi porque não havia ido

embora), junto ao namorado. Sorrimos um para o outro e entrei na sala para continuar os

atendimentos.

5.5.3 Problemas de se transferir médicos sem formação para a Atenção Primária

Como pudemos ver, a Medicina de Família é uma prática específica ecomplexa,

que exige um treinamento específico para desenvolvimento de todas essas habilidades. O

método considerado padrão-ouro para formar um médico de família é a Residência médica.

100

Um aluno que aprendeu a solucionar problemas clínicos no hospital acadêmico

terciário tenderá a manter a mesma base de referência que é adequada para pessoas com

doenças graves e bem definidas em seus estágios mais avançados. Se o aluno usar essa base

de referência para resolver problemas clínicos na Atenção Primária, terá grandes dificuldades,

pelas nuances acima expostas, e porque a sensibilidade, especificidade e o valor preditivo de

dados clínicos e exames variam muito em virtude da prevalência das doenças na população (e

com isso nos diferentes cenários), o que significa dizer que o mesmo exame que pode ser útil

para diagnosticar no hospital terciário, pode ser inútil, e até prejudicial na medicina de

família e comunidade. (MCWHINNEY; FREEMAN, 2010, grifo nosso).

Se a Prevalência de doenças graves no hospital era alta, os exames

complementares para diagnosticar essas doenças neste cenário tinham alto valor preditivo

positivo, proporcionando assim boas possibilidades de diagnóstico. Entretanto, na

comunidade, a Prevalência de doenças graves se dilui muito (diminui), e se o médico usar os

mesmos exames que solicitava no hospital, para procurar o mesmo perfil de doenças, esses

testes agora tem baixo valor preditivo positivo, o que acarretará num aumento do número de

exames falso positivos (pessoas saudáveis com exames positivos) dos exames. Isto é perigoso,

pois levará a investigações desnecessárias posteriores, gerando iatrogenia.

Os médicos recém-formados que irão procurar na Atenção Primária aquilo que

aprenderam nas enfermarias do hospital, como muitas vezes observei em minha experiência

como preceptor, irão se frustrar, pois raramente vão achar o que procuram.Com a cultura

agressiva de “atirar” na doença que tinham no hospital, tenderão a “atirar” nas doenças que

encontrarem na APS. Só que essas doenças são na maioria benignas, e os “tiros” podem ser

perigosos aospacientes. É como se colocássemos atiradores de elite para serem porteiros de

um prédio. O porteiro conhece os moradores se ficar em um prédio muito tempo, está

acostumado a ver os condôminos todos os dias. O atirador de elite não, deverá atuar em

condições especiais, mais raras. Foi treinado para atirar e seu trabalho como porteiro poderá

ser desastroso.

Desta forma está fazendo o Governo Federal com suas recentes políticas públicas

no campo da saúde. O Programa de Valorização do Profissional de Atenção Básica

(PROVAB), lançado em 2012, dá um bônus de 10% na prova de Residência para o médico

que passar um ano no interior sob supervisão mensal, além de uma bolsa de oito mil reais,

uma folga semanal, e a chance de realizar uma especialização em saúde da família. Existem

aproximadamente quatro mil médicos neste Programa. Todos sem formação em Medicina de

Família. Todos trabalhando como médicos de família. O Governo, além de ir contra um dos

101

princípios essenciais da Atenção Primária (longitudinalidade), pois estimula o médico a

passar somente um ano no interior (o médico deverá mudar de lugar se quiser ficar um

segundo ano), paga mais a esses médicos do que as prefeituras do país pagam a médicos com

Residência em medicina de família que trabalham há mais de cinco, dez anos em um mesmo

Posto de Saúde. Será que esses médicos sem formação trazem mais benefícios à população do

que os prejuízos que ela tem se não contar com médicos? Será que o Governo não se fez esta

pergunta antes de lançar o Programa?

As UPAs, uma política que não é deste Governo mas que se expandiu muito com

ele, também funciona com médicos sem formação específica em medicina de emergência, que

atendem os casos que deveriam ir para o médico de família, no postode saúde. Perto do CSF

Frei Tito, havia uma UPA, e era raro ver um paciente meu que fosse lá e não saísse com

menos de quatro medicações.

Por último, o Programa que gerou mais repercussão midiática, o Mais Médicos. O

Governo abriu aproximadamente dez mil vagas para médicos trabalharem como médicos de

família e comunidade em áreas remotas do país. Também não exigiu formação. No entanto, a

outra parte do Programa Mais Médicos trará um avanço jamais visto na história da Saúde no

Brasil. O Governo quer exigir que no ano de 2018 todos os médicos do país só possam

exercer a prática médica após realizar Residência. Para isso, destinará 40% delas à Medicina

de Família e Comunidade, a exemplo do que fazem países em que as pessoas devem passar

pelo “porteiro” (médico de família) antes de consultar qualquer médico, como no Canadá e na

Inglaterra.

Nestes países, as vagas de Residência são distribuídas de acordo com as

necessidades sociais do país. Se um recém-formado deseja fazer dermatologia, mas o país não

está precisando de dermatologistas, mas de médicos de família, ele deverá fazer esta

especialidade por um tempo, até o país precisar novamente de dermatologistas. No Brasil, as

vagas de Residência se distribuem de acordo com o mercado. Se o SUS de Fortaleza precisa

de mais dermatologistas para cuidar da população, mas a Sociedade Brasileira de

Dermatologia julgar que o mercado de Fortaleza está bom para os dermatologistas, não haverá

abertura de novas vagas de Residência nesta área. No geral, se o Governo conseguir fazer o

que está propondo para 2018, merece ser louvado. Mas e ate lá, como evitar os perigos dos

médicos sem formação que já estão/estarão atendendo?

