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* •• A ÁGUIA Ór^ão de A Renascença Portuguesa Vol. I—2.a Série Porto- 1912 /^>VDO%\ // S3 RIO DE JANEIRO f' |\ I C OMPR Aft

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A ÁGUIA

Ór^ão de A Renascença Portuguesa

Vol. I—2.a Série

Porto- 1912

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Biblioteca de A Renascença Portuguesa

A Evocação da vida—Augusto Casimiro.

Regresso ao Paraíso — Teixeira cie Pctscoaes.

Esta História é para os Anjos— Jaime Cortesão.

O Espírito Lusitano ou o Saudosismo—Teixeira de Pascoaes.

A Sinfonia da Tarde—Jaime Cortesão.

Tipografia Costa Carregai

Trav. Passos Manuel, 27

-— — Porto.

/

AA

P.l TIA Revista mensal, órgão de "A Renascença Portuguesa,, Directorrt\J U 11 \ literário, dr. Teixeira de Pascoaes; director artístico, Antônio Car-

neiro; director scientifico, dr. José de Magalhães; secretário da re-dacção, Álvaro Pinto Redacção e administração, rua da Alegria, 218, Pôrto - Tipografia CostaCarregai, tr. Passos Manuel 27, Pôrto-Gravuras de Cristiano de Carvalho, Cedofeita, 95-1,0, Pôrto,.

LITERATURA

RENASCENÇA

^este momento genesico e cahotico da nossa Patria, é

necessário que todas as forças reeonstructivas sp organi-

sem e trabalhem, para que ela atinja rapidamente a3 sonhada e desejada harmonia.

O fim d'esta Revista, como orgão da "Renascença

Portuguesa»

será, portanto, dar um sentido ás energias intelectuaes que a nossa

Raça possue; isto é, colocá-las em condições de se tornarem fecun-

das, de poderem realisar o ideal que, n'este momento historico,

abrasa todas as almas sinceramente portuguesas: — Crear um novo

Portugal, ou melhor ressuscitar a Patria Portuguesa, arrancá-la do

tumulo onde a sepultaram alguns séculos de escuridade fisica e

moral, em que os corpos definharam e as almas amorteceram.

Por isso, a Sociedade a que me referi, se intitula "Renascença

Portuguesa». Mas não imagine o leitor que a palavra Renascençasignifica simples regresso ao Passado. Não! Renascer é regressar ás

fontes originadas da vida, mas para crear uma nova vida.

Renascer é dar a um antigo corpo uma nova alma fraterna,

em harmonia com ele. O Passado é indestrutível; é o abysmo, a

treva onde o homem mergulha as raizes do seu ser, para dar á

nova luz do futuro a sua flôr espiritual.

A Patria Portuguesa viveu; atravessou depois alguns séculos

de morte: por fim, n'uma alvorada heróica que fez erguer do se-

pulcro a sombra de Nun'Alvares, acordou do seu profundo somno,

levantou-se n'um Ímpeto sôfrego de vida; e, sob a instantanea luz

que a deslumbrou, ei-la ofuscada e céga, tacteando, sem ver o ca-

minho verdadeiro e a terra firme para os seus pés.D'ahi a confusão cahotica presente.

E' preciso, portanto, chamar a nossa Raça desperta á sua pro-

pria realidade essencial, ao sentido da sua própria vida, para queela saiba quem é e o que deseja. E então poderá realisar a sua obra

de perfeição social, de amor e de justiça, e poderá gritar entre os

Povos: Renasci!

Ora, esta obra sagrada compete ao espirito português, a todos

os portugueses que encerrem no seu sêr uma parcela viva da alma

da nossa Patria. Mas, porque toda a obra só pode ser realisada por

2 A ÁGUIA

um certo numero de -operários congregados e harmonicos, ligados

pelo mesmo sonho, impõe-se, por consequencia, mais uma vez o

affirmamos, a união dos portugueses que vivam, além da sua vida

egoista e individual, a vida mais vasta e profunda, porque é abstracta

e transcendente, da Patria Portuguesa.

Por mais diferentes que sejam as nossas idéias, sob o ponto

de vista religioso, filosofico ou artístico, poderemos sempre en-

tender-nos, porque ha um logar em que todos os princípios e todas as

idéias fraternisam. E n'esse logar altíssimo, que é para nós, n'este

momento, a vida da Nacionalidade, devemos dar uns aos outros as

mãos amigas e caminhar juntos para a realisação do sonho redem-

ptor que ilumina as almas sinceramente portuguesas: a creação d'um

novo Portugal, dentro do seu caracter, das suas qualidades intimas

e originaes que lhe deem relevo e destaque, fisionomia própria

entre os outros Povos.

Se não existisse uma alma portuguesa, teríamos de evoluci-

nar conforme as almas estranhas, teríamos de nos fundir n'essa

massa amórfa da Europa; mas a alma portuguesa existe, vem

desde a origem da Nacionalidade; de mais longe ainda, da confusão

de povos heterogeneos que, em tempos remotos, disputaram a posse

da Ibéria. Houve um momento em que, no meio d'essa confusão

rumorosa e guerreira, se destacou uma voz proclamando um Povo,

gritando a Alma d'uma Raça: foi a voz de Viriato; foi o Verbo

creador que encarnou em Afonso Henriques e se tornou Acção e

Victoria. Depois fez-se Verbo novamente, exaltou-se n'um sonho

de imortalidade, e foi o Canto eterno dos Lusíadas! Depois, cansado

das longes terras, dos longes mares, como que adormeceu 11'uiii

somno de tristêsa, de olhos postos no Passado... E sonhou... E

n'esse momento, mais divino que humano, a alma portuguesa gerou

nas suas entranhas, penetradas por uma luz celeste, a Saudade, a

nebulosa do futuro Canto imortal, o Verbo do novo mundo portu-

gues. A Saudade é Viriato, Afonso Henriques e Camões desmate-

rialisados, reduzidos a um sentimento, postos em alma estréme. A

Saudade é o proprio sangue espiritual da Raça; o seu estigma

divino, o seu perfil eterno. Claro que é a saudade no seu sentido

profundo, verdadeiro, essencial, isto é, o sentimento-ideia, a emoção

reflectida, onde tudo o que existe, corpo e alma, dor e alegria,

amor e desejo, terra e ceu, atinge a sua unidade divina. Eis a

Saudade vista na sua essencia religiosa, e não no seu aspecto su-

perficial e anedotico de simples gosto amargo de infelizes.

É na Saudade revelada que existe a razão da nossa Renascença;

n'ela resurgiremos, porque ela é a própria Renascença original e

creadora.

Eu acredito na grandeza do momento actual, porque só agora

é que a Raça portuguesa, representada pelos seus Poetas que são

sua florescência, principia a sentir-se verdadeiramente revelada. Só

agora ela sabe quem é; porque só agora a Saudade lhe falou, di-

zendo-lhe o seu antigo segredo...

E por tudo isto, Portugal não morrerá; nem uma Patria morre,

A ÁGUIA 3

no instante em que encontra o sen espirito. Portugal não morrerá,

e creará a sua nova "Civilisação,

porque vê que a sua alma é incon-

fundivel, que encerra em si um novo sentido da Vida, um novo

Canto, um novo Verbo, e, portanto, uma nova Acção.

Sim: a alma portuguesa existe, e o seu perfil é eterno e ori-

ginal.

Revelê-mo-la agora a todos os portugueses, na sua maior parte

afastados d'ela, pelas más influencias literarias, políticas e religiosas

vindas do estrangeiro.

Revelêmo-la a todos os portugueses, para que todos comun-

guem o seu proprio espirito, e possam cumprir o destino que por

natureza, nascimento e sangue lhes pertence.

E então um novo Portugal, mas português, surgirá á luz do

dia e a civilisação do mundo sentir-se á mais dilatada.

O VAGO

Ao Visconde de Villa-Moura

O Vago, o Vago é olor que, esparso, ondeia

Ao derredor do calix duma flor;

O Vago o Vago é a misteriosa teia

Que as mãos das sombras urdem ao sol-pôr...

O Vago é como o instinto de quem leia

Nuns olhos virgens a expressão do amor;

O Vago —em fluido harmonico tacteia, ^

Quando as cordas se cansam de compor...

E' o silencio da noite a certas horas;

E' o orvalhado chôro. das auroras

Na arvore que deixou cair os pomos...

E' não ter voz, fallar e ser a esphinge;

Ter olhos e não vêr o que nos cinge:

O Vago é o para alem do que nós sômos!

Silencio... Outomno... Esphinges na agua... orando,

Pelo claustro da sombra a tarde oscila:

Já uma estrela, tremula, scintila,

E os rochedos são bruxos cogitando...

Caè bruma e sonho... o mar, como que arfando,

Sobe e desce, profundo. Paz tranqüila.

Calam a voz os Sons: de não ouvi-la

Os echos adormecem a seu mando...

Ocaso em quebra-luz. Sagrando ritos,

A tarde ajoelha: silenciosa prática...

Fluida, a penumbra esfuma o corpo aereo:

Oh! instante em que a luz reza "bemditos,,...

A sombra unge o silencio... A terra é extactica...

Deus vive em nós: escuta-nos... Mistério!

O CREPUSCULO

A Jaime Cortesão

(I

PALAVRAS ANTIPATICAS

IV" ESTADO O ESTADO ARTISTA

«fiem que um conjuncto de circumstancias fez abater o po-

derio dos dois mais velhos estados — o do clero e o da

(mnobreza, em favor do terceiro—o povo, e porque este,

nimiamente embriagado pela victoria, ameaça derruir a

mais bella resultante da jornada intellectual — a Arte, importa desde

já prevenir o que se premedita, accentuar a heresia de tal faina,

crear um novo Estado —o Estado artista, defendel-o, remediar a

inconsciencia iconoclasta da estupidez desenfreada, remodelar, nas

bases de uma aspiração de grandeza espiritual e Arte, a futura

íamilia portugueza — a tão rebuscada Pátria nova.

Nação alguma pôde seleccionar como a nossa, obras de eleição,

elementos para a constituição, garantia e fomento do referido estado.

Tradições, historia, monumentos, gênio de emprehendimento,

tara imaginativa, é tudo o que os paizes novos e designadamente

os da America pretendem crear, levantar—e que a massa amorpha,

o diamante bruto — o povo portuguez, quer inconscientemente inu-

tilisar.

O povo analphabeto a governar uma nação tradicionalista,

histórica e artística, como é Portugal, é um contrasenso, uma pro-

fanação ('). Artistas! defendei-vos.

Ha de surgir o odio aos museus. O filho do cavador ha de

aspirar a comer no mais bello exemplar de faiança antiga.

A labuta radical ha de ir até onde a deixarem. A aspiração

de um nivelamento proximo, senão immediato. ha-de pautar os

maiores exaggeros — filhar derruimentos, declivar até a fúria icono-

clasta.

Não nos [Iludamos.

A Arte é um produeto aristocrático. Obra do menor numero

e para o menor numero.

Assim também em geral a civilisação. Neste ponto estamos

inteiramente com Renan e Nietzche — e com elles affinnamos: "Em

summa, o fim da humanidade não é pioduzir massas esclarecidas,

mas alguns grandes homens...»

Estes grandes homens formam a élite intellectual, a nobreza

de hoje que não pôde ser nem o punhado de homens signalados

pela ferocidade guerreira d'outros tempos, nem o cortiço conven-

cional dos parasitas dos paços — ás sopas dos imbecis poderosos.

(1) Pensa-se, a serio, em fazer dos antigos Paços escolas e os jornaes ja

informam algumas proscripções artísticas.

Um único museu chama a sympathia do publico-o Museu revolucionário.

6 A ÁGUIA

Mas cfentre os eleitos lia a distinguir—os que a sciencia pura

naturalmente isola e torna impermeáveis ao odio dos ignaros — e os

que exteriorisam obras que aquelles enxergam de olhos vidrentos e

ensangüentados pelo rancor — os que produzem Arte, exteriorisam

os talentos, os que se criam o tal mundo á parte —

que o 3.° estado

persegue, invectiva e sobretudo pretende esboroar.

A Patria nova ha-de ser a nação dividida em duas partes —

uma pequeníssima, mas austera, escolhida, plena de gênio domina-

dor — o cerebro do paiz, representado pela sua élite; a outra, grande

em numero, mas passiva, pequena em vontade — sem espirito de

.cominando,...obediente, o corpo da Nacionalidade, emfim, systemati-

sando os movimentos —os menores actos — ás aspirações dos ramos

diversos da elite—por sua vez subordinada a núcleos dominantes.

A lueta pela preeminencia, para me servir de palavras consa-

gradas ('), é a formula nova da jornada culta.

E' a formula ampliativa e intellectualisada do struggle for life.

Guerra ao principio da Egualdade, anti-natura], importuna e

cuja tentativa de implantação só pode filhar uma grande baixa men-

tal — os maiores desconcertos.

Com razão affirma Bourdeau, em commentario a Spencer, queo collectivismo não passa de uma phase de propaganda, não podevisar um fito de desenvolvimento definitivo.

O Estado socialista exclue a idéa de progresso, pelo que en-

trava a iniciativa individual.

De facto, com toda a razão affirma o philosopho inglez que"um

dos traços essenciaes da evolução social é a especialisação das

funeções e que portanto a funeção do Estado deve ser limitada á

proporção que a evolução se desenvolve: estender as suas funeções

é andar para traz,,. (2)

E no entretanto o mais da gente guerreia a individualidade,

apedreja a obra isolada, pretende a repartição dos benefícios espiri-

tuaes e odeia o talento ou o gênio que os criam, semeiam, ou

espalham.

A mediocridade esteril passa a vida a enxurdar a intelligeucia,

glosando idéas baratas de egualdade perfeita.

Os que a formam são o enxame de inferiores sem rumo, ver-

gados ao peso das illusões que os cavalgam.

Apostolos falsissimos, em geral da marca positiva, são no fun-

do pregoeiros dos mais extravagantes preconceitos.

Por mim prefiro os rudes —os de boa fé —os bons camponios

que se levantam á hora do sol, conversam a natureza á puridade,creem nos agoiros, leem o futuro nas superstições, são por vezes o

pronuncio do gênio latente nos dictos, nas suas descobertas—até

na perseverança da rotina —trabalham, cantam, vivem, são felizes e

não embargam a felicidade dos outros.

(1) Les maitres de Ia pensée contemporaine, par Bourdeau. 1907.

(2) Carta de H. Spencer a Bourdeau, no livro cit.

A ÁGUIA 7

O grosso dos taes philosophos finge acreditar somente no

que vê.

Lê grosseiramente nos effeitos e d'ahi confundir as causas. Isto

em parte por educação —muitas vezes por má fé.

Se lhes convier negarão o crescimento" das arvores — porque

as não vêem crescer. " ' "* '

Que importa verem-nas crescidas?

D'uma grande parte da obra dominante — a dos apostolos mais

creditados nas praças portuguezas—pode bem dizer-se o que a çri-

tica allemã concluiu do exame da obra de Haeckel — que um tal tra-

balho realizou o zero philosophico.

E pôde dizer-se, no presente caso, com bem justiça.

Artistas! intellectuaes! —guerra á pantonarchia, designadamente

aos apostolos mais ousados.

Defendei a obra aristocratica portugueza, e o que é mais for-

talecei o seu reinado, ou republica, tanto importa, promovendo

garantindo, dilatando o seu antigo poderio, pela ccgação do novo

estado — o 4.° Estado na ordem histórica: — o Estado-artista.

Quando os inimigos internos ou externos vos pedirem a folha ..

corrida da Nação, de tal forma remodelada — nas bases d'uma obra

de gênio secular—mostrae-lha, que por maiores que sejam os titu-

los dos estados mortos ou vigentes--nenhum- apresentará mais

limpo documento do que o riovo EsTãdíT e com elle a mais notável

certidão de serviços e gloria.Basta de cobardias.

Que todos tomem os seus logares.

Ao talento é dispensável a desgraça para que o preiteemos.

Por si s» affirma, e exteriorisa. Ennevoar o dia, esconder o sol

só para que as toupeiras e os morcêgos viagem á vontade, —é de

nimio desleixo, senão de criminosa abnegação.

Faça-se o^dia, como informam que o Creador mandou e quem

não puder viver, encarar a luz —

que fuja — que se suma! Fazer da

treva o regalorio dos semi-cegos não está bem, não pode ser...

Ao menos, não deve ser.

Ancêde —1911.

Chanson

Adieu vous dis, la lanne à 1'oeil;

Adieu, ma três gente mignone,

Adieu, sur toutes la plus bonne,

Adieu vous dis, qui m'est grand deuil.

Adieu, adieu, nVamour, mon vueil,

Mou pauvre coeur vous laisse et donne,

Adieu vous dis, la larme à l'ceil.

Adieu, par qui du mal recuei!

Mille fois plus que mot ne sontie;

Adieu, du monde la personne

Dont plus me loue et plus me deuil.

Adieu vous dis, la larme à lóeil.

De François Villon"Chansons.i

Siècle XV.

Canção da despedida

Digo adeus, e vou chorando...

O' meu bem, meu amorsinho,

Já nem vejo o meu caminho,

De cego que vou chorando.

Entre as lindas a mais linda,

Vou partindo e vou ficando!

Quem diz adeus, fica ainda...

Digo adeus, e-vou chorando.

Digo adeus,' e volto o olhar

Para traz, de quando em quando,

Minhas penas adoçando

Na alegria de chorar...

Digo adeus, e vou cantando.

(De François Villon)

ÁRVORES DE PORTUGAL —Estudo de copa de cedro

(De Cervantes de Haro)

A Águia-1 (2.a série)

'

Esta história é para

os Anjos

Nem palácio, nem cidade,

Nem raça de sangue nobre:

Foi num berço de humildade,

Numa casa e terra pobre

Que nasceu a donzelinha,

A quem quero e que me quer,

De quem sou e que é tão minha,

Que ha de ser minha Mulher.

Somos de egual creação

E a dôce Mãe que a creou

E meu Pai, por geração,

Sam netos do mesmo Avô.

Moramos os dois tam perto,

Que, a medir pelo caminho,

Será a distância ao certo

Um vôo de passarinho.

Quando Ela era criancinha

E eu já rapazinho feito

A minha bôa Mãezinha

Também a trouxe no peito.

Olhos de Mães nos traçaram

O Destino misterioso,

Das vezes que nos juntaram

No mesmo olhar carinhoso.

Santo olhar, materno e puro,

Que aos dois — menino e Menina —

Predestinou o Futuro

Soletrou a clara Sina...!

Oh! quem soubera entender,

Quem poderá adivinhar

O que Elas dizem sem vêr,

Porque está no proprio olhar...!

Olhos de funda clarêza,

Que o coração feminino

Yive mais na Natureza,

E mais ao pé do Destino.

Desde então as nossas Vidas

Ninguém as pode apartar,

Eternamente fundidas

No raio do mesmo olhar.

Gotas d'água cristalina,

Que mal a Aurora apontou,

O raio, que as ilumina,

Na mesma névoa elevou.

Névoa, que paira embalada" Num amoroso segrêdo,

Docemente abandonada

Entre os braços do arvorêdo...

Éramos nós criancinhas

E já, para além da Vida,

As nossas almas juntinhas

Numa névoa enternecida

Iam sobre os horizontes

Tomar nas formas da serra,

No ar, nas pedras, nas fontes,

No Corpo e Alma da Terra,•

Formas tão bem combinadas,

Figura de tal maneira,

Que nas Almas apartadas

Houvesse uma Alma inteira;

Para que ao fim de nascerem,

No ponto de se fitarem,

Mais depressa se entenderem

E inda mais fundo se amarem.

As Almas assim criadas

São irmãzinhas também,

No mesmo abraço apertadas

Ao seio da Terra-Mãe.

E eu, por certo, vos inteiro— Procurai, de vale em serra —

Só é Homem verdadeiro

Quem viveu de encontro á Terra.

Ai! dessa raça doentia

Que nas cidades nasceu:

Nem vê a Terra de Dia,

Nem de Noite vê o Céu;

A ÁGUIA 11

E que arde em sêdes mortais,

Em contínua febre acêza

Junto ás fontes imortais

Da Bondade e da Belêza!

Filho—pródigo orgulhoso,

Que a vil cubiça governa,

Faze-te humilde e amoroso

E volta à casa paterna.

Volta à Terra, que te chama,

Volta lá e has de aprender

Que só é feliz quem ama

E ama quem sabe sofrer.

A ave, quando descerra,

Junto ao Céu, as azas puras,Primeiro finca-se à Terra

E depois sobe às alturas.

Volta... e de Dia verás

Que inda o ser mais pequenino,Na mais dôce e humilde paz,Cumpre amoroso Destino.

E quando tudo acomoda,

Já quando a noite vai alta,

Basta olhar à tua roda

Verás que a Vida se exalta,

E que em frente ao Céu sem fim,

A Noite infinita e densa

Não ha desejo ruim

E a Alma se torna imensa.

E quando tão alta fôr,

Que atinja aquela grandeza,E' que está cheia de Amôr,

Que é a mais alta Beleza!

As Almas, se alguém as sabe

Conhecer logo de fito,

E pelo Amôr que lhes cabe

Pelo que tem de Infinito!

Assim a dôce Mulher

De quem serei, sendo minha,

Porque lhe quero e me quer,

Tão de encontro, tão juntinha,

Á Madre-Terra viveu

E de Alma tão recolhid?,

Que debruçada bebeu

Mesmo na fonte da Vida.

Quem a viu, só pelo olhar

E pela graça do vulto,

Sabe estar no limiar

Daquele país oculto,

Onde a voz dos Anjos canta,

Onde o Amôr é já divino,

e aonde a Bondade é tanta,

Que encarna o próprio Destino,

Graça de espírito aéreo,

Alma que sonha, invisível,

Se a gente sonda o Mistério,

É tudo um mundo indisivel...

Quem a vê d'olhos atentos

Sente máguas esquecidas,

Divinos presentimentos,

Certezas desconhecidas.

Se um escultor conseguisse

Formar a aérea figura,

Que a sua reproduzisse,

Tam bela fôra a escultura,

Que o seu nôme fôra tal

como —a Graça melindrosa,

A Beleza espiritual,

A Bondade silenciosa.

E quando em silêncio passa,

Como a Alma da paisagem

Encarnou na sua graça,

Dá mais sombra que a folhagem,

Tem mais socego que os montes,

Abriga mais do que um Lar,

Mata a sêde mais que as fontes

Dá mais Sonho que o Luar.

No dia, em que A vi mais perto,

Logo acordei noutra Vida

E logo senti por certo

Que tinha a Alma partida,

Pois vi-lhe, enquanto a fitava,

Com os meus olhos nos seus,

A parte que me faltava

Para chegar até Deus!

Oh! olhos extasiados,

Criando um novo sentido,

Oh! segredos revelados

No silêncio surpreendido,

Quando as Almas estremecem

A' maior profundidade,

Porque enfim se reconhecem

Na sua eterna Unidade!

Que amar é ter assistido,

Já para além dos humbrais

Desse olhar embevecido,

Aos divinos exponsais

Da Graça com a Rudeza,

Do Fogo com a Brandura,

Da Força com a Beleza,

Com a Bondade e a Ternura.

Amar é a maravilha

De criar e ser criado,

Ser a Mãe e ser a Filha

No mesmo sêr combinado.

Amar é sêr a semente,

Num árido chão sepulta,

Que germina de repente,

Trasbordando seiva oculta;

E tanto, tanto cresceu

Que custa a reconhecê-la:

A sua copa é o Ceu,

Cada folha é uma estréia...

É sentir que não ha nada

Sem que delire em desejos;

É ir de boca fechada,

Continuamente a dar beijos.

Amar é ser indeciso...;

É não fazer distinção

Entre a Lágrima e o Riso,

Entre o Beijo e a Oração.

14 A ÁGUIA

É seguir extasiado,

A cada portada aberta,

Num palácio abandonado,

De sala em sala deserta.

É entornar a Belêza,

Porque as Almas estam razas:

Amar é ter a surpreza

De vêr os homens sem azas!

É fazer brotar as fontes

No deserto mais escasso;

É já não ter horizontes...;

E viver além do Espaço,

Onde nem a Nuvem erra,

Onde nem Astro gravita:

Amar é, pisando a Terra,

Vê-la a distância infinita!

Acima, oh! Alma liberta,

Sopra o lume em que desvairas,

Distende mais a aza aberta,

Alteia o vôo em que pairas!

Eis-me já nos Céus sem fim...

Mas subo em Amôr: e abranjo-os;

Deixo a Terra atráz de mim:

Esta história é para os Anjos!

S. João do Campo.

Setembro de 1910.

J- 7

.

Uma fala de Espíritos

i

oite espectral. Fantasmas de luar rondam na serenidadedo Silencio. A lua entornou-se e escorre, sobre a terra,um branco mel suave d'açucenas. Extatica e branca a terra

• scisma, e, do seu scismar, ressumbram materialisaçõesue sonho. Os pinheiros recolhem a seiva e adormecem num intimomurmurio de evocações. Pouco e pouco farrapos de luar se juntamem duas formas humanas; sobem vagarosamente a encosta do pinhei-ral e começam um dialogo precipitado.

Uma é alta e desageitada, de luar condensado, semelhandosombra; outra frágil, inquieta, de luar diluido, estremecendo fugitiva.

São dois espectros de homem. O primeiro evola-se em saúda-ue da montanha, do rio e dos pinheiros. O segundo condensa-sepesarosamente no meio do Espaço, como se fôra uma alma a cor-porisar-se.

E assim fala o Espectro da terra:~~Sou

o filho da Montanha. Conheço as entranhas da minha mãeterrestre. Foi com dôr e sofrimento que ela me gerou. Rasguei-lheos tlancos, pejei-lhe o ventre, nutri-me do seu sangue, fui sofrego

a sua carne e da sua alma. A minha mãe tinha uma alma humil-e e vagarosa, não se desentranhava; mas, nas profundezas das suas

entranhas, estremecia, ebria de futuro.Era generosa, era uma pura dadiva. O seu corpo era o seio

e inumeráveis voracidades. E sofria pela angustia das suas pene-ias sÇcas, e chorava pela fome dos homens, seus vagabundos filhos.

Os deuses cobriram-na com um manto de luz e calor e leva-íam-lhe os filhos para a escravidão, arredando-os das fontes e dassombras maternaes.

Os filhos da Terra deviam ser os escravos dos deuses. Eles,que tudo deviam á sua mãe terrestre, haviam de desprezá-la poresses tiranos longínquos e cheios d'um ingrato desprezo por essa

erra, que afinal os tinha amamentado também. Revoltei-me. Euera adivinho, diziam. Esse poder vinha somente d'aquela embriaguezem que no seio da minha mãe estremecia o futuro.

Roubei o segredo aos deuses—furtei-lhes o fogo e vim entre-ga-lo ao meu irmão homem. E, com esse fogo, o homem subiu,

16 A ÁGUIA

cresceu e destronou os deuses. Depois esqueceu-me no suplício, e,

lá no Caucaso, ainda é torturada a minha carne. Adormeci no su-

plicio. Quando acordei, soube que um intrujão, raquítico como

tu, tinha ,negado a minha mãe terrestre.

És filho da mentira, responde numa voz cortante o outro

Espectro.E o que é então a Verdade, oh tu, que como o fumo da

palha humida enches a natureza d'uma insuportável presença?A verdade é o Amôr.

Por amôr gemeu minha Mãe, por amôr me foram roídas

as entranhas, por amôr me dei em sacrifício aos homens e á na-

tureza.Isso é amar ilusões. O verdadeiro amôr é o amôr por meu

Pae celeste. É preciso desprezar este mundo, que é mentiroso e vão;

amar Deus somente, e, em Deus os homens nossos irmãos. Eu tam-

bem me sacrifiquei pelos homens. Sou aquele que, por amôr dos

homens, morreu crucificado.

Ah!... Lembro-me... Mas tu devias sêr o meu irmão mais

novo. Eu vi um dia, no coração de minha Mãe, uma figura femi-

nina, cheia de dôr e bondade. Era Jesus...Sou eu.

Tu, miserável?! Tu és o meu irmãozinho; aquele que devia

vir depois de mim a encher de bondade, com a sua doçura femi-

nina, os corações dos homens, por mim tornados firmes e altivos?

És tu aquele que sonhava o Amôr, já mais perfeito, de minha Mãe?

Aquele de quem eu fui a primeira e a mais dolorosa experiencia?

Para que o ventre terrestre te parisse, preciso foi que primeiro eu

viesse colher os ensinamentos da dôr. —E tu vieste; e tu, ridículo

palhaço, vieste remir os homens e abandonaste, renegaste teu irmão

e tua Mãe. Eu continuo torturado pela fatalidade, minha Mãe foi

escorraçada do teu paraizo, foi esquecida no espectaculo da tua

Redenção! E para isso fizeste-me adormecer; porque, se acordado fôra,

eu quebraria as cadeias, eu arrastaria comigo o proprio Caucaso para

te esmagar, miserável!

O Espectro tinha-se amalgamado com a Terra e com a Noite,

momentaneamente tempestuosa e obscurecida. E estas palavras sahiam

da Terra e da fúria do Vento.

De novo um branco mel suave de açucenas embebera a Terra.

E, verdadeiro, humilde e firme, assim fallou o outro Espectro:

— Vim trazer a felicidade aos homens. Eu amava-os como

se não pode mais. Procurei-lhes a felicidade e vi que não era no

exterior, que ela podia residir. Só podia sêr feliz o homem que

consentisse. O consentimento, a renuncia no seio clemente de Deus

é a única felicidade socegada e pura. A Natureza é insensível,

esmaga as esperanças e os afectos do homem com bruta indiferença.

E' hostil e feroz, agride sem proposito e afaga sem carinho — por

isso refugiei o homem em si mesmo. Depois vi dentro do homem

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^ ¦-

A ÁGUIA17

egualmente, a guerra, a lucta, a discórdia, o tumultuar das paixões o

escachoar do odio e da inveja; emfim, a invasão do mundo exterior,

fazendo do homem um escravo dos apetites, do mundo, de tildo 0

que não é propriamente o homem.

Fi-lo renunciar a todas as exterioridades, e, naquela abstracta

aspiração de Infinito, que nele encontrei, fiz residir Deus. Naquela

insaciavel aspiração de felicidade o fiz meditar e, embalando-o no

ritmo do proprio desejo, adormeci-o na renuncia e na quietitude

d'uma alma equilibrada, pela continuidade vertijinosa e monotona

do proprio querer. Nesse permanente desejo de Deus esta a feli-

cidade e a verdade, porque a alma nada mais é que voracidade

divina. "

E eu abandonado no Caucaso, e a Terra a mendigai a luz

do sol.Tudo isso é transitorio e futil. A Verdade é a absorçao em

Deus.

E's covarde, negas a vida porque não podes com ela.

Faço-o por amôr dos homens.

Os homens dispensam uma piedade, que lhes obscurece e

amesquinha a vida para lhes dar depois a felicidade do charco.

Olha! que me importa o teu paraizo, que me importa a felicidade

de charco que ofereces, se o mundo de dor e agonia dos nossos

irmãos continua na cegueira, na guerra e na bruteza? Es um ci-

rurgião hábil! Está dorido um membro? Corta-se. O pensamento

inquieta? Corta-se a cabeça. .

Salvaste os homens. No entanto abandonaste a Mãe e o irmão

e eternamente entregas os homens ao sofrimento e á mentira transitória.

A Natureza emudecera a escutar. Uma melancolia subtil, uma

condensação de tragédia se ia formando lentamente. Aquellas duas

forças cósmicas iriam unir-se e salvar o mundo, ou iriam comba-

ter-se e continuar a dispersão e a guerra, que vem do Caos.

O Espectro da Terra continuou: —

Qne deste aos homens. Ah.

eu não os fiz de todo venturosos, mas dei-lhes o fogo que os aquece,

que os alumia e que os conduz.

E elles esqueceram-te. ,Não me puderam libertar ainda. Mas tu, que es todo po-

deroso, esqueceste os teus e toda esta Dôr que te cerca e não ouves.

O Espectro de Cristo, inquieto e comovido, perguntou:

Onde está a Dôr?

Ahi a teus pés; tira os olhos de dentto de ti e olha em

redor. Não vês lagrimas, súplicas, desesperos?

O Espectro de Cristo começara a condensar-se. Abraçado

pelos pinheiros apalpa e, num grito estertoroso, clama:

Meu Deus! Eu vejo um tumultuar de angustia. Meus irmãos

escarnecidos e esmagados, Minha Mãe ceguinha e mendiga. O Sol,

os astros, as nebulosas, tudo agonisa e me chama.

Enleiando-se no espectro de Prometeu e beijando a Terra:

18 A ÁGUIA

Minha Mãe, perdoa. Meu irmão, conheço-te agora! Olha o

meu coração como se incendeia! São labaredas d'amôr; vou-me

consumindo em amôr!...

O ceu acende-se numa luz branca, que o envolve caridosa-

mente, e o espectro de Cristo, ainda agora abraçado na Terra

dilue-se em luz na amplidão ilimitada:Meu irmão leva esta luz aos homens. Com ela, eles serão

felizes; poderão libertar-te e espiritualisar o Universo.

Prometeu, inundado num clarão desconhecido, estremece, cae

de joelhos e murmura:

Abençoado seja o meu sacrificio. Sinto o quebrar das cadeias.

Comprehendo agora porque o meu fogo não salvou os homens.

Não é o fogo que os pode salvar, mas a alma do fogo. A natureza

sofre e é impotente, mas o homem possue o fogo do espirito e,

com ele, irá acender consciências pelo Espaço. Desperta e lucta

Natureza! Já não pesa sobre ti a Fatalidade; mas, com o amôr e o

espirito, começa a liberdade, o consentimento mutuo, o auxilio, a

fraternidade, a ascenção moral! Deus é o foco invisível das almas,

a fonte inexgotavel do heroísmo e do amôr.

Desce da Montanha, oh Carne de Prometeu! E vai pelo Uni-

verso levar a boa nova—os dois irmãos se amaram e, do seu

amôr, nasceu um Cosmico Jesus, um Cristo-Prometeu, que, na

terra, nos mundos, nas nebulosas, vae ensinar Deus ás almas.

Amanhecia. Na claridade do nascente, a luz tinha uma côr

inédita, a terra uma face nova.

Murmurios misteriosos e rápidos perpassavam pelo ar e porsobre a espiritualisada face da terra. Eram coloquios rápidos e

nervosos, movimentos de delirio e crescimento. Tudo avolumava e

estremecia.

Um Oenesis novo começara das bandas do Sol, lá do prodigoOriente.

Lixa. —12 de Setembro de 1911.

(Do livro inédito "As falas dos sêres»)

WlMricb EJ ¦¦—^T~ ",~mm —~-i

i

O PUCARINHO

O pucarinho de barro,

o pucarinho,

tem bochechas encarnadas,

tem as faces afogueadas;

dêem-lhe agua, coitadinho,

que tem sede, o pucarinho!

O pucarinho de barro,

o pucarinho,

está ao pé da sua mãe,

sua mãe, bilha bojuda,

que tem como elle também

a carinha bochechuda!

O pucarinho de barro,

o pucarinho,

se a agua dentro lhe cae,

põe-se baixinho chiando;

parece que diz: —Ai, ai,

já a sede vae passando!

Se se vae pelo caminho,

ao Sol ardente,

tem-se uma grande alegria

se dão a beber á gente

uma pouca de agua fria

que é dada num pucarinho!

(Do livro Canto infantil, com musicade Th. Borba, no prelo)

ran

Quinta das Lágrimas—Fonte dos Amores

i

Lágrimas e Amores... Olha a graça

Destes dois nomes gêmeos, abraçados!...

Tu és fonte de Amor, ó minha raça,

De olhos saudosos sempre marejados...

Olha a fonte a cantar, dizendo á gente

Dramas de Amor em vozes de creança...

E, sobre o sangue, o beijo transparente

Da agua, que de caricias se não cança...

Ali a Morte e o Amor, num mudo assombro,

Tragicamente mudos, os sentimos

Que se contemplam sobre o nosso hotnbro...

E no silencio fundo e alto, quando

Passa a briza nas folhas, —nós ouvimos

Lábios gelados que se estam beijando...

II

Sangue de Inês... — A santa ingenuidade

De quem vive a sonhar, por muito amar!

Portugal é uma fonte de saudade

Toda triste e saudosa, a recordar...

Sangue de Inês que, morta, foi rainha,

E tem altar no Amor dos amorosos,

E que passa ao luar, branca e sosinha,

Entre a Sombra dos troncos silenciosos...

Cedros velhos que os vistes, —cedros velhos

Que tanta vez os vistes de joelhos,

Extasiados, trêmulos de Amor!...

Ha paisagens que sam almas rezando...

E aqui vagueiam almas recordando,

Como um perfume de jardim em flôr...

Coimbra, 1911.

Misticismo da carne

(a Moita de Deus, Estevam

de Oliveira, Mario Vieira).

I—Avé-origem

Por teu ventre começa a minha vida,

Por teus olhos a estrela que me guia.—Amor,

que Deus te salve!—Avé-Maria,

Cheia de graça, ó bem-aparecida...

Por meu e por teu verbo de harmonia

Se fará eterna origem comovida

De outros fructos de Amor!—Avé-Maria,

Senhora da minh'alma apetecida,—

E meu sangue amoroso e productivo

Se fará carne e espirito fecundo,

Á tua imagem, noutro corpo vivo.

E assim ambos, Amor, iremos ser

Seio da vida originando o mundo

Por teu ventre bendito de mulher.

II—Amem-Amor

Ó Eleita da minh'alma e do meu gosto,

Como te encontro bem dentro de mim!

Que lindo fica o teu olhar, assim,

Quando meus olhos queimam o teu rosto.

Trago de longe os teus desejos... Todo

Cheio de mim vivo contigo imerso.

Quando nasceste ouviu-me Deus... A modo

Que foi, assim, meu coração teu berço.

Tu vives para mim tão casadinha,

Dá-se tanto minh'alma com a tua,

Que não sei qual das duas seja a minha.

Criei amor, bem dentro, aos meus desejos:

Amo a luz que a teu corpo me insinua

E abraço tonto o coração aos beijos.

SONETOS

I

A névoa que me envolve sobre o lôdo

D'este mundo, e me arrasta consumido,

Tão distante me traz do meu sentido,

Que julgo errado o meu passado todo!

A que foi que aspirei?! Que falso engodo

Foi que me trouxe o espirito illudido?!

Ah! que é certo ninguém ser prevenido

Senão pela experiencia, d'este modo!...

E as intenções que tive! E como eu era

Livre, contente e bom, prompto a luctar!...

Mal empregada a minha mocidade!

Como eu seria outro, se soubera

Que mais se illude aquelle que teimar

Em servir sempre o bem com a verdade!

Tenho a mais alta aspiração do homem;

Aquella que nos nasce involuntária

No coração, e que é mais necessaria

De quantas ha, e aos outros mais consomem!

Não é riqueza ou fama, embora tomem

Os olhos attenção á sorte vária;

Mas attingir na arte a estatuaria

Suprema d'esse ideal que os astros somem!

Tenho-a desde os meus sonhos de rapaz;

(Quando se busca só o que é verdade,

E na verdade o bem a que se aspira!...)

Porque esta vida, como a gente a faz,

Cheia de odio, de inveja e de vaidade,

Que enorme, que enormíssima mentira!...

SC1ÊNCIA, FILOSOFIA E CRÍTICA SOCIAL

(

PEDRO NUNES E A ÁLGEBRA

. l'Algèbre aurait un nom grec au lieu d'un

íioni arabe, et cependant les géometres grecs

n'en auraient pour cela ni plus ni moiiis fait

d'Algèbre qu'ils n'en ont fait.

M. M. Maríe.

em dúvida. A geometria grega tem ao lado do raciocínio puro,

os objectos a que o aplica. Forma, pois, uma geometria

com um carácter acentuadamente algébrico. O raciocínio é

perfeito e geral, faltando-lhe apenas um simbolismo que o

facilite e que, vestindo as mesmas idéias, as torne mais abstractas,

por as tornar livres dos objectos que as originaram.

O mundo geométrico começa então a depurar-se cada vez

mais da experiência que o originou, e a álgebra aparece. Claro está

que já na Grécia a geometria — a princípio misto de experiência e

lógica — se tinha elevado a uma construção ainda hoje digna de

admiração. Assim, quando Platão afirma que não é digno do nome

de homem aquele que não sabe geometria, refere-se evidentemente

àquela geometria que tinha chegado ao conceito de número irracio-

nal, àquela geometria puramente especulativa que era a sciência

grega por excelência.

Seria interessante seguir através dos tempos a evolução desta

sciência que, de verdadeira física dos sólidos perfeitos, como ainda

pode ser considerada, se transformou na álgebra, absolutamente

desprendida do real. Verificar como com Descartes há outra vez a

tentativa da unificação dêstes dois ramos, como Leibnitz e Newton

são levados, para acordarem o contínuo geometrico com o contínuo

algébrico, á noção de diferencial ou antes ao cálculo infinitesimal e

como nos tempos modernos se está a considerar a álgebra novamente

como uma geometria, não a euclidiana, quero dizer não aquela que está

de acordo com as propriedades dos corpos sólidos, mas^ uma geo-

metria relativa a um mundo todo criado pelos matemáticos e do

qual a actual realidade não é mais que um caso particular.

Mas isto levava-nos para campo muito diferente daquele em

que nos pretendemos colocar.

Hoje simplesmente queremos mostrar o papel desempenhado

por Pedro Nunes na criação da álgebra moderna. Não é que este

trabalho seja original e que já não esteja dito tudo que passo a

afirmar; mas é que me parece não ser o trabalho de Bosmans,

publicado nos «Anais scientíficos da Academia Politécnica», suficien-

temente .conhecido, nem escrito para leitores alheios a êstes estudos.

24 A ÁGUIA

Neste trabalho mostra Bosmans que o «libro de álgebra-» de

Pedro Nunes ficou quási desconhecido por ser escrito, numa pri-

meira edição, em português, língua pouco conhecida, depois em

espanhol, língua pouco simpática, apesar de muito falada. ^

Dêste modo o livro não passou dum reduzido número de

leitores que o apreciou com justiça.

Pedro Nunes define álgebra como sendo a arte de resolver as

equações — "En esta arte de álgebra el fin que se pretende, es ma-

nifestar la quantidad ignota. El médio de que usamos para alcançar

este fin, es ygualdad».

Como sabemos a noção de potência é relativamente moderna,

de modo que Pedro Nunes, como os matemáticos do seu tempo,

tinha uma palavra para cada potência, embora essas palavras, na sua

formação já obedecessem de certo modo à propriedade caracterís-

tica desta função. Assim a

x] X2 X3 X4 X5 X6 . . .

chamava

cosa, censo, cubo, censo de censo, relato primo, censo de cubo ou

cubo de censo...

E a notação empregada era correspondentemente:

co, ce, cu, ce. ce, re. p.°, ce. cu ou eu. ce, etc.

Vê-se a dificuldade enorme que isto acarretava quer para a

leitura quer para a escrita. Mais tarde Viete pouco modifica.

Os sinais empregados são:

+

Iguales a =

R. V. (Radical geral)

Não usa o parentese, repetindo os termos que o formariam

na notação actual.

Assim a expressão:

6ÓJC2 — 75jc — 12JC3

é escrita:

65. ce. m. 75. co. m. 12. cu.

Expressões como esta são designadas na álgebra com o nome

de "dignidades

interas,,.

Às fracionárias são divididas em quebrados de "primeira

| j; h : * :¦, >. .«

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S

A Águia-1 (2.a série)

MOÇO DE ESQUINA

(De Leal da Câmara)

A ÁGUIA 25

intencion,, e de "segunda

intencion,, conforme o denominador contêm

ou não contêm a incógnita.

Define e dá regras para todas as operações com os polinó-

mios, com as fracções, estuda a redução das fracções, tudo" isto

independentemente da geometria.

A resolução das equações do segundo grau é feita geométri-

camente, considerando os casos:

x2^- ax + b, x2 + ax b, x2 + b ax onde a e b são positivos.

Só quando as raízes são ambas positivas é que Pedro Nunes

as admite como raízes, nos outros casos declara os problemas

impossíveis. Se bem que já no seu tempo aparecera quem lançasse

os números negativos, é certo que Pedro Nunes não achava ra-

zoavel semelhante idéia e chegou mesmo a indignar-se contra esses

"vaidosos,,.

O seu exagêro é .proveniente dum escrúpulo lógico muito

aceitavel. Basta reparar que as equações eram resolvidas geométri-

camente.

Não admitindo as soluções negativas, não admite também as

soluções nulas. Assim a equação:

5x2 — Qx2

é declarada impossível.

Repare-se que, se actualmente nos rimos disto, basta traduzir

geométricamente aquela equação para compreendermos imediata-

mente a lógica de Pedro Nunes. iNão generalizou como nós

actualmente? Sem dúvida; mas não se podia fazer tudo duma só vez.

No estudo das • "dignidades,, Pedro Nunes faz álgebra exacta-

mente como os autores modernos. Quer dizer, as suas demonstrações

são já todas independentes da geometria. E' aqui onde começa a

álgebra. . , , A'

E' certo que já em. 1514, Jordan de Nemore tinha usado este

processo, fazendo raciocínios sobre letras; mas até ao apareci-

mento de Viète, só Pedro Nunes e poucos mais, compreenderam

a importância dêsse uso.

A noção de equivalência relativa ás equações encontra-se pela

primeira vez em Pedro Nunes, no seguinte problema: achai um

número que multiplicado por 3 seja o seu quadrado, e que aumen-

tado do quadrado dê 7,,-.

As equações são:

ou 3x x2 e x + 3x =. 7

4x 7 (D

26 A AQUIA

mas é também:

x + jc2 ==¦ (2)

e, portanto, adicionando (1) e (2).

5jk + x2= 14 (3)

Donde _

Solução que verifica a última equação e não satisfaz ao pro-' blema. A razão apresentada por Pedro Nunes é que a raiz de (3) não

é raiz de (1) nem de (2). Actualmente diríamos: é que (3) não é

equivalente a (1) nem a (2).

O livro de álgebra trata depois duma multiplicidade de pro-

blemas, com um carácter absolutamente algébrico, tendo algumas

soluções que ainda hoje podem ser apresentadas como modelos de

lógica e até de elegância.

Mas já não é para êstes artigos o tratar com tanta minúcia

deste sábio português que ia ensinando os nossos marinheiros a

cortar o mar segundo a luxodromia e ia mostrando aos sábios o

caminho mais curto para os seus raciocínios perfeitos, criando a

álgebra.

E havemos de ver se fez mais alguma coisa.

i

Da liberdade e seus detentores

enho diante dos olhos um tremendo artigo de jornal, esciipto na

maneira truculenta e desairosa que torna a nossa imprensa "uma coisa

notável ... na arte do insulto e do enxovalho das opiniões alheias.

Não traz assignatura nem indicação próxima ou remota donde se possa

deduzir quem seja o seu auctor- processo magnanimo a que fiequen-

temente se recorre para garantir um copioso socêgo a sujeitos que gostam de

atirar a pedrada e esconder a funda, como escreve o honradíssimo Sá de Miranda.

O que diz o irritante documento? Um pouco mais ou menos isto - que em

Portugal existe um bando perverso de políticos mariolões que estão de animo

feito para estrangular a vida livre dos cidadãos, privando-os methodicamente do

exercício dos direitos mais elementares; que se torna indispensável dar de presenteao Diabo tão acabados tiranêtes, renovando o acto de cinco de outubro para ím-

plantar de vez entre nós um reginien de franca liberdade ...

De franca liberdade, nada menos! ,

Mais devagar, illustre anonimo ... Então você julga que as turbas se podem

assim, de um dia para o outro, arvorar em soberanas, por meio de uma msurrei-

ção ou de um decreto?

Eis a mais perigosa das illusões do nosso tempo!

Não vem a ser livre quem quer, como não é talento superior, heroe ou

santo o que disso se convença. A liberdade é um prêmio raro da natureza, cujo

exercício está garantido em orgãos e faculdades interiores que muitos homens

não possuem, a não ser em dóse minima. A autonomia pessoal, a intangível hege-

monia da nossa consciência, embora haja quem illusoriamente se creia na possede dons tão distinctos, distribue-se com assombrosa avareza, segundo um misterioso

critério que a Fortuna não revelou a ninguém.

A personalidade humana, sob., o ponto de vista pragmático^ admitte uma

infinidade de graus: ha creaturas cuja actividade se traduz quasi só por reflexas,

esperando sempre um abalo ou comoção externa para modificarem a sua alma

somnolenta e parada; outras e em que quantidade, bom Deus!—vivem encazula-

das num fechado sistema de hábitos e praticas tradicionaes, não ousando executar

o mais simples movimento, desde que este não apresente conformidade com os

ensinos do passado ou as suggestões da classe em que se incorporam.

E' esta gente inestetica, avêssa a novidades, vagarosa e semi-consciente queconstitue o grosso das reservas sçciaes, a enorme massa amorfa que os creadores

da verdade-ás vezes bem baldadamente!-andam desbastando e afeiçoando ha ja

milhares de annos, a ver se lhes despertam, na profunda ignorancia, o sentimento

vivo da sua força. .Anntinciar-lhes que são livres, que podem dispor dos seus destinos quer

semelhante declaração se faça num codigo constitucional, quer pelas predicasassanhadas de qualquer tribuno ou perturbador, com a vesania de propagar credos

que veni isso a significar de positivo? - .Ou ouvem com ouvidos de granito e continuam no torpor dos espíritos

ensepulcrados na escura matéria que os veste ou se erguem estremunhados e en-

tram logo 110 exercício da sua soberania, dando as mesmas provas da conipetencia

que as creanças dão quando manejam instrumentos improprios da sua idade e

da sua razão embrionaria. As chusmas são um repositorio de energia latente c

rarefcita que se vai realisando ou antes espiritualiscindo em dadas individualidades

escolhidas, mensageiros providenciaes cuja alta e insubstituivel missão é encami-»

nhar os cegos e os ignorantes atravez os enigmas da existencia.

Schopenhauer comparou a alma humana a um largo e claro tanque de aguas

calmas: do seu fundo emergem pequeninas bolhas que á superfície formam capri-

chosos rendilhados de espuma fugaz: a massa liquida representa o inconsciente;

as bolhas argentinas o clarão passageiro do consciente.

O mesmo se lía-de applicar ás sociedades. Aqui as multidões confusas e

indistinctas simbolisam a porção de fatalismo e de obscura intuição que acom-

panham o labor dos povos: a liberdade é uma prenda aristocratica que só se topa

28 A ÁGUIA

em indivíduos predestinados para os deslumbramentos do mando, da sciencia, da

arte, da filosofia, da educação e da disciplina popular. Tem, no campo da activi-

dade, valor igual ao que o gênio possue no mundo intellectual.

O hometn só começa a- libertar-se da nebulose e do turbilhão das baixas

camadas, quando uma capacidade original se accusa no seu cerebro 011 na sua

vontade. O ramerrão, a rotina, as normas de conducta a que se submettem os

medíocres *e os imitativos, mostram-se incompatíveis com as formas supremas da

acção. A liberdade é o modo mais perfeito daquella ambição .de crear que consti-

tue a essencia pura do nosso ser.

Quein é livre, pois?Aquelle que não seja uma mera entidade de repetição e de copia, mas se

destaque entre os outros pelos traços firmes de uma fisionomia inapagavel. Em

qualquer grupo humano, apparece sempre um indivíduo que, pela simples influen-

cia de um querer mais forte, reduz os outros ao seu domínio: é o chefe, o con-

selheiro escutado, o que nos momentos críticos e difficeis saberá livrar a collecti-

vidade da oppressão do perigo ou da miséria. As suas palavras vibram num tom

de autoridade que subjuga os tímidos.

O poeta que mais vehementes emoções enredar na prisão dedicada do

ritmo, çonstruindo harmonias em que os vocábulos e imagens se equilibram na

medida e 110 numero, avança sobre os seus pares um passo o que eqüivale a

dizer que consumou um esforço creador acima da craveira normal. Praticou um

acto que as tabelias de valores não classificaram ainda. Exerceu com inviolável

independencia uma outra maneira de sentir.

O filosofo que consegue reduzir a termos hábeis a sua interpretação do

problema universal, fornecendo um conjunto de proposições e affirmações suscepti-

veis de provocar accordo ou critica e rasgando horizontts novos quer á duvida

quer á crença, mexeu-se desembaraçadamente num terreno em que os olhos dos

seus semelhantes só avistavam escuridão e nada mais.

O mesmo digo de todos aquelles que com a labareda da sua eloquencia ou

com o bastão do comando guiam as nações para fins que ellas não conhecem,

obrigando-as a caminhar 110 desconhecido, dominadas pela esperança ou pelabelleza viril de um vulto heroico. Onde os mais vacilam e tremem, elles ficam

serenos, adivinhando as soluções e as auroras em rápidos movimentos de augures.

Desnecessário é accrescentar que só elles possuem a força de se determina-

rem e resolverem, perante o fracasso das turbas impotentes.

No começo da dinastia de Aviz, Portugal necessitava empregar 11111 excesso

de energia épica, levando a cabo qualquer d'esses cometimentos com que os povosdão a prova provada da grandeza do seu mandato historico... Quem solucionou

a difficuldade, traçando uma perspectiva genial ás anciedades que se interrogavam?

D. Henrique, o Navegador.

O historiador João de Barros refere-se á aspiração dos poetas do seu tempo

que, sem excepção, se propunham escrever a epopeia da Descoberta e Navegação.

Queriam realisar," mas não sabiam como. Foi esta a superioridade de Camões:

quiz em plena liberdade escrever Os Lusíadas e levou a cabo o seu desideratum.

Transpôz assim a treva que o rodeava.

Mil exemplos poderia citar, mas para quê?O que importa fixar é o seguinte: livres são unicamente os homens que,

em frente de um obstáculo, de uma crise 011 collisão moral, mental ou social, se

mostram aptos para abrir uma saida á tortura collectiva, evitando assim desesperos

e catastrofes. Produzem a verdade que exige o momento. Seduzem e emocionam

com a maravilha das suas attitudes dominadoras. Quebram resolutos o jugo fatal

que embaraça os receosos.

E desta sorte a liberdade realisa a sintese mestra das faculdades humanas.

Conceber e visionar pouco mais é que formular vistas espectaculares sobre o

mundo e a vida. O grande triunfo do gênio consiste 11a realisaçâo de obras cada

vez mais perfeitas, porque cada vez mais livres!

NOTAS E COMENTÁRIOS

A IDEAÇÃO DE OLIVEIRA MARTINS

r«5s duas pequenitas que serviram a Binet como sujeitos ciasjsuas espe-

- riencias de tests mentais revelaram-se dois tipos bem distinctos de

ideação. Margarida, do tipo observador-concreto, eat ac ei iza-se pela

i'l)m preferencia dos substantivos na escolha das palavras pela maior per

centagem das ligações conscientes, ligações que sao^neladtímimadas

pela contiguidade espacial; pela larguêza no desenvolvimerít - - - ^

,

pelo dominio da vontade sobre o curso da ideaçao; pela maior fo Ç ,

e, finalmente, pelo facto de nma palavra determinar nela a evocaça Annanda

de pessoas, de origem recente. Correspondentemente, encontramo

palavras de imaginação, inexplicáveis ou de natureza abstracta, adj , iinarias

maior percentagem de ligações inconscientes, ligações que sao a2°™ ' Ç tp,na<;-

por semelhança; desenvolvimento curto, por sacadas, por chispas, c rflntíCTflo!

¦

um filão imaginativo de que lhe surgem as evocaçoes: livros, gravuras, cantiga ,

e, demais, uma imaginação errática, pouco sujeitavel a vontade, com i i

correlativa da atenção. , . . _ -aí™—. mm.r„

Para estudar as duas formas, abstracta e concreta, da ideaçao, MesserRecorre

ao testemunho dos proprios sujeitos das expenencias, feitas estas com homens de

mentalidade superior, e correspondendo aos tests operaçoes bem mais comp e .

O indivíduo que melhor distingue as duas formas da como características d

ideação abstracta: a não-exteriorização; a rião-real idade; a ausência de ín ag

visuais; o valor puramente auditivo da palavra; a formaçao de ligações purai e

lógicas. Por seu lado o pensamento concreto teria as segu 1 ntespropriedades

tendencia para a exteriorização; consciência da realidade; confusão da-P' .

com a imagem visual; formação de ligações objectivas, tais como as da co

dade no tempo e no espaço. . .

Dos restantes indivíduos com que se realizaram as expenencias de Messer

alguns encontram a distincção em muito menor grau e, um -mesmo, a ne^a

inteiramente. Confesso que o caso me não perturba, dado o caia y Adas informações. Quem pertença' acentuadamente a um dos tipos nao pode com

facilidade sêr levado a reconhecer, pela introspecção, a existeneia dos d°is Mas,

nos depoimentos, feitos em termos diversos, uma característica exist ]

mente se repete: o valôr auditivo ou visual da palavra. rri1Tm pxem-Foi dentro desta ordem de ideas que: num livrmho indiquei. como t-xen

plares de dois tipos opostos de ideação, dms; grandes art:ist q <¦ ¦

grandes amigos: Antero de Quental e Oliveira Martins, lustrei com ag ,

pios o caso do poeta, e deixei o historiador por estai C

Digam se valeria a pena insistir nelle os que ]a ouviram ou leram (como eu)

que a maneira de Oliveira Martins vem de uni intuito de imitaçao ^

Não me é possível, infelizmente, reler agora o historiador-iomancista, se

as circunstancias me não obrigassem a contentar-me com recordaçoes que^"asi

de infancia conservo, analizaria o problema por toda a sua ob t

creta pode associar-se ou não a faculdades mais próprias ou nla ® con ll"s ^°ut™

forma: seria ocasião de vêr o que sucede no nosso exemplo. Mas, enchendo-nos

de resignação e voltando ás pequenitas... Perdão: eu bem sei, caros amigos, que

ha grande distancia dos tests de Binet as obras dos meus autores,J: que nao sao

isto os processos scientificos que resistem a Clava de Hercules. Mas e 1 ,

dou como sciencia positiva. Voltando pois as pequenitas releiam os caracteres cte

Armanda e digam se lhe não encontram tantas cousas de Quental, desde o ma-

ginativo e abstracto da ideação, ao fraco dominio da vontade sobre ela, ao

puramente auditivo da palavra, ao desenvolvimento por chispas desse poeta q

30 A ÁGUIJ4

escrevia sonetos, e sonetos ás sacadas. E aqui lembrai-vos daquela pagina em queEça nos descreve Oliveira Martins "durante

quarenta horas, sem descanso, susten-

tado a café, empurrando com penna magnífica, através das ruas de Roma, da portaCarmental ao Capitolio, o triunfo de Paulo Emilio.,, E' um desenvolvimento largo,

esse, do tipo de Margarida, cujas características agora relereis, para as comparar

com as do pintor do Portugal Contemporâneo.. .

A imitação é na fôrma dum verdadeiro artista uma pele que lhe vai caindo

á medida que ele cresce, não logrando produzir coisa duradoura e admirável.

Jamais também esses elementos de imitação nos aparecem vivos, na essência do

pensar, inseparáveis da concepção. Com bôa vontade poderemos sempre acresceu-

tar á narração umas descrições e uns retratos, não muito prestaveis certamente e

com todo o ar de trapos pregados a alfinete no vestido liso e natural da nossa

ideação. Mas a alga não dá pêras, e nãó ha força de vontade que transforme um

molusco em galináceo. Cousa diferente de tais enxertos é a própria maneira de con-

cfebêr, a forma de pensar. O processo concreto surpreende-se na metáfora cons-

tante, implícita ou explicita, no substracto simbolico do autor. Como se sabe, a

comparação consiste na aproximação de duas imagens que nos são dadas parale-lamente, como dois líquidos que se não misturam: "os navios do rio, com os

mastros nus, sem balsões nem estandartes, pareciam uma tapada de arvores desfo-

lhadas pelo açoite duro de algum furacão medonho. Dir-se-ia que ao bando

alegre das gaivotas da véspera tinham arrancado as asas.,, Na metáfora o aglome-

_rado é mais íntimo, e os dois termos aparecem combinados, amalgamados numa'síntese materialmente absurda; "A emprêsa consiste num franco navegar para o

bem, com as velas cheias pela viração da sciencia e da fé, que ainda sopravam

acordes.,, Tomei estes dois exemplos agora ao acaso, abrindo nas primeiras paginasOs Filhos de D. João 1.°

Esta forma orgânica é constante em Oliveira Martins, é a sua forma, e

surge freqüentemente na concepção geral de todo um fenômeno complexo. Eis o

que se dá, por exemplo, na Historia de Portugal, com a reforma pombalina: a

revolução social é vista na imagem do terramoto e da reconstrucção apriórica da

cidade, e de maneira que as duas series nos aparecem inseparáveis. "O terramatodurou cinco anos, e subverteu as ruas e as casas, os templos, os monumentos, asinstituições, os homens; e até as suas ideas. E sobre as ruinas e destroços da

cidade maldita, levantou-se a Jerusalém do utilitarismo burges: sobre as migalhas

de Sibaris a efêmera Salento do Marquês de Pombal... O terramoto era o fim

de um mundo. Antes de criar, porém, o ministro precisava de consagrar a destrui-

ção nas esferas onde a natureza não chega na sociedade, nas instituições -

pára que a futura Salento fosse uma cidade nova em todos os sentidos. O terra-moto fez-se pois homem, e encarnou em Pombal, seu filho... (nova metafora,

acidental:) Que momento singular era este, em que a terra estremecia como nas

dores dum parto, dando á luz um tirano?... A' medida que tudo caía e o chãonivelado pelo terramoto de seis anos pedia a regua e o esquadro do constructôr

matemático, o Marquês de Pombal, rico pelos quintos do Brazil, levantava a nova

cidade utilitária e abstracta.,,

Cito ainda de memória, entre vários outros o exemplo do Tesouro queimadono Portugal Contemporâneo, e reproduzirei agora aqui um da Republica Romana.Anibal vai atravessar os Alpes, façanha que dá logar a uma descrição maravi-

lhosa. Vencerá batalhas, diz o historiador, depois de cada uma das quais se sentirámais vencido; "e no" campo alastrado de mortos perguntará a si próprio queespecie de Alpes eram essa montanha em cuja subida a cada passo andado seerguiam novos picos, sem portelas acessíveis para descêr pelas vertentes rápidas do

êxito. Essa cordilheira inacessível, composta pelos montes ideais do patriotismo,do direito, da abnegação civica, coroada nos seus picos pelo sol do raciocínio,animada pelas veias e filões interiores da abstracção, era mais alta do que todos osAlpes: ia perdêr-se no céu .. .„. Anibal vence no Ticiuo, em Trebia, no Trasimeno;e depois toda a campanha que precedeu a batalha de Cannas é descrita sob aimpressão de uma aguia que-percorre o céu da Italia, a vôos largos, enigmáticos.

Ainda quando nos descreve uma marcha de tropas, é um vôo que passa pelaimaginação do escritor.

Não tomemos, pois, por adorno de um pensamento abstracto aquilo que é a

própria maneira individual de o conceber, -e para finalizar a parolice, vejam, nesta

A ÁGUIA 31

¦evocação-do antropoide que procura manter-se em pé, a que poéticos simbolisiuos..

pode levar a faculdade de imaginar totalmente o concreto, 11a sua pormenorização:"...

Raivoso, caía, mas tinha em toda a face a iluminação de uma alegria orgu-

lllosa quando, apoiada a mão a algum rebento de arvore, conseguia tenteando-se

manter-se em pé... Para vêr, com duvidosa esperança, receoso, atrevia-se a sol-

tar-se, e tombava sobre as mãos, cambaleando. Rugia então uma fúria, num

chôro, espojando-se no chão, abandonando as árvores que talvez já odiasse, e queimpassíveis largavam sobre o desgraçado 11111 aguaceiro de flores.,,

REVISTA BIBLIOGRÁFICA

Esta Re-Rosário de sonetos líricos vjsta já na

por Miguel de Unamuno. sua primeirasérie, teve a

honra de se referir a um livro "Por

tierras de Portugal y Espana,, de Mi-

guel de Unamuno; e fê-lo em liome-

nagem ao grande escritor hespanhol

que com tanto carinho se interessa pelascousas portuguesas. Não sei se esse li-

vro, simplesmente admiravel, foi lido

em Portugal. E' de crêr que não ... E

todavia nada se escreveu em livros es-

trangeiros, a nosso respeito, de mais

belo, de mais profundamente interes-

sante e verdadeiro. A nossa paisagem e

a nossa alma aparecem ali, surpreendidasnos seus aspectos mais ocultos, trans-

cendentes e originaes.

Chamemos, mais uma vez, a ateu-

ção dos nossos compatriotas, dominada

pela grande questão política que se de-

bate ainda, para esta altíssima figura de

escriptôr que é um sincero amigo de

Portugal.

Miguel de Unamuno é um espirito

prodigiosamente fecundo; e a sua grandeactividade intelectual exerce-se em to-

das as regiões da inteligência: na sciencia,

no romance, na crítica, na poesia, no

drama, etc.

