dobras da dança

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    As Dobras da Dana

    (ou a Arte como Poltica)

    Dina Toledo

    era o ttulo de minha fala quando eu no sabia o que devia dizer. No sei ainda se devo dizer. Por isso,escrevi. Me explico. Quando no sei o que dizer, eu escrevo. Dizer e escrever so muito diferentes. Dizer

    vem cheio de certeza; escrever vem cheio de dvida; dizer luminoso; escrever escuro, mais humilde e

    desencanta mais. Por isso, , atualmente, mais til.

    Eu no sabia disto at ter comeado a escrever isto.

    (Gosto muito dos lugares onde eu posso fazer o papel da louca do sto, se eu tivesse vivido outra vez,

    gostaria de ser a louca do sto, escrever foi a melhor terapia para as loucas da casa nos ltimos sculos

    quando ainda havia loucas da casa.)

    Fiz um pacto com essas moas e preciso explicitar meu pressuposto, pois sou filsofa. Escrever: sou

    filsofa, hoje sei, faz muita diferena.

    Aqui uma escrita coreografia talvez tenha surgido do nada do meu saber. A dana o objeto desse no

    saber. Talvez seja sempre o objeto de um no saber, o nome prprio do no-saber. Movimento; ondulao.

    Em filosofia a dana deveria alcanar a validade de forma, de mtodo. Ou seja, o no saber deveria ser

    inserido na busca. A busca relativizada pelos desvios.

    No sei danar, nem sei o que a dana, pois no dano. Apenas quem dana sabe a dana, mesmo que no

    saiba diz-la. Sei eu apenas de algumas das minhas dvidas e vou cont-las com cuidado de quem se

    compromete com as coisas muito srias: o movimento dos ossos. Os ossos deveriam ser uma categoria

    filosfica assim como as plpebras, assim como as pontas dos dedos, o peso dos cabelos, seu liso, seu

    ondulado, os clios, o fgado, o corpo nos daria as categorias para entender o pensar. Uma liberdade a

    surgiria. Uma filosofia da dana o que precisamos desmanchar para iniciar uma filosofia dana, suponho

    que uma dana filosofia j exista. Mas no sabendo o que dizer e tomando esta negao como meu fato

    terico, mudei o ttulo do que deveria dizer. O texto que estou escrevendo poderia ser um corpo que dana,

    me agradaria usar esta metfora - se a forma viesse se dizer certeira este seria um nome apropriado - masaqui se trata apenas com um drapeado que esvoaa.

    O novo ttulo , pois, um drapeado ao redor do corpo, mostrando-o enquanto o ocultado.

    Eis o novo ttulo

    ... palavras que se movem...

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    estou muito explicativa. Sou uma filsofa e, como tal, tenho amor pela lgica, pelo argumento, pela

    epistemologia. Meu prazer maior seria gastar meu tempo falando desse ttulo, mas como filsofa algo em

    mim contra o gesto que se diga como tal, mais fcil dizer o ser enquanto tal... Queria, antigamente, fazer

    uma filosofia gesto, mas, como filsofa que sou, tive um ataque de melancolia e desisti de tudo, li, porm

    uma tal filosofia cinza e j me encontro novamente um ser da razo.

    Deixarei para outro momento a minha caricatural auto-confisso e irei direto ao ponto destas palavras que semovem.

    O ttulo, pois, extra da obra de Elona Ganger. Encontrei-a num dia quieto apesar das gotas grossas de chuva

    atingindo a janela de um bar na Cidade Baixa perto da casa onde no gosto de morar em Porto Alegre. Elona

    Ganger, cuja obra inteira esta mesma e nica frase, estava entre garrafas debruada mesa. O espetculo

    era sinistro: uma lmpada de poucos watts iluminava seu rosto pregueado. Eram traos tantos que faziam-na

    parecer um desenho a grafite no meio do escuro. Sombras sobre sombras e riscos semi-reluzentes. Olhei-a

    por horas parada perto da porta pronta a sair correndo. Chamou-me com um aceno lento e os olhos. No sei

    se tanto a olhei para que me chamasse. Aproximei-me receosa dos danos. Pude ver algo de sua tragdia

    quando mirei as pernas ausentes. As plpebras cansadas eram pintadas com sombra azul. A boca escondia

    dentes pequenos. O pescoo de pregas. Tudo nela eram pregas de rugas, um corpo drapeado o que se torna

    o corpo velho em seu devir para pano.

