(2008) duração / temporalidade / desmaterialização (ou quase) / colaboração na esfera...

12
17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis 399 Duração / temporalidade / desmaterialização (ou quase) / colaboração na esfera pública: dois casos de interação explícita com as comunidades e uma viagem solitária de artistas latino-americanos (ou quase) Dr. Luiz Sérgio de Oliveira Professor Associado I do Departamento de Arte e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte da Universidade Federal Fluminense, Niterói Resumo: A produção mais ambiciosa da arte contemporânea articulada na esfera pública a partir do final dos anos 1980 tem apresentado algumas características que lhes são consistentes, tais como duração, temporalidade, desmaterialização e colaboração com as comunidades. No presente estudo, depois de buscarmos uma melhor compreensão dessas características apoiados em autores como Grant H. Kester, Patricia C. Phillips, Eleonor Heartney, Claire Doherty, Mary Jane Jacob e Miwon Kwon, entre outros, examinamos (mesmo que de forma sucinta), como essas características se apresentam em três projetos de três artistas latino- americanos (ou quase): o chileno Alfredo Jaar, o mexicano Gustavo Artigas e o belgo- mexicano Francis Alÿs. Palavras-chave: arte contemporânea – esfera pública - comunidade Abstract: The most ambitious contemporary art that articulated itself in the public sphere since the late 1980s has presented some consistent characteristics, such as duration, temporality, dematerialization and collaboration with communities. In this study, after making use of authors like Grant H. Kester, Patricia C. Phillips, Eleonor Heartney, Claire Doherty, Mary Jane Jacob and Miwon Kwon, among others. for a better comprehension of those characteristics, we will examine (even in a very short manner) how those characteristics appear in three art projects by three Latin-American (or almost) artists: the Chilean Alfredo Jaar, The Mexican Gustavo Artigas and the Belgian-Mexican Francis Alÿs. Keywords: contemporary art – public sphere - community 1 Duração: princípio: fim “A preocupação literalista com o tempo – mais precisamente com a duração da experiência – é, conforme sugiro, paradigmaticamente teatral, [...] e que essa preocupação marca uma profunda diferença entre a arte literal e a pintura e escultura modernista” i ; dessa maneira poderíamos sintetizar os argumentos do influente crítico e historiador da arte modernista Michael Fried, em sua contenda com a arte minimalista, chamada por ele de arte literal (literalist art). Fried apontava a relação da arte minimalista com a temporalidade como algo que a afastava do campo mais

Upload: uff

Post on 26-Nov-2023

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis

399

Duração / temporalidade / desmaterialização (ou quase) / colaboração na esfera pública: dois casos de interação explícita com as comunidades e uma

viagem solitária de artistas latino-americanos (ou quase)

Dr. Luiz Sérgio de Oliveira Professor Associado I do Departamento de Arte

e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte da Universidade Federal Fluminense, Niterói

Resumo: A produção mais ambiciosa da arte contemporânea articulada na esfera pública a partir do final dos anos 1980 tem apresentado algumas características que lhes são consistentes, tais como duração, temporalidade, desmaterialização e colaboração com as comunidades. No presente estudo, depois de buscarmos uma melhor compreensão dessas características apoiados em autores como Grant H. Kester, Patricia C. Phillips, Eleonor Heartney, Claire Doherty, Mary Jane Jacob e Miwon Kwon, entre outros, examinamos (mesmo que de forma sucinta), como essas características se apresentam em três projetos de três artistas latino-americanos (ou quase): o chileno Alfredo Jaar, o mexicano Gustavo Artigas e o belgo-mexicano Francis Alÿs. Palavras-chave: arte contemporânea – esfera pública - comunidade Abstract: The most ambitious contemporary art that articulated itself in the public sphere since the late 1980s has presented some consistent characteristics, such as duration, temporality, dematerialization and collaboration with communities. In this study, after making use of authors like Grant H. Kester, Patricia C. Phillips, Eleonor Heartney, Claire Doherty, Mary Jane Jacob and Miwon Kwon, among others. for a better comprehension of those characteristics, we will examine (even in a very short manner) how those characteristics appear in three art projects by three Latin-American (or almost) artists: the Chilean Alfredo Jaar, The Mexican Gustavo Artigas and the Belgian-Mexican Francis Alÿs. Keywords: contemporary art – public sphere - community

