do ritual
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Sugestões para a construção do ritualTRANSCRIPT
Druida e drui
Caius Iulius Caesar, Commentarii de Bello Gallico, III, 15:
Estes afirmam conhecer o tamanho e a forma do mundo, os movimentos dos céus e a vontade dos deuses. Ensinam muitas coisas aos mais nobres da nação em um período de formação que dura até vinte anos, encontrando-se em segredo, seja numa gruta ou em bosques isolados. Um de seus preceitos chegou ao conhecimento comum, a saber, que as almas são eternas e há outra vida junto aos mortos e isso foi permitido manifestamente porque torna a multidão mais pronta para a guerra e é também por essa razão que queimam ou enterram com seus mortos coisas que lhes seriam apropriadas em vida e que, em tempos passados, até costumavam adiar a conclusão de negócios e o pagamento das dívidas até sua chegada ao outro mundo e havia alguns que se lançavam de bom grado às piras funerárias de seus parentes para com estes compartilhar a nova vida.
Caius Iulius Caesar, Commentarii de Bello Gallico, VI, 14:
Os druidas obtiveram a isenção do serviço militar e não pagam os tributos que aos demais impendem; estão isentos do serviço militar e de todo tipo de taxas. Tentados por tais vantagens, muitos espontaneamente se dedicam aos estudos druídicos, enquanto outros são enviados por seus pais ou outras pessoas próximas. Diz-se que são ali ensinados versos em grande número. Por essa razão, permanecem alguns até vinte anos no aprendizado. E não consideram ser lícito confiar à escrita o ensinamento, embora em todos os outros assuntos públicos e privados sirvam-se das letras gregas. Acredito que praticam essa tradição por duas razões: primeira, para que o povo comum não tenha acesso aos seus ensinamentos e segunda para que os que aprendem não descuidem de fortalecer a memória, confiados nas letras. Pois muitas vezes acontece que a escrita enfraqueça a aplicação da pessoa em aprender e reduza a habilidade de memorizar. Aqueles [i. e., os druidas] desejam sobretudo persuadir de que as almas não perecem, mas, após a morte, passam de um corpo a outro, e por esse modo julgam excitar ao máximo o destemor nas batalhas e o desprezo ao medo da morte. Possuem também um grande número de outros ensinamentos que transmitem à juventude a respeito de coisas como o movimento das estrelas, o tamanho do universo e da terra, a ordem do mundo natural e o poder dos deuses imortais.
Pomponius Mela, De Chorographia, III, 14-15:
Restam ainda traços de costumes atrozes não mais praticados e, conquanto agora se abstenham de matança aberta, ainda derramam o sangue de vítimas levadas ao altar. Possuem, contudo, seu próprio tipo de eloquência e professores de sabedoria, druidas.
Strabon, Geographica, L. IV, Cap. 4, §4:
Entre todos os povos gauleses, sem exceção, encontram-se três grupos que são objetos de honras extraordinárias, a saber, os Bardos, os Vates e os Druidas, ou seja, Bardos, os cantores sagrados e poetas, Vates, os que se ocupam das coisas do culto e estudam a natureza, Druidas, que, além do estudo da natureza, ocupam-se também
da filosofia ética. Estes últimos são considerados os mais justos dos homens e, por essa razão, confia-se-lhes a decisão de todas as dissensões, sejam públicas ou privadas; antigamente, até mesmo as questões de guerra eram submetidas a seu exame e algumas vezes foram vistos a impedir as legiões inimigas já a ponto de sacar as armas. Porém, o que especialmente lhes compete é o julgamento dos crimes de homicídio e deve-se observar que, quando são frequentes as condenações por esse tipo de crime, veem nisso um sinal de abundância e de fertilidade para o país. Os Druidas proclamam a imortalidade da alma e do mundo, o que não os impede de acreditar que o fogo e a água um dia prevalecerão sobre todo o resto.
Diodorus Siculus, Bibliotheca Historica, V, 31:
Os gauleses fazem, do mesmo modo, uso de adivinhos, considerando-os merecedores do maior acatamento e esses homens predizem o futuro por meio do voo ou dos gritos das aves e da matança de animais sagrados e todos lhes são subservientes. Observam também um costume que é especialmente surpreendente e inacreditável quando desejam saber algo a respeito de questões de grande importância. Em tais casos, pois, votam à morte um ser humano e cravam uma adaga na região acima do diafragma e, ao cair a vítima vulnerada, do modo de sua queda e dos espasmos de seus membros leem o futuro, bem como do fluir de seu sangue, tendo aprendido a depositar confiança em uma antiga e de há muito praticada observância de tais matérias e é um costume deles que ninguém realize um sacrifício sem um ‘filósofo’, pois ações de graças devem ser oferecidas aos deuses, dizem, pelas mãos de homens que sejam experientes na natureza do divino e que falam, por assim dizer, a língua dos deuses e é pela intermediação de tais homens, eles pensam, que do mesmo modo as bençãos devem ser buscadas. Tampouco é somente nas necessidades da paz, mas também em suas guerras, que obedecem, acima de todos os outros, a esses homens E a seus poetas cantores e tal obediência é observada não somente por seus amigos, mas também por seus inimigos; muitas vezes, por exemplo, quando dois exércitos aproximam-se um do outro com espadas desembainhadas e lanças projetadas para frente, esses homens [Bellouesus: isto é, os ‘filósofos’ e seus poetas cantores] posicionam-se entre eles e obrigam-nos a parar, como se tivessem lançado um encantamento sobre animais selvagens. Desse modo, mesmo entre os mais ferozes bárbaros, o furor dá lugar à sabedoria e Ares é sobrepujado pelas Musas.
Assim, os druidas resumidamente:
a) não participam de guerras ( “obtiveram a isenção do serviço militar”);
b) seu patrimônio é livre de impostos (“e não pagam os tributos que aos demais impendem”);
c) são contrários às guerras (“posicionam-se entre eles e obrigam-nos a parar”);
d) escolhem espontaneamente ser druidas ou são levados a esse estudo por familiares
próximos, por vezes com vistas às vantagens do ofício;
e) são professores;
f) atravessam um longo período de treinamento;
g) são letrados, embora optem por manter na oralidade a maior parte do conhecimento;
h) ensinam geografia (“o tamanho e a forma do mundo”), astronomia (“o movimento das
estrelas”), biologia, química, física (“a ordem do mundo natural”, “estudo da natureza”),
teologia (“o poder dos deuses imortais”, “a vontade dos deuses”), retórica e oratória
(“eloquência e professores de sabedoria”), ética (” filosofia ética”);
i) professam a imortalidade da alma humana (“as almas são eternas e há outra vida junto aos
mortos”, “após a morte, passam de um corpo a outro”, “proclamam a imortalidade da alma e
do mundo”);
j) árbitros em questões legais (“são considerados os mais justos dos homens e por essa razão
confia-se-lhes a decisão de todas as dissensões, sejam públicas ou privadas”).
Drui (singular de druid) parece ter sido uma designação geral na Irlanda ou os
irlandeses não tinham uma divisão precisa como na Gália. A mesma palavra pode ter existido
na Europa continental como um termo geral. Quando os druidas emergiram como movimento
distinto (na minha opinião por volta do séc. VI a. C.), podem ter se apropriado dela como
designação particular. Depois da ocupação romana, quando o druidismo se tornou ilegal, o
nome “druida” voltou ao uso comum.
Os druidas da Gália, talvez imitando alguma estrutura organizacional grega (a
pitagórica, especificamente), chegaram a um nível de especialização funcional que os
irlandeses não conheceram. Um exemplo é a passagem dos Comentários: “entre todos os
druidas, há um que é o líder supremo, tendo a mais alta autoridade sobre o restante. Quando
morre o druida chefe, quem quer que seja o mais digno sucede-o. Se houver muitos de igual
reputação, segue-se uma eleição por todos os druidas, embora a liderança seja às vezes
decidida pela força das armas. Em certa época do ano, todos os druidas se reúnem num lugar
consagrado no território dos carnutos, cuja terra é considerada o centro da Gália. Todos vêm
então de toda a terra e apresentam disputas e obedecem os julgamentos e decretos dos
druidas”. Desse trecho de Caesar saiu o arquidruida de tantas ordens atuais. A Irlanda nunca
teve nada parecido.
Bardos, Vates e Druidas na Geōgraphikā de Strábōn
Strábōn de Amáseia, historiador, geógrafo e filósofo grego (64/63 a. C. – c. 24
A. D.), escreveu (Geōgraphikā, Livro IV, Capítulo 4, §4) que entre todos os povos da Gália
havia, de modo geral, três classes de homens que recebiam especial reverência (tría phula tōn
timōménōn diapheróntōs estí): os Bardos (Bardoi), Vates (Ouáteis) e Druidas (Druídai).
Strábōn imediatamente acrescenta que os bardos são cantores e poetas, os vates, adivinhos e
filósofos naturais, enquanto os druidas ocupam-se, além da filosofia natural, também com o
estudo da filosofia moral. Afirma então que os druidas eram considerados os mais justos de
todos os homens, sendo-lhes confiado, por essa razão, o arbítrio de todas as contendas, quer
privadas, quer públicas.
Essa é uma passagem muito interessante. Uma boa parte de seu conteúdo
perde-se na tradução para o português e para outras línguas modernas (consultei uma tradução
em português, outra em inglês e mais uma em francês), ao passo que os termos gregos
originais mostram que o autor tinha uma visão um pouco melhor das “especializações” dessas
três classes tidas em especial honra pelas tribos gaulesas.
No dizer de Strábōn, os bardos (bardoi) são humnētaí kaì poiētaí, compositores
de hinos e poetas. Hinos (húmnoi), para o autor grego, são canções geralmente de cunho
religioso, escritas com o fim de louvar, adorar ou orar, dirigidas em regra a uma ou mais
deidades, ou a uma figura histórica/mitológica de grande importância. Ao escrever que os
bardoi são humnētaí kaì poiētaí, Strábōn quer dizer que, além de produtores de poesia para
entreter e informar, os bardoi eram também os criadores da poesia sacra (e aqui me ocorre
lembrar que o termo gaélico antigo scél < proto-céltico *sketlo- designava todos os gêneros
literários, sem distinção).
Quanto aos vates (ouáteis), estes são hieropoioí kaì phusiológoi. “Filósofos
naturais” é uma tradução passável para phusiológoi, mas “adivinhos” não corresponde a
hieropoioí.
Os hieropoioí eram em Atenas, assim como nas outras póleis helênicas, os
supervisores dos templos, seus tesouros e demais propriedades, responsáveis pela
demonstração anual de suas receitas e despesas, e encarregados das funções menores dos ritos
sagrados, como a realização física dos sacrifícios sob a supervisão dos sacerdotes (hiereis).
Hieropoios não significa “adivinho”.
“Filosofia natural” é uma tradução do latim philosophia naturalis, que por sua
vez traduz o grego phusiología < phusis (natureza, origem) + lógos (palavra, ciência), “estudo
das origens, ciência da natureza”. “Filosofia natural”, expressão atualmente obsoleta, era o
estudo objetivo da natureza e do universo físico, designando a reunião de astronomia, física,
química e biologia e estreitamente ligada à “teologia natural”, que sustenta o conhecimento do
Divino por meio da razão e da experiência ordinária do mundo e opõe-se à “teologia
revelada” (fundada em uma escritura).
Assim, quando Strábōn escreve que os ouáteis eram hieropoioí kaì
phusiológoi, é possível compreender com mais clareza a que espécie de conhecimento refere-
se o autor grego. Coincidentemente, o romano Marcus Tullius Cicero registrou (De
Diuinatione, I, 90) que o éduo Diuiciacus afirmava possuir o conhecimento da natureza
chamado phusiología entre os gregos, tendo assim a possibilidade de fazer previsões por meio
de augúrios e conjeturas.
Por fim, os druidas, que, conforme Strábōn, além de phusiológoi (fisiólogos,
isto é, filósofos naturais, como recém visto) estudavam também a ēthiká philosophía (filosofia
ética ou filosofia moral), dirigida às questões da moralidade: o exame dos conceitos de bom e
mau, certo e errado, nobre e desprezível, justo e injusto, virtude e vício. Enquanto a
phusiología, philosophia naturalis, pesquisava o significado do mundo externo, objetivo, a
ēthiká philosophía dos druidas versava sobre o plano interno, o conhecimento de alguma
forma relacionado à vida humana, que socraticamente interpreto como auto-conhecimento.
Em um único parágrafo, Strábo:n nomeia os grandes blocos que compunham o
conjunto de conhecimentos cuja posse era o privilégio da elite céltica:
I Humnōidia (poesia sacra): bardoi
II Poíēsis (outros gêneros literários): bardoi
III Hieropoia (administração/supervisão dos elementos do culto): ouáteis
IIII Phusiología (estudo amplo da natureza): ouáteis kaì druídai
V Philosophiá ēthiká (filosofia moral*): druídai
Através da poesia, os bardos registravam e descreviam a realidade objetiva ou
manifestavam seu universo interior para que outros pudessem dele partilhar. Esse era seu
domínio, comunicar, conservar, transmitir.
Mas por que havia uma sobreposição entre vates e druidas quando se tratava de
filosofia natural (phusiología)? Porque vates e druidas precisavam conhecer objetivamente os
fenômenos naturais. Os primeiros, para interpretar ao próprio mundo os sinais que os Deuses
enviam por meio da natureza. Os segundos, para refletir e interpretar o que esses sinais e
prodígios significam e podem ensinar a cada um.
* Abrangendo, além da moral e da ética, a teoria do conhecimento, a psicologia, a sociologia,
a política, a estética, etc.
Sacrifício Humano
O sacrifício humano praticado pelos druidas é tão comum na literatura antiga
quanto é rara a sua comprovação arqueológica. A afirmação dessa prática, negregada
peculiaridade da religião gaulesa, além de notável demonstração de hipocrisia e xenofobia, é
de natureza ideológica. Ainda antes de Gaius Iulius Caesar, foi Marcus Tullius Cicero (106-43
a. C.), um dos maiores escritores da língua latina, quem qualificou os gauleses, literalmente,
de “terríveis bárbaros que não hesitam em manchar seus altares com sangue humano”.
O detalhe não lembrado é que Cicero era um advogado e usou essa forte
imagem exatamente no discurso de defesa de um certo Marcus Fonteius. Esse Fonteius fora
legado romano na Gallia Narbonensis por três anos e estava sendo acusado de corrupção
(receber propina) ante o Senado de Roma. O povo da província era representado pelo nobre
treviro (anti-romano) Indutiomaros, sogro e inimigo político de outro notável treviro chamado
Cingetorix (pró-romano). Cicero nunca teve envolvimento pessoal com Fonteius e aceitou
fazer a defesa apenas por “corporativismo”: ambos pertenciam à classe dos equites
(cavaleiros) e Cicero foi pressionado por outros colegas a fazer a defesa, registrada na Oratio
pro M. Fonteio. O resultado foi que os gauleses, na mentalidade romana, tornaram-se desde
então (meados do séc. I a. C.) famigerados sacrificadores de seres humanos em cerimônias
religiosas.
Entretanto, seria rematada falsidade afirmar que a Gália não conheceu
sacrifícios humanos. Importa determinar sua frequência e natureza. Dois tipos de sacrifícios
são bem atestados em numerosas civilizações antigas (incluindo-se as do Mediterrâneo), onde
possuem, de modo geral, duas finalidades: apaziguar os deuses ou agradecer por alguma graça
recebida.
As descrições literárias que possuímos de sua realização entre os gauleses são
bastante convincentes. Contudo, são bem outros seus objetivos. Encontramos com os celtas da
Gália: 1) o sacrifício humano de substituição; 2) o divinatório e 3) o “judicial”, isto é, a
aplicação da pena capital sob o disfarce de um sacrifício.
1 Sacrifício de substituição
O sacrifício de substituição é mencionado por Caesar (Commentarii de Bello Gallico, VI, 16):
A nação inteira dos gauleses é inteiramente devotada aos ritos supersticiosos e, por esse motivo, aqueles que se acham atingidos por doenças extremamente severas ou se encontram empenhados em guerras e perigos ou sacrificam homens como vítimas ou prometem que irão sacrificá-los e empregam os druidas como executores desses sacrifícios; pois pensam que, a menos que a vida de um homem seja oferecida pela
vida de um homem, o nume dos deuses imortais não se tornará propício e determinam a realização desse tipo de sacrifícios para propósitos públicos […].
2 Sacrifício divinatório
Diodorus Siculus relata o sacrifício divinatório em Bibliotheca Historica, V, 31:
Os gauleses fazem, do mesmo modo, uso de adivinhos, considerando-os merecedores do maior acatamento e esses homens predizem o futuro por meio do voo ou dos gritos das aves e da matança de animais sagrados e todos lhes são subservientes. Observam também um costume que é especialmente surpreendente e inacreditável quando desejam saber algo a respeito de questões de grande importância. Em tais casos, pois, votam à morte um ser humano e cravam uma adaga na região acima do diafragma e, ao cair a vítima vulnerada, do modo de sua queda e dos espasmos de seus membros leem o futuro, bem como do fluir de seu sangue, tendo aprendido a depositar confiança em uma antiga e de há muito praticada observância de tais matérias.