O quadro a seguir resume a diferença da clínina hospitalar e a praticada na

Atenção Primária:

Quadro 2 – Características da clínica na APS e no Hospital

102

Atenção Primária

Atenção Hospitalar

80 a 90% dos problemas de saúde 10 a 15% dos problemas de Saúde

É necessário compromisso com a

terapêutica.

É possível compromisso maior com o

diagnóstico, do que com a terapêutica.

Critério de eficácia: qualidade de vida Critério de eficácia: ALTA

HOSPITALAR.

Momento crônico Momento agudo

Seguimento no tempo Encontro momentâneo

Resultado a médio e longo prazo Resultado imediato

Sujeito in vivo (em relação) Sujeito in vitro (isolado)

Tratamento negociado com o doente.

LIMITES.

Relação Autoritária, pouco questionada

pelo doente. Sensação de ONIPOTÊNCIA

Doente Preocupado em "Viver" Doente Preocupado em Sobreviver

Procedimentos: remédios, exames,

atividades, intervenções psi, intervenções

sociais. Predomina intervenção

"biopsicossocial", consciente ou não.

Procedimentos: remédios, exames.

Predomina intervenção no corpo.

Fácil produzir dependência (acesso fácil). Difícil perceber dependência (acesso

difícil)

Fácil perceber efeitos colaterais dos

tratamentos

Mais difícil perceber efeitos colaterais dos

tratamentos

Análogo a um Filme

Análogo a uma fotografia

Fonte: CUNHA (2004)

5.5.4 Doenças mais comumente vistas na medicina de família e comunidade

Nem só de sintomas indiferenciados se faz a prática da medicina de família. Há

muitos sintomas que representam doenças comuns, bastante prevalentes na população.

103

Começando com exemplos internacionais, poderíamos citar os sintomas de

apresentação mais comuns entre homens e mulheres nos serviços canadenses e britânicos, por

meio do quadro a seguir:

Quadro 3- Os 10 sintomas de apresentação mais comuns entre homens e mulheres nos

serviços canadenses e britânicos

Seviços Canadenses Serviços britânicos

Homens Mulheres Homens Mulheres

Tosse Dor

abdominal/Pélvica

Tosse Tosse

Dor de garganta Tosse Erupção Erupção

Resfriados Dor de garganta Dor de garganta Dor de garganta

Dor

abdominal/Pélvica

Distúrbios

menstruais

Dor abdominal Manchas, feridas,

úlceras

Erupção Resfriados Sintomas intestinais Dor abdominal

Febre/Calafrios Erupção Dor no peito Sintomas intestinais

Dor de ouvido Depressão Dor nas costas Dor nas costas

Problemas nas

costas

Corrimento vaginal Manchas, feridas,

úlceras

Dor no peito

Inflamação na pele Ansiedade Dor de cabeça Sintomas gástricos

Dor no peito Dor de cabeça Dor nas

articulações

Dor de cabeça

Fonte: MCWHINNEY; FREEMAN(2010)

No Brasil, Gusso (2009) estudou os principais problemas de saúde apresentados

pela população de Florianópolis ao consultarem um médico de família:

Tabela 1 - Problemas mais frequentes por sexo na população de Florianópolis em 2009

104

Fonte: GUSSO(2009)

No CSF Frei Tito de Alencar, último Posto onde trabalhei, uma ex-Residente

minha realizou um estudo (SANTOS, 2013) que definiu os problemas mais comuns

encontrados em sua equipe de saúde:

Tabela 2 -Problemas de saúde mais comuns na população da equipe 31 de março do CSF Frei