1 Duração: princípio: fim

“A preocupação literalista com o tempo – mais precisamente com a

duração da experiência – é, conforme sugiro, paradigmaticamente teatral, [...] e que

essa preocupação marca uma profunda diferença entre a arte literal e a pintura e

escultura modernista”i; dessa maneira poderíamos sintetizar os argumentos do influente

crítico e historiador da arte modernista Michael Fried, em sua contenda com a arte

minimalista, chamada por ele de arte literal (literalist art). Fried apontava a relação da

arte minimalista com a temporalidade como algo que a afastava do campo mais

17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis

400

específico das artes visuais para inserí-la na esfera do teatro. Na sua resistência em

favor da arte modernista alicerçada no formalismo, ao lado de críticos como Clive Bell

e Clement Greenberg, Fried afirmou que “é pela virtude de sua presença e

instantaneidade que a pintura e escultura modernista derrotam o teatro”ii.

Para Grant H. Kester, professor da Universidade da Califórnia, San

Diego, a perspectiva de Michael Fried em defesa da “experiência instantânea”

provocada “pela arte autêntica o coloca junto a uma tradição filosófica bem estabelecida

que define as artes visuais através de sua habilidade de transcender a constrangimentos

temporais da literatura”iii, afirmando ainda que o “papel crescentemente central exercido

pela experiência visual do espectador na arte modernista está tipicamente associado com

a emergência do impressionismo”. No entanto, Kester, apoiado Thomas Crow, lembra

que artistas como Joseph Kosuth, Marcel Broodthaers, entre outros, desafiaram o

“fetiche da visualidade” (expressão de Crow) do modernismo, e que, para além desse

distanciamento da opticalidade, também a forma como o espectador se relacionava com

a obra de arte era desafiada nos anos 1960 e 1970: “especificamente, este período

testemunha a criação de uma ampla variedade de obras que convidar, e dependem do

direto envolvimento físico do espectador”iv.

Certamente esse debate acerca da produção conceitual dos anos 1960/70

não é reduzido (por Crow ou Kester) a uma reação ao formalismo e à instantaneidade da

apreensão da pintura modernista pelo espectador, já que, conforme aponta a artista

Andrea Fraser, há um componente político que permeia esse processo de produção,

circulação e fruição da arte que precisa ser investigado, ponderando que “a crítica da

autonomia do objeto de arte, ao final dos anos 1960, tinha se transformado em mais que

uma rejeição ao formalismo greenberguiano [conforme ficou] evidente nos discursos da

Art Workers Coalition [...] em 1969”, configurando-se como “uma crítica dos usos aos

quais as obras de arte são confrontadas: os interesses econômicos e políticos aos quais

elas [as obras de arte] servem”v.

De qualquer maneira, para efeito de nossa argumentação aqui neste

momento, podemos afirmar esse componente temporal incorporado à obra de arte pelos

artistas minimalistas (e por artistas como Hélio Oiticica e Lygia Clark no Brasil)

ganharia contornos mais radicais a partir das experiências performáticas ainda nos anos

1960, com a completa desaparição da obra em termos tradicionais de fisicalidade,

transmutada em mero evento, como em Following Piece (1969) de Vito Acconci, e que

alcançaria enorme reverberação na produção de arte mais ambiciosa na esfera pública a

17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis

401

partir dos anos 1990, abandonando uma tradicional atitude que permeava (permeia) a

produção de arte para os espaços públicos com um sentido de perenidade, um tempo

que, por ser eterno, não carece de urgência. As obras monumentais dos espaços públicos

não se degladiam com a duração da dimensão temporal porque parecem sempre ter

ocupado o lugar que ocupam, e que ali permanecerão ad eternum, não disputando a

atenção do passante quase sempre absorto em seus pensamentos e engolfado pelo seu

próprio tempo mental. Por outro lado, muito dessa arte ambiciosa produzida na

contemporaneidade na esfera pública caracteriza-se como evento, com hora marcada

para começar, e mais importante, com hora marcada para terminar, circunscrita em uma

duração que não deve ser ignorada por quem não quiser ignorar a própria obra.