Strabôn conta a realização de um sacrifício desse tipo pelos gálatas antes da batalha contra
Antígonos II Gonatás em 277 a. C. Vítimas humanas foram imoladas, consultando-se suas
entranhas em um tipo de haruspício.
3 Sacrifício “judicial”
O terceiro tipo de sacrifício, dito judicial, é registrado por Caesar na mesma
passagem citada acima:
[…] Outros possuem figuras de enorme tamanho, cujos membros são construídos com vime, que enchem de homens vivos, os quais, tendo sido incendiados, perecem os homens envolvidos pelas chamas. Consideram que o sacrifício desses que foram apanhados cometendo furto, latrocínio ou qualquer outro crime é mais agradável aos deuses imortais; porém, havendo falta de vítimas desse tipo, chegarão mesmo a sacrificar inocentes.
Strabôn (Geographikā, IV, 4, 5) acrescenta: “gado, animais selvagens e todo
tipo de seres humanos”. Note que Caesar usa a palavra “outros” (allii). Isso significa que
algumas tribos usariam, outras não, as ditas “figuras de enorme tamanho”.
Esses autores, Caesar, Diodorus e Strabôn, são os que entraram mais
profundamente na imaginação popular. Dão-nos, realmente, muito o que pensar.
O sacrifício judicial, como todos que já assistiram o filme devem ter percebido,
é a fonte do impressionante Wicker Man (“Homem de Vime”). É necessário salientar que os
homens colocados dentro dele são criminosos condenados, ao menos preferencialmente, e ali
estão porque cometeram um ato detestável cuja punição vão enfrentar. Afirmar que sua morte
seria “mais agradável aos deuses imortais” é a mesma justificativa que a religião, em sua
qualidade de vetor do controle social, tem usado para tudo através dos séculos, druidas e
padres e imãs e rabinos igualmente.
De resto, não existe absolutamente nenhuma evidência física de que essa
cerimônia da execução no “Homem de Vime” fizesse parte do repertório sacro costumeiro da
Gália. Pelo contrário, outro ponto contribui para que desconfiemos dessa descrição: ossadas
de animais selvagens jamais foram encontradas nos santuários gauleses. Bovinos, ovinos,
equinos e aves sim, todos animais domésticos, até cães, mas não animais selvagens. Existe
uma lógica por trás dessa ausência que não poderia ter escapado aos sacerdotes antigos: os
animais da natureza já são propriedade dos deuses, como oferecer-lhes o que já lhes pertence?
Ser desonesto com os deuses é sinal de forte estupidez.
Existe um eco distante dessa ideia no Audacht Morainn. O juiz Morann manda
dizer ao rei Feradach: Dize-lhe: que ele não ofereça nenhum mútuo préstimo que lhe seja
obrigatório, ou seja, que ele não tente se mostrar generoso fazendo simplesmente aquilo que
tem obrigação de fazer, pois isso não é generosidade nem mérito, mas somente dever. Se você
quiser demonstrar generosidade, faça algo que não é sua obrigação. Se você quiser dar algo
aos deuses, não lhes ofereça o que, por direito, já é deles.
Passemos ao sacrifício divinatório. Primeiramente, terminarei a citação de
Diodorus, que havia ficado pela metade. Retomo-a exatamente do ponto em que tinha parado:
E é um costume deles que ninguém realize um sacrifício sem um ‘filósofo’, pois ações de graças devem ser oferecidas aos deuses, dizem, pelas mãos de homens que sejam experientes na natureza do divino e que falam, por assim dizer, a língua dos deuses e é pela intermediação de tais homens, eles pensam, que do mesmo modo as bençãos devem ser buscadas. Tampouco é somente nas necessidades da paz, mas também em suas guerras, que obedecem, acima de todos os outros, a esses homens E a seus poetas cantores e tal obediência é observada não somente por seus amigos, mas também por seus inimigos; muitas vezes, por exemplo, quando dois exércitos aproximam-se um do outro com espadas desembainhadas e lanças projetadas para frente, esses homens [Bellouesus: isto é, os ‘filósofos’ e seus poetas cantores] posicionam-se entre eles e obrigam-nos a parar, como se tivessem lançado um encantamento sobre animais selvagens. Desse modo, mesmo entre os mais ferozes bárbaros, o furor dá lugar à sabedoria e Ares é sobrepujado pelas Musas.
Maravilhoso, não?
Duas classes de homens aparecem nesse trecho: 1) os ‘filósofos’, presença
obrigatória nos sacrifícios, responsáveis por falar com os deuses, pois são eles que possuem
“experiência com o divino” e “falam a língua dos deuses”, de forma que “apenas por seu
intermédio as bençãos podem ser buscadas” e 2) os “poetas cantores” que operam junto aos
“filósofos”.
Filósofo e o poeta-cantor não “sujam as mãos” nos sacrifícios. Quem o faz?
Ora, o adivinho, de quem Diodorus havia falado imediatamente antes. Aí temos as “três
classes de homens excepcionalmente honrados (tría phûla tōn timōménōn diapheróntōs estí)
em toda a Gália”, de que Strabôn falou na Geographikā (IV, 4, 4): os Bardos (Bardoi), Vates
(Ouáteis) e Druidas (Druídai), explicando que os bardos são cantores e poetas (humnētaí kaì
poiētaí), os vates, adivinhos e filósofos naturais (hieropoioí [“fazedores do sagrado”] kaì
phusiológoi), enquanto os druidas ocupavam-se, além da filosofia natural, também com o
estudo da filosofia moral (phusiológoi kaì ēthikoi philosóphoi). Afirmou a seguir que os
druidas eram considerados os mais justos de todos os homens, sendo-lhes confiado, por essa
razão, o arbítrio de todas as contendas, quer privadas, quer públicas – o que os liga ao
julgamento e condenação pela prática de delitos, como visto acima.
A ideia de que druida, vate e bardo são todos, de alguma forma, druidas, vem
de Caesar, que não fala senão dos druidas. Os autores gregos mencionam-nos separadamente
e em momento algum dão a entender que vate e bardo são druidas. Mas esse não é exatamente
o ponto, não neste momento.
A questão agora é o sacrifício divinatório. Cabe ao druida avaliar a sua
adequação ética e decidir se pode ou não ocorrer, pois os druidas são “os mais justos dos
homens”, mas não será ele, druida, a empunhar a lâmina sacrificial. Isso cabe ao adivinho,
vate, que domina a técnica sacrificial desde uma época em que os druidas ainda não existiam.
Ao poeta-cantor, o bardo, cabe o aspecto teatral, de fundamental importância em toda
cerimônia religiosa e tão visível no cerimonial da Igreja Romana. Ao druida não importam o
sangue do sacrifício nem a técnica sacrificial. Ao druida importam a compreensão teológica e
a justificação social do ato.
“[…] desde uma época em que os druidas ainda não existiam.” Isso explica
perfeitamente porque o druidismo gaulês e o irlandês são diferentes e também porque Caesar
afirmou que o druidismo teve origem na Grã-Bretanha e ainda porque certos personagens da
lenda irlandesa, como Fedlimid, do Táin, vão ali estudar as artes mágicas. Caesar não fazia
diferença entre druida, vate e bardo. Quando ele diz “druida”, não há como saber a quem se
refere.
Para encerrar este tópico, o sacrifício divinatório é o remédio dos gauleses
“quando desejam saber algo a respeito de questões de grande importância”. Talvez
pudéssemos acrescentar o que diz Caesar: “para propósitos públicos”. Necessariamente, não
se tratava de algo frequente.
No terceiro tipo de sacrifício humano (ou primeiro, comecei de trás para
diante), o sacrifício de substituição, que também se poderia chamar terapêutico, um indivíduo
seriamente enfermo, ou em outra situação de grave perigo, sacrifica ou promete sacrificar aos
deuses alguém que o substitua. Existe nisso uma contradição. Os autores antigos sabiam (o
próprio Caesar o diz) que o ensinamento que os druidas mais ardentemente desejavam
inculcar era a sobrevivência da alma, o renascimento em uma outra vida (não entro no mérito
de ser neste ou em outro mundo). Os autores antigos registraram com espanto o destemor
insano dos celtas diante da morte.
Como se explicaria então esse pavor que leva alguém a barganhar com os
deuses oferecendo uma vida humana em troca da sua? Como, se a promessa é o renascimento
em outro mundo sem mal, sem doença, sem velhice, sem mentira (aceitando-se a imagem
feita pelos irlandeses)?
A resposta não é tão difícil: estamos outra vez olhando para uma crença céltica
anterior ao druidismo. O movimento druídico representou para a religião céltica o mesmo que
o orfismo e o pitagorismo para a religião grega, introduzindo o conceito de imortalidade da
alma, que não fazia parte das mais antigas concepções gregas (tampouco indo-europeias, de
modo geral), tais como se encontram, por exemplo, em Homero. Não tenho certeza, pois não
é minha área, mas parece-me ter lido que essa ideia era estranha também ao judaísmo
primitivo.
Gregos e romanos dificilmente poderiam ter visto os ritos que relataram em
seus escritos. No caso dos celtas, sabe-se há décadas, graças aos estudos filológicos, que
escritores como Caesar, Strabôn, Diodorus, Diógenes e Athenaios copiaram, com maior ou
menor fidelidade, algumas vezes intencionalmente deformando-a (Caesar), a obra de um autor
mais antigo, Poseidônios (cerca de 60 anos antes de Caesar), que usou observações pessoais e,
para aquilo que não pôde ver, copiou ele também de escritores mais antigos, como Éphoros e
Timagenes, cujos trabalhos desapareceram há séculos – o mesmo aplicando-se aos de
Poseidônios.
Quando lemos o que os autores clássicos escreveram sobre os celtas, devemos
estar cientes de que eles frequentemente citam obras duzentos ou trezentos anos anteriores a
sua própria época e registram, como se as houvessem testemunhado, coisas que há muito não
mais existiam. É exatamente o que ocorre em relação aos druidas. É necessário discernir
camadas.
Assim como a implantação do cristianismo na Irlanda não varreu totalmente a
religião nativa, também os druidas, ao atingirem a posição de proeminência que ocuparam na
Gália, não destruíram o que antes deles havia existido. A marca do druidismo gaulês foi a
construção de uma religio publica, não dessemelhante à romana, em substituição às práticas
majoritariamente privadas que formavam a religião das tribos célticas no período anterior.
Mas essas práticas não foram probidas nem seus especialistas (possivelmente
os vates) impedidos de exercer seu ministério. E, quando o druidismo saiu de cena, foram
esses especialistas que tomaram o lugar e o nome prestigioso dos druidas e são eles que
aparecem com a denominação “druidas” nas crônicas romanas tardias.
A questão do sacrifício pode parecer essencial quando se considera bardo, vate
e druida como diferentes funções de um grupo único. Quando se compreende que esse não é o
caso, percebe-se que o sacrifício (como técnica) importa ao vate, sendo apenas correlato ao
druida e ao bardo.
Os druidas restringiram enormemente o sacrifício humano, substitutindo-o,
sempre que possível, pelo animal, que a arqueologia comprova sobejamente e de que as fontes
clássicas, de forma muita estranha, não fazem menção. O sacrifício humano foi conservado
para situações de grande stress coletivo, sua realização subordinada à aprovação dos druidas.
Fora isso, a atribuição druídica de organizar a sociedade por meio da aplicação do direito
canalizou o sacrifício humano para a justiça, o que seria previsível numa época em que o
crime, no sentido jurídico, e a ofensa aos deuses não estavam claramente separados.
Uma coisa é certa: os gauleses não sacrificavam seres humanos para dar aos
deuses algo de que estes precisassem ou quisessem. Quando derramavam sangue humano em
seus altares, faziam-no em benefício próprio conscientemente. Os deuses nunca necessitaram
de sangue humano, embora alguns deles possam apreciá-lo. Eles mudam muito mais devagar
do que nós e acho realmente difícil que tenham passado a sentir necessidade de sangue
humano, essa substância tão instável, nos últimos 1.500 anos.
Divinação druídica
Hippolytus (170 – 235 A. D.), Philosophúmena (“Ensinamentos Filosóficos”;
título alternativo: Katà pasôn hairéseon élenkhos/Refutatio Omnium Haeresium, i. e.,
“Refutação de Todas as Heresias”), I, 22:
E os druidas célticos exploraram com a máxima minúcia a filosofia pitagórica depois que Zamolxis, trácio de nascimento, um servo de Pitágoras, tornou-se para eles o fomentador dessa doutrina. Eis que, após a morte de Pitágoras, Zamolxis, para lá dirigindo-se, tornou-se-lhes o desenvolvedor dessa filosofia. Os celtas consideram-nos profetas e videntes em razão de lhes predizerem certos eventos futuros por meio de cálculos e números conforme a arte pitagórica, a respeito de cujos métodos não ficaremos em silêncio, uma vez que alguns neles encontraram inspiração para heresias; os druidas, no entanto, recorrem também a ritos mágicos.
Seathrún Céitinn, em Foras Feasa ar Éirinn (“Alicerce do Conhecimento sobre a Irlanda”),
§46, escreveu:
Quanto aos druidas, o uso que faziam dos couros dos touros oferecidos em sacrifício era guardá-los a fim de fazer conjuros ou lançar geasa sobre demônios. E muitas eram as formas em que lhes impunham geasa, tais como olhar fixamente suas próprias imagens na água (1), ou contemplar as nuvens do céu (2), ou escutar atentamente o barulho do vento ou o chilrear dos pássaros (3). Porém, quando falhavam todos esses recursos e viam-se obrigados a medidas extremas, o que faziam era formar cercados circulares de sorveira e lançar em cima o que fora oferecido em sacrifício, colocando o lado que estivera junto à carne mais elevado e confiando em suas geasa para chamar os demônios e deles obter informação (4), tal como hoje em dia faz no circo o prestidigitador, de onde vem o antigo ditado desde então corrente que diz ter alguém ‘ido ao seu cercado do conhecimento (5)’ quando fez o máximo para obter uma informação.
(1) deochnaireacht é a divinação pela observação dos movimentos na água ou em outros
líquidos. B.
(2) néaladóireacht é a divinação pela observação das nuvens. B.
(3) dreanaireacht é a divinação pelo voo dos pássaros. B.
(4) fáistine é a palavra irlandesa para divinação em geral. B.
(5) cliatha fis em irlandês. B.
Hippolytus e Céitinn aparentemente escreveram sobre o mesmo tema: druidas.
Mas apenas aparentemente. Hippolytus foi um romano do séc. III e retirou informações de
obras hoje perdidas de autores clássicos. Essas obras, quando Hippolytus as consultou, já
eram velhas de séculos. Seathrún Céitinn (Geoffrey Keating, na forma anglicizada) foi um
poeta, historiador e padre católico irlandês do séc. XVII. As fontes que ele usou para escrever
a Foras Feasa ar Éirinn também estão desaparecidas em grande parte ou sequer chegam a ser
conhecidas. Obviamente, tendo vivido no séc. XVII, sua chance de possuir conhecimento
direto das práticas dos druidas é ainda mais remota que a de Hippolytus. Ambos repetem não
algo que tivessem visto, mas algo que leram em fontes que achavam merecedoras de crédito.
Tendo essas circunstâncias em mente e desconsiderando o fato de que
Hippolytus refere-se aos druidas gauleses e Céitinn, aos irlandeses (que não são de jeito
nenhum a mesma coisa, nem geográfica nem cronologicamente), fica ao menos para mim a
impressão:
1) de que “ritos mágicos” não eram a primeira opção para os druidas gauleses, porém os
“cálculos e números conforme a arte pitagórica”;
2) de que ritos envolvendo os couros de animais sacrificados não seriam a primeira opção
para os druidas irlandeses.
Geasa é o plural de geis, uma espécie de tabu (proibição ou obrigação)
semelhante a um encantamento. Pode-se comparar as geasa a uma maldição e, ao mesmo
tempo, um dom. Se alguém que se encontra sob uma geis violar o tabu, isso pode resultar em
desonra e morte. Se, ao contrário, a geis for cuidadosamente observada, o resultado é o
crescimento do poder pessoal.
As geasa aparecem com frequência nas narrativas sobre os herois, funcionando
como um elemento-chave para desencadear o destino do protagonista. Um exemplo bastante
conhecido é o de Cúchulainn, que estava sob o poder de duas geasa antagônicas: não comer
carne de cachorro e aceitar qualquer alimento que lhe fosse oferecido por uma mulher.
Quando uma bruxa inimiga ofereceu-lhe carne de cachorro antes de uma batalha, ele foi
obrigado a aceitar. A violação de um dos tabus (para obedecer outro) acabou levando-o à
morte.
“Demônio”, no texto de Céitinn, é a óbvia interpretação cristã padrão para as
divindades e espíritos reconhecidos por outras religiões.
“Lançar geasa sobre demônios” significa, neste caso, realizar o rito necessário
(o procedimento formal requerido) para levar os espíritos a fornecer uma informação
desejada.
As geasa geralmente eram impostas por um druida ou por uma mulher,
fazendo as vezes da Soberania (Fláith). Um excelente exemplo é Conaire Mór, cujas geasa, se
desatendidas, provocariam a esterilidade da terra.
