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  • A cidade do Porto e a sua regio teve sempre a louvvel tradio de evocar as gentes anascidas e que, de alguma forma, ao longo dos sculos, se notabilizaram em vrias latitudes,ou seja, no amplo universo da lngua portuguesa. Tal sucedeu, tambm, com o intelectual eidelogo poltico luso-brasileiro Toms Antnio Gonzaga.

    Ele foi filho de um cidado brasileiro, o magistradoJoo Bernardo Gonzaga e de uma senhora de ascendnciabritnica, de nome Tomsia Isabel Clark. Veio ao mundonos arredores da cidade do Porto, mais precisamente emMiragaia, em 11 de Agosto de 1744. Apenas com cerca deum ano de idade perdeu a sua me.

    Em resultados dos afazeres do pai, enfim, da suacolocao no Brasil, em 1751 j se encontrava na vivn-cia psquica prolongada da sua orfandade1 na regio dePernambuco, no Brasil. bem sabido, ainda, que eleestudou na Baa, no Colgio dos Jesutas (onde ter her-dado algum inconfomismo). Dez anos depois e certa-mente em funo de os seus progenitores pretenderem

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    * Membro da Academia Portuguesa da Histria e CEHLE. [email protected] Ainda no se encontra cabalmente estudada a perspectiva analtica de o poeta ter canalizado para a mulher amada aausncia da me que praticamente nunca chegou a ter em termos de aconchego e de afago.

    VA

    RIA

    Resumo: Associando-se ao 2. centenrio da morte do poeta Toms Antnio Gonzaga (nascido na cidadedo Porto em 1744 e falecido na Ilha de Moambique em 1810) o autor aborda, neste estudo, alguns dostrabalhos literrios desse rcade. Evoca, de igual modo a sua obra Marlia de Dirceu, o seu envolvimento,directo ou indirecto no movimento brasileiro da Inconfidncia Mineira, at sua consequente deportaopara a Ilha de Moambique.Palavras-chave: Arcadismo brasileiro; Marlia de Dirceu; Movimento da Inconfidncia Mineira; Ilha deMoambique.

    Abstract: For the commemorations of the bicentennial of the death of the poet, Toms Antnio Gonzaga(born in Porto in 1744 and died on the Island of Mozambique in 1810), the author analyses some of the poetsliterary works in this study. Particular focus is given to his work Marlia de Dirceu, his involvement, direct orindirect, in the Brazilian movement of the Inconfidncia Mineira (Minas Gerais Conspiracy), until hissubsequent deportation to the Island of Mozambique.Keywords: Brazilian Arcadism (18th-century neoclassical literary movement); Marlia de Dirceu; TheInconfidncia Mineira movement; Island of Mozambique.

    NO 2. CENTENRIO DA MORTEDO PORTUENSE TOMSANTNIO GONZAGA, ALGUNS PROBLEMAS HISTORIOGRFICOS SUSCITADOS PELA SUAOBRA (E ALGUMAS QUESTES NA REA DA HISTRIA DA EDIO)Manuel Cadafaz de Matos*

    Retrato de Toms Antnio Gonzaga(1744-1810).

  • que ele tivesse uma slida formao, em Direito, numa das mais prestigiadas univer-sidades portuguesas voltava a Portugal.

    A desdita de dois contemporneos de Gonzaga(da regio portuense) nos caminhos da expatriaoTal ocorria quando os portugueses no Brasil em particular os missionrios da Companhiade Jesus, que ali pretendiam propagar o Cristianismo vivam uma situao contrria aosseus interesses, ou seja, um manifesto perodo de perseguio. Veja-se, a ttulo de exemplo, oque sucedeu ento entre tantos outros com o missionrio jesuta Joo da Silva, naturalde Pousadela, no concelho de Vila da Feira, pertencente ento diocese do Porto2.