2 Temporalidade: aqui: agora

Diante da multiplicidade e dinamismo dos contextos políticos e culturais

da esfera pública, Patricia C. Phillips, crítica de arte e diretora da School of Fine and

Performing Arts da State University of New York (SUNY) em New Paltz, sugere que as

experiências de arte pública, ainda relativamente recentes, ainda em seu estágio

laboratorial, sejam marcadas pela efemeridade, pela temporalidade:

Como a composição e o contexto da vida pública mudam com os anos, a arte pública deve esforçar-se para alcançar novas articulações e novas expectativas. Ela deve confiar na sua flexibilidade, na sua adaptabilidade para ser ao mesmo tempo precisa e oportuna, específica e temporária. Arte pública efêmera provê uma continuidade para a análise das condições e configurações cambiantes da vida pública, sem requerer um congelamento necessário para expressar valores eternos para uma audiência ampla com formações diferenciadas e freqüentemente com diferentes imaginações verbais e visuaisvi.

A arte pública efêmera seria uma condição imprescindível para as

práticas de arte que se realizam na esfera pública, deixando de simplesmente ocupar os

espaços públicos das cidades contemporâneas para permitir uma dilatação do espectro

dos “tipos de questões que elege para discutir, e não por sua acessibilidade e pelo

volume de espectadores”vii, patrocinando sua contaminação crescente com questões

políticas do cotidiano, enredando-se com a cultura do fazer diário da vida

contemporânea. Um processo de cultura que se (i)materializa para além dos muros dos

museus, das salas de concerto e dos grandes teatros de ópera. Um processo de cultura

que não precisa ser criado em ateliês, que se insere nas práticas pós-ateliê, e que está em

17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis

402

processo permanente de (re)construção, para sempre inconcluso, para sempre

inacabável, em permanente transformação.

Se essa dimensão temporal está intimamente imbricada com a questão da

duração, em especial quando nos deparamos com projetos/obras que se constituem na

esfera do evento, do efêmero, essas duas dimensões, associadas à perspectiva

desmaterializante e ao desejo dialógico de colaboração com as comunidades, permeiam

com maior ou menor intensidade, mas sempre de forma marcante, a produção dos

artistas latino-americanos que examinaremos adiante.

3 Desmaterialização: (ou quase)

Os projetos sobre os quais nos debruçaremos adiante dão relevo ao

espalhamento da arte que se articula em torno de um eixo no qual domina a interação

com a comunidade, fazendo com que sua eventual materialidade se apresente como uma

condição de absoluta lateralidade e desnecessidade, uma produção de arte geralmente

orientada para o processo. Essa desconstrução de expectativas teria como aspecto

positivo liberar os artistas - que articulam suas obras na esfera pública - do

compromisso da geração de “resíduos artísticos”, permitindo que a obra mais que se

materializar, simplesmente aconteça, em um processo identificado como a

“desmaterialização da arte pública” pela crítica norte-americana Eleonor Heartney ainda

no início da década de 1990viii. Por outro lado, essa impermanência, tanto aspecto físico

como temporal, em produções de arte que se configuraram como eventos únicos,

certamente dificultam o processo de acompanhamento pelo público.

A ênfase na interação comunitária, dialogando na volatilidade do

processo de gestos fugidios condenados ao desaparecimento, tem empurrado muito

dessa produção para um “não-sei-onde”, para um não-lugar, uma dispersão territorial

dos projetos de arte “derramados” por localidades distintas e distantes dos tradicionais

espaços da arte. Dessa maneira, essas práticas de arte, que não se preocupam em

produzir qualquer remanescente objetual e que enfatizam sua aderência às comunidades

interagidas, representam uma clara definição dessas comunidades como seu público, em

um processo de endogeneidade e autofagia, em que os projetos vão sendo absorvidos e

consumidos na medida que se desenvolvem, sendo usufruídos pela própria comunidade

co-autora no ato da criação.