    Olhou-me em cheio nos olhos e disse sem segredos, sou bailarina.

    Com as pontas visveis dos dedos sob o gesso envolvendo as mos at a altura dos cotovelos apontou o

    quanto pde para a cadeira: este meu palco.

    Eu sabia quem ela era, seu movimento carregava o ar de sua prpria ausncia. Havia um compasso de inrcia

    entre o corpo, a boca, o ato de segurar a garrafa para encher o copo com os braos quase entrevados. Tive

    pena e no a fora de dizer-lhe qualquer amparo. Deu-me um pedao de papel dobrado, fechando minha mo

    nas suas, e no disse mais nenhuma palavra. Seu hlito era de vinho. Sa depressa, o mundo comeou a girar

    remotamente. L fora as gotas ainda pesavam na queda. Dentro do papel a frase em letras trmulas com que

    escrevem os velhos:

    palavras que se movem.

    Tomei o pedao de papel como quem recebe a verdade em sntese, o que estava escrito.

    A obra inteira de uma bailarina como uma frase solta em um papel rasgado, foi o que entendi do feito. O fato

    no escapou minha reflexo, pois vivo atenta o quanto posso a tudo o que danar desde que meus amigos

    resolveram fazer esse congresso to complicado e estranho e, quem sabe, mesmo revolucionrio, seno para

    a dana, para a filosofia.

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    Quero homenagear Elona Ganger com esta sua frase, a meu ver, iluminada. Caros professores, estudantes e

    pesquisadores, a homenagem mais que justa, pois Elona Ganger no era apenas uma bailarina frustrada em

    seus aparentes cinqenta e tantos anos, talvez sessenta, mas uma evidncia cruel. Os braos quebrados,

    fissurados, deviam ser de tempos, o gesso se desmanchava deixando ver partes dos membros magros. As

    pernas, onde as teria perdido?

    Sai pela chuva tentando entender o que eu tinha visto. A pergunta: uma bailarina? No me abandonou nuncamais.

    O enigma bailarina.

    O que estava a minha frente era algo como o que podemos chamar sujeito da dana? A dana no seria o

    fim do sujeito, a retirada da casca, o rompimento da linha, o furo no vu?

    Onde e como danaria aquela mulher perdida em seus prprios restos?

    Sobre a cadeira presa ao cho, a musa da impossibilidade da dana desfiava o seu novelo sombrio1.

    Tomei a linha no ponto em que a frase ponto.

    Queria tambm homenagear Magda que no danou.

    Palavras que se movem:

    Aqui vamos alm do intrito:

    O Poema da Dana

    seria o nome prprio para iniciar uma filosofia da dana que seria o oposto do poema de Parmnides com o

    qual a filosofia iniciou-se contra Kinesis.

    Knesis, o movimento, a falsidade. A morte.

    O pensar: a redeno da morte que nos afundou na outra morte, a morte das mortes, a morte que ao

    matar a morte, a grande morte.

    A grande morte torna as mortes menores mortes enormes.

    Ser pensar, pensar ser, acreditava Parmnides e queremos o contrrio.