    Essa situao desfavorvel aos trabalhos dos jesutas em terras do Brasil foi tambmacompanhada, de algum modo distncia, por Gonzaga, na primeira fase dos seus estudosem Coimbra. Ele mantinha alguns contactos, decerto, com alguns intelectuais (e comalguns missionrios, tambm) que tinham sido embarcados do Brasil para Lisboa.

    Foi esse tambm o tempo em que Jos Rodriguesde Melo, portuense e poeta3 como Gonzaga no sabendons, embora, se tero havido contactos entre ambos tambm foi banido, da colectividade brasileira onde vivia,para o Rio de Janeiro e feito seguir, dali, para Lisboa. Seriaforado, pouco depois, a ser expatriado para Roma.

    Na capital italiana esse contemporneo deGonzaga ainda teve, afinal, a feliz ocasio de assistir edio em letra de forma, na oficina dos irmos Pucci-nellio, de uma sua obra potica, devidamente ilustrada,sob o ttulo De Rusticis Brasiliae Rebus Carminum,Libri IV. Neste trabalho mais tarde conhecidosobretudo pela referncia Gergicas Brasileiras oautor apresentava alguns poemas referentes planta-o dos arbustos da mandioca e do tabaco e, no final,um outro sobre o fabrico do acar no Brasil, dePrudncio do Amaral (aqui j em reedio)4.

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    2 Este evangelizador tinha entrado, em 1757, na diocese brasileira de Olinda (onde tambm se ocupava do cargo defarmacutico). Acabou por ser deportado, na perseguio geral de 1760, do Recife para Lisboa [e, pouco depois] paraItlia, acabando por falecer em Roma, em 12 de Fevereiro de 1768. Remete-se para Pe. Serafim Leite, Anotaes dispersassobre Catecismos braslicos na Histria da Companhia de Jesus no Brasil (vols. 8 e 9), organizao sistemtica e cronolgicapor M. C. M. (Revista Portuguesa de Histria do Livro, vol. 23. Lisboa: CEHLE, 2009, p. 181-231, em particular in p. 212-213).3 O portuense Jos Rodrigues de Melo tinha chegado Baa em 1739. Algum tempo depois j se ocupava da regncia decadeiras de Cincias Humanas nos colgios de Santos e Parangu. Acabaria tambm ele por ser deportado para Itlia, ondeveio a falecer em 1789.4 Remete-se para MORAES, Ruben Borba de Bibliographia Brasiliana. Rare Books about Brazil published from 1504 to1900 of the Colonial Period (edio revista e alargada). 2 vols. Los Angeles: Latin American Center Publications (UCLA), eRio de Janeiro: Livraria Kosmos Editora, 1983, p. 552-553; e Biblioteca Brasiliana, p. 234.

    Frontispcio da obra De Rusticis BrasiliaeRebus Carminum Libri IV (GergicasBrasileiras) de Jos Rodrigues de Melo(Roma, oficina dos Irmos Pucinellio, 1781).

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    Enquanto isso Toms Antnio Gonzaga, no Reino (ou seja, na Europa) parecia teruma sorte muito mais promissora. Cerca de 1761 inscrevia-se na Universidade deCoimbra, mais especificamente na Faculdade de Direito. Em 1768, concludos esses seusestudos, tinha o ttulo de bacharel em Leis. Tendo pretendido, ento, seguir a omagistrio, chegou a preparar (presumivelmente para efeitos de provas de ingresso comdocente) um Tratado de Direito Natural. Tal no veio, porm, a suceder.

    Devidamente habilitado ento, para o efeito, foi colocado, como Juiz de Fora, emBeja. A sua permanncia nessa cidade alentejana, ao fim de alguns anos, ter-lhe- trazidoalguma monotonia e pretendeu seguir novos caminhos (eventualmente chamado,tambm, pela ausncia da famlia).