Tito de Alencar em

105

Fortaleza

41

Tabela 7 – Problemas mais frequentes

Problemas Frequência Porcentagem Porcentagem

acumulada

K86 - Hipertensão sem complicações 143 7,9% 7,9%

R74 - Infecção aguda do aparelho

respiratório superior

139 7,71% 15,61%

T90 - Diabetes não insulino dependente 78 4,32% 19,93%

W78 - Gravidez 74 4,10% 24,03%

A97 - Sem doença 46 2,55% 26,58%

N01 - Cefaléia 45 2,5% 29,08%

D87 - Alterações funcionais do estômago 38 2,11% 31,19%

S76 - Outras infecções da pele 27 1,5% 32,69%

S06 - Erupção cutânea localizada 24 1,33% 34,02%

L03 - Sinais/sintomas da região lombar 24 1,33% 35,35%

P76 - Perturbações depressivas 23 1,27% 36,62%

D96 - Lombriga, outros parasitas 22 1,22% 37,84%

S74 - Dermatofitose 21 1,16% 39%

U71 - Cistite/outra infecção urinária 21 1,16% 40,16%

T04 - Problemas alimentares de

lactentes/crianças

19 1,05% 41,21%

B80 - Anemia por deficiência de ferro 19 1,05% 42,26%

R96 - Asma 18 0,99% 43,25%

R97 - Rinite alérgica 18 0,99% 44,24%

H82 - Síndrome vertiginosa 18 0,99% 45,23%

X99 - Doença genital feminina, outra 17 0,94% 46,17%

D01 - Dores abdominais generalizadas,

cólicas

16 0,89% 47,06%

P74 - Distúrbio ansioso, estado de

ansiedade

16 0,89% 47,95%

R75 - Sinusite crônica, aguda 16 0,89% 48,84%

T93 - Alteração do metabolismo dos

lipídios

16 0,89% 49,73%

L15 - Sinais/sintomas do joelho 15 0,83% 50,56%

S99 - Outras doenças da pele 15 0,83% 51,39%

U99 - Outras doenças urinárias 14 0,78% 52,17%

X05 - Menstruação escassa, ausente 14 0,78% 52,95%

L01 - Sinais/sintomas do pescoço 14 0,78% 53,73%

A70 - Tuberculose 13 0,72% 54,45%

T82 - Obesidade 13 0,72% 55,17%

R05 - Tosse 13 0,72% 55,89%

X72 - Candidíase genital feminina 13 0,72% 56,61%

Assim como nos motivos de consulta, foram analisados os cinco principais capítulos dos

problemas por faixa etária (Gráfico 6). Não foram encontrados estudos que tivessem realizado este

tipo de análise.

Nas crianças de 0 a 4 anos, os diagnósticos mais comuns estavam presentes nos capítulos

respiratório, geral, pele, digestivo e endócrino, semelhante ao encontrado nos motivos de consulta,

com exceção do capítulo endócrino, nos menores de 1 ano. De 5 a 9 anos apenas quatro capítulos

Fo

nte: BASTOS (2013)

Porém, isso não quer dizer que o médico de família, em sua prática, não possa se

deparar com pessoas com doenças raras. Caso seus pacientes apresentem-nas, o médico de

família terá que aprofundar-se sobre o manejo daquelas doenças.

5.6O método clínico centrado na pessoa

Visto que a Medicina de Família e Comunidade apóia-se em outro paradigma,

cuja principal característica é transcender a separação mente e corpo proposta pelo paradigma

biomédico, o método clínico convencional nunca se adaptou bem a essa especialidade.

Portanto, médicos de família utilizam um método clínico específico em sua

prática, ou método clínico centrado na pessoa (MCCP). Seu principal objetivo é realizar a

dupla tarefa de entender a pessoa e entender a doença da pessoa. A característica mais

importante do método clínico centrado na pessoa é que o médico deve estar atento às emoções

dos pacientes já no início do acompanhamento, e não como no modelo biomédico, em que o

106

médico só irá atentar para esses aspectos após as incursões no corpo da pessoa não tiverem

resultado em um diagnóstico de uma patologia orgânica. (MCWHINNEY; FREEMAN,

2010).

O termo “medicina centrada no paciente” foi criado por Balint et al. em 1970,

que definiram o termo para se opor à “medicina centrada na doença”. A compreensão das

queixas baseadas nas opiniões da própria pessoa era chamada de “diagnóstico abrangente”, e

a baseada na avaliação voltada para a doença tinha o nome de “diagnóstico convencional”.

(BROWN et al., 2010).

O método clínico centrado na pessoa foi desenvolvido por Moira Stewartet al.,

todos da Universidade de Western Ontario, no Canadá. Eletem influências dos trabalhos de

Rogers (1951) sobre o “aconselhamento centrado no cliente”, de Balint (1957) sobre medicina

centrada no paciente, de Newmann e Young (1972) sobre a abordagem da pessoa como um

todo no manejo de problemas de enfermagem, e da terapia ocupacional, com Mattingly e

Fleming (1994), com sua “Prática de Dois Corpos”. Esse método amplia a abordagem médica

tradicional ao incluir questões de ordem psicossocial, a família e o próprio médico no modelo

de comunicação. (BROWN et al., 2010).

Essa proposta de atendimento requer algumas mudanças na mentalidade dos

médicos. Primeiramente, a noção de hierarquia que o médico está no comando e a pessoa é

passiva não pode estar presente nesta prática. Para conseguir ser centrado na pessoa, o médico

tem que compartilhar o poder com ela, renunciando ao controle que normalmente fica de

possedo profissional. Esse é um imperativo moral da medicina centrada na pessoa. Ao

conseguir essa mudança de valores, o médico experienciará novos direcionamentos que o

relacionamento pode assumir quando o poder é compartilhado. Em segundo lugar, manter-se

em uma posição cartesiana diante das pessoas reflete uma insensibilidade ao sofrimento

humano inaceitável. Ser centrado na pessoa requer o equilíbrio entre o objetivo e o subjetivo,

no encontro entre mente e corpo. (BROWNet al., 2010).

Luís Pisco (2008), que fora presidente da associação portuguesa dos médicos de

clínica geral, também descreveu o que é ser centrado no paciente e compartilhar o poder. Ele

diz que tradicionalmente os médicos foram ensinados a olhar com ceticismo para o que os

pacientes dizem, e esta desconfiança quanto à objetividade das queixas se traduziria nas notas

de evolução dos médicos: “o paciente acredita”, ou “o paciente nega”. Ele afirma que

devemos respeitar os pacientes enquanto peritos em sua doença, por isso diz que a consulta

médica é um encontro entre dois experts. Concordo com ele, o médico sabe sobre a doença e

o paciente sabe sobre a doença em si mesmo. Os médicos tradicionais devem saber que

107

ninguém sabe mais sobre sua doença do que o paciente, e que este é o mais importante

partícipe da consulta.