    1 Semanas depois buscando informaes no arquivo do jornal Correio de Povo de Porto Alegre, descobri que Elona Ganger ficouconhecida na cidade aps aparies apoteticas durante os anos sessenta. Reportagens mostravam que ela danava nas ruas, sobremuros, escalando paredes, sobre rvores, dentro de bueiros, invadia as igrejas nas missas dominicais, os casamentos, as escolas emhorrio de aula. Todos corriam a ver. Foi presa pelos militares quando danou sobre o caixo de um coronel. Havia fotos delamuito jovem de corpo pequeno e magro. Nenhuma entrevista, nenhuma notcia maior.

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    Por que o danar foi excludo do ser e do pensar e agora seremos, os filsofos da dana, heris de um

    resgate ou autores de uma contradio.

    O que seria um danarino filsofo? Um filsofo danarino?

    Hoje, suponho, nosso esforo seria o mesmo gozo de reunir o movimento banido e a filosofia que baniu o

    movimento.

    Mas a filosofia que pretende reunir-se ao movimento recalcado no a mesma que o baniu, apenas suaherdeira, que, alm do atavismo, tenta ser mais que um resto.

    Reinventar a filosofia sem ressentir o que foi morto, um novo papel.

    Aqui tudo deveria ser potico e avesso, mas aqui tudo apenas igual e preciso entend-lo. Dizer a dana, o

    que ser dizer quando a questo a dana?

    No h gesto mais contraditrio.

    O que dizer, o que fazer quando todos os anncios so de tombos e quedas e tropeos?

    Vamos, com passos curtos, sem tores, nem saltos, comear do bvio.

    Dizendo muitas vezes.

    Repetidas vezes.

    Dana, dana, dana, dana, dana, dana, dana... (...) adam, adam, adam...

    A dana, quando se diz muitas vezes, se torna ... msica.

    Um timo de luz para o deus do silncio.

    Tudo o que se diz muitas vezes se torna dana. A dana o ser dito de muitos modos. O ser dana.

    O ser dana.

    A dana.

    Dancemos.

    Enquanto ando com as palavras no colo deixando seus cabelos ao vento, descubro que so de papel e que semovem com pouco impulso.

    Leveza. Haver dana na leveza dos movimentos?

    O que reto e o que sinuoso?

    Quando algo dana?

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    S as msicas sabem dizer as danas, quando as pessoas danam por ouvir as msicas. A dana seu efeito.

    Quando corpos resultam de ritmos-impulsos desconhecidos. Mas as msicas tambm vieram das danas,

    quando aproveitaram os compassos do corpo, dos corpos, e seus ritmos. As msicas so efeitos.

    Ritmos-impulsos.

    Ritmo, ritmo, ritmo, ritmo, ritmo, ritmo, ritmo, morit, mort, morit, morit, morit, morit, itmor, itmor, itmor,

    agora que digo e redigo, as teclas do meu computador criam um movimento e um ritmo, o ritmo da palavra

    ritmo. A dana a letra de um ritmo, mesmo que o ritmo seja da palavra, fosse de um corpo s seria uma

    dana mais cannica. Poderia ser esprito, mas somos contra o uso dessa palavra, ela roupa pesada demais,

    vento em forma de ciclone, uma voz aguda a quebrar vidros. Os defensores do corpo que romperam com o

    projeto dos depreciadores do corpo que enlouqueceram Nietzsche precisam levitar sobre o esprito e no

    temer sua astcia sempre presente em toda ao do pensamento.

    Queria vestir o que escrevo. Aproveitar meu texto como uma roupa para meu pensamento, e fazer dele meu

    corpo e todo o seu limite. E seu engano.

    Engano, engano, engano, engano, engano,

    S uma palavra

    Palavra, palavra, palavr, palavra, palabra, palavra, palavra, palavra, palavra. Travo as teclas, escrevo palabra,

    confundo os dedos, escrevo dos desos, dano com meu notebook, meu notebook, meu laptop, notebook,

    laptop, notebook, laptop...

    notebook, laptop, notebook, laptop...

    notebook, laptop, notebook, laptop...

    notebook, laptop, notebook, laptop...

    notebook, laptop, notebook, laptop...

    notebook, laptop, notebook, laptop...notebook, laptop, notebook, laptop...

    notebook, laptop, notebook, laptop...

    notebook, laptop, notebook, laptop...

    notebook, laptop, notebook, laptop...

    notebook, laptop, notebook, laptop...