Retornando a Cúchulainn, a quebra do tabu fez com que ele perdesse a força de
um dos braços. Obedecer as geasa, sobretudo para um rei, era sinal de sua integridade e
adequação ao cargo – fir flaithemon, a “verdade do soberano”, era o requisito principal para o
soberano irlandês ideal.
Santuários Gauleses
Jamais, até o presente momento, a pá de um arqueólogo escavou uma sepultura
que pudesse, sem sombra de dúvida, ser atribuída a um druida. Contudo, as descobertas
realizadas nos antigos santuários da Gália céltica nos últimos 30 anos permitiram conhecer os
locais onde se desenrolava uma parte significativa de suas atividades e mudaram
sensivelmente as concepções sobre a religião dos celtas gauleses.
Antes desses achados, ignorava-se que os gauleses possuíssem locais de culto
construídos por mão humana. Consoante um mito persistente, imaginava-se o gaulês como o
“bom selvagem”, que sacrificava no coração da floresta e contentava-se com locais de culto
naturais análogos aos utilizados na pré-história, tais como as alturas e as cavernas.
Muitos de seus santuários, na verdade, eram construções elaboradas e
geralmente obedeciam a orientação astronômica. Conforme a região, poderiam variar as
manifestações do culto; sabe-se, porém, que os gauleses praticavam uma religião
materialmente rica que nada devia em complexidade à de seus contemporâneos do
Mediterrâneo, embora não tivesse o viés filosófico ou o impulso escatológico dos gregos.
A religião céltica permanecia muito próxima da natureza, de onde retirava seus
fundamentos. Sua origem (provavelmente mais oriental do que grega) refletia-se nas
divindades, comumente sem forma humana. O panteão gaulês não estava hierarquizado, tendo
cada tribo divindades tutelares próprias. A divisão em tribos, algumas mais, outras menos
importantes, e todas nômades em certo grau, foi uma característica da Gália céltica que influiu
na variação geográfica do culto.
Os vestígios arquiteturais mais impressionantes são exatamente os dos grandes
santuários célticos, como o de Ribemont-sur-Ancre (Somme), escavado a partir de 1985. Mas
esses santuários, sempre cercados por uma paliçada ou vala, não existem em todos os lugares
na Gália. As práticas que neles se realizavam também se desenvolveram ao longo do tempo.
Entre os gauleses da Bélgica, que possuíam fortes ligações com os germanos, o culto
apresentava traços arcaicos, com importantes sacrifícios animais e oferendas de armas. Mais
ao sul, na Borgonha e na Gália Lugdunense, a influência romana se fez sentir desde o séc. II
a. E. C.: os depósitos, em lugar de armas, constituíam-se de ânforas e cerâmicas.
Esse enfraquecimento dos sinais guerreiros testemunha a substituição da
sociedade guerreira gaulesa pela sociedade mercantilista galo-romana e também se reflete no
elenco das deidades gaulesas feito por Caesar (“Comentários sobre a Guerra da Gália”, VI,
17, a famosa interpretatio romana), em que Mercúrio ocupa a primeira posição e Marte, a
última.
Os Três Círculos da Manifestação
Os Três Círculos da Manifestação fazem parte do sistema do Barddas, criado
no séc. XVIII por Iolo Morganwg e ainda usado por um bom número de ordens druídicas
atuais. Os três mundos ou reinos são nele apresentados como círculos concêntricos, que se
chamam:
1. Abred (a Criação Material), que possui os círculos interiores de:
1.1.a Annwn (o Abismo Primordial, de onde a vida emana de forma inconsciente);
1.1.b Gobren (a Injustiça ou Provação, onde a vida inconsciente surgida em Annwn enfrenta
todos os tipos de provações e descobre o destino ou direção que seguirá no plano seguinte);
1.1.c Kenmil (a Crueldade, onde a vida, que havia surgido inconsciente em Annwn e
aprendido a reagir em Gobren, adquire sensibilidade).
Esses três círculos correspondem à existência mineral, vegetal e animal.
Formam o mundo chamado Ank (Fatalidade), onde a vida encontra-se submetida ao destino.
O aspecto invisível de Ank manifesta-se como 1.2. Ankou ou Ankoun,
incorporando todos os fenômenos da vida subconsciente. Corresponde ao Plano Astral do
ocultismo.
Além de Abred, está 3. Gwynfyd, o Mundo Branco, o reino celestial dos
espíritos e divindades acima de nós e/ou na fronteira externa do círculo de Abred, o lar da
humanidade. Se a vida, saída de Annwn, que adquiriu sua individualidade no círculo de
Abred, não estiver pronta para adentrar Gwynfyd, não possuindo afinidade com as condições
de vida nesse plano, obrigatoriamente continuará a viajar pelos círculos de Abred, submetida
a Ank.
Na fronteira exterior de Gwynfyd está 3. Ceugant, o Mundo Vazio, onde se
encontra exclusivamente a Existência Primordial, que reúne todos os opostos (Ser/Não-Ser,
Vida/Morte) e onde nenhum outro ser pode entrar, uma vez que a ninguém é dado,
simultaneamente, existir e não existir.
O esquema dos Três Mundos ou Círculos é assim:
1 Abred
1.1 Ank
1.1.a Annwn
1.1.b Gobren
1.1.c Kenmil
1.2 Ankou
2 Gwynfyd
3 Ceugant
O Barddas descreve a viagem espiritual da alma como uma migração que
inicia em Annwn, o Mundo Inferior, atravessando Abred, onde experimenta a vida de todas
as espécies de criaturas vivas, de fungos a insetos, plantas e animais, tornando-se finalmente
um ser humano.
Como humanos, podemos avançar para Gwynfyd e nos tornarmos divinos ou
retornar à forma pré-humana e repetir a tentativa. Talvez essa ideia tenha surgido da
observação feita por Caesar: “Aqueles [i. e., os druidas] desejam sobretudo persuadir de que
as almas não perecem, mas, após a morte, passam de um corpo a outro, e por esse modo
julgam excitar ao máximo o destemor nas batalhas e o desprezo ao medo da morte”
(Commentarii de Bello Gallico, VI, 14).
Esses três círculos correspondem também ao meio-ambiente físico: o céu
acima de nós, a terra onde estamos, a água do mar que se estende para as profundezas. O céu
e o sol são obviamente o reino celestial, pois encontram-se acima de nós. Na mitologia
irlandesa, os deuses chegam em barcos que voam pelo ar e o mar comumente estava
associado ao Mundo Inferior e a passagens de/para Tír na nÓg.
Há narrativas que contam viagens de barco para as ilhas do Outro Mundo,
chamadas imramma, como a de Bran, filho de Febal. O poeta galês Taliesin descreve a
viagem marítima de Arthur em busca do caldeirão de Annwn. Na Irlanda, é necessário cruzar
o rio Bóinne para alcançar Sí an Bhrú, partindo de Temair na Rí. O mundo físico, desse
modo, replica a cosmologia. Igualmente o entendimento científico da evolução conta, a seu
próprio modo, o mesmo relato sobre nossa migração espiritual: nossos ancestrais pré-
humanos emergiram do mar, na terra assumiram a forma humana e agora, graças à tecnologia,
somos capazes de voar pelo céu.
Quando os três círculos encontram-se alinhados, como se dá na câmara de Brú
na Bóinne no solstício de inverno pela interação entre a luz do sol, a terra e o próprio síd, o
tempo renova-se e a vida, graças à crescente energia do sol, recebe o poder de continuar. Esse
evento não é isolado e permanente, porém cíclico, essencialmente uma repetição do ato
original da criação, repetição pela qual esta se torna um processo contínuo e em permanente
realização.
Imbas forosnai
Imbas forosnai .i. dofuarascaib secip ret bas maith lasin filid 7 bes adlaic dó d’foillsiugad. is amlaid didiu dognither on .i. concna in file mir do carna dirg muice no con no cait ocus dobir .i. iarom for lic iar cul na comlad 7 dichain dichetal fair 7 adodpair do deib idal 7 cotigair dó 7 ni fagaib iarnabaroch, 7 dochain iarom for a di bois 7 congair deo idal cuige arna tarmascthar a codlud 7 dobeir a di bois ima di lecain 7 contuli 7 bithir og a foraire ar nachn-imparræ 7 nach toirmescae neach, agas doadbanar do iarom anni aradmbí co cend nómaide no a duo no a tri, fut ngair conmessad ocind audbairt. et ideo imbas dicitur .i. bas disiu 7 bass anall im a agaid no im a cend. atrorbe Patraic anisin, 7 an teinm laoda 7 fotroirgell a briathar na bad nimhe na talman nach aon dogenai, ar is diultad bathis. dicetal docennaib immorro fodracbad son i corus cerdæ, ar is soas fodera son ni ecen audbairt do demnaib oca, acht aisneis do cennaib a chnamae fochedoir.
Imbas forosnai [conhecimento abrangente que ilumina], isto é, descobre tudo que o file deseja saber e que deseja tornar manifesto. Assim ele é feito. O file mastiga um pedaço da carne de um porco vermelho ou de um cão ou de um gato e depois coloca-a na pedra atrás da porta e sobre ela pronuncia um encantamento e oferece-a a seus ídolos e depois chama a si seus ídolos e então, se não acha [sua resposta] pela manhã, entoa encantamentos sobre suas duas palmas e chama a si outra vez os seus ídolos a fim de que o seu sono não seja perturbado e ele deita-se e é velado para que ninguém possa interromper ou perturbá-lo até que se-lhe revele tudo o que lhe interessa, o que pode levar um minuto ou dois ou três, ou por tanto tempo quanto ele tenha de permanecer na cerimônia; et ideo dicitur [ e por esta razão chama-se] imbas, ou seja, suas duas palmas sobre ele, isto é, uma palma em cada uma de suas bochechas. Padráig aboliu isso e o teinm laegda e ele determinou que quem quer que os praticasse não teria céu nem terra, pois renunciaria ao batismo. Dicetal do chenaib [récita improvisada], então, foi permitida, por ser composta pelo mérito de sua arte, pois este é o motivo: não é nele necessária nenhuma oferenda aos demônios, mas há uma revelação súbita das pontas dos dedos do poeta.
Fonte: Sanas Cormaic (“Glossário de Cormac”)
O Homem Universal???
Bum yn lliaws rith
Kyn bum kisgyfrith.
Estive numa multiplicidade de formas
Antes de assumir um aspecto constante.
De: Kat Godeu (“A Batalha das Árvores”), Llyfr Taliesin, VIII (“Livro de Taliesin”, 8)
Gvolychaf vyn tat. Vyn duw vyn neirthat. A dodes trwy vy iat Eneit ym pwyllat. Am goruc yn gwylat. Vy seith llafanat. O tan a dayar. A dwfyr ac awyr. A nywl a blodeu A gwynt godeheu. Eil synhwyr pwyllat Ym pwyllwys vyn tat. Vn yw a rynnyaf. A deu a tynaf. A thri a wedaf. A phetwar a vlassaaf. A phymp a welaf. A chwech a glywaf. A seith a arogleuaf. Adorarei meu pai, meu Deus, meu fortalecedor, que introduziu por minha cabeça uma alma para guiar-me, que para mim fez no discernimento minhas sete faculdades. Do fogo e da terra, da água e do ar, de brumas e flores e do vento meridional. Outros sentidos da consciência para mim teu pai criou. Um é o instinto, com o segundo eu toco, com o terceiro chamo, com o quarto saboreio, com o quinto vejo, com o sexto ouço, com o sétimo cheiro.
De: Kanu y Byt Mawr (“A Canção do Macrocosmo”), Llyfr Taliesin, LV (“Livro de Taliesin”,
55)
Is fisigh cidh diandernadh adham .i. do viii rannaib: in céd rann do talmain: indara rann do muir: in tres rand do ghrein: in cethramha rann do nellaib: in cuigid rann do gaith: in séisedh rann do clochaibh: in sechtmadh rann don spirad naomh: intochmadh rann do soillsi in domuin.
Vale a pena saber que Adão foi feito de oito partes, isto é: a primeira parte, a terra; a segunda parte, o mar; a terceira parte, o sol; a quarta parte, as nuvens; a quinta parte, o vento; a sexta parte, as pedras; a sétima parte, o Espírito Santo; a oitava parte, a luz do mundo.
Rand na talman, as í sin in colann in duine : rann na mara, is í sin fuil in duine: rann na greine a ghne 7 a dreach: rann donéllaib [ilegível]; rann na gaoithe anal an duine: rann na cloch a chnamha: rann in spirada naoiin in anmain [leia-se: a anam]: an rann dorighnedh do soillsi in domuin as í sin a chráigheacht [leia-se: chráibhdheacht].
A parte da terra, essa é o corpo do homem; a parte do mar, essa é o sangue do homem; a parte do sol, seu rosto e sua compostura; a parte das nuvens, [ilegível]; a parte do vento, a respiração do homem; a parte das pedras, seus ossos; a parte do Espírito Santo, sua alma; a parte que foi feita da luz do mundo, essa é a sua devoção.
Madhi in talmaidhecht bhus fortail isin duine bud leasc. Madhi in muir budh enaidh. Madhí an grian bud alainn beódha. Madhiat na neoil bud etrom druth. Madhi in gaoth bud laidir fri gach. Madhiat na clocha bud cruaidh do traothafdh 7 bu gadaighe 7 bu sanntach. Madhí in spirad naomh bud béodha deghgnéach 7 bud lan do rath in scribtuir dhiadha. Madhi in tsoillsi bú duine sográdhachsotoghtha.
Se o elemento terrestre prevalecer no homem, ele será indolente. Se for o marinho, ele será inconstante. Se for o solar, será belo, vigoroso. Se forem as nuvens, será superficial, tolo. Se for o vento, será robusto contra todos. Se forem as pedras, será difícil de dominar, um ladrão e cobiçoso. Se for o Espírito Santo, será intenso, de boa aparência e cheio da graça da divina escritura. Se for a luz, será um homem merecedor de amor e sensato.
De: Códice Clarend, vol. XV, fol. 7., p. 1, col. a, manuscrito do Museu Britânico (catalogado
como Additional, 4783)
Na Introdução do Senchus Mór (um texto jurídico composto na época de
Lóegaire, o último rei pagão da Irlanda) está escrito:
Ina diaig sin Connla Cainbrethach, sui Connacht; do roiscridhe do feraib Erenn i ngais, os e co rath in Spiruta naoim; is é do-gne conflicht na Druidhe, asberddissidhe badur et do dena nem ocus talam ocus muir, 7rl Depois dela veio Connla Cainbrethach, grande sábio de Connacht; ele ultrapassava todos os homens de Ériu em sabedoria, pois era um file com a graça do Espírito Santo; ele costumava discutir com os Druidas, que diziam ter feito o céu e a terra e o mar etc.
O Satapatha Brahmana, texto indiano que descreve detalhes dos ritos védicos,
dá as instruções para o Purushamedha (Parte V, 13:6:1 a 13:6:11). Purushamedha significa
literalmente “sacrifício humano”. Purusha é o ser humano primordial, um gigante cósmico
sacrificado pelos próprios deuses para dar início à criação do universo.
Se os celtas possuíam uma versão do Purusha védico (comparável ao Adam
Kadmon, Homem da Terra, da Cabala, ao Ánthropos da Gnose e ao gigante Ymir ou
Aurgelmir da mitologia nórdica), isso seria uma explicação possível para o sacrifício humano
entre os celtas e para a afirmação dos druidas irlandeses que o Senchus Mór registra: o
sacrifício humano reconstitui o ato de criação do universo pelo sacrifício do homem
arquetípico, com os sacerdotes desempenhando o papel dos deuses e reencenando
periodicamente (ou sazonalmente) a criação do mundo pela morte de uma vítima que
representa o gigante do começo dos tempos.
Na concepção indiana do Vedanta, janmādy asya yatah, “a verdade absoluta de
que tudo emana”, tem sua personificação em Purusha, que é pura consciência e contrasta com
Prakrti, o mundo material.
Contudo, o Purushamedha védico era originalmente um ato simbólico.
Tat, Alldui e Indui
De acordo com o Lebor Gabála Érenn (LGE, “Livro das Conquistas da
Irlanda”), §64:
Lug, filho de Cian, filho de Dian Cecht, filho de Esarg, filho de Net, filho de Indui, filho de Alldui, ele foi o primeiro a trazer o fidchell e o jogo de bola e corridas de cavalo e assembleias a Ériu […]
O LGE acrescenta muitos outros nomes à genealogia de Lug, ligando-o
tipicamente aos personagens bíblicos como ancestrais mais remotos:
Lug, filho de Cian, filho de Dian Cecht, filho Esarg, filho de Net (Neid, Neit), filho de Inda (Indui), filho de Allda (Alldui), filho de Tat, filho de Tabarn, filho de Enda, filho de Baath, filho de Ibath, filho de Bethach, filho de Iardan (i. e., Íarbonél, o profeta), filho de Nemed, filho de Agnomain (ou Adla), filho de Partholon, filho de Sera, filho de Sru, filho de Esru, filho de Bimbend (sic), filho de Aithech, filho de Magog, filho de Iafeth, filho de Noé.
A respeito de Net, sabe-se que:
1. Fea e Nemaind (duas filhas de Elcmar de Brug na Bóinne) eram as duas esposas de Net,
que deu seu nome a Ailech Neit.