Sobre o seu esqueleto solido, erecto,

repousa um cerebro poderosíssimo,.emconstante actividade, n'um perpetuo in-

cendio espiritual. Oriundo de Bilbao,

da grande paisagem montanhosa, de

elevados e agrestos pincaros, as ondas

percursôras da maré alta dos Pirineus-o seu perfil não podia deixar de refle-

ctir o perfil serrano da sua terra natal,

ninho de aguias e guerrilheiros.

"Busco guerra en la paz, paz en

la guerra, el sociego en la acción y en

el sociego la acción que labra el soter-

rano fuego • que en sus entraíias bajo

nievo encierra nuestro pecho ...,, (So-

neto XXV, pag. 58).

E por isso, o seu espirito atinge a

maior intensidade e a maior força vital,

quando canta, quando se torna Poeta,

quando se eleva ás estrelas, como a sua

paisagem natal só se torna verdadeira-

mente grande, quando sobe em ancie-

dades de fraga e terra á procura do sol.

Unamuno e a sua Paisagem são

dois irmãos. E eis porque ele é um

grande e verdadeiro Poeta, mesmo nas

suas obras em prosa.E é o auctor do "Rosário de so-

netos líricos,, que apresentamos agora

nas paginas d'esta Revista.

Temos lido e relido esta obra poe-

tica, d'onde resalta, constantemente, o

pensamento profundo, a emoção vidente

e creadora, a sensibilidade mais fina, a

ironia filosofica, todos os raios, emfim,

que o seu espirito solar irradia, ofus-

cando e deslumbrando. O soneto IV,

La vida de la maerte, é uma obra prima!

Traduz tão bem a vida de que é feita a

morte, que dir-se-lia escrito por um

Phantasma, errante na bruma do cre-

pusculo.Ei-lo: ¦

"Oir llover no más, sentir-me vivo;

el universo convertido en bruma •

E encima mi conciencia como espuma

en que el pausado gotear recibo.

Muerto en mi todo lo que sea activo,

mientras toda visión la lluvia esfuma,

y allá abajo la sima en que se suma,

32 Á AGUIA

de la clepsidra el agua; e cl archivo

de mi memória, de recuerdos mudo;

el animo saciado en puro inerte;

sin lanza, e por lo tanto sin escudo,

á merced de los vientos de la suerte;

este vivir, que es el vivir desnudo,

110 es acaso la vida de la muerte?»

O soneto V, Bajo eterna luna, o

soneto VIII, El fin de la vida, o soneto

XIII, Ojos de anochecer, o soneto XXII,

Sin Historia, são outras tantas maravi-

lhas.

Seguem-se a estes outros sonetos

que são paisagens e terras de Hespanlia

que o Poetada caminlio de stia casa,

vae percorrendo com a luz anciosa e

comovida dos seus olhos:

"Desde Qredos, espalda de Castilla

rodando, Tormes, sobre tu dehesa

pasas brezando el sueíio de Teresa

junto á Alba la ducal dormida villa...,,

Depois d'estes admiraveis cânticos

regionaes, aparecem ainda cento e tantas

paginas, sempre trasbordantes de pen-samento, de inspiração profunda e crea-

dora.

Citaremos ainda ao acaso, o soneto

XXXIX, La oraeion dei ateo, o soneto

XLX, Portugal, já publicado na primeirasérie da Águia por especial obséquio do

grande Poeta, o soneto I.III, Razoa yFé, o soneto LV, /r muríendo, o soneto

LXII, Ateismo, o soneto LXIV, Dias de

Siervo Albedrio, o soneto LXVII, La

sangre dei espírita.

Depois d'estes e outros sonetos su-

blitnes, esta obra poética tem ainda

duas partes, uma intitulada Asturias y

León e a outra De nuevo en casa.

O leitor que se interessar a serio

pelas obras do espirito, deve lêr o livro

completo, deve rezar todo aquele Ro-

sario lirico, em que cada soneto é uma

oração divina.

Nem estas palavras são uma critica,

longe d'isso. Teeni por fim apenas di-

zer aos leitores da Águia que acaba

de aparecer á luz uma obra nova de

Miguel de Unamuno, um dos mais belos

espíritos da Hespanlia e um amigo ver-

dadeiro de Portugal.

Nem a crítica tem que fazer çom

as obras perfeitas como esta; deante da

Belêsa autentica, perde o golpe de vista

que analisa, a serenidade, o raciocínio,

e fica reduzida a esta palavra maior

ainda do que ela: Admiração!

Eis 11111 Poe-

Dizeres do povo por An- ta eleito dos

tonio Correia d'Oliveira. Deuáes.

O seu espi-

rito, atingindo as supremas alturas, tor-

nou-se religioso, porque viu Deus face

a face.

A sua figura é, portanto, sagrada.

Nós vêmo-la envolta em resplen-

dores divinos, os seus pés estão poei-rentos de luz, de trilharem a Via-Lactea,

e nos seus olhos ha a infinita tristêsa

da eternidade contemplada.

E' o sacro Poeta das "Tentações,,

e da "Alma Religiosa».

Mas ele tem momentos em quedesce á alma humana, e, de preferencia,á alma da sua Raça. E dos seus lábios

que falaram com Deus, sae a palavrahumana, a redondilha, o canto p.o-

pular.Mas é ele, é um homem que canta?

Não: é o povo.O Poeta perde o nome de Corrêa

d'01iveira e chama-se Povo.

Assim aconteceu também nas suas

ultimas cantigas publicadas. Não são a

obra d'um sêr individual, mas d'uma

alma colectiva, d'uma Raça emfim.

A sua figura banhada ainda em

fulgôres celestes, em cada redondilha,

espalha-se em multidão e alastra portoda a terra portuguêsa.

Não é um Poeta individualisando

em si uma alma colectiva: é a alma

d'iim poeta multiplicando-se até ao nu-

mero das almas que constituem uma

Raça.

Corrêa d'01iveira, nas suas canções

é o Povo-Poeta, e não o Poeta-Povo,

como Camões nos "Luziadas.,,

Eis o que torna o seu tempera-

mento poético inconfundível e único

em Portugal..."Dizeres do Povo,, é o segundo

livro de cantigas que o grande Poeta

publica. F: estes dons pequeninos livros

são das cousas maiores que se teem

escrito, e a sua morte lia-de coincidir

com a morte do ultimo Português.

2.a edição.

LITERATURA

RENASCENÇA

(O ESPIRITO DA NOSSA RAÇA)

o meu livro "Marános»

c em alguns artigos publicados

na primeira serie da "Águia»,

apresentei, creio eu, a

verdadeira interpretação da Saudade, isto é, a verdadeira

interpretação do gênio, do espirito, da alma portuguesa.E' certo, porém, que tal cousa passou despercebida, o que re-

vela tristemente a ignorancia em que os portuguêses vivem de si

proprios. Fazem lembrar aquela mãe embecilisada a quem mostra-

vam o filho perdido sem que ela o reconhecesse.

Mas é absolutamente preciso que essa alma seja revelada,

para que Portugal cumpra o seu destino civilisador.

A alma da Raça é a Saudade. E que é a Saudade?

Não me cansarei de affirmar que a Saudade é, em sua ultimae profunda analise, o amor carnal espiritualisado pela Dôr ou o

amor espiritual materialisado pelo Desejo; é o casamento do Beijo

com a Lagrima; é Venus e a Virgem Maria ri uma só Mulher. E'

a síntese do Céu e da Terra; o ponto onde todas as forças cosmi-

cas se cruzam; o centro do Universo: a alma da Naturêsa dentro

da alma humana e a alma do homem dentro da alma da Natu-

rêsa. A Saudade é a personalidade eterna da nossa Raça; a fisio-nomia característica, o corpo original com que ela ha de aparecer

entre os outros Povos. A Saudade é a eterna Renascença, não rea-

lisada pelo artificio das Artes, como aconteceu na Italia, mas vi-

vida, dia a dia, hora a hora, pelo instincto emotivo d'um Povo. A

Saudade é a manhã de nevoeiro; a Primavera perpetua «a lêda e

triste madrugada» do soneto de Camões, ff' um estado de alma

latente que amanhã será Consciência e Civilisação Lusitana...

E' claro, portanto, que a alma portuguesa não é uma nuance

de outras almas como falsamente tem sido afirmado, e até por altos

espíritos como Oliveira Martins, —mas urna alma característica, ori-

ginal e bela... E bela, sobre tudo!

A Saudade divide-se até hoje em dois grandes períodos quecorrespondem ás duas primeiras formas que todas as forças espiri-

tuaes adquirem no decorrer da sua evolução.

O primeiro período foi o instinctivo e activo; produziu Camões

e Benardim, Vasco da Gama e Albuquerque. O segundo período,o actual, é o periodo consciente e contemplativo, em que, por assim

dizer, a alma portuguesa abre, pela primeira vez, os olhos sobre si

própria; e está produzindo a mais admiravel das gerações poéticas.

O que é o prenuncio de que a alma portuguêsa vae entrar no

34 A ÁGUIA

seu terceiro período que será o período consciente e activo, por isso

mesmo que o sonho precede a acçãw.

E então, creará Portugal, no campo das realidades tangíveis, a

sonhada e ardentemente desejada obra civilisadora.

Costuma- dizer-se que sem corpo não ha alma; e com mais

verdade se pode affirmar que sem alma não ha corpo. Portugal não

caminhará para a frente sem se apoderar primeiro do seu espirito;

distante d'ele, seria um corpo adormecido e parado.

Implantemos a alma portuguesa na terra portuguêsa, para que

Portugal exista como Patria, porque uma patria é de naturêsa pura-

mente espiritual, e as únicas forças invencíveis são as forças do

Espirito.

Um agregado de homens, por maior que seja, por mais que

trabalhe materialmente, se não existir uma alma em actividade que

seja própria a esses homens e os una n'uma comum e superior

aspiração, —esse agregado de homens poderá ser uma bôa Colonia

exemplar, mas jamais uma Patria!

Oh! a ingenuidade dos que se julgam práticos, modernos...

E sobre tudo, a ilusão em que vivem os que imaginam tocar

a realidade das cousas! Coníundem, na sua cegueira pretenciosa, o

que está perto com o que é real, e desprezam estupidamente o

que é longe e eterno, o que determina e prepara as cousas proxi-

mas e efêmeras.

O preconceito do senso pratico, no sentido vulgar e universal,

é um dos maiores males modernos, porque esterelisa o homem,

redu-lo a um pobre autômato, a uma pequena maquina banal que

pratica acções mortas, inertes, como as outras, as de ferro, fazem

calçado ou alfinetes.

E d'aqui nasce o marasmo cinzento, a amarela insipidez, a

morte qne ha na vida de hoje.

Sim, porque a vida humana, vivida fóra do espirito, diminue

o homem, fá-lo descer alguns gráus na escala zoologica; fá-lo retro-

gradar, baixar á sombra originaria e siamesca.

Foi este preconceito que nos cortou as nossas antigas azas que

eram velas brancas de Navios. E' ele o inimigo de toda a audacia

fecunda, de todo o impeto heroico, de todo o gesto creador. E' o

demonio tôrpe da má tentação.

Adoremos o espirito, o nosso belo espirito; implantemo-lo na

nossa terra que é santa porque gerou a Saudade, como os deser-

tos trovejantes da Palestina crearam Jéovah, e os viçosos, harmonio-

sos vales gregos crearam Orfeu e Apólo.

Fevereiro, 912.

INÉDITO

^ arte é a expressão expontanea, sinteticamente formulada

pelo sentimento. Com o lápis, com o buril, com o pincelou com a pena, o artista, obedecendo á inspiração, mani-

festa simbolicamente os pensamentos e idéias elaborados

pelo gênio dos povos. Só quando é épica a arte é verdadeiramentedigna da sua missão; só quando é lirica, e se-lo é ainda ser épica,fere as notas intimas dos instinctos humanos que no fundo do nossoser resistem como as rochas igneas agüentando toda a superstructurada terra.

Ha uma série, ou uma evolução na capacidade expressiva dasartes. A arquitetura, grande e poderosa como o mundo que tudo

contém em si, por ser a mais compreensiva é a menos analítica.E' geométrica á maneira do Cosmos: exprime a síntese das formas.A esculptura

particularisa, exprimindo a forma animada, na sereni-dade stática da beleza. Quando o esculptor pretende ter intenções,falsea o principio da sua arte: quando o grupo domina, a escul-

ptura, que consiste na estátua, decai. A pintura tem uma expressãomaior,

pinta a forma, a perspectiva e a côr. E' mais complexa e

por isso mais realista. O retrato é a expressão culminante da suacapacidade, ou por outra, a forma da face humana, animada pelosmotivos moraes que presidem á vida. Transição das artes plásticaspara a poesia e para a música, em que os sons e as palavras expri-lnem com símbolos os sentimentos da alma humana, na pintura estáo momento superior da forma reveladôra.

O juizo final, epopea da alucinação mística do mundo mo-eterno, a cúpula de S. Pedro, himno triunfal do catolicismo, e entreambos a estátua de Moysés, p homem poderoso na força trágicade um vidente—essas tres maravilhas, produzidas por Miguel Ângelo,sao talvez, são decerto o que nos tempos modernos as artes plásti-cas deram superior a tudo.

Se a arte é pois essencialmente épica é sobretudo aos artistas

que compete exprimir a dôr de angustia que nesta hora confranje°s peitos portuguêses. A nossa virtude nacional e as nossas des-

graças de outros tempos produziram o maior poeta das edades mo-dernas. Possa a virtude e a desgraça de hoje lançar no peito dosneofitos da arte a semente de grandeza, bastante para germinar eVlr a florir em obras tam esplendidas e imorredouras como asestrofes dos Lusíadas!

nrraí?í"nii que esteve para publicar-se pornnrw ? Ultimaium e cujos originais estão empoder do snr. conde do Ameal

Choupos na luz do Luar

Ao Villa Moura

Á beira do Rio os choupos

Riem baixo de felizes;

Afogam no Ar os tôpos,

Na veia d'água as raízes.

Quando se inclinam a olhar

Ha Ceu, ha choupos no fundo...

E exclama, o Mundo do Ar:

Lá na Água ha outro Mundo.—

Eco de Água, um choupo diz,

Quando com outro se topa,

A copa: — Eu sou a raiz!—-

A raiz: —Eu sou a copa! —

Passa o Rio, vento de Água,

Passa o Vento, rio aéreo,

E os choupos dizem com mágua:

Rio ou Vento...?! Ai! que mistério! —

Onde vais, ó rio d'Ar?

E tu vento d'Agua aonde? —

Volve-lhe o Rio: — Pro Mar.—

Mas o Vento não responde.

Ai! lá vem a Tempestade,

E o choupo que o Vento enreda

É um fôgo de ansiedade,

Uma vercle labareda.

Silêncio. Lá vem a Lua:

Chega um rio à foz da serra

E agora cai, desagua

E alaga de Luz a Terra.

A ÁGUIA 37

E, mal o Luar os molha,

Os choupos na noite calma

Já não tem ramos, nem folha,

São apenas choupos de Alma.

Trêmulos choupos esguios

A quem o Sonho desgarra..;

Vão à tôa: são navios...

Quebrou-lhes a Noite a amarra...

A Alma afoga a Matéria...

Névoa de choupos flutua..:

Ai! que linda selva aérea

Vai da Terra até à Lua...

Os choupos tem um convento,

Onde o Luar é o sino:

Mal rompe nesse momento

Toca ao serviço divino.

E ei-los rezando oraçõis,

Toda a noite, de mãos postas;

Outros, fitando visõis,

Tem as feiçõis descompostas.

Ou sumidos, espectrais,

Curvando os pálidos tôpos,

Buscam as causas finais

Os metafísicos choupos.

E na calada da noite,.

Já tarde, já noite feita,

Se ha Poeta que se afoite

A ir ouvi-los de espreita,

Ouve-os falar transcendéncias

Num delido verbo etéreo,

P'ra além das vãs aparências,

P'ra além do nosso mistério !..

/ - -f—

CAMILLO CASTELLO BRANCO

CARTAS INÉDITAS

V

Ill.mo Amigo.

Tive o prazer de ver em minha casa seu thio, e por elle tive

as mais lisongeiras novas de V. SDe mim o que posso dizer-lhe é que

estudo theologia, e d'aqui deduza V. S.a o meu futuro tão imprevisto!

Vou aqui redigir um jornal chamado o Christianismo.

Vi uma sua excellente poesia religiosa no Catholico. Em nome

da grandiosa inspiração que Itía deu, peço-lhe que escreva alguma

cousa para o meu jornal, e virá assim animar-me /festa empreza, tanto

mais sublime, quanto receiosa para mim. Este convite deve ser-lhe glo-

rioso, meu amigo, encarando-o pelo lado que o prende a Deus, e não a

mim, que não valho nada, izolado tf aquilo que sou.

Se lhe posso ser útil no Porto disponha de quem é

Com a presente carta, dirigida-ao Dr. Guilhermino de Barros, prosegue a

publicação de alguns inéditos de Camillo, promettida e em parte realizada na l.a

serie da Águia. (V. n.os 7 e seguintes).

É' interessante a carta reproduzida, pois que prende aos tempos do seu

discutido catliolicismo- um catholicismo de que elle proprio parecia duvidar,

admirado de tão "imprevisto futuro!,,

Parece que a matricula nas aulas de Theologia lhe fôra Suggestionada

pelo exemplo do Dr. Camara Sinval, lente da escola medica do Porto, que resolveu

tomar ordens e se estreou, como orador sagrado, pregando em honra de S. Filippe

Nery. (V. Romance do Romancista por A. Pimentel).

Fundou realmente o Christianismo. Ahi podem ler-se os artigos que op-

poz ao nacionalista Amorim Vianna. Era então paladino da Fé ao contrario

do Newton portuguez que pleiteava pela Razão. Parte dos escriptos do Christia-

nismo foram depois juntos no livro Divindade de Jesus.Este livro figurou na eça em que pousou o caixão do Romancista, na

Capella da Lapa, no dia dos funeraes. Exquisito documento da sua religiosidade.

Provavelmente quem ahi o collocou, ao lado d'outro Horas de Paz, nunca o abriu,

ignorando por isso que o pregoado catholicismo do notável escriptor até neste

livro tem o desmentido. De facto, alludindo áquella phase e explicando os arti-

gos reproduzidos, diz:"Vi então rasgarem-se-me os liorisontes da vida em annos de paz. Cou-

tava com a graça divina para luetar e vencer, vencer-me a mim, o mais

inexorável inimigo que ainda tive. Enganei-me: as paixões sopraram rijas

do lado do inferno; os vislumbres da graça deixei-os apagar 110 coração

replecto de maus sedimentos,,.

Aquelles livros, como alguns artigos e as cartas a Sentia Freitas, D. Se-

De V. S.a

Am.o obrigad.™°

Porto, 29 de dezembro de 1851.

NOTAÇÕES

A ÁGUIA 39

bastião de Vasconcellos e Alves Mendes, têem instruído mal o processo da suareligiosidade.

No livro A Vida Mental Portugueza, reduzimos estas provas á verdade,mostrando o que valem, cotejadas com outros documentos: tentativas de Fé, meraHesitação do seu espirito torturado de dores e duvidas, que liquidaram 11'uma tra-

gedia absolutamente opposta aos mandos da Egreja.

Ó bello Sol, Padre nosso,

Que estás no céu e na terra:

Bemdito seja o teu Nome

Nas vidas que a Vida encerra.

Venha a nós teu claro Reino,

Faça-se a tua Vontade:

Meu corpo seja um jardim;

Minha alma um Sol de bondade.

Pão nosso de cada dia,

E Pão da noite, também:

Pois a noite, tua Filha,

Igualmente é nossa Mãe.

Perdôa-nos nossas dividas

De bellêza e de esplendor:

Todas as Vidas se devem,

Entre Si, a luz e o Amor.

Ó bello Sol, Padre nosso, __

Nosso exemplo, nosso Irmão:

Sê, em luz, purêza e_ glória,

Nossa eterna Tentação.

3 Janeiro, 912.

(Do livro "Orações Novas»em preparação).

Padre Nosso

\

(Oração ao Sol)

A Naly

SILVA PINTO

Ao Prof. Francisco Gentil.

A ultima vez que o encontrei foi em julho, em casa d'um

alfarrabista, um velho alentado, que dormia a somno livre entre

pyramides de Lettras atrapalhadas —pilhas de livros velhos e muita

folha solta. ,

Eu recebera de manhã pedido para que apparecesse». t as

duas horas eis-me a caminho da Travessa da Palmeira, onde o

escriptor morava. Vi-o de longe, sentado á porta do alfai rabista

n'um mocho alto. -

E' curioso que á custa de admirar Camillo, calcou uma parte

do seu talento sobre o gênio do solitário de Seide. E, de certo invo-

luntariamente, volvidos tantos annos após a morte d'elle, ainda Silva

Pinto o reproduzia no velho geito de vestir, até na expressão phy-

sionomica. ,

Estou a ve-lo, muito apertado n'uma sobrecasaca antiga, chapeo

alto direito, ares de somnambulo, bigode em chuveiro, restos

de cabelleira romantica beirando a aba recta do chapéo, muito

lasso melancholico. Era o Camillo de lia 40 annos, agora retraindo

pela" doença e toda a casta de dores, o antigo rival dos Irmãos

Brownes vencido, o Camillo — caricatura do Álbum das Glorias,

sobrecaricciturado pela velhice, que parecia caprichar em exceder

pelo imprevisto o lápis de Bordallo.

Assim, de longe, não me pareceu o escriptor que procurava.

Era uma Memória — o symbolo d'uma geração: —Camillo, elle mesmo

— Silva Pinto, Alexandre da Conceição, Amorim Vianna, — todos os

que se amaram ou bateram no palco do Romantismo.

Quando me avistou levantou-se, rente á parede, agarrando-se

á cantaria que tarjava o portal. E antes que o cumprimentasse disse,

fixando-me:Estava eu agora a pensar n'um livro do Dumas pae, pre-

faciado pelo filho. Conta este que o Pae lhe perguntara um dia,

já no fim de vida, o que elle pensava da sua Obra —se entendia

que podia ficar alguma coisa do que escrevera.

E o Filho: —que sim, que a Obra d'elle ficaria toda.

Ora diga-me, perguntou sombrio, —entende que da minha

Obra pode ficar alguma pagina?Fica V. Ex.a, respondi, pois que vazou na alma de superior

a sensibilidade d'uma grande geração, sobrevivendo ao seu tempo

pelo temperamento que emprestou a todas as luctas. A sua Obra

é a Arte a reviver a sua vida. E', afinal, V. Ex.a cuja figura fica.

Abraçou-me a chorar, pela ultima vez.

PEDREIROS (croquis do natural)

Do "ÁLBUM DO TRABALHO,,

(De Cristiano de Carvalho)

A Águia-2 (2.a Série)

A ÁGUIA 41

A ultima carta recebi-a dias depois do seu falecimento por

intermedio de Narciso de Lacerda, a quem a tinha confiado.

Era a participar a morte.

Ora eu percebi que elle estava irremissivelmente perdido quando

vi encapellar- se a caridade publica. Quando o publico improvisa

em Santa Casa de Misericórdia, ai do beneficiando! E' que elle

vive as ultimas horas.

Também a Irmandade que balbuciou o pedido da subscripção

foi a mesma que se calou quando protestei contra os embargos dos

Theatros á recita de homenagem que os seus amigos e Homens

de Lettras tentaram. Não houve meio de se encapellar então: veio

na derradeira hora tlintar caridade...

Pois que tratei de perto a sensibilidade de Silva Pinto, ava-

lio das suas torturas se soube que chegou á Rua o echo das suas

misérias derradeiras.

Não saberia. Deus devia-lhe requintes de delicadeza pelo muito

que elle soube repartir pelos pobres ^delicadamente.

De certo que lhe poupou a vista do publico á hora da par-

tida...

Desde muito que a desgraça lhe dera o elasterio máximo á

sensibilidade.

Havia na sua prosa aphoristica o arrepio d'uma alma extrava-

gante. O homem e o escriptor confundiam-se_ no artista, que refle-

ctia no livro: — a grandeza, a impertinencia, a dôr, a mesquinharia...

Cada pagina sua é uma data a memorar os enthusiasmos, os

desalentos, risos de dôr, lagrimas d'alegria—tudo o que foi, o que

viveu.

Foi na Arte um incerto. Assim na vida.

Como era o. espectador consciente d'esta incerteza torturava-se,

mirando-a.

Em carta de 3 de março do anuo findo me' dizia elle:

Eu sinto cada vez mais cruelmente a velhice,^ a doença,

a pobreza e o isolamento. O pensamento fixo é acabai.

Mas os outros — os meus?

Que aalvario! A neurâsthenia.! Acjuillo de Hugo.

"Morrer nada é; o horrível é deixar de viver!»

Passo o resto do meu tempo a interrogar Deus: —

Mas, eu que mal fiz? E' claro que não tem resposta.

Uma palavra para este desgraçado!

N'uma outra carta allude também com egual descrença e mais

resignação á vida publica, que relaciona com o seu caso.

E' como segue:

42 A ÁGUIA

. . . Am.0

Agora recebi eu com a carta de V. uma do * * *

(1),

grande poeta e santo homem, o qual me diz: —"Que

epocha! Que atrozes e espantosas decepções! Para que

serve viver assim ?... „

Dizia o Luis XIII de França, chamando alguém de

parte: — "Aborreçamo-nos

juntos!» Nós, os amargurados de

hoje, devemos unir-nos para agradecer a Deus a pureza

do soffrimento.

Apresentam-se estes retalhos de cartas em memoração das

tempestades intimas que o agitaram.

Dão-se a publico como documentos a juntar ao processo da

sua beatificação de superior (2).

Se tal documentação é precisa.

De facto, extremei sempre a Obra de Silva Pinto e sincera-

mente affirmo que a reputo das mais interessantes das nossas

Lettras. O seu talento foi a sinceridade, a coragem, o ousio que

emprestou, ou oppoz ás idéas do tempo. Ainda quando errava

era sincero. A sua Arte era elle proprio a viver entlnisiasmos de

momento, —a referir desalentos, a referver arremedos d'odio, á conta

dos aggravos que recebia dos outros — o mais das vezes de si pro-

prio.

Na verdade as maiores luctas teve-as com phantasmas, que

eram sombras da sua figura de nevrotico. Os que o leram

de passagem e desconhecem os Combates e Criticas, Noites cie

Vigília, Neste Valle de Lagrimas, e mais paginas supremas que o

inculcam como pamphletario e Artista, mal comprehenderão o en-

thusiasmo com que escrevo acerca d'elle.

A sua obra precisa ser lida. Aos que a desconhecem importa

informar que é desegual e necessita ser tomada em conjuncto

para que possa bem reconstituir a figura extranha que importa.

Toda a obra de Silva Pinto é afinal uma autobiographia—é elle a rir

e a chorar a sua Metaphysica, é o homem e o escriptor rebuscando

na desgraça —Pão e Arte, é o filho d'uma mulher nobre e d'um

(i) Omitto o nome do signatario, pois que não solicitei auctorização

de publicar-lh'o.( 2) OpporUinamente apparecerão na integra todas as cartas que julgar

publicaveis.Logo após a sua morte veio um editor solicitar "as

que eu tivesse,,.

São approximadamente noventa. Mas d'estas só talvez quarenta pertencem

ao publico. Hade lel-as. Considero-me simples depositário d'essas cartas, que

suinmariam a historia de duas epoclias de baixa na vida portugueza. Mas serei o

arbitro do tempo da sua publicidade. , .

As outras são minhas. Descancem -o publico e editores. Não ha impacien-

cias que as resgatem. Silva Pinto não é para mim um assumpto.

Vale um culto o da amizade que nos votamos e releio n'essas cartas.

A ÁGUIA 43

plebeu a batalhar taras contrarias, realizando uma figura fim-de-raça,

nialquistado com o povo, com os privilegiados, com todos, afinal

com tudo e principalmente comsigo proprio.

Caldeie-se este conflicto com a herança romantica que recebeu

de Camillo e dos da sua geração —e ter-se-á a sua vida, a sua Arte.

Geração alguma soffreu em publico os seus desastres como

aquella!

Silva Pinto confundia o seu mal com o dos outros; o que

é mais—soffria do mal-dos-outros.

Summariando, resumindo:

A obra de Silva Pinto foi, por ultimo o registo de factos ma-

ximos e minimos d'uma hypersensibilidade áparte, refractando-se

n'urn campo, ermo de superiores.

D'este ermo gritou elle a sua Dôr, que foi uma dôr estylisada

nos moldes do Romantismo com uns laivos de impertinencia nova.

Encerrado na pequena casa de azulejo da Travessa da Palmei-

ra, d'onde escrevia prophecias e a sua vida de pobre—lembravaum fakir, religioso e fatalista, monge mendicante ao serviço dos

Humildes, e cuidando espiritualmente de si, a bem dizer da Meta-

Physica extranha que fez o fundo e a forma da sua Arte.

Mas uma e outra, Metaphysica e Arte, perder-se-iam 11a bara-

lhada corrente, ao fluxo d'esta temporada de Lettras e demais ca-

suistica pintalgada e confusa, se o Escriptor não surdisse d'entre a

bohemia das suas conjecturas, tragicas e bizarras, como uma figura

rara do mundo interior por limitar...

Assim, não foi debalde que externou os caprichos da sua mi-

seria e Arte.

Os echos d'uma e outra são elle proprio a reviver, a vozear a

sua memória

Ouço-o ainda: —"Uma palavra para este desgraçado!,,

Ahi fica o que a minha saudade poude escrever...

Ancêde-Janeiro de 1912.

Résa outomnal

O outomno vem a caminho...

Já em búzios de moinho

Quebram distantes soluços:

O mar na areia, debruços...

Já sobre as aguas inquietas

Os chorões, como poetas,

As madeichas desgrenhando,

Se inclinam mais, meditando...

O crepusculo descerra

— Águia enorme sobre a terra —

Azas fúnebres de seda:

E fica em sombra a alameda...

O vento nos pinheiraes,

Como orgãos em cathedraes,

De marulhos se arredonda,

E vae reboando — onda em onda.

O vento desfére a lyra;

A flauta de Pan suspira,

Alonga um ai, comovida,

Um adeus de despedida...

Nas chãs barrentas que amanham

Os aldeões arrepanhatn

As mantas, num arripio...

Outomno: primeiro frio...

Ó bocca, emmudece as trovas,

Deixa ouvir as aguas-nóvas:

... Que sentimento! Que magua:

Compassos de fragua em fragua..

Certo dia, certa hora,

Foi ali, relembro agora:"Dir-se-ia

que era uma gaze...»

O chôro interrompe a phrase...

Tréguas, saudade infinita,

Quem mórre não resuscita!

A ÁGUIA

Paues, á tarde. Cegonhas

Fitam a agua, tristonhas. ¦.

Que indizivel, muda scisma

No fundo olhar que se abysma!

A rosa que tu me deste

Voou na aza do leste...

Faze, Amôr, por esquecer:

O outomno é a vida a morrer...

De joelhos, como gostas,

Ólha as arvores, mãos postas!

... Caindo, as folhas suspiram:

Avé-Marias — e expiram.

Ruinas ao abandono

Dizem a graça do outomno...

E a saudade embala, embala

Uma voz que não se calla...

Chiméras... tardes de infancia...

E os olhos vão na distancia:

Oh olhos-clarões de Agosto,

Amortecendo: sol-posto!

Penumbra. As almas viuvas

Vão rezando, memorando...

Outomno: primeiras chuvas

Campos ermos encharcando...

Na céla uma alma desfia

O seu rosário, debruços:

"—Padre-Nosso! Ave-Maria!—»

Terço de idas illusões...

As contas cáem: soluços...

Outomno: recordações...

Sinphonia do Outomno

Lindo Outomno! Lindo Outomno!

freirinha do desejo e da saudade ...

Voltámos todos, — e parece que voltou

a primavera.

Esta tarde foi feita de enleios fluidos,

caricias de aza roçando; andam 110 ar

casaes de rôlas, licores fulvos, veludos,

sedas... Linda tarde para uma festa do

outomno! As mulheres vêem todas para

a festa de pelissas novas, brancas e no-

bres como galgos russos. Olhe a caricia

dos regalos,- olhe-a volúpia dos ves-

tidos, ondas gulosas que preguiçam e

se escoam em rythmos marinhos que-

brados em flancos de estatuas da prôa.

Olhe a sombra dos vestidos amaciando

as fôrmas: são mais negras, e o negro

tem venenos perturbantes de festas da

renascença. Aquella moreninha tem 110

corpo maciezas de sons de flauta: e os

vestidos bailam todos, como se fôra ao

tanger da própria flauta de Pau.

Nem a tarde desce: a côr ficou-se,

extasiada, como uma joia velha esmae-

cendo... E toma corpo numa leve apari-

ção que nos envolve a todos com seu

manto transparente de aza de borboleta.

Lindo outomno! lindo outomno!

Olhe as figuras que passam, olhe

as curvas que ellas dão. A primavera

vestiu-se toda de inverno. E ha dentro

delle gônunos a abrir, corpos de virgem

que são linguas de fogo; e sinto a face

a escaldar.

O crepúsculo não desce a palpebra,-que o crepúsculo é hoje 11111 fundo

olhar moirisco velando danças que se

presentem 110 mago escuro da pupila.

O outomno deu-lhe a saúde, frei-

rinha do desejo... Lembra-se, no verão?

a sua face tinha tons de poente precoce,

e o lápis do passado andava a desenhar

sulcos de velhice precipitada pelos ca-

naes umbrosos donde se escôa a solidão.

A sua face era a- saudade duma vida

que os olhos em vão anceiavam, -que

110 seu corpo, 110 seu pisar senhoril se

via feita esculptura: a sua face era o

primeiro tom desbotado num campo

todo agitado pela seiva forte do estio.

Mas o outomno trouxe-lhe tintas

novas, tam frescas, finas e novas que

ninguém poderá ver essa primeira pétala

descida com que o verão a esmaeceu

nesse triumpho de rosa aberta que este

outomno lhe trouxe. Deixei-a Senhora

da Saudade, e encontro-a agora Se-

nhora do Desejo.

Ha-de contar-me a sua vida: a sua

vida é como as grandes estatuas grêgas

exiladas nos templos adormecidos.

O crepúsculo embriagou-nos a to-

dos. Nós já nem sentimos o turbilhão

das figuras, torcicolando na rua. A pai-

pebra moirisca do crepusculo deixou

cair o velado; e 11a sua pupila preta ha

rythmos de corpos em danças licorosas,

cysnes armando galeões num mar de

pérolas pretas, volúpia e sombra.

Lindo Outomno! Lindo Outomno!

(Da Senhora do Desejo).

O ORGULHO DA AGUIA

A aguia disse urna vez

Ao belo sol — e em sua voz zunia

Um sarcasmo profundo —:

"A luz do dia

Porque a estragas, ó sol, deitando-a aos pés

Da mais humilde e mais obscura planta?

Porque mesclas á areia

Teu esplendor? Tantos fulgores, tanta

Riqueza espalhas, pródigo, á mão cheia,

Sobre mil couzas vis que os não merecem;

Sobre as azas do inceto

Mais pequenino e de mais feio aspeto

Os teus límpidos raios resplandecem;

Vais procurar na sombra

A flor mais tenra, o passaro mais pobre;

E a esses plebeus da arvore e da alfombra

Dás um farrapo do teu manto nobre...

Sol, belo sol ardente,

Couza tão rica como a luz da aurora

Devias concedel-a unicamente

A' serra, ao mar, á aguia que ceus em fora

Rompe; a tudo e somente ao que é grandiozo,

Ao que é belo, ao que é forte...»

E o sol, então,

Disse á aguia:"O

meu raio esplendorozo

Beija, é verdade, os mizeros do chão,

A' areia se mistura,

E busca, e tem-lhe amor,

A perfumada e rozida frescura

De um cálice de flor.

48 A ÁGUIA

A mesma luz que abraza

As tuas penas, aguia,

Deixo que á humilde, á pequenina aza

Do inceto doure, e fulgurante alague-a.

E sabes tu porque?

Sobe onde estou, verás: tudo confundo

Desta distancia de onde vejo o mundo

Em que és tão grande... O meu olhar nem vê

Serras e mares mais que aves e flores;

E um só dos raios meus doura, illumina,

Inunda de fulgores

A aguia gigante e a terra pequenina...»

Noute, alta noute. Solitaria, a lua

Vai pelo ceu longínquo errando á toa

Como Ofélia boiando, loura e nua,

Na agua plácida e azul de uma lagoa.

Rude, féro gigante afeito á crua

Guerra, o castelo, no alto que coroa,

Dorme o sono da paz dentro da sua

Armadura de pedra, forte e boa.

Fóra, em baixo, na sombra, um pagem louro

Canta. Canta de amor, numa voz de ouro:

Alguém o ouviu. Abriu-se uma janella.

Pendem do muro os fios de uma escada...

... E a derradeira nota da balada

Morre, num beijo, sobre os lábios d'Ela.

MEDIEVAL

Rio de Janeiro.

Do livro "Versos cia Mocidade», a sairbreve cia Livraria Chardron.

¦

ESCERTO

problema do conhecimento é o ponto de partida de

t°do o pensamento critico e fundamentado. A reflexão

filosófica, sem previa analise gnosologica, é o abandono

do espirito á metafísica dos seus hábitos. E metafísica

todos fazem, consciente ou inconscientemente, voluntaria ou invo-

luntariamente. Porque a queremos, consciente e voluntariamente, é

que sobre o problema do conhecimento vamos fazer incidir a

nossa atenção. Analisaremos as trez hipóteses, que delimitam toda a

extensão do problema. O empirismo puro —hipótese em que o

conhecimento é o decalque da experiencia; o racionalismo

puro — o real é o racional e só o racional é real; e a hipótese em

que o conhecimento resulta da racionalisação da intuição. Avan-

çando sobre o fim da nossa analise, diremos que é a ultima

hipótese a que da nossa exploração resulta viável. Quanto á pri-meira, pode-se dizer que nunca foi levada a cabo, com consequen-

cia e rigor. Em todas as tentativas notáveis mostraremos que é

uma oculta actividade mental o motôr do sistema.

A segunda nunca descobriu, apenas sistematisou o conhecido.

E esse conhecido foi ganho pela ação do raciocínio sobre a intui-

ção. O espirito, depois de rico em conceitos, caminha por si só, na

purificação e mutua adaptação dos conceitos; mas . carece d'esse

combustível (vindo da racionalisação da intuição) para começar a

marcha. Problematisação, adaptação ao presente e ao apresentado, des-

problematisação — eis o caminho do conhecimento. Para andar pre-cisa um dado (intuição) ou um conhecido, que gerem a inadapta-

ção ou problema. Se um dado, incompleto é o racionalismo. Se

um conhecido, ou esse conhecido contem intuição e falso é o

racionalismo, ou é pura obra do espirito, e este, sem o primeirotermo e motivo do seu andar, pára.

Mostraremos que é obra da inter-ação do raciocínio e da

intuição. Desde a arimetica á sociologia cresce progressivamente a

parte intuitiva e, por isso mesmo, diminue a parte racional, não em

riqueza, que é maior o numero de conceitos das ciências superio-res ('), mas em perfeição que são menos racionalisaveis e raciona-

Usadas as suas intuições.

Não vamos estudar a arquitetura do espirito, mas a arquitetura

(i) Superiores na ordem decrescente da inércia e por isso da previsão-,como veremos.

50 A ÁGUIA

das obras do espirito —artes e sciencias. Em todas as sciencias

verêmos que domina o principio que chamamos de maxima racio-

natisação do seu dado. (') A realidade como que se apresenta em

nuvens escuras, onde pequenas esferas se vam formando, apenas

delimitadas pela diferença de coloração. Em algumas acentua-se a

delimitação e toda a matéria se vem estender á superfície, deixando

dentro o vácuo. Noutras sam tenues os limites, e no interior ha

turbilhões mais ou menos confusos, mais ou menos em projeção

sobre a superfície da esfera.

As primeiras sam os conceitos da matematica, absolutamente

exteriorisados e tam minguados de intuição que com eles se pode

caminhar (2), esquecendo o que ainda os prende ao real, com a

exclusiva ajuda das leis formaes da lógica. Os conceitos da fisica

sam quasi exteriorisados, mas tam ricos de intuição que se prendem

uns nos outros e só caminham em sociedade. Os turbilhões internos

fazem que em cada um se mova a riqueza intuitiva dos outros; —

d'ahi o não haver experiencia crucial em física.

Em biologia, com a herança começam os conceitos com inte-

rioridade. Quer dizer—o raciocínio quasi que só consegue pôr nomes

a factos, que unidos ficam por semelhanças. A' sociologia dam os

conceitos interiorisados da biologia e da psicologia, com as novas

intuições, um vago aspecto de repetição estatística, onde a inércia

só se mostra na fixação de invariantes sociaes, pela lei dos gran-

des números. Tudo probabilidades, e atenção só ao grosso dos

fenomenos. A concepção sociologica de Tarde é menos determinista

que a de Durckeim precisamente porque os seus conceitos pos-

suem maior riqueza intuitiva, mais interioridade. A tentativa de

Durckeim é precisamente a de fundar a sociologia com conceitos

exteriorisados. Por isso é mais determinista e consequentemente

mais pobre ou menos real.

O domínio do espirito sobre a intuição dá o determinismo dos

fenomenos. Assim o determinismo é a outra face da liberdade. O ho-

mem racionalisa o cosmos; — d'ahi os múltiplos determinismos cienti-

ficos. A intuição postula uma actividade estranha á actividade pen-

sante. Mais tarde veremos que essa ou essas actividades devem sêr

concebidas por analogia, demonstrada legitima, com o homem. Deste

modo a teoria do conhecimento leva-nos a uma metafísica pluralista

e socialista.

As monadas cerram-se á Intuição? E' isso a forma mais intra-

nha do desamor. O puro raciocínio é uma singular masturbação

moral. As monadas dam-se exclusivamente á Intuição? E' isso a

abdicação da própria liberdade; a ignorancia dos determinismos, a

impotência dos conceitos moraes, a exteriorização absoluta ou ma-

terialização. As monadas procuram acomodar-se em acordo de

(1) Esse dado não o é em absoluto, pois já na sua escolha entra a activi-

dade do espirito.

(2) Caminhar no descoberto, note-se.

A ÁGUIA 51

ideaes? Ao necessitarismo da matéria é substituído o determinismomoral; e é, de beleza e amor, a atmosfera cósmica. Assim a nossafilosofia será a estetica da liberdade e a moral da beleza. A liberdadeé o poder do espirito criar beleza, isto é, entendimento, transparen-cia, comunhão, fraternidade. Dominando a matéria, o inerte ou onecessário,^ pode o espirito afirmar-se com eficacia e valôr concreto.A beleza é a graça da transparência, do entendimento entre os seres,o acréscimo continuo dum novo sol cosmico, que, em luz de amôre reciproca penetração, vai consumindo a matéria ('). Convém aesta filosofia o nome de criacionismo. Criação de beleza e amôr. Omundo moral acrescido pelo esforço do homem. E esse acréscimonão é um epifenomeno, uma ilusão subjectiva, mas a universal inun-dação, o novo Dilúvio da represa interior do coração humano.Se o Universo é uma sociedade, é esse Dilúvio a mais intima eprofunda verdade, as próprias entranhas da verdade.

Assim a Intuição é valorisada sem que seja elevada a métodode saber. O bergsonismo é louvado e seguido no que tem deverídico e superior, sem que se lhe admita o esoterismo do valorgnosologico da Intuição. O Intuícionismo moderno é justificado noque tem de interesse pela natureza e a razão é justificada no quetem de superior á natureza, na sua idealidade, poder criador ou liber-dade. Aquele que, em vez de buscar nas entranhas da terra a fonteque a seus pés deriva rumorosa, supozesse medir-lhe toda a reali-dade contando-lhe os litros de agua, seria tristemente cego. Assime o racionalista puro.

Abençoados aqueles que nos levem os olhos para a Naturezafecunda e pródiga. Mas aquele que se entregar ao mistério dumamtrospeção sem critica, em mistico egoismo hade adormecer. AIntuição

pura pode levar ao egoismo. O racionalismo puro nãoexiste de facto; de modo que, historicamente, o racionalismo é atécerto ponto altruísta e zeloso da realidade — emquanto discute eadapta os conceitos elaborados por um trabalho oculto e incon-sciente.

Durante esse trabalho é de harmonia e curiosidade a sua obra.Historicamente o racionalismo aparece apóz uma época de trabalhoinconsciente em que o espirito recebe sem medida e sem critério.Depois

pretende caminhar sem combustível e é um sêr a subordi-nar violentamente os outros ás suas leis. De novo a Intuição se fazsentir como a voz da realidade. Modernamente os gritos da intuiçãoecoam no movimento pragmatista (nas correntes scientificas e nasfilosóficas; Poincaré contra os logísticos, James contra os filosofosmagros). E com Bergson a Intuição aspira a sêr o único verdadeirométodo de conhecimento. Largamente discutiremos o bergsonismopara aproveitarmos a sua verdade, e rejeitarmos, admirando, o seuexclusivismo anti-intelectualista. Achar a justa harmonia de intuição

(') Como se verá, a palavra matéria tem, para nós, um sentido preciso e não0 vago dos "diletanti„

da não metafísica.

52 A ÁGUIA

e de Razão, (para nós, da ação dos outros e da nossa liberdade) é

o fim deste trabalho

A GEOMETRIA (*>

Abrindo uni bom livro de geometria, por ex., o de M. Hadamard,

encontramos uma serie de definições, onde ha irreductivel intuitivo.

Primeira definição (2)—Volume é a porção de espaço (a) limi-

tado em todos os sentidos.

As noções de limite e porção, que já nos forneceu a arimetica e

onde encontramos intuição, são elaboradas. Espaço e todos os sentidos

são aqui noções recebidas e não feitas pelo geometra. O que é o

Espaço? Di-lo o geometra? Não. Di-lo-ha mais tarde? Parece que

sim, atenta a existencia de vários espaços com parametro caracteris-

tico'. Mas (se o não diz agora, que pela primeira vêz dele usa) não

será esse Espaço conceituai uma obra do raciocínio sobre es_te

irreductivel intuitivo que agora aparece? E, se o Espaço ainda não

é aqui mais que uma palavra, o que significa o seu limite em

todos os sentidos? D'onde lhe vêm os sentidos, e como sam todos?

Tem conteúdo a palavra Espaço e não é aqui um conceito; logo é

um irreductivel (3) intuitivo. O sensível a priori de Kant? Veremos

como ainda é profunda a intrepretação kantiana. Antes de mais

longe irmos, distingamos a generalisação matematica da generalisa-

ção metafísica. A generalisação matematica faz-se por aumento de

determinantes, a metafísica por diminuição.^ O numero fraciona-

rio é mais geral que o inteiro e maior é o conteúdo da sua

noção determinada. Como construir o numero imaginado sem o

numero real? Assim a idéia geral de Espaço, particularisando-se

por características próprias, nada prova contra a riqueza intuitiva

d'áquele Espaço, que, porventura, seja a força criadora dessa idéia.

Segunda definição: Superfície é a parte comum (4) a duas

regiões contíguas do Espaço.

O que é esta contiguidade, senão a afirmação da continuidade,

(quasi diríamos) concreta do Espaço e da noção (já resultante da

actividade mental sobre a homogeneidade do Espaço) de síntese de

pontos? , ,

E como fazer uma síntese sem uma lei, que, na especie, e ja

a da maxima racionalisação? A síntese mais_ simples é aquela em

que dois pontos, e só dois, determinam porções de Espaço. E aqui

temos a linha recta, que, por toda a parte vai levar o determinismo

(1) Anteriormente é tratada a arimetica.

(2) O itálico é nosso. Mostra o ainda não conceitualizado. So a arimetica

é anterior. .

(3) O racionalismo filosofico difere em que, sendo um sistema, todas as

noções sam feitas e não recebidas. Mas já vimos como ele mete intuição; e a

recebe, recebendo os conceitos scientificos.

(4) Não discuto a noção de comunidade, que nesta forma, a mais pobre

possível, é ainda intuitiva.

A ÁGUIA 53

geometrico e o irreductivel intuitivo da geometria. Note-se que esta

noção de contiguidade não é nova, ela lá estava no Espaço, que

por isso mesmo que é intuição, se desenvolve em innumeraveis

conceitos.

Vamos caminhando e novas noções aparecem saidas da re-

flexão sobre a fecundidade intuitiva do Espaço.

—Uma linha pode considerar-se como gerada por um ponto

que se desloca sobre ela.

A noção de deslocamento também não é definida. Aqui basta

a homogeneidade do Espaço, ou a sua possível sintese por pontos,

para a definir.

O seu posterior enriquecimento, na mecanica, mostra bem como

cada ciência só leva em si um limitado (') cabedal de intuição.

—Logar geometrico de um ponto que pode ocupar uma in-

finidade de posições é a figura formada pelo conjuncto d'essas po-

sições.

A noção de continuidade, (2) já a encontramos na arimetica e

vimos, que é ela a mais rasgada janela da arimetica sobre o real.

Por ela penetra largamente a intuição.

Chegamos ao ponto culminante da nossa inspeção, á linha

recta.

— Ligne droite.

La plus simple des ligues est la ligne droite dont un fil tendu

nous offre l'image. La notion de la ligne droite est claire par elle-

même; pour la faire entrer dans nos raisonnements, nous considére-

rons la ligne droite comme définie par ses propriétés évidentes, en

particulier par les deux suivantes:

l.o Toute figure égale à une ligne droite est une ligne droite;

et inversement, toute ligne droite indéfinie peut être amenée á coín-

cidir avec toute autre, e cela, de manière qu'un point quelconque de

la première vienne sur un point quelconque de la seconde;

2.o Par deux points on peut faire passer une ligne droite, et

on n'en peut faire passer qu'une.

Ainsi on peut parler de la ligne droite qui passe par les points

A et B ou, plus brièvement, de la ligne droite AB.

De la définition resulte immédiatement que deux droites dif-

férentes ne peuvent se rencontrer.qu'en un point, puisque, si elles

avaient deux points communs, elles ne seraient pas distinctes.

On nomme ligne brisée une ligne composée de portions de

lignes droites. Les autres ligues, qui ne sont ni droites ni brisées,

sont dites courbes.

(1) Estes irreductiveis, elaborados pela reflexão filosofica, dam o que, num

livro recente, se chama o Incoordenavel e, anteriormente, nós chamamos o Irracional.

(2) Toda a teoria dos n.os irracionaes resulta da hábil ajuda que o conti-

nuo vem, quando preciso, prestar ao discreto.

54 A AOUIA

—A mais simples das linhas é a linha recta.

E' a intuição que o diz?

E que direitos tem ela a pronunciar-se sobre a simplicidade,

que é um conceito de ordem psicologica?

E' o raciocínio que o diz?

Mas porque?

Porque é a maxima racionalisação do irreductivel intuitivo

do Espaço. Já nos apareceu na lei da síntese primordial.—A noção de linha recta é, por si mesma, clara.

E' clara?! Então, como as especulações não euclidianas?

Aqui a medula da nossa analise.

Que não é clara a noção de linha recta parece dizer a geo-

metria não euclidiana. Ao mesmo tempo a noção de linha recta é

a base de toda a geometria euclidiana e, como verêmos, até das

geometrias não-euclidianas. Que prova esta anomalia? Que ora so-

mos demasiadamente racionalistas, ora demasiadamente empiristas.

Se a recta é a maxima racionalisação da intuição do Espaço,

como já dissemos, tudo se explica. As especulações não euclidianas

sam legitimas e as generalisações geometricas sam uma livre espe-

culação sobre conceitos, fundados em últimos alicerces, na maxima

racionalisação do irreductivel intuitivo — a linha recta. As generali-

sações geometricas sam, como todas as generalisações niatematicas,

uma introdução de novas determinantes. Os parametros que cara- .

cterisam cada espaço carecem da noção de recta. Sem a linha recta

seria o indeterminismo geometrico.

A construção do Espaço com conceitos postula a linha recta,

que já está implícita na definição de volume e de superfície, isto é,

na possibilidade de racionalisar aquele Espaço, [Espaço (a)] que a

geometria recebe sem construir.

A sua construção com percepções, como a tentativa de Poin- .

caré com golpes e paradas, egualmente postula a linha recta, que

descrimine as percepções e oriente as paradas.

E', pois a linha recta ('), a lei da síntese, que fundamentalmente

racionalisa o Espaço. E deste modo é clara a sua noção, que não

saiu do espirito somente, mas do racíocinio e da sensibilidade.

Se pura intuição, como a geometria não euclidiana?

Se pura noção, como a sua dependencia dum espaço especial,

onde sentimos?

—Por dois pontos pode-se fazer passar uma linha recta, e não

se pode fazer passar mais que upia.

A lei da síntese produz esta propriedade e assim fica a recta

determinada por ser a única linha que dois pontos determinam.

E' portanto a lei da sintese, maxima racionalisação da Intui-

ção, que por toda a parte aparece em propriedades, que ela produz;

e se põem como definições, por não ter sido achada a lei da sua

formação.

(') Ccnirnot e Comte viram a importancia da linha recta. O primeiro com

lúcida previsão, o segundo com substanciosa parcimônia.

A ÁGUIA 55

Essa mesma lei nos permite demonstrar o chamado postuladode Euclides. Essa verdade, que é independente dos outros princípiosexplícitos, é contida no [Espaço (a)], que é, ordinariamente, a terceircy

palavra a aparecer nos livros de geometria.

E a demonstração faz-se pelo principio da identidade, prjnci-

pio do absoluto determinismo (pura inércia, absoluta exteriorisação) —;

e não se finge, com Fouillèe, com o principio da razão suficiente,

principio das ciências sem perfeita exteriorisação.

E' esta a demonstração devida ao racionalista Hamelin,

— On pourra, par exemple, définir la valeur de l'angle: la dif-

férence de directions des deux côtés; admettre comme évidente cette

proposition que la valeur de 1'angle reste la même quelle que soit

la direction prise pour norme, c'est-a-dire quelle que soit la droite

sur laquelle on reporte 1'angle: alors il sera facile d'établir que le

triangle vaut deux droits e par conséquent tout le reste. Prolon-

geons en effet la base d'un triangle; 1'angle au sommet étant la

différence de direction des deux côtés entre eux par rapport à la

base, il s'ensuit que 1'angle extérieur diminué de cette différence

est égal à celui des angles á la base qui lui est opposé; en d'aii-

três termes, 1'angle exterieur est la somme des deux angles inté-

rieurs dont il vient d'être question; donc, augmenté de 1'angle inté-

rieur adjacent, il équivaut aux trois angles intérieurs pris ensemble

et la valeur totale de ceux-ci est par conséquent de deux droits.,; (')

A

/ -a ' \

B

ABC = BAD — BCA

BAD = ABC + BCA

ABAD 51 = 2 rect.

ABC -f- BCA 4- a = 2 rect. D. A G

q. e. d.

Lixa.

(') "Essai

sur les elements principaux de la représentation,,, pag. 105.

ARTE

O ensino official das Bellas-Artes

ntre as reformas de summa importancia a effectívar na es-

phera da instrucção nacional, salienta-se a do ensino offi-

ciai das artes plasticas.

A Arte nascida duma fórmula superior está na depen-

dencia, incontestavelmente, de elementos imprescindíveis de natureza

technica que invocam um ensino racional e inteiramente diverso

daquelle que até hoje se subministra nas escolas especiaes de toda

a parte.

Para que o neophyto- artista, verdadeiramente, dotado desen-

volva e progrida, necessário é fornecer-lhe meios, suggerir-lhe "um

recto e suave caminho para a sua finalisação, avultando a própria

personalidade, expandindo ria expressão dos seus ideaes e com-

municando mais deductivamente os pensamentos que o animam,

sem taras nem influencias alheias.

Actualmente, correspondendo ao avanço mental, este genero

de ensino carece francamente duma remodelação meditada e profícua.

O perigo das escolas especiaes d'arte, principalmente, está no

excesso de frequencia sem selecção de qualquer ordem de que re-

sulta desgraçadamente o parasitismo artístico de que hoje tantos se

queixam.

Desde que. as vocações fossem conscienciosamente reconheci-

dos logo nos primeiros annos do tirocinio escolar por um exame

rigoroso de aptidões, a instrucção seria aquella que em nosso con-

ceito fosse moldada em condições de valorisar o gênio de cada um.

Organisado como se encontra o ensino da arte, o esforço

didático é claramente contraproducente e portanto justificável se

torna a suppressão de taes escolas.

A vocação provada não reclama a critica diaria do mestre,

critica limitada sempre ao modo de interpretação da fôrma e da

côr; esta missão impertinente e viciosa constitue todavia, única e

exclusivamente, a essencia desta extranha pedagogia.

O artista para exprimjr-se, pondo em jogo faculdades intrin-

secas, muito suas, de ordem psychica, requer por sua vez materiaes

dpceis, submissos; requer dextrezas e soluções que apenas se con-

quistam pela pratica de muitos annos ou pela aprendizagem me-

thodica numa escola que de futuro ha-de ser o que deve ser para

que este importante desideratum se consumma.

O curso do modelo-vivo em attitudes repousadas, como único

meio de formação artística, produz, no termo de educação official, a

paralysia das faculdades creadoras; em vez do triurnpho das diffi-

culdades para uma arte elevada, a derrota e a subalternisação pes-

ESTUDO PARA O QUADRO "O

REMÉDIO,,

(De José Malliôa)

A Águia-2 (2.a série)

A ÁGUIA 57

soai ao império do objectivo plástico: o artista procurando vencercái vencido! eis, em resumo, o fructo pernicioso dessas chamadasacademias.

E' inacreditável que cursos práticos e de alcance concebivelcomo os fundados em Paris, ha bastantes annos, por Lecoq deBoisbaudran para o desenvolvimento e robustecimento da memóriavisual, não tenham sido introduzidos nas escolas officiaes d'arte.Leonardo de Vinci proclamou a necessidade da educação da me-moria das fôrmas, e os factos prováram. e provam ainda a effica-cia desses methodos a que um grande numero de artistas modernosdeve o seu maior renome, confirmando a importancia dos meiosmnemonicos como base segura para libertação do espirito cioso deindependencia e riqueza imaginativa.

Zorn, Cazin, René Ménard, Lhermitte, Hegenbarth e muitosoutros devem á sua prodigiosa memória plastica, disciplinada eactiva, as suas melhores obras. Os factos da vida hodierna de iné-dito arranjo pittoresco e duma vivacidade flagrante, fixados no ce-rebro pelo effeito, pela côr e pela mimica, effectivam-se nas suasproducções por uma maneira ampla, magistral!

O servilismo academico-artistico, a passividade no aprendizado,

passividade que se perpetua dum modo funesto, carece de remedioprompto, heroico. Preferível é mil vezes, embora sem regra escolarnem tutela docente, a iniciativa própria á subordinação mental sus-tentada numa permanencia dos melhores annos da vida, quando aphase assimilativa mais actua e prepondéra.

Deste abreviado de considerações é fácil, cremos, deduzir-sequal o plano de reformas, no caso em questão, que em outro artigopoderemos apresentar consentaneamente com os novos aspectos deordem intellectiva da sociedade moderna.

NOTAS E COMENTÁRIOS

A SITUAÇÃO POLÍTICA

Só quem pertence a um grupo político tem porobrigação dizer a mentira.

A sociedade portuguesa debate-se numa agitação, que teve o

seu ápice na desgraçada e extemporânea greve dos fins de janeiro.

São múltiplos os factores que contribuíram para esta existencia tu-

multuária e nevrótica, e pensa fóra da realidade ou é solicitado pelo

interesse e pela paixão todo aquele que quiser atribuir estes factos,

como tantos outros, a uma causa única.

D'uma parte houve o conflicto necessário entre as affirmações

da opposição e as realizações do poder—necessário pela força

mesmo das coisas, que obriga sempre a concessões e a transigen-

cias involuntárias, desde que se passa da esféra da idealidade, onde

o nosso desejo pôde actuar absolutamente independente das cir-

cumstancias exteriores e até das forças da natureza, para o campo

da prática, onde com o nosso desejo actúam as mil e uma circum-

stancias concomitantes da realidade. Pela força mesmo das coisas,

disse, e acrescento: pela inferioridade fatal dos homens, tão gene-

rosos nas promessas, tão avarentos nas dádivas, e que impúdente-

mente se servem de todos os meios para fazer a propaganda dos

seus princípios, impudencia que só iguala aquéla com que faltam

depois a todos os compromissos tomados. Essa inferioridade dos

homens revelou-se sob uma fôrma monstruosa — porque se percebia

que os apóstolos da Republica alterassem a extensão do seu radi-

calismo, fossem tornando prático e opportunista o seu espirito revo-

lucionário, muito nas nuvens côr de rosa d'um muito vago idea-

lismo, mas o que se não entende, sem o explicar por uma apostasia

espantosa, ou por uma vacuidade de idéias mais espantosa ainda,

é que mudassem catastróficamente o tom característico da sua per-

sonalidade revolucionária, o seu espirito, o que havia de intima-

mente essencial na sua propaganda.

D'outra parte os partidários que elevaram uma facção ao po-

der, conservando-se ainda na ideologia radical, de que fôram os

mais importantes factores os que hoje lh'a combatem em artigos ou

em leis marciaes, lançam-se naturalmente, desde que vêem os seus

homens no poder, no caminho das reivindicações temerárias e

das pretenções utopistas. Sem a comprehensão da complexissima

realidade, sem entendimento das coisas sociaes, sem essa correcção

salutar que dá a prática dos negócios ao delirio das fantasias, pre-

tendem cinematografar o progresso, e obrigar a fazer numa admi-

nistração de poucos meses o que outras nações com outros recursos

não puderam fazer numa administração de quarenta annos.

- .

A AGUIA 59

Outro elemento de perturbação é constituído pelos vencidos,

que aproveitam todas as occasiões para desorientar o vencedor —

numa parte por amôr á causa vencida, noutra por amôr dos inte-

resses que uma mudança de regimen necessáriamente traz. Demais

a Republica tem sido para com os seus inimigos em pé de guerrad'uma benevolencia estulta, que contrasta singularmente com a in-

tolerancia que tem havido para a livre discussão dos factos, (1) e

que não contribuiu pouco para irritar a opinião republicana.

Junte-se a isto condições especiaes do meio, de cultura íntele-

ctual, de educação política, etc. etc, e teremos as causas geraes da

agitação política do nosso país.

Mas uma das causás que agora quero frisar é o próprio pro-cedimento dos chefes republicanos, como o exemplo mais claro e alição mais nefastamente proveitosa da desordem, da vaidade, doegoísmo, da loucura, e da ausência de solidariedade.

A lição de desordem veiu dos governantes... Os desastresconhecidos do governo provisório devem-se em grande parte a umerro lamentavel, que vem de longe. Desde muito que dentro do

partido republicano se deviam ter differenciado os homens de sen-timento e de acção — meneurs e porta-vozes das idéias revoluciona-rias —e os homens de intelligencia e de direcção espiritual. Era

preciso destruir para construir depois. Para destruir era necessária

uma larga propaganda crítica, negativa, sentimental; para a constru-cção prática era necessário meditar a fundo os problemas nacionaes,conhecer o seu tempo, conhecer o seu país. Este trabalho essencialde differenciação, absolutamente necessário a um partido que nãoesperasse o seu triunfo para os tempos longínquos em qne Vegafosse a estréia polar, nunca se fez, e vemos os homens cultos do

partido inutilisarem-se numa campanha negativa de comícios, muitonecessária, mas que estava dada a outra especie de temperamentos,e que só podia diminuir-lhes a capacidade intelectual, dar-lhes umadirecção prejudicial ao espirito, furtá-los á visão directa das coisas,tirar-lhes todos os hábitos de meditação serena para lhes dar todosos arrebatamentos da paixão. Proclamada a República, vemos entãoreunirem-se no governo alguns homens de pensamento do partidocom os homens de sentimento e os agitadores: a differenciação con-tinuou a não se fazer, e se os homens de inteligência se tinhaminutilizado na campanha dos cotnicios como intelectuaes, agora eraa occasião dos homens de propaganda se inutilizarem no governocomo apóstolos.

O que tudo aconselhava era que os grandes tribunos do partidoa quem se deve, com os próprios monarchicos, principalmente a

(') A liberdade de opinião pensada e'escripta é um dos apanágios funda-mentaés da democracia. O artigo de Joaquim Manso, na Águia, sobre a Liberdadee os seus detentores gira sobre um equivoco entre a liberdade num sentido filosó-fico do termo, aliás muito discutível e a liberdade no sentido político e socialque é o direito de exprimir livremente o que se pensa, mesmo o que se não pensalivremente.

60 A ÁGUIA

República (sem a sua propaganda e a conivência cobarde dos

monarchicos o acto revolucionário teria sido um golpe d'audácia

sem conseqüências), continuassem a radicá-la na alma dos provin-

cianos, consolidando por esta fôrma o novo regimen. Por o termos,

não era obrigação essencial abandonármo-lo ao acaso ou mesmo á

política inteligente d'um governo, incomprehendida pelas massas.

E' 'quando

a obra creada nasce que ella exige o nosso amôr. Por

isso, assim como a creança requer ternuras que a mãe lhe dá e

cuidados práticos que lhe ministram o médico e o higienista, assim

também a República devia ter os seus carinhos — dados pela mão

dos seus tribunos, as suas medidas concretas — ministradas pelos

seus intelectuaes.

