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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2015
ISSN: 2358-5269 Ano II - Nº 1 - Maio de 2015
DISTINÇÃO, SECULARIZAÇÃO E O VESTIDO DE LUTO NO RETRATO FOTOGRÁFICO BRASILEIRO DO SÉCULO XIX
Distinction, Secularization and the Mourning Dress in Brazilian’s Photo Portrait
on Nineteenth century
Márcia Carnaval de Oliveira1 (Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais – UFRJ) [email protected]
Resumo: Trata da visualidade do vestido cerimonial de luto no retrato fotográfico brasileiro no século XIX buscando elementos para compreender sua função e usabilidade. Pretende-se questionar seu sentido diante do processo de secularização que atingia as camadas urbanas no Rio de Janeiro em contraponto às exigências da etiqueta praticadas na corte do Segundo Reinado. Palavras-chave: Vestido de luto; distinção; secularização. Abstract: Étude de l’habit cérémonial de deuil dans les portraits photographiques brésiliens du XIXème siècle, pour comprendre leur fonction et leur rôle. L'objectif est d’interroger le processus de sécularisation qui a affecté certains groupes urbains à Rio de Janeiro en opposition aux exigences de l'étiquette pratiquée à la Cour du Second Règne (1840-1889). Mots-clés: Robe de deuil; distinction; sécularisation.
Elizabeth Wilson, na introdução do livro Enfeitada de sonhos, descreve o sentimento de
estranheza causado pela observação das formas vestimentares exibidas em museus, dadas à mera
contemplação ou à arguta análise. O fato dos trajes − como demais objetos da cultura material − só
informarem parcialmente sobre aspectos da vida cotidiana, de seus produtores e proprietários, decorre,
segundo a autora, do fato das roupas ligarem um corpo biológico a um ser social, ou seja, um corpo
privado a um corpo público. Vestido e visível, o corpo humano inscreve-se estética e simbolicamente no
tempo e no espaço e aponta frequentemente para o desejo de transcendência. A estranheza
compartilhada e descrita por Wilson2 pode ser ainda maior se tais formas corresponderem ao vestuário
de luto e tudo que esteja ligado aos eventos da morte familiar ou pública. Estranheza dupla,
possivelmente, pois incide e reflete um ritual cada vez mais secularizado − quase invisível na atualidade
− e porque seus criadores e usuários, preocupados com uma tradição ritualística fúnebre, estejam eles,
também, todos mortos.
1 Designer gráfico mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAV-EBA/UFRJ) é doutoranda pelo mesmo Programa. Integra o IMAGINATA, grupo de Estudos de Filosofia da Imagem, Filosofia da Arte e Estética Contemporânea. Endereço para correspondência: [email protected] 2 A mesma sensação é descrita por D. ROCHE na introdução de A cultura das aparências (2007, p. 19).
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O vestido cerimonial de luto − cujos modelos, cores, tecidos e demais materiais da indumentária
feminina − acompanhou rituais públicos e privados destacando, por sua visibilidade, um acontecimento
trágico da vida social ou familiar. Em pleno século XXI, quando a cor preta se consagra como uma das
preferidas pelos criadores da alta costura, torna-se quase impossível, pela indistinção, reconhecer seu
significado e o papel que desempenhou historicamente nos rituais da morte, ou seja, como o elemento
mais destacado do vestuário feminino, expressão da condição social de enlutadas, viúvas e órfãs
principalmente. Ambíguo, servindo frequentemente para a morte de si e do outro, o vestido preto também
amortalhou viúvas e mulheres casadas, como a rainha D. Maria I, em 1816, cobrindo toda a corte no
Brasil e em Portugal de luto rigoroso3, num espetáculo transatlântico e inaugural na América Latina pela
morte de um monarca europeu. Massificado e facultativo nos rituais de morte da atualidade o vestido
preto é, definitivamente, um consenso entre produtores e usuárias, embora seu lugar e significados na
história cultural sejam, no mínimo, pouco ensaiados. Transformado em objeto de estudo, guardado em
museus ou expostos em mostras badaladas,4 paradoxalmente, parece invisível para os leitores das
fotografias da fase clássica.5
O presente artigo busca nas fotografias ‘documentais’,6 divulgadas em publicações de acervos
históricos (impressos e analisados) – mais especificamente no retrato fotográfico da elite brasileira em
meados do século XIX − destacar o que parece ter se tornado invisível aos leitores da imagem fotográfica
oitocentista na atualidade, ou seja, o vestuário de luto, buscando elementos para compreender sua
função e usabilidade. Pretende-se questionar o seu sentido diante do forte processo de secularização
que atingia as camadas urbanas do Rio de Janeiro em contraponto às exigências da etiqueta praticadas
na corte. Vestir corretamente o luto em meados do século XIX, mais que uma obrigação legal, era parte
da etiqueta cortesã, de uma moral de classe, qual seja, da nobreza e da elite brasileiras. É Norbert Elias7