2. Seus filhos eram Delbaeth, Edleo, Esairc. Em algumas versões, seu filho é Elada (pai do
Dagda) e seu neto é Bres.
3. Net caiu em Carn Ui Neit ante a magia de Lug Lamfada ou Neid foi queimado em Ailech
Neid durante o reinado de Acrisius na Assíria.
4. Net, filho de Indui, e suas duas esposas, Badb and Neman sem engano foram mortos em
Ailech sem falha por Nemtuir, o Vermelho, dos Fomoráig.
Três nomes importam neste momento: Tat, Indui e Alldui.
Na “Geografia”, Ptolomeu (séc. II E. C.) menciona uma tribo irlandesa
chamada Ἰούερνοι, Iouernoi (Iuerni em latim, “ivérnios”, adaptando-se o nome ao português),
que pode ser (linguisticamente, ao menos) identificada aos Érainn (Éraind, Érnai, Érna), uma
das tuatha que habitavam Mumain (sul da Irlanda) no começo da Idade Média.
Tomás Proinsias Ó Rathaile identifica os Érainn com os Firbolg do LGE e com
os Belgae da Gallia e da Britania, acreditando que fossem usuários de uma língua não
goidélica, possivelmente britônica, que Cormac mac Cuilennáin de Caiseal chamou Iarmbérla
(Sanas Cormaic, séc. X E. C.), “língua de ferro” em irlandês antigo. Cormac informa que se
tratava de idioma “penoso e difícil”, tendo seu uso cessado recentemente. Não obstante, as
numerosas inscrições ogâmicas em irlandês primitivo encontradas em Mumain testemunham
que os ivérnios falavam, já ao fim do período pré-histórico, uma língua proto-goidélica.
Ó Rathaile menciona* alguns teônimos ivérnios que parecem apoiar
tenuamente sua hipótese. Um desses teônimos é precisamente o Tat que se encontra na
genealogia de Lug, acima mencionada: in Tat Már. In é o artigo definido; már é o adjetivo
“grande”. Tat, porém, não integra o léxico irlandês, estando ausente do Dictionary of the Irish
Language – DIL da Royal Irish Academy – RIA. A palavra não existe em gaélico. Mas existe
nas línguas célticas britânicas: galês/bretão tad, córnico tas, “pai”, termo da linguagem
infantil, cf. latim papa > grego πάππας, inglês dad, que remontam a um proto-céltico *tatos.
In Tat Már da Irlanda seria y Tad Mawr em Gales (“o Grande Pai”), proto-céltico *sindos
tatos māros.
A mesma influência linguística da ilha vizinha mostra-se em dois dos outros
nomes que servem de mote a esta pesquisa: Alldui e Indui. All- (< ollo-) e in- (< ande-) são
partículas intesificadoras de uso corriqueiro em irlandês. O segundo elemento de ambas, -dui,
significa “deus”, día em irlandês antigo, duw em galês, doue em bretão, devo- em gaulês, que
remontam ao proto-céltico *deywos. Alldui (< *Ollodeywos) e Indui (< *Andedeywos) têm o
mesmo significado, “Grande Deus”.
Assim, “Net, filho de Indui, filho de Alldui, filho de Tat” quer dizer “Net, filho
do Grande Deus, filho do Grande Deus, filho do Pai”.
Seria ousado entrever nessa genealogia um antigo grande deus tríplice: Tatos
Māros, Ollodeyṷos e Andedeyṷos (“Grande Pai, Grande Deus e Grande Deus”)?
* O’Rahilly, T. F. (1946). Early Irish History and Mythology. Dublin: The Dublin Institute
for Advanced Studies, pp. 205-206.
A Religião Céltica 1: Fontes para o Estudo
Durante muito tempo, o estudo da religião céltica viu-se paralisado por dois
consideráveis obstáculos: de um lado, o abuso de interpretações fundadas unicamente sobre a
iconografia com a exclusão dos textos, resultando em ignorância ou recusa das fontes
insulares galesas e hibérnicas; de outra parte, não empregando um método coerente, a maior
parte dos intérpretes limitava-se à avaliação da religião céltica de acordo com critérios quer
clássicos, quer primitivistas.
A matéria exige, ao contrário, que os dados insulares e continentais sejam
comparados continuamente. A natureza mítica dos documentos disponíveis mostra que o
estudo da ideologia religiosa e da estrutura social apresenta mais vantagens do que o método
histórico puro. Tal ideologia e tal estrutura, no caso dos celtas, situam-se na área indo-
europeia, consoante os critérios classificatórios e funcionais estabelecidos pelos trabalhos de
Georges Dumézil. Os testemunhos continentais sobre a religião dos antigos celtas abrangem:
a) fontes contemporâneas indiretas (gregas e romanas);
b) a epigrafia e a iconografia celtibérica, céltico-itálica, galo-romana e céltico-oriental;
c) não comportam fonte literária nativa.
As Ilhas Britânicas e Ériu (Irlanda), em contrapartida, oferecem um vasto
repertório de textos mitológicos e épicos redigidos nas línguas indígenas medievais, o irlandês
e o galês. Esses textos são fontes diretas, embora posteriores à cristianização, mas não
comportam informação iconográfica.
As fontes continentais e as fontes insulares são separadas cronologicamente por
vários séculos, o que serviu muitas vezes como argumento contra a utilização destas.
Contudo, o arcaísmo das fontes insulares está fora de questionamento. Ériu jamais foi
romanizada e converteu-se diretamente de sua religião nacional para o cristianismo. Os
monges e bispos da cristandade céltica da ilha registraram e transmitiram as lendas e velhos
anais como se fossem a história nacional, esforçando-se para conciliá-los com as escrituras
cristãs.
Foi assim que, paradoxalmente, a herança mitológica irlandesa salvou-se pela
cristianização da ilha.
A Religião Céltica 2: os Deuses
Em uma conhecida passagem dos Commentarii de Bello Gallico
(“Comentários sobre a Guerra da Gália”, VI, 17), Gaius Iulis Caesar define com precisão os
deuses gauleses. Dirigindo-se a um público romano, Caesar emprega teônimos romanos para
indicar as funções e campos de atividade das divindades da Gália:
O principal deus dos gauleses é Mercúrio e há imagens dele em toda parte. Diz-se que é o inventor de todas as artes, o guia de cada viagem e jornada e o deus mais influente nos negócios e questões financeiras. Depois dele, adoram Apolo, Marte, Júpiter e Minerva. Esses deuses têm as mesmas áreas de influência que entre os outros povos. Apolo afasta as doenças, Minerva é a mais influente nos ofícios, Júpiter governa o céu e Marte é o deus da guerra.
Esse texto do séc. I a. E. C. deve ser interpretado à luz da narrativa arcaica
irlandesa chamada Cath Maige Tuired (“Batalha da Planície dos Pilares”), que descreve os
deuses hibérnicos ou chefes das Tuatha Dé Danann (“Tribos da Deusa Danu”?), permitindo a
criação de uma tabela de corespondências entre estes e alguns teônimos gauleses conhecidos.
Caesar Gália Ériu
Mercúrio Lugus Lug
Apolo Belenos Dian Cécht
Marte Ogmios Ogma
Júpiter Taranis Dagda
Minerva Brigindu Brigit
Todos os deuses são soberanos, isto é, dividem-se entre as funções sacerdotal
(Júpiter) e guerreira (Marte), enquanto a terceira função (artesanal e produtiva) coloca-se sob
o domínio comum. É por esssa razão que Caesar, ao não nomear nenhum deus artesão, atribui
a Minerva (que o arcaísmo céltico não diferenciava de Juno e Vênus) a aprendizagem das
técnicas artesanais, enquanto em Ériu Goibniu era o ferreiro divino e seus irmãos, Luchta e
Credne, dominavam respectivamente a carpintaria e a ourivesaria. Não obstante, Caesar
atribui a Apolo a medicina, ligada à terceira função.
Isso também explica porque o Dagda, que forma com Ogma, seu irmão, a
grande divindade soberana dupla (luminosa e sombria, como o par Mitra/Varuna na Índia
védica) possui entre seus atributos o caldeirão da abundância, a maça que dá a vida e a morte
e a roda solar (aceitando-se sua identificação a Taranis como controlador do clima).
Porém, o correspondente céltico de Mercúrio é Lugus, o deus supremo do
panteão gaulês. Lugus, no topo da hierarquia, está além de qualquer classificação, pois
transcende todas as outras funções dos demais deuses. Quanto às centenas de teônimos
gauleses e irlandeses, apenas expressam sinônimos ou aspectos de alguma das cinco grandes
divindades soberanas.
Quando se mostra uma flutuação no sincretismo galo-romano, como se dá com
um teônimo como Teutates (que é ora atribuído a Marte, ora a Mercúrio), isso revela que a
percepção gaulesa não era capaz de identificar exatamente a qual deidade romana oficial uma
de suas divindades correspondia. É necessário considerar igualmente o aviltamento funcional
trazido pela pax romana (que suprimiu a classe guerreira) e a desintegração da organização
politico-religiosa da sociedade céltica.
Quem criou a expressão “interpretatio romana”?
Foi Publius (ou Gaius) Cornelius Tacitus (c. 56 – após 117 A. D.) na obra
Germania, 43.4:
Apud Narhaualos antiquae religionis lucus ostenditur. Praesidet sacerdos muliebri ornatu, sed deos interpretatione Romana Castorem Pollumcemque memorant. Ea uis numini, nomen Alcis. Nulla simulacra, nullum peregrinae superstitionis uestigium; ut fratres tamen, ut iuuenes uenerantur.
Entre os Naharvali encontra-se um bosque, centro da religião antiga. Um sacerdote, trajado em vestes femininas, ali preside, porém os deuses lá celebrados, conforme a tradução romana, são Castor e Pollux. Tal, ao menos, é o poder manifestado pela divindade, cujo nome é Alcis. Não há imagens, tampouco traço de qualquer
superstição estrangeira; não obstante, adoram esses deuses como [i. e., com o aspecto de] irmãos e rapazes.
A Religião Céltica 3: Mitologia (Parte 1)
As fontes antigas nos transmitem somente fragmentos da mitologia gaulesa,
testemunhos e reminiscências muitas vezes mal interpretados pelos autores antigos. Os gregos
falam de modo muito vago da passagem de Hércules por Alésia e de sua união com a filha de
um certo rei Bretannos, Celtine, que lhe dá um filho, Celtos (ou Galátes), que deu nome a toda
a raça céltica:
Relata-se que Hêraklês, depois de haver arrebatado o gado de Geryon de Erythea, vagueava pelo país dos celtas e chegou à morada de Bretannos, que tinha uma filha chamada Keltinê. Keltinê apaixonou-se por Hêraklês e escondeu o gado, recusando-se a devolvê-lo a não ser que ele antes a satisfizesse. É certo que Hêraklês estava muito ansioso para levar o gado em segurança para casa, porém estava muito mais impressionado pela beleza da jovem e concordou com seus desejos. E então, quando se completou o tempo, nasceu-lhes um filho chamado Keltos, de quem toda a raça céltica recebeu o nome. Parthénios de Nicaea, gramático e poeta grego do séc. I a. E. C., Erotica Pathemata (“Das Aflições do Amor”), II, 30.
Titus Liuius, um pouco mais preciso, evoca o mito de Ambigatus, “imperador”
e príncipe dos bitúriges (“reis do mundo”), que envia seus dois sobrinhos, Segouesus e
Bellouesus, à conquista da Floresta Herciniana e do norte da Itália, onde será fundada a cidade
de Mediolanum (Milão). Porém, sempre que Liuius cita um lenda céltica, transforma-a em
história romana.
Recebemos o seguinte relato sobre a transferência dos gauleses para a Itália. Quando Tarquinius Priscus era o rei de Roma [c. 616-578 a. E. C.], o supremo poder entre os celtas, que ocupavam uma terça parte de toda a Gália, estava em mãos dos bitúriges, que costumavam indicar o rei para toda a raça céltica [altamente improvável]. Ambigatus era o rei nessa época, um homem célebre por sua coragem pessoal e por sua prosperidade, assim como por seus domínios. Durante seu governo, tão abundantes eram as colheitas e a população cresceu tão rapidamente na Gália que a administração de um tão vasto número de pessoas pareceu impossível. Com essa opinião, ele demonstrou sua intenção de enviar os filhos de sua irmã, Bellouesus e Segouesus, ambos jovens empreendedores, para estabelecerem-se em qualquer localidade que os deus lhes indicasssem por meio de augúrios. Eles deveriam convidar todos que desejassem acompanhá-los, em número suficiente para impedir que qualquer outra nação repelisse sua aproximação. Quando foram tomados os auspícios, a floresta Hercínia [região montanhosa e densamente arborizada da Germânia] foi atribuída a Segouesus; a Bellouesus os deuses concederam o muito mais aprazível caminho para a Itália. Ele convidou o excesso populacional das tribos – os bitúriges, os arvernos, os senones, os éduos, os ambarros, os carnutos e os aulercos. Começando com enorme número de homens montados e a pé, ele chegou à reião dos tricastinos. Estendia-se além a barreira dos Alpes e não fico de modo
algum surpreso de que estes lhes parecessem intransponíveis, pois, até onde pode a memória chegar, não haviam jamais sido transpostos por qualquer trilha, a menos que se escolha acreditar nas fábulas sobre Hércules. Enquanto os cumes das montanhas mantinham os gauleses presos onde se encontravam e estes tudo esquadrinhavam em busca de uma passagem para cruzar os picos que alcançavam o firmamento e desse modo entrarem em um novo mundo, foram igualmente impedidos de avançar por um sentimento de obrigação religiosa, pois lhes chegaram notícias de que alguns estranhos em busca de território estavam sendo atacados pelos sálios. Esses eram os massiliotas, que haviam navegado da Fócida. Os gauleses, vendo isso como um presságio de seu próprio destino, foram em seu socorro, permitindo-lhes fortificar o ponto onde haviam desembarcado sem nenhuma interferência dos sálios. Depois de cruzarem os Alpes atravessando os desfiladeiros dos taurinos e o vale do Dora, derotaram os etruscos não longe do Ticino e, ao descobrirem que a região onde se haviam estabelecido pertencia aos insubres, nome também trazido por um cantão dos éduos, aceitaram o presságio do lugar a construíram uma cidade que chamaram Mediolanum. Titu Liuius , historiador romano (c. 59 a. E. C. – 17 E. C.), Ab Vrbe Condita (“Desde a Fundação da Cidade”), V, 34.
A única mitologia céltica coerente é aquela que, abundantemente documentada,
encontra-se nos textos mitológicos e épicos irlandeses, bem como, acessoriamente, nos
romances galeses da Idade Média, dos quais os principais acham-se no Mabinogi.
Noções de Mitologia Gaulesa
Os mitos dos celtas da Gália, suas lendas pseudo-históricas, suas epopeias
nacionais e genealogias deveriam servir como fundamento a todas as formas de saber, ao
elementar, dispensado à plebe, bem como ao ensino erudito reservado aos discípulos e aos
futuros mestres. Conservada em longos poemas versificados a fim de facilitar sua
aprendizagem, a mitologia gaulesa, porque os historiadores e geógrafos gregos não a puderam
ou não souberam registrar, caiu quase totalmente no esquecimento. Entretanto, o filósofo
Lucius Annaeus Cornutus (na obra Theologiae Graecae Compendium), no começo da era
cristã, considerava-a tão rica e variada que não hesitava em colocá-la em nível igual ao da
mitologia grega.
A mitologia gaulesa deixou alguns traços tangíveis, embora enigmáticos, em
obras de arte figurativa de que a maior parte, infelizmente, é bastante tardia. Uma das mais
antigas encontra-se numa bainha de espada do período halstattiano que representa uma
expedição guerreira e em cuja extremidade dois personagens fazem girar uma roda tão alta
quanto eles. Outras bainhas com relevos, provenientes de Cernon-sur-Coole (departamento de
Marne, no nordeste da França), por exemplo, ou jóias, como as de Erstfeld, na Suíça, mostram
animais fantásticos ou seres semi-humanos com rostos ameaçadores, comumente devorando
uns aos outros e aparentemente surgindo ou afundando em meio a um entrelaçado vegetal. As
obras tardias, sendo mais realistas, demonstram mais sua relação com os relatos míticos cujas
cenas principais talvez representem. O mais célebre de tais objetos é, evidentemente, o
caldeirão de Gundestrup, composto de treze placas com relevos. As cinco placas que formam
a borda interior representam verdadeiras cenas que, apesar de enigmáticas, permitem discernir
elementos recorrentes da mitologia céltica: o personagem agachado, as galhadas de cervo, o
torque, a serpente. Diversas situações parecem reportar-se diretamente a histórias ou lendas:
um homem combate uma espécie de grifo ereto, um personagem agachado e coroado com
uma galhada de cervo segura uma serpente em uma mão, outro indivíduo cavalga um
golfinho, um gigante parece mergulhar um homem de cabeça para baixo no que parece ser
uma banheira ou caldeirão.