N'esta orientação, era de esperar que os erros do governo

provisorio fossem enormes, e, se alguma coisa há para admirar, é

que não tivessem sido maiores. Esses homens não fizeram ainda

assim os disparates que poderiam têr feito, e devemos estar-lhes

gratos por essa amável parcimônia. Foi urna gentil delicadeza não

terem proclamado outra vez a monarchia.

Aijida poderiam frustar-se as conseqüências mais ou menos

inevitáveis d'esta política confusa se da parte dos homens do go-

verno houvesse por um lado mais faro para adivinhar as pessoas

competentes que, honestamente, com o seu auxilio, podessem su-

prir a sua incapacidade, e por outro tivessem a consciência da tre-

menda missão que lhes tinham imposto as circumstancias, obr-igan-

do-os a uma estritcta, a uma commovida, a uma fraterna solidarie-

dade, fazendo predominar a orientação dos mais intelligentes e dos

mais cultos.

De que homens se reuniram os nossos propagandistas para

poderem fazer alguma coisa no seio da governação? Não lhes men-

ciono os nomes. Não porque colabore na tôla hipocrisia, logar

commurn do parlamento e da imprensa, por elles desmentido a

cada passo (no mau sentido) de que se não devem fazer discussões

d'homens, mas críticas de idéias: sei que são os homens que fazem

a política, e que discutir a política é em parte discuti-los a elles.

O que me leva a não lhes mencionar os nomes é apenas a razão

simples de que todos lh'os sabem.

Vemos assim apparecer pedagogistas eméritos, como demó-

nios; e serafins do fundo dos alçapões das mágicas; sêr ouvidos

para a promulgação de leis fundamentaes, pedaços d'asnos para

quem é quasi uma atenção dizer-lhes que não são analfabetos; e

nas direcções geraes, nos logares de maior vulto, nas escolas su-

periores, no governo colonial, nas penitenciárias, na doplomacia

improvisar capacidades com uma facilidade de milagre. Emfim

como o valôr não coincide em geral com a subserviência, para

honra dos homens de valôr, rodearam-se os ministros de meia

dúzia de thuribularios, que em regra eram imbecis e que por

excepção eram republicanos. A vaidade dos governantes ex-

plica em parte o caso. Além d'isso, esses homens, alheios á vida

intelectual da nação, apesar de tão diminuta, conhecem-na como

A ÁGUIA 61

os devassos conhecem Paris — estes sabem apenas o nome ás actri-zes fáceís, ás meretrizes que passeiam no Bois e arruinam america-nos, aos charlatães da praça pública, e desconhecem o sábio reco-lhido que em silencio concebe um novo méthodo scientifico e den-tro das academias e das sorbonnes lança as bases d'umanova metafísica. (Já se sabe, a comparação é um pouco arris-cada —não

pelo que respeita aos parlapatões e ás meretrizes, mas

pelo que respeita aos intelectuaes).

A estas leviandades do governo corresponderam optimamente afalta de escrúpulo dos contemplados —e eu vi sujeitos... Mas emfim é melhor não falar n'essas tristezas: pungem a alma demais. E

porque é que elles acceitaram sem reluctancia essas benesses quenão mereciam? Uns por terem prestado favores pessoaes ao minis-tro (como se os empregos fossem retribuições de favores pessoaes)e outros por terem —sei lá! —andado com ele nas escolas ou te-rem jogado a bisca com s. ex.a. Quanto ao mais, isso de compe-tencias é uma história, quando se tem lume no ôlho e tres annosde comícios.

Este foi o faro, e a virtude das escolhas. Quanto á solidarie-dade sabemos o que foi: A unidade de acção do governo provi-sorio foi de tal ordem que a sua obra parece têr sido feita emsete paises differentes e em séte séculos diversos. Não houve um go-verno\ houve governantes. Cada um dos ministros constituiu-se em chefed'um governo lá seu, em ditador de um paiz que elle lá sabia.E continuava-se na mentira de que havia um governo, quando nãohavia afinal senão sete homens que só estavam de acordo n'isto:fazer cada um d'elles o contrário do que os outros faziam. — Ah!e causa dôr e espanto ver como essas creaturas depois do trium-fo d'uma causa tão ardentemente amada e por que tanto tempocombateram, sacrificando o seu repouso numa lucta alta e honesta,como essas creaturas, que deviam sentir em si, commovidamente,uma nova consciência, uma nova alma, apagando-se-lhes a perso-nalidade na grandeza da sua missão colectiva, descambarem dentrode curto tempo em politicões inimigos, fazendo do governo não o

que se lhes exigia—solidariedade e sacrifício—mas o campo de ba-talha de desavenças mesquinhas.

A lição de desordem veiu dos governantes...A lição de desordem veiu do parlamento, pejado de nulidades

espaventosas e de mediocridades palradoras, subordinando as ques-toes nacionaes a questiúnculas de grupos e grupelhos e dando ahção mais pavorosa de impotência creadora e de anarchia moral.

A lição de desordem veiu dos serviços públicos, que já estavamdesorganizados e desorganizados ficaram, pela entrada de váriosluminares da paróla e de grandes cirurgiões das partes baixas.

A lição de desordem veiu da imprensa republicana, a deGregos e a de Troianos, que se debatem em mil e uma questiún-cuias

pessoaes quando é certo que elles não são tão bons como sedizem nem tão máus como se chamam uns aos outros,—debates emQue se discute sériamente, ao entrar um novo Grego ou um novo

62 A ÁGUIA

Troiano na governação do estado, se elle é ou não republicano

desde a guerra de Tróia, ab ovo, e cursou rhetórica e fraseologia

revolucionária nos tempos innocentes e adâmicos dos Magalhães

Limas e dos Terenas; debates em que se sustentam intermináveis

discussões sobre partidos de atracção, como se na essencia de toda

a idéia de partido não estivesse a política de atracção, e se egual-

mente não contrariassem esta os que querem fazer da República

um campo fechado, ou os que dão esse nôme a uma política de

baixa transigência.

A conspiração mais terrível contra as instituições tem partido

dos que tinham o encargo de as defender. Querem simptoma mais

alarmante de desvairamento em todos os sentidos que as accusações

que Theóíijo Braga lançou contra Antonio José d'Almeida — a não

ser aquellas que Antonio José dAlmeida lançou contra Theófilo

Braga?

Que admira pois que as camadas baixas estremeçam quando

de cima vem o exemplo da anarchia mais completa! Os jornaes

pedem Paz! Paz! depois da gréve sindicalista, esquecendo-se de que

dias antes, de que nesses mesmos dias, faziam uns aos outros a

guerra mais inconveniente.

Paz?! Pois venha a Paz, mas sejam os primeiros a realiza-la

aquelles que a aconselham. Bem precisa é ella por óra — uma paz

activa, creadora, cheia da energia exaltada de todas as guerras, paz

que seja a lucta contra o erro, que seja o combate dos que construem ...

Mas quando aquêles que aconselham Paz não realizam a Jus-

tiça e o Bom Senso, esse grito evoca em mim o seguinte quadro.

E' num palácio cheio de mêsas em que se sentam convivas

cubiçosos. Entre os commensaes de cada uma trocam-se toasts que

os embriagam; mas vão atirando copos, garrafas, jarros, facas, trin-

chantes, e outras delicadezas, aos convivas das mêsas próximas. Fóra

accumula-se uma multidão que presenceia e se agita. E á janella

do palacio chega a figura draconiana da Ordem, armada dos pés á

cabeça, gritando para a plebe alvoroçada:"Paz,

paz, cidadãos, por amôr da patria. Deixae estes senhores

digerir e calumniar-se em silencio».

5 de fevereiro de 1912.

REVISTA BIBLIOGRÁFICA

Lembro0 meu retiro, pelo Padre agora a vezAlvares de Almeida.— primeira emFrança Amado, editor que os meusCoimbra. olhos depara-

ram com estenome, Alvares de Almeida,-firmandoum artigo sobre o poeta do Luarde Janeiro numa revista de Lisboa. Lem-bro que, na alegria de visionar umhomem de talento e alma enternecida,sadia de beirão vivendo, para alem docirculo estreito da volta dos clérigos danossa terra, a amplidão dos horisontesvastos em que a vida pulsa religiosa e

profunda, lembro que, na alegria con-solada e grata, reli aquele artigo... Ecreio ter sido aquele um bem ganho eiluminado dia ...

Recordo para alem duma névoa, aoração cheia de piedade que algúresse ezaltava, e num vôo, veneradôrae docemente, subia para a Mulher

posta sobre um alto e aureolado al-tar..,.

É a impressão vaga que me restade então ...

E desde então aquele nome, queera o dum homem que meus olhosnunca viram, teve em mim, mais que'um admirador, o carinhoso companheiro

que advinha a sua Alma tal como eladeve ser ...

O meu retiro veio a lume ha tem-

pos. Não o lera eu ainda, tolhido poroutras fainas.

Mas um remanso chegou agora, edas mãos de Jaime Cortesão eis querecebo este livro com alegria, para deledizer em escusadas, vãs palavras, nãouma crítica fria, imparcial da obra vistasobranceiramente, de alto, e através dunsimperturbáveis oculos de metálicos bri-lhos, mas toda a minha comoção, todaa minha rude e transbordante amizade

pelo Artista que, durante quasi toda aleitura do seu livro, deixou vaguearmeus olhos satisfeitos e claros por umabela paisagem, socegada e limpida, en-tre figuras simples, de almas á flôr dasvidas, como ela erguendo ao ceu amesma prece espiritual e a mesma piá-cida, candida doçura ...

Bem haja o autor pelas mãos cheias

de bondade e comoção que pródigolançou em minh'alma sedenta ... Grá-

ças pela beleza que eu intúicionei naquele

padre que em tam puras mãos erguia,sacerdote duma religião melhor e eterna,

tam alto e em tam abençoàtite gesto,a hóstia de oiro da sua arte, em

bondade e carinho enraizada fundo ...

Porque eu vejo-o, através deste li-

vro, como olhos escravos da aparen-cia das formas e cegos para as almas,

o não podem vêr... Vejo uma almalivre de tudo quanto amesquinha e es-

curece a grandeza da Vida, —anciosa

e intranquila, tomada de divina emo-

ção, embriagada de sonho e audácias,inquieta e indomável, enternecida co-mo um extase, febril como azas se-dentas de maior altura, anciosas de cin-

jir todo o ceu ...

Não sei eu falar do mero artista

que alinhou palavras, concertou pe-riodos, e fria, impostoramente, desenhouimagens, arredando-as da sua vida, ex-

pulsando-as do seu sentir.Nem sei que ezista uni grande

artista assim.

Alvares de Almeida, sendo Poeta esendo os onze contos do seu livro otestemunho basto do seu talento,-não

pertence a esse numero ...Ele viveu a vida das suas criações;

guiou-lhe a mão febril, na inconscien-cia superior dos momentos creadôres,falou por ele,-a Vida que a sua Almade Poeta cinjia num possessivo abraço,numa fecunda posse, trêmula e emo-cionada, quando os seus olhos tinhamtalvez o esplendor enevoado das lá-

grimas...

A mim apraz-me, numa ávida tei-mosia, ampliar, erguer a visão da fi-

gura do'autor através dum mais ver-dadeiro prisma, a uma luz mais clara,numa região mais profunda e menosilusória.

Fala o Poeta. Para lá da penum-bra incerta, errante das minhas palavrascegas,-duas almas se encontraram e,fitando-se longamente, advinharam queeram irmãs...

*

O sentimento religioso da Vida,

64 A ÁGUIA

florescendo ua paisagem e nas adora-veis, claríssimas figuras dc alguns con-tos,-e uma ironia que é como a reacção

do espirito escravo contra aquela reli-

giosidade, quasi se contra-dizem nal-

guns contos, e o conto Lucília, (a dece-

pção que senti ao acabar de lê-lo!)

afirma a vitoria desta ironia, mascarada

sob o aspecto duma superficial realida-

de, sobre aquele alto sentimento.

Lábios que o dizem não sáin lá-

bios da Vida.

Palavras dela sám para todos, mas

não tocam as almas, magoam aqueles

que confiada e convictamente os olhos

cerram a tudo quanto desminta, com

uma suposta realidade, a verdade eterna

duma religião maior...

Eu adoro o meu fanatismo. E no

entanto eu proprio o sinto excessivo,

querendo-o assim ...

O Artista, — Poeta sempre-, carece,como as águias, de uma altura-maior,

onde paire soberano, tudo dominando...

E não a deve abandonar ...— Arte para poucos, arte para ra-

ros?...

A Arte sincera e grande é para todasas almas, simples ou rudes, almas supre-mas ou almas humildes, todas belas porquea mesma luz as pôde iluminar.. .

Mas o padre Alvares de Almeida,em dez contos deste livro, irradiado oconto Obsessão dum nome, desde o

prologo á ultima página» é sempre um

Poeta e um artista.

Digam-no a iluminada doçura da

lenda dos Açores em que ha a imagem

ciclopica dos Herminios, velhos' titáns

que os deuses domáram, e a espiritua-

líssima visão que só Puvis de Chavanes

ou Henrí Martin fixariam numa tela,

de Suíntiliuba subindo, postas as mãos,

entre nuvens alvas de anjos, sobre a

adoração dum povo ingênuo e piedoso,ajoelhádo em redôr ...

E o conto Figuras antigas? Rosá-lia, Florinda, o padre Januário, o velho

pastor João Marques .. .

Que bela deve ser, - ó almas, a

alma que tam puramente vos viu!...

Longe de Lourdes e Outra Esmola,

despertam, fazem subir as lágrimas .. .

O Lúcio é adoravel, que perfumede flores abrindo numa paisagem môça,

a um sol de renovo!...

E o carinhoso gesto que traçou

aquelas paginas bíblicas da Lenda da

boeirinha, e a alma fraterna que mol-

dou, com a dôr de duas almas e a can-

dura duma virgem, as paginas dramáti-

cas do Caminho falso?! . ..

Que consolo, que orgulho para nós,

vermos que este padre de talento, entre

milhares é um dos rarissimos padres re-

ligiosos a quem Buda, Cristo ou Marco

Aurélio sorririam decerto !...

Coimbra, 1912.

TomaramHainlet Shakespeare, trad. os srs. Leio

do dr. Domingos Ramos & Irmão,Livraria Chardron — Porto, proprieta-1912 rios da Li-

vraria Char-dron, a generosa deliberação de torna-rem conhecidas da nossa lingua e emedições baratas as admiráveis obras deShakespeare. A ultima publicada é o"Hamlet,,

que profanação seria dizer,neste avançado ano da Éra, o que seja,o que vale e a que aspira. Só nos serálícito reparar em que a tradução devia

ser um' pouco mais cuidada. Do inglêsdirectamente, por intermédio do francês,ou ainda com o auxílio das traduçõesde D. Luís, revistas por pessoa muitocompetente, mais se pode fazer.

Tam bemHistoria da creação Mae- a mesma li-ckel, trad. do dr. Eduardo vraria Char-Pimenta Livraria Char- dron se aba-

dron Pôrto. 1912 lançou a

tornar por-tuguesas as obras dovulgarizador ale-

mão Ernesto Haeckel. Quasi todas estão

publicadas já, tendo aparecido agora a

lume a "Historia da creação,,. O snr.

dr. Eduardo Pimenta verteu espléndi-

damente o francês, tornando este livro

do incontestável utilidade num trabalho

acessível a quantos se interessam porestudos racionalistas.

Referências se farão 110 número

seguinte aos livros recebidos:"Anteu,, Poema por João de Darros"Commigo,, - Versos por Manuel La-

ranjeira."Os arabes nas obras de A. Hercu-

lano,, - David Lopes.

LITERATURA

Uma carta de Manuel Larangeira

§ * uando publiquei em 1904 o meu livro "Para

a Luz,,,

mflRlfir Manuel Larangeira escreveu-me algumas cartas a propo-s't0 d'esse livro, — cartas que eu guardei, como se guar-dam as coisas preciosas.

Ele era um verdadeiro temperamento: expontâneo e sincero,

embora orientado... Quero eu dizer que o seu espirito, mais inte-

lectual do que instinctivo, mais inteligente do que creador, deixava-se

dominar pelas idéias

ambientes, em vez

de obedecer á sua

intima e própria ex-

pansão.

Ele era o es-

pirito que vê, e não

o espirito que deixa

ver. Se este feitio in-

telectual anda quasisempre ligado a uma

sensibilidade infe-

rior e anodina, em

Manuel Larangeira

não se dava tal

cousa, porque ele

era, ao mesmo tem-

po, um sensível, no

sentido mais belo

da palavra: um per-feito e generoso

coração.

E é isto o que dá destaque e simpatia á sua individualidade.

N'esta carta, combate o ilustre escritor tão tragicamente extinto

ha poucos dias, a minha concepção poética do mundo e da Vida.

Orientado pelas modernas idéias filosoficas e scientificas que redu-

ziram o Universo a uma confusão de forças, energias e matéria,

repugnava a Manuel Larangeira admitir qualquer sistêma ou teoria

definida, qualquer explicação lógica da Vida.

De ahi a sua carta que eu não quero roubar por mais tempo

á curiosidade do leitor:

66 A ÁGUIA

Meu Amigo:

Que de cousas eu teria a dizer-lhe em resposta á sua excellente

carta!

Certamente que o admiro, meu poeta, e não menos certo que o

amo, meu amigo. Mas dahi a estar de accordo com a sua theoria

do Universo—vcd um stadio. Uma theoria do Universo! Mas, meu

amigo, uma theoria do Universo deve eliminar todas as idéias de

finalidade, porque o Bem, o Mal, a Perfeição, a Bondade, a Pureza,

a Aspiração — e todas essas belas cousas em que a alma se embala— não passam de noções relativas, de modos de ver do nosso pobre

ser humano.

No Universo não ha Perfeição, nem Imperfeição: Harmonia

nem Desharmonia: ha Movimento da Matéria. En não digo nem

com os pessimistas nem com os optimistas: que este mundo é o peor

ou o melhor dos mundos possíveis. Este mundo é este mundo — e

temos de o aceitar tal qual está: isto não é negar a perfectibilidade

humana. Mas a Perfeição do Homem, sob o ponto de vista cos-

mico, nem é perfeita nem imperfeita.

E o meu pessimismo vem do que eu chamarei fatalidade orga-

nica. O homem, meu amigo, ainda é um ser em conflicto comsigo

mesmo: ainda é um aggregado de víceras que lutam por clevorar-se

até ao dia da solidariedade, da harmonia final.

A naturesa humana, cm si, ainda é uma cousa tão desfiar-

monica que está dando razão a Voltaire quando dizia: "notre

pau-

vre âme immoftelle a besoin de aller á la garderobe pour penser

bieru Sob este ponto de vista, Schopenhauer e o «Cystie negro de

Recanati»—esse doentio Leopordi de quem me fala — tinham plena

razão.

Basta abrir os olhos para as misérias da vida, meu amigo. O

que ainda consola é que nem tudo é miséria.

Venha por aqui. Conversaremos largamente.

E até lá abraça-o affectuosamente o seu cordeal

Espinho - 2 de Setembro de 1904.

Vê-se que esta carta é sincera; traduz a desolação do seu belo

espirito maguado, sob o domínio das idéias scientificas do seu

tempo e ante as imperfeições exteriores que o cercavam.

Ora eu, dentro do pensamento que vem desde a sombra dos

meus primeiros versos, nunca vi nem posso ver as cousas como

Manuel Larangeira as viu durante a sua vida efêmera, mas fecunda

e bela.

Ele caiu (e foi a sua desventura!) n'uma terrível ilusão de re-

A ÁGUIA 67

cente origem scientifica. Contemplou o Universo e a Vida como iso-

lados do seu pensamento, e quiz ver a harmonia, portanto, n'um

corpo decepado, porque o Pensamento Humano é que completa o

Universo, faz parte d'ele, está n'ele integrado, ou melhor ainda, é a

ultima forma superior da sua evolução.

E a Naturêsa, quando atinge a fase espiritual, torna-se per-

feita. O espirito vive a vida divina e perfeita. Todas as contin-

gencias e imperfeições mineraes, vegetaes ou animaes não existem

no espirito que vive em si e de si, sem matar para viver. Logo, o

Universo na sua generalidade material é imperfeito e doloroso,

mas na sua sintese espiritual, na sua cristalisação divina, é perfeito

e feliz. Não devemos, em nome da verdadeira sciencia, separar a

Matéria do Pensamento, pela mesma razão que se não pode nem

deve separar o reino animal do vegetal. Não roubemos ao Uni-

verso o que lhe pertence, e que é o seu modo superior de ser.

Dada esta grande verdade, a vida é bela e bôa porque esta-

belece a transição da matéria escrava para o espirito livre. E' no

seio dos sêres vivos e viventes que se dá essa misteriosa reação de

que resulta a fase espiritual da Matéria: a sua libertação, portanto.

Direi, esclarecendo, que matéria e pensamento são a mesma

energia em diversos graus de evolução. Eu creio na Unidade e até

na unidade psycologica: imagino que todas as idéias e sentimentos

são, na sua essencia, uma só idéia e um só sentimento. A idéia de

espaço é uma forma da idéia de tempo, a idéia de numero uma

forma da idéia de quantidade; a idéia de absoluto uma forma

acrescida e dilatada da idéia de relativo. O sentimento do belo uma

forma purificada do sentimento do feio; e a tristeza e a alegria são

graus do mesmo sentimento, como calor e frio são graus da tem-

peratura, etc. etc...

Fazendo parte integrante do Cosmos o Pensamento, como já

dissenlos, todas as suas creações são tão reaes e verdadeiras como

as creações da Matéria; por exemplo, uma idéia tem a mesma exis-

tencia cósmica que uma flôr ou uma pedra. Logo, se o Pensamento

criou a idéia de finalidade, o Universo ficou a ter espiritual-

mente um fim, desde esse instante creador. O homem encontrou o

mundo por concluir; mas o seu pensamento terminou a obra de

Jéovah; fechou a abobada do Universo.

E a Vida assim definida pelo nosso espirito, torna-se lógica e

clara,. como uma estrada que parte d'um ponto conhecido para

outro ponto conhecido; uma estrada que sobe, cada vez mais ba-

tida do ar e da luz; — uma estrada lançada entre um logar tene-

broso e doloroso (as fases materiais da vida) e outro logar feliz

e alegre (as fases espirituaes da vida).

Portanto, á idéia de casualidade está presa a idéia de matéria,

e á idéia de finalidade a idéia de pensamento.

E assim temos a Vida com um Principio e um Fim, dentro

da realidade cósmica. Temos a Vida digna de viver-se; pois viver

a vida é transformar matéria dolorosa e imperfeita em espirito perfeito

e livre.

68 A ÁGUIA

Porque é no homem que se dá essa transformação mara-

vilhosa, o homem vive em dois Reinos ao mesmo tempo: no ani-

mal e no espiritual. Age como sêr animal, mas sonha e pensa co-

mo sêr espiritual. D'isto resulta a trama, o interesse, o misterioso

drama humano! D'isto resulta a contradição eterna que é o homem— o estranho ser que vive em dois mundos!

D'aqui resulta a alegria religiosa das Almas que abençoam a

Vida e a tragica tristesa das Almas que a amaldiçoam, das almas

que apenas vêem a sua tenebrosa origem, como esta alma feita de

desgraça e de bondade de Manuel Larangeira, o Poeta na hora da

sua. morte!

28 de Fevereiro de 1912.

Disse um homem de Estado inglez do século passado,

que por certo era também um perspicaz observador e um

philosopho, Horacio Walpole, que «a vida é uma tra'gedia

para os que sentem e uma comedia para os que pensam.

Pois bem: se temos de acabar tragicamente, nós Portu-

guezes, que sentimos, prefiramos muito esse destino terrível

mas nobre àquele que está reservado, e talvez n'um futuro não

muito remoto, á Inglaterra que pensa e calcula, o qual des-

tino é o de acabar miserável e comicamente.

D'um folheto que esteve para pu-blicar-se por occasião do Ultimatum ecujos originais estão em poder do snr.Conde do Ameal.

INÉDITO

VERSOS DA MINHA VENTURA

Para o meu filho:

Dorme junto da Mãesinha,Ainda ha pouco adormeceu —,

Ele é meu, e ela é minha...—Tenho na terra o meu céu!

E é tam perfeitinho, tanto

Sol el'fez nascer em mim,

Que me parece um encanto

Ter já um filhinho assim...

Tam lindo que, só de vê-lo,

Me dizem, sorrindo, os mais..."Tam

pequenino e tam belo,"—Mostra

bem o Amor dos pães...»

Ponho-me a olháf-o, e advinho

A curva desconhecida,

O misfrioso caminho

Desta pequenina Vida.

Hade ser justo. A Beleza

Hade-o encantar, dominar...

Nele, toda a Natureza

Bela e casta hade cantar!

Que toda a força da terra,

Toda a Beleza do ceu,

Todo "o Amor que a Vida encerra —

Cantáram num beijo meu!...

Hade ser poeta...— Ser poeta

E' sentir a Vida toda

Em nossa Vida, alta e inquiéta,

De joelhos á nossa roda...

E' trazer no olhar, — Sol nado—,

Um grande Amor, e sentir,

Na alma, um ceu todo estrelado,

Astros, lírios a florir...

E é erguer num sobresalto

Novo e eterno Prometeu —

Luz de Beleza, bem alto,

Desta Vida para o ceu!

É moldar na argila a aza

Pra cingir o firmamento...

É trazer a alma rasa

De luz, sofrendo o tormento,

De ver, na escura tristeza,

Vidas que em vão se consomem.

Ser poeta é ser a Beleza,

Deus, o ceu livres no homem!

Que os seus olhos, onde agora

Eu advinho uma luz,

Sejam um nascer de aurora,

Mais belos que os de Jesus...

Que a dôr os torne piedosos...Ha um sofrer que só ezalta, —

Chorar é vermos, anciosos,

Uma luz que aos outros falta...

Deus lhe dê tanta ventura

Como a que me deu ... E assim

Cresça ele em formozura

Como esta anciedade em mim ...

Que esta alma alvorescida,

Que o meu Amor vai tecendo,

Seja, no Oceano da Vida,

Onda de Amor bemdizendo ...

E o seu corpo bem amado,

Pequenino, lirial,

Um sacrario iluminado

Em sede inquieta de ideal...

O meu filho! —Deus o faça

ÁGUIA

Tatn belo como feliz,

E lhe dê a santa graça

Dum S. Francisco de Assis...

Azas da minha ventura,

Minha alma,—ó ceu aberto!...

—Subi a tamanha altura,

—Que já sinto o ceu mais perto!.. .

Fonte de Amor alto erguida,

Agua de luz a nascer

Nos castos flancos da Vida,

Versos, —cessai de correr!...

Alma, toma as azas tuas,

Sobe, em pranto, aos olhos meus!...

Já nos meus olhos flutuas...

Cerração no mar de Deus...

Lagrimas correi á tôa!

Ó Mar se nunca secasses...

—Ai que caricia tam boa!...

—Que me beija assim as faces?...

Coimbra, 18 de Fevereiro, 1912.

CAMILLO CASTELLO BRANCO

CARTAS INÉDITAS

VI

Meu caro Guilhermino

Recebi a sua excellente poesia e farei que o publico tenha

occasião de avalial-a como eu.

A Peninsula teria rasão de atinular o Christianismo, se lhe

deixássemos passar os absurdos. Não foi com vontade que tomei aluva da lama onde a lançaram; mas é uma precizão, e um dever—

aliás a que veio este jornal intitulado o campeão da Egreja ?

Tenho tido a satisfação de conviver com o seu t/iio, e mui-

Ias vezes falíamos do digno sobrinho, de quem sou

E' de pequeno interesse, como outras da mesma epoclia, a carta reprodu-zida. Não está datada. Corresponde, porém, ás primeiras investidas com AmorimVianna o que eqüivale a dizer que o assumpto a data: pouco tempo devia levará antecedente.

Vem a preceito editar os passos litteraríos do notável escriptor no primeirotempo da sua jornada de publicista.

Sem entrarmos na noticia circumstanciada de trez poemetos (1845 1848)e ainda do opusculo Maria, encontramos Camillo a dramatizar episodios liisto-ricos pela primeira vez, em Villa Real (1846). Ahi tratou o Agostinho de Ceutaescripto para ser representado na Villa, em theatro de família e que mais tarde(1849) mereceu as honras de ser admittido n'«m Theatro do Porto e depois noRio de Janeiro.

Por 1848 romanceou de camaradagem com Guilhermino de Barros, escre-vendo na Bibliotheca publica de Villa Real enredos resaibados de leitura aiítiga.

Publicou em 1849 O Marquez de Torres Novas (drama). A peça foi repre-sentada por estudantes no Porto, depois que o auetor emendou a palavra rei "que

teimava sempre em escrever com r pequeno,, elucidava a censura. (Vid. Vieira deCastro e A. Pimentel).

Foi ainda por este tempo que, improvisando em paladino da cantora -Belloni do Iheatro Lyrico, tumultuou applausos que despeitaram a Dabedeille, e,originaram um schisma de Amor e Arte que convulsionou o Porto galante de então!

Ainda em 1849 esteve em Bayâo, n'uma freguezia próxima de Ancêde,d'onde escrevo estas notas, a freguezia de Santa Cruz do Douro, em casa deJosé Augusto de Magalhães, aquelle celebre romântico, notável de desgraça queos fados transformaram em algoz da mulher, mercê d'uin preconceito de honra.

Amigo agradecido.

NOTAÇOES

PORTO —MARGENS DO DOURO

(De J. Monteiro)

A Águia-3 (2.a série)

.. . ••

A ÁGUIA

Estive lia tempos no Lodeiro, na casa onde viveu e hospedou Camillo. O ve-

lho solar é hoje um pardieiro abandonado.

De interessante tem a capella, interiormente vestida de talha mal dourada,

em que resalta o sacrario que guarda 11'um frasco vülgar os restos do coração da

mulher de José Augusto.

Camillo allude, pelo menos em duas obras, a Fanny Owen e ao tristíssimo

romance que o seu amigo viveu.

Porque lhe foram entregues cartas que ella escrevera a outro homem, J.Augusto não qúiz desfloral-a.

Foi amigo de Camiilo, que em Santa Cruz urdiu e datou um pequeno escri-

pto - O tio egresso e o sobrinho bacharel .

Fallarei mais tarde de José Augusto, bem como de outro amigo de Camillo

que ainda conheci e tratei - Manuel Negrão, que também tinha solar a poucos

passos d'esta casa. Eram ainda seus predilèctos 11'este tempo-Silveira Pinto, o

poeta Xavier Novaes e Barbosa e Silva.

Eni 1850 bateu-se por Herculano na questão que resultou da Historia de

Portugal; publicou o opusculo O clero e o Snr. A. Herculano; e na Semana, re-

vista de Lisboa, o seu primeiro romance de valor O Anathema.

Refere Bruno que Lopes de Mendonça e Alexandre Herculano o maltrata-

ram, recebendo-o como recemchegado impertinente e sem valor.

Foi de 1850 a 1852 que se devotou á Theologia, estudando a Fé como quea ver se ella o salvava de... si proprio, o maior inimigo que tinha, costumava

dizer. O seu temperamento de polemista buscou no recontro com Amorim Vianna

um estimulo novo. D'ahi a polemica, e os propositos de combatente audaz, confi-

deliciados a Q. de Barros.

Foi admittido a tonsura e aos 4 graus das Ordens menores por despacho

de 13 de Março de 1852 (').

Taes são em resumo os factos que industriam os commentadores, ácerca

das hesitações dos primeiros passos da sua vida publica. Raros amigos, desdens,

ataques dos confrades de categoria, como dos outros —dos menores, a Fé (?) a po-breza, por fim a descrença - eis tudo o que serve a gryphar a sua vida de Artista,

ennnaranhada nas torturas d'uma sensibilidade doente.

O debate a que allude a carta d'esta secção foi pois o preparode maiores luctas. Os aggravos d'esta quadra, feitos por A. Vianna, Lopes de Meu-

donça, Silva Tullio e tantos outros, vingou-os mais tarde.

Que enorme foi o capital de malquerença que se deu a liquidar!

Seja como fôr é assente que liquidou tudo. Exorbitou descendo até aos in-

fimos que o atacavam, febricitantes de reclame?

Claramente. Não lhe padecia o animo o menoscabo, ainda por parte dos

inferiores. Questão de temperamanto.

Poderá considerar-se modelo nas justas litterarias? Deverá tomar-se como

exemplo no que entende com os recursos desdobrados ao pretexto das suas lidas-em recontros que ficaram memoráveis? Entendo que não, mau grado os sue-

cessos que obteve ao lidar novilhos lettrados-segundo os corredores da sua terra— á vara larga.

Quem tem coragem de affirmar Philosophia ou Arte contra-corrente, rara-

mente deve distrahir-se com as impertinencias dos que discutem por espirito de

sectarismo ou futileza.

Basta uma pagina por c^Angrosa de taes críticos, para lhes inculcar a humildade.

Acceitemos, 110 entretanto, Camillo tal como foi. E perdoemos á fraquezada sua grande sensibilidade o ter vindo tanta vez a publico bater-se com . ..

sombras.

(!) Romance do Romancista por A. Pimentel, Autobiographia de Camillo por Tavares Proença,Obras completas de Camillo, Noticias da sua Vida e Obras por Vieira de Castro, etc.

Deito as sementes á terra,

á terra que me dá pão,

á terra por mim tratada

e com lagrimas regada,

terra do meu coração!

E as sementes, ao calor

do seio da terra mãe,

rebentam no ramo em flor,

tudo nella se dá bem,

a terra do meu amor!

E as flores, se o outono veio,

ao calor daquele seio

transformaram-se nos frutos,

e a terra, com seus produtos,

dá-me a graça do seu pão.

E, em paga da minha dor,

toda a terra está em flor,

a minha alma está em flor,

a terra do meu amor,

terra do meu coração!

o o

o

0

Já o Inverno trouxe o frio agreste

e a terra toda as suas brumas veste.

Já na lareira o lume canta e brilha,

o lume, a linda e clara maravilha!

O frio, a chuva, o vento e a geada

fazem a terra triste e abandonada.

E sentadas ao pé do lume brando,

as brancas Avózinhas vão sonhando...

Já os meninos dormem descansados,

nas suas camas, muito bem dèitados...

E pensam nelles as Avós, ouvindo

a chama de oiro refulgindo e rindo!

E o vento ruge e muge, em redemoinhos!

Ai dos pobres sem lume, coitadinhos,

sem a lareira aonde canta e brilha

o lume, a linda e clara maravilha!...

(Do livro no prelo Canto Infantil, com musicade Thomas Borba e ornamentações de RaulLino).

o

MATER DOLOROSA

A Manuel Teixeira d'Assis

arrapo de Dôr humana eu te amo e te venero!

Ternuras ignoradas me sobem ao coração, lagrimas de

angustia me escondem a vista! Amo-te profundamente,minha irmã de sofrimento, desgraçada companheira neste

mundo cruel e louco. E nas lagrimas da minha simpatia vive, glo-rificada e enaltecida, a tua desgraça.

Mãe dolorosa, eu te vi no limiar da casa, dobrada e misera,

estender as mãos convulsas ao filho morto. Ele ia para a fria Terra,

gelada de inverno e gelada de carinhos. E tu, imagem da amargura,

na candida inocência dos teus desejos, com o lenço branco das

despedidas lhe enviavas o teu adeus.

O adeus da ultima despedida!

Pobre mulher abandonada no Mundo! Vives a amar e a sofrer;

trazes, de encontro a ti, uma creança que te dá o amôr e a força

do trabalho, e essa creança é-te roubada pela Morte. E tu curvas-te

ao peso do teu infortúnio. Em torno de ti tudo é escuridão, e,

nas trevas da tua vida, somente sabias o amôr nos olhos do teu

filho, somente conhecias a felicidade nos brancos sorrisos da sua

boca. Sofres, curvas-te; e talvez, dobrada ainda de pavor e miséria,

supliques ao tirano a esmola dum metro cúbico de ceu.

Como é grande a tua Dôr, minha irmã, c que terrível acusa-

ção ela encerra! Se eu fosse Deus, ter-me-hia suicidado ao reparar

no teu sofrimento. Mas ele é impassível, e a estas horas já foi,

como bom caixeiro, descarregar o teu filho no numero dos catolicos.

E a chuva impiedosa a alagar a cama do teu filhinho! Ele

gostava tanto, nestes tristes dias de inverno, de adormecer ao lume,

deitado no teu colo!

E agora a maldita chuva a penetrar-lhe o corpo, a enxarcar-

lhe os ossos!

Vai ficar só esta noite.

E' a primeira noite que fica só! E tu, em pesadelos, hasde

abraçar o espaço e encontrar sempre um gelo arrepiante e fantas-

tico. Dormir só, coitadinho!

Hasde pensar em correr ao cemiterio a cobri-lo e beija-lo, mas

o Terror te liade prender.

Hasde pensar que não é verdade, que estás a imaginar; mas

o gelo fantastico te falará d'ele, do seu abandono. Hasde pensar

que Deus o levou para o ceu, mas a saudade te segredará tam

belas coisas da terra que bem sintas a boca a estremecer em beijos,

os braços frementes de abraços, e lábios e braços a apertarem a

solidão.

A ÁGUIA 77

Terás visões. E, toda verdadeira, se liade erguer esta visão.

Um Mundo todo de sombra. A sombra começa a crescer, a

crescer muito, a aparecer em pedras de sombra. Entre os penhascosde sombra aparecem claridades tenues. Verás uma, submergida na

Sombra, a agarrar-se aos penhascos. Quer falar (e pela divina forma

dos lábios irá dizer — Mãe), calhaus de sombra lhe entram pelaboca. Estende os braços... Ha uma vertigem de claridade... e tudo

caiu n'uma lama sombria e espectral.

E então nas tuas entranhas se irá formando uma bola de dôr

que, sempre crescendo, te estancará as lagrimas, te porá o enforca-

mento na garganta.

Todo o teu pensamento será suspenso, e, deante dos olhos, te

hade aparecer o caixão com o morto muito branco e triste, d'aquela

tristesa de vencido, de espatifado pela doença.

Nada pensarás, nada sentirás.

Pouco a pouco a Dôr volta e de novo abres uns olhos de

assombro e medo.

A minha alma te acompanha nessa inolvidavel noite.

Noite tempestuosa e ululante, toda a fúria dos elementos fus-tiga o leito do teu pobre filho. Na tristeza do teu abandono o Ven-to te vem dizer falas estranhas. Traz na sua voz clamores de angus-tia, ecos de desespero, gemidos de aflição. Varreu sepulturas, através-sou o corpo esburacado de mil prisões, roçou por mil faces sul-cadas de miséria, e traz, na sua voz, a fala de tanto sofrimento. Nomeio desse côro, uma nota plangente e mortiça se destaca aos teusouvidos. E a sua voz no côro da Aflição, é a sua martirisada voz

que te chama. O teu doloroso corpo, abalado de soluços, dobra-secada vez mais e sofre.

Ouves a sua martirisada voz das ultimas horas.

Vêz a sua débil figura de moribundo, olhando-te com aquelesolhos de insuportável augustia. Olhos que pedem soccorro, e que o

pedem a ti, que és Mãe e nada podes fazer.

Hora suprema de desespero aquela em que num ultimo arranco

de agonia ele trepou pelo teu colo fora gritando "Mãesinha

doi

muito, tira...,, Tu disseste "piedade,

meu Deus!» e Deus não foi

piedoso.

Começas a olhar com tanta seriedade a Vida que, se d'ela haalguém responsável, deve sentir assomos de remorso. Perguntas.

— "Que mal fiz eu em amar muito o meu filhinho? Quem

pode medir o amôr de uma Mãe. Todos os momentos se passamem cuidados e meiguices, toda a vida de uma Mãe é devoção

pela felicidade do filho.

Nasceu, logo sentimos que o mundo é outro, que adquiriuum inestimável valôr. Começa os primeiros movimentos com oferen-das de sorrisos; todo ele é confiança. Os seus primeiros passos samsolenes momentos para o amôr de uma Mãe. Ele vai caminhar embreve. Caminhar para onde?

Para a gloria, para o amôr, para o bem. A isso se compro-

78 A ÁGUIA

meteu deante dos beijos maternos. Começa a falar e como é lindo

o seu conversar curioso e irrequieto!

Ah! o meu filho era 'muito

meu amigo. Tam meiguinho!

Eu havia de faze-lo um operário honrado que fosse a benção e a

alegria da minha velhice»...

O teu corpo, carne de trabalho, começa a erguer-se em re-

volta, e ouço-te estas palavras' tremendas.— "O

meu filho é meu. Gerado com a minha dor, amamen-

tado com o meu leite, criado com a minha dedicação, abriguei-o

no calôr do meu seio, ele cresceu em sorrisos e em promessas paramim. E' meu o meu filho. Deus, meu Deus, para que me roubaste

o meu querido filho?...,,

E, no silencio da imensa natureza, nada responde nem ás tuas

súplicas cheias de humildade, nem ás tuas acusações cheias de

justiça.

Minha irmã no calvario desta vida, o meu coração te ouviu

e as minhas lagrimas te responderam.

Como o Mundo é silencioso e opaco!

Se ao menos assim não fossem os homens!

Lixa, 26 de Fevereiro, 1912.

X r-j f

ESCERTO

Do "Livro de Job,,, a sair breve da Livraria

Chardron. Tradução ein verso cora um

estudo sobre o poema por Bazilio Teles.

O livro de Job foi composto em hebraico por um judeu desconhecido,

entre princípios do século VI11 e fins do século VII antes da era chiistã. O ori-

ginal e as cópias que, porventura, d'elle se tivessem tirado n essa epocha devem

considerar-se definitivamente perdidos para nós. O único texto que possuímos,

cuja autenticidade, portanto, não é possível estabelecer pelo processo tradiccional

cio confronto de manuscriptos similares, é o denominado massoretico. Sobie esse

texto único se fizeram as duas traducções classicas, a dos Setenta, do canon grego,

e a da Vulgata, do canon latino; sobre elle têm incidido as investigações dos

exegetas e dos críticos modernos, a começar nas de Spinoza.

(Cap. XXIX da Vg.)

Job continuou ainda a sua parabola e disse: (l)

Oh! quem me tornará tal qual eu era outr'ora,

Nos dias em que Deus me tinha em protecção,

Sobre a cabeça me luzia a sua lâmpada

Com seu fulgor varrendo a treva ante os meus passos;

Tal como eu era nos meus dias outomnaes, (~)

Quando a affeição de Deus na tenda me adejava,

Quando commigo estava ainda o Omnipotente,

E eu, rodeado por meus filhos;

Quando eu lavava os pés em nata,

Me vinha a rocha a borbulhar caudaes d azeite,

Quando eu sahia até á Porta da cidade,

E o meu logar na praça publica assumia. ()

Ao verem-me, escondiam-se mancebos,

Velhos erguiam-se, e de pé ficavam,

(>) job esquece os seus amigos e acaba, como tinha começado, por uraa lamentação sobre.as

suas desventuras.

S íst,° í' da mi"ha edadm,?

mlwico beduino que habita o campo e que se dirige de temposH Job figura sempre como um ri .rf -

Recordemos ainda que a porta representa-a tempos a cidade, onde gozava duma g™Kle cons e

latinas Ahi havia uma larga pra-va, nas cidades do Oriente, a agora e ° for""l.Af

assemblefa ponuiar, de tribunal. Estevam 11'ella dis-ça que servia a um tempo de mercado, de local da assemoieia lJl.

postos bancos em que os anciãos se sentavam paia juiga .

80 A AOUIA

Os grandes davam tréguas aos collóquios,Punham a mão na bôcca;

Emmudecia a voz dos chefes,Ficava-lhes a lingua presa ao páiato;

Chamava-me ditoso o ouvido que me ouvia,Proclamavam-me a glória os olhos que me viam.

Ia em soccorro ao triste que soltava gritos,E ao orphão que não tinha alguém que o ajudasse.

Era quem recebia as bênçãos do que morre,

E o coração da viúva enchia de conforto.

Andava, como em roupa, envolto em innocência,

Tinha a minha justiça por frontal (') e manto.

Era os olhos do cegoE os pés do côxo.

Eu era o pai dos pobres,Estudava com zelo a causa do incógnito.

Ao injusto quebrava-lhe a maxilla,E a preza d'entre os dentes lhe arrancava.

E dizia commigo: "Morro no meu ninho, (2)Hei de chegar a dias, corno a areia, bastos.

Está minha raiz á beira d'água,O orvalho passa a noite nos meus ramos.

Ha de me ir sempre a glória reflorindo,Meu arco, (:i) em minha mão, reverdecendo.,,

Ouvia-me a assistência, e o voto m'esperava,Mantinha-se calada até que eu decidisse.

Depois de eu concluir, ninguém dizia nada;Os meus discursos docemente a humedeciam.

Suspirava por mim como por chuva,Como para aguaceiro abria a bôcca.

Quando ficavam descontentes, eu sorria-lhes;Recolhiam com áncia os raios do meu rosto.

Gostava de os ir vêr, tomando o logar d'honra,Campeando como um rei cercado por seus guardas,Como um consolador por entre os afflitivos.

(') Nao e faci 1 identificar esta peça de Vestuário. Renan traduz: tiara.(-) Isto é, na minha casa prospera e 110 seio cia minha família.(3) O arco é tomado aqui pelo symbolo da força.

A ÁGUIA 8!

(Cap. XXX da Vg.)

E agora sou ludibrio de novatos,

A cujos pais não me dignei

Pôr entre os cães do meu rebanho.

De que me serviria gente débil, (')

Que jamais conheceu maturidade,

Emaciada por miséria e fome

Coagida a retouçar n'essas charnecas,

Nas terras que a cultura abandonou,

Colhendo as folhas tenras dos arbustos, (2)Nas raízes da giesta achando o pão?

Do meio dos homens a escorraçam,

Como atraz de ladrão, se grita ao vêl-a;

Em ravinas selváticas se acouta,

Nas cavernas da terra, entre penhascos;

Por entre as moitas ouvem-n'a zurrar,

Congrega-se, em montões, sob os sarçaes;

Filha d'anónymos, oriunda d'insensatos,

Da terra onde se mora expulsa a chicotadas!

E agora sirvo d'alvo ás suas trovas,

De seus mordazes ditos sou assumpto.

Passa longe de mim horrorisada,

Não evita ao meu rosto o seu escarro.

E' que Elle á vida a corda me soltou, (!)

Distendeu freio ás minhas desventuras.

Irrompe á minha dextra (4) infinda turba,

Move ligeiro os pés p'ra me investir,

Aplana contra mim sendas funestas. (•')

O caminho da vida me destroe,

Trabalha, de concerto, em me arruinar;

E não ha quem lhe ponha entrave algum. (")

í1) lob, em tudo o que segue, affecta aparentar os pais dos seus contradictores_ com estas raçasinferiores e selvagens, especie de ciganos cujos derradeiros sobreviventes morriam de fome nas regiõesÜmitrophes da Palestina; gente miserável e destituída de vigor physico, e de que todos desdenhavamservir-se mesmo para os mais humildes trabalhos. „ , _ O„„rt,.oc

(2) Isto é, reduzida a tal grau de miséria que vai tirar o sustento aos ramos tenros das arvores,comendo-os á guisa de salada. (O arbusto a que se refere o vers. e objecto de larga discussão.)

(3) Isto é, Deus. A interpretação dos vers. 11 a 13 e muito discutida. ,< Isto é levanta-se pata me accusar. Nos processos, o accusador mantinha-se ai direta do

aceusado. (Por turba entende-se aqui a massa dos flagellos e terrores lançada por Deus sobre Job. Anota de Renan é compatível com este sentido.)

(5) Elle compara-se a uma praça cercada.(6) Talvez que o texto aqui esteja perturbado.

82 A ÁGUIA

Como por larga brecha, ella s'engolfa,Por entre os meus escombros tripudia.

Assediaram-me os terrores;

Como em rajada, se me foi prerogativa,Minha ventura, como nuvem, perpassou.

E agora em queixas se desfaz minh'alma.

Os dias do infortúnio m'empolgaram.

Vara-me a noite os ossos, e os arranca;

O mal que me corroe, não adormece.

A dôr desfigurou-me;'Stá-me

apertando como a minha túnica.

A' vasa me arrojou o Omnipotente,

Com a poeira e a cinza me confundo.

Brado por ti, ó Deus, e não me attendes;

Em pé na tua frente, olhas-me frio.

Meu inimigo duro te fizeste,

Tua mão cruelmente me fustiga.

Sobre as azas do vento nVelevaste,Ao sôpro da tormenta, demoliste.

Pois sei bem que me estás levando á morte,Ao logar onde os vivos vão junctar-se.

Súpplicas vãs!... Estende a sua mão; (')Que lucro em protestar contra os seus golpes?

Que me fez ter chorado o desditoso,E do pobre me haver compadecido?

Esperei a ventura, e tive a desventura;Contava com a luz, e trevas me surgiram.

Refervem-me as entranhas sem repouso,

Vieram-me em cima os dias da desgraça.

Anda todo crestado, não porém do sol,Na presença do povo levanto-me e grito.

Sou irmão de chacaes;

Das filhas da avestruz (s) o parceiro me fiz.

Tenho a pelle tisnada, a cahir em farrapos,Os ossos calcinados por fogo de dentro.

Tornou-se-me a guitarra (:i) instrumento de luto,Na frauta só modulo toada plangente.

(!) Versículo talvez alterado; a sua interpretação é contestada.(-) Isto é, similhante aos animaes que soltam um grito plangente.(3) A mesma observação que pag. 75, nota 1.

]¦ V-:* 'xV.

A AGUIA 83

O problema que, por alto e desordenadamente, esbocei n'esse extracto d'um

estudo a completar em occasião de mais tranquillidade, formulou-o com vigorosa

eloquencia, ha vinte e seis ou vinte e sete séculos, o poeta do livro de Job. Quemseria o genial desconhecido?

A' similhança de todas as grandes creações poéticas, a obra é, na sua im-

personalidade de superfície, essencialmente pessoal; e o auctor, uma dessas raras

organisações artísticas, synthese e resumo em alto relêvo da sua raça ou da sua

epocha um Eschylo, um Dante, um Shakespeare que inventam o symbolo ade-

quado e acham a expressão definitiva para estados d'alma, generalisados e maldefinidos, dos seus nacionaes e contemporâneos, quando não mestno d'outroshomens, extranhos á sua nação e ao seu tempo.

Na pureza do seu ideal de moralidade, 110 seu horror pela astrolatria,"crime capital,, conforme elle proprio a qualifica, era um judeu authentico, domelhor sangue, liberto ainda, felizmente, do estreito fanatismo jehovista, vicio eforça d'esse povo singular. Era-o também, segundo a lenda, na resignação e apegoá vida com que acceita a adversidade; segundo o poema, na impossibilidadede pôr em duvida o valor do seu conceito do divino, na sua paixão ardente

pela disputa, na energia indomável com que se obstina em defender o "seu di-reito,,.

Por mais de uma sabia reminiscencia das cosmogonias babylonicas, afflo-rando, de onde a onde, por entre os logares communs da theologia das parabo-Ias, pelas freqüentes allusões ou referencias claras a doutrinas e tradições em vogana Palestina e na Idumêa, conclue-se que possuía toda a cultura do tempo e domeio geographico em que nasceu e residiu. Mas na simplicidade do culto, 11a

independencia do juizo (comquanto dentro dos limites da sua concepção transcen-

dental), no arrojo com que interpella a divindade, 11'uma como subterranea revolta

com que repelle a injustiça do infortúnio, 11a paizagem severa em que o drama

decorre e no quadro naturalista que o remata, adoravel de ingenuidade e pitto-resco, revela-se o antigo nômada, de corpo robusto e d'alma livre, reçuma a nos-talgia do deserto, illimitado e seductor, reponta a aguda saudade do vagabundearsadio entre as duas solemnidades nocturnas, a do ermo silencioso, e a do firma-mento constellado.

O seu deus reveste, de quando em quando, uma phisionomia moral proe-minente, ás vezes quasi exclusiva; uma subtil metaphysica irrompe em gennen(Cap. XXVI11), espiritualisando as feições accentuadamente anthropormophicas doseu déspota celeste, genuino patriarcha semita; n'um dos mais notáveis dísticosagradavel surpreza para um moderno! um súbito clarão de positividade, umaintuição brusca da realidade objectiva, perpassa (a não ser o echo d'uma hypothesechaldaica) cotno luminosa antecipação do espirito hellenico. Todavia, os traços,múltiplos e grosseiros, d'um velho ancestro nômada 110 personagem que passeia,despreoccupado, 110 circuito do empyreo>, ou faz desabar sobre a terra a suacólera, são ainda muito frescos e vivos; não morreu de todo no espaço ethereo ocanto melodioso das estrellas da manhã ; os vagos elohim, que a tribu outr'oraadivinhara no seu peregrinar pelas solidões, circulam ainda nos flancos e emtorno á corôa dos outeiros, segredam junto ás nascentes das fontes entre os ramos

dos arbustos, deslisam no ar tranquillo da tarde 011 remoinham nas espiraes da

tormenta.

Na minha opinião, é um semi-barbaro, impregnado fortemente dos acres

aromas da steppe, rescendendo um tanto a suaves perfumes da cidade. Civilisado

no espirito, é no coração um primitivo, que, surgindo 110 limiar de duas epochas,

oscilla, deslumbrado e confuso, entre a defeza d'um passado que se extingue e a

acceitação d'um futuro que alvorece. E' um pensador conturbado e indeciso quea má sorte arranca ao horizonte claro da charneca, para onde os seus instinctos

incessantemente o reconduzem, e condemna, entre dois crepusculos historicos, a

carpir-se e a meditar. É, n'uma palavra, um beduino eminente que adopta e apre-

cia a vida sedentaria; sempre, no entanto, um beduino.

Vem-lhe talvez d'ahi o gôsto pelas viagens. Porque é irrefragavel, apezar do

voto contrario dalguns, que o nosso poeta viajou. Não obstante as reminiscencias

a que fiz atraz allusão, pode affirmar-se que nunca esteve na Chaldêa. Mas e quandomesmo se recuse authenticidade ás descripções de Leviathan e Behemoth, tenho porcerto que visitou o baixo Nilo, onde, com as velas infunadas, viu singrar as "bar-

84 A ÁGUIA

cas de junco,,; e, visto conhecer o mar, os trabalhos dos mineiros e os canaes

que o homem "rompeu na penedia», é positivos que percorreu, senão a Phenica,

ó vasto tracto de paiz que vae da Arabia deserta ao Sinai e ao Mar Vermelho.

Não é improvável pois, conforme a sagaz conjectura de Renan, embora outros

commentadores a não partilhem, que estanciasse por largo tempo em Theman, e

n'este centro famoso da sabedoria parabólica compozesse o seu poema.

Levaram-n'o a emprehender estas largas, e então perigosas excursões a curió-

sidade da sua intelligencia, anciosa d'impressões inéditas e de novas perspectivas,

e o temperamento ambulatório na apparencia adormecido e que um incidente qual-

quer despertou, do ben-israelita ancestral.

Não lh'as imporiam também occupações mercantis? A hypothese seria, actual-

mente, uma injuria e um disparate. Anthero do Quental, por ex., um mercador —

que desconchavo irrespeitoso! Então, porém, não seria d'extranhar: o commercio

nada tinha de repugnante á distincção pessoal nem á cultura d'espirito. No pro-

prio poema se lê que a opinião d'esses homens e não se viajava, era regra, se-

não por motivo de negocios ácêrca dos acontecimentos e costumes sociaes era

ouvida sempre com respeito e soffreguidão.

Não estou longe de crêr que os commerciantes, forçados a deslocamentos

longínquos, com freqüência e com demora, por uma organisação economica rudi-

mentar e por falta de bons meios de transporte, se devam contar entre os homens

mais instruídos do seu tempo. Não favorecem muito a supposição as virtudes que o

auctor se confere na sua autobiograhia, a que melhor se chamaria confissão- é in-

contestável. Mas as riquezas de que se diz possuidor, nem todas pertencentes á ca-

thegoria de bens rústicos, afora conhecimento dos metaes e das pedras preciosas,

difficilmente se concebe que não fossem adquiridas 110 commercio, como não é,

tampouco, fácil de perceber que os segundos fossem integralmente subvertidos na

catastrophe descripta na lenda, que o prefacio reproduz e mutila.

Como quer que seja, o nosso poeta era rico. A pobreza, a não ser leva

d'emigrantes e captivos ou pessoal de guerra e de transportes, não viajou em tem-

po algum; nem as suas virtudes e desgraças, por dramaticas e meritorias, se pres-

taram jámais á contextura de creações que provoquem, descorridos mais de mil

annos, o exame profundo dos exegetas e a admiração dos entendidos na grande

Arte. Uma catastrophe qualquer, material ou moral, desfechando sobre um pobre

é apenas uma batega a mais 110 chover torrencial da invernia; é trivialidade que,

por ausência de contraste, não surprehende nem commove. Uma fortuna inespera-

da, sim, era surpreza e commoção. Mas onde se viu a felicidade prestar-se a en-

trecho d'um poema? Quando é que um homem feliz se guindou a heroe d'uma

obra-prima? A fortuna goza-se; não se pinta nem se canta.

Era rico, certamente; e no caracter, o que o grande orientalista, Mestre de

quantos a velha litteratura dá prazer, denomina 11111 "gentilliomem,,. Não era um

nobre, um aristocrata á europeia- importa bem accentuar. Faltam-lhe o tempera-

mento e o gosto militares; faltam-lhe a aptidão e a necessidade conseqüente do

commando; faltam-lhe o desprezo soberano da vida, o amor temerário e volu-

ptuoso do perigo, o innato desdem do soffrimento. Um aristocrata europeu seria

incapaz de se carpir, e em caso algum, de se humilhar. Desforça-se podendo; ru-

mina calado a sua dôr, se não ha meio de a evitar. Não lia crença divina, nem

conceito de moral que o obriguem ao que julga ser derogação á coragem e alti-

vez da sua casta. Quando mesmo a sua fé religiosa tivesse alguma dia que, na

minha opinião, nunca teve a tenacidade e a energia que n'iim semita, em parti-

cular, se observa, jámais a sua alma inteiriça se resolveria a curvar-se deante d'uma

tyrannia gratuita; e a sua intelligencia espontanea, a dobrar-se perante um absurdo

flagrante. Se tem que as agüentar, ironisa ou enraivece: submetter-se, contricto, é

que nunca! Deus para elle é o primeiro, o mais eminente, o mais poderoso dos

nobres; mas é, no fim de coutas, seu par. E se, em vez de par, é um déspota, se

d'elle esta convicção se apodera adeus crença! Antes réprobo do que vil. Não fo-

ram raros os blasphemadores e os irreverentes entre os aristocratas da Europa; nem

o foram os atheus, entre os seus membros illustrados.

Era, pois, um "gentilliomem,,, em linguagem portugueza, um cavalheiro, co-

1110 também o é o seu heroe: verídico, leal, integro, casto, equitativo, generoso,

hospitaleiro, affavel, corajoso: n'um palavra, um chefe de família, um amo e um

cidadão exemplares. Se não fosse o desprezo que, sem rebuço, transparece n'uma

A ÁQUIA 85

replica aos amigos, e o orgulho que não esconde na apologia, repassado de funda

saudade, do "outomno dos seus dias,,- único traço, fugitivo mas seguro, em quea nobreza do typo se mostra seria, em todo o rigor da expressão, um democrata.

A sua nacionalidade inconfundível até n'este sentimento, com extraordinaria

vehemencia affirmado em mais d'uma passagem do poema, poderosamente sobre-

salie; porque o judeu foi, e continua sendo, a nação mais democratica que se

conhece na Historia,— a mais alheia, a mais fechada porisso, aos instinctos e aoideal de nobreza.

O infortúnio, cahindo sobre elle de improviso, transforma n'um justo, resi-

gnado e submisso conforme o relato da lenda, argumentador e revoltado segundoo texto do poema, o antigo gentilhomem. A desgraça levanta-lhe e depura-lheainda o caracter d'eleição, aprofunda-lhe e aviva-lhe mais a intelligencia perspicaz.Com elle o drama empolgante começa; e no seu desenrolar apparecem a toda aluz as qualidades e os defeitos do semita; as lacunas e os plenos da sua estructuramental avultam, n'uma fulguração intensa de magica, ao nosso olhar embevecido.

Não é fabulação, artificio de factura, a catastrophe que lhe sobrevem, acerta altura da existencia. Sêl-o-ha nos termos precisos da lenda, que já dissemoster sido reproduzida e truncada no prefacio; mas sobrevem-lhe na realidade, mui-to provavelmente, de chofre e n'um conjuncto de revezes, suggerindo-lhe a evo-cação d'essa historia edificante, e a idéia d'enxertar n'ella a sua própria. Porque—não será inútil a insistência—o poema é indiscutivelmente pessoal, uma auto-biographia preciosa, um registo fiel d'occorrencias que se deram com o auctor,uma pagina de Memórias, sentida e vivida com um vigor e uma verdade poucasvezes igualados.

Só o "Inferno,, do Dante, o "Hamlet,, do Shakespeare, alguns quadrosavulsos de Dostoiewsky, foram assim tão intensa, tão febrilmente vividos nas almas

d'esses tres "monstros,, de gênio, representam, assim, pedaços do coração arranca-

dos do peito, ensangüentados e frementes. Ha expressões que o mais espontâneoe opulento estylista" nunca seria capaz de tirar da sua facundia litteraria, observa-

ções psychologicas que nenhum homem extranho á dôr seria susceptível jámaisde fazer; e nem umas nem outras escasseiam nos discursos do heroe.

Brotariam, desabafo irresistível, 110 decorrer da crise torturante? Seriamescriptos mais tarde, quando o apaziguamento vem acalmar a agitação, ou quandoa alma se habitua, embotando-se, á continuidade do soffrimento? A violência e a

desordem, que não parece intencional, d'algumas phrases e d'alguns episodioscaracterísticos tornam a primeira hypofhese verosimil, ao menos para esses episo-

dios e phrases; a arte perfeita, no sentir das melhores auctoridades 110 assumpto,

que domina a obra inteira, a ironia com que Job abre mais que uma resposta

aos seus contradictores, varias diggressões e raciocínios demandando reflexão e

uma serenidade relativa, induzem-nos a suppor provável a segunda. Para um cri-

tico europeu contemporâneo poucas tarefas haverá mais espinhosas do que deter-

minar, para uma organisação mental tão discordante da sua, o estado interior mais

favoravel á concepção e execução d'uma obra artística. O europeu, sempre um

reflexivo e um cerebral, embora a paixão violentamente o sacuda, comprehende

mal esse temperamento, arrebatado, intuitivo, 011 melhor, explosivo que nos dous

ramos semitas familiares á cultura Occidental, particularmente no judeu, contunde

brutalmente a nossa lógica, ignora de todo o nosso methodo, desdenha a nossa

exigencia de harmonia e o nosso senso fundamental das proporções.Até 11a loucura um cerebro Occidental é coherente, e introduz rythmo se

é poeta'; e até 110 seu estado normal d'equilibrio, um cerebro semita, judaico ao

menos, se nos afigura alienado.

Além d'isso, ninguém sabe, mesmo no reinado d'Ezechias, em que tanto se

escreveu na Palestina, qual a technica de composição litteraria, usada pelos escri-

ptores que collaboraram 11a vasta compilação do "Velho Testamento,,. Que foram,

na generalidade, editores pouco attentos e hábeis, além de medíocres artistas

prova-o á saciedade a cerzidura deficiente e grosseira que liga, ou antes, deixa

soltos e a descoberto os materiaes, v. g., do Hexateuco; mas os seus hábitos cor-

rentes de trabalhar é que de todo se ignora. Ora, e dentro do especial conceito

esthetico da raça, o nosso genial anonymo é uni artista consummado, na disposi-

ção e na linguagem das estrophes, é uma organisação finamente litteraria, em

extremo sensível á sonoridade dos rithmos e meticulosa na pureza do hebraico, e

86 A ÁGUIA

assim, quando nos fossem conhecidos, os modos usuaes de composição adoplados

por illustres contemporâneos d'esse rei, por um Isaias sobretudo, pouco ou nada

illucidariam a questão que formulamos acima.

Se a tensão passional, da mesma ordem é claro, correspondesse a estados

psychologicos idênticos, ou entretanto similares, n'um europeu e n'um seinita, as

biographias d'alguns dos nossos torturados, d'uin Byron, d'um Musset, d'um Leo-

pardi, d'inspiração impetuosa e doentia, permittiriam talvez resolvêl-a. Sendo po-rém, penso eu, demasiado incompleta e remota a analogia, temos fatalmente quenos confinar em conjecturas, E a que se accommoda menos mal ás indicações

dadas acima em resumo é que o livro de Job não representa a realisação progres-siva e lenta d/um plano antecipado, nem, tampouco, emergiu d'um jacto d'inspi-

ração ininterrupto, logo a seguir condensado n'uma serie de discursos rythmicos.