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    Todo o som que posso ouvir, tec.

    Aqui chove. Mas no a chuva, apenas chove por que como se chovesse.

    Som, por que ouo, mas se no ouvisse...

    Um timo de luz para o deus do silncio.

    , mquina, como eu queria te fazer cativa e no eu. Som, som, som, som, som, som, som, som, som, som,

    som, som, som, som, som, som, som, som, som...

    Euuuuuuuuuuuuu.

    Quando nos livraremos deste peso?

    Os barulhos do corpo e de fora dos corpos, em outros corpos que os humanos, tambm serviram msica.

    A dana. Preciso encontr-la.

    Alm do som, pois se no ouvisse...

    Por que a msica casou com a dana quando eram tempos de casamentos etruscos, moas de vus, rapazes

    com peles e gorros de aquecer o pensamento frio. Ento, casavam-se as pessoas, os reinos, os poderes, mas

    casavam-se tambm as coisas porque tudo era ainda muito solitrio.

    Um timo de luz para o deus do silncio.

    Havia deuses para inventar. Ainda hoje fazemos o mesmo. O homem o animal que inventa deuses.

    O homem um animal que dana e ri. A dana o riso do corpo. O homem um animal e um deus, os dois

    no mesmo corpo. O riso a libertao de toda dor. Riso respirao aps sufoco...

    ocococococococococococococococococococooccocococococococ

    Ococococococococococococ...

    A libertao aps o oco.

    Uso a palavra homem, pois um jeito antigo e pomposo de falar de ns. D para rir muito quando se falam

    de homens.

    D para rir muito crendo nos universais isisisisisisisisisisisi

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    Sisisisisisisisisisisisisisisisisisisis...

    Dana, dana, dana, dana, dana, dana, dana... (...) adam, adam, adam...

    A dana, quando se diz muitas vezes, se torna msica.E precisa de reticncias...

    Se digo de novo, encontro o que disse antes no futuro e quase devoro o presente com meus sustos inertes. H

    uma fome de presente em toda a dana. A fome que nos move, a fome que nos move, a fome que nos move, a

    fome que nos move, a fome que nos move, a fome que nos move...

    Palavras que se movem...

    Eu dano enquanto no dano.

    Preciso de um som e um silncio, devia ter trazido o meu martelo, vou procur-lo para a prxima vez.

    Quem no sabe delas, das msicas, tem uma das espcies de burrice. Burrices so muitas e preciso

    combat-las, pois travestidas de inteligentes so personagens nefandos. A burrice uma sensao de estar

    engolfado, uma faca no pescoo, e fingindo no estar. S h uma nica sada. Livrar-se dela ou deixar-se

    morrer. Burrices so tombos, estrangulamentos, o cessar do movimento, a morte pela tonteira.

    Quando sou inteligente esqueci meu corpo, fugi de meu corpo, mas quem podemos obrigar a suportar seu

    corpo?

    Por que amar o que nos faz sofrer?

    Burrice, burrice, burrice, burrice, burrice, burrice, burrice, burrice... (...) rricebu, rricebu, rricebu...ceburri,

    ceburri, ceburri,

    Salvemo-nos da burrice, com que impedimos a felicidade de nossos corpos, pela dana.

    Um novo modo de estar tonta. A vertigem como estado da alma.Sim, por que ns, os filsofos gostamos dos estados da alma. Ajudamos a construir a alma e precisamos da

    dana para isso.

    O que seria uma superao da burrice.