O pilar chamado “dos Marinheiros” (Pilier des Nautes), cujos blocos foram
descobertos no coro da catedral de Notre-Dame de Paris, ainda que datados do começo da era
cristã, mostram ao menos duas cenas da mitologia gaulesa onde a relação com as divindades
é, nesse caso, claramente estabelecida, uma vez que, na face de cada um dos blocos, indica-se
o nome da divindade representada. Sobre o primeiro, que traz o nome “Esus”, vê-se um
homem de perfil no ato de podar uma árvore. Essa cena pode ter sido um tema comum, pois
reaparece de forma muito semelhante, numa estela descoberta em Trèves. A seguna cena traz
a inscrição gaulesa TARVOS TRIGARANVS, ou seja, “touro com as três garças”, e mostra
uma árvore diante da qual se vê um touro de perfil em cujo dorso pousam três garças que se
misturam à folhagem da árvore, como se a imagem esculpida tentasse explicar o nome da
divindade.
Outros vestígios da mitologia gaulesa foram descobertos onde não se esperaria:
na própria mitologia romana. Graças a George Dumézil, sabe-se que o historiador Titus
Liuius enriqueceu a história obscura dos primeiros séculos de Roma com a ajuda de relatos
lendários que eram, na verdade, verdadeiros mitos. Encontram-se entre eles temas tipicamente
gauleses que foram reintepretados. Assim é que, na batalha de Sentinum (295 a. C., Terceira
Guerra Samnita), exatamente antes do confronto, Titus Liuius narra o aparecimento de uma
corça perseguida por um lobo (Ab Vrbe Condita Libri, X, 27):
Tertio die descensum in campum omnibus copiis est. Cum instructae acies starent, cerua fugiens lupum e montibus exacta per campos inter duas acies decurrit; inde diuersae ferae, cerua ad Gallos, lupus ad Romanos cursum deflexit. Lupo data inter ordines uia; ceruam Galli confixere. Tum ex antesignanis Romanus miles “illac fuga” inquit “et caedes uertit, ubi sacram Dianae feram iacentem uidetis; hinc uictor Martius lupus, integer et intactus, gentis nos Martiae et conditoris nostri admonuit.
No terceiro dia, todas as tropas desceram à planície. Enquanto os exércitos esperavam imóveis em ordem de batalha, uma corça, caçada por um lobo das montanhas, correu atravessando a planície por entre os dois exércitos; os animais, então, tomando diferentes direções, a corça em direção ao gauleses, o lobo rumo aos romanos virou seu curso, que para ele abriram caminho; os gauleses mataram a corça, ante o que um dos soldados romanos disse: ‘Para aquele lado, onde vedes um animal sagrado a Diana jazer abatido, fuga e matança caberão; neste lado, o lobo vitorioso de Marte, seguro e incólume, lembra-nos de nosso fundador e de nossa descendência daquela divindade’.
É fácil reconhecer a loba, animal totêmico de Roma, e concluir, por analogia,
que a corça era sagrada aos gauleses.
Outro episódio ainda mais famoso mostra não apenas o influxo do mito sobre a
história, mas também o desvio da figura mitológica gaulesa ao serviço da causa romana. O
corvo que vem salvar o jovem tribuno Valerius ao atacar com o bico o gigante gaulês que o
enfrenta é a própria personificação da vitória (Titus Liuis, Periochae, VII, 10; o relato situa-se
no ano no ano 403 a. C., que corresponde a 350 da fundação de Roma):
M. Valerius tribunus militum Gallum, a quo provocatus erat, insidente galeae corvo et unguibus rostroque hostem infestante occidit et ex eo Corvi nomen accepit, consulque proximo anno, cum annos XXIII haberet, ob virtutem creatus est.
O tribuno militar Marcus Valerius matou um gaulês por quem fora desafiado no momento em que um corvo empoleirou-se na crista [do seu elmo] e atacou o seu oponente com o bico e as patas; por essa razão, Marcus Valerius aceitou o sobrenome Coruus [‘corvo’]. Por causa de sua coragem, ele foi feito cônsul no ano seguinte, quando tinha vinte e três anos.
Como último exemplo, cito o enfrentamento fantástico entre o general Lucius
Posthumius Albinus e a tribo dos Boii, ocorrido na floresta chamada Litana (216 a. C., Gallia
Cisalpina, norte da Itália), igualmente narado por Titus Liuis (Ab Vrbe Condita Libri, XXIII,
24):
Cum eae res maxime agerentur, noua clades nuntiata aliam super aliam cumulante in eum annum fortuna, L. Postumium consulem designatum in Gallia ipsum atque exercitum deletos. Silua erat uasta- Litanam Galli uocabant— qua exercitum traducturus erat. Eius siluae dextra laeuaque circa uiam Galli arbores ita inciderunt ut immotae starent, momento leui impulsae occiderent. Legiones duas Romanas habebat Postumius, sociumque ab supero mari tantum conscripserat ut uiginti quinque milia armatorum in agros hostium induxerit. Galli oram extremae siluae cum circumsedissent, ubi intrauit agmen saltum, tum extremas arborum succisarum impellunt; quae alia in aliam, instabilem per se ac male haerentem, incidentes ancipiti strage arma, uiros, equos obruerunt, ut uix decem homines effugerent. Nam cum exanimati plerique essent arborum truncis fragmentisque ramorum, ceteram multitudinem inopinato malo trepidam Galli saltum omnem armati circumsedentes interfecerunt paucis e tanto numero captis, qui pontem fluminis petentes obsesso
ante ab hostibus ponte interclusi sunt. Ibi Postumius omni ui ne caperetur dimicans occubuit. Spolia corporis caputque praecisum ducis Boii ouantes templo quod sanctissimum est apud eos intulere. Purgato inde capite, ut mos iis est, caluam auro caelauere, idque sacrum uas iis erat quo sollemnibus libarent poculumque idem sacerdoti esset ac templi antistitibus. Praeda quoque haud minor Gallis quam uictoria fuit; nam etsi magna pars animalium strage siluae oppressa erat, tamen ceterae res, quia nihil dissipatum fuga est, stratae per omnem iacentis agminis ordinem inuentae sunt.
Enquanto ativamente ocupado com tais questões, chegou-lhe conhecimento de um novo desastre – a sorte nesse ano amontoando uma calamidade sobre a outra -, a saber, que Lucius Posthumius, cônsul eleito, fora destruído com todo o seu exército na Gália. Ele teria que atravessar suas tropas por uma grande floresta que os gauleses chamavam Litana. À direita e à esquerda de seu caminho, os nativos tinham serrado as árvores de tal modo que estas continuassem em pé, mas caíssem quando empurradas pela menor força. Posthumius tinha consigo duas legiões romanas e recrutara, além disso, um tão grande número de aliados ao longo do Mar Adriático, que conduziu ao país do inimigo vinte e cinco mil homens. Assim que seu exército entrou na floresta, os gauleses, que se haviam posicionado em suas orlas mais externas, empurraram as árvores serradas mais externas que, caindo sobre as mais próximas e estas sobre as outras que permaneciam vacilando e quase não conseguiam ficar em pé, esmagaram armas, homens e cavalos de forma indiscriminada, de forma que quase nem dez homens conseguiram escapar. Muito deles, sendo, pois, mortos pelos troncos e pelos ramos quebrados das árvores, os gauleses que cercaram a floresta por todos os lados mataram todo o restante com armas, tomado de pânico por um desastre tão inesperado. Um número muito pequeno, que tentava escapar por uma ponte, foi aprisionado, sendo interceptado pelo inimigo que antes deles apossara-se dela. Ali Posthumius caiu, lutando com toda a sua força para não ser capturado. Os Boii cortaram sua cabeça, e carregaram-na e aos espólios que roubaram de seu corpo em triunfo ao mais sagrado templo que possuíam. Depois disso, limparam a cabeça de acordo com seu costume e, tendo coberto o crânio com ouro batido, usaram-no como cálice para libações em seus festivais solenes e taça de beber para seus altos sacerdotes e outros ministros do templo. Os espólios obtidos pelos gauleses não foram menores do que a vitória. Pois, embora um grande número de animais tenha sido esmagado pelas árvores que caíam e outras coisas se tenham dissipado na fuga, tudo o mais foi encontrado espalhado por toda a linha da tropa caída.
Os detalhes mais ou menos realistas desse combate incomum lembram um
tema mítico muito apreciado nas lendas célticas insulares, o da floresta guerreira.
O inverso igualmente é verdadeiro: a mitologia gaulesa toma de empréstimo ou
divide com seus vizinhos os heróis que considera ter viajado pela Gália. Diodoro Sículo
relata que Hércules fundou a cidade de Alésia. De modo geral, atribuem-se a esse heroi grego
todos os melhoramentos trazidos aos costumes bárbaros, a abolição dos sacrifícios humanos, a
criação de estradas, o respeito aos estrangeiros, etc. O mesmo Diodoro também indica que os
Argonautas teriam visitado as margens do Oceano, instalando nessa região o culto dos
Dióscuros.
Esses exemplos um tanto heterogêneos confirmam a afirmação de Cornutus
sobre a mitologia gaulesa. No entanto, a melhor prova da riqueza desta pode ainda hoje ser
encontrada nas lendas irlandesas, que são descendentes distantes, separados por mil anos, dos
mitos célticos que se difundiram extensamente nos últimos séculos anteriores à era cristã.
Esses relatos, de uma variedade surpreendente, lembram não somente as epopeias de heróis de
tipo grego, tais como Cúchulainn, mas também todos os aspectos da vida quotidiana, das
crenças, da história dos povos e dos reinos, o alcance imenso do saber confiado pelos celtas à
mitologia.
Referências:
Vendryes, J. La Religion des Celtes.
Hatt, J.-J. Mythes e Dieux de la Gaule.
Brunaux, J.-L. Les Religions Gauloises.
Duval, P. M. Les Dieux de la Gaule.
Titus Liuius Patauinus. Ab Vrbe Condita Libri.
A Religião Céltica 3: Mitologia (Parte 2: Irlanda)
Os textos irlandeses mais ricos são:
a) o Lebor Gabála Érenn (“Livro das Invasões de Ériu”);
b) as duas versões e as três redações do conto intitulado Cath Maighe Tuireadh (“A Batalha
da Planície dos Pilares”);
c) o grupo de textos chamados Tochmarc Etaine (“A Corte a Étain”), Altrom Tighe Da Medar
(“Nutrição da Casa do Dois Cálices”), Aislinge Óengusso (“O Sonho de Oengus”);
d) todos os textos do ciclo épico de Ulster, dos quais o principal é o Táin Bó Cúailnge
(“Ataque às Vacas de Cuailnge”), juntamente com uma dúzia de remscéla (“contos
preliminares” ou “prelúdios”);
e) por fim, embora de menor importância, os textos do mais tardio ciclo de Find mac Cumail
(Fiannaidheacht), algumas vezes chamado “Ciclo Ossiânico” (de Oisin ou Ossian, filho do
herói Find), que narra as aventuras do Fianna, grupo de cavaleiros seguidores de Find que
viviam à margem da sociedade.
A mitologia irlandesa fundamenta-se nas cinco “invasões” míticas da ilha, que
os fili transformaram em história. Cinco raças ocupam e tomam Ériu, cada uma delas cedendo
lugar à seguinte depois de um cataclismo, epidemia ou grande batalha. Desse modo,
sucederam-se (1) a raça da Partholon, (2) a de Nemed (“sagrado”), (3) a dos Fir Bolg
(“homens de Bolg/Builg/Bolga/Bulga” [relâmpago?]), (4) as Tuatha Dé Danann e, por fim,
(5) os Goidil (ancestrais dos atuais irlandeses). Derrotadas em batalha pelos Goidil, as Tuatha
Dé Danann refugiam-se nos montes funerários megalíticos, nas colinas e sob os lagos de Ériu.
O relato fundamental da mitologia céltica irlandesa é o Cath Maighe Tuireadh
(“A Batalha da Planície dos Pilares”), que narra a luta dos deuses hibérnicos, ou Tuatha Dé
Danann, contra os gênios opressores e destruidores que são os Fomoiri.
Depois de uma primeira batalha contra os Fir Bolg, que lhes concedeu a
soberania, as Tuatha Dé Danann são obrigadas a aceitar um rei meio-fomor, Bres, pois seu
próprio rei, Nuada, teve seu braço direito decepado na batalha. Bres, porém, é um mau
soberano, sofre a sátira de um file (Cairpre) e é obrigado a devolver a soberania. Esta é
entregue a Nuada, que traz agora um braço de prata. Bres chama em sua ajuda os Fomoiri
que, provenientes da Escandinávia, invadem Ériu. As Tuatha Dé Danann se salvam graças à
intervenção de Lug (também meio-fomor), que organiza o combate, convocando todos os
“sábios” de Ériu: druidas, guerreiros, copeiros, poetas, videntes, artesãos, entre outros. Depois
de uma enorme batalha, os Fomoiri são derrotados e Bres, para salvar sua vida, devolve a
prosperidade a Ériu.
Esse relato, o correspondente céltico da guerra germânica entre Æsir e Vanir
ou do conflito grego entre Deuses e Titãs, pode ser considerado um mito sobre a origem do
mundo e, ao mesmo tempo, traz uma profecia sobre os últimos tempos. Seu cerne, em
essência, é o tema da soberania legitimada por uma conquista violenta e guerreira.
O mesmo tema também inspira o ciclo de Étain (ou Eithne), rainha de Ériu e do
Outro Mundo, dividida entre a soberania divina e a soberania humana, depois entre o
paganismo e o cristianismo. A guerra, apesar da frequência e da ferocidade das batalhas, não é
senão um elemento acessório. Não obstante a pulverização dos motivos mitológicos e a
multiplicidade dos nomes divinos, a mitologia irlandesa cristaliza-se fortemente em torno de
concepções que se ligam à primazia da autoridade espiritual e da soberania da classe
sacerdotal.
Os temas especificamente guerreiros (e também míticos) concentram-se no
ciclo épico, cuja principal narrativa, o Táin Bó Cúailnge (“Ataque às Vacas de Cuailnge”),
conta a guerra empreendida por Medb, rainha de Connacht, aliada às outras províncias de
Ériu, contra Ulaid, pela posse de um touro divino, o Castanho de Cualgne, que lhe fora
recusado. O campeão de Ulaid, Cú Chulaind, defende sozinho a fronteira de sua província e
impõe à rainha Medb um acordo pelo qual um guerreiro será enviado a cada manhã ao vau
que separa as duas províncias. Na maior parte, essa Ilíada irlandesa narra os combates de Cú
Chulaind contra um só adversário (combates singulares) e suas vitórias. Assim como Hêraklês
é filho de Zeus, Cú Chulaind é filho de Lug e, embora seja rei dos guerreiros, não é um
soberano.
Os escribas cristãos que redigiram os relatos mitológicos alteraram-nos em
alguns pontos. Suprimiram quase sempre tudo que dizia respeito ao ritual, aos sacrifícios e às
doutrinas contrárias aos ensinamentos bíblicos. Mesmo assim, o episódio que se segue,
inserido no conto Siarburcharpat Conculaind (“A Carruagem-Fantasma de Cú Chulaind”)
revela o que sentiam os irlandeses cristianizados: quando Pádraig tentou converter Lóegaire,
rei de Temhair, este demonstrou um má-vontade obstinada. Exigiu, para acreditar em Cristo,
que o santo lhe fizesse ver Cú Chulaind. E o portento aconteceu: Cú Chulaind aparece,
totalmente armado, com sua carruagem, cavalos e cocheiro. O teimoso rei é forçado à
conversão pelo herói, que lhe descreve as delícias do Paraíso e os sofrimentos do Inferno.
A Religião Céltica 3: Mitologia (Parte 3: Gales)
O título Mabinogion foi usado pela primeira vez por Lady Charlotte Guest em
sua tradução de doze contos medievais galeses publicada entre 1838 e 1849.
A forma Mabinogion surge no fim do conto “Pwyll, Príncipe de Dyfed” (Ac
yuelly y teruyna y geing hon yma o’r Mabynnogyon, “Aqui termina este ramo do
Mabinogion”, frase que também encerra os demais Ramos), mas comumente se admite que o
sentido do termo mabinogi, na origem significando apenas “infância”, tenha depois sido
ampliado para abranger um conto sobre a infância de um herói em geral. Mabinogion seria o
plural de mabinogi.
Antes das traduções de Lady Guest, somente os quatro primeiros dentre os
doze contos eram conhecidos como Pedeir Ceinc y Mabinogi, “Os Quatro Ramos do
Mabinogi”. Desde então, a palavra Mabinogion tem sido usada como um termo conveniente
para designar todos os contos, com exceção de Hanes Taliesin, “A História de Taliesin”.
Os textos anônimos foram preservados no Llyfr Gwyn Rhydderch (“Livro
Branco de Rhyderch”), escrito entre 1300 e 1325, e no Llyfr Coch Hergest (“Livro Vermelho
de Hergest”), escrito entre 1375 e 1425, embora fragmentos desses contos já tenham sido
encontrados em manuscritos do séc. XIII e acredite-se que tenham existido muito antes sob a
forma oral. A questão da data de composição do Mabinogion é importante, pois pode
demonstrar que é anterior à Historia Regum Britanniae (“História dos Reis da Grã-Bretanha”)
de Geoffrey de Monmouth, sendo a evidência de que o folclore e a cultura galeses seriam
muito mais antigos e resistentes.
O Mabinogion, desconhecido fora de Cymru (Gales) até a época de Lady
Charlotte Guest, é uma parte da longa, consistente e gloriosa tradição da poesia que é um dos
maiores orgulhos da nação galesa.