    O perodo de activista de um iluminado quepretendeu lutar contra as ideias polticasvigentes: um idelogo entre o real e um mundo(pseudo-chileno) ficcionadoEm 1782 Toms Antnio Gonzaga j se encontrava de novo no Brasil. A veio a ser nomeadoOuvidor-geral, Corregedor e Provedor das fazendas dos defuntos, ausentes, capelas eresduos, na Comarca de Vila Rica (Ouro Preto). Para alm dos trabalhos que prestava comunidade, continuavam a germinar nele algumas das ideias de ruptura em relao aoregime colonial vigente que, anos mais tarde, lhe viriam a trazer gravosas consequncias.

    Esse seu primeiro perodo em Vila Rica, no Brasil, coincidiu certamente com o doestabelecimento de algumas amizades que viriam a perdurar na sua vida. Vejam-se oscasos concretos das estreitas e duradoiras relaes que manteve, com duas dessasentidades, na regio.

    A bibligrafa brasileira, Lygia da Fonseca Fernandes da Cunha5, aludindo obra doPadre Jos Joaquim Viegas de Meneses, em Vila Rica, explicita bem claramente o facto deele ser apontado como amigo de Tomz Antnio Gonzaga e Cludio Manuel da Costa,como tambm assinalou um dos Mestres de todos ns, o Prof. Rodrigues Lapa6. Alis jem Coimbra Gonzaga havia poetado (tendo vivido, a, entre alguns dos escritores maisilustres da sua gerao)7.

    No 2. centenrio da morte do portuense Toms Antnio Gonzaga, alguns problemas historiogrficos suscitados pela sua obra

    5 Uma raridade bibliogrfica: O Canto Encomistico de Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcellos impresso pelo Padre JosJoaquim Viegas de Menezes, em Vila rica, 1806. Edio fac-similar com Estudo Histrico Biobibliogrfico de Lygia da FonsecaFernandes da Cunha. Rio de Janeiro, So Paulo: Biblioteca Nacional e Grfica Brasileira, 1986. Agradecemos a aquisio destarara publicao ao nosso confrade brasileiro na Academia Portuguesa da Histria, Dr. Carlos Francisco Moura.6 Rodrigues Lapa teve presente, com efeito, no prefcio a Marlia de Dirceu (Clssicos, 3. edio. Lisboa, 1961, p. XII) queToms Antnio Gonzaga, Cludio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto, mais no eram do que trs irmos em Apolo,bons poetas os trs, formados em Coimbra, que deviam entender-se s mil maravilhas. E, com eles, estava o prprio poetaEugnio de Castro. Aludimos a esse facto num nosso estudo de h c. de vinte anos atrs, Leopoldo Battistini um pr-Rafaelita italiano na dimenso do seu classicismo Os anos de Coimbra (1887-1903), que, por deferncia do Prof. AnbalPinto de Castro, recentemente falecido, foi dado estampa na Revista da Biblioteca da Universidade de Coimbra, vol. 41.Coimbra, 1992, p. 178-191. 7 O nome arcdico de Gonzaga, como sabido, foi o de Dirceu.

  • Os amores do Ouvidor portuense pela jovemMarlia e os versos cristalizadores de umarelao interrompidaFoi precisamente em Vila Rica que Toms Antnio Gonzaga tambm veio a conhecer, e anutrir respeitveis sentimentos amorosos, por uma jovem, Maria Doroteia Joaquina deSeixas Brando, que rondava os 16 anos. Pesava ento para ele (ou no) ao contar c. de38 anos a grande diferena de idades? um facto incontornvel que ele pretendeu,desde muito cedo, junto da famlia da mesma, contrair o respectivo matrimnio.

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    8 H autores que sustentam que o pedido oficial de casamento, pelo Ouvidor (sobre o qual nos detemos), teve lugar j em1786. No deixamos de relevar aqui, no entanto, considerarmos haver um perodo demasiado lato entre esse pretenso anode 1786 (para tal pedido) e a data prevista de 1789 para tal matrimnio, que no se chegaria a consumar.9 CRISTVO, Fernando Cristvo Marlia de Direceu, de Toms Antnio Gonzaga. Lisboa, 1981.