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    Quem no sabe a dana padece do mesmo histrico e transcendental mal. Mas se repetir muito a prpria

    palavra que lhe melhor define, poder rir de si ao tropear na lngua como quem tropea nos prprios passos

    e poder rir, rir de si.

    Burrice, burrice, mil vezes dita para exorcizar a burrice ao dan-la entre suas margens. Mil vezes dita, 999

    vezes no suficiente, a matemtica ajuda em tudo. Mesmo sendo as mil e uma burrices, a ruptura com toda

    sorte de burrice. preciso exatido para rir da burrice. A burrice no ri, ela no d sinal de alerta como umco que no ladra. A burrice covarde, ela sempre espreita a morte. Ela no morre.

    A dana um riso do corpo todo sobre a burrice.

    Alm do som, pois se eu no ouvisse...

    A dana no nenhuma arte somente, mas uma ancestral relao entre as coisas. A arte no arte somente,

    mas gritos e sustos, lapsos e tempos. A dana uma relao. Uma relao que estabeleceu as relaes.

    Talvez a dana seja a prpria relao.

    Uma coisa daquelas: enquanto tal.

    E fora dela s haja inveno.

    Toda dana uma afirmao e uma interrogao. E entre elas o indeciso se deixa levar pelo movimento.

    Para descobrir a relao preciso primeiro repetir, depois deixar lasso, depois deixar tenso, depois desligar,

    depois religar. Como quem bate em duas teclas simultaneamente at descobrir se elas podem formar uma

    palavra pelo desenho que sinalizam. No fundo h a delicadeza da mquina que no podemos conhecer. Seus

    nervos, suas ligaes, a imensido de seu interno. S quem conhece o engenheiro que a inventou. Mas

    apenas como o corpo da me conhece o corpo do filho: uma iluso palpvel. Os movimentos se repetem,

    como o movimento dos jovens nas danceterias.

    Os jovens nas danceterias so a prova do nonsense que precisamos entender. So o escndalo de que

    devemos nos apropriar.O escndalo como redeno. Uma nova poltica do corpo.

    Esgares, pulos, esgares, pulos, esgares, pulos. Os ps batem no cho desde os tempos primitivos.

    preciso sacudir a vida antes de usar.

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    Ali os corpos se expressam como palavras vivas. Estridentes, roando o vento, corpos como lminas que

    atravessam o ambiente e o camuflam.

    Quando um corpo dana, ele camufla o espao em tempo e o tempo. A dana magia alm de riso como uma

    orao larga para as foras csmicas. Aquele que dana relativiza o ao redor. Ele lembra o mais alm. Um

    corpo danando chama a ateno como um olhar.

    Mas se a dana de quem dana me olha, em seco, no pelo ouvido, ela no me ouve, ela me v e ao me verme engole, me petrifica. Quando sinto vergonha de danar, quando sinto vergonha de algum danando

    minha frente, ento, sou tomado da evidncia do meu corpo.

    Eu sinto muita vergonha quando dano. Pois meu corpo se faz nico para mim, dono de um espao que

    jamais fiz meu. Quando meu corpo dana me lembro que tenho um corpo que deseja ser corpo.

    Por isso, enfatizo, a dana uma relao entre as coisas. Qual o estatuto, perguntam os filsofos, desta

    relao?

    preciso que o pensamento encontre a dana, o que isso pode significar?

    Que a vida uma coreografia, deve significar mais do que uma metfora.

    Um gesto casto para o deus da inrcia.

    Seria uma explicao da vida pela dana. O desenho dos movimentos. A vida como uma relao de ritmo

    entre tudo o que h.

    A linguagem dana. S assim ela se diz quando no se diz.