17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis

403

Esse processo de definição da comunidade aderida ao projeto como

sendo igualmente seu público privilegiado, e eventualmente o único que é, pelo menos

em um primeiro momento, considerado, tem empurrado o “público secundário”ix para

uma zona de alienação, abandonado à própria sorte em um buraco negro. Esse

movimento de redefinição das audiências foi detectado e apontado por Mary Jane Jacob

ainda em 1991: Na medida em que os artistas têm dado maior consideração à audiência no desenvolvimento de seus projetos, trazendo para dentro de seus trabalhos aqueles usualmente ausentes das instituições de arte, [...] muitos da audiência [tradicional] da arte têm escapado. [Dessa maneira] a audiência não tem sido ampliada, mas substituída. De fato, é essa mudança na composição da audiência, e sua posição no centro criativo, que faz dessa arte pública algo tão novox.

4 Colaboração: artesfera pública

A articulação da arte no domínio público engloba o desejo de

aproximação entre artista e público, com a promoção eventual ou não do baralhamento

das identidades. Embora não seja o espalhamento das obras/projetos nos espaços

públicos a única condição indispensável para originar a interação entre artista e público

(o que tem sido exaustivamente debatido na história da arte recente), por outro lado,

certamente configura-se como uma circunstância vital para que tal interação seja bem

sucedida.

O reconhecimento da relevância da situação e do processo de interação

comunitária tem permeado a produção de arte no domínio público desde o final da

década de 1980. Desde então, as articulações da arte no domínio público têm propiciado

que o “nosso entendimento de site mudasse de uma locação física, fixa, para algum

lugar ou algo constituído através de processos sociais, econômicos, culturais e

políticos”xi.

Nesse contexto histórico inundado por novos termos e novas práticas que

enfatizavam o processo de interação comunitária, como community-based artxii;

esparramando-se (e abarcando) não somente diferentes paisagens naturais, mas acima

de tudo comprometendo-se com a cultura do cotidiano, a obra de arte deixou o abrigo

institucional para imbricar-se com a comunidade em um contato mais direto,

ressignificando essa comunidade como o núcleo central da produção de arte,

promovendo a realocação mais-que-democrática de extratos da sociedade que haviam

17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis

404

sido negligenciados por uma parcela da produção de arte modernista, deixando de ser

uma periferia relegada a uma situação de extrema lateralidade, uma “não-situação”, para

se transformar na sua raison d’être, “

No entanto, esse cenário desafiador de imbricação e colaboração com as

comunidades parece ganhar um componente de dramaticidade quando envolve artistas

vindos de regiões distantes daquelas que circundam ou são circundadas por essas

comunidades, apresentando-se em situações que lhes altamente inusitadas, demandando

estratégias que propiciem um melhor entendimento e um maior comprometimento por

parte dos artistas com esses contextos a desafiar seu processo criativo. E esse tem sido

um fenômeno muito presente na contemporaneidade em que os artistas itineram pelo

planeta atendendo às novas práticas da arte; na medida em que a obra de arte sai de

cena, o artista ganha mobilidade, deixando claro que agora quem viaja é o artista, não

mais a obra; um artista que viaja para prestar um serviço de arte, através da criação de

um evento, uma performance, um projeto, eventualmente uma obra, que por sua vez

ficará atada aquela realidade em que foi gerada depois da partida do artista. Conforme

observado por Miwon Kwon, a relevância de um profissional parece ser medida pela

milhagem: Quanto mais viajamos para trabalhar, quanto mais somos solicitados a prover instituições em outras partes do país e do mundo com nossa presença e serviços, quanto mais cedemos à lógica do nomadismo, podemos assim dizer, mais somos levados a nos sentir desejados, procurados, validados e relevantesxiii.

Esse “artista itinerante, [...] não mais um criador de objetos atado a um

ateliê, trabalhando agora essencialmente sob demanda”xiv, precisará de muita cautela e

perspicácia para simplesmente não naufragar nas facilidades, ilusões e armadilhas dos

contextos que se lhe apresentam. A começar pela própria maneira como essa

apresentação se dá.