Os mais eloqüentes, os de Job, em que, pelo seu notável poder de contagio, a

emoção accusa manancial inconsciente e incoercivei, é de presumir que fossem

improvisados em momentos d'exaltaçâo, intermittente e intolerável, por ordem

diversa da que vieram a receber na obra escripta. E' ainda provável que não

constituíssem todos, 011 intregralménte 110 emtanto, diálogos com pessoas quaes-

quer, no sentido litterario d'essa palavra, mas umas vezes monologos, outras vezes

réplicas subjectivas a objecções de sentimentos e de crenças enraizados no coração

do poeta; que fossem, primitivamente, ora desabafos lyricos, ora debates contradi-

ctorios entre as opiniões acceites antes sem esforço e as duvidas que a sombria

novidade da situação presente lhe.suggere. Os arrazoados dos tres amigos são

muito provavelmente, 11a sua maioria, coordenação posterior, raciocinada e tran-

quilla, d'essas velhas opiniões que partilhava, e que a desdita o forçou a debater

comsigo e com terceiras pessoas, ligados por hábeis dísticos aos trechos que da

inspiração primitiva resaltaram, palpitantes de calor e de belleza.

Não quiz acima affirmar, portanto, que as tres figuras sejam mera ficção,

puro artificio de factura, destinado a symbolisar escolas philosophicas, a expôr

doutrinas que houve intenção de combater. Estou convencido, ao contrario, de

que o grande Incognico esgrimiu, 11a realidade, com adversarios das suas idéias

pessoaes, de que teve de aturar, em carne e osso, "consoladores impertinentes,,,

que a sua delicadeza nativa e um legitimo impulso de represalia justiceira o fize-

ram dissimular sob os nomes dos tres peregrinos do prefacio.Não é este um dos aspectos menos interessantes, uma das menores quali-

dades por que nos empolga e seduz a larga humanidade do poema. Não julgo

que se possa aqui tergiversar: os tres visitantes indiscretos existiram, os tres idu-

meus curiosos viveram, os tres forasteiros carpidores attribularam, com as suas

admoestações e saber intempestivos, a alma do amigo, que uma atroz desventura

lanceia, a perversidade e a estupidez injuriam, e a parentela mesma desampara.

Eliphaz de Theman, o pedante e o hypocrita, em cuja mascara austera se vislum-

bra um contentamento maligno; Bildad de Suah, o sectário estreito e descaroavel,

saltando sobre o corpo da victima no investir pela única estrada que lhe ensina-

ram a bater; Sophar de Naama, noviço obtuso e subalterno, eclio subserviente e

monotono das objurgatorias dos primeiros são tres figuras conhecidas, são tres

rostos familiares da sociedade do poeta. Talvez relações antigas, se o nosso ano-

nymo esteve em Theman, mas certamente relações d'intimidade. Por esta razão, é

bem possível que os tres arabes da lenda não tivessem intervindo, litteralmente,

nas parlendas importunas e 11a retaliação mesquinha e cruel que o illustre desço-

nhecido lhes attribue. Mas que, á pintura traçada em esboço, os tres extrangeiros

tivessem fornecido o modêlo, 011 suggerido, em todo o caso, ao poeta a interven

ção de conterrâneos seus, trivial na vida humana nas suas horas afflictivas, e des-

sem, porisso, ao poema a sua trama, além de um complemento indispensável, e

um episodio felicíssimo ao quadro severo e grandioso onde se contorce e protestaa desventura parece-me extremamente verosimil. Uma calamidade d'origem só

impessoal, terrifica embora, não seria completa, porque raramente se produz, nem

bastante expressiva para a envergadura excepcional do heroe; faltava-lhe a crueza

fria dos tres verdugos encartados, o tripudio jubiloso da cobardia e da inveja, a

desillusão suprema do repudio de parentes e d'amigos. Agora, sim, é que a amar-

gura attinge o máximo. Abandonado por Deus, escarnecido pelos homens: agora,

sim, dedilha o poeta "a lyra toda,,, e não deixa outra alternativa ao Prometheu

semita que não seja negar o "seu direito,,, 011 negar Deus. E comtudo, remate

A ÁGUIA 87

fruste, desfecho inesperado: não ha reconciliação possível entre ambos, e Deus eJob reconciliam-se!...

Alguns retoques é de presumir que viessem ulteriormente augmentar aperfeição d'um livro que, para o nosso gosto e as- nossas preferencias iutellectuaes,só encontra parallelos, em toda a litteratura biblica, no "Ecelesiastes,,

e no "Can-

tico dos cânticos,, Do "Hamlet,,, culminante creação de Shakespeare, sabemos nósque foi por elle retocado e revisto mais tarde; é impossível que o mesmo carinhopaternal e a mesma certeza intima de se haver procreado uma obra immorredoira'não tivessem expurgado o "Job„, depois de concluído, dos pequemos senões inse-paraveis da inspiração mais fecunda e da mais correntia execução. Os que inacu-lani o texto massòreticò, graves alguns) devem, pois, considerar-se extrahhos aoauctor; são deturpações ou emendas que o zêlo sectário ou a inciinVde copiaintroduziram, são precedente longínquo dos risonhos disparates com que o pe-dantismo d'um Ben Jonson se propõe corrigir o. texto do "Hamlet,,.

Faz alto dia a grande Lua cheia;

Somos ambos, sós de alma, no casal;

E volúpia de neve, a Lua ateia

As casas velhas com demãos de cal.

Postigos com luz baça de candeia,

Lábios mortos da noite sensual...

Em lúbricas de sono, pela aldeia,

A Lua ronda- sobrenatural.

Scismam as casas pobres ao Luar:

Beiraés de Humildes ria maior desgraça

Com seu lindo ar de vida ao abandono.

— Silencio de almas!... E, 110 longe mar,

Trilhos de névoa aonde ninguém passa,Horisontes sem fim... livido outono.

Ereira de Montemór-Velho, 1910.

LUAR DE OUTONO

SCIÊNC1A, FILOSOFIA E CRÍTICA SOCIAL

PEDRO NUNES

estes artigos não é minha intenção estudar a vida de Pe-dro Nunes. Ha, porém, um facto da sua vida que nãodeixa de vir a proposito, por ser uma característica de

quasi todos os homens que se dedicam ás sciências...com honestidade. Quero-me referir ás perseguições que lhe foram

• movidas.

Pedro Nunes viveu no tempo em que os jesuítas entraram emPortugal. Ora sendo Pedro Nunes uma creatura de real saber umaforça original e independente e tendo alguma preponderância nacorte onde tinha ensinado os príncipes e sendo alem de tudo istoum judeu, os jesuítas não se achavam bem com semelhante cama-radagem e trataram de se desfazer dele o mais depressa possível. (')

A prova de^ que Pedro Nunes não era uma creatura protegidapelos poderes públicos, desde que os jesuítas neles começaram ater influência, é bem clara na seguinte carta:

"Muito ylustre senhor—Eu fui a S. A. sabado, o qual me

reineteo a V. S. com que heu muito fulguei, que pois meu requeri-mento esta em mão de v. senhoria, narn se a de perder minha jus-tiça. O que pidi a el Rei nosso senhor foi os cem mil rs. de meuhordenado que mos de sua A. pera meus filhos e que ho hofficiodalfandegua que me tem dado pera minha filha que me de satis-fação delle em algüa cousa boa e honrada pera a Hindia pera ajudade a encaminhar, e os meus trinta mil rs. de tença que eu comprei

por meu dinheiro pera mynha mulher: liisto pera o que eu mereçoe muito pouco, e porem fazendo esta merce a meus filhos fiquareiconsolado, que como dise a V. S. estam todos por enquaminhar, e

pois me eu esqueci de minha molher e delles por seruir sua A.bem sera que me faça inerces pera elles por descareguo de suacunciencia, que pera mim hirmeei fazer hermitam pera encomendara Deus a S. A. e a V. S. aqui mando parte de meus seruiços a V.Senhoria: certifiquolhe que vam muito jnenos escritos quam grainparte dos que eu fiz: peço a v. s. por quem e que veja tudo muitobem como de seu seruidor, e com histo beijo suas mãos a quemnoso Senhor acrecente vida e estado por muitos annos, Seruidor devossa senhoria, ho dotor P.e Nuniz.,,

(') "Julgaram

todos que a esse fim se ordiram essas teas, e que a isso ti-rou sempre a desejòsa diligencia de Vossa Reverencia de lançar dapar dei Rei to-das as pessoas cie que el Rei fazia gosto, até Pedro Nunes, cosmógrapho mór-porque tomado el Rei á fome, como agora dizem que está, nom podesse gostar'se nom de Vossa Reverencia ou cousa sua; nem haver quem prestasse se nom osque procedessem dessa fonte,, -Carta de D. Jeronymo, bispo de Silves ao Pe LL. da Cainara.

A ÁGUIA89

Esta carta, que extraímos da "Revista

de Engenharia Militar,,

dum artigo de Francisco Maria Esteves Pereira, mostra as condições

econômicas em que se encontrava o sábio português que tantos

serviços tinha prestado á nossa navegação.

Mas, deixemos estas misérias e passemos ao estudo do seu

rumo, curva que mais tarde se batisou com o nome de luxodromia

(caminho direito). Estas curvas fazem com os meridianos duma

superfície de revolução um angulo constante.

Pedro Nunes só ligou atenção á esférica. Nem o seu tempo

possuía instrumentos matemáticos suficientes para fazer o estudo

completo e geral das luxodromias, visto que a geometria analítica

ainda não tinha sido creada nem tão pouco o calculo infinitesimal.

Actualmente o estudo dessa curva pode fazer-se do seguinte

modo:

Sendo ('f, 0) a longitude e colatitude do ponto gerador, e repre-

sentando por s o arco da curva temos:

ds cos V z dQ

ds sen V = — sen 0 d'<p

representando por V o angulo que faz s com os meridianos.

Eliminando ds, entre estas duas equações, resulta:

dO d 0

cotg V = • ou cotg V </'f = — ,

sen 0 d <p sen 0

Integrando a ultima equação temos, finalmente, atendendo a

que V é constante para cada luxodromia:

0O\cotg V (?

- ¥o)

= - (

lg tg — —

.tg —)

ou

°0 \

? —

?„ = - tg V lg tg

— — lg tg 2)

Vê-se imediatamente que o polo era um ponto assintótico

visto que para 0 = 0 vinha ? = 00.

Esta curva pode ser estudada por meio das coordenadas car-

tesianas para o que bastava fazer a transformação de coordenadas

por formulas conhecidas, ou então defini-la pela intersecção da

90A ÁGUIA

esféra com um cone com o vertice num dos polos e tendo paradirectriz uma espiral logaritmica no píar>o do equador.

Mas o seu estudo tem actualmente apenas uma importânciahistórica e se o damos aqui é simplesmente para mostrar que,como foi definida a curva, depende o seu estudo do conhecimento

das funcções tg e Ig.

A tangente era uma funcção já conhecida no tempo de PedroNunes e suficientemente estudada. A funcção logaritmo é que só maistarde_ apareceu. Sem dúvida que Pedro Nunes a conhecia pelo me-nos intuitivamente, mas o que falta saber é se ele compreendera oalcance e vantagens dessa nova funcção.

Este assunto não é fácil de resolver tanto mais que PedroNunes não fez o estudo do seu rumo duma maneira sistemática;mas deixou-o espalhado pelas suas obras:

"Tratado em defensam

da carta de marear» e "De

arte atque ratione navigandi,,.

NOTAS E COMENTÁRIOS

DIFFERENC1AÇÃO E PROGRESSO

(Reflexões d'uin ignorante)

Acaba de se publicar uma traducção portuguêsa do famoso

livro de Haeckel sobre a Historia da Creação Natural. Apareceu a

primeira edição allemã em 1868, e é 43 annos mais tarde, depois

de ter sido traduzida em doze línguas differentes, que na nossa li-

vraria renasce essa obra do encanecido patriarcha de Iena, relíquia

veneranda d'esses tempos felizes e temerários do materialismo scien-

tifico, em que elle e Luís Büchner eram profetas e excomungavam

Deus.

Haeckel gozou então d'uma reputação verdadeiramente univer-

sal. Foi um dos que se admirou — d'aquellas admirações ímmensas,

que duram apenas um dia. E o seu nome teve a aura^ prodigiosa

de andar envolto com o de Darwin e o de Goethe na bôca dos mé-

dicos de província e das estudantas russas.

Hoje porém, Deus do céu, como a sua glória vae^ combalida!

De toda a parte lhe surgem ataques impiedosos, não só á sua filo-

sofia—que é uma especie de filistinismo audacioso aplicado aos

mistérios mais profundos da Natureza — mas ao seu proprio valôr

como naturalista, mais ainda—á sua própria probidade intelectual.

Yves Delage, professor de zoologia na Sorbonne, diz do pro-

fessor de Iena que elle mais não fez que "un

exécrable fatras

métaphysique, indigne d'un naturaliste de ce siècle». Outros acu-

sam-no de verdadeiras traquibernias scientificàs, de falsificações sfem

exemplo na história das sciencias. A minha ignorancia nem me

permitte avaliar com precisão o que a sciencia moderna deve a

Haeckel, nem me habilita a tentar aqui alguma coisa para a sua

rehabilitação moral. Tenho porém a impressão de que Haeckel não é

um creador, e que é um abuso quasi escandaloso de aproximação

pô-lo ao lado de Lamarck, de Darwin, de Goethe, como fazem os

tratados. O que fez, segundo creio, foi, por um lado, uma aplicação'

interessante, ainda que bastante sujeita á critica, dos princípios da

evolução á filogenia e á embriogenia, e por outro pôr em relevo

grandiloqüente, acirrado por um temperamento sectário e comba-

tivo, o que outros tinham descoberto serenamente'na esfera desin-

teressada da sciencia.

Mas filosoficamente, Haeckel parece-me ter sido o filisteu que,

sentindo-se de posse de meia dúzia de verdades novas, se imaginou

Prometheu. Especie de Magalhães Lima da biologia moderna, elle

fez do evolucionismo como que um partido político. Melhorou-o?

Não; transpô-lo para a praça pública.

Pegae no evolucionismo; levae-o atè ás suas conseqüências

mais extremas e mais ilegítimas — a cultura das batatas e a religião,

o ensino nas escolas e a política; traduzi a sciencia na lingua da

02 A ÁGUIA

hipérbole e da injúria; misturae depois tudo muito bem com Em-

pedócles e Goethe, Anaximadro de Mileto e Lamarck, Spinoza e

Darwin, Qiordano Bruno e Qeofroy Saint-Hilaire; disolvei por fim

essa misturada única no espirito de M. Homais; e tereis o que se

chama o monismo de Haeckel.

Se o valor do sábio da História da Creação não é pois tão

grande que o possamos pôr ao lado do autor da Filosofia Zooló-

gica ou da Origem das espécies, vale porém muito como espirito

eminentemente representativo d'um certo simplismo filosófico que de-

pois ganhou consistência, principalmente entre os médicos, e queconsiste em fazer entrar no quadro da Sciencia e resolver

"triun-

fantemente» com o auxilio de pretendidos méthodos scientificos as

coisas mais transcendentemente filosóficas —desde a theoria do

conhecimento á moral, desde a crítica da arte á psichologia e á

religião. •

Um dos pontos mais importantes da theoria da evolução é o•

principio da diferenciação e do progresso. Vejamos como Hackel o

trata na sua História da Creação Natural. (')

Segundo elle, há duas leis organicas fundamentaes deduzidas

da theoria da .selecção: uma é a da divisão do trabalho ou diffe-

renciação (Differenzirung), .outra a do progresso (Fortschritt, ou

desenvolvimento.

A lei da differenciação, da divisão do trabalho ou da diver-

gencia define-a Haeckel como sendo "a

tendencia geral de todos

os sêres organizados a desenvolver-se cada vez mais em fôrmas ca-

da vez mais differentes e a afastar-se do tipo primitivo commuin.»

É preciso notar que esta differenciação se faz em dois sentidos: 1.°'

producção de organismos cada vez mais differe/iciados, isto é, maior

divisão do trabalho, maior especialização — passagem do homogêneo

para o heterogêneo; 2.° producção de organismos cada vez mais

differentes entre si e do^tipo primitivo commum, isto é, maior diver-

gencia de caractéres. É fácil comprehender que a especialização

organica e a divergencia do tipo, sendo dois aspetos differentes, são

comtudo intimamente solidários: effectivamente, sendo o tipo primi-tivo o mais simples, o menos especializado, organização que se

affasta da sua é organização que se complica, e vice-versa.

A lei do progresso ou do desenvolvimento é aquela pela qual"em

todos os tempos da vida organica sobre a terra houve pro-

gresso no gráu de perfeição dos sêres organizados».

Mas aqui se nos levanta uma dúvida. O que vem a sêr o

progresso orgânico? em que consiste a perfeição de que nos fala

Haeckel? Será uma noção de ordem esthética —e será então o orga-

nismo mais perfeito aquele que pareça o mais belo? Mas então co-

mo decidir entre o pavão e o elephante? Será uma noção de ordem

(') Ernst Haeckel Natürliche Shõpfungsgeschichte. Sechste .. . Auflage. Ber-lin, 1875.

FERREIROS (croquis do natural)

Do "ALBUM DO TRABALHO,,

(De Cristiano de Carvalho)

FERREIROS (croquis do natural)

Do "ÁLBUM DO TRABALHO,,

(De Cristiano de Carvalho)

A Águia-3 (2.a série)

A ÁGUIA 93

psichológica — e um sêr vivo será tanto mais perfeito quanto mais

intelligencia se lhe supusér? E pode-se então falar em progresso

em relação ás plantas? Ou não será uma noção anatomo—fisio-

lógica?

Mas neste •caso,

não é a própria differenciação do organismo

que dá a medida do seu gráu de perfeição? Emfim, em vez de duas

leis não haverá uma única — visto que nada mais ha na idéia de

progresso do que na de differenciação?

Poder-se-me-há porém observar: Não há dúvida que na idéia

de progresso orgânico não pôde haver mais nada que na idéia de

differenciação das partes. Mas o que você põe numa única lei —

a lei de differenciação — os dois aspectos do facto, divergencia cres-

cenfe e especialisação crescente que você reúne, separa-os Haeckel,

fazendo duas leis diversas: uma, a da divergencia, a que elle chama

differenciação —a primeira; outra, a da especialisação, a que elle

chama progresso —a segunda. Então já as palavras

"progresso» e

"perfeição,, deixam de ter o sentido vago que você lhes atribue,

e já há logar para duas leis differentes, visto que se trata de dois

fados differentes, ainda que solidários: a divergencia do tipo, um;

a especialisação organica, o outro.

Esta explrcação seria a única que desculparia Haeckel da con-

fusão tenebrosa d'ideias que parece haver nesta altura da sua obra.

Mas em todas as páginas seguintes, que desenvolvem essas duas

leis, a palavra differenciação é entendida na dupla significação que

aqui lhe dei. (') A explicação que pus em hipótese não tem pois

razão de sêr.

Mas então volto á minha: Em que é que o progresso orgânico

difére da differenciação crescente das partes?

Haeckel, sem definir, como se vê, d'uma maneira precisa as

duas noções, assenta o seguinte principio que as liga: "D'uma

ma-

neira geral o progresso tem por base a differenciação,,. E para dar

razão á maneira um tanto restrictiva de indicar esse parallelismo,

acrescenta:"Talvez

as considerações antecedentes vos tenham sugerido

esta pergunta: Não serão idênticas estas duas leis? O progresso não

estará sempre indissoluvelmente ligado com a divergencia?,, Alguns,

continúa o naturalista allemão, como Carl Ernst Bar, respondem

affirmativamente a esta pergunta, dizendo: "O

gráu de desenvolvi-

mento (ou aperfeiçoamento) consiste no gráu da separação (ou dif-

ferenciação) das partes,, { ) Haeckel porém entende dever responder

negativamente, e assevera: O progresso nao é sempre ama differen-

ciação e nem toda a differenciação é um progresso.

Para provar a sua affirmação, cita em primeiro logar a redu-

f1) É o que se verá 110 decurso d'este artigo.

(-) Os parentheses, aperfeiçoamento (Vervollkoninung) e differenciação

(Differenzirung) são de Haeckel. Trata-se pois da differenciação das partes, como

dissémos, e não apenas da divergencia do tipo.

94 A ÁGUIA

cção numérica das partes similhantes. Por exemplo, os arthrópodos

inferiores teem patas numerosas e as aranhas mais não teem que

quatro pares e os insecto» tres. Do mesmo modo, nos vertebrados

a reducção numérica das vértebras indica um progresso orgânico.

E emquanto ás plantas, sabe-se que as flores são tanto mais perfeitas

quanto menos estames possuem. —Diz Haeckel que este íacto da re-

ducção das partes homólogas basta para provar que "se

o aperfei-

çoamento do organismo se baseia em grande parte na divisão do

trabalho em cada parte do corpo, outras metamorfoses organicas

levam igualmente ao progresso». Mas esta metamorfose que Haeckel

cita será effectivamente outra? Como é que se não baseia ainda na"divisão

do trabalho em cada parte do corpo?,, Pois não é á custa

d'esses órgãos similhantes, que desaparecem, que se formam órgãos

dissimilhantes, que aparecem de novo? Assim é que, como provou

Goethe (e Oken ao mesmo tempo que ele) o crâneo é proveniente

da differenciação de tres vértebras; houve reducção numérica das

folhas quando se criaram os elementos floraes; mas estes não são

folhas differenciadas? — não houve então, no fundo, uma differen-

ciação? Onde se simplifica o número complica-se a organização.

Assim, por exemplo, a simplicidade numérica crescente dos elemen-

tos vértebraes coincide com a individuação ou differenciação cresceu-

te do rachis, que vae apresentando regiões distintas. Nos tubarões

ha 365 vértebras, e não ha differenciação vertebral. No homem, onde

apenas ha 33 elementos vertebraes, a differenciação anatômica atinge

o máximo. Ao contrário do que diz Haeckel, ainda aqui ha passa-

gem do homogêneo para o heterogêneo — ainda aqui o progresso

se define pela differenciação, e só por ela."Uma

outra lei de progresso indepedente da differenciação,

continua a patriarcha do inonismo, e que lhe é mesmo opposta

até certo ponto, é a lei da centralização. Em geral o organismo to-

tal é tanto mais perfeito quanto as partes estão mais subordinadas

ao todo, quanto as funcções e os órgãos estão melhor centralizados».

E certo; mas de que maneira se oppõe este facto á differenciação?

Não é pelo contrário a differenciação que traz coinsigo, como sua

úlitma e necessária consequencia, a centralização das partes? Como

podia haver centralização num organismo que não fôsse differen-

ciado? E para que lhe serviria ella? Quanto mais differentes são

as partes, maior solidariedade existe na sua organização. Pelo

contrário como disse Goethe, "quanto

mais parecidos são os ele-

mentos, tanto menor é a subordinação reciproca que existe entre

elles,,. Vemos pois que a centralização, longe de sêr um facto

até certo ponto oppôsto á differenciação, é pelo contrário a sua

consequencia fatal."Acabo

de vos mencionar, diz Haeckel, fenômenos progressivos

absolutamente independentes da divergencia,,. Disse já quanto julgo

esses fenômenos "absolutamente

independentes,, da divergencía. "Há

além d'isso, continua, numerosas differenciações, que não só não

constituem um progresso, mas que são mesmo retrogradações.

E fácil vêr que nem sempre as modificações soffridas pelas

A ÁGUIA 95

especies animaes e vegetaes são aperfeiçoamentos». Esta última

parte, quem a nega? Mas o que, salvo provas concretas, esse facto

vem contradictar, não é a não generalidade da correspondência en-

tre a differenciação e o progresso, mas a não generalidade da pró-

pria lei do progresso, que Haeckel define d'uma maneira absoluta.

É certo, há modificações retrogradas; mas a essas regressões não

corresponderá uma menor differenciação das partes? não será essa

diminuição o signal mesmo do retrocesso das fôrmas? Vejamos os

factos que Haeckel aponta para exemplificação do caso, Diz elle: "Há

grande número de fenômenos da differenciação que, sendo de im-

mediata vantagem para o organismo, o prejudicam todavia, dimi-

nuindo o seu poder geral. Muitas vezes há regressão a condições

da vida mais simples e por adaptação a estas unia differenciação

em sentido retrógrado. Se, por exemplo, organismos habituados até

então a uma vida independente se acostumam a viver como parasi-

tas, essa vida parasitária trará comsigo a sua retrogradação».

Mas aqui a palavra differenciação é empregada numa acepção

muito differente dos dois primeiros cascs. Aqui differenciação nem

é divergencia do tipo primitivo comum, porque pelo contrário o

parasita voltou a aproximar-se da fôrma d'onde a sua fôrma ante-

rior derivou — nem divisão do trabalho, porquanto, como escreve o

próprio Haeckel, esses animaes, que "até

então tinham sido dotados

d'um sisthema nervoso bem desenvolvido e de fortes órgãos dos

sentidos, assim como da faculdade de se moverem livremente, per-

deram tudo isso ao habituarem-se á vida parasitaria». Aqui a pala-

vra differenciação é empregada no sentido esporádico de "divergen-

cia d'um estado anterior». E como essa divergencia se fez no

sentido d'uma "menor

differenciação», d'aqui Haeckel dizer que á"differenciação

das fôrmas» correspondeu um "retrocesso»

do

organismo. Se Haeckel tivesse conservado ao termo o seu primeirosentido — a passagem da homogeneidade para a heterogeneidade —

e não tivesse feito uma prestidigitação inconsciente com a acepção

da palavra, já não diria que "numerosas

differenciações constituem

mesmo retrocessos». O que há é modificações que, sendo differen-

ciações em relação ao estado anterior, o não são emquanto ás par-tes. Ü retrocesso das fôrmas mede-se aqui pelo menor gráu de

differenciação organica; ainda aqui differenciação e progresso são

palavras que, aplicadas á biologia, significam exactamente a mesma

coisa.

Esta discussão faz-nos vêr que é de toda a conveniência pre-

cisar a terminologia de todas as sciencias, para suprimir todas as

confusões de palavras e de idéias. A sua falta não causa ainda

grande prejuízo, quando cada autôr, independentemente d'uma ter-

minologia rigorosa impessoal, fixa no entanto o significado de todas

as palavras que emprega; então o estudioso sabe bem a que coisas

elle se refere, e, podendo criticar o rigor da denominação, não cahe

comtudo ern confusões lamentaveis. Mas quando, como nestas pas-sagens de Haeckel, de página a página se vae mudando a acepção

da palavra, numa involuntária escamoteação, sob o rótulo comum

96 A ÁGUIA

do vocábulo vão-se confundir coisas completamente differentes, e

cahe-se em erros que podem sêr de extraordinária iinportancia.

Vimos que os factos citados por Haeckel para contradictar

a generalidade do paralelismo entre a differenciação e o progresso

a confirmam pelo contrário. Resta-nos o facto dos órgãos rudimen-

tares, que elle ainda cita. Ora esses órgãos são: a) ou orgãos no-

vos que aparecem, órgãos nascentes, como lhes chama Darwin, que

neste caso lhes não dá o nome de rudimentáres, taes como as glandulas

mammárias do ornithorinco, que se podem considerar os prenún-

cios das mammas dos mammiferos, e temos então differenciação, e

progresso; b) ou órgãos múltiplos que se reduzem, como acontece

com as pálpebras, ficando a nictitante rudimentar, e temos reducção

numérica de partes similhantes, e portanto differenciação, è pro-

gresso também; c) ou são órgãos únicos inúteis, que se perdem por

falta de uso, e há aqui um facto contrário á differenciação, em re-

lação á parte considerada, apesar de poder haver progresso no

conjuncto.

Mas então o mais que podemos dizer é que a uma differen-

ciação do conjuncto (global) nem sempre corresponde a differencia-

ção de tal ou tal parte. O que não podemos dizer é que ao pro-

gresso dos organismos não corresponde sempre uma differenciação

global. Não há outra maneira precisa de comprehender o progresso

orgânico e de o definir senão em funcção da differenciação das

fôrmas.

Tudo o mais é vago, subjectivo, arbitrário, e inconsistente. —Pó-

dem dizer-nos, é certo, que damos ao progresso biológico um sen-

tido demasiado materialista. Um sentido objectivo, é que é. Esta in-

terpretação pôde sêr aceite igualmente pelo espiritualista e pelo ma-

terialista. Pois não é uma alma tanto mais superior quanto mais

differenciado organismo tiver para a servir? A alina é como o fluido

eléctrico, incoercivel, que anima os seres, e a matéria as pontas de

aço por onde esse fluido se escôa, se propaga e se exerce. Quanto

mais differenciada estiver a matéria —quanto mais pontas d'aço hou-

ver projectadas para fóra, para o mundo exterior, mais a alma se

afina, e mais ella exerce o seu império espiritual.

A correlação da differenciação e do progresso, melhor, a iden-

tidade da differenciação e do progresso, para quem quiser dar ás

palavras uma significação objectiva, é constante. O que não é cons-

tante, num periodo restricto de tempo, são as próprias leis da diffe-

renciação e do progresso, que Haeckêl assenta (e que são afinal

uma única lei), pois comprehendem numerosíssimas excepções. To-

dos os dias em todos os pontos do mundo se estão a derivar de

fôrmas mais perfeitas fôrmas mais retrógradas. Ha mesmo retrogra-

dações úteis, porque são exigidas pelas condições do novo meio a

que uma especie se adapta, o que fez dizer erradamente a Le Dan-

tec que "o

progresso é a adaptação». (') Mas o que se pôde ainda

(') O progresso não se mede pela utilidade, mas pela complicação organi-

A ÁGUIA 97

dizer é que, no Todo, olhando a evolução, não nos seus estádios

últimos ou nos seres intermedios, mas nos seus cimos mais perfei-

tos, o mundo orgânico evolue em fôrmas cada vez mais complexas,

mais progressivas, mais differenciadas. (')

Não quer isto dizer que do tipo mais perfeito d'um periodo

descenda o tipo mais perfeito do periodo seguinte: seria contradi-

zer a law of the unspecialized de Cope. "O

ponto de partida d'uma

serie progressiva de fôrmas num periodo geológico não foi um ti-

po terminal d'uma serie progressiva da idade precedente, mas um

tipo muito anterior a esse tipo terminal, e por consequencia menos

differenciado,,. (Le Dantec, Príncipes de Biologie, p. 435). O que

quero dizer com a minha affirmação é qüe os "tipos

terminaes,, de

cada uma d'essas series são mais differenciados que os das series

anteriores. Podemos verificar isto consultando qualquer tratado de

paleontologia, e reduzindo a um schema a evolução das plantas e

dos animaes, como fazemos adeante:

TIPOS TERMINAES DAS PLANTAS

EM CADA UM DOS PERÍODOS GEOLÓGICOS

Gamopetalas

Dialypetalas^--^'

Con

j

Idade Periodo Periodo Periodo Periodo Idade

primordial devoniano triasico cretaceo carbonifero terciaria

ca. Simplesmente lia complexidades que são extremamente embaraçosas para quem

as poss-ue, e siniplicidades que livram da morte. A palavra progresso é empregada

em bilogia num sentido filogenético, e não num sentido individual. Não se aplica

á biografia, mas á história. E se vamos a adoptar a fórmula de Dantec qual é a

fôrma mais progressiva- a do goraz ou a do homem? Ambas o são igualmente,"

porque ambas são igualmente adaptadas ao seu meio. Para que tornar fluido e

inconsistente, sem precisão alguma, o conteúdo das palavras?

(A) Considerando, não períodos limitados, corno os que se realizam na expe-

riencia humana, mas os grandes períodos geológicos, esse progresso estende-

se mesmo aos .sêres intermedios e inferiores, a crêr os paleontologistas, como

Agassiz. "Os animaes extintos e antigos assimelham-se até um certo ponto aos em-

briões dos animaes mais recentes, pertencentes ás mesmas classes»; (Darwin, The origine

Of species, sixth edition, 1884, p. 313). Ha porém excepções: a organização dos

foraminiferos, segundo Carpenter, não progrediu desde a épocha laurentiana.

98 A ÁGUIA

TIPOS TERMINAES DOS ANIMAES

EM CADA UM DOS PERÍODOS GEOLÓGICOS

Homem

Mamiferos (com placental^.

Mamiferos (sem placenta^^""''^

Reptis^^

Batrachios^^,,^

Dipnoicos-^^^

Peixes (sem pulmoes)-^^

Acranean

Invertebrados^^^

Periodo Periodo Periodo Periodo Periodo Periodo Idade Idade Idade qua-laurentiano cambrico silúrico devoniano carbonifero pcrmico secundária terciária ternaria

A linha que une as fôrmas dos sêres intermedios pôde sêr

sinuosa e sujeita a depressões, como a ascensões momentâneas: são

permittidas as hesitações da Creação nessas paragens medianas da

Existência. São por assim dizer erros que a Natureza comette para

distracção, para impedir uma regularidade extrema. Mas a linha que

une os ápices da evolução biológica, essa grande cumiada que liga

os altos cumes da Vida em cada periodo da sua evolução, parece

sêr uma linha interruptamente ascensional.

Tudo se passa então como se a Vida em cada periodo geolô-

gico tivesse mais fôlego, mais impulso do que nos períodos ante-

riores. Ahi não há hesitação possível: é sempre um Vôo cada vez

mais alto, em curvas cada vez mais largas e mais harmoniosas,

para o máximo desabrochamento das Vidas e das Fôrmas.

REVISTA BIBLIOGRÁFICA

"Querer fazer

Os arabes nas Obras a historia dos rei-

de A. Herculano, nos cristãos só

por Davi d Lopes, com os materiaes

cristãos é querero impossível. E' estudar a medalha

apenas pelo anverso... Não repetimos

agora estas palavras senão para nos

felicitarmos da aparição duma obra

interessantíssima. Herculano, não

sabendo o arabe, serviu-se de tra-

duções e de trabalhos alguns dos

quaes a critica posterior, teve de julgarseveramente; e os materiaes que hoje

possuem os arabistas, sem alterarem aslinhas geraes do quadro que nos apre-

senta a Historia de Portugal, perrnittemretocá-lo em mais de um ponto. De alii

o livro do sr. David Lopes.

Afóra os capítulos sobre as fontes

arabes que serviram a Herculano e so-bre os nomes geográficos 110 territorio

que depois foi português, para os leigos

em questões de filologia são particular-mente atraentes as paginas em que o

autôr trata dos sucessos de Ibn-Gací, dasfaçanhas do Sem-Pavor, e da batalha de'

Ourique. Giraldo, cuja historicidade

Herculano a custo aceita, aparece-nos o

autor real de façanhas e processos de

acção com que imaginamos resuscitar a

figura do monarca. A crônica dos Go-

dos é o único documento cristão antigo

que no-lo dá como conquistador de

Évora; os outros chronicões concordam

com ella na data da conquista, que o

chronicon lainecense comtudo atribue a

Afonso Henriques; e em dois chroni-

cões, o conimbricense e o lamecense, apa-rece-nos Giraldo a tomar Badajoz, tra-

dição esta que Herculano, talvez por a

julgar inverosimil calou 11a sua obra.

Os documentos arabes que o snr. David

Lopes aduz confirmam a tradição, e sai

deles a personagem épica de um Cid

português que devemos considerar comoo conquistador do Trujillo, Évora Cá-ceres, Montánchez, Serpa e Juromenha,e que, tomada esta, arremete a Badajozem ataques sucessivos conseguindo en-trar na cidade e chamando AfonsoHenriques, que se viu apanhado ao de-

pois pelo rei de Leão.

Igualmente interessantes ainda, e

muitíssimo engenhosas, são as paginasconsagradas á batalha de Ourique. § O

nome é muito vulgar e espalhado no

país. O A. crê que o termo é germa-nico, tomado de um nome de pessoa,Auricus, que evolucionaria semelhante-

mente a Mauricus > Mourique, Alberi-

eus > Alberique. Esses nomes deveriam

dár Ourigo, Mourígo, mas teriam sido

imobilizados na forma em iqtie peloarabe. Esta terminação só se encontra ao

sul do Mondego, onde a dominação

muçulmana foi mais duradoura e inten-

siva, e onde os nomes de logar de ori-

gem gennanica, ou outra, não puderamevoluir como 110 norte porque os ara-

bes los fixaram na forma que subsistiu.

Dada a dipersão topografica do nome

em que Ourique, dos muitos Ouri-

ques, se deu o combate? Pretendeu-se

sempre que no Baixo Alemtejo, idéa

que Herculano recebeu; posteriormenteBorges de Figueiredo optou por Campo

de Ourique, em Lisboa.

Deve afastar-se a idea do Baixo

Alemtejo por incompatível com as cir-

cunstancias da ocasião. Podêr-se-ia dizêr

no tempo de Herculano que quem fez

a expedição em favor, do príncipe de

Mertola e a invasão do Alemtejo orien-

tal e da Extremadura espanhola em 1116

também podia fazêr a do baixo Alem-

tejo em 39. Simplesmente, como o autor

110-I0 mostra no seu livro, sabemos hoje

que elle as não fez. Ficam pelo Alem-

tejo a razão do nome e a da tradição;

mas a tradição parece de origem eru-

dita e formada muito depois dos acon-

tecimentos. Contra a hipótese de Borges

de Figueiredo ha o facto de se têr cha-

mado até ao século XVIII Campolide a

parte de Lisboa que é hoje Campo de

Ourique, e mesmo não é crivei que os

documentos que tratam da batalha não

citassem em tal caso o nome da cidade.

Supõi o snr. David Lopes que são

um único homem o Esmar capitão dos

muçulmanos em Ourique, o Esmar queem 40 tomou Leiria (chama-lhe o chro-

nicon conimbricence lemar Abuzicri) e o

Auzecrí ou Abzechri alcaide de Santa-

rem. Muito bem defende o autor a sua

hipótese, que a falta de documentos não

deixa infelizmente fundamentar com tex-

100 A ÁGUIA

tos. E desde que encontrou um Chão

de Ourique no concelho do Cartaxo, a

15 kilómetros de Santarém, pode-se con-

jecturar com verosimilhança e engenho

que se deu abi o famoso encontro.

Ourique foi talvêz mais estrondosa

batalha nas nossas letras do século de-

zanove que nas campanhas do décimo

segundo; e é comovedôr e direi mesmo

trágico o relato desse caso triste quenos dá o sr. David Lopes, neste traba-

llio ao mesmo tempo digno do alto

espirito a que é consagrado e do ilus-

tre erudito que o escreveu.

Do nosso

Anteu, poema por João de querido ca-

Barros. Editoíes F. França maradajoão

& Armênio Amado, de Barros

recebemos o

seu último livro Anteu. Grande livro e

grande Poeta!

Pode haver quem não ache bem pro-fundamente humanos e bem generososainda os seus ideais e. algumas das fi-

guras do poema que os encarnam, mas

o que ninguém pode negar é que o

Poema do princípio ao fim seja um

grito de vigorosa e ardente inspiração

e que de todo ele, a jorros, corra a

Esperança, a Audácia, a Força e a Beleza.

Todo o poema é grande e formoso. No

emtauto algumas passagens mais viva e

profundamente nos impressionaram. As-

sim a fala de Anteu apóz o combate

com Hércules e essa maravilhosa entra-

da do segundo canto "O Filho de An-

teu" que começa:"Mãe, os navios!,,

A vida de Anteu é afinal a vida do

Poeta, que agora atinge fastígios de

Beleza, numa vitória de Arte, domi-

liando, envolvendo qtiasi em sombra a

sua Obra restante.

Poucos

Commigo (versos dum solitá- dias antes

rio) por Manuel Laran- do trágico

geira. Editores F. Fran- suicídio de

ça & Armênio Amado. Manuel La-

range ira re-

cebíamos nós o seu último livro. Não é,

dominados, como estamos ainda, pelaimpressão de tristêsa deixada com a sua

morte, que podemos ou devemos fazer

a crítica da obra. Fala agora a Saüdade,

que vê mais e melhor que o mais fino

espírito crítico.

E' essa que noutro logar desta revista

exalta a memófia desse alto espírito, quenos deixou.

Depoi?, mais tarde, e mais tarde é

ainda cêdo, virá a crítica.

De resto, esse livro é já o preságio do

seu trágico fim: versos de estertôr, ar-

quejantes, angustiosos, transidos dum frio

agónico.

Recebemos também:,"Espírito Sereno-, Ângelo Jorge."A-

questão Social e a nova Scienciade curar,, Ângelo Jorge.

"Palestras musicaes e pedagógicas,,B. V. Moreira de Sá.

"Manhã,, João Maria Ferreira.

"A Caridade,, Santos Galvão."Un

poble èn acció,, Joan Pi.

'?

/p '•-J, -—^

LITERATURA

A Nova Poesia Portugueza

Sociologicamente Considerada

o movimento litterario representativo e peculiar da nascente

geração portugueza tem sido feito pela opinião publica o

favor de o não comprehender. E esse movimento que, so-

bretudo na poesia, com crescente nitidez accusa a sua in-

dividualidade representativa, não tem sido comprehendido, porque

uma parte do publico, a que tem mais de trinta annos, está inada-

ptabilisavel, por já velha, a esse movimento, e consta, perante elle, de

incompreliendedores-natos; porque outra parte, ou por circumstancias

de bacharelosa especie educativa, ou por descuidada na manutenção es-

piritual do sentimento de raça, ou ainda por sentimentos de desviado e

esteril enthusiasmo gerados por absorpção na intensa e mesquinha vida

política nossa, está collocada n'um estado de pseudo-alma descri-

ptivel como sendo de incomprehendedores-de-occasião; e porque a

outra, restante, aquella de quem são os novos poetas e litteratos e

os que os acompanham no obscuro sentimento racial que os guia,

não tomou ainda consciência de si como o que realmente é, por-

quanto o movimento poético actual é ainda embryão quanto a ten-

dencias, nebulosa quanto a idéas que de si ou de outras cousas

tenha.

Urge que —pondo de parte mysticismos de pensamento e de

expressão, úteis apenas para despertar pelo ridículo, que a sua obs-

curidade para os profanos causa, o interesse alegre do inimigo

social — com raciocínios e cingentes analyses se penetre na com-

prehensãò do actual movimento poético portuguez, se pregunte a

alma nacional, n'elle espelhada, o que pretende e a que tende, e se

ponha em termos de comprehensibilidade lógica o valor e a signi-

ficação, perante a sociologia, d'esse movimento litterario e aitistico,

II

Em primeiro logar, é evidente que aquillo a que se chama

uma corrente 1 itteraria deve de algum modo ser íepiesentativo do

estado social da época e do paiz em que apparece. Porque uma

corrente litteraria não é senão o tom especial que de commiim teem

•os escriptores de determinado período, e que representa, postas de

Parte as inevitáveis peculiaridades individuaes, um conceito geial do

mundo e da vida, e um modo de exprimir esse conceito, que, por

102 A AGUIA

ser commum a esses escriptores, deve forçosamente ter raiz 110 que

de commum elles teem, e isso é a época e o paiz em que vivem

ou em que se integram.

E se a litteratura é fatalmente a expressão do estado social de

um periodo político, à fortiori o deve ser, a dentro da litteratura, o

genero litterario que mais de perto cinge e mais transparentemente

cobre o sentimento e a idéa expressos — e esse genero litterario é

a poesia.

Não é isto, porém, que de momento importa. Saber pela litte-

ratura as idéas de uma época só pode ter interesse para a posteri-

dâde, que não tem outro meio de a tornar presente ao seu racioci-

nio. O que nos occupa é saber se a litteratura nos poderá ser um

indicador sociologico, se nos pode ser ponteiro para' indicar a que

horas da civilisação estamos, ou, para fallar clareza, para nos infor-

mar do estado de vitalidade e exuberancia de vida em que se en-

contra uma nação ou época, para que, pela litteratura simplesmente,

possamos prever ou concluir o que espera o paiz em que essa

litteratura é actual. E é precisamente isto que à priori se não pode

imaginar. Reportemo-n'os, pois, á evidencia analysada dos factos.

Desbravemos, porém, o terreno, aclarando alguns termos es-

senciaes, e simplificando, para não sermos longos, as condições da

analyse projectada.

Por vitalidade de uma nação não se pode entender nem a sua

força militar, nem a sua prosperidade commercial, cousas secunda-

rias e por assim dizer physicas" nas nações; tem de se entender a

sua exuberancia de alma, isto é, a sua capacidade de crear, não já

simples sciencia, o que é restricto e mecânico, mas novos moldes,

novas idéas geraes, para o movimento civilizacional a que pertence.

E' por isso que ninguém compara a grandeza ruidosa de Roma á

super-grandeza da Grécia. A Grécia creou uma civilização, que

Roma simplesmente espalhou, distribuiu. Temos ruinas romanas e

idéas gregas. Roma é, salvo o que sobremorre nas formulas invitaes

dos codigos, uma memória de uma gloria; a Grécia sobrevive-se nos

nossos idéaes e nos nossos sentimentos.

Servir-nos-hão de material para a analyse duas nações apenas

—a Inglaterra e a França; e isto porque, tendo essas uma unidade

nacional, uma continuidade de vida e uma influencia civilizacional

accentuada, o problema se limita simplesmente á analyse que dese-

jamos fazer, sem impôr, como imporia o estudo de qualquér nação ou

mais complexa, ou mais affastada no tempo, uma previa analyse diffe-

rencial. A escassez do material, porém, importa apenas quando é

superficial a analyse; porque, se pour expliquei- un brin de paille

il faut démonter tout le systéme de funivers, ao raciocinador ideal

bastaria, visto que o systema do universo se acha logicamente con-

tido no brin de paille, analysal-o bem, a elle brin de paille, para

deduzir o systema do universo.

Tomaremos a Inglaterra e a França para material de anaiyse.

E tomaremos períodos nítidos, pois que o espaço não permitte a

co-analyse de períodos litteraria- ou politicamente embryonarios.

A ÁGUIA 103

III

A historia litteraria da Inglaterra mostra trez períodos distin-

ctos, ainda que subdivisiveis em sub-periodos —o isabelliano, que

vae de 1580 approximadamente até a um ponto pouco mais ou

menos coincidente com o fim da Republica; o tratavel de "neo-

clássico» que, pouco depois começando, occupa quasi todo o se-

culo dezoito, começando porém a morrer desde 1780, approxima-

damente; e o moderno, que vem desde então até aos nossos dias.

D'estes tres períodos o primeiro impõe-se como por muito o maior,

não só por ser mais alto o tom poético geral do periodo, mas também

porque as suas culminancias poéticas —Spenser, Shakespeare e

Milton — põem na sombra quantos nomes illustres os outros dois

periodos apresentem. — O segundo. periodo é inferior aos outros

dois: o tom poético é aquelle, intolerável, que a França do ancien

regime derramou pela Europa de que tinha a hegemonia social.—

O terceiro periodo contém figuras que, sem serem supremas, são

como Coleridge, Shelley ou Browning, grandes indiscutivelmente.

Vejamos agora a que periodos políticos estas épocas litterarias

correspondem. À época isabelliana corresponde ao periodo da vida

ingleza cuja realisação foi feita pela Republica e na pessoa, preèmi-

nentemente, de Cromwell. Foi um periodo creador; n'elle deu a

Inglaterra ao mundo moderno um dos grandes princípios civiliza-

cionaes que lhe são peculiares — o de governo popular, principio

que depois a Revolução Franceza, parcamente creadora, simplesmente

transformou no de democracia republicana. — O segundo periodo da

vida política ingleza, o que vem desde a queda da Republica, cul-

mina na revolução, de mera substituição dynastica, de 1688, e vem

morrer por 1780 nas almas, e de fado com a reforma eleitoral de

1832, é absolutamente nullo e esteril para a Inglaterra; n'elle ella

nada creou, nem mesmo a sua própria grandeza, visto que a liege-

monia social na Europa era então da França. N'este segundo periodo

a Inglaterra não fez senão ir realisando, apathica- e frouxamente, o

principio de governo popular que havia creado. — Também no ter-

ceiro periodo a Inglaterra nada creou de civilizacional; creou a sua

própria grandeza e nada mais — visto que a hegemonia européa tem

sido mais sua do que d'outra nação no século dezenove, conforme

o vincaram para a historia Nelson em Trafalgar e Wellington em

Waterloo.

Virando-nos agora para a França, e desprezando, como já

dissémos, o embryonario e informe, vemos egualmente trez periodos,

incoincidentes porém, no tempo, com os trez periodos inglezes. O

primeiro periodo acompanha o ancien régime, culmina no tempo

de Luiz XIV. e dura até ao fim do século dezoito, emprestando o

tom á litteratura européa. O segundo periodo, o romântico, começa

depois da queda do ancien regime e vae terminando á medida que

o republicanismo se vae realisando nas almas, de 1848 a 1870,

approximada- mas incorrectamente. De então para cá, em seguida

ao periodo (de 1871 a 1881 pouco mais ou menos) de lenta conso-

104 A ÁGUIA

lidação republicana, vem o terceiro período, aquelle a que caracte-

rizam o realismo, o symbolismo e outros anti-romantismos (').

Vejamos agora como se nos mostram os correspondentes pe-

riodos políticos. O primeiro, ancien regime, foi um período em que

a França nada creou para a civilização, visto que creou apenas a

sua própria grandeza e a correspondente hegemonia social européa,

cujo reflexo longínquo e fraquejante é a influencia de que ainda

gosa. O segundo período é aquelle que, precipitando-se na prema-

tura Revolução Franceza, se vae realisando só depois, nas almas,

de 1848 a 1870, pouco mais ou menos, e é n'este periodo que a

França cria para a civilização a idéa de democracia republicana.

Não a cria, é claro, tão creadoramente como a Inglaterra de Crom-

well, que a origina no mundo moderno; torna-a porém mais intensa

e nitida, desenvolve-a —o

que. é também, ainda que secundaria-

mente, uma creação. Finalmente, no terceiro periodo, o de 1870

para cá, a França nada cria para a civilização, nem mesmo a sua

própria grandeza cria, visto que decahe em valor européo: vae vi-

vendo, como a Inglaterra no segundo periodo, e realisando, apa-

thica- e despiciendamente, o principio de democracia republicana

que em anterior periodo creára.

Posto isto, analysemos. Em primeiro logar é evidente a ana-

logia, quanto a valor civilizacional, e, portanto, a vitalidade nacio-

nal, entre o primeiro periodo franòez e o terceiro inglez, entre o

segundo periodo francez e primeiro inglez, e entre o terceiro pe-

riodo francez e o segundo da Inglaterra. Tão perfeita é a analogia

social e civilizacional como a analogia litteraria. A litteratura ingleza

attinge o seu auge no primeiro, a franceza no segundo, periodo.

São relativamente ricas, a ingleza no terceiro periodo, a franceza no

primeiro. E a ingleza no seu periodo segundo e a franceza no ter-

ceiro seu estão no mesmo nivel de abatimento litterario perante os

outros periodos. —Vemos,

pois, que o valor dos creadores litterarios

corresponde ao valor creador das épocas a que correspondem; de

modo que a litteratura não só traduz as idéas da sua época mas —

e é isto que jmporta que fixemos —o valor da litteratura, perante a

historia litteraria, corresponde ao valor da época, perante a historia

da civilização.

Avançando na analyse, porém, revela-se-nos que a posição

chronologica das litteraturas se dá, relativamente aos correspondem

tes movimentos sociaes, da modo diverso nos trez periodos. Assim,

no primeiro periodo, o creador, da Inglaterra, o movimento littera-

rio que culmina em Shakèspeare (entre 1590 e 1610) precede o mo-

vimento politico, que só começa ao decahir elle. E, em França, o

movimento romântico vae decahindo á medida que se vae reali-

sando nos espíritos o correspondente, e socialmente exuberante,

(') Uma analyse impossível aqui, por demorada, mostraria como é socio-

logicamente certa esta divisão, em apparencia anti-historica ao ponto de ser de

todo absurda esta divisão e a que, de periodos políticos, vae a seguir.

A ÁGUIA 105

movimento político. — No segundo período inglez e terceiro francez,

analogos como já vimos, a corrente litteraria vem depois da corrente

política que lhe corresponde; como em França se vê pelo appare-

cimento dos movimentos symbolistas, realista e outros, claramente,

nos annos que succedem áquelles em que se consolidou a repu-

blica; e em Inglaterra pelo facto de Pope, em quem a corrente lit-

teraria culmina (Dryden, talvez maior, é um poeta de transição,

pertencente em parte ainda ao periodo anterior) sêr da geração

seguinte á dos consolidadores da nova formula, característica da

época, a de mònarchia constitucional. — No terceiro periodo inglez e

primeiro francez temos a coincidência no tempo entre a corrente e

culminancias litterarias e o movimento e culminancias políticos. E'

sob Luiz XIV que a vida litteraria é de mais valor, e o movimento

reformista inglez (de 1770 a 1832), que involve em si as causas da

hegemonia ingleza moderna e inclue as guerras em que ella se

fixou, coincide com o romantismo britannico.

Examinemos agora quaes os característicos interiores d'estas

correntes litterarias. As correntes litterarias do segundo periodo in-

glez e o terceiro francez — aquelles períodos em que essas nações

nada crearam, nem para os outros nem para si — offerecem como

mais importante facto espiritual a desnacionalisação da litteratura;

visto que a litteratura ingleza do século dezoito é vazada em mol-

des francezes, e a litteratura fraiiceza de 1880 para cá é tudo menos

franceza de espirito. Assim, para dar o único exemplo que o espaço

pode adniittir, o symbolismo, essencialmente confuso, lyrico e reli-

gioso, é absolutamente contrario ao espirito lúcido, rhetorico e sce-

ptico do povo francez. —As correntes litterarias do terceiro periodo

inglez e primeiro francez — as dos períodos em que os paizes crea-

ram a sua própria grandeza e hegemonia social, mas, de civiliza-

cional, nada — mostram um equilíbrio entre o espirito nacional e a

influencia estrangeira: assim, a influencia allemã é patente mas não

dominante no romantismo inglez, e a influencia da antigüidade tão

importante como a do espirito nacional na litteratura dos séculos

dezesete e dezoito em França. —Finalmente, nos períodos creadores— o primeiro inglez e segundo francez — temos na litteratura o es-

pirito nacional patente e dominante, absorvendo e absolutamente

eliminando qualquer influencia estrangeira que haja. Assim, nada

mais francez do que Victor Hugo com a sua rhetorica, a sua

pseudo-profundeza, a sua lucidez epigrammatica em pleno seio do

iyrismo, onde não está bem. E Spenser, Shakespeare e Milton —

mas Spenser e Shakespeare mais do que Milton — são inglezes

inconfundivelmente.

IV-

Ainda que rapida, já ha n'esta analyse elementos para a apre-

ciação ponderada da moderna poesia portugueza.

O primeiro facto que se nota é que a actual corrente littera-

ria portugueza é absolutamente nacional, e não só nacional com a

106 A ÁGUIA

inevitabilidade bruta de um canto popular, mas nacional com iríéas

especiaes," sentimentos especiaes, modos de expressão especiaes e

distinctivos de um movimento litterario completamente portuguez;

e, de resto, se fosse menos, não seria um movimento litterario, mas

uma especie de traje psychico nacional, relegavel da categoria de

movimento de arte para a, para este caso sociologico nulla, de um

mero costume característico.

O segundo facto a notar é que o movimento poético portuguez

contém individualidades de vincado valor: não são Miltons nem

Shakespeares, mas são gente que se extrema, além de pelo tom,

qu'e é da corrente, pelo valor mesmo, d'entre os contemporâneos

europeus, com excepção de um ou dois italianos, e esses não in-

tegrados em movimento ou corrente alguma que, de distinctiva ou

nacional, tenha sombra de direito a ser comparada com a hodierna

corrente poética lusitana.

O terceiro e ultimo facto que se impõe é que este movimento

poético dá-se coincidentemente com um periodo de pobre e depri-

mida vida social, de mesquinha política, de difficuldades e obstacu-

los de toda a especie á mais quotidiana paz individual e social, e á

mais rudimentar confiança ou segurança n'urn, ou d'um, futuro.

Vistos estes elementos sociologicos do' problema, salta aos

olhos a inevitável conclusão. E' ella a mais extraordinaria, a mais

consoladora, a mais estonteante que se pode ousar esperar. E' ella

de ordem a coincidir absolutamente com aquellas intuições prophe-

ticas do poeta Teixeira de Pascoaes sobre a futura civilização lusi-

tana, sobre o futuro glorioso que espera a Patria Portugueza. Tudo

isso, que a fé e a intuição dos mysticos deu a Teixeira de Pascoaes,

vae o nosso raciocínio mathematicamente confirmar.

E' que os característicos que acabamos de descobrir no nosso

actual movimento poético indicam absolutamente a sua analogia

com as litteraturas ingleza do primeiro, e franceza do segundo,

periodo, e, portanto impõem que se conclua d'ahi a fatal analogia

com as épocas de que aquellas litteraturas são representativas.

A analogia é absoluta. Temos, primeiro, a nota principal da

completa nacionalidade e novidade do movimento. Temos, depois,

o caso de se tratar de uma corrente litteraria contendo poetas de

indiscutível valor. E note-se — para o caso de se argumentar que

nenhum Shakespeare nem Victor Hugo appareceu ainda na corren-

te litteraria portugueza —que esta corrente vae ainda no principio

do seu principio, gradualmente porém tornando-se mais firme, mais

nítida, mais complexa. E isto leva a crêr que deve estar para

muito breve o inevitável apparecimento do poeta ou poetas supre-

mos d'esta corrente, e da nossa terra, porque fatalmente o Grande

Poeta, que este movimento gerará, deslocará para segundo plano a

figura, até «gora primacial, de Camões. Quem sabe se não estará para

um futuro muito proximo a ruidosa confirmação cfeste deduzidis-

simo asserto?

Pode objectar-se, além de muita cousa desdenhavel n'um arti-

go que tem de não ser longo, que o actual momento politico não

A ÁGUIA 107

parece de ordem a gerar gênios poéticos supremos, de reles e mes-

quinho que é. Mas é precisamente por isso que mais concluivel se

nos affigura o proximo apparecer d'um supra-Camões na nossa

terra. E' precisamente este detalhe que marca a completa analogia

da actual corrente litteraria portugueza com aquellas, franceza e in-

gleza, onde o nosso raciocínio descobriu o acompanhamento littera-

• rio das grandes épocas creadoras. Porque a corrente litteraria, como

vimos, precede sempre a corrente social nas épocas sublimes de uma

nação. Que admira que não vejamos signalde renascença'na vida

política, se a analogia nos manda que o vejamos apenas uma, duas

ou trez gerações depois do auge da corrente litteraria?

Ousemos concluir isto, onde o raciocínio excede o sonho: que

a actual corrente litteraria portugueza é completa- e absolutamente

o principio de uma grande corrente litteraria, das que precedem as

grandes épocas creadoras das grandes nações de quem a civilização

» é filha.

Que o mal e o pouco do presente nos não deprimam nem

illudam: são elles que confirmam o nosso raciocínio. Tenhamos a

coragem de ir para aquella louca alegria que vem das bandas para

onde o raciocínio nos leva! Prepara-se em Portugal uma renascença

extraordinária, um resurgimento assombroso. O ponto de luz até

onde essa renascença nos deve levar não se pode dizer n'este breve

estudo; desacompanhada de um raciocínio confirmativo, essa previ-

são pareceria um lúcido sonho de louco.

Tenhamos fé. Tornemos essa crença, afinal lógica, n'um futuro

mais glorioso do que a imaginação o ousa conceber, a nossa alma

e o nosso corpo, o quotidiano e o eterno de nós. Dia e noite, em

pensamento e acção, em sonhQ e vida, esteja comnosco, para que

nenhuma das nossas almas falte á sua missão de hoje, de crear o

supra-Portugal de amanhã.

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MALHADOR (croquis do natural)

Do "ÁLBUM DO TRABALHO,,

(De Cristiano de Carvalho)

A Águia-4 (2.a série)

A ÁGUIA 109

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-«-t-C^w<i.

Pertence esta carta, que foi escrita em 1851, ao solicitador snr. AugustoGomes. O destinatário era irmão de Alexandre Herculano.

CÂNTICO DOS MONTES

A João Corrêa de Oliveira

Nos longes dalina persistentementeVão murmurando línguas ardorosas ...-Que nos acordam sediciosamente

A nostalgia vaga e eteria e ardente

Das velhas nubelosas.

E donde a onde ás altaneiras frontes

Surgem flamas de extintas energias...

E nossos olhos espectraes de Montes

Raivam em sangue e aterram Horisontes

Num lençol de agonias.

O' ancia torturada das Alturas!

Vertigens de Infinito! O' pesadêlo!...

Quem apertou, scismaticas e escuras,

Nossas frontes, em nevoas de loucuras,

Num circulo de gêlo?!...

Que mão possante nos cortou o vôo

De azas erguidas num supremo arranco...

Nossas azas de luz petrificou ...

E com amarras firmes amarrou,

Sempre, ao materno flanco?!...

Desde então, como enruga tórva magua

Nossas frontes estoicas e sombrias!

Depenaram-se as azas, fragua em fragua ...

E as gargantas em doces ritmos de agua

Modulam elegías ...

Mas ao subir da Terra o fino incenso

Do Crepusculo, a ira apaziguámos...

O Sol rojou o Resplendôr intenso ...

Num viatico de luz vem Deus-Imenso!

Silencio... Ajoelhamos!

... Temos no olhar alucinado e fito

As divinas Theorias das Alturas ...

E vão seguindo, no sagrado rito,

Em branca procissão, pelo Infinito,

Nossas preces mais puras...

Surge a lua ... E em êxtase divino

Pomos as mãos-ao ceu erguendo o olhar...

E em vozes de Silencio cristalino,

Assim dedilham, místicas, um hino,

Na Harpa do Luar ...

CAMILLO CASTELLO BRANCO

CARTAS INÉDITAS

VII

Meu amigo:

Recebi as lindas poesias: destinei a Montanha para o Chris-tianismo e a Tristeza para o Bardo. Agradeço-as muito; mas não

quizera vêl-as em contradicção. O meu Guilhermino, na primeira,homem do ermo, do desengano, e da fé, dá-se os parabéns pela paz

que possue. Na 2.-< a sua tristeza nasce d'aqui, do tremedal das

paixoens, e ousa tentar a Deus, implorando-lhe a morte, menos

amarga que a dôr.«

Quem quizer acompanhar-me pegue na sua- cruz, e siga-me.»

O poeta responde ao Mestre, que não pode. Permitia elle que aquel-

Ias suas dôres sejam todas imaginarias. Vivo no ermo, mas não

saboreei ainda essas consolaçoens, que previamente li, como postasem aimanach ríum livro dum tal Zimmerman, medico allemão.

Chama-se a Solidão, mas é bom para ler-se no povoado. Ainda assim

.eu vivo lá melhor (digo lá porque estou escrevendo no Porto).

Noticio-lhe, se o não souber ainda, que vou para Coimbra a

matricular-me em theologia: recolhi-me ha dias de lá, onde tinha

a fazer alguns preparatórios em toda a extensão.

Approvo a idéa das cartas, e insto pela execução da feliz ide'a.

Lembra-me porem, que deve ser o O. o motor da polemica, se ella

fór conveniente. E' assim mais natural e menos pretenciosa da mi-

nha parte.

Escreva, pois, com brevidade. Eu de Coimbra continuo a re-

dacção do Christianismo, e podemos prolongar sobre variados motivos

a nossa útil controvérsia, ou, melhor direi, os nossos estudos reli-

giosos, O assumpta que me lembrou (Quaes são as tendencias reli-

giosas de Portugal?) dá margem a dizer cousas desagrudaveis. Entre

nós a tendencia, na boa direcção, é quasi imperceptível. Religião de

cabeça — essa sim, que a gerou o desengano e a vontade de atinar

em política, mas do coração, a par de cultivada a intelligencia, é

muito pouca, e não promette. Tenho estas tristes convicçoens. Tomara

eu desvanecel-as. Tente-o, meu amigo, pode ser que, felizmente

para mim, o consiga.

AD.S

Creia que me dá prazer com as suas cartas.

Seu amigo obrig.0

' ' 1

O silencio do meio-dia

(Excerpto)

De casaco ao hombro, os traba-

lhadôres arrastam-se, devagar. Os sinos

tangem e no ar estremecem tres ais de

bronze. Silencio!...

Olhem o maio!

Vae creadôr ...

Ainda está tildo humido da volnpiada noite.

As arvores dizem ao sol dos mys-terios do seu amor e as flores rindo,num ar gaiato, são beijos que ficaramdo amôr da terra.

P'lo campo abaixo, papoilas alagama verdura de manchas de sangue queficaram, indiscretamente, a denunciarmysterios de sensualidade.

Luz reveladôra do meio-dia!

Montes escalvados olham o ceu,num riso alvar, caminhos rústicos sobema serra, cruzam-se e galgam, com estre-mecimentos, na vertiginosa ancia de láchegar arriba. E ao cahir da encosta,manchas veludosas de pinheiraes, arvo-res exiladas perdendo o caule, na visãodistante, ficam como pontos negros sus-

pensos no ceu azul. E todo o horizonte,

perdendo agora a forma dum dromeda-rio, é um altar esculpido por um artistahalucinado de côr. A vista desce. Embaixo, a verdura rodopia e afoga numa

exótica exuberancia.

Por todo o campo, vae uma orgia

sangüínea e creadôra.

O tve-se a seiva glaucante dentro

das arvores cahem insectos amolecidosde luxuria; ave e serpente, besta e homem

embebedam-se de cio sobre a verdurahumedecida, agitam-sé corpos sensuali-zados de paysagem e ha roncos fartos

de velhos devassos, que comem leite na

carne branca das virgen: prostituídas,degenerescencias deliciosas que a folha-

gem mysticisa, vertigens d'alcova trans-

portadas para alli, sem o fundo branco

enjoativo, sobre a relva toda acalmada

como em ar de cançasso dos corpos

que alli rolaram ...