O Mabinogion propriamente dito consiste de quatro lendas, também chamadas
“Os Quatro Ramos do Mabinogi”. Essas lendas são:
1) Pwyll, Pendeuic Dyuet (“Pwyll, Príncipe de Dyfed”, Primeiro Ramo): durante uma caçada,
Pwyll encontra Arawn (“Língua Prateada”), Senhor de Annwn (o Outro Mundo da tradição
céltica) e, como compensação por um insulto não intencional, oferece-se para trocar de lugar
com Arawn e lutar contra seu inimigo, Hafgan (“Verão Branco”). Pwyll passa um ano sob a
forma de Arawn e ganha sua amizade graças a suas boas maneiras e pelo sucesso em
sobrepujar Hafgan, assim obtendo o título de Penannwn (“Senhor de Annwn”). Ele se casa
com Rhiannon, mas somente depois de derrotar Gwawl, o antigo pretendente. O casal vive
feliz até o nascimento de Pryderi;
2) Branwen uerch Lyr (“Branwen, Filha de Llyr”, Segundo Ramo): Branwen casou-se com
Matholwch, rei de Ériu, e deu à luz Gwern, mas os irlandeses, que tinham sofrido um grave
insulto feito por Efnyssien, meio-irmão de Branwen, quando a comitiva de Matholwch estava
na Grã-Bretanha, vingaram-se obrigando Branwen a servir na cozinha do castelo, onde era
agredida pelo cozinheiro. Ela criou um pássaro e enviou uma mensagem a Bran, seu irmão,
rei da Grã-Bretanha, que veio com uma frota para resgatá-la. Efnyssien lançou Gwern numa
fogueira e seguiu-se uma batalha entre britanos e irlandeses; ela morreu de tristeza e foi
supultada num “túmulo de quatro lados” nas margens do rio Alaw, em Anglesey. Seu mito,
que tem uma forte semelhança com o de Cordélia, filha de Lear, é um tipo de Soberania,
como fica óbvio quando sua história é investigada com profundidade. Quanto a Ériu, ficaram
vivas na ilha somente cinco mulheres grávidas, cujos filhos foram os fundadores dos Cinco
Reinos;
3) Manawydan uab Llyr (“Manawyddan, Filho de Llyr”, Terceiro Ramo): Manawyddan ap
Llyr é mencionado no conto Culhwch e Olwen como um seguidor de Arthur, mas,
originalmente, é um deus marinho que corresponde (ao menos linguisticamente) ao irlandês
Mánannan mac Lir. No Mabinogion, é irmão de Bendigeid Fran (“Bran, o Abençoado”),
ficando sem terras depois da morte deste e tornando-se marido de Rhiannon. Ajudou a
quebrar os encantamentos lançados por Llwyd sobre Dyfed como vingança pelo tratamento
violento dado a Gwawl por Pwyll, primeiro marido de Rhiannon. Manawyddan é um homem
engenhoso e um mestre artesão, capaz de ganhar seu sustento enquanto a terra está
enfeitiçada. Como instrutor e homem de poder, ele fica no lugar do pai de Pryderi e herda as
qualidades de Pwyll;
4) Math uab Mathonwy (“Math, Filho de Mathonwy”, Quarto Ramo): o filho de Mathonwy é
tio de Gwydion, Gilfaethwy e Arianrhod e irmão de Penardun. Ele era onisciente, possuindo,
entre outras habilidades, o estranho dom de ouvir tudo que era dito em seus domínios tão logo
as palavras fossem transportadas pelos ventos. Era muito sábio, um grande rei. Neste conto,
ele somente pode viver enquanto seus pés estiverem no colo de uma virgem, Goewin, a não
ser em tempo de guerra. Como Gwydion provoca uma guerra entre Math e Pryderi, Math
deixa-a temporariamente, sendo Goewin violada por Gilfaethwy, que nutria por ela uma
paixão secreta. Para aliviar a vergonha da jovem, Math casa-se com ela e pune seus sobrinhos,
Gilfaethwy e Gwydion, transformando-os em vários animais. É com a ajuda de Gwydion que
Math cria Blodeuwedd com flores como noiva para Llew Llaw Gyffes, seu sobrinho-neto.
Sete outros contos foram associados aos Quatro Ramos:
a) O Sonho de Macsen Wledig: um imperador romano, Magnus Maximus (383-388 d. C.),
conhecido na tradição galesa como Macsen Wledig. Geoffrey de Monmouth, que o chama
Maximianus, diz que ele fez de Conan Meriadoc o governante da Bretanha Menor, na atual
França. Neste conto, o imperador sonha com uma mulher desconhecida por quem fica
apaixonado. Por fim, mensageiros finalmente informam que esta realmente existe em Cymru,
de forma que Macsen deixa Roma para casar-se com ela. Seu nome é Elen. O Maximus
histórico, subjacente à lenda, realmente serviu na Grã-Bretanha, mas levou muitas tropas da
ilha em sua luta contra Gratianus, imperador do Ocidente, assim deixando a Grã-Bretanha
sem proteção. Traços dos fatos permanecem nas lendas: os galeses retiveram seu nome, que
aparece em várias genealogias de famílias nobres como uma conexão imperial. Os soldados
romanos que partiam tomaram esposas estrangeiras, mas, conta a lenda, cortaram suas línguas
para que não pudessem corromper o idioma britânico de seus filhos. Vemos assim como é
antiga e poderosa a devoção dos Cymry (galeses) a sua linguagem;
b) Lludd e Llefelys: Lludd é filho de Beli e irmão de Llefelys. Foi o rei da Grã-Bretanha que
reconstruiu a cidade de Londres, cujo nome vem do rei: Caer Lludd, Caer London. Três
pragas caíram sobre a ilha: uma raça chamada Coranianos (genedyl y Coraneit, “a raça dos
Coranianos”), que podia saber tudo que era dito; um grito que era ouvido a cada Véspera de
Maio e que fazia murcharem as lavouras, matava os animais e crianças e deixava as mulheres
estéreis e o desaparecimento dos mantimentos do rei. Lludd procurou conselhos junto a seu
irmão, Llefelys, que lhe disse que os Coranianos seriam vencidos depois de beberem uma
infusão de insetos esmagados em água; que o grito era provocado por dragões que seriam
vencidos depois de se embebedarem com hidromel forte, sendo necessário enterrá-los
exatamente no centro da Grã-Bretanha, e que o ladrão das provisões era um homem de poder
capaz de lançar um feitiço de sono sobre a corte e, então, roubar toda a comida. Lludd venceu
as três pragas e a paz da ilha foi restabelecida;
c) Culhwch e Olwen: Culhwch é o filho de Celyddon Wledig e sobrinho de Arthur. Sua mãe,
Goleuddydd (“Dia Brilhante”), deu-o à luz depois de ficar apavorada com a visão de uma vara
de porcos, de modo que ele foi chamado Culhwch, ou “Chiqueiro”. Seu pai casou-se outra vez
depois da morte de Goleuddydd. A madrasta de Culhwch lançou um feitiço sobre ele para que
não pudesse casar-se senão com Olwen (“A dos Rastros Brancos”), filha de Yspaddaden
Pencawr (“Espinheiro, Chefe dos Gigantes”), o gigante. Na corte de Yspaddaden, Culhwch
recebeu trinta e nove anoethu ou tarefas impossíveis, que deveriam ser cumpridas antes de
casar-se com Olwen, todas as quais foram realizadas com a ajuda dos cavaleiros de Arthur. A
principal tarefa era caçar o Twrch Trwyth, um javali gigante, para o que seria necessário o
auxílio de vários cavalos específicos, cães de caça e homens, incluindo Mabon, um jovem
miraculoso, cujo encontro é narrado nesse conto. Outras missões incluem a viagem de Arthur
ao Outro Mundo para obter alguns dos Objetos Sagrados, ou Treze Tesouros da Grã-Bretanha
– um feito que é também relatado num poema galês do séc. IX, o Preiddeu Annwn, “Espólios
de Annwn”, atribuído ao bardo Taliesin. O poder de Yspaddaden é vencido e Culhwch casa-
se com Olwen;
d) O Sonho de Rhonabwy: Rhonabwy adormece a sonha que Arthur e Owain estão jogando
gwyddbwyll (um jogo de tabuleiro céltico) ante um campo de batalha. Durante o jogo, os
cavaleiros de Arthur lutam com os corvos de Owain, mas os jogadores apenas continuam com
seu passatempo, até que Arthur, impaciente por começar a perder, esmaga as peças. O jogo
talvez simbolizasse uma batalha pela soberania.
Os contos “Culhwch e Olwen” e “O Sonho de Rhonabwy” despertaram o
interesse dos estudiosos por preservarem tradições mais antigas do que o material arturiano. A
narração de “O Sonho de Macsen Wledig” é uma história romântica sobre o imperador
romano Magnus Maximus.
Três dos contos são versões galesas de romances arturianos que também
aparecem no trabalho de Chrétien (ou Chréstien) de Troyes. Os críticos do séc. XIX
acreditavam que os contos baseavam-se nos próprios poemas de Chrétien, mas as opiniões
mais recentes inclinam-se a afirmar que as duas coleções são independentes, mas têm um
ancestral comum:
e) A Dama da Fonte: Owain, inspirado pelo conto de Cynon (na tradição galesa, o filho de
Clydno – um dos guerreiros de Arthur – e amante de Morfudd, irmã gêmea de Owain), sai
em busca do Castelo da Fonte, que era guardado pelo Cavaleiro Negro. Ele atravessou o mais
belo vale e viu um brilhante castelo numa colina. Depois de entrar nesse lugar sobrenatural,
Owain derrota o Cavaleiro Negro e casa com sua viúva. Após um começo difícil, ele vence
ressentimento desta e guarda o reino até que sua sede por aventuras o faz partir, deixando para
trás a esposa. Dama da Fonte é também o título da condessa misteriosa no Yvain, de Chrétien
de Troyes.
f) Peredur, Filho de Efrawg: na mitologia galesa, Peredur era o sétimo filho de Efrawg e o
único do sexo masculino a sobreviver. Seu pai e irmãos morreram antes que ele atingisse a
maioridade. Isso não impediu Peredur de tornar-se um dos cavaleiros de Arthur e suas muitas
aventuras formaram a base para o Sir Percival posterior. Talvez por causa de sua posição
como sétimo filho, Peredur era particularmente adepto de matar bruxas, que, em Cymru,
compareciam ao campo de batalha trajando armaduras completas. No fim de seu conto no
Mabinogion, Peredur enfrenta a “líder das bruxas” e, com sua espada, rompe elmo e armadura
em duas partes, enquanto as demais feiticeiras fogem;
g) Gereint, Filho de Erbin: Gereint é o rei de Dumnonia (reino que, no, período pós-romano,
abrangia Devon, a Cornualha e outras áreas do sudoeste da Inglaterra) cujas aventuras são
contadas nesta narrativa. No romance francês, o herói deste conto é Erec, mas, como este não
é comumente conhecido em Cymru, substituíram-no por Gereint. Este pode ser uma figura
histórica, um primo de Arthur. Embora seja listado como contemporâneo desse rei, pode ter
pertencido a uma geração anterior, pois o conto “O Sonho de Rhonabwy” diz que Cadwy, seu
filho, era um contemporâneo de Arthur. O nome do pai de Gereint é citado como Erbin, mas,
na Vida de São Cyby, Erbin é chamado seu filho. Em “Culhwch e Olwen”, encontramos os
nomes de dois de seus irmãos, Ermid e Dywel. Gereint, suspeitando que sua esposa é infiel,
força-a a acompanhá-lo numa exaustiva jornada de aventuras para testar seu amor e
obediência a cada passo do caminho. Como outras fortes heroínas célticas, ela suporta
calmamente sua provação, permanecendo leal e amorosa durante todo o tempo. Gereint
finalmente sentiu “duas tristezas”, do remorso por ter desconfiado de sua esposa e por tratá-la
tão mal.
Lady Guest também incluiu em sua tradução um oitavo conto (removido das
traduções inglesas posteriores, que, no entanto, continuam a usar o termo Mabinogion), não
encontrado nem no “Livro Branco de Rhyderch”, nem no “Livro Vermelho de Hergest”, mas
em um manuscrito do séc. XVII. Esse texto é o Hanes Taliesin (“A História de Taliesin”). O
nome Taliesin significa “Testa Brilhante”. Ele foi um bardo galês e, de acordo com o mito, a
primeira pessoa a adquirir a habilidade da profecia.
Em uma versão da história era ele o servo da feiticeira Cerridwen, uma deusa
da fertilidade, mãe de Afagddu, o homem mais feio do mundo, e chamava-se Gwion Bach.
Cerridwen preparava uma beberagem mágica que, depois de um ano fervendo, produziria três
gotas que dariam a quem as bebesse toda a sabedoria do mundo. Essa pessoa conheceria todos
os segredos do passado, do presente e do futuro. Ela queria dá-las a Afagddu como
compensação por sua feiúra.
Enquanto Gwion Bach cuidava do fogo sob o caldeirão, uma parte do líquido
quente caiu em seu dedo e ele a sorveu ao sentir a dor. Eram as três gotas da sabedoria. Todo
o líquido restante era veneno. A furiosa Cerridwen empregou todos os seus poderes mágicos
para perseguir o menino. Durante a caçada, ele se transformou numa lebre, num peixe e num
grão de trigo, que Cerridwen, metamorfoseada em galinha, engoliu, descobrindo-se então
grávida. Mais tarde, Gwion, renascido de Cerridwen, foi jogado ao mar e apanhado numa
armadilha para peixes, quando passou a chamar-se Taliesin por causa de sua testa brilhante.
Os Quatro Ramos são, essencialmente, histórias medievais e seus personagens
comportam-se, falam e vivem de modo muito semelhante a sua audiência do séc. XIV. Suas
maneiras são (em geral) corteses e refinadas, invocam frequentemente o deus cristão e suas
roupas incluem brocados, sedas, toucados e outros itens medievais. Contudo, ainda que sejam
produto de uma sociedade cristã da Idade Média, os Quatro Ramos baseiam-se também numa
visão de mundo profundamente pagã, proveniente de tradições e crenças das culturas
neolíticas e da Idade do Bronze, bem como da Idade do Ferro céltica e da era romano-
britânica.
Do Ritual
1 Parâmetros Básicos - 1.1 Preparação - 1.1.1 O indivíduo - 1.1.2 Especificidade - 1.2.
Ambiente - 1.3. Objetivo - 1.4 Alinhamento - 1.5. Técnicas de focalização - 1.6. Energia - 1.7
Percepção – 2 A Liturgia – 2.1 Generalidades – 2.2 Centralidade/Liminalidade – 2.3
Orientações para a Pesquisa da Liturgia – 2.4 Parâmetros Básicos - 2.4.1 Preparação –
2.4.1.1 O indivíduo – 2.4.1.2 Especificidade – 2.4.2 Ambiente – 2.4.3 Objetivo – 2.4.4
Alinhamento – 2.4.5 Técnicas de focalização – 2.4.6 Energia – 2.4.7 Percepção – 3 Tipos de
Rituais – 3.1 R. I (Ritos de Adoração e Homenagem) - 3.2 R. II (Ritos de Consagração) - 3.3
R. III (Ritos de Benção)
1 Parâmetros Básicos
1.1 Preparação - 1.1.1 O indivíduo - 1.1.2 Especificidade - 1.2. Ambiente - 1.3. Objetivo - 1.4
Alinhamento - 1.5. Técnicas de focalização - 1.6. Energia - 1.7 Percepção
Insisto em afirmar que há princípios subjacentes a todo bom ritual que podem
ser encontrados em todas as cerimônias religiosas e espirituais. Compreendê-los é o ponto
inicial para entender, realizar e construir exercícios litúrgicos. Em diversos atos, que de
ordinário não seriam considerados de natureza ritual, encontrar-se-á a aplicação de tais
princípios. Um discurso político eficiente, por exemplo, aplicará a maioria dessas
características.
Discutirei neste texto o ritual em geral como disciplina autônoma enraizada em
nenhum sistema de crenças específico a fim de proporcionar um alicerce básico e
conhecimento sobre as generalidades de um bom ritual. Espero que, com sua leitura, o
estudante seja capaz de aproximar-se com uma compreensão clara de qualquer ritual, não
importando a etnia em que está inserido, seu contexto religioso ou simbologia espiritual.
1.1 Preparação
1.1.1 O indivíduo
O primeiro parâmetro do ritual é a própria pessoa ou grupo que o executa. A
preparação do indivíduo pode dar-se de várias maneiras. O primeiro nível da preparação é a
formação e a obtenção de experiência com o ritual em geral. É preciso que a pessoa ou grupo
compreenda-o como tema geral e que esse entendimento esteja solidamente estabelecido na
personalidade do indivíduo ou na mente grupal da organização. Eventuais falhas no
conhecimento do ritual geral devem ser detectadas e corrigidas por meio de educação e
prática.
1.1.2 Especificidade
Em segundo lugar, a preparação deve ser avaliada relativamente a um ritual
específico. O indivíduo ou o grupo deve possuir suficiente conhecimento das peculiaridades
do rito em questão. Todos os envolvidos devem compreender, de forma geral, o propósito
para o qual o rito está sendo realizado. Todos os envolvidos devem estar adequadamente
preparados para executar e compreender suas próprias funções dentro do ritual. Se houver
convidados presentes, também estes devem ser ajudados a compreender o que se está
passando.