Miwon Kwon lembra que “a interação entre o artista e um determinado

grupo comunitário não é baseada em uma relação não-mediada. Ao contrário, está

circunscrita dentro de uma complexa rede de motivações, expectativas e projeções entre

todos os envolvidos”xv. Portanto, o artista, ao deixar o seu ateliê-bolha, deixa

igualmente para trás o seu isolamento, tornando-se permeável a essa “complexa rede de

motivações, expectativas e projeções”, sendo necessário tentar evitar que o artista seja

instrumentalizado e reduzido por ansiedades e interesses alheios.

17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis

405

Mas essa é, por certo, uma conjuntura de riscos. Enquanto os objetos de

arte, criados pelos artistas a partir de seus ateliês-enclaves no mundo, circulavam por

diferentes situações e universos, abrigados pelas instituições de arte e involucrados em

sua autonomia, tanto uns quanto outros – artistas e obras – pareciam protegidos. Nessa

nova situação, é o artista e não mais a obra que se expõe; que se expõe aos riscos e às

armadilhas da incompreensão, da superficialidade, da simplificação, da manipulação, do

equívoco.

5 Dois casos de interação explícita: uma viagem solitária:

artistas latino-americanos: (ou quase)

Os projetos de arte examinados nesta seção foram todos desenvolvidos

na região do extremo oeste da fronteira do México com os Estados Unidos, entre as

cidades de Tijuana e San Diego, no ano emblemática de 2000, por encomenda da mostra

inSITE.

O primeiro projeto a ser examinado, desenvolvido pelo artista

chileno, residente em Nova York, Alfredo Jaar (Santiago, 1956), apresenta

essas diversas dimensões que têm configurado muito da produção de arte

contemporânea na esfera pública: duração, temporalidade, desmaterialização e colaboração com a comunidade. La Nube / The Cloud foi realizado por Jaar na

manhã de 14 de outubro de 2000 com a colaboração de diversos grupos de

ativistas que apoiam os migrantes na região de fronteira, além das

comunidades que se deslocaram até Valle del Matador, Tijuana, ou Goat

Canyon, San Diego, para participar de uma obra/celebração em homenagem

aos quase 2.000 mortos na travessia ilegal da fronteira desde 1994. Uma

nuvem de mais de 1.500 balões brancos que pareciam querer ganhar asas e

partir para outras terras. Mas estavam presos, amarrados, cerceados, como

sonhos cerrados, em uma situação que se assemelha àquela vivenciada pelos

que desejam (e não conseguem) cruzar a fronteira.

A obra The Cloud / La Nube (Fig. 1) “nasceu da indignação, mas o

resultado queria ser poesia. Eu queria insistir com esse minuto de silêncio porque a

morte já é algo cotidiano na fronteira, a morte foi banalizada”xvi, e foi realizada nos dois

17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis

406

lados, nos dois países, nos dois mundos... simultaneamente, com a sonoridade de

Albinoni, Bach e Veracini flutuando dos dois lados da linha, entremeada pela leitura de

dois poemas – Tras el muro e El descenso - do poeta de Tijuana, Victor Hugo Limón.

O minuto de silêncio que se seguiu à leitura dos poemas de Limón

marcou com profunda tristeza o clímax da obra-cerimônia, momento em que os balões

brancos foram finalmente liberados, ganhando asas contra o céu azul daquela manhã de

outono no hemisfério norte, como que homenageando Catalina Enríquez, Félix Zavata,

Guadalupe Romero, Trinidad Santiago, Aureliano Cabrera, entre outros,...

silenciosamente.

O projeto de Gustavo Artigas (Cidade do México, 1970), The Rules of

the Game / Las reglas del juego (Fig. 2), foi realizado no começo da tarde do dia 13 de

outubro de 2000, com mais de trinta jovens atletas reunidos no ginásio de esportes do

Preparatória Lázaro Cárdenas, colégio de ensino secundário de Tijuana, para a

realização de um jogo / dois jogos.

Dois jogos / um jogo. Disputados no mesmo espaço, no mesmo dia, na

mesma hora. Dois locutores anunciavam o evento, em espanhol para o futsal, em inglês

para o basquetebol. O apito inicial de uma partida vale para as duas. A bola rola de um

lado, a outra quica do mesmo lado, e todos correm juntos, ao mesmo tempo, no mesmo

espaço. Vinte atletas em quadra, um espaço que regularmente só comportaria dez por

vez. É falta, a barreira é formada dentro do garrafão. Invasão da área? Não, ele não está

nesse jogo, está no outro. E uma bola vai quicando enquanto a outra rola. São Las

reglas del juego / The Rules of the Game.