Entendo que para sermos centrados nas pessoas,devemos ter em mente que o n=1

tem igual importância ao n=100 de um estudo, por exemplo. Freud descobriu a psicanálise

com um caso. Se fosse pedir o aval dos biomédicos cartesianos para prosseguir sua

investigação, certamente seria desencorajado. Fatalmente ouviria que seu "n" seria pequeno

demais e que seu estudo nao teria significância estatística. Entretanto, realizou das maiores

descobertas da humanidade: o inconsciente.

O método clínico centrado na pessoa não é descrito como tarefas rígidas que

deverão ser seguidas pelo médico em todas as consultas, e por isso é descrito em seis

componentes aos quais o médico deverá estar atento, descritos por Brown et al. (2010).

1º Componente: Explorando a doença e a experiência da doença

Nesta etapa o médico deverá dar conta de realizar anamnese e exame físico (se for

o caso) para avaliar o processo da doença, e entender a experiência única de adoecer para

aquela pessoa. Para isso, deve ter em mente a sigla SIFE (S: Sentimentos do paciente acerca

da doença; I: Idéias do próprio paciente sobre o que ele tem; F: Funcionamento ou em que

grau a doença causa impacto na vida da pessoa e E: Expectativas do paciente em relação ao

médico), para perguntar os sentimentos da pessoa acerca de sua experiência de adoecer, suas

idéias sobre aquilo que apresenta, como a doença interfere em sua vida, e as expectativas que

a pessoa tem em relação ao médico.

Nesta etapa, é preciso perguntar as expectativas da pessoa porque elas podem ser

bem simples e objetivas. A pessoa pode ter ido resolver buscar um tratamento para uma

infecção urinária ou então buscar um atestado para o trabalho, e não quer aprofundar sua

experiência de estar doente. Não explorar a experiência de adoecer, neste caso, também é ser

centrado na pessoa, pois respeita sua demanda.

2º Compontente: Entendendo a pessoa como um todo

Esta etapa deve integrar os conceitos de doença e experiência de doença com o

entendimento de vários aspectos da vida da pessoa, como a história de vida, a personalidade,

o trabalho, a família, a rede de apoio social, etc.

3º Componente: Elaborando um plano conjunto de manejo dos problemas

Aqui trata-se diretamente da definição do problema para o qual o paciente está

necessitando de ajuda, estabelecendo metas do tratamento em conjunto com ele e

identificando os papéis do médico e do paciente.

McWhinney (2010) acrescenta que na tarefa de elaborar um plano colaborativo

108

com o paciente está o maior espaço para criatividade do médico de família e comunidade.Se

este passo é o da negociação, penso também que a criatividade ajuda a ser um bom

negociador com o paciente. A criatividade na verdade deve estar presente na comunicação, e

com isso em toda a consulta. Para mim são importantes os filmes que já vi e as experiências

que já vivi porque elas podem ilustrar o que eu estou querendo comunicar ao paciente.

O mesmo autor afirma que a abordagem de preferência do médico pode estar em

desacordo com os desejos da pessoa, e o tratamento terapêutico com o qual a pessoa não

concorda tem poucas chances de funcionar. É portanto um dos maiores desafios do médico de

família desempenhar bem esta etapa.

Aqui é importante citar esse conflito de interesses por meio de meu incômodo

quando os pacientes desejavam “entregar a Deus” seus tratamentos, pois achava esta visão

ignorante, além de considerar que o momento em que nos encontramos com Deus é o

momento em que nos encontramos com nosso desejo, e isto requer grande investimento.Em

terapia, falei sobre essa questão e minha analista observou que o paciente estava dizendo que

iria entregar a Deus, mas estava ali a me procurar e a registrar esse dizer. Isto foi importante

para eu superar esta raiva. A respeito de Deus, respondeu Lacan quando perguntado se ele

existia: “Ora, se estamos falando dele é porque ele existe”. Interpreto como se ele pensasse

que o cerne desta questão era que se Deus estava na linguagem e que isto bastava para lhe

conferir existência.

As pesquisas acercado método clínico centrado na pessoa mostram que o

estabelecimento de uma base comum entre as perspectivas de paciente e médico é um dos

principais fatores que predizem um desfecho clínico favorável. Também foi demonstrado que

a realização dos três primeiros componentes do MCCP melhoram os resultados em relação à

saúde e à satisfação dos pacientes e também aumentam a satisfação do médico. Entretanto,

apesar de muitas pessoas hoje em dia desejarem desenvolver um papel mais ativo junto a seu

médico nas decisões sobre sua saúde, muitos, principalmente os idosos, valorizam o modelo

tradicional do médico que “sempre sabe o que é melhor” para eles. (STEWARTet al.,

2010).Outros pacientes estarão fracos ou debilitados neste momento de decisão conjunta,

deixando sua decisão a cargo do médico.

4º Componente: Incorporando prevenção e promoção da saúde.

Os cuidados com os conflitos de interesses entre o médico e as demandas por

prevenção nos serviços e a taxação de indivíduos previamente saudáveis em doentes já foram

bem discutidas anteriormente e deverão ser lembradas pelo médico nesta etapa do método

clínico.

109

5º Componente: Intensificando o relacionamento sobre pessoa e médico

É importante intensificar o relacionamento porque isto aumentará a confiança do

paciente. Entretanto, o médico deve estar atento aqui aos processos de transferência e contra-

transferência para que eles não ocorram de forma a atrapalhar a cura do paciente.