Se o ritual for realizado por um grupo, certas considerações especiais impõem-
se. Há relacionamentos pessoais capazes de afetar o ritual? Em caso afirmativo, de que modo?
Determinadas pessoas realmente são um problema no ritual, chegando a perturbá-lo
seriamente. É preciso encontrar formas para desenvolver uma mente grupal (egrégora) e
identidade consistentes dentro da organização. Quais seriam essa formas?
Ao realizar rituais que não integram uma programação usual e podem requerer
certas habilidades ou treinamentos peculiares, há outros pontos que devem ser considerados.
Por exemplo, todos concordam e apoiam o objetivo do ritual? Não sendo esse o caso, seria
prudente analisar a possibilidade de essas pessoas não participarem. Haveria alguém cuja
preparação não fosse adequada ou que poderia causar perturbação? Novamente, seria
prudente analisar a possibilidade de essas pessoas não participarem.
Um ritual é uma atividade dirigida à obtenção de um objetivo. Não é um
evento social comum. A participação não deve subordinar-se a simpatias, relações de amizade
ou simples interação entre os membros do grupo quando isso puder comprometer a eficiência
de todo o procedimento.
1.2 Ambiente
O segundo parâmetro de um ritual é seu ambiente, ou seja, o espaço e o tempo
reservados para sua realização. É necessário certificar-se de que haja local adequado e tempo
suficiente para o ritual.
A primeira questão é decidir onde se fará o ritual e se o local poderá oferecer
tudo o que é necessário à cerimônia. Trata-se de área segura, limpa e desimpedida de
obstáculos? Que esforços estão sendo feitos para aprontar o local a fim de ajudar os
participantes a percebê-lo como sagrado? Que sensações o local pretendido transmite às
mentes dos participantes?
Passemos a algumas considerações sobre o tempo. Houve tempo suficiente
para planejar, preparar e realizar o ritual e, não menos importante, limpar o espaço sem que os
participantes se sentissem apressados ou efetivamente o fossem? Que medidas foram tomadas
para evitar interrupções? Telefones, relógios, aparelhos e outros acessórios da vida mundana
foram desligados ou postos de lado a fim de não perturbar o ritual?
É sempre mais vantajoso possuir um local sagrado especial para propósitos
rituais. Templos, igrejas ou até mesmo lugares especiais na mata ou na praia são alguns
exemplos. Se for usado um local que possua de ordinário finalidade mundana, devem-se fazer
esforços para alterá-lo de forma que possa ser mais prontamente percebido como sagrado. Se
você precisar fazer seu ritual em sua sala de estar, afaste ou retire os móveis, decore o
ambiente com uma tapeçaria, use velas, etc. Tome todas as medidas possíveis e razoáveis para
que aquele momento e espaço sejam percebidos como sagrados pelos participantes e por você
mesmo.
1.3 Objetivo
O terceiro parâmetro é o objetivo, o porquê de fazermos o ritual e o que
esperamos alcançar com esse exercício litúrgico específico. Um ritual deve ter uma razão ou
jamais poderá ser um sucesso. Devemos estabelecer um propósito para o ritual, uma razão que
pode ser algo tão simples quanto uma comemoração ou tão intenso quanto um encantamento
de guerra. Isso dá ao rito e a seus participantes um sentido de propósito.
Assim, perguntamo-nos: qual a razão para estarmos naquele lugar, realizando
aquela atividade? Quão clara está a definição e a representação desse propósito? Este se
encontra em consonância com as intenções mais amplas do indivíduo ou do grupo
envolvidos? Que medidas foram tomadas para permitir que os presentes melhor
compreendessem essa finalidade?
1.4 Alinhamento
Alinhamento é o quarto parâmetro do ritual. Ao chegarmos a esse ponto,
decidiremos a quais deidades, forças espirituais, culturas, etc., alinhar-se-á nosso ritual. Os
maiores esforços devem ser empreendidos para manter as combinações tão consistentes e
equilibradas quanto possível. Por razões óbvias, rituais monoteístas alinham-se mais
facilmente, em razão de seu foco estrito e falta de opções.
Consideremos primeiramente o alinhamento cultural, a consistência com a
cultura selecionada. Se o ritual for inspirado em uma cultura específica, deverá ser projetado
tão coerentemente com essa cultura quanto possível. A simbologia nele utilizada deve refletir
a simbologia dessa cultura tanto quanto o permita a informação disponível. Empréstimos de
outros sistemas devem ser minimizados. A linguagem ritual, as forças e personificações
espirituais e as deidades honradas devem igualmente ser selecionadas com essa consistência
em mente. Em geral, quanto menor o número de símbolos culturais e forças de outros
sistemas presentes no ritual, tanto melhor. Com uma exceção: quando o efeito desejado puder
ser obtido com uma estrutura ritual inter ou pan-cultural.
Uma derivação desse parâmetro é a consistência entre as deidades honradas em
uma dada cerimônia. Honrar deidades de um mesmo panteão resultará em uma estrutura
litúrgica mais coerente. A exceção é, outra vez, que o objetivo buscado surja de uma
combinação de diferentes culturas.
Também se devem levar em consideração as personalidades das deidades ou
forças espirituais. Duas ou mais deidades individuais interagem bem na estrutura mítica ou há
tensão entre elas por qualquer motivo? Esus e Taranus podem não ser uma boa dupla para o
mesmo ritual, pois, aparentemente, havia conflito entre eles. O mesmo pode ser dito a respeito
de Brigit e Goibniu. Uma regra geral é que as deidades em foco devem harmonizar-se dentro
da estrutura mítica, a fim de propiciar um ritual que flua suavemente e não apresente
perturbações. Com uma exceção: que a tensão entre deidades adversárias seja o efeito
desejado.
O equilíbrio entre o que os participantes do ritual percebem a respeito das
divindades também deve ser considerado. A questão não é saber qual dos deuses é mais
poderoso, mas qual é melhor compreendido e percebido pelos participantes. Se um dos deuses
for melhor compreendido ou mais familiar ao grupo, haverá uma tendência a dirigir o foco do
ritual em direção a essa familiaridade, o que é simplesmente a forma como a mente humana
funciona. É necessário haver harmonia entre ambiguidade e definição. Todas as forças ou
deidades convidadas ou honradas no curso do ritual devem ser igualmente definidas ou
ambíguas. Temos uma tendência automática para nos voltarmos àquilo que melhor
conhecemos ou entendemos.
Há alguns modos de impedir que esse desequilíbrio ocorra. O primeiro e mais
importante é formar as pessoas envolvidas no ritual. Se uma nova deidade estiver sendo
apresentada ao grupo, os mitos e contos a seu respeito devem ser cuidadosamente estudados, a
fim de que cada um possua um conhecimento mais preciso e uma imagem mental mais clara
quanto a sua natureza. Outro expediente é o uso de símbolos dessa deidade, com ênfase menor
na identificação de seu nome. A intenção de qualquer método deve ser facilitar o
reconhecimento claro e fácil acesso a cada força espiritual envolvida no ritual, permitindo que
a atividade permaneça concentrada no equilíbrio estrutural apropriado.
Este parâmetro ressalta a fundamental importância do conhecimento do corpo
mitológico de cada cultura para a criação e realização de exercícios litúrgicos coerentes com
suas premissas espirituais e estruturas simbólicas.
1.5 Técnicas de focalização
O quinto parâmetro são as técnicas de focalização, isto é, os métodos que
simbolizam e permitem a realização do objetivo, os detalhes de como fazemos o ritual e de
que forma começamos a entender a finalização exitosa do trabalho pretendido. A primeira
área a ser visada é a cosmovisão ou paradigma cosmológico em que irá fundar-se a execução
do ritual. Todo esforço deve ser feito para manter a simbologia e os sistemas estruturais
empregados tão consistentes com a cosmovisão quanto possível. A consistência interna do
sistema simbólico também deve ser mantida.
Depois consideramos como as forças espirituais e as divindades estão
simbolizadas no ritual, o que deve ser avaliado conforme o método e a eficácia. As
identidades e os personagens a quem nos dirigimos estão sendo definidos e caracterizados
com clareza? O que podemos fazer para tornar os convites e representações mais intensos e
eficazes?
1.6 Energia
Energia é o sexto parâmetro do ritual. A energia é o aspecto
emocional/intelectual do rito. Devemos tentar concentrar as mentes e emoções dos
participantes no tipo de sensações e pensamentos que melhor conduzam ao objetivo do ritual.
A dança, o canto, a percussão, a oratória, o controle respiratório estão entre os métodos para
elevar a energia emocional a um nível mais alto e alcançar um patamar de concentração
extática no objetivo, sendo função do ato escolhido elevar e dirigir a energia emocional e
espiritual mais em sintonia com o propósito do ritual.
As partes faladas do rito devem usar uma linguagem ritual ou terminologia
intensamente descritiva com o fito de inspirar e estimular os presentes a enviar sua energia
para a realização do ritual e a obtenção do objetivo. De que modo melhor podemos dirigir as
mentes dos presentes à finalidade em questão? De que modo podemos obter o máximo
possível de envolvimento emocional e espiritual pelos participantes?
1.7 Percepção
O sétimo parâmetro do ritual é a percepção, que é onde julgamos o êxito ou
fracasso do ritual. Devemos estudar o ritual antes, durante e depois para avaliar a efetividade
do exercício. Por meio do estudo claro e objetivo do projeto litúrgico poderemos julgar seu
poder. Para nossos objetivos, “poder” será definido como “efeito mensurado do exercício
espiritual”. Não se iguala poder a energia, pois um ritual pode produzir um alto nível de
energia e mesmo assim não ter poder. Alguns rituais, ao contrário, manifestam uma grande
quantia de poder pelo uso eficiente de uma pequena quantidade de energia. O que se sente
durante o ritual é a energia, não o poder.
O primeiro dos métodos básicos para obtermos percepção da efetividade ou
poder de um ritual é a divinação. Durante o ritual, realizamos algum tipo de leitura ou estudo
de um presságio. Um ritual pode terminar apresentando vários presságios durante sua
realização. Cada um deles será estudado independentemente dos outros e depois todos serão
estudados como um grupo.
Chegamos então à área de averiguação, em que discutiremos e registraremos
nossas impressões sobre o ritual. Essas impressões e percepções são registradas em um diário,
que poderemos usar para referências futuras. Por esse motivo, os registros do diário devem
conter tantas informações quantas sejam possíveis sobre o exercício.
A revisão periódica é a área final que será discutida relativamente à percepção.
É por meio da revisão periódica de nossos diários que seremos capazes de finalmente avaliar
o poder de um dado ato. Por algum tempo, é comum que não saibamos se nosso objetivo foi
atingido. Apenas pelo registro de nossas ações e de seus resultados, quer tenham sucesso ou
não, poderemos avaliar nosso ritual pelo poder que ele manifestar. Além disso, somente esses
diários nos permitem comparar muitos de nossos rituais uns com os outros a fim de
apreciarmos a completa efetividade na área geral do exercício litúrgico.
Em resumo, percebemos que há diversas áreas específicas do ritual que são
comuns à matéria sem levar-se em conta o contexto de sua aplicação. Assim como o estudo
matemático é um requisito básico para todas as formas de engenharia ou a fisiologia é
indispensável em todas as especialidades médicas, a compreensão desses parâmetros básicos
para o ritual em geral melhorará as habilidades litúrgicas, não importando as áreas de sua
aplicação.
2 A Liturgia
2.1 Generalidades – 2.2 Centralidade/Liminalidade – 2.3 Orientações para a Pesquisa da
Liturgia – 2.4 Parâmetros Básicos - 2.4.1 Preparação – 2.4.1.1 O indivíduo – 2.4.1.2
Especificidade – 2.4.2 Ambiente – 2.4.3 Objetivo – 2.4.4 Alinhamento – 2.4.5 Técnicas de
focalização – 2.4.6 Energia – 2.4.7 Percepção
2.1 Generalidades
A palavra liturgia vem do grego leitourgía, formada de leit- < laós, “povo”, e -
ourgós < érgon, “trabalho”. Assim, liturgia, etimologicamente, significa o trabalho realizado
para/em nome do povo. Esse era o sentido da palavra para os gregos clássicos. A concepção
atual, de conjunto de rituais determinados ou prescritos, de modo geral, por uma religião é
uma modificação semântica introduzida pelo cristianismo.
Entre os antigos, a leitourgía era a oferta, em geral de custo muito elevado, de
um serviço ao povo ou ao estado, sendo por isso feita pelos cidadãos mais ricos. A
magnificência no desempenho da leitourgía, sempre um ato específico e, a um só tempo
honorífico e obrigatório, firmava a posição do responsável por ela ante os demais membros da
elite. A principal área onde se poderia encontrar a leitourgía era a religião cívica,
materializada nos muitos festivais que marcavam o antigo ano grego.
Os romanos conheciam a figura da leitourgía, a que chamavam munera (plural
de munus, substantivo neutro). Sendo a bolsa do patriciado romano muito mais sensível que a
dos seus correspondentes helenos, os nobres da Cidade Eterna aprenderam muito cedo que os
munera deveriam ser evitados sempre que possível, a não ser que se pudesse obter do povo
alguma vantagem.
É comum falar-se em liturgia como algo muito complicado, com muito passos
a ser realizados para que um rito seja adequadamente concluído. Honestamente, essa
multiplicidade de fases e complexidades muitas vezes não é mais do que uma tentativa de
envolver o rito de adoração em um ar de mistério, o que não deveria ser usado para confundir
as pessoas.
A construção dos ritos pode ser aprendida partindo-se de ideias muito simples,
de fácil entendimento. Sobre sua estrutura básica pode-se construir um rito que será tão
singelo quanto as ideias básicas ou muito complexo, com uma pluralidade de etapas a
executar. Pode-se elaborar uma grande variedade de rituais com diferentes objetivos e
diferentes graus de complexidade, mas encontrar-se-á dentro de todos esses ritos um mesmo
padrão simples, expressivo e harmonioso.
A divisão padrão do ritual abrange três partes: o centro, o começo e o final. Por
que não o começo primeiro? Bem, há nisso uma lógica.
Na margem, fora do rito propriamente, ocorre a dedicação do espaço sagrado.
Na margem, fora do rito propriamente, os participantes reúnem-se e fazem todas as coisas que
são necessárias para unir-se em uma mesma identidade espiritual e para levar essa massa
formada de partículas individuais a um ponto de contato direto com o sagrado. O cerne de
tudo necessariamente será aquele momento para o qual todos estão ali, o ponto em que se
oferece, reverencia-se, abençoa-se ou se consagra.
Novamente, é na margem, fora do rito propriamente, que encontraremos o final
do qual estaremos retornando – passada a ação sagrada central do rito – para nossas vidas e
consciências de costume.
Do centro para a margem o rito é planejado. Da margem para o centro o rito é
conduzido.
Ultrapassando a margem, ingressamos no rito e avançamos rumo ao momento
de clímax em busca do qual viemos. Prosseguimos então calmamente até uma vez mais
retornarmos à margem.
No cento de todo ritual fica o momento culminante, o ato central de adoração,
benção ou transformação, onde se encontra a razão do rito, o porquê do exercício espiritual
que está sendo realizado. A construção de um rito começa aqui, ao planejarmos uma
cerimônia e a finalidade para a qual ela se destina. Ao planejar um ritual, devemos responder
certas perguntas:
– Que desejamos realizar?
– Qual a melhor forma para alcançar esse objetivo?
É no centro que localizamos o ato fundamental do rito.
É importante que, ao identificarmos o centro, não o confundamos com o centro
temporal, cronológico. A identificação de um ato como centro da cerimônia baseia-se
completamente na função desse ato no contexto do rito. Em rituais longos, a construção do ato
central geralmente consome a maior parte do tempo, com os passos finais ocupando somente
uma porcentagem diminuta do tempo total. Em uma cerimônia que dura cerca de uma hora, o
ponto do clímax comumente será atingido somente depois de 40 ou 45 minutos. Em uma
cerimônia de trinta minutos, o ato central comumente será encontrado após 20 minutos do
início. Mas isso não é uma regra rígida, é apenas o que geralmente se vê.
Três elementos a lembrar sobre o centro de um ritual: a razão do ritual, o
objetivo do ritual, o apogeu do ritual.
O modo mais eficiente para conduzir ao clímax de um rito é a preocupação que
ocupa nossas mentes ao delinearmos o começo de uma cerimônia. É no princípio do rito que
ponderamos sobre a melhor forma para agregar a mente espiritual das pessoas presentes. É
também durante esse estágio inicial que estabelecemos e identificamos o espaço sagrado e
como se liga ou se demonstra a cosmologia de nossa realidade sagrada. A ligação ritual inicial
com as divindades, ancestrais e outras forças espirituais é estabelecida durante o começo de
qualquer cerimônia. O começo de um rito deve estabelecer o foco e a identidade espirituais
dos participantes, identificar e estabelecer o tempo e espaço rituais, estabelecer a conexão
com a cosmologia sagrada, as divindades e as forças espirituais.