    Como diz-la? Depois de horas repetindo, repetindo. Quando as horas danam a dana das horas so as

    horas. A dana uma espcie de essncia das coisas quando se desdobram as coisas. E as peles e secrees,

    suores e biles aparecem no cenrio. Quando as coisas se fascinam consigo mesmas, e no esto mortas,

    ento, ali est a dana. Quando as coisas, por se amarem se repetem, se redizem, se mostram por inteiro

    como gestos querendo dizer e dizer de novo. Querendo dizer, querendo dizer, querendo dizer.Dizer de novo, dizer de novo, dizer de novo,

    dizer de novo,

    dizer de novo,

    dizer de novo,

    dizer de novo,

    dizer de novo,

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    dizer de novo,

    dizer de novo,

    dizer de novo,

    dizer de novo,

    dizer de novo,

    Por que quero dizer eu no digo, mas certo que estou experimentando a vida. Por que quero dizer eu no

    disse, mas disse que quero dizer.

    A no h cincia que possa aparecer sem atrapalhar mesmo ajudando um pouco.

    Um gesto casto para o deus da inrcia.

    Eu dizia das coisas e no devemos perd-las de vista. As coisas so as coisas mesmo, mas tambm as partes

    do corpo. Para haver dana preciso que haja corpos: o que eram os corpos antes de inventarmos os sujeitos

    e os objetos.

    Quando se dana os corpos so libertos de suas denominaes. Ningum pensa, ali vai uma perna que se

    enrosca num brao, que se balana ao lado da outra perna, que est sujeita aos msculos da bunda, e a barriga

    no meio de braos e pernas e o tronco sobre a barriga, cabea, olhos, ouvidos, ps, e o que vai por dentro

    deles. Mas os nomes das partes ficam apagados no nome corpo.

    E o nome corpo o inteiro incompleto na totalidade esperada. No, no a sntese lenta, a sntese abrupta

    a que produz o corpo na dana. O corpo na dana nos ilude fazendo-se esprito. O esprito a sua mgica, o

    seu vu.

    E ele no est ali.

    Mas no o esprito de Hegel, nem o esprito arcaico com que os povos primitivos descobriram a religio.

    o esprito como o mistrio das coisas. Esprito no a melhor palavra para expressar como podem se

    movimentar os corpos em suas relaes.

    H poucos dias sonhei com um deus que era deus porque sabia guardar um segredo.

    Toda dana um reencontro dos vus.

    O ser drapeado.

    Dana o seu nome.

    Outra metfora para explicar a vida ao olhar a dana?

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    Dana, dana, dana, dana, dana, dana, dana, dana, dana, dana, dana, dana, dana, dana, dana,

    dana, dana, danda, dana, danda, dana, dana, dan,da, dana, dana, dna, dan,a dana, dana, dana,

    dalnd,

    O corpo todo feliz consigo mesmo, quando o corpo no sabia que era um corpo, o corpo que no se

    importava em ser corpo, que amava a sua condio de corpo.Toda dana um manifesto do amor ao corpo.

    O amor possvel antes da significao.

    Um gesto casto para o deus da inrcia.

    No esforo de dizer h uma filosofia.

    A filosofia o esforo de dizer aquilo que no pode ser dito.

    Filsofos, vs perguntais por meu mtodo, vos respondo: procuro a palavra dentro de mim, como ela no

    est dentro de mim, mas tambm no posso saber se fora de mim, repito-a como quem toca um tambor

    chamando a chuva. fora de repetir descubro o que posso saber dela, onde posso toc-la e onde posso, no

    fundo, no fundo, fazer dela um dispositivo da minha experincia intelectual. Mas me sinto to pobre... e

    mais rica apenas quando confesso o meu fracasso.

    Sou uma herona confessando meus fracassos. Agora posso rir do meu ridculo, pus a razo abaixo!!!

    Olho o fundo das coisas porque estou cega.

    De que serve pr a razo abaixo, vs perguntais, insaciveis filsofos. Serve para dar lugar ao silncio, ao

    escuro, que deixamos de perceber desde que acreditamos em nosso pensamento. E isso nos tornou seres sem

    respeito.