6º Componente: Sendo realista

Esta etapa é importante para que o médico pense em uma administração sensata

dos recursos administrativos antes de propor condutas ao paciente. Deve ser realista sobre o

tempo de consulta e pensar no timming, que é o ritmo da consulta e a percepção do melhor

momento para realizar intervenções, interromper a fala do paciente, fazer humor, e perceber a

linguagem verbal e não verbal da pessoa.

A compreensão e utilização deste método clínico não é fácil.Penso que o

momento em que o médico conseguetornar-se centrado na pessoa é também o momento em

que ele conseguiu romper com o paradigma biomédico e moveu-separa o paradigma da

complexidade. Assim ele poderá nomear-se médico de família e comunidade.O

autoconhecimento ajuda neste processo pois identifica nossos preconceitos e liberta-nos de

nossos dogmas que tanto tornam a consulta centrada em questões muitas vezes nossas.

O MEC vem tentando tensionar as faculdades para formar um médico com perfil

semelhante ao de um médico de família. As faculdades fizeram adaptações em seus

currículos, mas o que experienciei no contato com alunos durante cinco anos foi que elas não

surtiram o efeito desejado. O ensino continua fragmentado, e os médicos continuam frios e

distanciados dos pacientes. Talvez fôsse interessante olharmos para a experiência da

Universidade de Western Ontario, onde lecionam os desenvolvedores do MCCP. Lá, eles

utilizam um “currículo centrado na pessoa”, com uma metodologia chamada de

Aprendizagem Centrada na Pessoa, que substituiu a Aprendizagem Baseada em Problemas do

currículo anterior. (WESTON; BROWN, 2010).

Ainda segundo esses autores (2010), cada semana durante o primeiro ano de curso

começa com um caso em que uma pessoa é entrevistada pelo professor ou por um educando

em frente ao resto da turma. A entrevista é voltada para a história médica da pessoa e para sua

experiência de estar doente. A turma então elege objetivos de aprendizagem –dentre eles

discutir as experiências de estar enfermo relacionadas às doenças vistas no curso

semanalmente- e se encontra uma vez para discussão, e uma para encerramento do caso. Esta

me parece uma boa metodologia para reconstruir as partes dos pacientes que foram

fragmentadas pelo ensino médico tradicional.

5.7 Processo de Titulação em MFCno Brasil e na Inglaterra

110

Preocupantemente, na penúltima prova de título que organizamos pela SBMFC, em

novembro de 2012, 212 dos 267 candidatos que prestaram a prova, erraram a questão que

perguntava o conceito de “demora permitida”, descrito anteriormente como uma das

principais ferramentas da prática do médico de família e comunidade. A maioria dos

candidatos trabalha na Estratégia Saúde da Família e tem a chance, se passarem nesta prova,

de se tornarem especialistas em MFC, tal qual o médico que fez Residência na área.

Portanto, organizar esta prova é uma tarefa de grande responsabilidade. Enquanto

nosso processo de titulação conta ainda somente com uma etapa de avaliação cognitiva, e

outra de análise curricular, vejamos como se dá a titulação na Inglaterra.

Lá praticamente não se trabalha como médico de família sem o título do Royal

College of General Practitioners (RCPG, equivalente à nossa SBMFC). O médico que vai

atuar na Inglaterra como médico de família também tem que fazer.

A titulação ocorre em 3 etapas. O exame “Apllied Knowledge Test (AKT)”, uma

avaliação da base de conhecimento que sustenta a prática da clínica geral de forma

independente no Reino Unido (no âmbito do National Health Service), tem 3 horas e 200

questões no computador, 150 centros aplicando simultaneamente, 80% de medicina clínica,

10% de “avaliação/apreciação crítica (critical appraisal)” e “clinical practice” baseado em

evidência e 10% de informática médica e assuntos administrativos”. Fazem o teste os

Residentes do segundo (R2) e terceiro (R3) anos, com limite de 4 tentativas.

O “Clinical Skills Assessment (CSA)” (para os R3) testa a capacidade do

candidato para descobrir o motivo de consulta, identificar a visão da pessoa sobre o problema,

fazer diagnósticos e elaborar um plano de cuidados adequado para o problema, em

consonância com as normas atuais britânicas para a prática da medicina de família. Isso

requer alto nível de sofisticação na comunicação com a pessoa, bem como conhecimento e

capacidade de prescrever na atenção primária, em parceria com a pessoa. São 13 estações com

atores e um supervisor cada. Limite de 4 tentativas.

Por último, o “Workplace Based Assessment (WBA)” que acontece durante a

Residência (semestralmente). O residente deve se registrar no RCGP no início do

treinamento, gerando um e-portfolio, onde serão registrados os resultados das avaliações. O

exame avalia o progresso do residente em áreas profissionais que são mais bem avaliadas no

local de trabalho. Dá oportunidade do médico refletir sobre a prática, analisando seu

comportamento profissional; provê feedback positivo e identifica residentes com dificuldades,

apontando necessidades educacionais; direciona o aprendizado em importantes áreas de

competência da clínica geral. Em caso de reprovação, o médico provavelmente terá uma

111

extensão da Residência.