Olhem o maio!...

A vida, aqui, é d'uma simplicidade

dolorida.

Camponios seccos e ossudos salti-

tam, entre as ceroulas abaloadas, poronde as carnes sujas espreitam numa iirt-

moralidade dolorosa.

Forçados da terra, deram-lhe a carnee quando os vejo passar, resequidos

nervosos, julgo nelles existir só o sonhodo pão, sonho que elles realisam todosos dias, que lhes custa sangue que-lhescusta vida, mas que elles teimam, ha

séculos, em realisar porque, certo, os

olhos mentem e os braços ensangüenta-

dos illudem ...

Acomaram a terra, phosphatam a

vinha, sacham o milho, ceifam a herva

e, por vezes, o seu perfil hirsuto perde-sesob os molhos de lenha que acarretam

pelas tardes para depois, quasi á noite,

voltarem para a faina, que o sol jásecca e as regas urgem fartas e certeiras

e os milhos só de noite as bebem a

fazer-lhes bem.—

Que todo este jardinsinho de fru-

cta e de verdura, louvado Deus, custa

os olhos da cara.

Meio-dia a dar!

Da aldeia descem as companheiras

de cestos á cabeça, empanados de branco.

Levam os janfares compartilhados

depois, á sombra, sobriamente, numa

delicia resignada.

E' tudo docemente solitário. Só

Â

A ÁGUIA- 113

aqui e alli, dos botareus, se levantamrevoadas de passaros e, lá debaixo, dasarribadas floridas, sobre o chocolharmesopotamico dos rebanhos...

Pela folhagem, vae agora um rumorde beijos seccos e desvairados. Limpasas boccas lambuzadas nas amalgas, oscamponios espreguiçaram-se, na relvae, num revoltear de saias sujas, as fe-nieas amollecem numa passividade las-eiva de cadellas. E ha abraços museu-losos, mordeduras d'um sadismo meigo,

que ficam nos peitos macerados, comotatuagens ... uivos d'animilidade agra-decida e, após Ímpetos de sangue ijacu-lado, a ironia extranha, elles, instintiva-mente, reconhecem de que o ominosocrime de serem homens só o attenua ainstantanea esmola de serem brutos. E,

por esta hora lasciva e somnolenta,escabeceiam camponios aflizados, portodo o campo vão as mesmas scenasde sensualidade, franca e desvergonhada,mima especie de deboche honesto d'ani-mal. Sacodem as saias e num remoquede censura p'ra que seria aquillo- asinsonsas companheiras pegam nos ces-tos e, nos esforços violentos da labuta,começam deformando o que, d'ahi atempos, será a mais beijada maldiçãodo seu peccado.

Numa apathia de carne aniolecida,-os escravos quedam-se a olhar. Teem-nas ainda nos braços e nos beiços e ocorpo, agora, diz com ella: p'ra queseria aquillo? Logo, ao meio da tarde,as pernas hao-de dar de si e lá p'ranoite... a amaldiçoada vida.

A' volta do caminho lá vão ellas,num saracotear magano.

Olham-nas sem amôr e, num ca-

pricho de luxuria satisfeita a imagina-

ção revista-lhes ainda as carnes que elles,

quasi com nojo, reconhecem terem ain-da nos braços e nos beiços.

Proscriptos da Vida, passam, ha se-culos, entre a Fome e a Terra sem ma-tarem uma e sem possuírem outra.

Gente bem nossa, extranhamentesympatica, cheia de fome e de sol, co-lonos do silencio e da tristeza que sóa entrecorta alegrias que o álcool faz

explodir em espasmos mortíferos, cantos

que teem rithmos de soluços e, lá den-tro, um- heroísmo de navalha, d'essa na-valha instrumento de volúpia meridio-nal, que tão calumniada tem sido só

porque hoje, promovendo o crime, jános não lembra que hontem nos deu a

gloria.O amôr, o amôr o que lhes dá os

filhos? Sentem-no lá! — O goso maldito!—A

gloria? Vem nos livros que nãodecifram. E de toda a choldra do pas-sado, d'um só homem citam o nomee isso porque se recordam que a avólhes contou, um dia, que era um gajoque não tinha um olho.

Meio-dia! Já vem chegando a cal-ma. Apetece dormir, descançar. Descan-

çar. Por quanto tempo?

Ha tempo de descançar, lá riba,

á quinta do senhor prior (')¦Nirvanica idéia que oito séculos de

hysope e agua benta desterrar hão lo-

graram do popular bestunto ...Poetas do soffrimento, olhae-os bem,

Olhem-nos como eu, exilado de mimmesmo. -

Quando os vejo passar, d'en-xada ao hombro, fúnebres como covei-ros, eu bem anceio decifrar, na funcunostalgia d'aquelles olhares, o transcen-dente martyrio da minha raça.

No ar, rolam ondas de moleza. Ena floresta, em frente, o vento passanum gemido discreto. Tenorios dos mi-lheiraes, vá, bebei no ar o aphrodisiacoforte d'esta hora peninsular!

Que esses cachopos, ao menos, tra-

gam nos olhos a humildade lubricadas relvas e nas faces o sangue virgemdas papoilas.

Olhem o maio ...

Coimbra- Bemcanta.

Maio de 1911.

(T) Nome por que, entre algumas povoaçõesruraes, é pictorescamente designado o cimiterio.

SAUDADE

(BREVES CONSIDERAÇOIS FILOLOGICAS)

Ao Poeta Dr. Teixeira de Pascoais

JèvíJ ão conheço palavra do nosso idioma que mais tenha dado

^ue ^a'ar- ^ continuará...

>2^1 Sôbre a sua origem e introdução em o nosso vo-

cabulário já em tempo (') falei, ainda que muito pela

rama. Desta feita serei mais extenso.

Camilo C. B. (*) a propósito do comentário feito por Almeida

Garrett, no seu Camões, (3) à palavra saudade satiriza o autor e,

concomitantemente, os seguintes clássicos "que

se ladroavam uns

aos outros despejadamente» — D. Francisco Manuel de Melo, Antó-

nio de Sousa de Macedo, Manuel Severim de Faria e Fr. Isidoro

Barreira, por quererem ser cada um dêles o primeiro a "fazer

o re-

paro» sôbre esta palavra, e atribuírem todos aos portugueses "o

ex-

clusivismo do sentimento da saudade,,; chegando, ele Camilo, à

conclusão de que nenhum daqueles foi o primeiro a fazer tal raparo,

mas sim Duarte Nunez de Leão; não obstante depois, na Bruxa de

Monte Córdova (p. 13), referindo-se ainda ao mesmo assunto, afir-

mar (certamente por gracejo) ter sido o primeiro o abade de

Claraval — S. Bernardo!

Já mostraremos que também caiu em êrro.

E Camilo não disse tudo, pois que, além daqueles autores, não

mencionou Álvaro Ferreira de Vera (4), que em 1631 por seu lado

fez o seguinte reparo: "E

sôbre todas esta — saudades — que com

muitas palavras doutras lingüas se não pode explicar,,.

Ainda outro, que o mordaz Camilo não mencionou.

Manuel de Faria e Sousa, falecido em 1649 —nos comentos

dos Lusíadas (C. III, 120) fez este grande reparo (")•' "Saudade

em

português não é outra coisa que soidade, derivado de soidão, que

direitamente é soledade; e o dizer saudade é corrução». Como se

vê confundiu dois vocábulos etimologicamente diferentes—soidade

e soidão (embora solitate e solitudine derivem ambos do lat. solus).

Mais adeante, porém, diz Faria com mais acêrto: "A

corrucção

de soidade em saudade, para os ouvidos portuguêses, veio a parar

em voz regalada (sic), mais expressiva que a primeira, e sem egual

(') Nos meus Subsídios para um dicionário completo.

(2) Coisas leves e pesadas, pag. 91 e seg.

(:i) Nota A ao Canto l.o.

(4) Louvores da língua portug., fl. 83.

(r,j Apud Bluteau, Vocabulário, s. v. Saudade.

A ÁGUIA 115

nos idiomas mais cultos e elegantes da Europa. Saudade, segundo

toda a extensão da sua significação, é um finíssimo sentimento e

pena dum bem ausente, com desejo de o lograr».

E, alétn dêstes, um anónino (') que, pouco depois de 1727,

elogia a lingua "que

tem a palavra saudade e mágoa,,.

João Batista de Castro (Mapa de Portugal, l.a parte, cap. XIII)

em 1745 também escreveu: "Só

o português com a única palavrasaudade sabe exprimir com muito maior força e energia a constan-

cia do amor ausente; e com a voz magoa a penetrante dôr do

sentimento».

Fechido este parêntesis revertamos ao remate de Camilo:"E

então coisa resolvida que foi vossemecê, snr. Duarte Nunes

de Leão, quem primeiro reparou?.. . — concluí eu. Calou-se. Hei de

saber ainda o segredo daquele silencio».

Morreu sem chegar a desvendar-nos tal segrêdo. Verei se o

consigo. Para isso reproduzirei antes o reparo de D. N. Leão.

Diz ele: (2)"...

Saudade. Este affecto como lie proprio dos Portuguêses

que naturalmente são maviosos, & affeiçoados, não ha lingoa em

que da mesma maneira se possa explicar, nem ainda por muitas

palauras que se declare bem sendo saudade palaura que se

não diz soomente referindo a pessoas, mas a cousas inanimadas. Por-

que temos saudade de ver a terra em que nascemos, ou em que nos

criamos, ou em que nos vimos em algum gosto, ou prosperidade.Pelo que parece que mais lhe podia quadrar esta definição, que lie

lembrança de algua cousa com desejo delia,,.

Ora 160 e tantos anos antes El-rei D. Duarte, na sua admira-

vel e nunca assaz louvada obra Leal Conselheiro, escreveu um ca-

pítulo (XXV)—Do nojo, pesar, desprazer, avorrecymento e suydade—

no qual, dissertando sôbre a diferença e manifestação dêstes senti-

mentos, diz o seguinte:"E

porem me parece este nome suydade tam proprio que o

latym, nem outro linguagem que eu saiba, nom he pera tal sentido

semelhante. De se haver algüas vezes com prazer, e outras com

nojo ou tristeza, esto se faz, segundo me parece, porquanto suydade

propriamente he sentido que o coraçom filha por se achar partydoda presença d'algüa pessoa, ou pessoas que muyto per affeiçom

ama, ou o espera cedo de seer; e esso medês dos tempos e luga-

res em que per deleitaçom muyto folgou; dygo afeiçom e deleyta-

çoin, porque som sentymentos que ao coraçon perteencem, donde

verdadeiramente nace a suydade, mais que da razom nem do siso».

Teria D. N. Leão conhecimento dêste passo? O Vizconde de

Santarém (Introdução ao Leal Conselheiro, p. VI) é de opinião queele

"não vira o Leal Conselheiro, e só dêle tinha noticia».

(') Manuscrito da Bibliot. Nac. de Lisboa. Apud Dr. Leite de Vasc., A

filologia portug, p. 36.

( ) Origem da lingoa port. cap. XXI. De algüas palavras Portuguesas & ma-neiras de fallar, que se não podem explicar por outras Latinas, nem de outra lingoa.

116 A ÁGUIA

O primeiro, pois, que reparou na palavra saudade foi El-rei

D. Duarte.

Mas quando começou ela a fazer parte do nosso idioma?

Muito antes de D. Duarte.

Haverá só na lingua portuguesa tal palavra para exprimir este

sentimento? Também em espanhol, segundo creio.

Qual o primeiro autor que registou este vocábulo? Qual a sua

verdadeira etimologia? Vou tocar estes pontos.

Em diversas obras aparecem exemplos dêste voe.; mas todos pos-

teriores a D. Duarte: Garcia de Resende, Gil Vicente, A. Prestes,

Camões, Jorge F. de Vasconcelos, Fr. Luís de Sousa, etc. Encon-

tra-se também em Azurara, Samuel Usque, etc.

Ora muito antes do Leal Conselheiro aparece nos Cancionei-

ros:—no Cancioneiro da Vaticana n.° 119, 210, 214, etc., e no Can-

cioneiro da Ajuda (') n.° 389, num descordo cujo autor foi Nunean-

nes Cerzeo.

Foi, pois, D. Denis, ou algum dos trovadores do ciclo dioni-

siano, o primeiro (até hoje conhecido) a empregar este voe.; com a

grafia soidade (soidade).

Além desta grafia, também adoptada por Camões (Elegia II, 3

e VI, 6), encontram-se as seguintes: suydade no Leal Conselheiro (~)

Cancioneiro da Vat. n.° 758, Azurara (Crônica da Guiné, pag. 340),

Samuel Usque (Tribul. de Israel, 3.° fl. 40 v.), Infante D. Pedro (Li-

vro da virtuosa benfeitoria, p. 206 e 292), etc.;—soydade no Canc.

da Vaticana n.° 119 e 214, e Azurara p. 142;—saudade em Camões

(soneto 83 e Lus. III, 124), Gil Vicente, Cancioneiro Geral, Jorge

F. de Vasconcelos (Eufrosina), etc.; — finalmente soedade, cuja eti-

mologia é a mesma, mas significando solidão, logar solitário, em

Arraiz (Diálogos, II, 12 e V, 1).

O primeiro autor que registou este voe. foi precisamente o A.

do primeiro dicionário que se publicou (3)—Jerónimo Cardoso

(Diction. lusitano-latinum, 1569); e registou-o apenas com a grafiasaudade. Egualmente o P.e Bento Pereira (Tesouro da ling. port.,1645),

Já Bluteau (Vocabulário port., 1720) registou as duas grafias

saudade e soidade.

Anos depois (1789) A. Morais, no seu dicionário da ling. port.,aproximou-se da verdadeira origem, dizendo:

"Vem de soledade,

alterado em soedade, soidade, e em fim saudade

Foi, porém, pouco mais ou menos nessa época, que o acadé-

mico A. das Neves Pereira (Memórias da Academia, IV, p. 428)

acertou afirmando ser "derivada

do latim solitate,,.

Não fique por dizer que soidade ou saudade e soledade são

(') Edição de D. Carolina Micaelis de V., p. 765.

(-) Loc. cit.

(:l) Mas o primeiro, não impresso, faz parte do Códice 404 de Bibliot.Nacional, com data do séc. XIV ou comêço do séc. XV. Apud Dr. Leite deVasc., A filologia portuguesa, pag. 24 e seg.

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I

A ÁGUIA 117

etimologicamente a mesma coisa: aquela forma genuinamente por-tuguesa, forma evolutiva segundo as regras da nossa fonética; a se-

gunda (soledade) forma semi-erudita, meio evolutiva, como o mos-

tra a permanência do l intervocálico. O que ainda não foi satisfato-

riamente explicado é a mudança de oi em aü, embora pareça a

alguns ter havido influência do voe. saúde. Para o Snr. Oonçálvez

Viana (') houve em saudade influência do voe. saudar: mas paraisso será preciso provar em primeiro logar ser da mesma época a

introducção dêste voe. em o nosso idioma.

Vamos ao último ponto.

Não padece dúvida que tal sentimento deve existir em todos os

povos; e tanto mais intenso ou delicado, quanto maior o seu grau de

civilização ou cultura intelectual. Devem, pois, existir em todos eles

expressõis ou termos apropriados. Mas será alguma dessas expres-

sõis, além de equivalente, da mesma origem?

Ha na lingua castelhana o voe. soledad, cuja etimologia é a

mesma de saudade ou soidade; e que este termo soledad também

lá se emprega para exprimir o mesmo sentimento, provam-no os

seguintes passos, o primeiro do poeta Luis de Góngora, e o segundo

de Pedro de Medina:"Cuanto

es mayor el ruido de esta corte, tanto es mayor la

soledad que V. S. I. me hace echando menos en todo lugar la

piedad y benevolencia dei santo Obispo de Cordoba Ç2),,."...contempla

Ia tristeza que la Reina dei Cielo sintió en los

tres dias que padeció ausência y soledad de su muy amado Hijo (").„Finalmente, no dialecto galego ha o voe. soedade que, sendo

pela etimologia o mesmo que saudade, tem egualmente a mesma

significação, como se vê do segqinte passo de M. Garros Enríquez (4).

"Inorante de canto 11'acontecia

O probe de Martino, por quen sofria

Soedades mil,

Rosa, n'a cinturina crabacfa roca,

Mazaroca fiando trás mazaroca,

Pensaba n'il».

E com isto me despido dos meus ultra-pacientíssimos leitores,

e (não ha mister dizerem-mo) sem lhes deixar saudades.

12 3-912.

(') Apostilas aos dicion. port., II, p. 408,

(2) Apud Q. Viana, ob. cit.

(:)) Diccion. enciclopédico hispano-amer., s. v. Soledad.

(4) Aires de mina terra, p. 32, edição de 1886, ou p. 27 na ed. 1908.

ATTRACÇÃO DA TERRA < >

No illieu áspero, árido, dum amarello tábido, arrugado em pomas e alcantis,

eriçado em cristas foraminosas, poido em furnas e socavas por onde arremettiam

d'impeto, aos estouros, grossos golfões de mar, a prumo, tesa, mastreando um pin-

caro, avultava escalavrada a torre do pharol. Como uma ostra apegava-se-lhe ao

sopé a casa do pharoleiro.Em torno e acima do escolho revoavam gaivotas.Aqui, ali, em pontos salteados eruptos agaves ouriçavam espathas; hervas

bravias, hispidas irrompiam dos lanhos.

Crustáceos fervilhavam nas orilhas do penedio entre algas côr de limo que

boiavam esguedelhadas como enormes arachnideos.

O oceano infinito e tumido rutilava deserto aflorado de espumas e_os barcos

que surgiam nas extremas do horizonte pareciam baixar do ceu em vôo sereno,

singrando em doce deslise, no alor das nevoas fluindo ao sopro do vento brando.

Nos dias límpidos, sob o azul fúlgido, o ilhéu sobrenadava de ouro 110

faiscante rebrilho das aguas, com uma orla de espuma férvida; aves esvoaçavam

em bandos, investiam d alto á vaga, remontavam batendo as azas largas ou fica-

vam em repouso no balouço da onda preando o peixe que esfusiava rápido. Com

os aguaceiros do inverno, no furor dos ventos, sob as vergastas das chuvas, o

ilhéu retransia-se.

Os vagalhões assaltavam-no, subiam-lhe pelas encostas ás grimpas rebentando

estrondosamente em cachoes d'espuma, despejavam-se catadupejantes pelas rampas

alagando os desvãos, chegando em frouxos lençoes á casa e, por toda a parte, o

mar estrondava, o vento zunia, a chuva ruflava em bátegas e sentia-se em torno,

alem do adensado nevoeiro que isolava o escolho, a madría tronando, rebôos de

trovões, uivos do vento e, de longe em longe, uma gaivota, rompendo a borrasca,

pousava num ermo e ficava a tremer, arrufada, oscilando ao vendaval.

Habitavam o ilhéu o pharoleiro, a mulher e a filha e um ajudante, Bruno,

antigo patrão de barco.

Os dois homens, unidos pela soledade, davam-se como irmãos e, ainda que

taciturnos, de poucas falas, passavam os dias juntos ou nas ribas concertando

redes, ou afuroando o peixe nas madrigueiras se não jogando sentados num esca-

lão da rocha, quando não se mettiam lá em cima, 110 lanternim, limpando, lubri-

ficando o aparelho, reparando estragos do vento 110 tempo das aguas.

A mulher, cabocla franzina e secca, de pelle lanada conto a dos homens,

tnourejava da manhansinha á noite e, emquanto a panella fervia, com appetitoso

cheiro de guisados praieiros: peixe e mariscos, de longe em longe 11111 pouco de

carne secca, curvada 11a tina que, ora um, ora outro homem enchia com agua do

algibe, lavava cantando módas da sua villa sertaneja, tão verde entre cheirosas

balsas, fresca e murmurante de corregos, numa intimidade feliz de palhoças e

ranchos, com laranjaes em flor e roças louras de caima e milho. Acompanhava-lhe

a voz guaiada o marulho monotono das ondas em quebrança. A alegria do de-

gredo era a pequena Sara.

Nascida ali, ali criada, o seu mundo era o parcel. Percorrendo-o de extremo

a extremo, descalça, cabello ao vento, indifferente ao inipeto das ondas, sempre

molhada da cuspinhagem da ressaca, conhecia-lhe todos os desvios, desde os pon-

tos mais Íngremes ate a gróta onde o mar gorgolejava, expluindo ás detonações

e os labyrinthos e canaes profundos onde, sob uma nevoa cerulea e lugubre, lu-

ziam balseiros d'agua fuzilando em lampejos argentinos ao fugitivo espadanar dos

peixes.

(') Do livro "No Rancho,,, a ser editado brevemente pela Livraria Chardron.

A ÁGUIA 119

Passava horas alapardada nessas cryptas soturnas escarranchada em arestas,. agarrada ás aspas da rocha, gritando para ouvir o resôo do echo que se prolon-

gava e retumbava em rolos de som pelas anfracturas da lapa.

Conhecia os pendores, as escarpas lanhadas em escaleiras, preferidas doslagartos, ás vezes tão cheias delles que, á distancia, com o remexar dos bichos, asrochas pareciam arfar, mover-se, sacudir o dorso ao sol.

A mãe prendia-a á casa dando-lhe serviços para tel-a sempre junto a si,receiosa d'algum desastre naquelles passos perigosos e, ao exploir resoante de vagamais estrondosa, se a não via perto, lançava-se afflicta a procural-a, chamando-aaos gritos, correndo pelo espinhaço do penedio, resvalando aos abysmos, debruçan-do-se das arribas até dar com ella onde estivesse.

Encontrava-a, umas vezes, defendendo heroicamente o ninho das gaivotas:de pé, num anfracto, apedrejando, a cascas de ostras, as gordas ratazanas quechiavam fugindo de roldão, lambusadas 110 glúten dos ovos destruídos. Ou entãonuma chan, ante um remanso límpido de mar, tão raso, liso e transparente quese lhe via o fundo amarellento, a cevar peixes que se atropellavam engalfinhados,arremettendo.ao lambisco.

O mar não tinha segredos para a pequena pelo bolhar 011 crispar dasuperfície sabia se eram levas de garoupas ou cardumes de sardinhas que passa-vam; roteava por um expluir de espumas a marcha dos tubarões, distinguia aolonge as aguas-vivas.

Mas o seu prazer e iam-se-lhe os olhos nelle era seguir as cabriolas dosbotos rolando ao largo em rebolcos lentos.

Se avistava uma vela 011 vulto de paquete emmaranhado em cabos, atufadoem fumo, singrando na lisura lustrosa, cahia em scisma recordando as conversas

que ouvia em casa sobre a terra, a mysteriosa terra grande e rica, cheia de cidadesfartas, ondulada em montes encrespados de selvas, reluzindo em fios de riachos,estendida em campos vastos e verdes como o mar, coalhados de rebanhos tenros,com pastorinhos mimosos e bem vestidos como os dos chromos.

Sempre, porém, turbando a doce idealisação das bellezas da terra fértil,

pensava 11a morte. Não a comprehendia senão como um esqueleto armado de foice,rompendo das nuvens, direita aos homens, como as gaivotas quando colhem ovôo e abatem na vaga sobre o peixe arisco. E tremia, encolhia-se arrepiada, re-lanceando em torno os olhos cheios de medo.

Mas a serenidade do céu e do oceano tranquilizavain-na e reentrava nodoce sonho. Então pensava em Deus, 110 Deus das orações, Cuja imagem soffre-dora lá estava, á parede, 1111111 quadro cercado de sempre-vivas; Deus^ o creadorde tudo, o Pai dos homens que navegam e das estrellas que brilham, dos peixese das gaivotas, do sol e da lua, senhor do céu e do mar; Deus, que lá estava,entre luzes eternas, 11a igreja sonora, á sua espera para baptizal-a, abençoal-a, to-mal-a a si sob a sua mão direita.

Então desejava a terra com ancia, sentia Ímpetos de arrojar-se ao mar, na-dando, seguir os navios através do céu d'aléin, e entrar ás cidades ao som dossinos, por entre soldados e jardins floridos, grandes bois, fontes borbulhantes e

príncipes vestidos de seda, com espadins de ouro e chapéus de plumas, como nashistorias.

A's vezes chorava frenética num grande odio ás aguas e áquelle céu quelhe encobria a terra desejada.

Bruno, quando lhe falava da "capital,, estendia os braços para 11111 pontoonde, á noite, as estrellas luziam mais abundantes, e dizia-lhe: "E' ali!,, E ella fi-cava olhando longamente, a fito, até que os olhos se lhe enchiam de sombras.Mas não comprehendia e tomava por brincadeira o que lhe affirmava o pai daimmensidade do mufido, correndo um largo gesto que circulava o âmbito dohorizonte:

Por toda a parte ha terra, praias altas, de areias brancas com coqueiraesem palmas e lá p'ra dentro cidades cheias de palacios, cheias de mercados, comcarruagens rodando, passaros, muita gente, musicas.

Não, a terra ficava, como dizia o Bruno, lá onde luziam as estrellas maisclaras, alta, num monte azul, com arvores cheias de passarinhos.

E quando chegava ao ilhéu o barco das provisões, Sara exultava feliz, la a

120 A ÁGUIA

correr e a rir, escorregando nas lombas, saltando das cuspides até á cascalheira da

orla e, em alvoroço, pulava á prôa, ia pela bancada festejando, abraçando, os tri-

polantes como para sentir o cheiro que elles traziam da terra e esquadrinhando,

rebuscando nos vãos do barco como a buscar alguma coisa de lá e examinava,

recolhia tudo folhas, pedaços de jornaes, cascas de frutas, seixos. "E

emquanto os

homens demoravam no ilhéu não os deixava com perguntas e, quando partiam,subia ao lanternini do pharol e, lá de cima, dominando o mar, ficava-se a con-

templai-os, acenando-lhes com um panno até que a vela do barco, pequenina,confundia-se com as espumas que cotonavam o oceano.

Uma tarde disse-lhe o pai, afagando-lhe os cabellos salitrados:Quando fizeres dez annos, se Deus não mandar o contrario, irás cotnnosco

á terra baptizar-te.-Contanto

que a morte não me veja, murmurou. A mâi rompeu de

re'pellão:

Ah! tola! Ocê pensa que a morte anda na terra como a gente?...Pois então ?!

Boba!

Ella não sabe, coitada! desculpou o pai. E a cabocla, supersticiosa,

explicou:

A Morte não se vê e está em toda parte, tanto lá como aqui.

Aqui, não.

Graças a Deus! beindisse o pharoleiro. E a pequena, depois de considerar:

Mas então só quando eu fizer dez annos?-Só.

E ainda falta muito?-Dois. Tens oito. Sára encostou-se ao umbral e, de cabeça baixa, ali ficou

contida num pensamento.O sol baixava enorme, d'um fulgor metálico, reverberando aoTèz das aguas

que relumbravam e o céu áureo, estriado a traços flabellares, chovia gloriosamenteuma poeira de ouro. Vagas rolavam pesadas em ampolas coruscantes e todo o

oceano reluzia picado em scintillações.

O disco astral tocou a linha do horizonte com um brilho fremente e o

mar, sob o oceano ardido, inflammou-se rutilando.

Foi um deslumbramento rápido. Vagaroso, num descer de pluma, o sol

mergulhou. Houve um extase; ondas brincaram e a claridade foi-se, aos poucos,apagando- aqui, ali um brilho ainda, uma scintillação candente. Por fim, esmae-

cendo a luz, o mar reluziu em lustro oleoso.

Levantou-se utn vento fresco, abrolhavam nas aguas frouxeis brancos, e, á

luz meiga, aos bandos, vieram vindo as gaivotas e barulhavam entrando ás furnas

ou reunindo-se num alto, ficavam immoveis, ainda gozando o anoitecer. Fez-se

escuro silencio.

Súbito, num jacto explosivo, o clarão do pharol tremeluziu, largo e extenso,

nas aguas.

Bruno lá estava na vigilia do primeiro quarto.

A familia recolheu á casa. A candeia aclarou o interior aceiado.

O pharoleiro sentou-se junto á mesa, accendeu o cachimbo e ficou-se a

fumar, banzando. A cabocla ia e vinha nos arranjos domésticos guardando a

louça, dobrando peças de roupa. Sara metteu-se' a um canto encolhida, o rosto,

na mão, a olhar a folhinha de parede, pregada em chromo bucolico, onde um

moinho velejava alto, num colle, sobre um fundo risonho de céus azues e campos

louros. "Estavam ali os dias, pensava a pequena. Tantos! Era d'ali que a mãi ti-

rava-os um a um, de manhãsinha, ainda escuro e, mal o despegava, logo o sftl

rompia das aguas. E se ella furtasse alguns! um pelo menos!....,

Relanceou o olhar em volta -os pais estavam distrahidos. Levantou-se de

vagarinho e, de leve, foi destacando a folha, outra logo appareceu em baixo. Ins-

tinctivamente inclinou a cabeça lançando os olhos para a porta, a ver se havia

claridade de sol - a escuridão persistia. Sorriu, e d'impeto arrancando a folha,

amarfanhou-a, nietteu-a no seio e, disfarçadamente, pé ante pé, caminhou direito

á porta, sahiu e, curvada, cosendo-se com a parede, amiudou os passos, lançou-se,

por fim, a correr.

A ÁGUIA

Enveredou por entre as penhas, trepou á escarpa caleada a luar e, por lom-

tfadas e arestas que pareciam de gesso, chegou á beira do mar prateado onde as

espumas ferviam em brilhos. Tirou o papel do seio, lançou-o ás aguas. O vento

apanhou-o no ar, revolveu-o, levou-o. Sara não o viu cahir.

Olhava, mas a voz da cabocla veiu de longe, em grita: "Sara!,, Voltou-se.

A onda lenta preguiçava 11a rampa, envolvendo-lhe os pés em humida caricia."Sara!,, Lindo, o luar palhetava as aguas. E a luz do pharol, como ia longe!

Quem seria o pharoleiro lá em cima, na lua? Ah! se fosse o pai... que

bom! Ali, sim, perto, pertinho das estrellas... Poderia ir d'uma a outra, correr

na estrada de S. Thiago, brincar por ali fóra. Que bom!,, 4

Um lume riscou os ares, apagou-se no mar; outro passou; alem eram mui-

tos'voando. "Deus "te

guie!,, balbuciou a pequena. E, longe, a voz afflicta: "Sara!,,

fez-se de volta sem pressa, d'olhos no céu, com a saíta espadanando ao

vento e resvalava ao longo d'uma fraga, apoiando-se ás anfractuosidades, quando

sentiu-se agarrada, sacudida aos safanões pelçi mãi, que rugia por entre dentes

cerrados:

Oração de Amôr e de Humildade

Tu, que és a minha Filha e a minha Mãe,

Que andas ao meu e trazes-me ao teu colo,

Tu que me arrolas, Tu, a quem arrolo

Para que mais quietinha durmas bem;

Tu que me enches de mimo, Tu a quem

Só eu nas máguas íntimas consolo,

Pequenina e leal strela do Polo,

Única estrela firme que o ceu tem,

Olha, minha Mãesinha, o teu menino

Não dorme, chora aflito, perde o tino:

Perdoa-lhe o agravo irreflectido

E nessa dôce voz, como não ha,

Sobre o teu seio canta-lhe ao ouvido:"Socegue

e durma, meu menino, vá...»

(Concilie),

c/ —

BASILIO TELES

ultimo livro de Basilio Teles fez nascer em mim o de-sejo de alguma coisa dizer sobre esse raro caracter, vi-vendo n'esta sociedade amorfa e insignificante.

Na redação da Águia soube que o querido poetaTeixeira de Pascoaes falaria sobre o livro de Job.

Estimei duplamente, por mim e por Basilio Teles.

For mim, porque, liberto da responsabilidade de crítico daobra, poderia rapidamente falar do que mais agradasse á minhaadmirativa simpatia ou á minha particular feição espiritual.

Por Basilio Teles, porque ele terá a alegria de vêr a sua belaalma comovidamente advinhada, em toda a sua longínqua bondade,

pela alma do Poeta,

Falarei de Basilio Teles perante o problema do mal.

Quando li o pedaço de prosa, do princípio do "Estudo»,

evo-

quei aos meus olhos a figura d'um velho marinheiro, que do tom-badilho olhasse, sereno e atento, o assalto das ondas montanhosas.

Evoquei, e logo senti quanto era inadequada a imagem. Esteapenas se defende; contém gritos e imprecações para não indisci-

plinar a marinhagem. Lembrei o sábio debruçado sobre Vesuvio

para lhe observar as entranhas.

Mas é ainda injusta e depreciativa a comparação. Olhar o Ve-suvio deve sêr terrível, mas olhar o Mal é formidável. O problemado Mal dá a medida das almas.

Todos os creadôres o sentiram, o envolveram, e, em redor,traçaram a orbita do seu pensamento heroico.

Quereis conhecer o macisso d'uma alma? Interrogai-a sobreo Mal.

Vereis como não ha habilidades dialecticas que salvem.

Tendes deante de vós uma alma heróica? Ela porá, nas suasrespostas, originalidade, vigor e grandeza.

Tendes uma alma banal e chata?

Recitar-vos-ha o catecismo ou Shopenhauer, porá a mascara .do super-homem ou do bom reitor.

Disse algures Jaurés que o problema do Infinito se põe denovo

para cada sêr.

E certo; e a alma do problema é na moralidade ou a amora-lidade do Sêr, isto é, no problema metafísico do bem e do mal.

Podemos arranjar hipóteses provisórias, biologica e sociologi- .camente utilisaveis; mas sempre o problema permanece, porque obem e o mal são fructos do Absoluto. Uma arimetica moral podesêr util para coordenar interesses, mas nada pode dizer sobre aessencia da questão.

É o problema de Deus, a dualidade Espirito e Natureza.

A ÁGUIA123

Debate-lo é, já, erguer o Espírito creadôr e amante em frente á

Matéria indeferente e inerte.

As religiões não o resolveram e a sciencia não o resolveu,

porque religiões e sciencia só possuem Matéria.

O cristianismo (') foi um afloramento do Irracional increado

e creadôr, uma erupção espiritual, mas logo aprisionada na imobi-

lidade do dogma.

Seria a fluida omnipresença, volveu-se em solidificado exclu-

sivisrno. O catolicismo contem apenas matéria psicologica e moral.

A continuidade da ação perdeu-se na discontinuidade do de-

creto e da obediencia.

A sciencia só aprehende o descontínuo, o inerte.

Religião e Sciencia sam impotentes perante um Bem e um Mal,

para elas irreductiveis e absolutos.

Um creacionismo moral verá, na dualidade Espirito — Natureza,

o motivo da sua ação e o valor da sua realidade.

Na continuidade vivida do esforço moral encontrará Deus, isto

é, o incessante acréscimo dos domínios espirituaes.

Até onde irá a eficacia d'esse esforço moral?

Quando se casará a fria luz do Cosmos com a luz amorosa

do homem?

É todo o problema de onmipotencia divina.

O homem tem a responsabilidade, livremente tomada, de mo-

ralisar a Natureza, isto é, as paixões, a inteligência, os instinctos, a

cegueira.

É essa "a

sua linhagem divina.

A atitude d'uma alma perante o Universo é um misterioso

laço de humildade e heroísmo,.

Quando, no silencio concavo da Noite, o homem ergue a

Consciência interrogadora e afirmativa, sente bem, na maré viva da

alma, a certeza victoriosa das suas promessas.

Encarar de fito o Mal é a maxima coragem e a mais nobre ação.

Raros olhos resistem á luz do Sol, bem menor é o numero

das almas que resistem á luz de Deus.

Num pais de palradôres inconscientes, de literatos livrescos, de

consciências (?) oporturnistas, é bem admiravel a presença d'uma

v.eneranda figura, como a de Basilio Teles.

É como se perdidos num jardim, cheio de monstros requinta-

dos, de repente os nossos olhos vissem o solido raizame d'algum

carvalho; ou como se, num quente salão perfumado, entrasse de re-

pente a rajada da Montanha.

Abençoado o austero' homem, que é um grande exemplo mo-

ral á nossa mocidade.

(') Vêr na l.a serie da "Águia,, o nosso artigo "Natal e Ano Novo,,. , .

A TRICANA

ssa com quem passei a noite no desvairo febril de violar

uma filha de Byzancio, numa luxuria fulva, — tem o sexo

perdido e urna língua depravada por costume.

Baldadamente meus braços feitos ondas voluptuosas

apalpavam o inédito prazer, em que me lançára o desvairo desta

noite de evocações, de saborear ainda a sombra da Tricana com

que essa rapariga, de tricana vestida, me tentava.

Estudante doutros tempos me sentia. Desatei-lhe o cabello, e

na seda do seu cabello procurei a graça divina que nossos avós mol-

davam em barro virgem criando corpos esveltos que ao depois in-

cestuavam. Freirinhas do Mondego que viviam da penitencia de

amar, quando um dia fossem mães criavam as filhas, á fonte as

mandavam, — e todas voltavam com o cantaro quebrado, já também

presas do peccado de ajnar. Era assim o destino dellas no tempo

passado, saudosíssimas Elsas esperando a vinda do cysne branco

para entregar o corpo ao cavalleiro que tardava em vir buscá-lo.

Bemdito era o fruto dos seus ventres, illibados por Inês do peccado

original: pois pelo seu sacrifício podiam todas amar, — e pelo seu

exemplo iam esperando p'ra tomá-las aquelle cuja chegada lhes

dizia a voz do sangue.

Últimos dias de Coimbra embalavam-me em lentos, languidos

baloiços de lenda; e o luar fluido irisava-me, — sedas roçando as

veias, ondas de beijos no ar, palpitações e rendas...

Desatei-lhe os cabellos. Os seus cabellos eram veludo de orclii-

deas, o beijo das suas palpebras péle de antílope acariciando.

Ia a banhar-me nos seus cabellos: logo o seu gesto e a sua

voz, agora mais engrossada:

—:Ó filho, vê se estás quieto. Olha a chatice de amanhã me

pentear!...

Como acendi eu a vela, meio-acordado, e me senti no meu

quarto, - com as malas já em ordem amontoadas a um canto, e as

paredes nuas diluindo em torno a terna melancolia da partida?

A luz tremula da vela punha em fuga, detraz dos moveis,

mômos de lenda, figurinhas grotescas feitas penumbra e silencio.

Sentada na cama, com as mãos atadas nos joelhos, lamentou-se

da sorte que a mãe lhe déra, em monosylabos grossos, palavras

arrastadas; e de repente, como desenredando um drama alheio, sêco

e insensível de muito dito, começou-me a contar a sua historia, que

eu toda illuminei de risos de primavera e manchas barbaras de no-

turno ancioso...

A mãe era servente, e logo de pequenita começou a levá-la

Tronco de cedro do Bussaco

(Dc Ccrvantes de Haro)

A Águia-4 (2.a série)

A ÁGUIA 125

por casa dos estudantes onde a principio se encolhia contra o seu

avental e depois foi ganhando confiança de garota tagarela. A's ve-

zes, o senhor doutor chegava das aulas quando ella fazia a cama, e

entretinham-se os dois a conversar. Mandavam-na embora; se se

demorava, a mãe enxotava-a com obscenidades e ameaças. E co-

lando o ouvido á fechadura, em sobresaltos e advinhações, sentia so-

bre a cama um som mole, de corpos aconchegando-se, ferros ran-

gendo, e um resfolegar de besta amortecido nas roupas. Tossiam. A

mãe erguia-se e ia á janella chamá-la, em gritos que acordavam

toda a rua.

Uma vez, nos degraus da escada, ouviu-a altercar com um

quintanista por causa de seis vinténs:Julga

que eu sou alguma bácora? Olha o pelintra...E quando a pequena apareceu á porta, teve um gesto imundo,

arrepanhando as saias contra o ventre:Está aqui mas é muito meu.

Quando o ritmo das suas fôrmas acordou a ondear, tacteando

curvas sonhadas, e dentro de si a graça nubil se alára em mão an-

ciosa de escultor, e o sexo acordando punha inéditos donaires no

seu corpo, entrára a mãe a exhibi-la como uma joia de preço queesperasse o dia de iluminar de verbo um colo de voluta aerea. Foi

passarinho ligeiro,' alegrando a rua da janella, onde os rapazes vi-

nham dizer-lhe coisas que floriam sorrisos na sua face, ateiando a

luz alvorescente da pupila. Foi princezinha de saias curtas e chalé

traçado para dar relevo ao busto com o luar crescendo manso nos

peitos, ter graça de ave no volitar da sua chinelinha. Foi rainha

nas fogueiras da alta onde futricas e estudantes disputavam pala-vras suas e gestos promissores...

Pelo outono, quando as capas voltavam em revoadas novas e

as lavadeiras piladas apregoavam castanhas — quentes e bôas — aba-

nando os assadôres, comprou-lhe a mãe um fogueiro; e no cami-

nho do Choupal não era a sua voz que" chamava os rapazes, eram

os seus olhos de virgem gulosa do roçar de azas do arnôr, verbali-

zando tentações em gestos, enleando de gostosa a freguezia em

apetites e provocações.

Começou a ser falada; e queria então vestidos novos que a

mãe, amigalhando, lhe comprava; e o velho avô, rabujento e para-litico, encolhido na soleira, seguia-a sempre com um olhar baixo e

parado, tecido de socêgo e de silencio...

Quando chegou o São João todos os ranchos a desejavam, e

a todos dizia que sim, a rôla brava. Foi o conselho da mãe quedecidiu a escolha; e logo o ensaiador a fez rouxinol da fogueira,

para cantar no meio as cantigas a solo, quando a assistência ergue

reputações de belleza e corôa de palmas a mais linda tricana do

rancho.

Por este tempo a convivência dera-lhe falas mais fáceis, gestos'

126 A ÁGUIA

dúbios; e a graça de primitiva acoitara-se no sexo, coberta duma

camada môrna que era um cheiro de vicio a tomar corpo.

Uma noite, no intervalo da dança, a mãe mandou-a chamar

ao tablado, —que não se demorasse. Ficou-se um momento á porta

a conversar com visinhas que viam a fogueira defronte. Em cima,

tropeçavam passos na escada, que rangia. Ouviu a voz da mãe:

Por aqui, por aqui...

Depois um raspar de fosforos acendendo o candieiro, a mãe

falando baixo, crescendo a vOz de apressada:

E' escusado ateimar: não é menos de cincoenta... E é por

ser o snr. dr., que é pessoa aceiada...

Alguém contava notas, incerto.

Trinta... Quarenta... Cincoenta...

E despejando p'ra a escada:

Vê se te avias... vê se te avias, estupor.

Estacou á porta, junto da mãe, que se dispunha a sair. Enco-

Ihido contra a parede, de mãos nos bolsos, a capa caída sobre os

ombros curvados, um estudante mirava-a de travez. A luz frouxa

do candieiro, a furtar-lhe as formas, alastrava a sombra pela parede

numa mancha indecisa, inerte.

Da porta, a mãe atirou para o vulto imóvel, —sêca, sem tom

de voz:-Arranje-se depressinha, que podem desconfiar...

Saiu.

Os cantos fora recomeçavam. Ella ouviu dar a volta á fecha-

dura: e nem um passo na escada. A vista ia-lhe resvalando por um

declive de terra mole, onde sentia os sentidos enterrarem-se, numa

lassidão que a envolvia e a alheiava. Mal via deante de si os gran-

des olhos pasmados do estudante sobre o seu corpo de cegonha

velha, a mascara parada que só o canto da boca acordava em con-

tracções.

Num relance os braços rudes apertaram-na, violentaram-na

contra a cama; e dedadas brutaes apalparam-na ás cegas, incen-

diando-lhe as veias.

A rapariga teve um gemido surdo. Os olhos abriam, um abrir

desmedido, via-se toda de corpo e de alma, como se a vista lhe per-

corresse as artérias com azas de aço e lançasse ao redor de si um

relevo barbaro sobre as coisas indecisas...

De novo o homem ageitou o seu corpo, com mais violência;

lançadas finas rasgavam-na toda.

Gritou, num grito surdo:

Não.... não ... não ...

De fora, colada á porta, a mãe arreganhou a voz, sôfrega do

fim:Cala-te; ladra: vou lá que te inato...

Teve ainda um gemido moribundo:

Não...

Viveu dois mezes com elle, de casa posta, vid'airada nos ar-

A Á0U1A 127

redores, e a vaidade de se exhibir bem posta aos olhos das compa-

nheiras. Quando chegaram as ferias, a mãe começou a tratá-la por

impropérios canalhas:Se

quer comer, vá trabalhar fóra. A noite é larga...

E o velho avô, encolhido na soleira, dizia alto obscenidades,

com um olhar baixo, quando ella passava.

Um domingo á noite, no Penedo da Saudade, a mãe combi-

nava qualquer coisa com tres sujeitos que fallavam muito forte:

Uma c'rôa cada um... Olha a virgem...

Recusou-se, numa intima vergonha, E nessa noite, sem casa

onde dormir nem dinheiro p'ra comer, começou a arrastar o corpo

pelas ruas, roçando o braço pelos caixeiros, á porta das lojas desertas...

Levantei-me hoje tarde, mal' disposto. O meu companheiro de

casa, que verseja e tem assomos liricos em frente da paisagem,

quer-me ir mostrar um poente que descobriu da estrada de Lisboa,

na volta do Valle do Inferno.

Descêmos para o Caes.Olha a Palmira morena...

Vinha já a saudar-me, num sorrir cacarejante:Adeus,

sr. doutor...

Seguimos pela ponte.

Horas em Santa Clara. Crepusculo de magua sobre o rio.

Oiro nos choupos.

Out., 911.

Do "Elegia da Lenda, Livro das Saudades escritopor Veiga Simões, estudante que foi na Cidadede Coimbra,.: a sair do prelo.

MANUEL LARANJEIRA

rometi escrever para "A

Águia„ um artigo longo sobre

Manuel Laranjeira. Exigem-me agora o cumprimento d'essa

promessa. Mas a verdade é que a morte, e sobretudo, a

vida de Manuel Laranjeira está ainda tão perto de mim,

relembro cotn tão aguda saudade a sua convivência carinhosa, a sua

intimidade intellectual, que me é impossível, inteiramente impossível,

dominar os meus nervos até á serena contemplação da sua obra e

da sua figura. E uma e outra requerem, para que se lhes faça inteira

justiça, uma analyse tranquilla e segura, um estudo lento e profundo.

Só assim poderemos pôr bem em destaque essa nobre e rara indi-

vidualidade, que para muitos foi sempre um vulto paradoxal—apenas

porque sabia raciocinar e discutir as suas emoções, e praticar gran-

des actos de bondade ou de força, conhecendo, por vezes, e a todos

clamando, a certeza da sua ineficacia.

Era esta apparente contradição entre a sua maneira de ver e a

sua maneira de viver a vida, que desnorteava freqüentemente as

pessoas com quem elle se dava, e que se sentiam, apezar da dis-

tancia espiritual que porventura houvesse entre ellas e Manuel La-

ranjeira, atraídas, seduzidas por uma talvez obscura, mas firme e

doce fraternidade de sentimento, que nunca deixou de existir entre

o poeta do Commigo e qualquer creatura sincera, qualquer sincera

manifestação humana. Porque elle foi, na verdade, uma alma de

sympathia e de carinho, e a palavra que melhor definiria a sua

attitude perante os homens e a vida, seria simplesmente a admiravel,

insubstituível palavra —amor.

E como elle sabia amar! Idéias ou seres, esperanças ou illu-

sões, elle queria-lhes profundamente, desde que significassem um

acréscimo, um augmento, uma exaltação da personalidade. Se a

coragem com que se matou o irmana a Camilo, a Antero, a Soares dos

Reis; se o seu talento o acamaradára já com esses grandes suicidas;

a sua existencia, comparada á de qualquer d'elles, sobretudo á de

Camillo, não desmente essa camaradagem honrosissima. Como Ca-

millo, Manuel Laranjeira foi uma natureza romantica — dando a esta

palavra o seu mais elevado sentido; quero dizer—foi uma natureza

ardente e sensível, amando soffregamente a vida e procurando

abrange-la, conquista-la, doma-la com o poder da sua intelligencia

e a ternura do seu coração. Todo o seu livro Commigo o demons-

tra claramente: — não é senão o grito exasperado, doloroso, trágico

de quem não realisou os seus sonhos mais queridos, e só irrealisa-

veis por serem grandes, altivos demais...

Mas o Commigo é também o ultimo apello d'uma alma que,

se vae ser vencida, não abdicou nem desistiu voluntariamente dos

seus ideaes e dos seus desejos, antes conservou sempre, quasi ver-

A ÁGUIA 129

tiginosamente, a mesma anciedade de viver. Pouco tempo antes

da sua morte, Manuel Laranjeira, com aquella funda lucidez que era

um dos seus maiores encantos a escrever e a falar, contava-me o

plano dos seus futuros trabalhos 1 itterarios, plano que reclamaria

longos annos para a sua effectivação. Já doentíssimo, fraquissimo,

tinha ainda fé em si e na vida! Não cruzava os braços, não des-

denhava do esforço, não fugia.

E' assim que o seu suicídio não tem para mim o aspecto de

covardia moral que quasi todos os suicídios nos apresentam; appare-

ce-me antes como uma fatalidade inevitável, prostrando por terra, ce-

gamente, sem piedade, um lutador corajoso, talvez cansado já, mas

inebriado ainda, enthusiasmado ainda por todas as energias poderosas

do combate, por todas as inquietas esperanças d'uma victoria am-

bicionada. E, confesso, não sei de outra consolação, nao ha outro

remedio, para a infinita saudade que ainda hoje me não deixa

encarar serenamente a perda irreparavel do homem, do artista, do

pensador e do amigo que foi Manuel Laranjeira, não direi digno de

melhor sorte, mas digno d'uma vida maior —para melhor se dar a

conhecer.,.

Vai errante, no Mar, uma nau sem governo...

O oceano é chão, o céu azul fundindo em aço...

As velas mortas... Nem sequer vento galerno

As vem inchar para dormir no seu regaço!...

Sobre o antigo convez peza um velho cansaço,

E ou destino fatal ou maldição do inferno,

O mastro grande em vão aponta para o espaço...

Sobre as ondas a nau é um cárcere eteino!

Dominando em redor, lá na gávea mais alta,

Um marujo, a cantar, fala do Além, e exalta

Um passado esplendor sobre a nau sepulcral...

"Porque o vento hade vir aninhar-se nas velas!

"Porque a nau voará,—tocará nas estielas!...»

O marujo é Poeta — e a nau... Portugal!

1912 IV. v ^ ZX

O POETA E A NAU

MISTICISMO DO POENTE

Ao Mario Beirão

Cálice d'Hóstia rubra... Sol-poente,

Cálice feito de christal — neblina,

Luz mística, Luz branda, Luz divina,

Toda impregnada d'uma Dôr silente:

Pallida freira doente,

Doente iVuma cella pequenina...A Inquietação nos braços do Descanço...Gabriela com modos de Rufina...Apaixonado rei tornado escravo...

Pombinha brava n'um pinheiro manso...Pombinha mansa n'um pinheiro bravo...

As flores n'um queixume

Soltando seus suspiros de perfume

Deixam tombar as pétalas queixosas

Para o sólo do campo côr de azêbre.

As coisas estão todas silenciosas!

O ceu é um léque azul cheio de lantejoilas .

E, rubras, as papoilas

Deliram com quarenta e tantos gráus de fébre

Uma doença physica

Parece corroer as fibras da matéria...

A Naturêza é uma pobre tysica

N'este momento de tristeza ethérea!

Cada arvore voltada para a luz

Nas vai Ias e barrancos

E' uma Santa Therêza de Jesus,

Nas contracções hystéricas, no gôso

De apetites sem côr, desêjos brancos!

Ai! como o adeus do Sol é doloroso

Na agonia dos trágicos arrancos!

Cálice cfHóstia rubra... fim do dia,

Eu quero commungar na tua luz

E morrer e sentir essa agonia

De quem mórre pregado n'uma cruz...

A ÁGUIA131

O' ancora doirada na bahia...

Madre-pérola... ó búzio... ó linda amárra...

Zimbório... tôrre... ó saibro de jardim ...

Ó entrada da barra

Toda beijada pelo mar sem fim...

caes dormente em sonho-marezia...

préamar... ó ondas em torpor...

casaria...

annel com rubis... christa do gallo... ó flôr...

Onde estão vosso encanto e bizarria,

Vossa perdida côr?!

Nasce outra vez ó Alma d'Harmonia...

Volta de nôvo ó Coração d'Amôr!

REVISTA BIBLIOGRÁFICA

—7

NOTAS E COMENTÁRIOS

A Evocação da Vida, porAugusto Casimiro.— Bi-blioteca de "A

Renas-c e n q a Portuguesa,,.

A Evocação da Vida, por ter de falar

Augusto Casimiro.— Bi- d'um Poe-

blioteca de "A Renas- ta como Au-

cença Portuguesa,,, gusto Casimi-

E' gratoAcceito-a como um facto e como

um bem, compensadores da temporada,

revolta de utilitarismos e baixeza, á conta

de muita gloriola em litigio.

Levanto os olhos do cisco que re-

moinha á symphonia da miséria publi-

ca para ver dos últimos versos de Ca-

sjmiro, dictos do alto d'aquella montanha

d'amor, com cimo d'oiro que explica ser

to, excepcionalmente emocionado é

agradavelmente emocionante.

ro, cujo talen-

Dois factos lia a salientar na tra-

vessia do Poeta: o esmero da sua Artee a canceira apposta á boa faina. Mas,

já agora não louvarei a profusão extra-nha das suas colheitas.

E' do extranho poiso que evoca

a Vida, procurando a luz maior d'ou-

tras mahans.

a sua alma.

132 A ÁGUIA

E é de certo illuminado da luz ap-

petecida, á luz sonhada, que sae a cati-tar a Vida líuma revelação nova.

Ouçamol-o:

«Sim! existe em minh'alma toda a Vida,Todas as Vidas... Sinto-as encantadas...Sain visões, n'uma fila comovidaSobre um lago, a mirar-se, debruçadas...

A Vida é um búzio posto ao meu ouvido...E' um rio de miragens... Vai passando...

São fantasmas, n'um vôo indefinido ...

Vozes longínquas, pálidas, soando ...

Que palavras ouvi, vagas e eternas,

Que orações eu ouvi pronunciar?

Almas de poetas são como cavernasOnde resôa a Vida, imenso mar!...

Ahi estão alguns Versos dos que o

publico tem a julgar. Falo, é claro, do

publico-artista, não do outro, do queespera enthusiasta, a pandemia eguali-taria.

Leia-os ainda o bom povo, o quecontrasta a Raça, atravez de notas devida ingênua e superior.

Somos d'um povo que vive naMiséria expressões de grandeza e aspi-rações de resurgimentopela Arte.

yale o facto uma virtude-defeito, a

que interessa o Destino superiormenteinfeliz dos povos nevrosados.

A tessitura suave da vida de en-cantamentos que o Poeta sente, lá do

ponto subido do seu planalto d'oiro-é afinal o sonho de resurgimento paraa Belleza, pelo esquecimento do maisdo momento ...

Abençoado esquecimento!Bem que pese aos histriões de todos

os Ritos, na hora presente quasi só aArte é sentida.

Com bom motivo o deve ser a Artede Augusto Casimiro.

1912.

De Coelho Ne-Inverno em flôr, por to, que é hojeCoelho Neto. 2.a e.d\- umdosprimei-

ção. Livraria Char- ros artistas dadron — Porto, 1912. prosa portu-

guesa lemos oseu Invento em flôr, que pela segundavez é dado à estampa. Ainda que nãoseja das suas melhores obras, pois étambém das primeiras que escreveu, temo livro beleza que sobre para alegria eadmiração de quantos o lerem.

Como quer que date duma épocaem que o seu espírito de artista aindanão havia atingido toda a riqueza ori-

ginal, resente-se por via disso da in-fluéncia de Eça de Queiroz. O Dr. Jorgee o Cesário são mui proximos parentesespirituais do Carlos da Máia e do Egados Máias.

Para nós portugueses a mais bela,viva, original e sublime figura do livroé incontestavelmente a da negra Bá,ama de Sarita, alma de .sacrifício e abne-

gação; e as suas melhores páginas âque-Ias em que descreve a loucura de Jorgecom um assombroso poder halucinatório.

Proseguem0 homem segundo a Scien- os srs. Leiocia Biichner. Livraria & Irmão noChardron — Porto, 1912. louvável e

generosointuito de fazerem verter para a nossalíngua os melhores trabalhos estrangeirosde vulgarização scientífica. Primeiro, asobras de Haekel agora, as de Biichnerbem servirão para melhor se conheceremem português os graves problemas quepor todos os lados nos rodeiam. Estelivro, então, fala-nos com admiravel bri-lho das grandes descobertas scientíficassobre a antigüidade"do gênero humano,da sua origem e também do logar queele ocupa na natureza.

Por absoluta falta de espaço, só no

próximo número se publica a apreciaçãoao "Livro de Job„.

Também no n.° 5 nos referiremos

ao livro "Introdução ao Problema doFeudalismo em Portugal,,.

LITERATURA

NA CELLA DE SAN YUSTE

Carlos v é bruscamente acordado pela matraca de um monge,

para que se apresente á resa matinal do côro; estremunhado e

impacientado resmunga, já assentado no leito:

Que contraste da vida! Eu, que fui o soberano absoluto de

um Império onde o sol não tinha occaso, achar-me agora aqui su-

geito ás badaladas ensurdescentes de um sino!

Esfregando os olhos, e rindo-se com sarcasmo da situação:

Mas, que mais poderoso fui eu —

quando dominei o meu

século e fiz o equilíbrio politico dos Estados como senhor dos des-

tinos da Europa, ou quando tive a arte e o orgulho de cativar o

Rei cavalleiro Francisco r, de França, do que agora aqui debaixo

d'esta cúgula de monge, submettido ás pequices de uma Regra

claustral?

Batendo na testa, como quem descobre a solução de um

problema.Ah! eu 11'essa grandeza, fui um sensual, como um rebentão

dos 1 labsburg: fui audacioso, como meu avô Carlos o 1 emerario;

mesmo bastante mais manhoso do que Fernando o.Catholico, ven-

do-me atacado por esta melancholia apáthica que me fez abdicar

do throno e de todas as grandezas do mundo pela tara de minha

desventurada mãe Joanna a Doida... a doida, para os intrigantes

palacianos, incapazes de comprehenderem a passividade suave do

seu temperamento.

E saindo da sua cella, Carlos v vinha rememorando pelos

corredores soturnos que vão dar ao côro esse velho rifão caste-

lhano, que era a syntese da sua passada omnipotencia e da terrível

herança dos seus atavismos:

Una cosa pieusa el baio,

Y otra quien lo ensilla.

Abril, 1912.

PÃO NOSSO

Maria, eu vi, á tua porta, agora,

Rezar, pedir esmola uma velhinha.

Que triste e amargurada que ella vinha!

lnda a minha alma, de lembral-a, chora.

(Meu Deus! meu Deus! por esse mundo fora

Quanta miséria e quanta dôr caminha!)

Alguém ouviu pedir a pobresinha

E, sem piedade, quiz mandal-a embora.

Como quem nega e de negar consola:

"Tenha paciência! E volte... Não sabia?

Temos um dia certo para a esmola.» —

"Seja por Deus! E valha-me o seu Nome.

Pois sim! A esmola pode têr um dia...

Mas, para os pobres, todos são de fome. „ -

Do livro "Sonetos»a publicar.

LE VERBE

A Teixeira de Pascoaes'

Le Verbe! Ah! qui dira sa vertu, 1'energie

Qui on y peut concentrei'? Matière du feu rougie,

Mais du feu de 1'Esprit immortel, il prévaut

Sur le poids de la terre et la force du flot;

La couronne des róis chancelle sur leur tête

Quand la voix du tribun, du penseur, du poète

Attroupe dans le vent les fastueux éclios

Et soulève le ciei de frissons musicaux!

Que son appel jaillisse et, parmis les rocs rudes,

Des chemins inconnus s'ouvrent aux multitudes,

Dont un espoir fervent emplit l'âme et les. yeux,

Vers 1'aurore plus vaste et le ciei plus joyeux.

Jésus parle et, d'un coup, la terre s'ensoleille.

Le Verbe crée: il est 1'ineffable tnerveille,

D'oü nait tout ce que 1'hpmme est contraint d'adniirer.

Un aveu que 1'ainour enseigne à soupirer:

Quel miracle déjà! Le Verbe nous dépasse;

II étreint la planète et la suit dans 1'espace;

1'oètes, il fait lionte á vos jeux puérils!

Si des bardes sont nés, pourquoi se taisent-ils?

Les* éclios endoririis aux profondeurs du monde

Attendent qu'une voix nouvelle les féconde;

Chantez! Dites le mot qui nous rajeunjra;

Car nous voici chargés dun Rêve qui sombra,

Et ce cadavre, imprégné d'eau coniine un vieux saule,

D'un infernal fardeau fait ployer notre épaule.

Levez-vous! Etreignez la Harpe à la voix d'or,

Et que le Ciei se rouvre à votre appel, encor!

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CAMILLO CASTELLO BRANCO

CARTAS INÉDITAS

VIII

Aí«/ estimavel literato

Não tive ainda carta que me assegurasse a recepção do masso

de versos, que lhe enviei: mas é natural que os haja recebido. A

minha pouca saúde priva-me d'ir á Universidade, porque os meus

i/itentos eram estudar muito, e a medicina impoe-me uma vida

muito distrahida, para dístrahir a morte. É bem amargo o dilcmjna!

Por motivos que o meu amigo poderia deduzir dumas declarações

minhas no "Cliristianisino»,

explicará a razão da minha retirada

d'aquelle jornal. Talvez lhe conste que principio em Janeiro a publi-cação da

"Cruz,,, e daqui já o em prazo para que me coadjuve

riaquelle trabalho com o seu valioso subsidio.

Se me permittisse fixar-lhe o seu primeiro trabalho, pedia-lheuma poesia

— "A Cruz,,, para o primeiro n.° e depois a realisáção

daquelle seu plano contencioso, que deve illustrar-me, e i/lustrar o

leitor. Eu escrevo-lhe na incerteza da sua residencia. Entre a Regoa,

Villa-Real e Coimbra, opto pela primeira, — veremos se foi bem

aventada a conjectura. Recommende-me a seu Thio, e considere-me

seu obrigo am.°.

'

Porto 23 de Setembro de 1852.

REINCIDINDO.

I

'o Dia, de 24 de abril, o autor de uma Carta de Coimbra entitu-

''ff * lada A literatura e o futuro faz sobre o nosso anterior artigo consi-

- ! - %l derações adversamente críticas. Em si, essa Carta que poderia ter sido'i.

>40| mais oferenda a qualquer deus que o fosse da lógica, não tem exce-

cional importancia similirefutatoria. Mas como, sobre dar expressão

pelo menos publica, e até certo ponto lúcida, a duvidas e pasmos que o nosso

artigo, especialmente pelo modo-de-enunciar as conclusões, causou, a Carta nos dá

ensejo de, sem que num ápice hajam de ser alteradas essas conclusões, clarificar

uns pontos e intensificar outros, respondemos-lhe, e, ao mesmo tempo, continuando

o nosso sumario estudo da grande corrente literaria, que entre nós começa a abrir

caminho, esperamos poder tornar, pela lógica, mais proximo da possibilidade de

compreender, que concebivelmente entre bacharéis haja, aquilo com que terminava

o nosso estudo com "resurgimentos assombrosos,., "supra-Camões» e todas as

outras alegrias.

Importa, porém, declarar, antes de tudo, que nem para nós, autor dele, ofe-

rece o nosso anterior escrito cousa que se pareça com perfeição em matéria racio-

nativa. Em sete paginas não se pode claramente e completamente pôr uma argunien-

tação analítica que. para ser rigidamente exhaustiva, sem pressas que a carência de

tempo, ou dogmatismos e axiomatismos que a escassez de espaço, impõe, tem de

se deixar estender, em plena liberdade, por uma quási-centena de paginas. Nota-

mos isto, ainda que mal pareça, para que ocasionaes como-que-falhas dialéticas-

esses dogmatismos e pressas citados não nos sejam registados em despriinôr de

sinceridade ou certeza, 011 de possibilidade, que em nós haja, de irrefutabilisar,

desenvolvido que possa ser o raciocínio, as conclusões últimas da nossa analise

construtiva.II

Qualquer corrente literaria tira os carateristicos, que o raciocinador lhe po-

de encontrar, de uma tripla relacionação sociologica. Essa tripla relação revela-se

á nossa analise como sendo; 1.°, com o movimento social da nação em que apa-

rece; 2.o, com as outras correntes literarias, nacionaes ou estrangeiras, passadas ou

antemporaneas; 3.°, com a alma do povo a que pertence. Exgotando, por uma analise

minuciosa, os carateristicos de uma corrente literaria em face destes tres elementos

sociologicos, aqui logicamente normativos, tel-a-hemos caraterisado nítida e dite-

rendai mente. A analise esboçada no nosso anterior artigo, e feita sobie os peno-

dos inglez e francez de maxima grandeza literaria e social, levou-nos a atribuu ao

movimento literário,, que corresponde a uma época creadora, tres carateristicos o

preceder o movimento social creador, o ter novidade, e o ter nacionalidade. Isto

é, como se vai vêr, incompleto, ainda que não erroneo. Vamos agora arrancai as epo-

cas creadoras, aos seus períodos literários, o seu segredo sociologico, em tudo

que a sua tripla relacionação sociologica, citada, possa envolvei. 1 aralelamente

iremos apontado as coincidências dos carateristicos, que essas épocas nos forem re-

velando, com os carateristicos, que chetnin fciiscint incontestabilisaremos, da nossa

atual corrente literaria. , . .