    Dana o nome dessa filosofia. Mas essa idia deixar as pessoas confusas.

    Nada demais, quem no sabe danar costuma sentir-se constrangido, envergonhado ou, simplesmente, infeliz.

    Vamos ajud-lo? Sim, ele mesmo, o infeliz que no sabe danar. Pobrezinho. Mas no sem antes fingir que

    no o vimos e explicar-lhe que somos um gueto.

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    Sempre em defesa dos arremedos. Os arremedos so os restos, os potenciais no realizados, os cacos e

    resqucios. Pois h verdade em seu escndalo.

    Estou procurando a dana no meio do meu pensamento, o meu corpo a linguagem mesmo sendo a

    linguagem algo muito diferente do meu corpo. O drapeado das vestes est muito alm de meu corpo,

    apenas um corpo que me recobre e supera o controle, pois a seda do tecido relaciona-se ao vento, aomovimento de um modo que no podemos controlar. Eu embalo no vento o vento que me carrega.

    Algo da alma sobra e ao corpo soma.

    Todas as palavras podiam ser repetidas.

    No sendo possvel danar possvel pensar.

    Aqui no h sublimao, apenas novas vozes do recalque.

    Dana, dana, dana, dana, dana, dana, dana. adam, adam, adam. A dana, quando se diz muitas

    vezes, se torna msica. S as msicas sabem dizer as danas, quando as pessoas danam por ouvir as

    msicas.

    Ento, fala o corpo que no tinha voz.

    E a dana que no vem da msica.

    O que a dana quando olhamos para ela?

    Vemos o que no podemos saber. Uma verdade to simples como no estar, nem ser.

    A dana no se pode saber, por isso, falar sobre ela avanar nas tangncias. Cuidar das dobras, dosdrapeados, das voltas, das superfcies, cuidar das palavras, usar um conceito. E todo cuidado pequeno.

    Ento aquele que fala poderia ser um poeta e nem precisaria ser um danarino.

    Um artista da tangncia, pois a coisa mesma est ausente da linguagem. E a linguagem s o esforo no qual

    se encontra a ausncia trazida presena.

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    Quem fala da dana se especializa na ausncia em torno do movimento, das vias negativas pelas quais

    se chega ao ser ao no chegar a ele.

    Um gesto casto para o deus da inrcia.

    O deus da inrcia criado pela filosofia.De corpo entrevado entre os prprios restos.

    Ressurreio?

    O que pode a dana dizer experincia da reflexo?

    Quando a filosofia tornar-se- dana. Que espcie de dana?

    Uma reflexo como dana. Ou uma dana como reflexo?

    Reflexo uma palavra ruim de repetir.

    Reflexo reflexo reflexo reflexo reflexo reflexo reflexo reflexo reflexo reflexo

    reflexo reflexo .

    Uma palavra quebrada no meio.

    Fissurada.

    Uma palavra que carrega seu prprio ser.

    Um transcendental feito osso atravessado no msculo.

    Se quero tocar o conceito da dana, a idia da dana, a representao da dana, j estou me distanciando a

    cada investida intelectual do que a dana como ser.

    Pressupor uma coisa em si o fato vertiginoso da inrcia.

    No caso da dana no h chance de compreend-la fora da experincia da dana como algo que e cujo dizer

    se d em meu corpo.Dizer seu conceito equivale a no falar dela.

    Ento, na vida, danar ou no danar.

    Tudo muito simples. Simples de dar medo.

    A dana fato. O modo como o corpo se faz pura expresso. Que no se pense a dana. Que se dance, seria

    algo sempre fcil de dizer. Mas quando precisamos entender, quando a dana pensada, de que lhe serve a

    filosofia?

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    A filosofia um meio, a dana um fim. A filosofia tenta entender a dana para evoluir no seu prprio

    processo e testar seus limites. Tenho medo quando a filosofia avana sobre as coisas sem preservar os

    silncios. A filosofia no pode ser a morte do mistrio. A filosofia no pode ser a morte da filosofia.