Três elementos a lembrar sobre o começo de um ritual: como se reunir, como
estabelecer o espaço sagrado, como ligar-se aos Deuses.
Não se passa de um momento de intensidade espiritual diretamente de volta
para a vida quotidiana. Assim, deve existir também uma parte de encerramento da cerimônia.
É no encerramento do ritual que se dá tempo para os participantes buscarem seus objetivos
pessoais, afrouxar a tensão e retomar contato com a realidade comum depois de um ato de
forte carga espiritual. É necessário oferecer um caminho pelo qual todos possam suavemente
voltar ao mundo das percepções normais à realidade comum. Podemos novamente nos
aproximar da margem e, serena e suavemente, deixar o mundo da realidade ritual e retornar a
nossas vidas. No final da cerimônia, dedicamos algum tempo para agradecer aos Deuses e
ancestrais por sua participação e relações espirituais conosco, acrescentando um momento de
tranquilidade e quietude.
Três elementos a lembrar sobre o fim de um ritual: serenar, voltar, relaxar.
O ritualista iniciante deve evitar a tentação de prolongar desnecessariamente
uma cerimônia incluindo etapas ou atividades adicionais. Embora esses passos ou atividades
adicionais possam ter a intenção de intensificar ou aperfeiçoar a experiência do ritual, é mais
a sua adequação do que a sua quantidade que deve fornecer a base para a escolha de quais
atos incluir em qualquer cerimônia. Uma ação deve fluir, resultar na próxima ação, sempre
com vistas ao ápice central do rito. Depois, as ações devem fluir do centro de volta para um
ponto de calma e paz. Um fluxo espiritual adequado é a consideração primordial ao selecionar
que etapas incluir e quais deixar de fora em uma cerimônia. Cada ação deve servir de apoio à
formação do objetivo central do ritual. Desse modo, algumas ações podem encaixar-se bem
no contexto de uma dada cerimônia e encontrar-se totalmente deslocadas no contexto de
outra.
a) Três elementos a lembrar sobre ações rituais: sua adequação, seu fluxo, seu contexto.
b) Do centro para a margem o rito é planejado. Da margem para o centro o rito é conduzido.
c) Três elementos a lembrar sobre o centro de um ritual: a razão do ritual, o objetivo do ritual,
o apogeu do ritual.
d) Três elementos a lembrar sobre o começo de um ritual: como se reunir, como estabelecer o
espaço sagrado, como ligar-se aos Deuses.
e) Três elementos a lembrar sobre o fim de um ritual: serenar, voltar, relaxar.
f) Três elementos a lembrar sobre ações rituais: sua adequação, seu fluxo, seu contexto.
2.2 Centralidade/Liminalidade
Centralidade é o conceito do centro sagrado e buscaremos primeiramente as
formas em que esse conceito funciona no ritual. Enquanto o conceito de centralidade é aceito
no Druidismo de modo geral, a forma de sua representação pode variar grandemente. Seja o
centro simbolizado por uma árvore, poste, poço, altar de pedra ou lareira, o conceito ainda
pode ser percebido. O conceito do centro sagrado sempre está presente em nossas cerimônias,
embora seus símbolos possam mudar de rito para rito ou de grupo para grupo.
Liminalidade é um conceito expresso em nossos ritos como margens, fronteiras
ou limites. Se o centro é o eixo da roda do espaço sagrado, a fronteira externa é o limite onde
o rito cessa. A liminalidade é um reflexo do espaço sagrado. Assim como o centro está de
alguma forma presente durante o ritual, presente também está a fronteira, embora a forma
como isso ocorre possa variar de uma a outra cerimônia.
Portais são pontos de contato entre o espaço ritual e outros mundos. Por essa
razão, muitos ritos terão um símbolo indicando a presença dos portais. Algo simples como a
entrada para um quarto, uma trilha para um bosque ou santuário ou uma abertura num círculo
de pedras são todos portais físicos de entrada que podem ser vistos como símbolos de entrada
para os reinos espirituais. Às vezes, um conjunto de portais espirituais são abertos durante um
rito e tornam-se os portais para a entrada espiritual. Um poço de oferendas ou um vasilhame
podem ser vistos como portais que levam oferendas para os outros mundos. Para alguns, o
fogo é entendido como um portal de inspiração ou bençãos vindas de outros mundos e a
fumaça que sobe ao céu transporta aos outros mundos orações e louvores. Todo rito pode ter
vários portais para trazer bençãos de outros reinos em diversos momentos e locais, porém, o
conceito de um ponto de passagem está presente em todos esses portais.
É comum nos ritos a presença do sistema multicosmológico dos celtas.
Ocasionalmente, aparecem representações dos mundos múltiplos. Estátuas, postes com olhos
arregalados e imagens das deidades podem ser incluídos no espaço ritual para representar o
mundo superior divino geralmente mencionado como Céu. Objetos dos ancestrais ou dos
espíritos do passado ou um símbolo dos mortos podem estar presentes na área do rito e
representar a conexão com o além usualmente entendido como o Oeste. Representações dos
espíritos e forças da vida neste mundo médio podem estar presentes para mostrar a plena
participação na vida física e espiritual no plano em que habitamos.
Quer sejam invocados ou fisicamente representados, esses diversos mundos
conectam-se ao ritual. Vistos, ouvidos ou sentidos, estão conosco como parte de nossas
cerimônias.
Do centro para a margem, o espaço sagrado é organizado para refletir a ordem
dos Deuses, Ancestrais e do Povo. Uma área ritual é, em miniatura, um reflexo do mundo
como um todo. Ao percebermos claramente a estrutura do microcosmo, obtemos a capacidade
de compreender melhor a organização do macrocosmo. Cada rito reforça a ordem e nosso
próprio papel no mundo ao permitir que participemos de sua organização e abarquemos sua
ordem sagrada.
2.3 Orientações para a Pesquisa da Liturgia
A liturgia é a área da pesquisa religiosa em que menos sabemos sobre o que os
antigos povos célticos realmente faziam. O fato é que há poucos exemplos históricos de ritos
realmente sendo realizados e do conjunto de ações envolvidas nesses ritos. Essa escassez de
exemplos escritos (ou registrados sob qualquer outra forma ) de rituais completos tem
oferecido alguns problemas e causou uma grande confusão. Esse fato levou muitos celtistas a
tirar conclusões equivocadas, como afirmar que não podemos saber nada sobre a religião
céltica.
Tais estudiosos, embora bem instruídos em estudos célticos, arqueologia e
antropologia em geral, usualmente carecem de qualquer formação no estudo formal da
fenomenologia religiosa e por isso fazem o erro de igualar liturgia com religião e pensam que,
se não se possui informação suficiente sobre a liturgia, não se poderá então dispor de
informação suficiente sobre a religião. Encontram-se numa peculiar posição baseada em dois
fatos: o primeiro, possuem um excelente conhecimento da evidência disponível graças a seus
anos de estudo; o segundo é que são completamente ignorantes quanto à forma de avaliar
essas evidências no contexto religioso.
Tão singular posição leva-os a afirmações falsas quanto à prática religiosa, que
são comumente aceitas como interpretações oficiais por força de sua formação acadêmica em
qualquer das áreas necessárias a essa pesquisa. Uma solução para esse problema seria
combinar a pesquisa em estudos célticos ao estudo das religiões, permitindo que o
conhecimento do fenômeno religioso em geral oriente a busca pela evidência específica aos
povos célticos. Outra solução seria aplicar estrito rigor acadêmico na análise de declarações,
propostas e conclusões, nunca aceitando qualquer coisa como verdade, simplesmente com
base na autoridade da pessoa que faz a afirmação e julgar o valor da afirmação com base
apenas nas evidências utilizadas para apoiá-la.
Quase a totalidade das descrições que atualmente possuímos (e, na verdade,
não são em tão grande número) não apresentam um rito do início ao fim. São antes vislumbres
de ações individuais ou etapas dento de um ritual. Partindo desses indícios do que foi feito há
muito tempo podemos perceber alguma coisa sobre as várias ações e os princípios a ela
subjacentes. E, embora não tenhamos nenhum roteiro das liturgias realizadas em séculos
passados, torna-se possível identificar os conceitos e etapas compreendidos nesses ritos.
Exemplos do que sabemos sobre os princípios litúrgicos que podiam ser encontrados entre os
vários grupos célticos incluem:
a) a presença do fogo como catalisador ontológico;
b) a definição do espaço sagrado;
c) a presença do centro sagrado;
d) a realização de oferendas rituais baseadas no princípio da reciprocidade;
e) o ato divinatório;
f) a realização dos ritos para o benefício de grupos corporativos ou outras formas de
coletividade dentro de uma comunidade ou ainda de indivíduos;
g) a existência de especialistas encarregados da realização desses ritos.
Certamente não é possível afirmar que cada rito executado pelos vários povos
célticos incluísse algum ou até mesmo a maioria desses elementos, mas não seria equivocado
afirmar que estivessem comumente presentes no ritual.
Apesar de hoje existir uma tendência a imaginar os celtas antigos como uma só
cultura, estes eram na verdade povos extremamente tribais que viviam em unidades sócio-
políticas autocontidas e de tamanho variável, algumas maiores, outras menores. Havia vários
traços sociais e culturais comuns entre essas tribos, que falavam línguas semelhantes,
inexistindo, contudo, o conceito mais amplo de corpo político, grupo racial ou nacionalidade
céltica.
Isso se torna muito importante para a pesquisa na área litúrgica. É preciso não
esquecer que uma espécie de liturgia céltica padrão nunca teria existido; os celtas antigos não
possuíam nenhum Breviário ou Missal que lhes fornecesse um conjunto consistente de
padrões litúrgicos intertribais. O que um visitante estrangeiro veria em cada uma das
tribos/nações seria a identidade local de cada uma, com seus ritos específicos para as
divindades adoradas em cada uma.
Ainda que os vários povos célticos pudessem compartilhar princípios de
crenças, cosmovisões comuns e até mesmo certas divindades, os detalhes exatos de quando e
como os vários ritos de adoração eram realizados teriam apresentado algum grau de variação
de um povo a outro no tocante às palavras e procedimentos das cerimônias – uma
manifestação tribal do individualismo que os celtas demonstravam em todos os outros
aspectos da vida. É de grande importância para a pesquisa litúrgica que se mantenha uma
visão clara da natureza da cultura céltica a fim de evitarmos avaliações equivocadas que
poderiam nos levar a buscar uma liturgia pancéltica que provavelmente jamais existiu.
Assim, podemos considerar que praticamos uma religião que é, em muitos
aspectos, consistente com as práticas religiosas antigas. Dividimos com estas uma teologia,
cosmologia e ontologia semelhantes e adoramos os mesmos deuses com, basicamente, o
mesmo sistema de crenças fundamentais. Contudo, não podemos dizer que realizamos
exatamente os mesmos rituais, exatamente da mesma forma que qualquer das antigas tribos
célticas fez. Devemos reconhecer esse fato e então realizar a prática religiosa como nos for
necessário, com ritos que atendam a nossas necessidades e alimentem nossos espíritos com
aquilo de que necessitam, ao mesmo tempo que mantêm e fortalecem a interrelação entre o
humano e a esfera do sagrado.
A fim de atingirmos esses objetivos, devemos estudar os princípios gerais da
liturgia e do ritual cuja presença possa ser percebida em todo ritual eficiente e então, dentro da
moldura de uma boa estrutura litúrgica, seremos capazes de construir ritos que sejam
coerentes com nossas crenças e visões de mundo, incluindo, no processo de seu
desenvolvimento, muitos dos detalhes que sabemos estar presentes em alguns rituais célticos
antigos e que irão atender a nossas relações e necessidades espirituais modernas.
3 Tipos de Rituais
3.1 R. I (Ritos de Adoração e Homenagem) - 3.2 R. II (Ritos de Consagração) - 3.3 R. III
(Ritos de Benção)
Os rituais podem ser divididos em três grandes categorias:
R. I – Adoração e Homenagem
R. II – Consagração
R. III – Benção
... de acordo com a sua finalidade. Tudo que se relaciona a qualquer rito deve ser pensado em
função do seu objetivo.
3.1 R. I (Ritos de Adoração e Homenagem)
Têm como objetivo central estabelecer e manter a conexão com o Sagrado. Em
uma relação espiritual de trocas recíprocas, como proposto pelo Druidismo, cabe aos humanos
louvar, venerar e honrar os Deuses, reconhecer e honrar os Ancestrais de sangue e espirituais,
bem como os Espíritos Locais.
3.2 R. II (Ritos de Consagração)
São as cerimônias que têm por fim provocar ou reconhecer uma mudança
ontológica (de um estado do ser para outro). Quando um objeto é consagrado para uso ritual,
ele passa de um estado mundano ou profano para a esfera da sacralidade, onde recebe nova
identidade e passa a servir em outro contexto. A transformação do grão cru em alimento
cozido é uma ótima imagem para essa passagem e, por esse motivo, o fogo é uma presença
fundamental, sobretudo em Ritos de Consagração. Dentro dos Ritos de Consagração
encontram-se os de Sacralização, que comumente se confundem com aqueles. A sacralização
é o ato que dá um novo contexto a algo ou alguém que de algum modo relacionam-se ao
Sagrado, mas sem transferi-lo ao plano do Sagrado. Um exemplo é o casamento. O casamento
por si mesmo é apenas um contrato civil. Contudo, se os nubentes buscarem o
reconhecimento de outras pessoas e as bençãos dos Deuses para essa união, o casamento
muda de contexto. Passa da esfera puramente civil e mundana ao plano do Sagrado, embora
os recém-casados, em sua individualidade, não tenham sofrido mudança de condição. Os ritos
de passagem e os iniciáticos são na verdade ritos de Sacralização.
3.3 R. III (Ritos de Benção)
São semelhantes aos de Consagração. A diferença encontra-se na inexistência
de transformação ontológica. Uma benção dá a uma pessoa ou objeto um dom especial, mas
não muda o seu contexto. Um doente que receba uma benção de cura pode obter cura, sem
que isso implique em qualquer outra modificação de sua condição anterior. Ritos de benção
aplicam-se a pessoas, animais, objetos e a qualquer coisa que se possa investir com a força do
Sagrado.
O primeiro passo para compreender e construir qualquer rito é determinar o seu
objetivo básico.
5 Fazendo Oferendas
O tipo da oferenda e o modo de oferecer dependem da deidade e da ocasião.
Oferendas podem ser expostas, enterradas, queimadas, lançadas na água ou
“entregues” de outros modos.
Uma oferenda de alimentos (carne, leite e derivados, bebidas alcoólicas, grãos
e derivados) e/ou ervas e flores (frescas ou secas) pode ser exposta/enterrada, mas também é
agradável aos Imortais que pessoas com fome sejam alimentadas em seu nome. As lendas
mostram que as Tuatha Dé Danann valorizam anfitriões generosos e amaldiçoam
terrivelmente aqueles que se mostram mesquinhos. Eles regulam a abundância do solo, a
fertilidade do corpo e do espírito. Portanto, não convém ser mesquinho com eles. Você nunca
sabe quando um Imortal disfarçado vai cruzar o seu caminho.
Os Deuses gostam de celebrações, portanto é agradável reunir e divertir
pessoas em seu nome, oferecendo a energia dos participantes, sua vitalidade e felicidade por
estarem reunidos, como sacrifício.
Objetos significativos podem ser enterrados, depositados diretamente no ventre
escuro da Mãe.
Cartas, pedidos, tecidos, alimentos, bebidas alcoólicas podem ser lançados no
fogo ritual. O fogo é uma das portas para o Outro Mundo e ele próprio é um Deus, Aedus, o
Fogo Sacrificial de apetite inesgotável, que pode também ser o Dagda.
Objetos podem ser amarrados a árvores, lançados na água (fontes, rios, lagoas,
o mar) como oferendas a deidades relacionadas a esse elemento ou para que sua energia passe
diretamente ao Outro Mundo, pois massas de água são também um portal. Mas nada de sujar
os rios ou deixar que as praias fiquem imundas, isso é abominação, não importa o motivo.
Todas as oferendas, antes de ser entregues, devem morrer para este mundo.
Cartas e tecidos devem rasgados, objetos de metal (armas, joias e outros) devem ser
quebrados e/ou entortados, de modo a tornarem-se inúteis para nós. Isso permite que se
desprenda o espírito do objeto.
Mas não importa o que você dê ou como. Você não é aquilo que você possui
para dar e você não pode enganar os Deuses dando o que não é seu. A única oferenda
verdadeira (as outras não são falsas, mas são apenas simbólicas) é você mesmo, sua própria
força de vida.
Sempre que preparamos um ritual, este não vai começar com a reunião dos
participantes ou com o estabelecimento do círculo (para os que o fazem). Começa muito
antes, quando ele é decidido, quando os elementos são reunidos, quando são realizadas as
atividades tendentes à sua execução. Preparar o ato de oferecer já é uma parte da oferenda e
deve ser feito com reverência.
O bardo Taliesin disse: “Sou a reverência, que é um receptáculo aberto”. O que
é isso? Não é difícil: a reverência é a disposição espiritual que permite a abertura para a awen.
E não existe uma flor sagrada: todas o são. E as abelhas também. E até mesmo
o esterco que o jardineiro espalhou como adubo. E o próprio jardineiro. Todas as coisas são
inerentemente puras.