    Aspecto da residncia onde, nesse ltimo quartel do sculo XVI residia com sua famlia a jovem Maria Doroteia Joaquinade Seixas Brando.

    Numa fase inicial, testemunham os seus bigrafos, essa unio parecia aos ascen-dentes da pretendida, como algo meramente impensvel. Nesse facto pesavam, entreoutros aspectos, tambm, o de ele ser um homem sem fortuna. A pouco e pouco, porm,foram prevalecendo os argumentos do Ouvidor portuense, que o seu matrimnio comessa donzela depois do seu pedido oficial nesse sentido8 chegou a estar marcado paraMaio de 1789.

    A veia potica do Ouvidor portuense, em Vila Rica, passou assim a encontrar econuma outra destinatria. Essa lrica de Dirceu estudada em rigor, para alm de Rodri-gues Lapa, por Fernando Cristvo9 passou, de um tempo activo a um tempo passivo,motivado pela distncia (esta por sua vez provocada pela poltica, como iremos ver umpouco adiante). O que certo , no mais profundo do poeta tambm se encontrava, dealgum modo, em ebulio, aquele intelectual que gostava de ver o seu Brasil mudar.

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    Um Brasil setecentista em mudana e a problemtica das Cartas Chilenas atribudas a Toms Antnio Gonzaga Para alm das suas funes oficiosas, Toms Antnio Gonzaga tal como viria a suceder,cerca de trs dcadas depois, com uma outro intelectual portugus,o cientista JooBonifcio de Andrade e Silva10 este iluminado j se encontrava marcado pelas ideiaseuropeias de mudana, que havia trazido de uma Europa j em ebulio.

    O discurso do poder, tal como se perspectiva na aco dos quadros portugueses queali representavam o governo sediado em Lisboa, encontrou nele a postura de um lutadorcontra o status quo que, na sua ptica, se impunha ali alterar.

    Nesse perodo setecentista, na segunda metade da dcada de oitenta, um dos primeirospontos que atestam da viragem de Toms Antnio Gonzaga por um Brasil, colonial embora,mas diferente, foi o de uma compilao de epstolas, ou seja, as Cartas Chilenas. RodriguesLapa estima que essa colectnea de textos tenha sido redigida entre fins de 1786 e comeos de1787. A contrabalanar com esse parecer, Afonso Pena Jnior sustenta que tal ter sucedido jentre 11 de Julho de 1788 e 23 de Maio de 1789 (aquele mestre portugus considerou aqueleperodo como tendo sido dedicado pelo autor annimo reviso e emenda do texto11).

    Tratou-se de uma colectnea de 12 cartas, subscritas pelo nome de Critilo (alis T. A. Gonzaga), que se pretendia residindo em Santiago do Chile. Nessas epstolas, empoesia satrica que circularam em Vila Rica, efectivamente, um pouco antes domovimento da Inconfidncia Mineira, de 1789 eram denunciados os desmandos dogovernador chileno, [alis do Brasil], Fanfarro Minsio, D. Lus da Cunha e Meneses.Essas epstolas foram endereadas, precisamente, ao j referido Cludio Manuel da Costa,pretensamente residente em Madrid. Tratava-se, no fundo, de um amplo poema que seapresentava como uma prova cabal de oposio ao regime colonial vigente.

    A principal desdita na vida de Toms Antnio Gonzaga mas que eventualmenteter pesado na sua imortalidade, enquanto sujeito, e na da sua obra foi ter associado oseu nome aos revoltosos da designada por Inconfidncia Mineira. Tratou-se, como sabido, da primeira movimentao, ocorrida em Minas Gerais, em 1789, associada a umapretensa independncia do Brasil12.

    Nessa aco poltica estiveram implicados, entre outros, para alm de Toms AntnioGonzaga, os poetas Cludio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto. Qualquer deles veio apagar bem caro, a tal respeito, as suas frontalidade e coragem, pelo seu amor ao Brasil.