Preaclaremos, porém, a questão, resolvendo em seus elementos histórica-

mente isto é, chronologicamente constitutivos, a corrente literaria cai atei istica

das épocas de maxima grandeza nacional. Colheremos assim, de começo, uma im-

pressão exterior desse movimento literário.

Toda a corrente literaria desta especie suprema é subdivisivel em tres sub-

períodos um, precursor, em fins do período literário antecedente; outro, aquele

que constitue essencialmente a corrente; e, último, aquele em que se dissolve a alma

138 A' ÁGUIA

desse período em elementos aurorealmente carateristicós do período literário sub-sequente. Assim, no período, em questão, da Inglaterra temos o subperiodo pre-cursor com a figura culminanteinente tipica de Chaucer,

. . . Dan Chaucer, whose sweet breathPreluded those melodious burstsr thát fillThe spacious times of great ElizabethWith sounds that echo still;

e neste o por onde ele se mostra precursor é mais o aparecer de figuras de cer-ta grandeza do que o surgir de figuras preindicadoras do espírito da corrente. ()signal da vindoura grandeza nacional (literaria, primeirof está. apenas no valor da

precursora figura literaria. Chaucer é inegavelmente inglez; mas não é completa-mente e.tipicamente inglez, reconhecível imediatamente como inglez, como depois,na corrente, propriamente, o serão Spenser, Sliakespeare, e mesmo Milton. De resto'se essa figura precursora precon.tivesse elementos espiritualmente distintivos doperíodo em si, o período teria já, ipso facto, começado, com ela. Em França osubperiodo precursor trahe-se maximameiite na figura de Rousseau-poeta, expressãoesta que não se explica por quaesquer versos que Rousseau (trata-se, é claro deJean-Jacques) escrevesse, mas pelo elemento essencialmente poético que a prosa deRousseau contém, e que é, ertmo, compulsada, a mais malapreciadora historiadaliteratura franceza revelará, o que ha nele de, por envolver o principio tio senti-mentoda natureza, alvorescentemente indicador do vindouro romantismo francez (')

E se Chaucer está a mais distancia do principio do verdadeiro periodoinglez, d(5 que Rousseau do francez, repare-se em quão mais lenta é a evolução,social pre-isabeliaiía da Inglaterra do que a evolução pre-revolucionaria da França.

O periodo o verdadeiro periodo subdivide-se, por sua parte, em tres es-tadios, classificáveis de sua juventude, virilidade e velhice. O primeiro estádio é,em Inglaterra, o que vai de Wyatt e Surrev até Spenser, e onde aparece já o tom,o espírito da época, incompletamente caraterisado com relação ao que se vai tornar110 estádio subsequente,_ mas amplamente tipico e grande 110 grande poeta Spenser;em França, o de André Chenier e de Châteaubriand-poeta (tomada esta expressão110 já-indicado sentido), onde, com egual nitidez, se percebe a nacionalisada ru-tura com o periodo anterior, num tom poético inadivinhavel ainda em Rousseau,em quem parece apenas pre-existir com uma tendenciada artificial idade. O segundoestádio é aquele em que o espírito da época se intensifica, se alarga a toda aamplitude de que a sua alma é capaz, se torna mais ele, e, por isso, gera os maximos poetas. E', em Inglaterra, o estadio-Shakespeare, E', em França, o de Limar-tine, Hugo, Musset. - Finalmente, 110 terceiro estádio, o espírito da época comoque se torna mais rígido, mais refletido, por mais cansado: a intensidade descepara meditatividade. E', em Inglaterra, o periodo de Milton e dos liricos jacobitas.Em França, é o estádio de Leconte de Lisle, de Sully-Prudhomme, Por último,ha uma especie de sobrevivência vaga do espírito da época, mas já sob a fór-ma essencial e espiritual tia época subsequente. O que a época moribunda em-presta a essa stibsequencia próxima é 11111 resto de vida, manifestado por uma in-tensidade e relativa grandeza nos poetas em que alvorece a época seguinte, que,por ter sido a outra a maxinia, da nação, forçosamente lhe ha-de-ser inferior, li'o caso de Dryden e dos liristas carolinos que, ainda que se veja que são já oprincipio de um outro periodo, trahem ainda, numa certa grandeza e intensidade,a gloria de que são successores. E' o caso de Verlaine, o mais notável dos inicia-dores da sua época poética, dando ainda uma intensidade, que lhe vem do con-tacto que teve com o periodo anterior, á sua desnacionalisada obra lirica. E seem França as épocas mais se sobrepõem, é fácil vêr que a extraordinaria rapideztio movimento social moderno é a causa imixtora dos phenomenos.

Vejamos, agora, se, sob este ponto de vista exterior, a actual corrente lite-

_ () Caso se cbjectc que Rousseau era suisso, contraobjecte-se desde já que ser suisso não é so-ciologicamente nada, e menos, então, naquele tempo. Importa não confundir 11111 povo, que é uma enti-dade social com alma própria, com uma nação, aglomerado que pode ter tanta alma coletiva comi) umasociedade comercial. — Repare-se também qu uma analyse mais minuciosa poderia mostrar que não ésem sigiiiticaçao este alvorecer em prosa d» espírito poético, mas, além de impossível, e inútil anuiessa mais minuciosa analyse.

A ÁGUIA 130

raria portugueza alguma analogia offerece com as outras correntes, que estudámos.

Note-se, primeiro, quando a nossa corrente principia. O seu tom especial e dis-

tinctivo, quando começa a apparecer? E' faci! constatal-o. E com o So de Anto-

11 io Nobre, com aquela parte da obra de Eugênio de Castro que toma aspectos

quinhentistas, e com Os Simples de Guerra Junqueiro. Começa, portanto, pouco

mais ou menos coincidentemente com o começo da ultima década do século deze-

nove. Fixado o inicio do periodo, procuremos o precursor. Continua a não havei

difficuldade: o precursor é Antliero de Quental. E exactamente analogo a Chaucei

e a Rousseau-poeta em, a par de não ter ainda nacionalidade (compare-se o seu

tom com o de Antonio Nobre, inferior como poeta, mas superior como portu-

guez), ter já plena originalidade, isto é, ser já^ nacional por não ser inspirado em

demento algum poeticamente estrangeiro; originalidade que nem Junqueiro, na pn-

meira phase, que é a coincidente com Antliero, nem outro qualquér umaciona-

lisado ainda aquelle por huguesco, os outros por huguismos, pamasiamsmos 011

symbolismos se pode considerar como tendo. Egualmente marcado esta o primeiro

estádio da corrente literaria propriamente dita. Vimos em que obrasi começa: e

fácil vêr que vae desde elIas até á Oração á Luz de Junqueiro, e a Vida ttnerea

de Teixeira de Pascoaes, onde começa a apparecer já o segundo estádio, onde se

vê a corrente, ao continuar-se, tomar um aspecto outro absolutamente. O modo

de exprimir intensifica-se, complica-se de espiritualidade, o conteúdo sentimental e

intelectual alarga-se até aos confins da consciência e da intuição. A nova phase

de Antonio Corrêa d'01iveira, o apparecimento de novos poetas, escrevendo ja

no novo estylo, marcam nitidamente a existencia do segundo estádio. Como,

por emquanto, a nossa corrente literaria não tem mais edade do que esta, a ana-

logia não pode aspirar a abranger mais. No que abrange porém, a analogia e

perfeita. Exteriormente, o nosso actual movimento literário, até onde chega, asse-

mel lia-se ás maximas correntes literarias da França e da Inglaterra. Appliqueino-nos

agora a esmiuçar se egual analogia, interior, justifica uma total approximaçao

sociologica.

II

Retomemos a tripla relacionação, já notada, em que cada época liteiaiia

deve estar para com o movimento social, as correntes literarias, e a alma nacional.

Do estudo d'essa relacionação constará o espirito da corrente. Um a um exami-

liemos os trez elementos da questão. Comecemos pelo ptimeuo.

Em que relação está o movimento literário correspondente as grandes épocas

creadoras com o movimento social que ha n essas, ou caracterisa essas épocas.

Em trez relações especiaes se nos deve mostrar essa relação com respeito aos

característicos sociaes; 1.", do periodo a que o período literário succede; 2.», do

periodo com que coincide; 3.°, do periodo que precede. ..

Veiamos a que especie de periodo social succedem as grandes épocas litera-

rias ingleza e franceza. Esse periodo é, em Inglaterra o período pre-Tudor; em

França é o fim do reinado de Luiz XV, e todo o de Luiz.XVI Que teem, de

analogo, estes dois períodos sociaes? São ambos períodos de P g

vida política, de despotismo fácil, de agitação nulla e como que servisse ag ta-

ção chega a haver períodos onde se parece ter ficado n uma estagnação social,

paz ou guerra que haja. Do grande periodo subsequente so ha preuidica^ao na lite-

ratara, porque é neste periodo que apparecem os Prec»rsores do magno período

literário que se vae seguir. Vivem n este período Chaucei ei _ g <

França Ora a actual corrente literaria portugueza succede a parte pre-reyolucionana

do nosso periodo constitucional, porquanto, começando com a ultima década do se-

culo dezenove, a actual corrente literaria coincide no s cp,.vji1TlpntP agitado

uiento de 31 de janeiro. Politicamente esteril, infecunda e servi mente agitado,

nuMo de grandezas e de utilidades, o nosso periodo constitucional e socuümente

analogo áquçlles da França e Inglaterra, que citamos. Basta para 'e apontar a

nullidade política, indicar que foi um período constitucional que nem constitu

cional foi. O constitucionalismo nunca esteve implantado entre anui wtT^or

mundo periodo reles e mesquinho, foi reles e mesquinho esse. Ate aqui esta, poi-

tanto a nossa corrente literaria em coincidência com as outras, n esta especial

lacionação social. Continua a haver coincidência no que diz respeito ao v.slum

140 A ÁGUIA

brar apenas literário do período que se segue. Foi no período constitucional pre-revolucionário que appareceu Anthero de Quental, em que já vimos o precursorda nossa corrente literaria.

Passe-se agora a considerar o periodo politico com que o periodo literário

coincide. O periodo literário inglez começa no reinado de Henrique VIII, de quemWyatt e Surrey são contemporâneos, e acaba em coincidência approximada com

a revolução, de substituição dynastica, de 1688. O periodo francez coincide com o

periodo social que se estende desde a grande revolução até 1870, pouco mais ou

menos. Que tem de distinctivo o periodo social inglez que se nos revela coinci-

dente com a magna corrente literaria ingleza? Que tem de analogamente distin-

ctivo o periodo francez correspondente? A agitação revolucionaria ou transfor-

madora é o que ambos teem de distinctivo. Do periodo francez 1789-1870 é inútil

fallar neste respeito. Do periodo inglez note-se que começa com Henrique VIII,

sob quem a Inglaterra rompeu com Roma e a religião catholica (primeiro facto

indicador de uma transformação que se nota na historia da Inglaterra) e atravessa todo

o periodo maximamente transformador que vae de ahi até Cromwell. Parallelamente,

a corrente literaria portugueza rompe coincidentemente com o movimento de 31

de janeiro, primeiro signal de transformação politica, e vae acompanhando toda a

agitação transformadora que é de hoje em Portugal e cujo segundo passo, victo-

riosamente transformador este, foi o que poz ponto, em 5 de Outubro de

1910, ao periodo revolucionário (1891-1910) do constitucionalismo portuguez.Note-se bem: o que importa é que o periodo de 1890 até ao, e atravez do, pre-sente é um periodo transformativo; não vem por emquanto para o caso o valor

ou durabilidade que se queira attribuir ou não attribuir a essa transformação. Esse

ponto pertence á parte final do artigo, é para quando hajam de ser tiradas as

conclusões geraes. Depende, evidentemente, de se provar ou não a analogia abso-

luta entre o actual periodo social portuguez e os magnos períodos da historia da

França e da Inglaterra. Se essa analogia se não provar, haverá a/.o para discussões

e argumentos. Mas se se provar veremos que se provará a mais arguta especio-

sação monarchista nada valerá contra a valorisação na hypothese, sociologica-

mente irrefutabilisada do movimento republicano portuguez. Repare-se, porém e

ainda, em uma outra semelhança que approxima de todo o nosso periodo social

e aquelles a que o estamos comparando: é que, a par de serem períodos de trans-

formação politica, esses períodos, no estádio coincidente com aquele em que es-

tamos, trahem uma assombrosa desinoralisação na vida nacional, desmoralisação

que herdam de períodos anteriores, mas que n'elles se aggrava de uma anarchisa-

cão e tumultisação da vida politica que mesmo a quem de longe os estuda per-turbam e entontecem. Comparem-se o periodo da Revolução Franceza e o periodoisabelliano com os períodos políticos respectivamente anteriores. Levada a analyse

até esta, relativa, minúcia, a analogia torna-se flagrante para além de quanto se

poderia t terar.

O terceiro ponto a analysar, o que diz respeito ao periodo politico que as

grandes épocas literarias precedem não offerece, é claro, interesse analogico, dado

que não passámos ainda do principio do segundo estádio do periodo literário.

Mas é bom fixar os característicos d'esse periodo, para, caso a nossa época offe-

reça analogia em todos os pontos analysaveis, se poder concluir que o futuro se

encarregará, inevitavelmente, de n'este ponto também a mostrar análoga. Já no an-

terior artigo estudámos este ponto. Vimos que, depois do auge, ou segundo esta-

dio, da corrente literaria, vém, coincidindo com o terceiro estádio, a época vinca-

damente e terminantemente creadora. Passada ella, e já em coincidência com o

principio do periodo literário seguinte, vem a fixação do systema politico creado

o constitucionalismo cm Inglaterra, a republica em França, cada qual o systema

em acordo com o caracter do povo a que pertence. A republica ingleza, e, em

França, os vários constitucionalismos e republicanismos precursores, representam

épocas de transição, maximamente creadoras por maximamente transformadoras e

porque introduziram o elemento novo (o de governo popular em, Inglaterra, o

de democracia em França) que, equilibrado por fim com os elementos tradieionaes,

fixaram o typo de governo novo e nacional em Inglaterra a monarchia liberal,

em França a republica conservadora. Fsta fixação final coincide, como já aponta-

mos, com o fim do terceiro estádio do grande periodo literário e principio do

periodo literário seguinte.

QUELHA MINHOTA SOB CARVALHEIRAS

(De Cervantes de Haro)

A Águia 5-(2.a série)

A ÁGUIA 141

IV

Analysemos agora, para o mesmo fim prescrutador de coincidências, quaesos caracteres especiaes apresentados pelas correntes 1 iterarias, nacionaes ou estran-

geiras.Analysados, os períodos literários inglez e francez que vêem acompanhando

o nosso estudo, revelam, sob o aspecto exclusivamente literário ora em vista, trez

elementos distinctivos-a novidade (ou originalidade), a elevação, e a grandeza. For

elevação entendemos do tom literário geral, por grandeza o conter grandes figuras

individuaes, grandes poetas. Todos os trez elementos são indispensáveis para a ca-

racterisação inconfundível do período. Se originalidade bastasse, faria candidatura

a magno período literário uni que podia ser original n'uma especie poética secun-

daria, como um novo epigrammatismo, um novo genero de poesia artificial: está

110 caso a poesia dos trovadores provençaes* Por isso, sobre novidade, lia n'estes

períodos elevação. Mas elevação só pode ser verdadeiramente e completamente ele-

vação quando ao contrario do que acontece com o symbolismo francez, quenão caracterisa um grande periodo creador é universalisada, intensificada por

poetas á altura d'essa elevação. A não ser assim, queda-se, como a citada corrente

franceza, sempre próxima da mera exquisitice e extravagancia, do puro delirio ás

vezes, constantemente imperfeita e deselevada da altura a que, em um ou outro

verso, em rarissimas poesias, intermitentemente atinge. De.modo que já um mero

raciocínio à priori nos dá como característico indissoluvelmente triplo das correu-

tes Iiterarias supremas a originalidade, a elevação do tom, e a grandeza nos seus

representantes individuaes. E' inútil apontar quão novos, sob todos os pontos de

vista, são, cada qual no seu tempo, o isabellianismo, e o romantismo francez:

desde o modo de pensar ante os homens e as cousas até ao modo de exprimir,

tudo é original. De egual inutilidade é referir que o tom desses períodos literários

é elevado, e que ha nelles grandes figuras de poeta.Resta saber se aqui lia, também, coincidência entre os característicos dos

períodos francez e inglez e os do periodo actual portuguez. Novidade, temos; o

proprio critico de O Dia não a nega, antes se confessa apavorado por ella. Basta

comparar Os Simples, a Patria, a Oração á Luz, a Vida Etherea e, de resto, tudo

mais quanto na nova corrente esteja, ao que haja em qualquer outra corrente lite-

raria nacional ou estrangeira, e de qualquér tempo, para vêr que ha entre nós um

modo de pensar, de sentir, de exprimir tão inconfundivelmente original como o

do romantismo francez ou o do isabellianismo, se não mais original ainda. E,

quanto a elevação, basta reparar na altura inspiracional do tom poético geral do

nosso periodo, vêr como nos menos notáveis poetas da corrente a expressão tem

uma feição, um relevo extranhos e inconfundíveis. Ainda que o espaço seja para

pouco, duas expressões, que qualquér ledor das cousas do tempo reconhecerá

como probamente citaveis como representativas, podem aduzir-se aqui, para allivio

de scepticos. Tomemos isto, de Teixeira de Pascoaes,

A folha que tombavaEra alma que subia,

e isto, de Jayme Cortezão,

E mal o luar os molha,Os choupos, na noite calma.

Já não tem ramos nem folha,São apenas choupos d'Al ma.

Em nenhuma literatura do mundo atingiu nenh um poeta maior elevação do

que estas expressões, e especialmente a extraordinária primeira, conteem. 1: elIas são

representativas. Citamol-as não só para comprovação da elevação, como também

para indicação da originalidade do tom poético, da nova poesia portugueza. Ha-

verá, é claro, quem não sinta a elevação e a originalidade d'aquelles versos. O

raciocinador, porém, limita-se a apresentar raciocínios. Não é obrigado a uma pre-liminar distribuição de intelligencia.

Resta o terceiro ponto: a grandeza. Haverá, aqui também, analogia? Tanto

quanto a juvenilidade da nossa corrente literaria permitte a aproximação, a analo-

142 A ÁGUIA

gia não nos parece menos flagrante. A comparação só pode versar sobre o pri-meiro estádio dos trez períodos, e, para mais auxilio, sobre o subperiodo precur-sor. Quanto a este, Antnero de Quental nada tem de temer de Roussean-poeta, ou

de Chaucer mesmo, considerado tudo. E repare-se que Anthero teve co-precursores

de mais valôr que os contemporâneos (co-precursores) de Rousseau e de Chaucer.

No que respeita ao primeiro estádio, o poema supremo do nosso, a Pátrio, de

Junqueira, excusa de se acanhar na comparação com Châteubriand-poeta, ou

mesmo com a Faeríe Queene de Spenser. Com respeito ao primeiro, a superiori-

dade do nosso poeta é manifesta. Com respeito ao segundo, a questão de superio-

idade é caso para argumentos. Porque, se não ha duvida que em originalidade e

ejctiberancia imaginativa o poema de Spenser sobreleva ao do Junqueira, também

se não pode negar que em intensidade lyrica, em espirito dramático, em poder de

construcção poética, a Patria domina a Faeríe Queene.De modo que, se ha n'este mundo analogias e absolutos, entre a nossa

ru ! i-nrrente literaria e as maximas, que nos vêm servindo para a comparação,

h. . iot, pontos já analysados, uma analogia absoluta.

V

Falta, agora, examinar os característicos das magnas épocas literarias em

face da alma do povo que as produz. A analyse é fácil e será, porisso, rapida. O

primeiro característico, n'este respeito, d'estas correntes, é a sua não-popularidade,o segundo a anti-tradicionalidade, e o terceiro, mas o primacial e basilar, a nacio-na/idade. Isto é, estas correntes interpretam completamente a alma nacional; como,

porém, a interpretam com plena elevação o que já sabemos, quanto a elevação —,

com total largueza espiritual, desdobraudo-lhe as inconscientes tendeu ias philoso-pnicas ou religiosas em detalhes intelectuaes e espirituaes, traduzindo a alma po-pular para arte suprema, forçosamente se collocam fóra da comprehensãõ popularentendendo por compreliensão popular tudo quanto não seja a comprehensão deuma elite ou aristocracia de intelligencia. Dalii a sua não-popularidade, maxima na

época em que existem, por aggravadâ pela novidade do tom poético, menor nasépocas subsequentes, mas anulada nunca. Redizendo, estas correntes, filiadas abso-lutamente na alma do povo, não a exprimem: representam-a, interpretam-a. Ninguémnegará a absoluta nacionalidade do isabelianismo, como inglez, e, como francez,

do romantismo da França. Tampouco se pode negar a não-popularidade das duascorrentes, maxima na primeira, cuja mera fôrma de expressar mesmo a um indivi-duo culto fere como extremamente complexa e intelectualisada, menor na segunda,

que ainda assim está longe de popularmente accessivel, tanto que a corrente éclassificada por um critico francez como sendo faite pour des cénaríes et des cote-ries (').

Ora, como estas correntes são as de maxima nacionalidade dos seus respe-ctivos paizes; como, portanto, as correntes anteriores forçosamente haveriam sidoou menos, ou nada, nacionaes, a plena nacionalidade das correntes maximas im-

porta uma quebra com o espirito d'essas anteriores correntes, involve, pois, anti-tradicionalidade. Quando a corrente anterior é desnacionalisada, a quebra com ellaé flagrantissima e consciente e combativamente feita: é o caso do romantismofrancez ante o chamado "classicismo,, da época precedente. Quando a anteriorcorrente é, porém, não tanto desnacionalisada, mas antes incompletamente nacio-nal, a quebra é feita inconscientemente, naturalmente, inagressivamente. E' o casodo isabelianismo, que rompe com a simplicidade e incompleta nacionalidade doseu precursor Chaucer, única quasi-tradição com que, aliás, podia romper, visto

que, sobre ser o máximo periodo da literatura ingleza é e é o que para o casoimporta o primeiro, 110 tempo, não tendo, portanto, época literaria anterior comcujo espirito quebrasse.

Retomemos a parte essencial e analógica do nosso estudo. A anti-tradicio-nalidade e não-popularidade do tom poético do nosso actual periodo literário sãoflagrantes, flagrantissimas. Poucos movimentos literários se teem colocado mais

(') Lanson, Histoire de la littirature françai se.

A ÁGUIA 143

acima da compreensão geral, pela complexa inteletualisação ou misticisaçâo do

seu exprimir-se; poucos tanto se afastaram de toda a tradição Jiteraria da sua terra.

Resta saber se esses dois carateristicos se devem a uma completa interpretação

da alma nacional, E' fácil provar que sim. Ha, porém, dois modos de o provar.Um longo é por uma analyse analogial da alma portugueza e dos carateristicosespirituaes da nova corrente poética, Ha outro método, mais simples, mais directo,e menos duvidoso. Vejamos. Os novos poetas portuguezes não tiram da tradiçãoos elementos constitutivos do espírito da sua corrente -isto

já vimos; tampoucotiram esses elementos de correntes literarias estrangeiras já o verificámos quandofoi preciso constratar a novidade do tom poético deste periodo. Então de onde ostiram? Tira-os cada poeta da sua própria alma, no que tem de individual e pe-culiar? Nesse caso não haveria corrente literaria, mas poetas isolados. Ora, comorealmente ha corrente literaria, é forçoso admitir que o que a produz é o quenas almas lia de superiudividual, o que elas teem de comum. E o que elas teemde comum é uma de tres cousas a raça, o meio nacional, ou o meio civilisacio-

na!, isto é, europeu. O meio europeu não é, porque então a corrente literaria basear-se-

hia nas correntes literarias estrangeiras contemporâneas, o que não acontece, provada,como está, a sua novidade. O meio nacional também não é, pois que então re-

produziria o espírito do meio, que é ou nulamente, 011 catolicamente, religioso': e

ela é religiosa e não-catolica. Não ha senão que admitir, portanto, que reproduz a

alma da raça. E como é anti-tradicional, não a reproduz misturando-lhe elementos

passados; como é não-popular, não a reproduz misturando-lhe elementos poucoespirituaes ou pouco inteletuaes, populares 110 mau sentido do epiteto. Querdizer, pois que a nova corrente interpreta a alma nacional directamente, nuamentee elevadamente. Quer dizer que é absolutamente idêntica ás grandes correntes lite-

rarias da França e da Inglaterra.

Resulta, portanto, provada, ponto por ponto, detalhe por detalhe, a analo-

gia entre a nossa corrente literaria e as grandes correntes literarias precursorasdos grandes períodos creadores de civilização.

VI

Tirem-se, rapidamente, as tônicas conclusões finaes. São três. A primeira c

que para Portugal se prepara um resurgimento assombroso, um periodo de creaçãoliteraria e social como poucos o mundo tem tido. Durante o nosso raciocíniodeve o leitor ter reparado que a analogia do nosso periodo é mais com o grandeperiodo inglez do que com o francez. Tudo indica, portanto, que o nosso será,

como aquele, maximamente creador. Paralelamente se concilie o breve apareci-niento na nossa terra do tal supra-Camões. Supra-Camôes? A frase é humilde e

acanhada. A analogia impõe mais. Diga-se "de um Shakespeare,, e dê-se por tes-'temunha o raciocínio, já que não é citavel o futuro. A segunda conclusão é que,

tendo o movimento literário portuguez nascido com e acompanhado o movimento

republicano, é dentro do republicanismo, e pelo republicanismo, que está, e será,

o glorioso futuro, deduzido. São duas faces do mesmo fenômeno creador. Fixemos

isto: ser monarchico é, hoje, em Portugal, ser traidor á alma nacional e ao futuro

da Patria Portugueza.—A terceira conclusão é que o republicanismo que fará a

gloria da nossa terra e por quem novos elementos civilisacionaes serão creados,

não é o actual, desnacionalisado, idiota e corrupto, do tri-partido republicano. De

modo que é bom fixar isto, também: que, se ser monarchico é ser traidor á alma

nacional, ser correligionário do sr. Afonso Costa, do sr. Brito Camacho, ou do sr.

Antônio José d'Almeida, assim como de varia horrorosa sub-gente syndicalistica,

socialistica e outras cousas, representa paralela e equivalente traição. O espírito de

tudo isso é absolutamente o contrario do espírito da nova corrente literaria. luclo

ali é importado do estrangeiro, tudo é sem elevação nem grandeza, popular com

o que ha de mais Mouraria 11a popularidade. Para nada de morte 1 lies faltar,

nem anti-tradicionaes são: herdaram cuidadosamente os métodos de despotismo,

de corrupção e de mentira que a monarchia tão como seus amou.

Não nos admire que isto assim seja. No reinado de lzabel, periodo da I11-

glaterra que corresponde ao nosso actual, ainda nada se vislumbrava do principio

de governo popular que havia de ser creação da época. Conservemo-nos, por em-

quanto, absolutamente portuguezes, rigidamente republicanos, intransigentemente

144 A ÁGUIA

inimigos do republicanismo atual. Brevemente começará a raiar nas nossas almasa intuição política do nosso futuro. Talvez o supra-Camões possa dizer algumacousa sobre o assumpto. Esperemos, que ele não se demora. No entretanto, sursumcorda! Sabemos que o futuro será glorioso. Confiemos nele. Por emquanto abste-nhatno-nos-de agir, a não ser negativamente, para combater, e apenas pela pala-vra e pelo escrito, os portuguezes estrangeiros que nos desgovernam, e isso só sea indignação nol-o impuzér como desabafo. A hora da ação ainda não chegou.Primeiro, virá a teoria política da época. Depois virá o pôl-a em pratica. E quandoa hora chegar, virá não tenhamos duvida o homem de força que a imporá, eli-

minando os obstáculos, que são esta gente de agora, inonarcíiicos c republicanos.

Suavemente, se puder ser, será a transformação feita, a creação começada. Mas se

assim não fôr, se esta geiite de hoje não curar de se tornar portugueza, confiemos,

sem horror, que o Cromwell vindouro os saberá afastar, aplicaudo-lhes, por triste

necessidade, a ultima ratio de Napoleão, de Cavaignac, e do Coronel Conde deGalliffet.

ADIVINHOS D'AGUA

No monte, pela noite enevoada,

caminham luzes de oiro, a tremular,inquietas como a vela baloiçada

pela cadência rítmica do Mar.

E' ronda de bruxedo? (O' mães, cuidado!)E a ronda segue, e ao seu clarão sidério,

acorda, em susto, o bosque extasiado,

em fundas abstrações de alto mistério ...

As luzes vão dum ponto a outro pontocomo astros levados pelo Vento,

ou fachos nas mãos trêmulas dum tonto.

Vejo-as errar, luzindo. E penso, ao vê-las,

que o monte se tomou em firmamento

e que elas são a chama das estrelas!

Não são astros, nem ronda de bruxedo,

mas candeias dos que andam procurando

a seiva que reanima o arvoredo

e vae o grão das searas aloirando.

Como um olhar, no qual se espelha a mágua,

noutro quer resurgir a vida morta

anciosos, os seus olhos buscam a Água,

nas veias maternaes da Terra absorta...

Olhar feito de sonho, imaterial,

passa atravez da face dos rochedos,

como o Sol pela face dum cristal.

Olhar filho da luz que arde nos ceus,

a Esfinge revelou-lhe os seus segredos:

nêle brilha um clarão do olhar de Deus!

II

A EPOPEIA DOS MALTEZES

Choros que o pó amassaram,

Ódios, fel: maré que avança...

Foram mãos que me talharam:

Sou a estatua da-Vingança!

Maltez! Meu nome é de guerra!

Ver-me é logo presentir

Que o vento sul se descerra:

...Já mirram searas de o ouvir.

E noite. Vou pelas eiras,Alma em fogo — deitar fogo

A searas, mêdas inteiras:

Abraso e assim desafogo!

Sou fera? Vá, que me domem!Vós-outros o que sereis?

Não sou fera, não, sou o Homem,

O Escravo firmando leis.

Meu sangue reza nas veias...Por

quem reza ou fala ou chora?

Pelos que em terras alheias

Foram escravos outrora!

O bronzes que em suor, destino,

Fundistes aos soes de Julho,

Sou vosso: herdei de menino

Vergões na pele e no orgulho!

Escaldo a bocca nos pegos—A agua é pôdre, exala tifos ...

Deliro: ha mortos, entrego-os

A gula ruiva dos grifos:

Coveiro da própria raça!

Dôr de aléin-dôr! Ao que eu vim!

Grito e o medo me trespassa,

Acordo e fujo de mim!

Existo e ausento-me. Ha escuro

Na minha memória: — em vão

Me interrogo e me procuro.

Sou realidade ou visão?!

A ÁGUIA147

Choro —e as lagrimas apagam

Pouco a pouco o meu delírio.

Meus olhos quedam-se, vagam ...

Floresço em dôr e sou lirio.

E choro; — perdão! O que hei-de,

Que hei-de, oh Ceus, fazer de^ mim?

Quem tem fome, quem tem sede,

Sendo Abel é já Caim.

Tenho fome e pão comigo,

Vou saciar-me e nasce o horror:

Pois de cada grão de trigo

Cae uma baga de suor!

Terras vermelhas, barrentas...

Se as revolvo, as minhas mãos

Veein humidas, sangrentas

Do sangue dos meus irmãos!

Nos montes ermos, ás tardes,

Trancam as portas — se as forço.

Cahem-me aos pés os covardes

Como estatuas de Remorso.

E ascendo ás .regiões supremas

Ao alto, bem alto, ao cimo,

Quebro todas as algemas,

Não sou eu, sou Deus, redimo!

Revolvo as covas —os mortos

— Ao luar o vento sacode-os —

Vêm esquálidos, absortos

Em terra, em vermes, em odios:

Ricos, prostrae-vos: é a hora!

Sou Deus, esmago Satan:

Ha sangue: nasce uma aurora!

Nas almas é já manhã!

CÔRES ESPIRITUAES

a Eugênio de Castro

O Mysterio da Côr, ó Graça, ó Forma accêsa...

Que poder ha em ti que tanto me allucina?!

Que expressão singular de mística Bellêsa

Te exalta ao meu olhar e o meu olhar domina?!

Esse teu apparente colorido ethéreo

De que te insufla o Sol quando por ti perpassa,Não me interéssa ó côr! mas sim o teu Mysterio:

A auréola d'essa Auréola, a graça d'essa Graça!

Eu anceio encontrar nas coisas ideais:Um búzio ao meu ouvido...Linda téla em que vós n'um lance commovido

Olhos d'Ahna ficais;Pintura luminosa em téla toda ethérea!

As cores que traduzam teu' Sentido

O Intuição!

Côres espirituaes;

Côres sem côr aos olhos miopes da Matéria

Mas para os dAlma apenas.

Vós ó gentes

Que sois céguinhos, esperai; porque algum dia

Dentro em vós se fará também alleluía;

Passará a cegueira,

Sadios ficarão vossos olhos doentes

E á flôr dAlma ligeira,

Cégos: — nascer-vos-hão uns olhos transparentes!

E' azul o teu nome... o teu nome Judith,E' todo azul-anil é côr do céu aberto;

E o teu nome... o teu nome é côr de rosa Edith...

E o teu Sárah é da côr da areia de um deserto.

Maria é Hóstia branca ou Iinho de um altar...

Lavinia, branco; Octávia, branco; e branco Lia;

E o de Ophélia é também alvo da côr do luar...

Izabel, côr do Sol, é da côr do meio-dia!

A ÁGUIA 149

Guilhermina, castanho; e o teu Carmen é rubro

Como papoila ao Sol; Alda sem côr, neblina;

Angela é todo gris como tarde de outubro.

Laura é todo lilaz e é verde Catharina!

Éva o teu é da côr do original-Peccado...

E Esther côr da loucura e Leonôr côr dos beijos,

Mas dos beijos de amôr... beijos de um namorado;

E o teu Izaura é côr de morbi.dos desejos!

Arco-iris:—Luiza, Heloisa e Luzia;

Cacilda alaranjado é Setembro ao Sol-pôsto...

E Rachel é da côr de uma grande alegria;

Helena, triste, côr de um intimo desgosto!

Emilia é um trigal á branda luz do luar,

E Elisa é côr do mar á luz do Sol que o sonda! .

Augusto é nêgro, o meu: — ceu sem ástro a brilhar;

Immenso oceano escuro; é um marulho de onda!

Dona de um nome lindo e claro como o luar,

Olhai! na escuridão meu triste Ser se sóme...

Accendei um pharol ás trévas do seu mar,

Vinde encher de luar a Noite do meu nôme!

Maio de 1912Quinta de S. João.S. João do Fistoril.

SIC ITUR AD ASTRA

A sensação passa, o sentimento fica.

Eu não te quiz — mulher!—com esse amor vulgar

que eleva a divindade, e põe sôbre um altar

o corpo latejante, a carne incendiada

a crepitar num beijo em bôca insaciada.

Eu não te quiz-mulher! — eu não te quiz assim:

amei em ti o sonho... e o sonho estava em mim.

Ameí-te com amor que ao ódio ás vezes chega,

loucura que deslumbra e, deslumbrando, cega.

Gostei na tua bôca o seu sabor alácre,

dúlcido tanta vez, e tantas vezes ácre,

como se fôra sangue em guine de punhal.E a ondulante curva, em molde sensual,

de um corpo regressivo a Venus afrodita

espargiu no meu sonho a tentação maldita,

que as bôcas une e crava em ancias de elevar

um templo ao corpo lindo e um beijo em cada altar.

E foi assim que o fruto — em cuja pôlpa túmida

a boca foi beber, ensangüentada e húmida,

o tóxico subtil numa embriaguez de amante —

mudou em pesadêlo o sonho num instante.

Por isso eu qu'ria ver-te, e cego qu'ria ser

p'ra te não ver também; por isso tu — mulher! —

me fôste um amor-crime, e fôste um santo amor;

o crime no desejo; a redenção na dor.

Se junto a ti só via um corpo modelar,

era longe de ti que te sabia amar.

Porque "amar,,

tu bem vês —é mais do que um desejo

que nasce, cresce, e morre, e tudo só num beijo."Amar,,

é radiação subtil e espiritual,

que exteriorisa um sonho e realisa um ideal;

parte do nosso "Eu„,

que vae, radiando, alada,

separar-se de nós e a nós fica ligada.

E' dar a nossa vida, e assim ficar tamanha,

que fica sendo nossa e ao mesmo tempo estranha;

viver longe de nós, mas sem de nós sair,

gosar no sofrimento, e ver a dor sorrir.

E', sem adormecer, dormir sempre a sonhar

entre duas ficções: "lembrar,,

e "desejar,,.

E' revestir de côr as azas da chiméra,

como reveste o muro a verde folha d'hera,

dando-lhe uma aparência alegre e sempre nova,

A ÁGUIA151

embora a ruina esteja a aprofundar-lhe a cova.

E' esquecer o tempo e, sem contar as horas,

julgar eterna a vida; é ver somente auroras

em cada dia, em cada poente, em cada noite.

E' permitir que o coração, livre, se açoite

na sombra da ilusão e fuja da verdade,

morrendo a cada instante ás mãos de uma saudade,

fazendo-o reviver nos braços de uma esp'rança,

mixto de riso e pranto em rosto de criança.

E, assim, tu vês—mulher! —que o amor não é a posse,

é a aza que acarinha e passa, sem que roce

a triste realidade, a realidade crua,

que é a tumba do amor, talhada em carne nua.

Mas ainda que o instinto impulsione os braços

e una, num corpo só, dois corpos nos abraços;

ainda que nos queime o lume dos desejos

e a nossa bôca morda em convulsões de beijos

outra bôca febril e, como a nossa, ardente,

se o amor quer durar prevê longinquamente

que o sentimento foge e em seu logar, então,

o corpo fica rei, e rainha a sensação.

"Amar,, não é a posse

—a posse esgota e cansa —

"amar,, é um combate em que a victoria alcança

aquêle que ficar esp'rando o que não teve,

na mentira feliz de uma distancia breve.

Por isso, muita vez, cheguei a odiar-te,

e só longe de ti é que sabia amar-te.

ARTE

JÚLIO VAZ

uereria eu falar aos senhores, com descanço e vagar, da

exposição que o escultor Júlio Vaz acaba de encerrar no

pequeno salão da Fotografia Bobone, e que, com a de

Antonio Carneiro, o grande artista da melancolia, foi dasmais altas afirmações artísticas do ano. Mas pois que alguns instan-

tes se me dão para o compte-renda da exposição, para mais tardeficará um largo estudo sobre o artista, as suas disposições e os seus

tipos, ante uma nova colheita de trabalhos, que os trabalhos por-missôres de agora nos vão já annunciando.

Júlio Vaz — disse-o já na Ilustração Portuguesa aquando daabertura do certamen —pertence a uma categoria de artistas que sedefinem em poucas palavras porque tem em si a simplicidade, queé o caracter das grandes obras. Artista duma arte em que o detalheainda seduz quem a trabalha, preferiu, como Rodin, buscar o traçodominante e permanente de cada figura ou de cada conflito ecxteriorisar por ele a sua expressão total. Num país em que a arteaparece ainda dominada pelo academismo, apezar da' influencia di-

gâmos — literaria do mestre do Grupo de Calais, seguir a curva dum

artista como Júlio Vaz é uma nobre consolação: a sua Velha, e oOctogenário que aí nos chega do Salon c/es Artistes Français, onde

este ano foi admirado, são filhos legítimos deste processo.E não se julgue que a preocupação do artista pelo pormenor,

de alguma fôrma leva predominância á minúcia descritiva sobre ocaracter dominante; pois a escolha do motivo visivelmente a indicacomo mero processo externo que nada tem que vêr com a expres-são geral da obra, tal como a concebeu o artista, afastando a idéiade que o artista dele faça, de alguma forma, fundamento da suaarte.

Só assim se compreende de resto como Júlio Vaz é simul-taneamente levado a tratar cabeças carateristicas, — o sorriso bomde sua Mãe, essa melancólica cabeça de Torquato, o riso bonachei-rão da Velha, a austeridade de matrona antiga do busto da Repu-blica, — e essa barbara tragédia dos Humildes, arrastando a rede da

pesca pela manhã anciosa, em posturas que são retalhos iluminadosduma simfonia á esperança e ao inesperado erguida a versos deDante. Os dedos do artista, alados na mesma comoção que animaessa companha de pescadores, deixaram no barro torsos contorcio-nados, bocas em mudas imprecações, intimas comoções religiosas,clarividencias de dias bons, braços erguidos em receios, e a fortunado lar retezando a corda em pulsos afeitos a ondas revoltas e aocoidame dos mastros. Da serena cabeça do Octogenário, ao sôprode revolta que domina as figuras da Oréve.

Pretender explicar o facto caraterisando Júlio Vaz como um

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A ÁGUIA153

notável escultor de bustos em excursão por campos extranhos a sua

alçada, é vêr as coisas muito sumariamente. Para esta conclusão, tao

extemporânea que por ela se relegariam a um plano secundai 10

essas duas notáveis manifestações do seu temperamento que sao a

Qréve e os Humildes, contribue talvez serem taes obias penas íe-

veladas em esboço. D ,

Mas repare-se na escolha dos assuntos, veja-se como no busto

da Mãe, cheio de intimidade, o artista tocado agora de carinho,

esqueceu a dolorida e tragica anciedade dos pescadores, para poisai

em cada detalhe com brandura, como se nesse sorriso quizera dei-

xar o conchego do lar onde cada objecto e cada traço nos tala e

cativa. Confronte-se o busto da Republica: a magestade da riguia

prendeu o artista em linhas nobres, e a technica desenvolve-se com

o aprumo e a austeridade que a domina. E ver-se-ha ainda e sem-

pre o mesmo temperamento seguindo a mesma curva.

Mas Júlio Vaz é acima de tudo um isolado, vivendo uma vicia

interior e creando ás suas figuras toda uma vida interior. Assim

ele é levado a realizar o busto de Torquato Pinheiro, que e um

notável documento psicologico e o alegre desvanecimento de que

temos um escultor de intelectuaes, sabendo desvendar em cada um

a sua atividade e o traço carateristico de sua vida mental. U

barro de Pedro Fernandes Thotnaz traz-nos um novo documento

desta aptidão. E muito de crer é que Júlio Vaz, que nos bustos

realizados já tem dado importancia ao modelo pelo que fica apon-

tado, possa em breve ergfler no mármore e no bionze os gian es

espíritos da nossa terra, falando aos seus filhos dos pedestaes, como

as mascaras dos avós nos atrios romanos falavam á família e guia

vatn o carro dos destinos.

AS NOSSAS INDUSTRIAS DE ARTE

I

ccupando-me do importante assumpto da arte industrial

em Portugal, por dever já do meu cargo official de ins-

pector das escolas industriaes, já de membro da Com-

missão portugueza na Exposição Universal de Paris de

1900, pude, em occasiões successivas e sob variados aspectos, definir

o estado das questões que elle comporta porventura cíe uma forma

mais completa do que ordinariamente revestem as nossas aprecia-

ções jornalísticas a tal respeito. Fi-lo, porém, em documentos officiaes

que naturalmente não teem a publicidade que seria para desejar,

attento o fim a que visava. Reeditando-os agora e conservando-lhes

em parte a sua primitiva traça, mas agrupando-os diversamente e

como que actualisando-os, julgo prestar uma informação interes-

sante, quando mais não seja para dirigir a attenção de muitos sobreo momentoso assumpto. Este apresenta-se evolucionando lentamente

e revelando caminhar para um estádio melhor e mais auspicioso. E'

o que pretendo demonstrar nos artigos seguintes.

Na ultima exposição de Paris de 1900, a Secção portuguêsaobteve as seguintes recompensas nas varias classes em que as in-

dustrias de arte se achavam divididas:

Cl. 66, Décoration fixe des édificesCl. 67, Vitraux

Cl. 68, Papiers peintsCl. 69, Metibles

Cl. 70, Tapis, tapisseries, etc. . .Cl. 71, Décoration mobile, etc. .Cl. 72, CéramiqueCl. 73, Cristaux, nerrerie. . . .Cl. 84, Dentelles, broderies, etc. .Cl. 94, Orfévrerie

Cl. 95, Joaillerie et bijouterie . .Cl. 97, Bronzes d'art, etc. . . .

Medalhas de 1=1.. " s ~

¦ ' £ egO J2 £ 'g. ® = Jo_ £ | -

2 3 11 11

11 3

2 15— 3 12

63 4 341 418 15 151 5

1 1 12

1

I 3 7 231 29 62 119

Apenas contamos tres medalhas de ouro neste grupo. E, se

eliminarmos desse numero a concedida á casa Bello, de Lisboa,

(serigaria para o exercito), teremos somente duas em todas as indus-

trias de arte: a que obteve a ornamentação, pelos nossos marinheiros

A ÁGUIA155

da armada, da entrada do pavilhão do Caes d'Orsay, e a que foi

attribuida á Ex.ma Snr.a D. Maria Augusta Bordallo Pinheiro pelas

suas admiraveis rendas de bilros, talvez o mais notável exemplo da

Exposição, no genero.

E' certo que varias casas importantes do país deixaram de

expor; e quero crer que, se o houvessem feito, o nivel d'esta parte

da secção portuguesa teria subido um pouco acima da modestíssima

mediocridade que o caracterizava. Mas, antes de mais nada, deve

perguntar-se porque não concorreram ellas a esse certame. Para

mim é ponto de fé que, muito coiiscias do extraordinário movi-

mento de arte decorativa que se produz de ha annos para cá nas

nações do centro e norte da Europa e se não reflectiu entre nós,

ellas não quiseram expor-se ao confronto de artigos procedentes de

correntes artísticas diversas, o qual seria desvantajoso sem duvida

para os seus productos. Porque, justo é dizer-se, uma empresa industrial

explora um determinado meio, fornece-lhe o que elle lhe pede; oia

Portugal não pede as bellas cousas ornamentaes da França, da In-

glaterra, da Scandinavia; e por isso as industrias de arte não se

desenvolveram entre nós como no estrangeiro em geral e, nessas

tres nações, com especialidade. Logo o parallelo não podia deixar

de ser desvantajoso para nós e não se fazia preciso afrontá-lo.

Factos d'esta natureza por vezes surprehendem quem, menos

habituado a reflectir sobre os movimentos artísticos e suas causas,

considera os phenomenos estheticos como resultantes de capricho e

invenção livre, e não como productos presos á fatalidade do solo e

de leis naturaes. A Arte é mera expressão esthetica da vida das

nações. E Portugal apresentou-se na Exposição, dentro do campo da

arte decorativa, como que iminobilizado, como não tendo collabo-

rado no movimento, da civilização, por isso que as suas expressões

estheticas eram antiquadas e traduziam estados de alma rudimentai es

perante a evolução dos paizes avançados. E esse facto não podia

deixar de influir na apreciação dos jurys das varias classes, sobie-

tudo neste momento em que parece, após trinta annos de esfoiços

de todas as nações, ter apparecido por fim um novo estilo decora-

tivo. Esse período que vae de 1870, o anuo da gueira, ate 1QOCJ,

afigura-se-me ser um dos mais interessantes da historia da arte deco-

rativa, pela somma de esforços empregados e pela multiplicidade

de aspectos que estes geraram; os resultados observados na t-xpo-

sição de Paris não deixaram de desconcertar mais de um espirito,

mais de uma ambição nacional. Seja-me permittido lançai uma pe-

quena vista de olhos sobre elles e reatar este actual trabalho com

outros anteriores em que já me havia occupado do mesmo assunto,

desta forma mais facilmente justificarei as apreciações e alvities que,

ao deante, vou apresentar. (

•Em maio de 1895, numa informação que me foi pedida ot-

ficialmente, acêrca das nossas escolas industriaes do Noite, sua orga-

nização e resultados obtidos no ensino, escrevi eu:.

"Numa memória dirigida em 1871 ao prefeito do Sena, M.

üréard, ao tempo director do ensino primário em Paus, dizia.

156

' ' •'1

A ÁGUIA

"En abolissant les corporations, les jurandes et les maitrises,

1'Assemblée de 1791 avait dépassé le but. Ou il fallait refonner elle

avait détruit... Et depuis quatre vingts ans, nous nous agitons dans

le malaise».

A França compreendera, nesse momento tão importante da sua

vida política, industrial e artística, que llie faltava o operário, o ar-

tifice, na verdadeira accepção da palavra, e que isso era uma con-

sequencia de o aprendizado se não fazer nas condições que recla-

mavam as suas necessidades industriaes.

Apesar do ensino industrial alii contar já alguns anos de

existencia, em 1867 esse mesmo funcionário notava que fôra.im-

possível organizar um curso municipal de desenho no 17.° arro/idis-

sement de Paris; os alunos não affluiam á escola.

Reinava nessa nação um velho preconceito: que o ensino do

desenho só pode aproveitar a uma elite de futuros artistas. O ensino

industrial e profissional em França, como entre nós, fôra estabelecido

pelas classes dirigentes, e o pais só compreendeu a importancia e o

proveito a tirar desse precioso instrumento de trabalho quando, tendo

atravessado uma dolorosa crise política, se viu atacado também na

sua industria de arte, e geralmente em todas as industrias, pelas na-

ções que a rodeavam.

Mais tarde ainda o Governo Francês, por decreto de 24 de

dezembro de 1881, instituía uma comissão de inquérito encarre-

gada de averiguar qual o desenvolvimento e direção a dar ao en-

sino especial reclamado pelas industrias de arte, bem como de es-

tudar os meios de melhorar a situação dos operários, conjugando-os

com o emprego escrecente da machina-ferramenta. Era o appelo

direto feito ao pais que, só lentamente e como que contrariado,

se manifestaria em tão importante questão. Ele continuava a julgar,

sem duvida, que o seu gênio inventivo, revelado em tantas obras

e em séculos successivos, em tantos estilos decorativos que criara,

dando-lhe o primeiro logar entre as nações industriaes e fazendo-o

arbítrio supremo do gosto, que esse gênio inventivo mais uma vez

asseguraria o mesmo predomínio.

Teve, porem, que convencer-se do contrario; e anda hoje ve-

mos os escritores franceses, que se ocupam do assunto, notarem o

abandono em que as artes decorativas se encontram no seu pais,em comparação do desenvolvimento que elas teem tomado, porexemplo, na Inglaterra».

Tal era realmente a opinião corrente então em França e queM. Jean Lahor, publicista distincto, tornava bem sensível num longo

artigo da Revue Encyclopédique (numero de 15 de agosto de 1894),

mais tarde reproduzido em volume: M. William Moris et Vart dé-

coratif en Angleterre. Estava-se ainda sob a influencia da impressão

deixada pela Exposição Universal de 1889, em que a arte decora-

tiva francesa se apresentara de uma maneira verdadeiramente inferior.

Contudo um grande movimento de reação se ia já operando nas

escolas e no trabalho dos artistas.

Nos dez anos anteriores, os governos da França haviam pro-

A ÁGUIA157

videnciado sob diversas formas a este lespeito, ja ín orman

do-se do que se passava fora das suas fronteiras poi intei me 10 ce

missões especiaes de estudo confiadas a homens eminentes, taes como

M M. Marins Vaehon, Saglio, Salicis, etc., já reorganizando o ensino

das suas escolas de arte decorativa, quer independentes quer annexas

ás Manufacturas nacionaes; vendo que o professorado das suas es-

colas de desenho, em grande parte, era formado de velhos que se

mão achavam á altura da sua missão, substituia-o por pessoal edu-

cado diversamente. E havendo até então grande falta de bons pro.es

sores de desenho dentro do pais acontece haver neste momento uma

verdadeira plethora. (') ,

Os relatorios das missões de estudo manifestavam-se as vezes

por forma a alarmar extraordinariamente a opinião, porque vinham

eivados de exagerada admiração por tudo quanto se fazia tora cia

França Refiro-me, especialmente, a um que se ocupava da íeorga-

nização ingleza dos estudos de arte decorativa, movimento operado

em redor de South Kensington Mascam. ( ) Exageradas ou nau,

essas apreciações foram bemfazejas para as industiias trancezas e

arte; como o foram para a industria geral allema as que o 1 ustie

professor Reuleaux fez dela em 1876, na Exposição de na

phia e o mantiveram en disgrâce durante muitos anos, mas que

lhe valeram afinal o reconhecimento dos industnaes do império

quando passados anos os resultados revelaram todo o bem que o

estimulante do comissário *

oficial lhes fizera, orientando a sua ac1-

vidade por forma diversa da,que haviam seguido ate entaa ,

resto, todos confessam profunda admiração pelo esfoiço ingiez q ,

em 50 anos, remodelando por completo o seu ensino artístico tanto

normal como profissional, cria uma nova phase de aite e 0l

seu pais com um conjunto de instalações techmcas em grau q

nenhuma outra nação possue. E não menos para admuai e impoi

respeito são: o concurso da nação inteira interessada nesse movi-

mento; os exemplos constantes da iniciativa particulai que se ct .

dobra em criação de inúmeras escolas, construção de edifícios e

subsídios fabulosos; e ainda a obra eminentemente pa no í .

vada de artistas que se chamam William Morris, Burne Jones, Uai

(') Quando em 1888 e 1889 o Governo ^"eKao"^

capitaes e contratou professores para as nossas esco as 1,1 ' Quisesse vir

trou um só professor francês de desenho ou de arte deco ' Sd q. ~

u stão

para Portugal. E recordo aqui que este l.o art.go se lefere ao estado da questão

em 1901, anno em que foi escripto. . iinKit-i pm Inplatèrra('4 Em 1888 um illustre funcc.onano portueu» qtie 1a^ita em ]Inglaterra,

havia-me dito que os melhores decoradores das fabi - .nA,-ior riac Relhs Artes

Actualmente (1901) esta opinião é perfilhada pelo P^soai super das Be^

em França. Devo também dizer que, segundo lllfopr™Ç^

serias, muito dos melhores operários que, em Pari , <. >. < P . . . . Gmève

joalhéiros e ourives são suissos, educados na Ecole des Arís Industrieis te Uen^

O que naturalmente nos leva a suppoi uma tioc. inlpnto nrtistico e não

entre as varias nações que' mais se destingueni neste movimento aitistico, e nao

uma influencia única dirigiiido-o inteiramente.

158 A ÁGUIA

e outros, realizada em grande parte sob a inspiração e influxo das

idéias Ruskinianas. E é também incontestável que esse movimento

inglêz exerceu e exerce uma real e larga influencia na renovação da

arte decorativa de todos os paises e da própria França, como o

revelou a última Exposição Universal de Paris.

Mas á França, essa Exposição acarretou, no dominio da arte

decorativa, um triunfo que para muitos estrangeiros, até para muitos

franceses, foi uma surpresa cpmpleta. Os seus esforços, acordando

vigorosamente o gênio imanente na nação, colocaram-na nesse

campo acima de todos os paises que tomaram parte no grande cer-

tame. O triunfo foi confessado geralmente.

Ainda, porem, insistindo sobre a significação desse triunfo, re-

lacionemo-lo com a nossa industria de arte, para bem aquilatar a

importancia de uma tal vitoria e o que ela sintetisa.

Durante o periodo de 30 anos a que primeiro nos referimos, os

industriaes de arte procuraram em vão criar um estilo novo que désse

estabilidade á sua fabricação: assistimos á sucessão dos vários e

antigos aspectos da Moda, renovando os estilos de Luiz XIV, XV

e XVI, Directorio e Império, nos moveis, pratas, tecidos, etc., sem

atingir o fim alvejado. A vida febril da moderna civilização esgotara,

em limitado numero de anos, as comoções que, em tempos mais

tranqüilos, haviam levado dois séculos a suceder-se; ou, melhor

talvez, recusara-se a aceitar todas essas formas esteticas, porque ne-

nhuma se casava com a nevrose que a agita e resulta de um século

de continua luta no desejo de ctrriver.

E quando finalmente chega o estilo novo, que para muitos

todavia ainda é uma chimera inconsistente, íart nouveau, the mo-

dem Style aparece-nos com carateristicas de uma expressão de vida

que não é a nossa, de portugueses. Desenvolvendo-se paralelamente

ao movimento decadista e mistico da última phase literaria, ele re-

presenta bem a espiritualização doentia das nações mais avançadas,

dominadas pelo arrivismo, seja-me permitido o termo; traduz com

flagrante evidencia a nevrose hodierna; e denuncia também que ger-

minara, em parte, sob a incidência do fermento inglêz, transcendental-

mente mistico, do movimento de Morris e outros, sugestionados por

Ruskin, o profeta e charmeur. Esse movimento de civilização não

se refletiu na industria portuguesa, porque quasi nada influiu na

nossa vida nacional; não nos sentimos atacados da nevrose geral.Talvez que nos aconteça isso mais tarde, como usa suceder

na nossa vida histórica, sempre bastante atrasada com relação ás

outras nações; mas, por emquanto não carecemos de contemplar

essas subtilezas, essas delicadezas da Arte Nova, em que por vezes

parece que um delirio alucinante gerou moveis compostos de tibias

efemures encruzados, como observou algures M. Arsène Alexandre,

imagens esverdinhadas e exangues, complicações de pesadelo e

vesania.

De mais, a Arte nova é uma arte caríssima, o que lhe ameaça: talvez a vida; arte refinada e eminentemente sabia, de curvas ele-

A ÁGUIA159

gantissimas, de uma polichromia rara e suavíssima, onde se encon-

tram os mais delicados tons Luiz XVI e China, de uma graça toda

espiritual, carece de fabricação esmerada em excesso, do concurso

mais devotado da parte de todos os seus colaboradores. O nosso

meio não pode pagar isso tudo; Bing com o seu mobiliário mara-

vilhoso de uma construção sabiamente architetada, os seus vitraes,

estofos e estanhos de uma suprema distinção, Lalique com as suas

pratas e jóias, esmaltes e incrustações, Sévres com os seus vasos de

cristalizações de madreperola, a deliciosa serie das suas estatutas de

biscuit, os grés flammés de interior e de construção, as transpa-

rencias das suas procelanas, perfeitas como as melhores da China,

elegantes e formosamente coloridas, não encontram mercado em

Portugal.

Não estranhemos pois o que se passou com as nossas indus-

triaes de arte em Paris; os vários jurys viram que não havíamos

acompanhado o movimento europeu, que estavamos imobilizados e,

naturalmente, não ligaram importancia ao que expúnhamos.

Ei, dado isto, parecendo que o meio português não carece de

produtos diversos dos que na actualidade lhe são fornecidos, pei-

gunta-se forçosamente se haverá necessidade e portanto conveniência

em alterar um tal estado de cousas, criando um instrumento de

trabalho que poderá ficar improficuo, com prejuízo de outros de-

partamentos cujas exigencias são urgentes e inadiaveis, porque vi-

satido a factos de ordem menos elevada, se quiserem, são comtudo

fundamentaes, essenciaes para ,a vida. Isto é, pergunta-se se, reorga-

nização das nossas escolas, deveremos ocupar-nos das industiiaes

de arte, com prejuízo das artes mecanicas e chimicas. A meu vei,

na generalidade dos casos certamente não, sobretudo se se pretende

remodelar esse ensino, com o intituito de fazer grande, novo e

luxuoso, desejando emparelhar com os paises estrangeiros; quando

haja a fazer alguma cousa, penso que devemos caminhar com pru-

dencia, para evitar surpresas e desenganos sempre dolorosos, esse

ensino, mais do que nenhum outro carece de ser especializado em

diverso sentidos e casos haverá em que, tal qual existe, ele baste

ás nossas necessidades e outros em que careça alterado; mas, em

phenomenos tão complexos como são os deste campo de arte deco-

rativa, a dificuldade é grande e o problema da realização so convira

que seja atacado quando demonstrada e bem fundamentada a sua

urgência. , _ . _ , n

Assim pensava eu em 1901, 110 regresso da Lxposiçao de a-

ris. De então para cá, isto é em dez annos decorridos, algum pro-

gresso se revelou entre nós; grande, porem, muito giande tem sido

a evolução porque este assumpto tem passado nas nações mais

avançadas

Neste momento, produz-se novamente um grande movimento

em França a fim de restituir, ao seu antigo explendor e supiemacia

de que gozou, a arte decorativa francesa que, nos últimos dez

anos deixou que a arte de outras nações lhe passasse paia a frente.

Projecta-se uma exposição internacional de arte decoi ativa em Paiis,

160 A ÁGUIA1

para 1Q15, tendo-lhe já prometido o seu auxilio os quatro ministe-

rios da Instrução Publica, Comercio, Trabalho e Belas Artes. Reco-

nhece-se que a administração publica cometeu o grave erro de se

não informar acêrca do valor de algumas exposições estrangeiras, das

tendencias e da importancia dos artistas dessas nações, das condi-

ções normaes em que ahi se faz a aprendizagem, do que represen-

tam os seus mercados, da opinião ahi formada sobre os franceses

e arte francesa. E se por um lado é indiscutível que os exageros

da Arte nova passaram, tendo esta entrado num periodo de maior

equilíbrio, harmonia e solidez estrutural, de formas repousantes e

que condensam tudo quanto o tempo apurou e parece querer con-

servar dos desvarios dos anos anteriores, não é menos certo que os

esforços simultâneos da Holanda, da Bélgica, Alemanha, Áustria, Italia,

do Japão e das duas Américas, na sua espontaneidade e diversidade,

geraram uma arte sincera e notável, que corresponde a necessidades

sociaes evidentes, e não procede de uma theoria generalizada. A

necessidade de conforto, de simplicidade pratica, de lógica, de clare-

za, de equilíbrio rápido é que parece ter provocado essa transfor-

mação, essa refundição das artes aplicadas á vida. O francêz queainda hoje é o primeiro na fabricação de objectos de luxo, vê to

davia que o mercado geral lhe escapa; e aqui como noutros campos

de ação, procurará adaptar a sua produção da industria artística á

satisfação de necessidades vitaes mais vastas e diversas. Por isso

pensa na remolação do seu ensino profissional artístico, no problemaultra difícil da aprendizagem e novamente se empenha na grandeluta artística de que tantas vezes saiu vencedor.

Quanto a mim, temos em Portugal de seguir atentamente o

desenvolver desse movimento a fim de o aproveitar em nosso be-

neficio. Temos sobretudo de transportar para cá o espirito que anima

o novo ensino professado nesses paizes, na medida das nossas ne-

cessidades industriaes e dos recursos de que dispomos.

i

MULHERES ARTISTAS

7^ /li eados d'abril passado té derradeiros poentes de maio, 110

l\/u sa,ão t,a ll"straCã° Portugueza, requestaram o olhar do

visitante cincoenta e cinco .télas de mulheres.

Fartas talvez de namoro egarden party estramalharam

as donas que as rubricam p'rás airosidades turbantes da arte, com

o viso darmoriar d'insinuancia a quinquilharia dos seus lazeres de

gomosas. Pois em seus arquejos de pincel como 11a delinqüente

aphrodisia dos duos o mesmo strabismo jingam as madamas.

Sóbe-se p'rá exposição entre vasos de plantas tão colmadas

d'uso e de velhice que sugerem picarescas edições do snr. Brito

Aranha em vegetal e á piedade concitam por assim as vêrmos pa^

ctuando com bugiarias de dedos sedentários.

A' entrada um porteiro inquire com ar temivelmente valsista,

olhos louchando entre o bocejo e o agrado—se não querem inscrever

o nomezinho...

Fazem-no quantos lá vão, burlescas vitimas do piresisrno, esse

alcalóide tóxico de Lisboa que tudo dessóra, nanisa, desvirilisa: ter-

ceiros amanuenses com a bretoeja poetivora, que têm a reverencia

ao chefe como um "tic,.

e a coreunda como um acessorio da vida...

publica; estétas á flôr da pel'; dandys de perfil de-veado, tão incha-

dos de basofia que os diríamos asnos por direito divino... Respeito

a mulheres: rostos alguns seraphinescos noitando olhos de spasmo

e hipnose, corpos-piciolos de insexuaes, duma poentina beleza, ar-

chiteturas despuma, garbos arabes... no resto, belezas de morgue,

giz-e-roxo; Bettinas gansas que com Ooethes de missanga prevari-

cam; anatomias d'ossos esbrugados sobre que a maravilha pagã dos

vestidos falcatrua outonos d'atitudes, gestos de sortilégio e perdição;

condessas da hortaliça, manízelles Focinhos, fémeas-uteros que lór-

gnam os quadros como os homens na espiral archi-doida das ruas,

com momices de gatas e apêlos sugantes de cadélas...

*

* *

Da inalaria do café, aonde se apodrece nas patas d aranha da

verrina leva-me um amigo a vêr a exposição. Acquiesço com uma

voz de drama historico. E Chiado acima os dois seguimos a um

sol que beija a vida numa suprema cópula zolaica.