A revalidação do título se dá a cada 5 anos, sob risco de perda de licença para o

médico sem atualização profissional. O processo de titulação inglês conta com as formas mais

avançadas de avaliação de conhecimentos, habilidades e atitudes dos médicos, que é avaliado

durante todo o seu período de formação. Além disso, funciona como um ótimo regulador da

qualidade das Residências de Medicina de Família da Inglaterra, pois todos os egressos destas

no país devem prestar o exame se quiserem atuar como MFCs.

No Brasil, ainda temos muito o que avançar em nossa avaliação de título, pois não

temos etapas que avaliem as habilidades e atitudes dos candidatos. Portanto, uma das

sugestões que gostaria de implementar é acrescentar em nossa prova etapas semelhantes ao

CSA e o WBA ingleses, que avaliem essas características. No entanto, nosso maior desejo é

que no Brasil, a Residência em Medicina de Família seja obrigatória para o médico que deseja

atuar em um Posto de Saúde ou em Unidades de Atenção Primária e que a prova de título se

tornesomente um “termômetro” da qualidade das Residências brasileiras, deixando de

proporcionar, como faz hoje,que o médico obtenha título de especialista sem ter passado pelo

processo de Residência.

Com relação à prova de avaliação de conhecimentos cognitivos que temos

atualmente, entendo que a bibliografia deva ser reduzida. Extensa como está, é impossível de

ser contemplada em um exame, tanto pela banca organizadora quanto pelos candidatos, e não

sabemos o que eles priorizam na leitura. Se em vez disso, escolhêssemos os capítulos mais

importantes dos livros que servem de base para a prova, direcionaríamos o estudo dos

candidatos para assuntos que julgamos mais relevantes para a prática do médico de família, e

o exame de título passaria a ter um caráter mais formativo.

5.8Prevenção Quaternária

O médico de família belga Marc Jamoulle (2000), já citado em minha narrativa de

formação, criou o conceito de“prevenção quaternária” em 1996,enquanto “brincava”, palavras

suas, com o modelo de prevençãode Leavel & Clark durante uma aula em que sentia-se

entediado durante seu mestrado em saúde pública. A prevenção quaternária é a proteção dos

pacientes que estão sob risco de medicalização ou de sofreremintervenções médicas

desnecessárias.

Este tipo de prevenção complementa os três níveis propostos por Leavel & Clark

em 1976,que classificava a prevenção em primária, secundária e terciária. Jamoullepropôs a

prevenção quaternária como um quarto e último tipo de prevenção, não relacionada ao risco

de doenças e sim ao risco de adoecimento iatrogênico. A prevenção quaternária é uma das

112

funções específicas dos médicos de família, pois são eles quem coordenam as várias

intervenções propostas pelos especialistas focais. É também uma das maiores bandeiras contra

os perigos da biomedicina hoje no mundo.

Em junho (2013), contou-me um amigo que estagiou com Jamoulle em seu

consultório na Bélgica, sobre o caso de um paciente de trinta e cinco anos que ele atendia, que

havia se separado e contraído hepatite C; era tambémusuário de crack, mas no momento

estava usando quantidade bem menor. Este amigo perguntou, após o paciente sair, o que Marc

achava do caso: “Ow,he is just a normal guy.” (“Ah, ele é só um cara normal”), respondeu

ele.

113

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entendo que seria importante relembrar, como forma de resgate do processo de

mestrado e de construção da pesquisa, alguns momentos significativos deste percurso, para

um balanço e elaboração final do texto. Seria um exercício semelhante ao da realização do

making off de um filme.

Iniciando com o mestrado, não poderia deixar de registrar a importância de meu

primeiro orientador, o professor Ricardo José Soares Pontes, e seu estilo de “orientação livre”,

e porque não dizer psicanalítico. Se por um lado isto me gerou angústia porque não tinha

grande experiência com trabalhos científicos, por outro esta atitude respeitou um fator

fundamental para eu conseguir realizar o meu trabalho: o meu tempo de encontrar-me com

minha temática.

Isso não teria acontecido se eu não tivesse seguido meu desejo durante o

mestrado, de não cursar as disciplinas ditas “quantitativas”, mesmo sendo um dos únicos de

minha turma a ter escolhido este percurso. Não fosse esta escolha e eu já teria completado

meus créditos à altura do curso opcional de ética-da-vida. Também entendo que se tivesse

recebido bolsa de estudos durante a pós-graduação, o que me tiraria o direito de trabalhar

segundo a política educacional vigente (o trabalho não é importante para o pesquisador?), não

teria chegado à minha temática, cujo surgimento teve influência direta da minha prática como

médico de família.

A vivência com o Professor Ursino foi o gatilho do encontro de um tema para

escrever. Senti e vivi com ele e os colegas do seu grupo de estudos um genuíno espaço

educacional, uma alegria que não tinha experimentado no mestrado. Durante o seu curso

(ética-da-vida), o clima entre os alunos foi construído de maneira especial, gerando um

espaço seguro para o compartilhamento dos saberes-experiências, tornando possível as

desconstruções a que nos propusemos. Fiquei feliz também com a possibilidade de cursar uma

disciplina que me fizesse enxergar uma outra forma de ensinar. Entendinela a diferença entre

educador e professor. O ensino era o meu objetivo principal ao ingressar no mestrado. Ao

final desta experiência educadora, em dezembro de 2012, efetivamos a troca de orientador

para o Professor Ursino. Em janeiro, quando surgiu minha temática, apresentei a ele a nova

proposta de pesquisa, a qual foi prontamente aceita.