    No 2. centenrio da morte do portuense Toms Antnio Gonzaga, alguns problemas historiogrficos suscitados pela sua obra

    10 Registe-se que Joo Bonifcio de Andrade e Silva neste perodo correspondente aos principais sucedneos daRevoluo Francesa havia acompanhado em Paris (onde foi aluno de Lavoisier) alguns desses acontecimentos emovimentos populares que viriam a transformar decisivamente a histria do mundo setencentista e as relaes de poderentre e no seio das as naes. Tendo J. B. de Andrade e Silva regressado em 1800 de Frana a Portugal, s em 1819, porm,viria a partir para o Brasil, onde principia a a acompanhar e a incentivar o movimento anti-esclavagista, que haviaencontrado grande inplemento nos idelogos da Revoluo. Veja-se, no essencial, COUTINHO, Vicente de Sousa Dirioda Revoluo Francesa. Leitura diplomtica, enquadramento histrico-cultural e notas de Manuel Cadafaz de Matos.Lisboa: Edies Tvola Redonda, 1990, em particular p. 299.11 L. S. R. Cartas Chilenas. In Dicionrio de Literatura Portuguesa, Brasileira, Galega, Estilsitca Literria. Porto: Figueiri-nhas, 1989, vol. I (A-E), p. 153.12 Esse movimento levaria condenao morte do Alferes Joaquim Xavier, mais conhecido como Tiradentes.

  • Dos crceres da ilha das Cobras, no Brasil, a umacatarse por via da poticaNo se deve desconhecer que Toms Antnio Gonzaga, ao ser detido pela sua implicaonesse movimento, no mesmo ano, veio a pagar bem caro esse seu sentido transgressor ede coragem para a poca. Ele foi um dos que, por ordens do Governo, foi transportadopara os crceres da Ilha das Cobras (Rio de Janeiro).

    Poder-se- imaginar as condies em que ele ter vivido aprisionado nessa llha.Restava-lhe a, na ausncia da liberdade, a catarse pelo amor, mesmo que algo platnicoe distanciado, da mulher que, a partir dessa data, afastaria fisicamente, de uma formairremedivel, da sua prpria vida (depois de romper o compromisso de noivado). Osbigrafos que se tm encarregue do seu exemplo de vida tm escrito que, nessa priso, eleter redigido em evocao dessa mulher assim amada certamente que antes de sedecidir pela anulao dos votos de casamanto com ela uma boa parte dos poemas quevieram posteriormente a ser editados, em 1792, em Lisboa, na Tipografia Nunesiana, sobo ttulo Marlia de Dirceo13.

    Ter havido quanto a Portugal uma relao (epistolar) directa do autor desta obra,contendo apenas 33 liras, sobre esssa edio, junto da Tipografia Nunesiana, ou eventual-mente por um mensageiro-intermedirio14? Ao certo no o sabemos.

    Quanto ao seu contedo, mais especificamente, Marlia surge, na primeira parte,como uma pastora idealizada Na segunda parte, est patente, sobretudo, a vivncia dasideias no mbito do afastamento dessa sua amada, em resultado do seu encarceramento.

    O grande problema que se levanta hoje se a ento prometida desposada do poeta,Maria Doroteia Joaquina de Seixas, ter tido a recepo por parte de eventual mensageiro de algumas das poesias de Gonzaga, a ela destinadas, remetidas desde o Rio de Janeiro,ainda na fase manuscrita (ou se, eventualmente, s veio a conhecer j a primeira edio de1792). Foi posta ainda a circular, por alguma bibliografia disponvel em torno destemalogrado escritor, que ter sido a prpria jovem prometida, Maria Doroteia Joaquina deSeixas Brando, quem ter escrito pessoalmente uma carta Rainha de Portugal, em 1792,em que solicitava a superior intercepo rgia no sentido de comutao da pena.