Na platitude azafamada das ruas a sua máscara de vícios e

desprezos soberanamente galvanisa hilariantes stops dextranheza

Ah, companheiro verdadeiramente espiritual! Delle aprendi a

degustar o silencio como um álcool e a vêr no medo um signe

d'histéro-arte quintessericial.

162A ÁGUIA

Vicioso da Noite como duma turbadora Macbeth, a falar darte

a sua conversa tem vôos d'azas dormidas, olhos vagalumando, tãomúsicos, na chimica da fébre...

E sabei-o, desses liiper-lucidos malucos que uma vez conhe-

ceram a Lady Ligea de Poe e ficaram perdidamente nostálgicos,

11A0 se resignando a amar essas que são o guincho estridente dasruas —obscenas

poedôras ou nurembergs futiles que costureiros —

Rossetis ógivam de amavios —; tornando-se, por isso, em irremissi-

veis impares da vida, sósinhos que se obstinam a suicidar-se como pavor da morte a enfebrecê-los, tristes p'ra quem a alegria é a

sua fome, mais: a consciência de a não poder mascar, como os

amigos e os irmãos, glutônamente, nos primeiros olhos que passamem atitudes d'espreita ou de fandango, com caricias de fonte, ador-

mecentes...*

* *

Entramos, eu e o meu amigo que todo o caminho me encan-

tou, Kirckoffer da ironia, a brandir contra os ridículos que passa-vatn queimando o seu cigarro alvar de pelintrismo, uma epée fran-

çaise de humôr ultra-certeiro. Entramos e logo um facto esfusia

p'ra nós a sua mascarêta d'imprevisto (exactamente quando o meuamigo assim definia a pintura e a escultura: — essas ogivas góticasem que a alma se debruça p'ró mistério...): vem a ser que, devido

talvez, a essa lei p'la qual o creador cyanoseia dos seus tics a.carne sorvada ou espumea da creação, de cada um dos quadros li

expostos se desagréga como que 11111 "convite

á valsa,, de semi-

virgem vampirisante, uma aliciadora cita a fulvas coisas, eviden-

tissimo guetápano, só p'ra nos delir a nitidez da visão, betumar o

entendimento espevitando-nos o sexo; e conseguindo-o em mim,

valha-me Deus! a pontos de eu, por instantes, só vêr as télas em

dessous e jurar que chuchurrubia no anodino hall não sei que alôr

estesico d'alcôva. Présto me esgueiro á seducção...

Ah, a dominante verdade é que todos esses desbaratos de

lona tagarélam a inaptidão pictural das suas auctoras.

Ninguém ahi procure as furibunderias, os tohu-bohus da côr,os incestos maravilhosos de tons que os Independentes da Ponte

d'Alma, Jeovahs em delirium-tremens de beleza, turbilhónam sobre

(5 charco verde onde coaxam as artes premiadas; tão pouco os ex-

tases preraphaeliticos da linha que esparzem oiros-poentes sobre as

sensibilidades lassas de vibrar.

A arte das madamas é uma arte sem medula, feita por dedos

de luvas que jamais se crisparam em sedes grisalhas de revindictas,

mais amorosos de trufas que de perfeição; um diabo duma arte

cultivada por espíritos o mais possivel coin da feu nesta çonvul-siva época automovelesca e que ao saltarem da cama p'ró seu stu-

dium calçam ainda as chinélas de Van-Dick.

São (um exemplo) borra-tintas da figura. Ei-las ignorantes dos

cômos e porquês anatomicos da expressão, incapazes de hamletizar

A ÁGUIA163

um retrato, alcandorar uma alma té á altura dos.olhos de dar em-

fim, pelo arabesco convulsivo das rugas, a sigmficaçao dum i ensa

mento que se desdobra.

Se o pincel das senhoritas é bucohco, se afeiçoam os verdes

as bonécas, vêmo-los então horizontando mal, peispectivan o pe

revelando, em sunima, só conhecerem a natureza da pouca vergo-

nha sorna dos pic-nics, com culbutes na herva ao fim da taKle. que

alagartam azebres d'impudencia na réza oiro e violeta da paysaBem

Dalii acontece olharmos os seus pasteis rosaraujinos ou os

seus oleos... de ricino sem nenhuma especie da hypnose religiosa

que as coisas verdadeiramente belas nos traspassam, como a cet as

arvores o crepusculo. Deante delles estamos a frio, P^llta,ldo as

preocupações mais terrenas: que faz um calor la fora de a1;azai e

as groselhas do Montanha são um apetite.. . — aquela llbel™ J.

e_s"

tacada, em embevecimento visceral, ante um ananaz "

lia-de escrever talvez atração e dizer com uma candura lorpa con-

valescencia, mas que dominatrix co'o seu galbo blase de musa da

cova e camarim!...

Son<*er—diz Regnier co'a sua arte ogival de compor frases

cest imposer aux ehoses, à travers l'â/ne, Ia g™"de ír(!ns^1,"1,1'^.w'}

silencie use; dest faire du souvenir la reverte; du bloc la statue, de

la ligne 1'arabesque; des lar/nes un philtre.

Ora o que transparece d'estes fulguraes dizeres na tuna „

mais ou menos rua do ouvidor com que as damas expoedoras ma-

xixeiam na lona os seus pincéis? Não transparece, nada poi mu o

que se ponha a mão em óculo para ver. O que pretende. vam s

as janotas, quando os seus dedos pchuttosos vao. no

y.oioncel

o

das tintas, fazendo essa Maria Caxuxa de tons a que melhor cabena

o designativo de —assôrda pictonca, dadas as suas prováveis tac

dades de ménageres? Pois o que pretendem senão azer

amigas que não pintam!

E' este o motivo supino, é este o motivo pândego, tmtamai

rêsco, que nos leva a desejar da parte de seus mandos; mais vigor

de pulso e a estabelecer, em summa, p ras

o juizo definitivo: ellas teem-nas poi uma fatalida ' , ' ' ' .n

a D. Felicidade, no Primo Baztlio, tinha gazes e outias avezan

herpes e pedra na bexiga.

Succede-nie ás vezes, em bagatélicas Palestras de.

que a verve dum ou outro poeira a patine d°'™ das «

^_dandvs e eDio-ramas succede-me ás vezes boxar contra a

jnulhei ar

tiíh, nu SO inteligente --as truculentas diatribes que sao o bombontista ou so mteiigeme

—<tb iuuiu.^ \ r-' his-

fondant sobre estésico das literaturas, deste nunico

terico da prosa, Auguste Strindberg, especie de sombr o deus pumco

fiíjcrpiaririr Hn "tôrne

feminino», em cuja obia convulsa nnprecaflagelador do

"torpe feminino»,

uiva o odio milenario dos sexos.

104 A ÁGUIA

Investem p'ra mim, numa vaginophilia grotesca, os desfarela-

dos títeres de Venus, reeditando-me o conhecido disparate de numa

velliaca não se dever tocar nem com uma flôr.

Qual não deve!

Os que a esta exposição fôram, como a um rendez-vous do

chpcho e do medíocre, esses podem dizer se não assiste justiça á

•sova que óra lhe damos, nós os que não lhe escrevemos cartas iu-

flamadas com "anjo

querido» e outros insultos, que não lhe fèti-

chamos a madeixa loira ou russa, cortada p'rós eleitos com uma

tesoura de aparar calos... Amigos, os calos do ídolo!

De resto: desaire não ha p'ra uma dama em pintar mal um

retrato ou uma arvore, e o caso é que eu não vim aqui negar ta-

lentos a uma só das expositôras, p'rá pintura dos seus cabeilos ou

das suas faces ou dos seus olhos. Confesso, p'lo contrario: põem

qtiasi todas iVessa arte uma graça tão erudita, um videntismo de

dedos tão subtil que perdem em extase o misógino rebelde que ha

em mim, tornaudo-me num babado pios seus cabelos absurdos, p'las

suas faces maquilhadas e p'la magia feita dos seus olhos, em cujo

veludo sortilego bailam incestos de lua e violeta.

1912.

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VELHA

(De Júlio Vaz)

A Águia-5 (2.» série)

SCIENCIA

A MATEMATICA E A REALIDADE

/éyisbí"~ ara a filosofia creacionista todas as sciencias sam reaes e

aidiaes. Reaes, porque aprehendem a face inerte do Uni-

. •J[i3' verso, Idiaes, porque, longe- de serem uma reprodução

passiva das cousas, resultam da ação da actividade espiri-

tual sobre dados imediatos, e, d'este modo, postulam a actividade

do espirito e uma ultima actividade extranlia, irreductivel. Aqui,

como por toda a parte, o realismo não é empirismo, materiaJismo

ou qualquer forma bastarda do sensualismo.

Real e idial vivem juntos, não sendo o idial mais que o ex-

cesso da potência sobre o acto, do futuro sobre o presente, do

espirito sobre a matéria.

Ora é costume na classificação das sciencias distinguir as

sciencias formaes das sciencias reaes. Assim diz-se a matematica é

formal, a fisica é real, etc.

Afastemos as classificações, onde domina o empirismo, como

a de Comte. Tudo é viciado pela já discutida ilusão consista.

Olhemos aquelas classificações onde dominou a átenção á forma

intrínseca da actividade scientifica constructora.

Desse mesmo reparo é 'que

deriva a distinção do formal e

do real.

Porque a matematica é de posse de indiscutíveis certezas, se

viu n'ela uma creação livre do espirito. E, porque é util, uma con-

venção bordada sobre as cousas.

Se assim fôra, se apenas fizessemos convenções úteis, quando

fazemos sciencias, qual seria o critério de utilidade? Ou uma nova

utilidade e assim sucessivamente iriamos atraz da utilidade, cami-

nhando inutilmente, ou um critério de verdade e tornavamos para um

nacionalismo, d'onde desertarámos e que afinal sempre é o logar

da verdade.

Assim não poderêmos dizer que sciencias diferentes (as geo-

metrias euclidiana e não-euclidiana) sani egualmente verdadeiras,

mas momentos dialecticos diferentes devendo a sua ordem ser a da

sua hierarquia racional.

O erro é ainda a crença nas cousas.

O que significa então a distinção entre o formal e o íeal?

Não pode ser a diferença entre a forma e a matéria, porque

afastado ficou o empirismo.

Terá a sciencia na sua lógica motivo para tal distinção?

Se ha sciencia carecendo só o principio da identidade e scieu-

cia carecendo o principio da razão suficiente, não temos um mo-

tivo seguro de distinção?

hm primeiro logar não ha princípios logicos realisados, pelo

mesmo motivo que não ha cousas. Ma, na ação racionalisante, ora

A ÁGUIA

um esforço fatigante e percuciente, que, sempre e a toda a profun-

didade, encontra oposição, ora um como que simples olhar intele-

ctual, alcançando, de lance, todo o objecto. No primeiro caso usa-

mos continuamente a razão, racionalisando sempre, no segundo

caso (a) a razão expõe, de uma vez, todas as entranhas do seu

objecto. Mas em nenhum dos casos a razão caminha só e vasia,

em miraculoso moto continuo.

Sabe-se onde leva o formalismo, quando, com o principio da

identidade, caminha com pouco combustível. Toda a escolastica

o diz.

Em segundo logar pode em cada sciencia mostrar-se o irre-

ductivel, que a Razão elabora; e, pelo limite, que se dá a Sciencia,

mostrar-se como a identidade é obra da racionalisação.

Já vimos, como a arimetica encontra um irreductivel na noção

de numero.

Ou começa pelo numero cardinal e começa contando obje-

ctos ou sensações. Ou começa, como pretendem, talvez por horror

ao empirismo, alguns, e dos mais ilustres, pelo ordinal. Então o ir-

reductivel é um irreductivel superior, mas existe— é a irreversi-

bilidade.

Assim a arimetica é uma sciencia realista no bom sentido.

A geometria, já o mostramos, é egualmente realista, e as especula-

ções não-euclidianas, resultando tf uma incompleta exaustão do Es-

paço, seriam* mais particulares, se houvesse sombra de verdade no

empirismo.

Mostremos agora que os seus princípios de demonstração sam

a forma (a) da actividade racionalisante. Assim colocaremos a ma-

tematica, sem a descer da sua dignidade no mundo real.

O raciocínio de recurrencia ou indução é o mais fecundo dos

raciocínios matematicos. Quero demonstrar a propriedade associativa,

a -f (b + c) = (a + b) -f

c.

Por definição a + (b -f- 1) =

(a + b) + 1. D'aqui deduzo

por indução (b)

a + (b + c) = (a + b) -f

c.

Com efeito, isto é verdade quando c = 1. Se eu agora pro-

var que, sendo verdadeira para c — n, a egualdade é verdadeira para

c — u + 1, tenho demonstrado (b).

Porque é verdadeira para c = 1 logo para c = 2, etc., etc.

De

a + (b + 1) = (a 4- b) + 1

vem, sendo p = n -f- 1,

a + (li + p) = a + (b + n) + 1

pela hipótese a + (b + n) = (a + b) + n

A ÁGUIA167

a + (b + p) =

[ (a + b) + n] + 1 — (a + b) + |">

q. e. d.

D'onde tira a virtude este raciocínio?

Da lei da formação dos números e das definições. Os números

sob o ponto de vista da lei de formação sam idênticos, porque não

lia razão para variar uma lei, que, n'um tempo e n'um espaço

exauridos, põe uniformemente pontos ou instantes. A recurrencia é

uma indução que se legitima, de pronto, porque nenhum conceito

posterior poderá modificar esta primeira lei. A indução matematica

fisica só se legitima, de pronto, porque nenhum conceito posterior

poderá modificar esta primeira lei. A indução fisica só se legitima

progressivamente pelos suas longínquas conseqüências, porque ahi os

conceitos sam numerosos e interdependentes e o campo da intui-

ção é ilimitado.

Na matematica a razão poz os limites á intuição, procurando

somente um primeiro despertar do seu dinamismo.

O raciocínio por absurdo, do mesmo motivo recebe, o seu

valor. Posso afirmar em geometria que uma proposição é verda-

deira por as conclusões da hipótese contraria serem falsas.

Posso faze-lo porque conheço o campo das possibilidades. A

razão traçou as linhas do real (') e, dentro d'esse real, eu conheço

as possibilidades.

Em todas as sciencias, sempre que eu possa limitar as possi-

bilidades, posso usar os mesmos raciocínios.

Em mecanica e em fisica (estamos em pleno feal) ha vectoies.

Até em biologia e sociologia eles se poderiam aplicar á represen-

tação de certas inercias.

Ora n'uma teoria geral dos vectores podemos aplicar o racio-

cimo de recurrencia. (*) Porque?

Porque ha independencia, inércia e uniformidade.

O raciocínio peculiar de matematica assim pode valer em

pleno real.

E não se diga que é formal, ou de convenção.

A força e até a velocidade mostram bem o seu caracter íea-

lista, subordinando o tempo e o espaço aos seus modos. Uma ve-

locidade, só tendo os conceitos de espaço e tempo, é tam leal que

determina relações absolutas de espaço e tempo para as complexas

realidades fisicas.

Ora o teorema fundamental dos momentos de vectoies cie-

monstrado para dois, generalisa-se por indução ou rècuirencia.

O teorema é .verdadeiro para dois vectores.

Se é para // é para (n — I) vectores.

(1) Real no nosso significado racional. .

('-) Tanto estamos em pleno real, que é preciso considerar as deteimma-

ções especificas. Assim a recnrrencia, conclue do mesmo modo, mas não concilie

o mesmo. Ha propriedades que desaparecem c propriedades que aparecem. Assim

110 caso de vectores não é indiferente a ordem dos factores, etc.

168 A ÁGUIA

Seja L a resultante dos (n — 1) vectores P,, P.„ Pm de ori-

gem B e AH o seu momento linear em relação ao ponto A.

Por hipótese AH é a soma geometrica de AO,, AG,, AGn-i,

sendo AG„ étc. os momentos lineares d'esses vectores em relação a A.

(AH) =

(AG,) + (AG,) + (AGn -.)•

A resultante R dos n vectores é a resultante de Q e P„ e o

seu momento linear

(AG) = (AH) + (AGn)

d'onde

(AG) = (AG,) + (AG..) + (AGn 1) + (AGn)

q. e. d.

Todas as vezes que seja possível uma perfeita exuastão do

tempo e do espaço e reposição no tempo e espaço homogeneos

de determinações uniformes e independentes, é valivel a indução

total.

A unidade das sciencias é perfeita e o trabalho de exaustão

pode ir mais ou menos longe, mas, onde a analise chegue a deter-

minações independentes e uniformes, a razão procede do jacto por

decretos absolutos...

t iMn ]*• ')

NOTAS E COMENTÁRIOS

REVISTA BIBLIOGRÁFICA

O aparecimento d'este livro é, com certeza, o

0 Livro de Job Tradução em maior acontecimento literário da época, não só

verso com 11111 estudo sobre o pelo seu valor intrínseco como também pela pes-

poema por Bazílio Teles Li- soa que o escreveu. Impossível separai a Obia do

vraria Chardron Porto 1912. Autôr, principalmente quando o Autor por maior

que seja a Obra, é tão grande como ela!

A pessoa de Basilio Teles tem- uma tal grandeza moral que, tudo o que lhe

dissér respeito, aparece-nos auréalado de luz. ,,

Ele representa, n'este momento, a sublimação de todas as virtudes da sua

Raça. E' o homem único que, só por si, conserva a uma grande altura o nome

português. Ele é 110 nosso meio vulgar e baixo, o que é uma montanha 110 meio

d'uma região plana. Por intermedio dele, nós atingimos as divinas altitudes, onde

o ar é purificado pelo fogo proximo dos astros. Ele é o nosso ponto de contacto

com o que ha de suprêmo na alma humana. Julgo-o uma Figura moral superioi

á de Herculano e tão bela como a de Anthero. .

Anthero de Quental e Basilio Teles! Eis os dois Irmãos, os dois represen-

(antes da Virgindade da Raça. N'estes dois Poetas, o nosso Povo angelisou-se, su-

bin da animalidade baixa e torpe que forma a grande massa comum, a espnitua-

lidade pei-feita que constitue a Humanidade. _

A maior parte dos homens é composta de esboços humanos, cie tentativas

falhadas... De vez em quando, aqui e além, por acaso, surge da massa ínroime

e indefinida, a Fisionomia perfeita, ã Forma definida, marcando uma victona da

Vida na sua lucta contra a Morte. ¦ . 1 •

Em Basilio Teles, a vida portuguesa e, portanto, a vida humana, sumu

mais 11111 degrau, conquistou uni progresso. m.Ora, este facto, 110 meio das misérias quotodianas que nos attligem, e pio-

fundamente consolador, porque nos revela o poder de crear que a nossa Raça pos-

sue ainda. Basilio Teles é uma esperança de nova vida, só porque apareceu no nosso

meio: assim uma terra, produzindo espontaneamente certas plantas, revela a sua

fecundidade. A questão é cultivá-la. . , , .

Eu sou dos que acreditam na Raça Portuguesa, apezar d ela estar adultera eu

pelos maus políticos e pelos falsos literatos que andam sempre pela arreata 10

Estrangeiro, á falta de pernas próprias... Não lia nada mais nocivo para 11111 ovo

do que a Estupidês aliteratada a derramar-se em colunas de jornal ou em pagina

de folhetos, diaria ou semanalmente, através das almas ínscipientes que devorai

tudo na ancia de matar a fome de saber! E que crime não e matar essa tome sa-

«rada com envenenados alimentos! • , iMas deixemos o reverso mau da medalha; contemplemos, de novo, . s .

face bela e verdadeira. Basilio Teles é um signal de que vivemos ainda; e, por-

tanto, uma esperança de melhor saúde. Por isso, o seu nome soa na nossa <

como 11111 sorriso de luz; e tudo o que vem da sua pessoa, ilumma-se deante dc

nossos olhos, toma 11111 sentido superior e transcendente. ,

Basilio Teles foi sempre 11111 escritor de poderosas faculdades, vendo em 11-

ilha recta as cousas na sua verdade, e orientando o seu espirito, íèvo

meditativo, 11a direção da Bondade e da Justiça. ,

Ningue.11 como ele conhece o seu Povo, porque ninguém e, como ele, um

seu representante, e ninguém ama com melhor amor a sua I atria. .

Até hoje a grande e fecunda actividade espiritual de Basd.c1 Teles, tem-se

exercido, sobre tudo, 110 campo das realidades praticas, ele P leo-al

economista; e, politicamente, o genuino representante do Estado honesto e lega 1

A gente vê nele o homem que, se governasse, governaria por amor a sua i atra

e não á sua pessoa; governaria a favor da sua Patria e contra a sua p ,

a favor da sua pessoa e contra a sua Patria!

170 A ÁGUIA

Estou certo que tal milagre jamais se realisará!

Todos os Povos têm sua doença: a França, por exemplo, tem o apachismo;

a I tal ia a camôrra; e Portugal, dada a brandura dos nossos costumes, tem a política.Ora, Basilio Teles não é um político 110 sentido português da palavra. Eis

a razão porque ele jamais governará.Mas Basilio Teles aparece-nos agora, Poeta! Inesperadamente? Para mim,

não. O seu espirito, em virtude da sua própria naturêsa, do seu poder creadôr,

havia de antigir, na ascenção para a luz, a suprêma forma expressiva, - que é

o Canto.

Todo o pensamento profundo transforma-se n'um Canto, disse Alguém.

Ora, o pensamento de Basilio Teles, ao alcançar aquela altura d'onde novos

mundos se descostinam, vestiu-se de asas, voou, transcendentalisou-se em Harmo-

nia, conquistou a Eternidade.

O seu Poêma é um livro que ficará entre os maiores. O cântico de Job játem outro senhor. O pensamento doloroso de Job reencarnou, surgiu, mais uma

vez, á superfície d'uma nova Forma, d'um novo Ritmo e d'uma nova Língua.

A Dôr saltou do Oriente para o Occidente; e o momento espiritual que foi

a alma de Job e o momento espiritual que é a alma de Basilio, deram-se as mãos

através dos secnlos, fraternisaram, afirmando a unidade do Presente e do Passado,

afirmando, por conseguinte, a Eternidade!

Eu não conheço o livro de Job na língua em que, pela primeira vez, foi

escrito; mas conheço-o agora, escrito em linguagem portuguesa e em versos d'um

ritmo espontâneo e firme, abertos em mármore, que nos mostram Basilio Teles como

um grande e verdadeiro Poeta. Ouvi estes primeiros gritos de Job:

"Suspiros são meu pão de cada dia"E agua, que sempre corre, os meus gemidos;"Terror que eu imagine sobrevem-me;"Desgraça que eu receie, em mim recáe."Não mais repouso, segurança, paz!"Sempre, sem terem fim, tormentos novos!

Vêde estes versos lapidares, que lembram estatuas, cantando o poder de

Jéovah:

"Dirigia a palavra ao Poderoso,"Que 11a face da terra espalha a chuva,"E faz correr as aguas nas campinas;"Que levanta os humildes ao fastigiro"E os imersos no luto reconforta . . .

E estes, que se referem ao homem abençoado de Deus:

"Verás crescer a tua descendencia,"Pullularem, como erva, os teus renovos."Maduro baixarás á sepultura,"Feixe de trigo arrecadado a tempo.

E estes ainda, transcritos ao acaso:

"Quer alguém comtemplar-me ? não m'encontra,"Teus olhos procur-me? não existo...

"Não conterei, por isso a minha bôcca;"Na oppressão da minh'alma fallarei,"Chorarei no travôr do coração.

"A àrvor ainda pode ter esp'rança;"Quando a cortarem, torna a reflorir,"Continua a lançar vergonteas novas."E se a raiz lh'envelhecer na terra,"E o tronco lh'estiver no chão prostrado,"Ao cheiro de agua logo reverdece"Como remoça e veste-se de ramos.

"O homem que se deitou não se erguerá,"Emquanto o ceu perdure, não desperta,"Não sahe do seu dormir.

"Quando esta pele houver caido em trapos,"Todo limpo de carne, verei Deus.

A ÁGUIA171

"Está minha raiz á beira de a<;ua,¦•O orvalho passa a noite nos meus ramos.-Ha de me ír sempre a gloria reflorindo,"Meu arco, em minha mão, reverdecendo

Esles versos dão a medida do extraordinário Poeta que vivia oculto em

Basilio Teles, não é verdade? . . ,

Uma das partes mais belas do Poema é a que pinta a confusão da alma

religiosa e esclarecida, vendo Deus e, ao mesmo tempo, a Iniqüidade. 1 eor amia.

vendo Deus e, ao lado d'ele, a Injustiça vencedora e o Justo vencido. Compre-

hende-se bem a suprêma tragédia que Basilio exteriorisou em versos imortaes:

"Olhae p'ra mim, pasmai,«E ponde a mão na bocca.

"Fico todo a tremer ao pensar n'isto,«F. d'horror se arripia a minha carne.

"Como c possível que os preversos vivam,"Se façam velhos, progredindo cm força?

«A casa está-lhe livre de revezes,"A vara do senhor n'eles não toca.

-A Familia é rebanho que dispersa,••Andam-lhe em torno os filhos a brincar.

"Passam os dias no prazer"E descem aos infernos, de relance.

"Morre um homem cercado de confortos,"Plenamente feliz e socegado.

"Expira um outro em amargura d'alma,"Sem jamais ter sabido o que é ter sorte.

"Ambos se deitam "em

poeira egual,"Os mesmos vermes os devoram ambos...

Vede a terrível injustiça incompreensível! E vede, agora, a dôr que^Pr.°"

voca. Ei-la, tornando-se infinita, convertida em ironia que e o ultimo arg

do espirito, a pedrada que ele atira, antes de cair vencido:

"Não móra Deus nos pincaros do ceu?"Como ha de ele julgar na escura noite i

"Nuvens o encobrem, privam-no de vêr,"No circuito do ceu anda entretido...»

O livro de Job, é antes de tudo, a lueta do Espirito contra o Animal; da

creação espiritual contra o creador material. E não e esta lueta, 110 tundo, . 1

Job foi um homem feliz; 11111 dia, viu-se assaltado pela doença ? P°r^raue

as misérias. E então, ele cantou o Poema da Dor; isto e, o seu | (l '

o espirito tudo vivifica) transformou-lhe a desgraça carnal em vid1 rternaas

suas lamentações são as próprias chagas que lhe corroíam o c'orP -

das em perpetua Harmonia. A sua doença e a sua desgraça tra"^maram-be en

nova saúde e em nova graça, 11'um ontro^ inundo, que e o 111

A chaga purulenta e verminosa fez-se canção divina. .

"E Jéovah abençoou os últimos tempos de job ainda ma q 1

meiros. H ele possuiu quatorze mil ovelhas, seis mil carne: os, as ^_

e mil jumentos... E em toda a terra não houve mulheres

lhas de Job» (cap. XLII da Vg. contin.) j . rreador doO livro de lob é um livro triste? Não, porque afirma o poder credor ao

Espirito; é um livro que vive... Bem mais tristes são epes lia tris-

brilha, com luz de artificio, uma alegria morta, uma cdeg-ria j.

tesas para fazer versos, também lia alegrias para o me^iio f,

gnificação alta e verdadeira da palavra, a obra que isenta de dôr- ape-

rito. Toda a vida creada pelo espirito é perfeita, e portanto .senta de dor ape

nas se torna dolorosa a sua projeção sobre o nosso ser animal, tmquanto

172 A ÁGUIA

nossa carne soffre ao ver Ofélia morta, o nosso espinto soití porque ele sabe

qtie aquela morte traduz somente uma atitude e não um estado. Otelia so poderia

morrer para o nosso corpo, que é também mortal. •,

Na ultima parte do Poema, é egualmente adimravel o dialogoentre Jeovali

e |ob- entre o Animal e o Sêr Espiritual que ele creou. E como e interessante

ouvir 'estes

dois seres que formam a creatura humana... e se desconhecem! Jeovali'ordena;

Job obedece. Jéovah é o Senhor, Job é o Escravo.

E desta obediencia do animal ao espiritual e que resulta a felicidade da

creatura; felicidade que só religiosamente se pode alcançar.

O sentimento religioso nasce d'esta obediencia... ou do conhecimento ms-

tinctivo que tem o Corpo da sua inferioridade natural perante o Espirito que re-

presenta a ultima fase da Energia ou da Matéria, a sua expressão mais perfeita,

portanto. O sentimento religioso afirma, em vista do exposto, a Evolução progies-

siva, a marcha do sêr para o mais perfeito.

Para que tentar destruir o que ha de mais belo e de melhor na cieatiua.

Destrui-lo, jamais! Educá-lo, sim. E esta educação deve ser a obra dos verdadeiros

Poetas, como Basilio Teles se nos revela agora.

Este irmão espiritual de Anthero reencarnou a Dor de Job, porque e uma

dor religiosa, uma dor afirmativa e creadôra de vida. O drama intimo do I oeta

biblico identificou-se com o drama intimo do Poeta lusitano, porque a época 1110-

ral em que Job viveu, é talvez semelhante àquela em que vive Basilio leles

job viveu, quando a alma humana creava um síntese religiosa da Vida;.e

BasifiO vive n'um tempo em que a alma humana procura e já entreve uma nova

concepção religiosa da Vida e do Universo. . .

O espirito de Basilio Teles foi assaltado pela comoção moderna que prmci-

pia a alvoroçar os Artistas, os Filosofos e os Sábios, tis o que revela a sua

grandeza. ^ ver(jacjejros espíritos se tornam religiosos, porque são creadôres. O lio-

inein di^no da Humanidade, sente a necessidade de acrescentar alguma coitsa ao

já creado: renova e dilata a Vida; não se limita, como os outros animaes, ín-

cluindo n'estes o geral dos homens, a conservar o statu-quo...... . „ /-v , ne cimrpmgc 11 (TI 1-

energias espirituaes, creadôras de novos mundos.

O mundo actual está no fim...

A noite presente é já uma noite morta, sobresaltada pelo primeiio atvor

d'um novo Sol...

10 Abril 912.

Basilio Teles, com a sua nova obra, coloca-se ao lado das supremas figu¬

res do genero humano. E lioje urn Interprete da Nova Era, da nova he.

O lionieni desde seculos esterelisado e infecundo, come^a a sentir, de novo,

contra todas as influencias liostis da civilisa^o moderila, o despertar de int.mas

Outras publicações recebidas;

"A Plein Vol,, -Poéme Philéas Lebesgue."Terra de Sol,, Versos de José Coelho da Cunha.

"Visões Humanas,, Versos Marcos Algarve.

"Lisboa Preistorica,, 1. 11 Vergilio Correia.

"Revista da Universidade de Coimbra,, vol. 1." N.° 1 Marc;o de 1J1-.

LITERATURA

CAMÕES

Camões é uma divindade portuguesa; a Divindade tute-

lar da nossa Patria. Portugal tem vivido á sombra do épico

imortal: é o único paiz cuja autonomia se tem firmado sobre

o nome d'um Poeta.

A sombra de Camões vigia as nossas fronteiras e arn-

para as nossas Colonias. É uma fortaleza espiritual e por

isso indestrutível.

Camões é ainda o nosso ponto de contaeto com a u

manidade, com a vida eterna, porque ele foi o supremo

interprete do gênio aventureiro e descobridor. Vasco da Uama

transfigurado em sonho, eis o Poeta dos Limadas, esse poe

ma feito de ondas, espumas, nevoas, tempestades... Neptuno

reencarnou em Camões para escievei em verso heroico a

auto-biografia. , _ ..

Os Luziadas são os Evangelhos do Mar. O Mar e c

nosso Livro d'Orações. Lêr os Luziadas é resar o Mar...

SEPULCHROSITO o

Num bosque triste e só

Sob uma concha de arvores, de ramos,

Eu e um poeta — nós ambos, enterramos

Alguns papeis no pó.

Eu enterrei e puz

Os meus primeiros, remendados versos,

Elle, porém, deixou alli "dispersos»

Poemas de oiro e luz.

Elle entregou á paz

Da boa terra silenciosa e calma,

Um livrosito, o autografo da alma

Daqnelle bom rapaz.

Como porém voou,

Seguindo as aguias, cheio de coragem,

Para uma eterna, oceanica viagem,

E nunca mais voltou;

Um dia, sem ninguém,

Violei a doce e pequenina cova

E de branco, à uncção da lua nova,

Vi levantar-se alguém!

Era o Amor a visão

Que eu vi sair desse sepulcrosito,

E trazia na mão um manuscripto,

E dentro um coração!

Milc

(') Nota do autor. Esta poesia é a impressão do enterro dos meus ver-sos e dos do Eduardo. O sepulchrosito fica na gruta de Luiz de Camões, partesuperior, Palacio. O enterro foi em 1883. Os versos são de 1884.

Nota da Redação. O Eduardo a quem a nota se refere é o Poeta EduardoCoimbra que morreu aos 18 anos deixando um belo livro de versos Dispersos.

V_-^M^^,MM,,l^^;^^_!Jl_--J^JLLlIlLJiiVil"!' I 1 •"••¦"¦¦ -^- ¦ ¦—— I 1 W'

Regendo a Sinfonia da Tarde

A Raul Proença

Hora em que a tarde cai... Chove doçura...

Toca meus lábios a divina Graça...

A oculta fonte do Silêncio acorda,

Suavíssima murmura;

... E um bater d'asas d'Anjos, por mim passa!

A imensa cúpula do Ceu recorda

Límpida taça de cristal e oiro,

Dum moribundo oiro que não arde,

E em cuja borda

Num longo trago

Sofregamente bebo a luz da Tarde,

Pálido vinho loiro

Com que divinamente me embriago.

Ao longe, no Ocidente

A galera do Sol colheu as velas;

Vão a cair, dobradas... lentamente...

Sobre o navio em fogo.

Ao ve-lo

Sonho as saudosas tardes do Restelo,

Cheias dum chôro amargo,

Quando ao largo

Sc afogavam na Sombra as caravelas.

Uma a uma,

Cada vela colhida

For instantes se apruma

E já parece

Que o vento novamente as estremece

E as vai tornar revoltas;

E em meu olhar surprezo

O Sonho desvairado da partida

Por momentos

Ergue-se todo, num delírio acezo,

Cortado de lamentos,

Soluços, gritos, ais, lágrimas soltas...!

Fez-se um Silêncio concentrado...

Tudo parou num ar de agoiro...

Lembra o Sol-posto

O túmulo dos Átridas, violado,

Deixando vêr um rôsto

Funebremente polvilhado d'oiro.

Na cúspide do Azul, que um raio cora,

No mais profundo da celeste taça

A derradeira gota se evapora;

E a um sinal de misterioso alerta,

Que num murmúrio passa

De boca

Em boca,

Uma agitada multidão desperta:

— São névoas, sombras, diluídos vultos

Espíritos ocultos,

Que tanto se erguem do mais alto monte

Como do chão mais razo.

E, emquanto a Tarde cai,

Vão pouco

A pouco

Crescendo no horisonte

Debruçar-se no ocaso

Dizer adeus ao Sol que já lá vai!

Adeus! Adeus! geme o sombrio côro!

Tal uma turba de mulheres em choro,

Juntas á beira-mar,

Quando os homens partiam á conquista

Para a Índia remota

E as pobres vinham para a praia olhar

Seguir ao longe a frota

Até de todo se perder de vista.

A tarde é toda raza de andorinhas.

Vão de azas quietas a pairar, sem rumo.

Mas, mal que o Sol entra a morrer,

Toma-as um sobresalto

E, leveirinhas,

Erguem-se quasi a prumo

Para o alto...:

Teem pena do Sol, querem-no vêr...!

Tardes da minha Terra portuguesa!

A ÁGUIA177

Não ha outra onde a Luz crepuscular

Tam docemente quebre;

Mais cheias de ansiedade e da 1 risteza

De Triunfo e de Febrè,

Pois quando o Sol nos deixa^ cai ao Mar.

É às horas imensas do Sol-pôsto,

Quando a Luz solta a rala derradeira,

Que eu me sinto mais belo e mais perfeito

E o Gênio desta Raça aventureira

Me crispa os nervos, me dilata o peito

E transfigura o rôsto!

Raça vidente, halucinada, inquieta,

Sempre à busca do Alem...

Vamos... toca a embarcar! Eh! lá! quem vem

Para as índias sem fim?

Meus Irmãos marinheiros, sou Poeta:

Quero a mais alta gávea para mim!

Cai o Silêncio em ondas dos Espaços.

Hora em que a Noite e a Luz caem nos braços,

Livrando as Coisas do contorno exacto,

Despindo-lhes a túnica de Côr

E em que se escuta e palpa com o olhar:

Fez-se a Sombrà rumôr,

Doce contacto.

Frêmito de Almas que percorre o Ar...

Fez-se a Sombra rumôr,

Doce contacto...

Surprezo despertar da Inspiração...

Desabrochou no íntimo explendor

Fez-se a divina face,

Que a Vida só agora revelasse

No meio dum Silêncio anunciador

E do velado e púdico recato

Da melindrosa meia-escuridão!

A mim libra-me a Sombra em estos de asa,

Sinto que a pouco e pouco me etensa

E o meu Delírio é tanto que extiavasa

E pela tarde extática deslisa...

Desagrega-se a tarde em cinza e ouro...

E mil milhões de vozes concertadas,

Murmuradas

Em segredo,

A medo

Começam a ensaiar um grande eôro...

Na sombra acorda cada ser oculto

E, Lázaro sepulto,

Recobra a fala

E exala

Seu humilde canto...

E a gente escuta,

Empolgada de espanto,

Esse Requiem resado ao fim do Dia

Num côro universal!

Oli! Gênios da Harmonia

De arrebatado estro,

Dai-me a vossa batuta,

Quero ser o maestro

Do profundo coral!

É então que nós dois, de mãos unidas

E de olhos fitos,

Numa embriaguez de sombra e suavidade,

Unimos pelo fogo as nossas Vidas

E nos sentimos infinitos

E a viver na Eternidade...!

E lia tanta Fé no teu olhar ardente,

Ha tanto facho acezo a iluminar-me,

Que me olho, frente a frente

E sinto o meu Destino arrebatar-me.

Olho-me e prende-me um divino espanto:

É que dentro de mim havia um Anjo,

Como se eu fôra um príncipe encantado

E se quebrasse o encanto

Depois de o teu olhar me haver tocado;

E eu despertei para viver de assombros:

Vou crescendo, subindo no horisonte

E tanto espaço na subida abranjo

Que o Ceu é o explendor da minha fronte

E a tarde o manto que me cai dos hombros

Súbito rasga-se o meu corpo aério,

Descerra-se-me o peito em claridade,

Meu coração scintila:

Olhai: a estrela do Mistério

— Vesper abriu a lúcida pupila!

A ÁGUIA

179

Conheço a minha divindade emfim;

E, ébrio de Amôr, de tarde e de Saudade,

Fundo mais os meus olhos com os teus,

Sinto que a Raça deposita em mim

As virtudes maiores de meus irmãos

E halucinado semi-deus,

Tomo a lira de Orfeu nas minhas mãos!

Sim! Tomo a lira,

Firo-lhe as cordas num ligeiro afago

A pedir-lhe segredos

E esse roçar de dedos.

Sopro de Ar,

Hálito de menino que suspira,

Foi o raio de Sol, dando num lago,

Quando pela manhã tenta voar;

Que o doce seio a arfar da minha lira

Logo se inflama

Já se perturba em ânsias, já delira

E em suavíssimas névoas se derrama...

Com dedos de Anjo

De novo as cordas firo

E tam sentidamente a lira tanjo,

Tais acordes desfiro

Com tam profundo

E penetrante acento de Tristeza ;

Que chego a ser senhor de todo o Mundo

Pelo poder supremo da Beleza,

E mais

A mais

As Sombras voltam a unir-se em coio

E as vozes com a lira concertaram

Num dulcíssimo choro.

Torna-se a melodia mais intensa

Até que em toda a Terra se levanta

Uma elegia de Saüdade imensa,

Que entoam quantos Anjos acordaram

Pelo milagre desta Tarde Santa.

As Sombras dizem na elegia imensa

A saüdade do Sol que já moireu,

Mas em mim o Amôr vai mais alem.

Ha muito Sol que nunca amanheceu

E a minha lira chora numa prece,

Resa a visão saüdosa desse Bem,

Que todos sonham e ninguém conhece.

180 A ÁGUIA

Lira de Orfeu! É que esse canto triste

O Amor e a Tarde juntamente louva:

Nem coração de fera lhe resiste,

Não sei de frágua que se não comova.

Até o Ceu de súbito brilhou,

Vejo pálpebras trêmulas a abrir:

Uma Vida mais alta despertou

E as primeiras estrelas vem ouvir...

Logo a meus lábios áridos onde arde

A sede duma eterna embriaguez

Levei a taça azul da Luz da Tarde

Pela última vez.»

Bebi, bebi, bebi a tragos lentos,

Depois ergui-a, levantei-a ao Ar,

Vi-a brilhar ainda por momentos

E como o rei de Thule deitei-a ao Mar.

Ao Mar, ao Mar da Noite é que a lancei

Cheio de Orgulho e Mágua:

Fui o primeiro e eu só que a empunhei

Vi a Noite afunda-la, cheia de água.

Vesper perdeu-se, ao largo, no Poente...

A Noite galga na maré crescente...

Apenas ha clarões no teu olhar

Que brilha razo d'água, liqüefeito...

Fico-me a ve-lo, atônito, de bruços...

Súbito gemes, tens o seio a arfar,

Inclinas a cabeça no meu peito

E rompes em soluços...!

S. João do Campo 1911.

4

A concepção do amor nos poetas provençais

Toí atressi com la elartat dei diaApodera totas altras clartatzApodera, domna, vostra beltatzE la vai o rs, el pretz ei 11 corteziaA! mien senblan, totas cellas tlel raont.

Ri grau t de Barbezicuz.

poesia provençal faz-se notar desde o sen apparecimento, pela sua ori-

líwWi' ginalidade. .. .

Nada, do que antes delia existiu, exerceu nella intluencia. 1 ode,

JL í na pastorella, tratar de assumptos pastoris, sem que nem a forma nem a

sentimentalidade tenham nada de comnuun com a ordenação classica

dum idilio de Theocrito ou duma ecloga de Virgílio.

O meio tem também nella pouca influencia. Ao passo que a poesia o o

Norte reflecte, na gesta, a brutalidade sangrenta do feudalismo, a poesia mendio-

nal, docemente, sob a doçura do ceu, canta as alegrias e as penas do amor.

Nem mesmo as chacinas de Sinião de Monfort, nem as perseguições da

Inquisição conseguirão fazer calar os Irovadores, perdidos 110 seu sonho.

Quando olhamos para a Provença, durante a Idade media, temos a ímpves-

são de vermos aquella floresta deliciosa e phantastica, onde Merlin dorme socç-

gado, sob a contemplação amorosa de Viviane, que o encerrou, para o possuir

melhor, 110 circulo mágico da sua fascinação. _

Mas a concepção do amor nos poetas provençais e também ditferente cia

concepção antiga.

Em nada se assemelha ao amor voluptuoso e terrível do inundo greco-romano

que os heróis da Tragédia grega temiam, nem á brutalidade animal do primeiro

trovador conhecido, Guillem conde de Poitiers e duque d Aquitaine.

divinisação sensual da Belleza e da Mulher, Aphrodite, cede o logar a

divinisação pura da Virgem, casta, adorada de longe e com o respeito humilde

das coisas, que pertencem a Deus.

Em Pompeia e em grande parte da França, apareceram pequenas esculturas

representando uma mulher extraordinariamente bella, sentada, tendo nos biaços uma

criança, que sorri, e voando-lhe, por cima, uma pomba, que parece contempla-la

com amor. „ .

Para a antiquidade pagã essas figuras representavam Venus, tendo nos ora-

ços seu filho, o Deus do amor, e esvoaçafido-lhe em torno a pomba de togo dos

desejos. ...

A maternidade significava ainda alegria e voluptuosidade.

Com a influencia das novas doutrinas christãs, o grupo estatuario conser-

va-se mas a sua interpretação diverge. ,

A mulher tornada Virgem, symbolo de castidade e de-pureza, occulta

nudez, que é considerada impura, em vestimentos castos. , ,

O sorriso perde a sensualidade e, vagamento ingênuo, torna-se doloioso como

num presentimento de angustias futuras. _

A creança toma uma gravidade augusta. A sua maosinha ergue-se ja, 11

gesto dominador de benção.' Presente-se nella o futuro sacrificado, o redemptoi

do nn'ndo.omba torna se sagrada ,,, a f()rma visivei do Espirito Santo, uma das

pessoas d!i Trindade veneravel, do Deus tríplice num so Deus, que eiícarnou no

ventre puríssimo duma virgem, para num milagre d amor redimir os homens da

n,aCUli

Aquf nelihuma idéia de goso dos sentidos. A essencia dum amor immaterial

e extraordinário illumina o grupo e faz ajoelhar os crentes, como outr ora, segundo

a lenda, numa aldeia da Galilea, ajoelhavam os pastores e os reis vindos das tres

182 A ÁGUIA

partes do mundo, diante dum recemnascido, que dava os primeiros gritos da vida,

nas palhas dum estabulo.

Consequentemente, como variou a interpretação deste simbolo, a concepção

do amor variou também.

Sob a influencia do catholicisino o amor espiritualiza-Se. Afasta-se da carne

e aproxima-se da alma.

O ideal da mulher como ente amado variou também. As perfeições do corpo

são exigidas, não como manancial de deleites sensuais, mas como um escrineo

maravilhoso, que contem as perfeições do espirito.

E a perfeição moral da amada tende a approximar-se nas comparações dos

poetas á da Mãe de Deus.

Prepara-se assim o ueo-platonismo de Petrarcha e Dante.

Os poetas provençais tomaram o amor por thema quasi exclusivo cias suas

canções. Concebiam-no como um culto, quasi como uma religião.

Na sociedade provençal, o amor tem as suas leis e os seus direitos, queformam o codigo do perfeito amante.

Os jogos floraes, os conceitos dos poetas e as cortes damor formaram a"sua

legislação.

E desgraçado daquelle, que a violar; os seus tribunais, em que são juizesas mulheres mais bellas e mais instruídas da epocha, são implacaveis e cruéis.

Os amantes em relação ao amor devem comportar-se como um vassallo em

relação ao seu suzeranno.

Estar apaixonado é ligar-se ao ente, que se ama por juramento inquebran-

tavel.

A mulher amada tem o direito de exigir do amante tudo quanto queira eelle tem que submeter-se.

O amante contudo não é um escravo, é um vassalo.

A vassalagem amorosa é invenção dos poetas provençais.Ser discreto é uma das primeiras qualidades exigidas pelo codigo amoroso.

Por isso o trovador escondia o nome da sua amada, ?ob um peseudonimoque se denominava um senha/.

Este costume explica-se, se nos lembrarmos que os trovadores só dirigiam

as suas homenagens a mulheres casadas; uma canção damor dirigida a uma vir-

gem é perfeitamente excepcional nesta poesia.Bernard de Ventadour (século XII) chama á sua dama Bel-Vezer, (Bella

Vista). Ora Mcignet, (Iman) ora Tristau Bertrand de Born designa a sua, com nomes

pouco transparentes: Miellis-de-Bem (melhor que Bem) ou Bel-Miralh (BelloEspelho).

O ultimo trovador provençal, Guiraut Riquier, chama a. sua amada BelhDcport, (Bella Alegria).

Do principio ao fim da Escola provençal este costume é mais ou menosconstante.

Outra qualidade eminente requerida pelas Leys iVAmors codigo poético,onde foi resumida 110 século XIV a legislação amorosa e poética da epocha, era a

paciência, uma paciência enorme e illimitada.

Muitos trovadores a comparam á dos Bretões, que, ha séculos, esperamconfiadamente a ressureição do rei Arthtir.

Rigaut de_ Barbezieuz, um dos mais finos poetas provençais, exprime-seassim: "Sabe

pouco d'amor aqueile que não espera com paciência a sua piedade,porque o amor quer que se soffra e que se espere, mas pouco tempo lhe basta

para reparar todo o mal dos longos tormentos, que nos fez soffrer. „Na coleção de Diez "Poesie der Troubadours» encontra-se esta phrase:" Pa-

ciência é a palavra magica, o talisman, diante do qual se abre o coração daamada,,.

Em troco dos seus serviços o trovador esperava pouco. Um compassivoolhar, um leve sorriso, única recompensa, a que aspirava, eram sufficientes paraprecipitarem o sonhador num enlevo melancholico e eterno, ou numa louca ins-

piração.Diante da mulher amada o trovador perturba-se. Mesmo correspondido é

duma timidez excessiva.

A poesia provençal descreve bem todas as suas emoções: o sentimento da

PORTO ANTIGO

R. Armênia (1911)

(De J. Monteiro)

A Águia, 6 (2.a série)

A ÁGUIA

própria inferioridade, o olhar generoso que o levantou da terra, a anesthesia das

dores por um simples relancear d'olhos descuidado, o receio de que adivinham

por quem é a absorpção do seu espirito, a angustia duma ausência forçada e a

alegria de a ver de mais perto. Senão veja-se:

"Eu sou semelhante a Parsifal, que, deante da lança e do Sant Oraal, teve

uma tal comoção, que não soube perguntar para que serviam; assim quando vejo,

Senhora, o vosso corpo gentil me esqueço a contempla-lo com admiração; quero

implorar-vos e não posso: sonho,, (')¦"Acontece-me muitas vezes querer fazer-vos um pedido, Senhora, mas quando

estou ao pé de vós esqueço-me delle»"Quando a vejo vê-se, nos meus olhos e na côr do meu rosto, que tremo

de medo, como uma folha batida pelo vento; estou tão conquistado pelo amor

que não tenho mais entendimento que uma creança,, (3). _"Não ouso mostrar-lhe a minha dor quando por acaso a vejo; não sei senão

adora-la,, (*). .Longe da mulher a amada o trovador é mais eloqüente. Tem para a divi-

nizar phrases maravilhosas. Refere-se a ella duma forma extraordinaria. fc. uma

imagem, que ella só ousa evocar em segredo, longe da violação dos olhares profanos.

A ausência desperta-lhe formulas duma energia immensa.

Mas esta concepção do amor, duma perfeição tão ideal, perfeição litteraria

e perfeição moral, poie que ambas estas perfeiçoes são conseqüências do amor

perfeito, apesar de original estava longe da realidade.

A arte afasta-se com ella da vida perdendo por isso mesmo, todos os meios

de reuovamento. Ao passo que 110 norte da França a gesta influenciada pelo pro-

vençalismo, introduzido aí por Alienor de Poitiers e Marie de Cliampagne 110

reinado de Luiz VII, cria com Chretien de Troyes o romance de cavalaria e que

em I tal ia, Dante e Petrarcha criam um novo lyrismo superior, a poesia provençai

estagna no seu artificialismo amoroso.

As formas repetem-se, imitam-se sem já satisfazerem os espíritos.

E assim não é difficil, depois da cruzada contra as albigenses, que o espi-

rito religioso se apodere d'elle e que o provençalismo, antes de morrer, aberta

uma nova estrada, com os cantares d'amor á Virgem, se lance nella com ardor.

E' esta a sua ultima feição. .

Na sua concepção fixada em leis o amor tinha tornado a mulher amacu

tão alta tão inacessível, tão supra-terrestre, que não era difficil ella deixar de ser

uma creatura humana para se encarnar na Virgem Maria, fonte de toda a perfeição.

E até á morte da escola provençal, monges trovadores e trovadores laicos

vão dirigir-lhe hymnos d'amor, recompensados da sua constancia pela beatitucte

mystica das halucinações.

Cellas, Abril de 1912.

Vai-se o vulto do meu corpo

Mas eu não

Que aos pés vos fica morto

O coração (r').

(•) Rigaut de Barbezieuz.(-) Peire Raimon de Totilouse.

(:;j Bernard de Ventadiiur.(<) Arnanf de Manielh.»> Arnant cie mamem. . .. . ,(•"¦) Cartas de Egas Moniz Viegas (versão moderna de Almeida uarrett).

LE CONDOR CAPTIF

A Teixeira de Pascoaes

Á quoi bon, vieux condor, dans ta cage vde fer

Eployer tristement devant moi tes deux ailes?

]'ai lu tout ton chagrin dans tes mornes prunelles

]e sais en te voyant ce que tu as souffert.

Tu n'est pas rèsigné, tu songes, tu evoques

Les monts vertigineux et le grand ciei vermeil

Oü tu vol libre et fier se drapait de soleil:

Hélas! regarde-toi; tes plumes sont des loques.

Tes muscles de captif ont desappris 1'essor

Ton coeur dorénavant défaillerait de boire

Uivresse des matins, 1'effroi de la nuit noire;

Dans ta poitrine amère il retomberait mort.

Esclave, tout est vain d'une âtne impatiente

La vigueur se derobe et meurt á ton dèsir

Pour dormir et manger, attends le bon plaisir

De tes maitres, et couche-toi dans ta íiente.

Pour ne pas voir, ferme tes pauvres yeux têtus.

Et pendant que, versant le sarcasme et l'offense

Les sifflets essaieront de railler ton silence,

Tu secoueras 1'orgueil des jours qui ne sont plus.

Va, je sais ta dètresse et quel mal on endure

D'avoir de quoi voler quand on est en prison

Comme toi j'ai les yeux tendus sur 1'horizon;

La tnoindre lueur d'aube est comme une morsure.

Et lorsque faperçois à travers les barreaux

Quelque étoile du ciei qui semble une sourire

Un sonhait de conquête ardente me déchire

Et ma récolte vaine éclate en longs sanglots.

CAMILLO CASTELLO BRANCO

CARTAS INÉDITAS

IX

Meu caro G.

Recebi as suas bellas poesias, e vejo que uão recebeu a minha

ultima carta.

O que posso dizer-lhe a respeito do M. é que o meu procedi-

niento forçosamente devia ser auctorizado por uma grande offensa.

Desde muito que luctamos por causa cfaquellas meditações e que-

jandas sensaborias publicadas no jornal. Cheguei a ameaçal-o com

a minha retirada, e elle acceitou-a orgulhosamente. Mediaram cousas

miseráveis, com que eu não devo enfastial-o, "mas

o melhor da pas-

sagem,, é que aquelle Sr. M. desde certa época, em que resolveu

vesitar D. Miguel, entendeu que eu devia contribuir para o seu

passeio com os meus indispensáveis interesses de redactor. Esta mi-

seria, que eu fujo de publicar por justíssimas razões religiosas e

políticas, deve mover a sua opinião a meu favor; eu, com tudo, meu

amigo, não quero que esta revelação o desvie de escrever para um

jornal religioso, seja quem for o seu redactor. V S. serve a religião

e não os interesses particulares. Se eu duvidasse da sua fecundida e

poética seria um egoísta do seu subsidio litterario; mas V. S." pode

ser util a todos, em cujo numero eu sou uma partícula, mas um

gigante na amizade que lhe dedico.

De V. S. am.° e obg.'"°

Porto 26 de Setembro de 1852.

1

A canção da noiva moribunda

(Das ''Serres cliaudes,, de M. Mscterlinck)

I

E se ele um dia voltar

Que lhe ueverei dizer?...Que eu estive á espera de ele

E o esperei até morrer...

II

E se teimar, perguntando,

E sem me reconhecer?...

Dize palavras de irmã...

Talvez seja por sofrer. .

III

E se pergunta onde estás,

Então, que lhe heide dizer?

-Entrega-lhe este anel de oiro...

E' melhor não responder...

IV /

E ao desejar saber

Por que está a sala deserta?

Mostra a lampada apagada,

Mais aquela porta aberta...

V

E se, ao fim, me perguntar

O que dissestes, partindo?...Diz'

que p'ra ei' não chorar

Eu morri, parti sorrindo!...

• ' •

Tradução dt*

i

ARTE

AS NOSSAS INDUSTRIAS DE ARTE

ão desejaria occilpar-me do aspecto que este assumpto'

toma no momento actiull, sem primeiro me íefem espc-

cialmente ao caso que porventura mais caracterisa o nosso

mau gosto, a nossa ignorancia e a inconsciencia com que

inventamos em arte decorativa. A isso venho. Este caso e o da obia

de madeira em geral, mas sobretudo da que aspira a ser expressão

artística nacional, genuina e inconfundível. Não me passa pela cabeça

comparar a nossa fabricação corrente, por exemplo, com os pio-

duetos americanos do Norte, os quaes sobrelevam a todos os das

nações da Europa culta. Quero apenas indicar artigos com pieten-

ções artísticas e desejos de esgotar até á nega a capacidade admirativa

das gentes mais scepticas. . innn'

Se a memória me não falha, na Exposição parisiense de 1WU

appareceu uma celebre bengala feita de alguns centos de bocados

trezentos ou cousn que o valha, bengala que mais tarde se extraviou

numa qualquer das exposições que se seguiram aquella, sem toda-

via haver ahi causado mais profunda impressão do que produzira

em Paris. Ignoro se algum membro da Secção portuguesa apiesentou

o funambulesco caso ao jury da respectiva classe; nem tao pouco una-

o-ino como elle defenderia um paiz em que ha operários que per-

dem o seu tempo, o qual é dinheiro por toda a parte, a collai e

a ajustar 300 bocados de pao e outros matenaes paia fazei um obje

cto que convém ser de uma cana só!

Ha annos li num jornal qualquer que, la do fund° 1

das províncias beirans, vinha a Lisboa um mspirado e refor nado

major de infantaria offerecer a rainha, Sehhora D. "

castello de cortiça, por elle mesmo feito a canivete nas longas-horas

de ocio e de veneração d'uma terreola parada e crédula. Essa obra

amorosamente monarchica já em 1900 devia tambem es a^ <lP°sen >

e fora de serviço activo, porque não figurou entre a, yana.

concepç e

congeneres que mandamos a Paris, geralmeil,te mente no

todas as recomendações para que se attentasse vjssem betn»

que ellas valiam e as colocássemos "de

forma q vissem bem ,

Mas nem por isso deixamos de revelar o nosso gênio mven

tivo em alguns casos monstruosos, PnncíPf.1"^

hiliario Como iá disse não trato aqui do artigo de fabncaçao conenie,

do niovd de co^ininorcio, qne Oliveira Martins deta,a de nm modo

picaresco; dizia elle que as gavetas das n0^,^

ilhas ou quejandas peças nunca abrem nem fec iam h-Tao Pouco

alfudo á obra de Leandro Braga, o notável art.sta ja fal ec.do ao

tempo, e que, por isso mesmo, nao podia achar-Se representado

188 A ÁGUIA

nessa Exposição. A obra de Braga foi um caso raro, não aprovei-

tado e nem sempre bem inspirado pelas necessidades da vida. Pena

que o não aproveitassem para que fizesse escola; porque nessa

obra ha muito que aprender e que admirar, exemplos de arte de

grande valor.

Aqui refiro-me particularmente aos artigos de luxo, quer de

inteira fabricação moderna, quer restaurados, mas todos elles in-

fluenciados pelo bric à brac. São de quatro categorias:

1.a Moveis de architectura mais ou menos moderna, compos-

tos com talha velha das nossas igrejas.

Quem inventou o genero e com elle primeiro explorou o

mercado conhecia bem a ignorancia e gosto primitivo do nosso

meio que, por completo, se deixou deslumbrar e ludibriar. Feliz-

mente já vae cansando o engodo, e é de esperar que, em breve,

desappareça de todo, juntamente com a velha talha, quando toda

vendida.

2.a Moveis antigos restaurados.

Os moveis antigos são entre nós restaurados, geralmente sem

consciência, por marceneiros desprovidos de educação artística e porconta, ou de negociantes de bric à brac ainda menos instruídos, ou

de colleccionadores que estudaram com esses negociantes. Esta or-

dem de factos tem adulterado, e até destruído, uma grande partedo excellente mobiliário que havia no país.

3a Moveis de existencia recente, construídos em estylo ante-

rior á época em que appareceram.

Nesta categoria apparecem casos de uma incoherencia verda-

deiramente cômica; por exemplo, mesas de cabeceira, lavatorios, es-

tantes para livros, com a ornamentação de tremidos do século XVIII.

Ha alguns annos um negociante de bric à brac convidou-me repe-

tidas vezes para ir ver uma commoda gothica de que me dizia ma-

ravilhas: ignoro o que fosse esse invento, porque não o vi; mas,

pela descrição do homem, devia ser decorado com os frisos de ta-

lha baixa conhecidos pelo nome deveras pitoresco de rafaelas.

4.a Moveis profusamente entalhados, mas sem estylo definido.

Neste ultimo grupo revela-se principalmente a vaidade consa-

grada de certos artífices, dotados aliás de verdadeira capacidade profis-sional, tão grande como a sua ignorancia, mas de facto desnortea-

dos pelo elogio incondicional e característico do nosso meio. Che-

gados a esse estado mental, entalhadores e marceneiros ha que,

podendo vir a ser verdadeiros artistas se fossem educados, já não

duvidam de si mesmos e passam a "tirar

da sua cabeça», como

usam dizer.

Embora hoje se reconheça no meio portuguez um pequeno

progresso sobre este modo de vêr completamente exacto ao tempo,

isto é ha onze para doze annos, não é difficil depararmos ainda

agora nos leilões mais importantes com productos e adaptações

artísticas concebidas no espirito d'esta serie: Applicações de talha

antiga, cabeceiras de cama formando costas de pequenos canapés

ou sofás, etc. Nem deve causar surpresa que assim succeda;

A ÁGUIA189

quando ao contrario do que se dá em outros paizes, e ate em

França onde as obras de restauração do genial Violet-le-Duc sao lioje

condemnadas, nós ainda actualmente estamos construindo monumen-

tos novos em estylos antigos e reconstruindo monumentos antigos

em supposto estylo da época; inventamos e creamos na supposiçao

de que podemos chegar a produzir expressões estheticas dos tempos

passados. Apontarei apenas como justificação do que afirmo os des-

vários pseudo-manuelinos dos últimos vinte annos e a actual tes-

tauração da Sé de Lisboa. , ,

De passagem devo dizer que não está nçste caso a^obia ue

restituição da Sé de Coimbra á sua primitiva traça. Ahi não se ín-

ventou; refez-se apenas o que poude refazer-se e havia sido piopo-

sitalmente destruído. Essa obra é seria.

Mas em Paris appareceram exemplos de todas essas quatio

cathegorias que deixo apontadas. E entre elles vou citar um apenas,

porque me collocou em circunstancias difficeis, direi até insuperáveis,

para defender a insensatês nacional. Expoz, não sei quem, uma es-

palhafatosa mobilia de sala de jantar, espalhafatosa e colossal como

eu nunca vira, apesar de conhecer não poucos monstros similnantes

e de boas dimensões. Pertencia á l.a cathegoria: inoveis modernos

compostos com talha antiga. Era uma serie completa mas, como

digo, colossal. Occupava um largo espaço e, apesar d'isso, nunca

visitante algum nos dirigiu perguntas a seu respeito, como mui as

vezes succedeu com outros artigos do mesmo grupo. Eu deixara de

a vêr por isso mesmo, nem pensei no que, a seu respeito, devena

dizer ao jury que viesse analysá-la e classificá-la. Accrescia ainda

que, detestando profundamente esse genero artístico, tão pouco ti-

nha a aguilhoar-me o interesse superior que em nos despei a a

admiração esthetica. Tudo ahi me desagradava. , , , ,

Tive porem, por dever de cargo e de portuguez, de defender o

aborto. j.„,w

Vieram um dia chamar-me para receber o jury. Homens todos

para mim desconhecidos: apressados, fatigados pelo exeicicio a

critica, muito repetido e rápido, não poucas vezes desagradave po

certo. Fui encontrá-los já defronte dos armatostes e senti-me angus-

tiado. Um dos jurados, com cara de poucos amigos, expressão de

assombro indignado e gesto sacudido, perguntou-me o que a^1''

era. Os companheiros olhavam ora para mim, oia paia o

truosos moveis, com cara de peixes hypnotisados. :infi11Pnrin

Disse o que me lembrou: adaptaçao da talha ^influencia

italiana, século XVIII, muitos conventos vendidos por obia e graça

do Mata-frades, madeira de castanho primitivamente^ pe

rada, estylo quasi nacional, estylo Luiz L»,

que uma vez certo amigo meu, uonico e nao i

"a,ÍaNCâ°o"SsT2°>'?sC°e»tei

mais alguma cousa.Esta ultima aifirma-

ção foi naturalmente sugerida por um alto patrmtísmoangijstia

para me ver livre da entalação que tao desagradavelmente me sui

prehendia. Se os francezes tinham a serie dos Luizes, 13, 14, 15 e 10,

190

\

A ÁGUIA

nós, nação pequena, também possuíamos um Luiz. Atirei-lhes comelle; os homens que lhe calculassem as proporções.

O das perguntas pareceu-me porem ainda mais surprehendidoapós a minha resposta. Ficou-se uns segundos calado; mas de re-

pente, com singular violência e espanto, dirige-me as seguintes pa-lavras que quasi traduzo textualmente:

— Mas então lá na sua terra faz-se d'isto habitualmente, porindustria corrente? Assim havia tantos conventos para alimentar umafabricação especial e constante?

Que sim, que. havia. Eu senti vontade de metter o jury dentrodos armarios, fechá-lo á chave e fugir para muito longe, para oextremo da secção onde havia inoveis de uma estructura finíssima,d'uma graça e elegancia repousante, docemente convidativa; ficar-ineahi contemplando-os* com amôr, para esquecer a torturada orna-mentação da mobilia nacional, horrorosa, colossal e collossalmentefeia.