que ressalta o sentido dos códigos de etiqueta como instrumento de dominação da sociedade da corte,
cujos gestos, rituais, indumentária etc. seriam plenos de simbolismo e capazes, portanto, de garantir
3 Em oposição ao “luto aliviado”, ou meio luto, como se denominará a segunda fase do luto no decorrer do século XIX. 4 “Death Becomes Her, a century of mourning attire”, exposição do Costume Institute − Metropolitan Museum of Art, de 21 de outubro de 2014 a 1 de fevereiro de 2015, por exemplo. Explora o desenvolvimento estético e as implicações culturais do vestido de luto do século XIX até os anos iniciais do XX. In: < http://www.metmuseum.org/ exhibitions/listings/2014/death-becomes-her\ > Acesso em 20 dez. 2014. 5 A fase clássica da fotografia estende-se de 1840 a 1910. 6 Não sendo meramente um documento a fotografia pode, todavia, portar um valor documental, mas será sempre uma atualização, um evento, em que um corpo ou um rosto será captado em sua permanente transformação. Como destacado por Andre ROUILLÉ: “[...] a fotografia não representa exatamente uma coisa preexistente, ela produz uma imagem no decorrer de um processo que coloca a coisa em contato e em variações com outros elementos materiais e imateriais [...], isso transfere a fotografia do domínio das realizações para o das atualizações e do domínio das substâncias para os eventos.” (2009, p. 73) [Frisou-se] 7 ELIAS, Norberto. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Trad.: Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
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certa estabilidade ao poder constituído. No decorrer do século XIX é a imprensa que passa a ter o papel
de divulgação dos decretos e das aparências como se pode ler na notícia sobre a morte da meia-irmã
de Pedro II: “A Corte está de luto acompanhando S. M. em tão justa dor.” Informando o decreto de oito
dias de nojo, continua:8
[...] Pelas luzidas e valiosas sedas prestes a talharem-se em elegantes vestidos para as solenidades da nossa semana santa, roupas de dó tomarão o seu logar; e o seu crepe negro como que envolveu no fumo da tristura os brunidos toucadores dos perfumados camarins das nossas primeiras modistas. Os vestidos de lapim preto, as berthas de vidrilho, as caudas e os enfeites de veludo e vidrilho eis tudo quanto de novo tivemos. (JORNAL DAS SENHORAS, Tomo III, mar. 1853, p. 90)
No Brasil, soma-se à etiqueta cortesã importada para os trópicos a defesa da tradição pela
corrente ultramontanista da Igreja Católica. Buscar uma aproximação do sentido simbólico da
indumentária de luto, presente na forma fotográfica, é o que se persegue nesse trabalho. Elegeu-se
prioritariamente o livro Retratos Modernos, do Arquivo Nacional, organizado por Cláudia B. Heynemann
e Maria do Carmo T. Rainho, que compreende imagens das coleções “Fotografias Avulsas” e “Arquivos
privados familiares” sob a guarda da instituição.
Modernos, mas nem tanto
Impresso com rigor, Retratos Modernos teve como proposta editorial a organização fotográfica
por autoria comportando, além dos retratos, paisagens e ensaios. Na introdução destaca o sentido de
“sincronicidade” entre a criação do então “Arquivo Público do Império” e a invenção da fotografia
coerentes com uma modernidade reivindicada pelos centros urbanos de todo mundo. As autores
quiseram lembrar que a fotografia que surgia em meados do século XIX ligava-se imediatamente aos
fenômenos mais destacados da sociedade industrial − o crescimento das metrópoles, o desenvolvimento
de uma economia de mercado, a revolução nas comunicações, a democracia, as mudanças na
percepção do tempo e espaço −, atualizando seus valores e tornando-se por essa razão a imagem mais
coerente para produzir as visibilidades daqueles novos tempos. O Brasil, cuja modernidade chegava
tímida e amparada por uma sociedade escravista, monárquica e profundamente religiosa, comportava
também uma elite que desejava perpetuar a própria imagem, ainda que o modelo inicial fosse uma
nobreza portuguesa descolada das cortes européias. Fruto da época moderna era de se esperar que a
8 Manteve-se a grafia original nas citações por todo o artigo.
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imagem fotográfica fosse capaz de ser moderna como o seu tempo fundador. Com efeito, a modernidade
da fotografia não nasceu pronta, instalada nos sais de prata. Mesmo criada para produzir visibilidades
adaptadas a nova época, cercada por valores modernos em expansão e velocidade, foi apropriada por
valores religiosos, obscurantistas e antimodernos. O retrato fotográfico, frequentemente, foi uma das
expressões de tal contradição impondo normas gestuais, indumentárias distintas, cenários e atributos
específicos, ângulos de tomada valorativos, performances pictóricas etc. que renovaram a vida privada
e acabaram por definir um novo código perceptivo a um número cada vez maior de pessoas.