    Talvez por alguma popularidade que j andava associada ao nome do poeta,inclusivamente em Portugal, esse pedido foi ouvido. Gonzaga acabou por ser sentenciadoa uma deportao para a Ilha de Moambique, no cumprimento de uma pena efectiva dedez anos. Era de facto uma sentena pesada mas, mais do que isso, era o desfazer de umapretensa unio amorosa que ocorria.

    Tendo deixado o Brasil no primeiro trimestre de 1792, como sentenciado, na nauNossa Senhora da Conceio e Princesa de Portugal, chegou ilha de Moambique, hoje

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    13 Remetemos para a edio crtica ainda hoje vista como inovadora em muitos dos seus aspectos das ObrasCompletas de Toms Antnio Gonzaga, da responsabilidade e com o prefcio de Rodrigues Lapa, editadas em So Paulo,1942 (algumas das matrias apresentadas nesta obra foram, dcadas depois, objecto de actualizao por parte de AdeltoGonalves). Integra-se, nessa obra daquele prestigiado universitrio portugus, toda a lrica do poeta, as Cartas Chilenase, ainda, o estudo a que atrs aludimos, Tratado do Direito Natural. Poder-se- observar ainda, com proveito, acerca destafase da vida do poeta, a obra de CRUZ, Antnio T. A. Gonzaga, Algumas notas biogrficas inditas. Porto, 1954.14 H quem sustente que o empenho nessa edio lisboeta ter decorrido por parte de alguns elementos da Maonaria.

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    um dado incontestvel, em 31 de Julho de 1792. No muito tempo depois e, at, emresultado da sua formao jurdica aquele que anteriormente fora Ouvidor no Brasil,acabou por ser nomeado ali, por um Outro Ouvidor, Francisco Antnio Tavares de Siqueira,Promotor de defuntos e ausentes. Em tais funes se ocupor, decerto, uns bons paresde anos (nessa terra onde, afinal, contrau a doena de que mais tarde viria a falecer).

    No 2. centenrio da morte do portuense Toms Antnio Gonzaga, alguns problemas historiogrficos suscitados pela sua obra

    Mapa da regio leste de Moambique continental e Ilha de Moambique, segundo uma carta gravada constante da obrade Kasper von Baerle (1584-1568), Rerum octennium in Brasilia et alibi gestarum, sub Praefectura Illustrissimi Comitis, I.Mauriti Nassaviae & C. Comitis, Historia Editio secundo Clivis: ex Officina Tobiae Gilberling, 1660. Foi nesta ilha, afinal,que ele viveu e onde veio a ser sepultado (no convento de S. Domingos), presumivelmente em Fevereiro de 1810.

    Do amor no plano platnico e das ideias ao amorgonzaguiano no terreno do realUm olhar objectivo no plano das ideias literrias e da vivncia de uma determinadarealidade local brasileira da poca permite hoje ao historiador das ideias observar, maisdistanciadamente, a vivncia amorosa do poeta portuense e Ouvidor de Minas Gerais. Oque ele ter sentido por Marlia, na nossa modesta opinio, ter sido a vivncia amorosanum plano no muito afastado do platonismo.

    Ele cristalizou a imagem de uma mulher, inacessvel e no prxima, que era bela,essencialmente no tocante retrica literria. No chegaram at ns os traos

  • fisionmicos dessa sua Marlia. O que sabemos que ele na sua lrica imortalizou,conjugadamente, a beleza e a juventude de uma adolescente de 16 anos, mas no a mulherreal, no seu desejo, na sua carnalidade, nos seus objectivos de vida.

    A Marlia, quanto a ns, no existiu em carne, mas sim em versos. Onde o Ouvidoragrilhoado foi encontrar a mulher, real e na sua carnalidade, foi em Moambique. A quese lhe ofereceu, uma outra esperana, a multiplicao do ser, mas tambm a sepultura.