Gustavo Artigas, fazendo uso de esportes consagrados entre os de maior

paixão e prática mais disseminada dos dois lados da fronteira, buscou criar uma

obra/evento que provocasse uma reflexão acerca das relações entre comunidades

distintas, distanciando-se de qualquer formulação que sugerisse uma proposição de

enfrentamento ou assimilação, mas que buscasse exemplificar as complexidades dessas

relações: “a pesar de cada juego diferente, la tolerancia necesaria para convivir se basa

en las negociaciones que hacemos para compartir ese espacio común”xvii.

O projeto de Artigas enfatiza a dimensão de duração da obra, uma vez

que, nesse caso, o projeto de arte é redefinido por regras que lhe são exteriores e que

17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis

407

demarcam a experiência artística pelo tempo específico da prática esportiva que

constitui a obra. São as regras do jogo.

Contrariando nossa percepção fundada na geometria euclidiana que

aponta a linha reta como a menor distância entre dois pontos, Francis Alÿs (Antuérpia,

Bélgica, 1959) empreendeu uma viagem solitária e sinuosa ao redor do planeta com o

objetivo de evitar a travessia da fronteira entre México e Estados Unidos. Partindo de

Tijuana, tinha como meta de chegada o ponto exato da Grande San Diego que dialoga

rigorosamente com seu ponto de partida, do outro lado, tendo a fronteira no meio. Cerca

de um mês de viagem, passando pela Cidade do México, Santiago do Chile, Sidney,

Xangai, Seul, Seattle, Los Angeles, San Diego, até completar o percurso caminhando de

novo até a linha de fronteira, tendo atingido o outro lado sem cruzar a linha de fronteira,

justificando o título da obra – The Loop.

O projeto de Francis Alÿs filia-se à herança da produção articulada em

torno da crise do objeto de arte dos anos 1960, desprezando ou eventualmente abolindo

por completo qualquer produto resultante de suas ações e gestos: “me interesan más las

actitudes que el producto”, sentenciou Francis Alÿs, artista belga residente na cidade do

México, em 1997, como uma mantra que vem sendo ecoado através das décadas desde

que artistas ao redor do mundo – Europa, Estados Unidos, Japão, América Latina –

decidiram se dedicar ao processo de desmaterialização do objeto de arte, eventualmente

suprimindo-o.

A peregrinação desse artista (quase) latino-americano - Francis Alÿs (Fig.

3) - por três continentes parecia reciclar e ampliar em escala as caminhadas urbanas de

Vito Acconci - Following Piece - de 1969, com a diferença de que a diminuta

comunidade de Acconci – definida em três membros: aquele a quem o artista seguia, o

próprio artista, e aquele que seguia os dois, o(a) fotógrafo(a) a documentar a “obra”, em

Alÿs parecia limitada a apenas o artista, quando muito acompanhado daquele “outro”

em que o próprio artista se transmutava, um outro com o qual se funde e que tem

percorrido mundos, ou mais explicitamente, os mundos da arte, na condição de artista-

viajante, de artista-turista, artista-itinerante, eventualmente solicitado a atuar como um

artista-etnógrafo, como sugere Hal Foster, tentando encontrar replicações para as

situações desconhecidas que defronta e que desafiam sua compreensão.

17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis

408

Notas: i Michael FRIED. “Art and Objecthood”. In: BATTCOCK , Gregory (ed.). Minimal Art: a Critical Anthology.

Nova York: E. P. Dutton, 1968, p. 145. ii Idem, 146. iii KESTER, Grant H. Conversation Pieces: Community + Communication in Modern Art. Berkeley, Cal.:

University of California, 2004, p. 50. iv Idem, 52-53. v FRASER, Andrea. Museum Highlights: The Writings by Andrea Fraser. (editado por Alexander Alberro).

Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2005, p. 56-57. vi PHILLIPS, Patricia C. “Temporality and Public Art”. In: SENIE, Harriet F., e WEBSTER, Sally (eds.).