A pose e a roupa que a valoriza se consagravam mesmo a partir da década de 1860, quando o
desenvolvimento da fotografia já permitia alguma ‘naturalidade’: persistia-se na sobridade, na
formalidade das expressões: “[...] no jogo social que caracteriza o retrato fotográfico produzido no século
XIX, posar passa então a representar a fabricação de um corpo” (TURAZZI, 1995, p. 14). Esse corpo
dado à visão pela imagem fotográfica e amparado pelo rigor do vestuário de luto nos retratos modernos
é construído do início ao fim, pela sociedade, pelo fotógrafo e pelos códigos inerentes à imagem
fotográfica nascente e, acrescenta-se, pela moral cristã e a etiqueta cortesã.
No conjunto amplo de poses em Retratos Modernos foram destacados quatro exemplos da
nobreza tropical fotografada pelos mais prestigiados profissionais em exercício na capital do Império
(Figuras 1 a 4), todos de luto, como se verificará, embora essa forma vestimentar tenha passado
indiferente ou invisível nas análises da publicação.
Figuras 1: Maria Amália de Mendonça Corte Real, Viscondessa da Gávea, Rio de Janeiro [1865-1872]. Pacheco. Carte de visite (Retratos Modernos, 2005, p. 116). Figura 2: Manuel Antônio da Fonseca Costa, Marquês da Gávea. Rio de Janeiro [1864-1865] Pacheco. Carte de visite (Idem, p. 120); Figura 3: Maria Amanda de Paranaguá Doria, Baronesa de Loreto. Rio de Janeiro [1866-1876]. J. Insley Pacheco. Carte de visite (Idem, p. 115); Figura 4: Ana Luisa Viana, Marquesa de Caxias [1865-1875]. Carneiro & Gaspar (Idem, p. 60).
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Pelos estúdios de Joaquim José Insley Pacheco (1830-1912), “Retratista da Augusta Casa
Imperial”,9 a partir de 1855 passariam inúmeras personalidades a começar pela própria família de Pedro
II. São dele os retratos da viscondessa e do marquês, com a chancela “Pacheco, Phot.” e da Baronesa
de Loreno, posterior, com a forma de “J. Insley Pacheco”. A mudança na vinheta, carimbada ou impressa
no cartão – suporte em papel que sustentava o positivo fotográfico nos formatos carte de visite e carte
cabinet,10 funcionando também como passepartout − ocorria entre os profissionais e, com Insley Pacheco
não foi diferente. Essa dimensão do retrato fotográfico auxilia a datação das imagens não especificadas
nos documentos iconográficos. Por comparação com retratos datados verificou-se que a vinheta
“Pacheco Phot.” foi utilizada entre os anos de 1860 e 1865. Em atividade por mais de 50 anos, dividindo-
se entre as atividades de fotógrafo, pintor e empresário, Pacheco foi personagem importante da vida
cultural da cidade. Ainda que não se possa dar como certa sua autoria é bastante provável que Maria
Amália de Mendonça Corte Real – nome de solteira − e seu esposo, Manuel Antônio da Fonseca Costa
estivessem, entre 1860 e 1865, vestindo luto pesado no estúdio de Insley Pacheco, na rua do Ouvidor,
endereço nobre da cidade, frequentado pela elite carioca e brasileira.