Em meus encontros com o Professor Ursino, que, aliás, prefere ser chamado de

disorientador, tivemos muitas discussões interessantes, sobre a hermenêutica, a metafísica, a

perspectiva do estar-no-mundo, sobre o conceito de corpo sem órgãos. Este é um conceito de

Deleuze no qual irei me aprofundar daqui em diante.

114

No entanto, penso que a maior contribuição de minhas sessões de orientação foi o

exercício de construção das etapas da pesquisa, em como dar o escalonamento e o ritmo ao

pensamento afim de comunicá-lo da melhor maneira no texto. Isto me deu uma sistematização

sobre os passos de elaboração de um trabalho de investigação que serão importantes daqui

para frente. Entretanto, entendo que esta experiência de vida do mestrado foi além de iniciar-

me como pesquisador, pois acrescentou ao meu ser uma crítica existencial que superou

objetivos de aprendizagem do currículo.

O grupo de estudos também trouxe contribuições inesperadas que são hoje

estruturantes em minha vida. Penso que a principal delas foi a desconstrução de meu

pensamento voltado para o sujeito para uma abertura de visão do mundo em que há

possibilidades de transformar-se a partir das relações. Entretanto, não deixei de fazer terapia;

acredito na minha desconstrução por meio dela.

Outra contribuição relevante foi a da crítica às relações no capitalismo, feita pelo

Núcleo de Saúde Ambiente e Trabalho. Penso que devemos avaliar criticamente nossas

práticas capitalistas para não permitirmos que interfiram em nossas relações com os pacientes,

tal qual ocorreu durante o período em que trabalhei como preceptor de alunos de Internato de

uma faculdade particular.

Com relação à pesquisa, pensei que o capítulo de minha narrativa de formação

seria o mais fácil de ser escrito, pelo exercício de falar e pensar sobre minha vida que realizo

há algum tempo na análise. No entanto, a realidade mostrou que estava enganado, por três

motivos. Primeiro pelo fato de nunca ter relembrado sistematicamente os pontos principais de

minha vida, pois na análise as lembranças são mencionadas por associação livre, o que muitas

vezes não lhe conferem sentido ou uma ordem de aparição.

Em segundo lugar, pelo fato exercício de escolher os momentos marcantes para a

minha formação, o que trouxe a necessidade de analisar todas essas lembranças, e muitas

vezes não achar respostas sobre porque foram significativas. Por último, e de longe, a etapa

mais difícil, foi relatar e analisar acontecimentos particulares em um texto que viria a público

para cumprir o objetivo proposto de investigação de si, o que aumentou consideravelmente as

exigências com a escrita. Isto demandou também um período intensivo na análise; passei a

fazer sessões diariamente. Portanto, escrever sobre minha narrativa de formação foi um

exercício inédito e complexo para mim, que requereu quatro reelaborações.

No entanto, isso trouxe novas lembranças e recordações que haviam sido

importantes para o meu tornar-se médico de família, o que contribuiu para ilustrar outras

115

partes da pesquisa. Além disso, me fez esclarecer com meus pais acontecimentos de minha

vida que não sabia com detalhes, o que aumentou o conhecimento sobre mim.

Nesta narrativa de formação quero destacar o momento em que me percebo

perpetuando práticas inadequadas com os pacientes. Isso talvez refletisse uma visão

dominadora de classe social, expressada nas práticas de acolhimento excludentes em meu

primeiro trabalho enquanto Residente. Percebi que estas práticas eram fruto de um

preconceito oculto que eu provavelmente havia criado para conviver em uma situação de

grande desigualdade social na cidade onde fui criado, para não sofrer com a condição do

outro. Em uma especialidade que tem em seu cerne os relacionamentos, o médico deverá se

libertar de tais práticas, para que não se sobreponham a eles.

Entendo que o compartilhamento desta experiência poderá trazer benefícios à

formação de profissionais na área da saúde, na medida em que questiona posturas

preconceituosas que ocorrem frequentemente em Postos de Saúde –que passam

desapercebidas- e promove um novo olhar para o atendimento das pessoas.

Em meu primeiro grupo de pesquisa no mestrado, uma colega estudoua diferença

de comportamento dos médicos no serviço público e privado. Ela entrevistava o mesmo

médico nos dois cenários e criou uma metáfora baseada na dramaturgia para descrever o que

percebeu. No SUS, os médicos ensaiavam. No consultório privado, realizavam sua

apresentação no palco principal.

Quando escrevi sobre o modelo biomédico, mostrei o caso de Angelina Jolie para

ilustrar o completo abandono da perspectiva humana pela biomedicina. Jolie acreditou na

ilusão de ficar livre de seus fantasmas individuais relacionados ao câncer de sua mãe por meio

de uma intervenção em seu corpo. Quando o risco matemático invade a vida desta forma,

entendo que seja motivo de pensarmos em um movimento mais ríspido contra a ciência

médica. Esta é e será um de minhas frentes de militância.

Nesse contexto crítico, penso ser incoerente que um médico de família trabalhe

para um plano de saúde. Se uma das funções do médico de família é proteger os pacientes dos

riscos do sistema de saúde, como poderá ele mesmo trabalhar para uma empresa em que os

auditores médicos e o setor jurídico trabalha contra seus pacientes? Como o relacionamento

com o paciente poderá ser respeitado diante desta lógica de trabalho? Me parece uma questão

ética importante.