    Alguns dos traos mais marcantes tambm da sua vida em Moambique foramobjecto dos estudos do investigador brasileiro Adelto Gonalves, matria essa a que votou(sob a direco de Massaud Moiss15) a sua dissertao de Doutoramento apresentada Universidade de So Paulo. Nesse rigoroso trabalho ao que escreveu o diplomataAlberto da Costa e Silva na respectiva edio Adelto Gonalves amplia, completa erectifica as pginas iluminadoras que escreveu Rodrigues Lapa16.

    Algum tempo depois de chegar a Moambique, Toms Antnio Gonzaga conheceue caiu de amores por uma tal Juliana de Sousa Mascarenhas. Esta senhora, segundo veio aapurar Adelto Gonalves, nem to pouco foi filha de um prspero comerciante de escra-vos. Nem o prprio poeta, afinal, comerciou escravos nem implementou o desenvolvi-mento desse mesmo tipo de trfico humano.

    O poeta acabou por casar com D. Juliana Gonzaga, em 9 de Maio de 1793 sendo provvelque ainda nesse ano tenha nascido uma filha do casal, de nome Ana Mascarenhas Gonzaga.Pouco tempo depois, esta mulher deu-lhe um novo filho, Alexandre Mascarenhas Gonzaga.

    Os bigrafos do poeta tm estabelecido que essa mulher era, naturalmente, umapessoa de muitos dotes. Ela era, porm, analfabeta, pois, quando casou, assinou emcruz a certido de casamento (documento este que se encontra na Biblioteca Nacional doRio de Janeiro, seco de manuscritos, 1-46, 14, 10, certido tirada na Ilha de Moambi-que em 17 de Abril de 1850).

    Acontece, porm, que esta D. Juliana j no representa, ento, para Toms AntnioGonzaga a mulher sonhada no plano das ideias de Plato, e da posicionada no pinculoda distncia amorosa. Ela apresenta-se, antes, como a mulher real, mais no concreto(comparativamente com a anterior pastora das suas letras braslicas, desejada na carne, nasua carnalidade enfim. Com esta D. Juliana, ter vivido durante pouco mais de dezena emeia de anos, at morte.

    No lcito, como sempre temos sustentado, que com o amor a Juliana ele tenhaatraioado (ou negado) o amor a Marlia. Essa questo, hoje, nem se pe. O que sucedeu,a nosso ver, que o poeta arcdico e dos sonhos encontrou na vida objectiva e narealidade moambicana, o porto de abrigo que lhe faltava para que se possa hoje afirmar(na multiplicabilidade da sua carne e dos seus afectos): cumpriu-se o homem.

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    15 Massaud Moiss, alis, j votou, tambm, esclarecedoras consideraes ao perfil biogrfico de Toms Antnio Gonzaga.Remete-se, a propsito, para a obra desse autor, Histria da Literatura Brasileira: das Origens ao Romantismo, emparticular para a seco Arcadismo (1768-1836), p. 242-249 (a obra est disponvel, pela Cultrix, em 3 vols.).16 GONALVES, Adelto Gonzaga, um poeta do Iluminismo. Prefcio de Alberto da Costa e Silva. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1999 (Prmio Ivan Lins de Ensaios da Unio Brasileira de Escritores e Academia Carioca de Letras). Esta inovadoradissertao, defendida em 1997 naquela universidade, foi preparada entre 1993 e 1997, com investigaes tambm emPortugal (Lisboa, Coimbra, Porto e vora).

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    O falecimento de Toms Antnio Gonzaga pode situar-se hoje, com algumaseguranaa (sobretudo depois das pesquisas de Adelto Gonalves), entre 25 de Janeiro e1 de Fevereiro de 181017. Seguindo uma prtica regular na regio, naquela poca esobretudo para homens que mais se destacavam, o seu corpo foi sepultado nessa ilha, noConvento quinhentista de S. Domingos18. Algumas dcadas depois, por vicissitudesvrias, com a destruio da igreja19 onde jazia, as suas cinzas foram feitas desaparecer.