    Filosofia que se pensa e filosofia que .

    Dana que se pensa e dana que .

    A dana a proteo do mistrio.

    Descobrir as aes necessrias descoberta da dana: a dana como experincia que se diz ao intelecto para

    acord-lo de sua morte?

    Mas de que serve a dana ao intelecto seno acord-lo de sua morte?

    por que j no tenho um corpo que dance, mas apenas um pensamento que pensa?

    Se o intelecto serve dana para dizer suas novas formas ele a morte da arte.

    Qual a espcie do dizer?

    Posso agir como na literatura, indo alm da filosofia, e descrever a dana? Poderia eu agir como crtica

    localizando a dana como arte em seu caminho histrico, verificando tendncias, analisando os fatos dos

    corpos que se movem estabelecendo relaes, desenvolver teoricamente as formas e efeitos do que

    contemplo.

    Nem tudo feito para servir ao pensar, mas o pensar que deve lhe servir nem sempre capaz. Pensar no

    um fim, um meio para a vida. A dana a vida que se expressa nas possibilidades do corpo vivo.

    Corpo vivo, corpo vivo, corpo vivo, corpo vivo, corpo vivo, corpo vivo, corpo vivo, corpo vivo,

    Corpo vivo...

    A crtica da dana pode ser pouca. A histria da reflexo sobre a dana est por ser construda e ser parca.Um caminho cheio de erros porque no aceita os desvios que o objeto provoca.

    Ao no suportar a vertigem do objeto me descubro filsofo. Se convivo com a vertigem sou artista.

    Quando a crtica da dana morre e d lugar dana como crtica, a dana se torna mais que teoria, uma

    poltica.

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    A dana a poltica. Uma rebelio do corpo preso a uma ordem, o caos entra em cena revoltando o espao.

    J no a camuflagem do espao, mas a destituio de seu lugar.

    Outro absoluto invade o ser.

    a Revoluo trazendo outro corpo tona como um vmito.

    A tarefa de uma filosofia dana digerir o vmito.

    Nada menos que isso.

    O corpo ausente, o corpo mudo, o corpo livre e, todavia, o corpo que pensamos no estar aqui. Ali o corpo

    vomitado vindo em sua fora quente.

    Chamam de biopoltica o que fazemos com os corpos quando queremos domin-los. preciso o

    desfazimento da biopoltica para libertar o corpo. S o vmito a categoria revolucionria. A dana a

    revoluo contra a biopoltica.

    Mesmo a dana do escndalo atual: o funk, o hip-hop, mesmo a dana do hip-hop domesticado,

    industrializado, comercializado, fetichizado, mesmo essa dana, que se torna cadver de algo vivo, guarda a

    memria do escndalo poltico que est em seu imo. Um incmodo para o qual no h sada. A sua fora est

    naquilo que no pode ser digerido.

    Os pobres danam, os feios, os escravos, os ignorantes, os loucos. O mal gosto manifesta seu poder.

    O movimento. A Knesis sempre rediviva, revelia de toda noo, de todo conhecimento.

    A fora da alegria.

    A fora do nonsense. Simplesmente estar vivo.

    Chegamos a uma revoluo. Do mesmo teor da revoluo das mulheres que, ao chegarem esfera da

    vida pblica tocaram no poder e escandalizaram e at irritaram seus atvicos e sempre irritados donos.O corpo que aparece na dana o corpo sujo, negro, suado, sem lei, nem mrito, sem nome. O corpo

    que compartilhamos com os animais.

    Um corpo em negativo.

    Mas tambm um corpo em positivo, matria, sexo, de uma liberdade que no podemos calcular.

    Um liberdade que no podemos coreografar. A desordem dita pelo corpo que nos lana para fora do

    controle e rediz a vida mesmo que estejamos de olhos fechados.

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