Por outro lado, compartilho também um conflito de interesses que coloca em

cheque minha defesa por um sistema público, já que tenho plano de saúde. Como defender um

SUS que eu não uso? Isto não traduziria uma falta de confiança neste sistema que atrapalhava

116

minha própria forma de cuidar de meus pacientes? Conscientemente a minha resposta seria

negativa, mas este assunto estará sob avaliação.

No capítulo sobre a MFC, abordei os principais conceitos que julguei relevantes

para eu me tornar médico de família. Um dos objetivos foi deixar claro que o MFC enfrenta

problemas específicos em sua prática e portanto, precisa de uma formação específica que o

ensine a enfrentar esses problemas.

Esse é um tema que me preocupa porque o Governo brasileiro ainda desconsidera

isso, e age perigosamente por meio de suas políticas ao pensar que o ato de colocar

“qualquer” médico para atender a população traz mais benefícios do que o risco em não ter

médico. A palavra “qualquer” aqui se refere a médicos formados no Brasil ou em qualquer

lugar do mundo, que não tenham formação específica em Medicina de Família, pois esses

profissionais tenderão a perpetuar na APS as práticas clínicas do hospital terciário.

Com relação ao objetivo que tive ao escrever este trabalho, entendo que pude

aprofundar minha compreensão sobre o movimento de me tornar médico de família. Pude

resgatar minha crítica à faculdade de Medicina que surgiu a partir da visão que tinha em casa.

A crítica se expressou em meu próprio corpo, pela incapacidade de saciar a respiração que

tive durante dez anos. A ruptura começou aí. A Medicina de Família continuou este processo

de quebra, que avançou no curso de ética-da-vida no Mestrado quando as discussões acerca

da dimensão ética e do biopoder geraram questionamentos sobre minha prática médica.

A Medicina de Família me encanta por sermos médicos abertos a qualquer

problema e porque quando nos tornamos centrados nas pessoas, aprendemos com suas

histórias de vida. Isto por um lado é fantástico, porque você consegue encarar um atendimento

como a oportunidade de ouvir uma nova história. Por outro lado, este envolvimento é

poderoso, mexe com as nossas estruturas. Em um Posto de Saúde somos cobrados ao limite,

para atender muitos pacientes e isto ainda me dá uma idéia de banalização das relações (seria

este ainda um sinal de imaturidade clínica?). Sei que a agenda cheia dos médicos de família é

um problema mundial, mas a questão de atender em pouco tempo cria um cenário muito

tentadoràprescrição de fármacos. Gostaria de poder desenvolver uma clínica com mais tempo.

Questiono se pretendo voltar a atuar em um Posto de Saúde em Fortaleza, pois

vivi este lugar intensamente por cinco anose percebique o modelo biomédico domina a prática

dos profissionais. Não entendo que seja bom estar sozinho tentando desconstruir isso.

Infelizmente, pertencemos a um tempo histórico em que a fetichização do fármaco chegou ao

seu clímax, e é difícil fazer frente a isso quando a cultura do Posto é voltada majoritariamente

para este recurso.

117

A Medicina de Família trouxe-me um novo sentido para a vida. No entanto, ainda

guardaelementos da biomedicina dentro de si que me inquietam; o principal deles é sem

dúvida a prescrição de remédios.Entendo que podemos humanizar e relativizar a prescrição

médica sendo centrados nas pessoas, mas desejoconseguirtirarao máximo esta influência de

minha prática enquanto médico (como fazer isso?), dando continuidade à ruptura pela qual

passei.

Gostaria de desenvolver uma clínica em que eu não tivesse o poder de prescrever

remédios, em que eu não pudesse “cair em tentação” de recorrer a este meio. Não os quero

interferindo em minhas relações com meus pacientes. Eles são recomendados de maneira

generalizadora, com estudos de estatística e não respeitam a singularidade. Uma frase que li

certa vez no metrô de Berlim descrevia bem esta ciência: “para a estatística, um homem que

tem um milhão de dólares e um outro quenada tem,ambos têm quinhentos mil.”

Não sei como poderei desenvolver esta clínica sem remédios, que provavelmente

estará em paradigmas diferentes do que descrevi neste trabalho, o que justifica seu título. O

leitor engana-se ao pensar que é a psicanálise o que desejo. Não, a Medicina de Família uniu

mente e corpo de uma forma que não consigo mais separá-los. A psicanálise me trouxe a

contribuição do inconsciente que não podia utilizar na Medicina de Família, o que me dava a

sensação da pessoa ainda incompleta. Quero continuar realizando uma clínica que considere o

corpo, que é importante, que nos dá vida. Escrevo isto como forma de afirmar minha

desconstrução do meu anteriorstatus de escravo do sujeito psicanalítico que ignorava o corpo.

Não sei como será esta intervenção nele, mas não desejo que seja com remédios da indústria

farmacêutica.

Essa escolha chega para mim no final deste processo de pesquisa. Estava

esperando o fim desta dissertação para depois me deparar com a questão de como seriameu

retorno à prática médica, mas a pesquisa a trouxe inexoravelmente à superfície. Entretanto,

como diz o meu disorientador apoiando-se em uma síntese deleuzeana, “o mais profundo é a

pele”. Portanto, vejo esta questão tatuada em mim.

Agora entendo porque tive certa resistência a escrever este

trabalho.Independentemente de como irá seruma clínica sem remédios, ela manterá a

característica principal da Medicina de Família e Comunidade: a base nos relacionamentos

com as pessoas. E isto eu sei que consegui.

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