    Dois problemas em torno da Histria da EdioQuer no Rio de Janeiro, sede da Corte Rgia, quer em Lisboa, a popularidade de Gonzaga,a partir de 1792-1793, no mais deixou de crescer. Em 1792, como se viu atrs, tinha sidolanada a primeira parte das liras de Gonzaga. J em 1799, seria hipoteticamente lanadaa II Parte dessa sua produo potica. Este problema tem feito levantar alguns problemasde natureza historiogrfica.

    Como historiador da Edio, podemos apenas registaraqui que, para certos autores, a publicao dessa segundaparte dos seus poemas ocorreu, em Lisboa, na tipografiaLacerdina, em 1811; para outros, ocorreu na ImpressoRgia, em 1812. O Prof. Rodrigues Lapa aps cotejo dostextos hoje disponveis sustenta que mais verosmil asegunda hiptese. Na biblioteca pertencente ao criterioso eexigente bibligrafo brasileiro Jos Mindlin, existe ararssima edio da obra de Gonzaga, Marlia de Dirceo, queele, no seu catlogo, afirma ter (ainda) sado no Rio deJaneiro, na Impresso Rgia, em 181020.

    No distaro muitos meses entre a morte deste poetaem Moambique, em Fevereiro de 1810, vtima de umadoena prolongada, e a referida edio da Impresso Rgia,de que Jos Mindlin conseguiu adquirir um valioso exemplar.

    Desde ento, os mais variados estudos e interpretaes para alm das prprias edies foram votados obra de

    No 2. centenrio da morte do portuense Toms Antnio Gonzaga, alguns problemas historiogrficos suscitados pela sua obra

    17 H um documento que prova a posse do sucessor de Gonzaga no cargo de juz da Alfandega, o qual datado de 2 deFevereiro desse ano de 1810 (AHU, Moambique, Cdice 1378, fl. 51-51v., daquela data). Agradecemos esta informao, apar de outras informaes pertinentes ao Prof. Adelto Gonalves. Regista-se, ainda, que de alguns dias antes daquela data,mais precisamente de 25 de Janeiro daquele ano, foi o ltimo documento localizado, encaminhado ao juiz da alfndega,Toms Antnio Gonzaga, pelo Governador.18 GONALVES, Adelto Gonzaga, um poeta no desterro. Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras. Ano XVI,vol. 63 (Abril-Maio-Junho de 2010), p. 175-180.19 Sabe-se que este convento de S. Domingos tinha sido edificado na 2.. metade do sculo XVI. Em 1607, ao que apurouAdelto Gonalves (op. cit., 2010), foi destrudo durante um cerco, pelos holandeses, vindo a ser reconstrudo ainda nasegunda metade do perodo seiscentista. Quatro dcadas depois da morte de Toms Antnio Gonzaga, mais precisamenteem 1852, as suas instalaes, em elevado estado de degradao, acabaram por ser totalmente destrudas, o que arrastariaa perda irremedivel do tmulo do malogrado poeta luso-brasileiro.20 MINDLIN, Jos Uma Vida Entre Livros Reencontros com o tempo. S. Paulo: Edusp/ Companhia das Letras, 1998, p. 52.

    Frontispcio da edio de Marliade Dirceo de Toms AntnioGonzaga, 1810.

  • Toms Antnio Gonzaga. Uma das edies que retemos daporventura sua obra mais conhecida, Marlia de Dirceo, aque ocorreu tambm em Lisboa, em 1824, na Tipografia deJ. F. M. de Campos.

    Encontra-se a obra deste portuense j hoje suficiente-mente estudada? No essa, pelo menos, a nossa opinio. s jovens geraes de investigadores inclusivamente dehistoriadores luso-brasileiros das ideias que tal tarefa, detornar redivivo este poeta21, continuar a impor-se.

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    21 Toms Antnio Gonzaga hoje o patrono da cadeira 37 da Academia Brasileira das Letras.

    Frontispcio da edio pstuma deMarlia de Dirceo de TomsAntnio Gonzaga, de Lisboa, 1824.