Critical Issues in Public Art. Washington e Londres: Smithsonian Institution Press, 1998, p. 303. vii Idem, 298. viii Eleonor Heartney reciclou o termo cunhado por Lucy Lippard em Six Years: the Dematerialization of the

Art Object from 1966 to 1972 (Berkeley, Cal.: University of California Press, 1973.), embora Lippard afirmasse a própria imprecisão do termo, “já que uma peça de papel ou uma fotografia é tão objetual ou tão ‘material’ quanto uma tonelada de chumbo, [e que] não é realmente uma questão de quanta materialidade uma obra tem, mas o que o artista está fazendo com isso”. (p. 5-6). A respeito da “desmaterialização da arte pública”, ver HEARTNEY, Eleanor. “The Dematerialization of Public Art”. In: . Critical Condition: American Culture at the Crossroads. Cambridge, Ingl.: Cambridge University Press, 1997, p. 206-218.

ix DOHERTY, Claire. “The New Situationists”. In: (ed.). From Studio to Situations: Contemporary Art and the Questions of Context. Londres: Black Dog Publishing, 2004, p.9.

x JACOB, Mary Jane. “An Unfashionable Audience”. In: LACY, Suzanne. Mapping the Terrain – New Genre Public Art. Seattle, Wash.: Bay Press, 1996, p. 59.

xi KWON, Miwon. One Place After Another: Site-Specific Art and Locational Identity. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2002, p. 10.

xii Community-based, new genre public art, context-specific, audience-oriented, site-responsive, relational art, para citar apenas alguns desses termos.

xiii KWON, op. cit., 2002, p. 157. xiv Ibid., p. 46. xv KWON, op. cit., 2002, p. 141. xvi Conforme texto do site do Consejo Nacional para la Cultura y las Artes do governo mexicano.

Disponível em: <http://www.cnca.gob.mx/cnca/nuevo/diarias/181000/insite.html>. Acesso: 15 ago. 2003.

xvii Proposta do artista. “The Rules of the Game”, Gustavo Artigas, inSITE2000. (Arquivos inSITE, San Diego).

Referências bibliográficas: DOHERTY, Claire. “The New Situationists”. In: (ed.). From Studio to Situations:

Contemporary Art and the Questions of Context. Londres: Black Dog Publishing, 2004, p.9.

FRASER, Andrea. Museum Highlights: The Writings by Andrea Fraser. (editado por Alexander Alberro). Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2005, p. 56-57.

FRIED, Michael. “Art and Objecthood”. In: BATTCOCK , Gregory (ed.). Minimal Art: a Critical Anthology. Nova York: E. P. Dutton, 1968, p. 145.

HEARTNEY, Eleanor. “The Dematerialization of Public Art”. In: . Critical Condition: American Culture at the Crossroads. Cambridge, Ingl.: Cambridge University Press, 1997, p. 206-218.

JACOB, Mary Jane. “An Unfashionable Audience”. In: LACY, Suzanne. Mapping the Terrain – New Genre Public Art. Seattle, Wash.: Bay Press, 1996, p. 59.

KESTER, Grant H. Conversation Pieces: Community + Communication in Modern Art. Berkeley, Cal.: University of California, 2004, p. 50.

KWON, Miwon. One Place After Another: Site-Specific Art and Locational Identity. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2002, p. 157.

17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis

409

PHILLIPS, Patricia C. “Temporality and Public Art”. In: SENIE, Harriet F., e WEBSTER,

Sally (eds.). Critical Issues in Public Art. Washington e Londres: Smithsonian Institution Press, 1998, p. 303.

KWON, Miwon. One Place After Another: Site-Specific Art and Locational Identity. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2002, p. 157.

Currículo resumido: Luiz Sérgio de Oliveira é artista, Professor Associado I do Departamento de Arte da

Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte da UFF. Mestre em Arte pela New York University (NYU) e Doutor em Teoria e História da Arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Figuras:

Fig. 1 – Alfredo Jaar

La Nube / The Cloud 2000

Fig. 2 – Gustavo Artigas

The Rules of the Game / Las reglas del juego 2000

17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis

410

Fig. 3 – Francis Alÿs