Mas os homens^ não me deram tempo de cometter essa vio-lencia. Foram elles vêr as lindas cousas das outras secções e dei-xaram-me amarrado aos armatostes.

Estava porem escripto que essa abominação não regressaria áterra firme de Portugal. O naufragio do navio que trazia a bordo uma

grande parte da nossa exposição foi bemfazejo quando fez desaparecer

paia sem pie a monstruosa mobilia. Perderam-se ahi algumas cousassuperiormente bellas: os retratos de Taborda e Eça de Queirozpor Columbano, os retratos dos Snrs. Anselmo Braamcamp e Wen-ceslau de Lima por Salgado, uma collecção excepcionalmente rarade legislação financeira, que Ressano Garcia conseguira reunirnuma longa viagem por varias nações. Mas essas perdas atenuam-se consideravelmente com haver desapparecido oara todo o semprea destestavel guarnição de sala de jantar em estyo Luiz 1 o

Ainda ha males que veem por bem.

Cito este caso como exemplo do aspecto lamentavelmente gro-tesco que toma a obra d'arte quando concebida na mais absolutaignorancia da cultura especial exigida nas nações avançadas. Nós rimo-nos dos manipansos de África e admiramos os moveis construídoscom a talha das antigas egrejas. Pois lá por fora succede exacta-mente o contrai io. Os mesmos homens que tão desagradavelniente

julgaram a nossa mobilia, notam hoje o caracter iniludivel dos ma-nipansos africanos dentro do dominio artístico.

E se esse aspecto é de facto lamentável, mais o é ainda a suarevelação nos certamens de arte e de industria em que as naçõesse desqualificam, submetteudo-o á analyse critica e erudita das es-pecialistas e publicistas de reputação europeia. Mas fervem os em-

penhos, movem-se todas as influencias e a nossa arte de amadoreseternos e incorrigiveis patenteia-se aos olhos educados dos públicossuperioies com a filaucia, boçalidade e inconsciencia do parvenuque julga afrontar a todos com o seu luxo desastrado.

Ridículo, méramento ridículo.

Devo aqui dizer que nenhuma originalidade deseja ter esta mi-

I¦t: - ;-." ;¦>- . : (?.,<:¦ :

'<' ... x4*S,

- .:

A ÁGUIA 191

nha apreciação. Já de ha muito tempo que um ou outro portuguez

se revolta de quando em quando contra a inconsciencia dos nossos

artistas na obra de restauro do mobiliário, e não só nesta como na

do restauro de quadros, edifícios etc. Vozes perdidas, emquanto o

constructor da mobilia d'arte não receber ensino completo e bem

orientado nas nossas escolas especiaes.

Não se sabe porem quando isso será. Mas não desesperemos.

A vida portugueza é lenta, falta de brilho, de relevo. As nossas

expressões estheticas, sempre atrasadas com relação ao movimento

europeu, revelaram em nós, quer na phase ethnographica, quer na

erudita, uma grande necessidade de excessos de ornamentação. O

manuelino representa fielmente esse modo de ser mental; Rafael

Bordallo Pinheiro, ceramista, continua a afirmar as mesmas tendeu-

cias; a nossa litteratura resente-se ainda das redundâncias Gongo-

ristas; o mobiliário ironicamente denominado Luiz lp obedece tam-

bem a essa necessidade de excessos decorativos. Como vemos, em

diversas artes revela-se um mesmo modo de ser mental porventura

ingenito, mas sem duvida alguma denunciador da falta de uma cul-

tura valiosa. Lentamente, como costuma acontecer, sahireinos d'esse

estado sub-consciente para nos elevarmos a um modo de sentir

mais levantado e consciente. Assim o devemos esperar. O problema

é porem, de sua natureza, muito complexo e de diffiçil solução.

Esta, para se radicar e firmar no solo portuguez, carece de derivar

directamente de dados tradicionalistas, de ser obtida por evolução e

não por salto brusco, por introducção brusca de elementos extranhos.

Como consegui-lo?

Comecemos por observar o que neste momento se passa nas

nações cultas em matéria de ensino das artes decorativas e, como

disse no meu artigo anterior, transportemos para cá o espirito d'es-

sas correntes mentaes.

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SCIÊNCIA

Ensino secundário da Matemática

mm.processo da representação gráfica das variações duma

quantidade, função de outra, é duma vantagem imediata

no ensino secundário onde deve substituir demonstrações,

rigorosas sem dúvida, mas, a maior parte das vezes, va-

zias de todo o sentido para os principiantes em matemática. A ne-

cessidade da discusão dum método ou de demonstrações dadas, é

melhor que o aluno a crie do que decore as razões que levaram

os matemáticos a esse rigôr de que só eles compreendem bem a

importância.

A lógica deve aparecer como realmente apareceu. Já se admite

que no curso complementar, como aliás o recomenda o programa,

se analise com um certo criticismo o método lógico empregado na

demonstração dum teorema; no curso geral, porém, deve ser a in-

tuição, mesmo a experiência em certos casos, recomendada em es-

pecial.

Laisant diz a respeito do ensino da geometria:"Para

o ensino da Geometria procede-se, lia já séculos, pode-

ria dizer desde os gregos, segundo um método fatigante, anti-racio-

nal, que desgosta e desanima os estudantes principalmente os que

começam,,." (')

Referindo-se depois à tentativa de Méray constata como o es-

pírito rotineiro do ensino da matemática se defendeu á outrance, de

modo que só passados trinta anos é que as novas gerações, ensina-

das nas escolas normais, o impuzeram de vez. Em Portugal são ra-

ríssimos os professores que se deram ao trabalho de estudar essa

geometria; mas em compensação não falta quem saiba declarar o

método nulo, ilógico e absurdo como se vê todos os dias quando

se assiste á-comparação dos compêndios adotados para essa disci-

plina.

Mas, continuando com o método gráfico, afirmo que ele pre-

para admiravelmente para o estudo da geometria analítica e até pa-

ra a nitida compreensão do emprego da matemática nas outras sciências.

Assim a física tem demonstações elementares simples quando

recorre a esse método, e que seriam duma grande complicação sem ele.

Embora o programa o não recomende com especialidade, a

verdade é que uma grande parte das matérias a que são obrigados

os alunos, pode ser facilitada com o seu emprego.

E note-se que, pelo seu uso, vendo-se, por assim dizer, o des-

. filar das operações ele se presta admiravelmente á abstração. Passar

dum fenômeno (em física) para urna curva já não é pequena abstra-

ção, tratar depois a questão matemáticamente exige o conhecimento

(') Iniciação Matemática.

A ÁGUIA195

de clementes que a lógica não sugeria tão facilmente como o faz

a representação geométrica...» _

O que aí fica, foi escrito em junho de 1910, na dissertação,

por mim apresentada quando aluno do Curso Superior de Letras.

Este any pude ver os resultados que esse método produz, se-

guindo-o, tão de perto quanto me permitia o programa, na regência

da matemática da sétima classe dos liceus. Creio que, num progra-

ma que queira ser útil, a noção de coordenadas, tanto cartesianas

como polares, deve estar nos primeiros anos dos liceus, e que as

funções goniométricas devem ser postas na geometria logo a seguir

ao estudo da semelhança. Evidentemente que não quero que aí se

estude a goniometria tal como ela está feita actualmente, mas que

as definições e relações mais importantes aí sejam dadas. Isto^além

de facilitar o estudo, habitua-os á terminologia que é o dragão da

matemática.

Passemos agora a mostrar como esse processo leirçbra o ca-

minlio a seguir na teoria dos números. Tomando uma semi-reta

fixa e um segmento para unidade, podemos a qualquer número fa-

zer corresponder um ponto sobre a semi-reta.

Deste modo éramos levados a perguntar se só aqueles pontos"

da reta é que tinham números que lhes correspondessem ou se qual-

quer outro ponto podia ser substituído por um número. Daí a ne-

cessidade de criar os números fracionários e irracionais que tinham

a sua explicação necessaria na continuidade geometrica, e os negati-

vos que aparecem com o complemento da semi-reta, havendo, pois,

•a necessidade de fixarmos por um sinal qual o sentido em que de-

vemos tomar o ponto. .

Um ponto do plano podia ser representado por um numerp

(módulo) e por um ângulo (argumento) ou ainda por um sistema

de dois números desde que considerássemos duas retas fixas perpen-

diculares (eixos coordenados). Deste modo os números correspon-

dentes aos pontos dum plano eram formados por um sistema de

dois números já conhecidos ou pelo modulo e o argumento (rtJ) ou

por dois números referidos a unidades distintas (unidade positiva e

unidade imaginária).

Defini depois a egualdade destes números pela correspondeu-

cia do mesmo ponto, sendo, portanto, necessária a igualdade sepa-

rada dos dois números reais que entram na sua formação ou a

egualdade dos módulos e os argumentos ligados pela relação:

0 = 6' -f 2kit.

onde k é inteiro.

Definidas as funções goniométricas, via-se imediatamente que

re — r (cosO + i sen 0)

= r cosQ + ir sen 6)

= * + iy-

196A ÁGUIA

A seguir vinham as operações-cotn estes números, tendo par-ticular importância a multiplicação que expus da seguinte maneira:

Defini produto de dois números o número que se forma do

primeiro como o segundo se formara da unidade positiva.Assim dados os números rf) e r'e> o seu produto forma-se r()

como r'0> se formou de 1. Ora como para formar r'()> á custa de 1

eu formo r e depois lhe dou a ratação o', assim devo formar R der, sendo r a unidade, quer dizer

R = rr'

e i rotação 0 devo acrescentar &' tendo, pois:

ro X r'e' =

+

O que quer dizer que o produto de dois números é o núme-ro que tem para módulo o produto dos módulos e para argumentoa soma dos argumentos.

Como a operação se reduz a multiplicar e a adicionar númerosreais, segue-se que todas as propriedades comuns ás duas operaçõesse conservam e que a propriedade modular era lo, isto é a unidade

positiva.

Daqui resulta imediatamente por ser i = U :~2

¦ e = = -1

L' — 1 37c = — i

2

Posto isto vejamos agora como reduzimos facilmente o estudoda Goniométria ao estudo puramento algébrico.

E' claro que um dos teoremas fundamentais é o teorema dePftágoras que agora nos serve para definir modulo e do qual sededuz imediatamente que

•seira -(- cos= i

O teorema da soma resulta imediatamente de compararmosos produtos dos imaginários

z = cos9 -f- i sen&

z = cosG' -f- i senô'

z<") = cos6(/,) + i senO'"1

que se pode obter pelo modo já dito, dando

A ÁGUIA107

z. z ... z(n) = cos(& + &' + ...+ 0(B)) + Í sen(9 + 9' + . . • + °(n)),

ou em função dos sen e cos dos ângulos parcelas, em virtude das

propriedades da multiplicação que vimos subsistirem, mudando no

resultado /" por — 1.

Creio que esta fórmula nunca fora estabelecida por este pro-

cesso, tendo-se no entretanto, dada a fórmula, resolvido o problema

da multiplicação pela comparação das potências do imaginário

cosO + i sen®

obtidos pela fórmula de Moivre e pela fórmula de Newton.

E' claro que isto foi sempre acompanhado da intrepretação

geométrica, garantia única de que era acompanhado de algum mo-

do por todos os alunos e não só por aqueles que possuem um tem-

peramento analítico invulgar.

NOTAS E COMENTÁRIOS

REVISTA BIBLIOGRÁFICA

Só o grande e enternecido enthusiasmo,

O Regresso ao Paraíso por Tei- com que o ultimo livro de Pascoaes alvoroçou

xeira de Pascoaes. Edição de "A a minha alma, me obrigaria a escrever, desde

Renascença Portuguesa,, — 1912. já, sobre a obra. No meio <Je cuidadoKenascença Q

tempo para sêr tao completo

quanto o poderia ser. Além disso é um atrevimento falar sobre a mais altaobra

portuguesa após uma única leitura. Quantas belesas ocultas nao teia ela ainda

Para 0Fàlemos°do0que ha de diferencial nesta obra, daquilo que representa a ati-

tudt dl„Q,'1Rçg1.^^taa0 parajso„ é o ponto culminante da poesia de Pascoaes. As

sombras encontraram o perfeito acordo com a luz, as emoções irec as ^ís^ra

docemente com as emoções de ordem especulativa, de modo a dar uma obra coi

pleta i hai monica. ^ tijrecta jniediata e integral, que só mostra as superfícies, pie-

;ava que

pensamento envolvesse formas destacadas para receber desse assedio

sombra precisa em movimento de profundidade. O Poeta v.i a eta s -

erguendo as corolas scismaticas no espaço c.rcundanteOpensameno envo^

rada flôr e só então a coro a projectava a sombra, onde a íaiz beDia o aro

matico sêi De forma que a visão do Poeta crescia numa claridade envolvente

desde os confins do horisonte, parando por vezes, para -num movimentolocalse

entranhar na profundidade da sombra. Agora essa ciandade vem das .int™as P™."

fundidades e dos grandes longes; e, em cada ponto, a luz e a própria vida es]

cisav

a

nea

198 A ÁGUIA

ralada em ascenção e expansão, em Deus e humanidade. Se o proprio movimento

divtne move o Poeta, a luz excede-se, porque Deus é um permanente excesso, e éda Altitude que a Vida olha a superfície e a profundidade. Eis o motivo intranho,

porque criador, da Obra.

Essa Obra seria uma absoluta metafísica, integral e defenitiva; e é-o.Essa obra seria o movimento divino e, por isso, a Luz creadôra, explicando

todas as entranhas; e é-o.Da altitude seriam avistados todos os contornos, e, em Deus, o motivo da

caricatura. Pascoaes vê a caricatura, que é o excesso do divino creadôr sobre omaterial (abrangendo a matéria humana) creado.

D'aí a ironia metafísica que Pascoaes criou. As grandes ironias tragicas daliteratura metafísica tem sido apenas blasfêmias desesperadas 011 gargalhadas einicas.

Pascoaeá encontra a única e verdadeira caricatura, que fica para além dacaricatura anedotica, mero processo de pedagogia social.

Estes sam os pontos essenciaes da Obra, que a mostram 11111 momento

eterno.

A Obra é um momento eterno da alma portugueza, porque lima voz por-tugueza só poderia encarnar o divino em formas da alma maternal. Mas não se

pense que um exclusivismo de raça poderia têr realidade e verdade para o Poeta.A alma da Raça é, para o Poeta, 110 proprio movimento de excesso divino. A dia-lectica intranha, emotiva e creadôra da realidade é a Saudade, forma lusitana daCreação. Pela boca verde negra das nossas arvores, pelo silencio de Íntimos unir-murios dos nossos rios, pela anciedade, desolada ao de fóra, fremente 110 intimo,das nossas montanhas! A Saudade (o concreto daquela abstracta remeniscencia dePlatão) é a alma humilde, bondosa e simples do nosso Camponio que ama asarvores, a família, o arado, os bois, a recordação permanente dum lar cujo aban-dono é a própria morte (o horror á vida militar, a angustia da emigração, etc.) ea permanente evocação dum espirito acordado e activo, que é o Senhor Deusdas seáras, dos milheiraes e das vinhas, que é a Serenidade e a Alegria, e aTragédia, e a Sombra e o Mêdo.

Do alto das Montanhas, dentre a sombra da noite negra e dos pinheirosem nocturnas marés, o nosso Camponio acorda os longes, mortos para a lembrançadas almas idas, que pedem e dam a assistência das almas que ficarant a cavar e asonhar.

Pascoaes, que até aqui tinha sentido as sistoles e diastoles locaes do coraçãodos sêres, é agora a diastole do grande Coração divino. As sêdes parciaes vam sêrapagadas, porque é esse Coração a própria fonte originaria das Águas.

Onde os regatos serpeavam palpita a grande, a eterna Fonte.E as aguas do seu Tamega; e as aguas das sedes domesticas; e a maternal

agua originaria que dá ao trabalho o suor do sacrifício; e a agua, lagrima humil-dade, lagrima diluição dalma, lagrima dôr maternal; e a lagrima saudade do Ho-mem (de Adão) sam tão somente aquela Agua coração divino, eterna diastole deenternecimento, dedicação, heroísmo, esforço, gloria.

Camões deu a Portugal a sua alma de aventura heróica, deu-lhe os "Lusia-

das,,; Antero deu a Portugal o sacrifício do seu santíssimo corpo para que Portu-

gal comungasse a sua alma de certeza, pela divina Tragédia de novo libertada dashesitações, das duvidas e das angustias materiaes; Junqueira abre os olhos a esse

gigante cego, debruçado numa impossibilidade secular sobre os "Lusíadas,, inde-cifraveis: Pascoaes dá a esse povo a sua alma integral e purificada, no fóco divinoimanente, a sua alma de Saudade, isto é, de cristianismo intranho, de cristianisa-

ção inexgotavel, sem fim e sem morte.

A obra é o eterno, o perfeito, o único Drama. A vida é liberdade ; é, porisso, mal e bem; é, por isso, eterna mobilidade da exaltação divina.

O criminoso tem terceira pessoa; Deus é também a trindade, pois Deus é acondição do Drama. Essa terceira pessoa excede o criminoso, essa terceira pessoaexcede Deus, em Deus.

Olhos mortaes da Matéria 11a vossa pupila misteriosa brilha recôndita chispaespiritual; é a terceira pessoa alvorecendo a nova vida, a mobilidade divina soer-

guendo a vossa inércia material!

Oh meus amados portugueses do Campo, oh perdidas almas hesitantes, al-vorece a nova luz!

ÁRVORES DE PORTUGAL

A Águia, 6 (2.a série)

Cepo de carvalho

(De Cervantes de Haro)

A ÁGUIA100

Olhae o Oriente e haveis de vêr os sinaes. precursores do Deus Infante! Ele

caminha sobre nuvens de luz! A vossa pupila ainda não retem essa luz de ux

em vertigem d'amor! . , ,

Mas olhai as alvoradas, preparai os vossos corações que Deus volta das mu-

mas do passado sonolento e volta rejuvenescido e todo mudado. Olhai a sua cor

inédita! Aquela frescura aprilina dilue todas as falsas tristesas do desanimo. íai

a sua melancolia feita de vida e não de morte; é a melancolia ua Saiiclacrr, que e

tam só a concentração do Espirito aprehendendo-se no drama da sua essencia.

D. Sebastião que volta!

O que ele aprendeu!

Esteve em encantamento divino. Ele viu o coração dos infiéis, e, cheio uc

assombro c de pavor, viu-lhes uma alma cristianissima. Já não entende a gueiia.

Que lindos contos de fados sabem os infiéis, e que dedicação e delírios místicos

eles não possuem! ^ _ , ...Fraternidade é a palavra do Deus Infante, do D. Sebastiao redimido! Ele

aprendeu Portugal 110 exilio, e traz do exilio a sua alma aos portugueses sem

animo, Esse exilio ensinou-lhe que o homem é o eterno exilado de si mesmo,

se em si mesmo não acende Deus. No exilio aprendeu a peifeita bondade, poi

que conheceu o intimo da vida. _

E ele volta para Portugal, porque Portugal e agora o Universo

Tudo será perdoado, porque o Deus Infante é português e tudo fratermsa

nesta lingua de silencio, de intimidade imediata, de amor aceso no propuocoia-

ção divino. E o Deus Infante não pode esquecer-se em egoísta contemplação de

si mesmo, porque o Homem está ao nível de Deus e sabe falar-lhe de egual paia égua .

O Ainôr isto é a linda Inês não mais temera o mal, porque a terrena

pessoa do criminoso saberá lembrar ao Deus Infante que, sendo a victima a livre

alegria e o criminoso o escravo da tristesa,

"A letra de meu Pae é indecifrável...

Suas divinas mãos já lhe tremiam

Quando escreveu outrora a alma humana!...,,

Alvorece a nova Religião, a alma portuguesa vai possuir-se em Deus

Que todos os poetas (e uesta expressão envolvo-me e envolvo todos os vi-

vos) estudem a Obra; e a Biblia lusitana, tornada vida universal no absoluto, sua

110 contingente, renascimento de Portugal. __ ..

Não digo mais nada. Se quizesse chamar a atençao para fragmentos do 11-

vro seria criminosamente estúpido. O liy1*0 é 1,110 e pei feito.

Leiam-no, e amem-no pqrque a si lêem e a si amam.

Môços portuguêses! ,A vós me dirijo neste momento em que os velhos sem alma se gastam em

obras de Morte. ^^i..

Vinde ao Poeta, vinde a nós que vos amamos, e sereis os apostolos do

Deus Infante, redentor do Universo e alma de Portugal!

Principiemos esta breve noticia sobre a obra do meu

A plein Vol por mais querido poeta francez, por estas palavras dep Augus e

Philéas Lebesgue Gaud: "Nest-ce

pas un merveilleux espectacle de Çeauteq

e

nous donne Philéas Lebesgue, le poete labourem de la Neuulle

— Vault, auteur de dix volumes tres remarquables, et dont quciqucs-uns coinme

VAii-Dclá des grammaires, Aux Fenêtres de France e surtout cet erno vant íecue

de vers, helas trop peu connu, et qui a pour titre: Le Btusson A , Àiihlir cié-

s'il existait encore en France une critique litteraire digne de ce nom ¦

finitivement la reputation d'1111 ecrivaint et d'un artiste.,,

Philéas Lebesgue, pela raça normanda a que pertence e Pela ;ní^rn

casamento com a terra, que ele vive, é dos actuaes poetas franceses o mais sinceio,

isto é, o que põe mais vida e emoção nos seus veisos. Bastaria isso para '

amado dos portugueses,- povo que não perdeu ainda o que ha de saudave

200 A ÁGUIA

barbarie, vivendo mais pelo instincto emotivo do que pela fria, artificiosa inteli-

gencia.Mas Philéas L.ebesgue é-nos ainda querido pelo amor que dedica ás nossas

letras. O pouco conhecimento que lá fóra ha da nossa literatura, deve-se, em

grande parte, ao ilustre Poeta do Buisson Ardcnt.

E esta sua simpatia por nós e esta nossa simpatia por ele, nasce do paren-tesco celta que nos prende. Falemos do seu ultimo poema A plein Vol! O ti-

tulo o demonstra é o Canto da nova epopêa Franceza!

Depois da conquista dos Mares realisada pelos nossos antepassados, a Con-

quista do Ar, que a França está realisando, representa o maior esforço yictorioso

do Homem.

Ás velas das nossas naus deram agora os franceses a ligeiresa da Asa; li-

bertaram-se dos mastros, e ei-las voando, através do ceu, em busca d'uma outra

índia . . A Caravela Lusitana transformou-se na Ave Franceza.

O novo poema de Philéas l.ebesgue é um canto heroico da nova Aventura

da sua Raça imortal. Dado o temperamento deste admiravel Poeta, compreende-se

que ninguém como ele, em França, possa cantar a Heroicidade dos Gauleses. Não

é a religiosidade celta que dirige os aeroplanos através das nuvens e cada vez

mais proxitno dos astros?

Philéas Lebesgue é a alma celta cantando e lavrando 110 seu ninho natal da

Normandia. Só ele poderá cantar o Vôo, a Aza, que hoje anima e eleva todo povofrancez. O seu admirável Poema Á plein Vol: demonstra o que affirmei.

Outras obras recebidas:

"Gente Pobre,, João Grave Edição da Livraria Chardron."Moral da Natureza,,—Deshumbert, tradução do dr. Vieira Filho Edição da Li-

vraria Chardron."Política republicana em Matéria Ecclesiastica,, Alberto Xavier."Mulheres, não procreeis,, Teixeira Júnior Edição de Gomes de Carvalho."A nossa casa,, Severo Portela Edição de Gomes de Carvalho.

SECÇÂO BRASILEIRA

ATTRACÇÃO DA TERRA O

(Continuação da pag. 121)

Onde é que ocê foi, diabinho? Ocê não toma emenda? Eu já não disse

que não te quero lá fóra, de noite? Já p'ra dentro! Empurrou-a. A pequena tro-

pecou 11a soleira e, desamparada, rolou de borco aos pés do pharoleiro, chorando.

O homem levantou-se de golpe, estendendo o braço a defender a filha:

Deixa ella, Maria! A cabocla, enfurecida, explodia ameaças, mostrando o

tamanco que tirara do pé. Deixa ella! insistiu o homem levantando a criança. E,

sentando-se, acolheu-a, alisando-lhe os cabellos humidos, afagando-lhe o peito ri-

pado sob a camisa fria. "Olha só como ocê tá molhada! Tua mãi tem razão. Vai

mudar essa roupa.,, Mas a pequena agarrou-se-lhe mais ao pescoço, com medo.

(1) Do livro "Banzo», a sair da Livraria Chardron.

A ÁGUIA 201

O mar á noite é perigoso, minha filha. Tua mãi tem razão. Ocê não vê a genteaqui com o pharol acceso? para quê? para que os navegantes vejam os perigos domar, á noite. Que qu'ocê foi fazer lá em baixo? A .pequena sussurrou:

Fui botar o dia fóra.Hein? Como é? Botar o dia fóra!? Que dia?

O dia d'ali, da folhinha.

P'ra quê? Ella tartamudeou palavras inintelligiveis. Elle insistiu:Como é?

P'r'o tempo passar mais depressa mod'eu ir lá em terra. O pharoleironão conteve o riso.

Pateta! A cabocla resmungava á beira do fogo escaldando, aos sacolejosdagua, o sacco de café; e o homem, muito meigo, mas dando á voz expressãoterrifica, aconselhou:- Isso não se faz, minha filha. O dia ainda não acabou. A

gente só tira o papel da folhinha de manhan, com o sol novo. Ninguém toma adianteira do tempo, é peccado, Nosso Senhor castiga.

A idéa de um castigo de Deus a pequena vibrou num estremeção violentoe esgazeada, boquiaberta, num grande medo supersticioso, abraçou-se com o paiafundando o rosto no peito robusto a qtte se achegara. E chorava, pensando comarrependimento: "Se

pudesse apanhar a folha que lançara ás aguas, com o diaainda vivo... Se pudesse!...,,

Recusou a ceia de café e bolacha e, deitando-se, não pôde conciliar o so-mno, torturada pelfi remorso daquelle peccado.

As ondas fragoravam 110 silencio e o estrondo escachoante aterrava-a cconimo-via-a como se fosse o agoniado gemer do dia a debater-se no mar.

Os pais recolheram-se. A lamparina ficou sobre a mesa vasquejando numtremer de sombras.

Revolvendo-se 11a cama, insonine, com o coração em estúos, o ouvido at-tento, escutava estarrecidaniente os rumores nocturnos. O crebro bater da porta áslufadas do vento fazia-a tremer!...

Cobriu a cabeça e, encolhida, com os joelhos 110 queixo, immovel, poz-sea rezar. Por vezes, 1111111 uivo de tortura, o vento enchia a noite de angustia. Masandaram na sala; o pharoleiro pigarreou, tossiu. Houve um tinir de louça.Abriu-se uma luz mais clara. Então, repelindo a coberta, Sára sentou-se e, em vozsurda, estrangulada, chamou o pai. O pharoleiro acudiu, agazalhado em grossocasacão, 11111 gorro de lan enterrado até ás orelhas.

-Uai! ocê tá acordada?-Que horas são?

E' quasi meia-noite.

Ainda não é amanhan?

Ainda não.

Está custando tanto!... E se não amanhecer mais, meu pai?Como se não amanhecer? Ocê tá sonhando?Papai não disse? Por causa do dia que eu botei fóra, ainda vivo?Ora! Accendeu o cachimbo. Dorme, deixa de medo. Fel-a deitar-se, co-

briu-a. Nosso Senhor perdoa por esta vez. Mas não faças mais, ouviste? Dorme.E, tomando a lanterna, foi-se vagarosamente para revezar-se com o Bruno,

lã em cima.

Sára dantes irrequieta e afoita, destemerosa nas abaladas pelo ilhéu, ás ribase penhascaes, algares e eafurnas retrahiu-se em temor desde essa noite. Mal sahiaao remonte fronteiro á casa de onde olhava o mar azul ao sol ou d'um verde sujonos dias brumosos quando as gaivotas revoavam mais assanhadas, ás voltas nosares fuscos ou rastejando a espuma. Ali ficava contemplativa, abstraída em scismasde tristeza.

Emmagrecia a olhos vistos, sacudida por uma tosse rouca que lhe recavavao peito.

Ás vezes deitava-se numa molleza flacida, com a cabeça a doer, a boccasecca e acre, uma sensação de calor em todo o corpo, como se estivesse ao sol.Chorava sem causa, em crises repentinas e, com.medo de que a vissem, descia ásfurnas, enlapava-se e, na solidão sombria,| as lagrimas corriam-lhe dos olhos emsilencio.

202 A ÁGUIA

Dezembro estava a findar, radioso e quente. O mar resplandecia d'um azul

forte, retinto, broslado de espuma. O céu, sem uma nuvem todo elle translúcido

de fimbria a fimbria, com o sol em disco enorme e coruscante, refulgitrava. Ma-

dragadas e crepúsculos eram maravilhas de serenidade e cor.

Na tarde de 31, ao fim do jantar, o pharoleiro, que olhava os longes, fa-

lou da demora do barco das provisões. E a cabocla, já preoccupada com o facto,

resmungou: "Bem se importam eles com a gente. Estão em terra, têm tudo...

Mez de festas, ora! Os mais que se arranjem». Bruno não disse palavra, fumando.

No silencio a pequena falou timidamente:

E a folhinha que está no fim . .. já não tem para amanhan.- E', disse o pharoleiro com indifferença... O anuo está acabado, graças a Deus!

E o outro? perguntou Sára de olhos muito abertos.

O outro? O outro ha de vir...

Se elles chegarem, ajuntou ela com melancolia presaga. A' noite, antes

de deitar-se, ainda ouviu a mãi alludir ás festas do Natal em terra, recordar os

bailados pastoris, a visitação dos presepes, os ranchos de Reis, toda a suave poesiado mez santo. E ali. ali o mar, o mar deserto, infinito, e o céu mudo. Lá paraas tantas, estridores despertaram-na o quarto rugia aos esbarros da Porta. Pelas

frinchas e abertas entravam livores de relampagos e a casa aquecia em 11111 abafa-

mento asphyxiante.

Sentou-se na cama. Houve um estrépito de raio e logo, com furioso estar-

dalhaço, a chuva bateu nas telhas em um estrondar de pedracks.A cabocla saltou da cama espavorida, correu descalça á mesa e, tomando

a lamparina, foi collocal-a na commoda, diante da imagem do Senhor dos Passos.

Outro estrépito estalou e toda a casa reluziu ao clarão pálido. Golpes de

vento abalavam as vidraças, pannos lufavam nas cordas agitando sombras tragicas

e as vagas estrugiam investindo ao ilhéu, ouvia-se-lhes o embate violento e, em

seguida, no desmanchar das aguas, o ruido fervente das espumas que se esparra-

mavam alagadoramente. Trovões detonavam, ribombavam rolando em repercussão

profunda.Os dois homens lá estavam em cima, no lanternim da torre, illuminando

o mar áspero.

E a chuva cahia torrencial, ás rajadas, com a fúria de trombas d'agua querebentassem sobre a casa.

Sára, encolhida, rezava, não por si, mas pelos que vinham da terra, pelos

que deviam vir sobre as vagas, no largo barco das provisões, trazendo os dias do

anno novo. E se não viessem, e não chegassem a tempo com a folhinha, como

viria o sol? Tremia, batia os dentes e lá fora, á borrasca furiosa, o mar esbravejava.

E se elles houvessem naufragado? Que seria do inundo sem sol? "Nosso Senhor

nos salve! Nosso Senhor nos salve».

A cabocla vestiu-se estabanadamente, embiocou-se 110 chalé, foi ao armario

e, tomando alguma coisa, caminhou direita á porta com 11111 bater sonoro de ta-

mancos. Teve um momento de hesitação medrosa, mas, resmungando, persignou-se e, decidida, deu volta ao loquete, passou através de uma lufada e, mettendo a

mão pela abertura por onde o vento esfusiava, fechou a porta.Sára tiritava, batia os dentes. Sentou-se na cama retranzida, retorcendo as

mãos. Tentou] levantar-se para seguir a mãi ao pliarol, ficar lá em cima, 110 meio

da gente, olhando o mar alumiado, descobrindo, talvez, o barco, mas tremia

tanto e a noite estava tão escura!...

Desceu de vagarinho. U111 trovão explodiu violento, estatelando-a 110 meio

do quarto. "Minha Nossa Senhora!,, Correu ao canto onde se achava a folhinha,

olhou-a de longe, com medo; adiantou-se, apalpou-a, quiz levantar a folha do

ultimo dia que estava collada ao papelão. Insistiu cautelosa, mas não evitou ras-

gar 11111 pedaço da margem, levantou-a, conseguiu destacal-a e o fundo appareceu,

branco e vasio. Era o fim.

E o sangue bateu-lhe no coração oppresso, constrangiu-se-lhe a garganta em

11111 arroxo de estrangulamento. Quiz gritar, correr para a porta, fugir ... Foi de eu-

contro á cama, com a cabeça a zoar, os olhos em fogo, flammejaiido ascttas.

O quarto alumiou-se em 11111 instantaneo fulgor. Um estampido fremiu, ou-

tro logo mais forte, como se o ceu houvesse rebentado.

Dirigia-se á porta, quando 11111 ruido estranho repercutiu lá fóra. Clareou de

A ÁGUIA 203

novo, em luz fúnebre. Seriam elles? Deviam ser, com o sol. Os relampagos

abriam-se tão seguidos como luz tremula que o vento agitasse como fazia á

cliamnia escassa da lamparina. Era o sol que vinha pelas aguas tempestuosas, su-

bindt), descendo nas vagas roleiras.

Envolveu-se no cobertor, correu á porta, deu volta ao loquete. O batente,

esçancarando-sè com o Ímpeto da ventania, levou-a á parede. A lamparina apagou-se.

A chuva grossa escachoava, em bátegas, na sala. A pequena ficou diante da

treva recebendo 110 corpo as ríspidas cordas dagua e novo clarão, afuzilando o

negrume, offuscou-a.

De impeto, como se a impellissem, lançou-se de ilhéu afóra, através da

tormenta.

Ao deflagrar dos relampagos o massiço emergia trágico, reluzindo, como

uma vaga immensa toda envolta em espuma.

Sára não sentia a chuva ia em frente, direita á riba de onde lançara o dia

ao mar.

Escorregava em resvaladios, tropeçava em cristas, mettia os pés em casca-

bulhagem e, encharcada, com a roupa apegada.ao corpo corria.

O oceano estrondava e quando, aos lividos clarões, as aguas reluziam ne-

gras, viain-se-lhes alambores de escarceus, altos, soberbos vagalhões emplumados

de espuma, e longe, 110 brilho sinistro, o marouço encapellava-se conflagrado., ar-

remettendo ao ilhéu precipitoso, desordenado, sotopondo-se uns a outros, e ca-

valgando-se rebentavam 11a costa saxea tonitruosamente.•Sára estacou num alto, chorando, O ceu abria-se de instante a instante em

fulvas cicatrizes e tudo em torno, nuvens e vagalhões, flammejava em livor. Tro-

vões estalavam com estrondo de catastrophe, fitas de fogo serpeavam. Era o fim

do mundo! "Virgem Mãi do Ceu!,,

E o sol? que seria feito delle?' Pobre gente que o trouxera! E o ilhéo? lá

andava também em pedaços 110 mar. Eram as espumas encapelladas que lhe pa-reciam crostas da ilha, boiando aos rebolões na borrasca. Não esperou mais. Na

ancia desvairada de ver lançou-se, em delirio, pelas lombadas do escolho.

Subia ás rampas, descia aos valiados. Súbito, num relumbrar mais largo,

teve um grito de triumpho. Lá vinha o barco! Lá vinha com o sol. Vira-o bem,

num flagrante. Lá vinha! Eram os homens que traziam o livro do Anuo Novo,

as folhas de luz, as folhas de sol.

Escorregou pela encosta da escarpa, cahiu num vão, .entre penhas, onde o

mar raiava engasgado. Afundou na agua de cliôfre e, antes que se pudesse agarrar

a alguma aresia, a vaga, que subia, recuando em resorvo, arrastou-a.

Debatendo-se na profundeza, entalada entre bordas penhascosas, escabujava,

sentindo correr sobre ella o mar furioso. Ergueu-se tonta, desatinada, afflicta, ar-

revessando golfões dagua, com os cabellos empástados no rosto.

Aterrada, em agonia, agarrou-se á pedra outra vaga arrancou-a, embru-

lhou-a, levou-a aos rebolcos e encontrões pelas bordas do rochedo, atirou-a á penhae trouxe-a de reboleio, deixou-a varada numa chanfradura. Ainda um clarão,

ainda um ribombo Ia gritar, mas outra vaga passou, tomou-a, levou-a acima, trou-

xe-a de rasto e assim, durante a noite, o corpo andou naquella redouça d'agua,

acima e abaixo, 110 vallo ao rythmo dos vagalhões.

Pela madrugada abonançou, o vento cahiu, o mar, ainda crespo e lúrido,

arrufado de espumas, rolava grosso. As nuvens corriam ao vento, o céo foi lim-

pando-se em rasgões de azul e um sol triste appareceu, brilhou um instante, sumiu;

reappareceu, ainda o cobriram nimbos até que surgiu livre em campo azul vivido,

resplandecente, espalhando 110 ar e nas aguas e pelo costão do ilhéo a claridade

e o calor do novo dia.

Tres vultos iam e vinham por alcantis e algares bradando desesperada-

mente. As gaivotas celebravam em vôos barulhentos a volta do bom tempo. O

mar ia' ficando azul, e no fundo do vallo ia e vinha na mareta o corpo da pe-

quenina que não vira o sol novo e a terra verde além do mar, além do céu, além!

( A Coelho Neto )t

Pelos seus tempos de guardar cabras e de tnungir o leite claro com a cari-

cia das zagalzitas de Gessner, Carolina Augusta tinha singelezas d'eclogas nos

olhos e ingenuidades de virgem bíblica no coração. Tinha um rosto viçoso como

o folhado dos corgos, corado como o induto das pútegas, e que só os sóes e os

luares, por serem castos, attingiam e beijavam. Tinha, consoante toda a serrana

que se prezava, uma voz forte, com liga d'ouro, para afugentar os escolhos e os

máos pensares. E tinha também, quando a rosa dos sonhos se lhe abriu ridente e

perfumada, os seus amores donzeis e immateriaes.

Agora não tem nada d'isso, tudo se. lhe crestou com o fogo da sua vida

corrupta e com o passar da inverna aniquiladora. E ainda por cima é unia fugi-

tiva da justiça, uma cheia de fome, uma ladra, que ora se escondeu este matagal,

ora naquelas lapas, ora apparece a pedir um caldo, ora a pilhar uns fructos.

Tinha tanto medo da enxovia! Ai, ella era tam gélida, tam horrenda!... Eo seu crime que falassem as bôas consciências nem por isso dava vulto para a

merecer.

Mas como chegou a desgraçada a isto? Como quasi todas as desgraçadas

que saem das suas serras límpidas e vão para urbs remelosa.

Os paes, uns endividados, sem nada de seu livre, puzeram-na a servir em

Braga, em uma casa cujo dono, abarrotado de fortuna, havia chegado ha um anno

da África.

Antes d'ir para lá, verteu lagrimas como vide golpeada, a pedir á mãe

(a mãe sempre tinha mais coração que o pae) que não llie désse tal desterro. De's-

terro do seu monte, onde, por entre as flores vivas dos giestaes e sob o céo queia da montanha ao mar, havia medrado e florido o seu corpo, visionado e rido a

sua alma; desterro do seu gado brincalhão, do conversado querido, da casa em

que nasceu.

Para compensar a sua ficada, seria moura de trabalho:

Minha mãe, deixe-me ficar aqui, que eu trabalharei dia e noute, farei todo

o serviço: irei p'ró monte, p'ró campo, pVó tear!

Não pódes ficar, filha. E eu bem o queria. Mas é preciso ires, e depressa,

de contrario o senhor de Braga bota outra. E isto seria um grande mal. Tu bem

sabes que os cordões, os brincos, a casa, a leira, tudo, tudo está empenhado. Queha de ser de nós se não nos ajudares?

Teria de partir logo ... Não conseguiria nem ficar para a pisa. Entretanto,

como havia reinodio pela pisa!...Corriam meiados de setembro. Os lavradores mais passados em annos abriam

os seus calendarios de faunos subtis e sentenciavam o tempo para a primeiraarremettida descadas e cestos á vinha de ambar a amethista; logo depois chegavao despejar das dornas cogirladas de cachos borrachudos nos logares quadriláteros.E emquanto os bois possantes levavam essas dornas nos carros chiadores, cantigas

subiam ao ether como cotovias, risos morriam entre as ramadas espessas dos pam-

panos, gritos zimbravam a toalha do sol refulgente como pedraria rajáesca para,tudo ennovelado, correr uma lufada sussurante de vinhedo em vinhedo, como um

éco das velhas dionisíacas.

Carolina, ao ouvir estes prelúdios dos dithirambos ao baccho moço, sente

as juntas empedernidas, os pés pregados ao solo natal. Mas a mãe agarra-a, sa-

code-a como a um galho cheio douriços arreganhados, préga-lhe de novo a ne-

cessidade; e ella, em uma manhan daquelles dias jucundos, lá teve de seguir, tre-

pidante, a enxugar lagrimas ao mandil.

Oh! e que martírio ao transpor o povoado. Aquillo encontrou gente por

* v-,

A AGUIA 205

toda a parte, gente amiga qtte chorava a sua magna, a sua ausência, e teve de

abraçar a todos. Para mais, lá encontrou o Antonio, o seu amor, que passava de

levar o gado ao campo. Como se llie feriu o coração ao dizer-lhe adeus!

Quasi suffocou. E que abraço lhe deu: parecia que os seus braços se haviam

encrustado 110 peito dellel...

Pela tarde chegava a Braga.

Pouco antes, alii pelas portas da cidade, a mãe, que a levava para ajustar o

aluguer, animou-a muito, mergulhou-lhe o desejo em 11111 lago paradisíaco.Alegra-te, Carolina, que tu caminhas p'r'a felicidade. Pensas que vaes ter

uma sombra-sequer da miséria de lá de casa? Qual. Dentro de pouco tempo terás

botas catitas e geitosas, em vez desses sócos brutos que tanto te brilham; aventaes

brancos e brunidos como a sobrepelliz tio snr. abbade; saias de panno de moeda,

com barra de velludo, e arrecadas das mais grossas. .. Uma riqueza, filha, p'ra

pôres de cara á banda, ao voltares, as raparigas da nossa terra. Verás.

E assim, quando se apresentou á dona da casa que ia servir, já não tinha

mais a nostalgia e a saudade a remorderem-n'a, já lhe não zuniam mais aos ouvi-

dos as festas tonitruantes da vindima.

Os primeiros tempos passa-os a creada serrana sem canceiras, muito feliz

por esse encanto- de vida, 11111 consolo de alma que a leva sempre a ajoelhar e a

erguer as - mãos postas para as benignas alturas celestiaes, 11111 asseio brilhante a

eiivoltar todo o seu corpo gracil de toutinegra.

Até que chegam arrelias, desgostos, chega uma inquietação redomoinhante,

avassaladora, que lhe não deixa 11111 segundo de allivio, que a persegue como 11111

corvo maldito; e chega-lhe após a id-éa de quebrar o contracto.

Porque? Por que o sr. visconde, seu amo, dá em lhe jogar galanteios, em

a molestar com apertões, em lhe prometter grandezas futuras.

Grandezas... Ella bem sabia o que significava esta promessa...Era uma negaça que visava arrebatar a sua carne morena e casta, ainda

amornada do olor da sua amorosa serra distante.

Mas, electrica d'odios, tudo repellia.

Via-se a defeza encarniçada de 11111a honra que não queria periclitar, mau-

char-se. E que visão horrorosa, essa, de se ver resvalada, até se fundir 110 coval,

naquelle infortúnio!...

Conitudo, o sr. visconde é tenaz, convincente, argue como 11111 judeu a

extorquir juros; de sorte que as faces appetitosas de Carolina Augusta não conse-

guem fugir-lhe aos beijos. Dahi a render-se-lhe aquelle corpo immactilado foi um

instante: bondaram umas luctasinhas crebas, das quaes o máximo castigo que re-

sultava para elle eram umas deliciosas arrenhaduras da gentil arredia.

Depois, toda do amo, era de vel-a a tomar as'dores por elle, quando os

outros creados o feriam com a lingua envenenada; como, em 11111 ápice,

amortecia todas as ingenuidades, todo o encanto simples; como se tornava uma

dfMiiinadora 110 seu âmbito, uma senhora de quereres, de ares citadinos.

Então, já não escreve aos paes, que elles são uns labregos de chapa, fartos

de lamúrias. E isto de lhes mandar dinheiro tórôla! nem mais 11111 real: custava-

lhe muito a ganhal-o e elles não o mereciam. Pois não a haviam abandonado em

uma terra só de caras estranhas, sem o auxilio de uma mão amiga, a servir de

cliasco a todos (porque ella, naquelle tempo, era a cabreira que se sabia), e jus-taniente pela vindima, dessa festa a que, como lhes pedira, tanto queria assis-

tir?! E para quê? Para, durante uma 1110 de inez.es, ganhar uma ninharia por mez!

Bem sabia que isso não deixava de convir áquelles malandrotes, porque esse valor

do seu suor ia servindo para desenterrar os cordões da mãe palerma que o paeborracho havia enterrado 11a burra do judeu, e para regabofe do pandulho de ambos.

Mas isso acabara-se! Nada. Que se contentassem com o que havia ido e jánão era pouco. E isto de se deixar visitar pelos seus conterrâneos, também não,

que elles ou lhe levavam pedinchices dos velhotes, ou conversas cheias de asnei-

ras, denvergonliar uma pessoa.Eiitrementes, o sr. visconde sacia-se delia com a mesma saciedade de 11111

tigre depois de comer as melhores feveras de uma novilha rosada; e para se des-

fazer daquelle "já quasi estafermo,,, bastou atirar-lhe á cara. ao fim de certa qties-

tiuncula armada adrede, uma grosseira: Rua, rua, sua pécora!

206 A ÁGUIA

Carolina Augusta uão se tresmalhou, depois, tia vereda do lameiro, em que,havia tempos, tinha vontade de se atular até ás ancas desenvoltas: o bairro das

Travessas.

Ali se lhe detalham e purificam todas as subtilezas, todos os embustes da

nova vida, ali conhece uma babel de castas d'honiens: proxenetas em cujos olhos

opados esfuzila perenalmente o cinismo dos sabujos; bordoleiros esquálidos, de

trunfa flabellada sobre uma fronte de dois dedos, de naifa na bainha da calça em

sino e aguardente na boca que geme fados e solta calão; arrieiros gebos, com

murros em todos os gestos; cocheiros bulhentos, de loquacidade pardalesca; bar-

beiros patranheiros e cochichadores de tricas; caixeiretes floridos e pretenciosos;commerciantes arrotando fortunas fabulosas e de abdômen abobadado; fidalgos

glorificados por façanhas inauditas em praças de touros; burocratas vinculados a

sinecuras perpetuas; demagogos bajoujos; theologos piegas.Em pouco tempo esta babel obriga-a a ir parar ao S. Marcos, em cuja cama

esteve, por um triz, a entregar-se á morte.

Mas a alta chegou e foi para as Travessas um escanzello com o nome de

Carolina Augusta, de cujo regaço, certo, jamais tornariam a recender as peoniasda volúpia.

O céo braguez, porém, faz milagres e é generoso. Dentro de poucos mezes

enturgece a pelle bamba, de uma lividez de tocha, desse encanzello, offerece-lhe

globulos novos de sangue ardente, dealba-lhe o collo, dá-lhe novo fulgar ás pupilas.E assim concertada, Carolina tem outra vez os seus adoradores antigos.

Mas de súbito, como por um bafejo venusto, o seu corpo é um contexto

de beleza leridaria, as suas fôrmas eurithmisam-se, ondulam a gracilidade dos lirios

nos paúes: e ela, neste caso, conhecedora de taes graças, sóbe, arroga-se em uma

Lais, arreda a escumalha dos adões, esparge o seu amor só pelos predestinadosda riqueza e da arte.

Belo. Porque além de lhe desaparecerem as chronieas necessidades de ou-

trora, veem-lhe dias de luxo requintado, vem-lhe ouro em barda para as suas mãos

que dantes só conheciam a numismatica do cobre e da prata.N'isto acontece que por um estio crestador, lia um êxodo completo, abrupto,

dos seus epicuristas para o Campo indígena e para o estrangeiro. Mas uão se

arrelia com isso: essa época passa-la-hia também fóra. E havia de ser na sua terra.

Que diabo, os paes, apesar de ella os haver esquecido, com certeza não a come-

riam. Ademais, levava bastantes libras, e, ao seu tlim sonoro, elles amançariam,

fariam de féras ao ouvirem Orfeits. fi o goso de uma viagem daquellas quebrariatodos os espinhos. Só o caso d'ir fazer abespinharem-se as morgadinhas e a cacho-

pada de lá com a esculptura victoriosa do seu corpo e com a magnificência tur-

badora dos seus vestidos e adornos!... Qual dessas pategas porque, afinal, toda

a mulher que morava na aldêa era patega não teria o seu recalco de amor-

proprio, não sentiria, confrangidamente, a sua penúria, o seu encolhimento ao

deante delia?

E partiu logo para a terra mater.

Os paes, ao ve-la entrar de súbito pela sua casita dentro, tiveram o maior

dos enleios, uma satisfação como jamais havia transbordado das suas almas. Se os

pobres rudos já ha tanto tempo não sabiam da filha!... até haviam pensado e

quantas vezes que estivesse morta!...

Porém, depois, limpos os seus olhos do resplendor emotivo, elles viram

essa filha muito differente da outra filha, a Carolina Augusta; não viram sobre o

seu corpo o menor resquício da singeleza do traje serril, fio seu rosto, um único

vislumbre da innocencia de outro tempo; viram uma mulher poderosamente bella,

a irradiar tresloucamentos, a offuscar com a soberbia das suas galas. Quizeram

perguntar-lhe de onde vinha ella, de onde vinha aquella riqueza de vestuário; mas

não poderam abrir a boca.

Acharam-se logo mal ao pé delia. Tinham tanta vergonha de a encarar!...

Choravam a desgraça... E, todavia, foram elles os únicos culpados delia, dessa

itnmensa desgraça. Para que levaram a rapariga para a cidade, o. fervedoiro das

perdições?E accusavam-se, torciam os corações de arrependimento.

A filha, por fim, também se achava mal ao pé delles. Não se sentia bem,

coberta por aquellas telhas que, ao lhes bater a chuva, rufavam como tambores e

A ÁGUIA 207

espargiam agua para dentro como hissopes; entre aquellas paredes toscas e aspadas

por dezenas de pregos fuliginosos a sustentarem um amalgania de potes, oleogra-fias de santíssimos mártires, almotolias, tachos; em vida com dois seres seiíii-bar-baros, lardeados de pieguismos e em connubio com a sujeira da mesa de carvalhoem que comiam e sobre a qual havia crostas da altura de patacos.

Desta arte, sáe, foge de lá, regressa á sua casa da cidade, casa que é umregalo de conforto e encantos.

Podia respirar, já estava longe daquelle alfeire, daquelle aziume constante.Mas cá pelo seu regalo tem, passado uma vertigem de gosos, o seu pri-

meiro desalento. Foi ao praticar a simples extravagancia de se reflectir, desnudada,em um espelho.

Oh, como já tinha aquelle corpo! Não tinha mais o frescor do leitedas cabras que elIa ordenhara em pequena. Não tinha mais a ondulação dos tri-

gaes da sua terra. Já emmurchecia em fundo côr de cêra velha.

Dahi, vém os nervos impotentes, as raivas coriscantes. A seguir vêem-se os

adoradores a despresa-la, as collegas primaris a mofa-la. Bem se apéga aos vibra-dores energicos, aos tonicos vigorosos, ás pomadas resurgidoras, ás dourações derestauro geral. Bem freqüenta as tócas das sagas corcundas, de mochos sapientese de grande confiança com o senhor démo. Bem se encoinmenda aos santos...

Mas, qual, o tempo- cada vez a arruina mais, dir-se-ha, o maldito, com ancia delhe chegar rápido o fio da vida á thesoira da megera Atropos.

Carolina, emfim, é uma choca, imprestável, inappetecivel com uma carcassa.

De sorte que come do inealheiro, porém este, que pouco ouro recebera, esgota-se

logo. Tem então o recurso, que aproveita logo, de voltar a ser creada. Mas como

dantes nunca mais o podia ser. Oh, - lembrava-se bem - naquelle tempo tivera en-

godos de velludo, beijos escaldantes, amancebia fidalga: agora, a servir messalinas*a servir corpo de aluguer, como fora o seu, só poderia ter ralhos espicaçantes, es-carneos, trabalho abjecto!... Ah! e essa gente havia de ser conforme ella foi paracom as outras miseráveis servas.

Em uma noute de grande saturnal no conventilho em que servia, Carolinaconseguiu atirar-se á cama antes de se evaporarem todos os alcóes e delírios dasménades. Porém, não conseguiu dormir, a insomnia obrigou-a a rolar 110 enxer-

gão até a hora de se erguer. E emquanto isso, só lhe acudiram ao cerebro, comnevrose nostalgica, dias da sua vida serrana.

Quantas saudades dessa vida. E como seria feliz se continuasse 11a sua terra!Teria agora, lá na encosta, o seu casalsito muito branco, todo cercado de marga-ridas e botões douro; os seus filhos a affaga-la com carinho; o homem a am-

para-la poderosamente.. . Tinha certeza disso. Oh, o Antonio não deixaria de casarcomsigo!... O Antonio... E que seria feito delle?. .. Como o havia esquecido!

E chorou. Mas as lagrimas seccaram e os sentidos da engelhada CarolinaAugusta derramaram-lhe 110 intimo idéas tenebrosas, avermelhadas.

Quinta-feira. O sr. Visconde de Verim, que está quasi a sopesar os prodro-mos da caducidade, vae hoje ao mercado da Povoa de Lanhoso. Mas vae tam longe

por causa de uma feirola... Ora, quer reinação, reinação de todo o geito, em

quanto, principalmente, as pernas não emperrarem.E, de resto, o sr. visconde tinha razão porque dinheiro não lhe faltava,

dinheiro a rodos, percebiam? e lá em África, onde o ganhara honradamente, nãose divertira nunca: aquillo, de manhan á noute, era só ganhar, exportar negros,

permutar com negros. Uma vida só de cardos, ó mandriões que nunca arredestes

pé do solo metropolitano!

E o dia que estava mesmo de appetecer para a diversão: lindo sol, lindoazul. Oh, e o solsinho fazia tam bem aos velhos!...

Carolina Augusta, ao passar pela Arcada, sabe deste recreio. É um velhococheiro, seu coévo, quem lh'o diz por este modo maldoso:

Sabe, sr.a Carolina, que o sr. visconde de Verim ... com quem vossemecêfoi muito feliz noutros tempos, lembra-se? está-se divertindo á grande? A sr.a,como toda a gente, admira-se, acha que agora, depois maduro, eíle devia tomar

juizo. Mas não o tem tomado e, parece, nunca mais o tomará: aonde haja festafesta á tôa, festa passavel, festa melhor, está o fidalgo. Avalie, hoje vae á feira da

208 A ÁGUIA

Povoa, e cuido que 11a caraugueijola catita que lhe veio lia dias da estrauja. üo-sar é assim, ouve? e nós, os pobres de Cliristo, que agüentemos!

Filia bem sentiu o sarcasmo desta participação, mas remoeu-o 110 intimo,

não visageou o menor signal de replica, acabando por dizer "que Deus désse ao

sr. visconde bella distração 11a estrada e muita alegria 11a feira,,. Porém, assim quedeixou o coclieiro, foi logo para casa a correr.

Mudou a roupa e pediu licença a tia para sair até á noute. Queria ir á

Povoa, tinha lá a tratar um negocio de que dependia o bem estar do resto dos

seus dias ...

Que fosse, que fosse, annuiu a tia com bile e carranca.

Chegou á Povoa e foi direito ao Campo da Feira. Avistou logo o sr. vis-

conde. Coma estava casquilho, brunido, perfumado! Credo. Até parecia ella 110

tempo de seu luxo de perdida!...E ennoja-se tanto daquelles esmeros de janotismo, que tem vontade de o

alvejar aqui mesmo, cara a cara, com a pistola que traz enrolada em um cliale.

Mas não, que os policias estão ao lado e o calaboiço, também á mão, é

humido como as minas. . Era deixar folgar por ora o sr. fidalgo, deixa-lo

gosar mais um pouco, até mesmo ao fim, para depois então ajustar e pagar as

taes contas. Contas, aliás, de que naturalmente o devedor não se lembraria mais.

Com o começo da tarde, alguns feirantes vão-se aprestando para a retirada.

Carolina, entretanto, mette-se na estrada das diligencias de Braga. E caminha porali fora com passo febreuto, observa a miúdo, com um trespasse destiletes nas

pupillas, o listrão vencido.

Até que pára ao cabo de 11111 kilometro, alturas do Horto, e dá de chapa,

jí esquerda e o eavalleiro do alfazar, com uma mouta de silvas. Sóbe á rampa e

esconde-se atraz desta mouta.

O sol, emquanto se não amortallia em 11111 occaso de Zeetnan, o colorido

limpido a diafanisar unia suavidade impressionante, - vae ourando as franças ne-

gras do pinheira! fronteiriço. Pelos seios dos piornos e medronheiros a lume bafeja

a aragem impregnada das purezas montezinhas. Lá á frente, 11a cinta lendaria do

carvalhedo das tapadas, modulam-se os primeiros trinos dos poemas atristados queos rouxiuóes entoarão, até noute velha, por amor dos seus amores. ..

Carolina Augusta, desprendida daquillo que a retem naquelle sitio, entrega-se

por momentos ao emoallo pantheista. Depois, a 11111 estremeção potente de todo o

seu ser, tem desejos de vir para a estrada, de a palmilhar como 11111 galgo, d'ir

para Braga, de perdoar. Pois não tinham todos o direito de viver?! Lá estavam ã

cantar nas mattas os rouxiuóes; e quem se atrevia a tirar-lhes a vida? Só algum

malvado. Demais, elle, aquelle homem que a perdera, não fôra assim tão ruim.

Outros vieram e quantos! que foram bem peores.Mas esse estremeção não repercute muito a onda sentimental e Carolina

permanece atraz das silvas, encara mais uma vez a vida de amargor nauseante

que passa, o pleno aniquilamento da sua felicidade. Depois acaba por acariciar,

como nunca, as idéas tintas de sangue que lhe haviam agasalhado os sentidos ao

fim dessa intermina noute d'insomnia ...

De repente ouve um vascolejar de guizos, uni tinir de metaes, um estalar

de chicotes, um rebentar de upas! de cocheiro desesperado e vê logo, em uma

curva ladeirenta da estrada, uma carruagem de arrogancia fidalga, e brilho novo,

cujas lanternas começam a raiar uma luz bicolor sobre o macadam plúmbeo.Descarrega a arma, c o sr. visconde de Verim, que passa nessa carruagem,

grita com dor, rola sobre as almofadas voluptuosas, rola de novo e estrebucha,

por fim, sobre o tapete de repas velludineas e côr da purpura de um Richeiieu.

(Dp livro "Baixos relevos,,)

^7

FIM DO l VOLUME

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ÍNDICE DA COLABORAÇÃO

LITERATURA

Renascenqa 1 e 33 A nova Poesia portuguesa so-

O Vago O Crepusculo . ciologicamente considerada 101

Palavras antipaticas .... 5 Autografts 108 e 136

Chanson — Canqao da despe- Cantico dos Montes .... 110

dida SO silencio do nieio-dia . 112

Esta historia e para os Anjos 9 Saudade 114

Unia fala de Espiritos ... 15 Atracgao da Terra .... 118 e 200

O Pucarinlio 19 Oraqao de Amor e de Huinil-

Quinta das Lagrinias Fonte dade 121

dos Amores 20 Basilio Teles 122

MiSticismo da carne . . . 21 A Tricana 124

Sonetos 22 Manuel Laranjeira .... 128

Ineditos ........ 35 e 68 O Poeta e a Nau .... 129

Clioupos na luz do Luar . 36 Misticismo do Poente . . 130

Cartas ineditas de Camilo Cas- Na cela de San Yuste . . 133

telo Branco — 38, 72, 111, 136 e 185 Pao Nosso 134

Notagoes 38 e 72 Le Verbe 135

Padre Nosso 39 Reincidindo 137

Silva Pinto 40 Adivinhos de Agua .... 145

Resa ontonal 44 A Epopeia dos Malteses . 146

Sinfonia do Outono .... 46 Cores espirituais 148

O orgulho da Aguia ... 47 Sic Itur ad Astra 150

Medieval 48 Camoes 173

Escerto 49 Sepulcrosito 174

Lima carta de Manuel Laranjeira 65 Regendo a Sinfonia da Tarde 175

Versos da minha ventura . 69 A concepgao do amor nos

O Lavrador 74 poetas provengais .... 181

A Lareira 75 Le condor captif 184

Mater Dolorosa . ... 76 A Cangao da noiva Mori-

Escerto 79 bunda . ... i .. 186

Luar de Outono ..... 87 Carolina Augusta 204

206 A ÁGUIA

ARTE

O ensino oficial das Belas-Artes 56 Retrato de ]. C. 82-A

Julio Vaz 152 Ferreiros 92-A

As nossas industrias de Arte 154e 187 Malhador 108-A

Mulheres Artistas 161 Estudo 116-A

Autografts 164 e 192 Tronco de cedro do Bussaco. 124-A

Quellia minhota sob carva-ILUSTRAQOES lhejnls 140.A

Estudo de copa de cedro . 8-A A Arte e a Industria. . . 152-A

Retrato de R. 16-A Velha 164-A

Mogo de Esquina 24-A R. Armenia (Porto) .... 182-A

Pedreiros 40-A Fosforeira de parede. . 190-A

Anciedade 48-A Cepo de carvalho .... 198-A

Esttijjo 56-A Vinhetas—3, 15, 19,26,36, 46,

Manuel Laranjeira 65 57, 74, 75, 78, 90, 100, 107,

Margens do Douro . . . 72-A 112, 127, 134, 144, 168, 175, 185 e 204

SCIÊNCIA, FILOSOFIA E CRÍTICA SOCIAL

Pedro Nunes e a Álgebra . . 23 A Matemática e a Realidade . 165

Da liberdade e seus detentores 27 Ensino secundário da Matemá-

Pedro Nunes 88 tica 194

NOTAS E COMENTÁRIOS

A Ideação de Oliveira Mar-

tins

A Situação Política . . . .

29

58

Diferenciação e Progresso . .

Revista bibliográfica 31, 63,

99, 131, 169

91

197

ÍNDICE DOS AUTORES

A. A. Cortesão 114.

Afonso Duarte i\, 87.

Afonso Lopes Vieira- 19, 74, 75.

Alexandre Herculano - 108.

Almeida Garrett 136

Antero de Quental 68.

Antônio Arroio 154, 187.

Antônio Carneiro 16-A, 82-A, 152-A.

Antônio Cobeira 110.

Antônio Correia de Oliveira 8, 39, 134.

Antônio Nobre 174.

Antônio Sérgio 29.

Artur Ribeiro Lopes 112. >

Augusto Casiniiro —20, 63, 69, 129, 186,

Augusto Martins—23, 88, 194.

Augusto Santa Rita 130, 148.

Bazílio Teles 79.

Camilo Castelo Branco 38, 72, 111,

136, 185.

Carlos Parreira 161.

Cervantes de Haro- 8-A, 26, 57, 90, 100,

107, 124-A, 127, 134, 140-A, 144, 168,

185, 198-A.

Coelho Neto 118, 200.

Cotreia Dias—capa.

Costa Macedo 204.

Cristiano de Carvalho- 40-A, 65, 92-A,

108-A.

Fernando Pessoa 101, 137.

Gustavo Ferreira Borges 181

Henrique Rosa -150.

J. A. Correia 116-A.

Jaime Cortesão 9, 36, 121, 175.

João Augusto Ribeiro-56.

João de Barros- 128.

João de Deus Ramos 22.

José Malhôa- 48-A, 56-A.

J. Monteiro- 72-A, 182-A

Júlio Vaz 164-A

l eal da Câmara- 24-A.

Leonardo Coimbra -15, 49, 76, 122,

165,'197.

Luis Felipe 3, 15, 19, 36, 46, 78, 112,

175, 204.

Mário Beirão-4, 44,

Martins Manso -27.

Miguel Ângelo 192.

Nuno de Oliveira - 145.

Oliveira Martins 35

Philéas Lebesgue 135, 184.

Raul Uno - 74, 75.

Raul Proença 58, 91.

Rossini 164.

Soares dos Reis 190-A.

Teixeira de Pascoaes, 1, 31, 33, 65,

169, 173, 199.

Teófilo Braga 133.

Veiga Simões 46, 124, 152.

Vicente de Carvalho 47, 48.

Vila-Moura- 5, 38, 40, 72, 131,

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