Circulação e Distinção
Os retratos fotográficos não pertenceram apenas ao espaço privado e sua função não foi
unicamente alimentar os álbuns familiares. Serviram principalmente como forma de apresentação social,
como objeto de troca entre a parentela e amigos, remetidos apensos às correspondências e foi dessa
maneira que acabaram atingindo uma ampla circulação social. Como assinalado por J. Crary, a fotografia
foi responsável pela “remodelação de todo um território no qual sinais e imagens, efetivamente apartados
de um referente, circulam e proliferam” (apud GUNNING, 2004, p. 35-36). Na prática, pode-se afirmar
analogamente que o corpo e suas formas vestimentares foram transformados em objeto transportável e
adaptável aos sistemas de circulação na modernidade, num processo que começou no Renascimento e
9 Correio Mercantil, e Instructivo, Político, Universal. Ano XVII, n. 18, 18 jan. 1860, p. 4. 10 Formatos para o suporte de fotografia em papel albuminado. Os carte de visite tinham 9,5 x 6 cm e eram colados em papel cartonado de 10x6,5 cm. Inicialmente exibiam simplesmente um nome gravado ou caligrafado na frente, posteriormente tornaram-se mais sofisticados incluindo a chancela impressa do estúdio ou o nome do fotógrafo na frente ou no verso. Criado e patenteado pelo fotógrafo francês André-Adolphe-Eugène Disdéri (1819-1889) em 1854, chegaram à Inglaterra em 1857, nos EUA em 1859 e na década de 1860 a cartomania já era uma moda internacionalizada. Os carte cabinet foram introduzidos em 1863 por Windsor & Bridge, em Londres e tinham um tamanho maior que os cartes de visite, ou seja, a fotografia media 9,5 x 14 cm e montados em papel cartão de 11 x 16,5 cm. As fotografias podiam ser sobre papel albuminado ou de gelatina e prata. Alcançaram maior popularidade entre 1870 e 1895, mas foram produzidos até 1920. Os carte cabinet, conhecidos também como carte boudoir − no Brasil, inclusive −, faziam referência às salas íntimas usadas pelas mulheres nas residências de classes média e alta no século XIX. Há diferentes versões de cartes cabinet, notadamente na tipologia, cores e gramaturas dos papéis empregados como suporte das fotografias.
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encontrou na fotografia seu ápice. Gilda M. SOUZA destaca a contribuição da gravura de imprensa e a
invenção da fotografia para o estudo e circulação do traje, realçando na última sua característica indicial.
Segundo a autora, a fotografia é capaz de “reflet[ir] a maneira por que o mesmo [o traje] foi adotado e
qual o aspecto que assumia sobre o corpo do portador” (1987, p. 24). Citando pintores, litógrafos e
desenhistas, esqueceu-se dos fotógrafos, deixando transparecer que a imagem mecânica não prescinde
de códigos que lhes são próprios e que nem sempre as roupas que vestiam as pessoas fotografadas
eram propriedade dos retratados. O fotógrafo era organizador tanto dos atributos simbólicos que
definiriam um novo corpo ao sujeito, como dos tempos, cenários, objetos, de todo o entorno, enfim. Com
a intervenção do fotógrafo e todos os atributos emprestados ao evento o corpo era construído por
esquemas estéticos ou prescrições icônicas, mais ou menos valorizadas conforme o período. Longe de
ser um “documento” simples e como os demais suportes da imagem, o traje fotografado também “tinha
um papel a desempenhar na perspectiva de uma dramatização dos gestos e do corpo; era às vezes
usada para embasar uma ideia, que só pode ser compreendida pela referência externa” (ROCHE, 2007,
p. 25), ou seja, no contexto social do seu uso. Contexto complexo, posto que era a elite urbana e rural
prioritariamente a classe que se fazia fotografar.
Se o retrato “satisfaz o desejo de igualdade” (CORBAIN, 2009, p. 395) − lembrando que Gabriel
de Tarde (1843-1904) foi o pioneiro a constatar que a imitação promove o desejo de igualdade − pode-
se afirmar que, ambas, tanto a moda quanto o retrato o fazem. Moda e retrato promovem a
individualidade e a coesão ao grupo, “reivindicam o exclusivo e seguem o rebanho” (WILSON, 1990, p.
17). Assim, da imagem fotográfica − como correlatamente das formas vestimentares − pode-se extrair
valores, comportamentos e sentimentalidades, capazes de fornecer indicações sobre o habitus do grupo
em questão. As opções pelas formas de representação, a escolha do vestuário, o estúdio, os objetos no
entorno etc. fornecem elementos para entender a construção de pertencimento, seja no interior da
família, seja no seio da elite e, com relação ao luto, a persistência de certa moral religiosa.
Em 1840, o Correio Official,11 órgão do Ministério do Império, descrevia as potencialidades do
daguerreotipo e anexava uma notícia de São Paulo, sobre a polygraphia e a “photographia”, invenção do
francês Hercules Florence. Duas décadas depois a fotografia já tinha se tornado a forma privilegiada de
representação social e espacial e os retratos uma “mania” entre as classes abastadas. Um novo
modismo, portanto, cujo entusiasmo era comungado por quase todos, inclusive dois monarcas do
11 Correio Official 1840, v.1, n.3. Interessante observar que, entre os despachos do referido Ministério oficiava-se ao Ministro da Marinha do Império o envio do retrato de sua Majestade para ser afixado na sala do Docel do Palácio do governo da Província do Rio Grande do Sul (Idem, p. 1).
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período, Pedro II e a rainha Victoria. Viúva, em 1861, aos 45 anos de idade, a rainha foi, sem sombra de
dúvida, a maior divulgadora do vestido de luto, usando-os até a sua morte em 1901.
Enfeitada de Pesar: o Vestido e as Legislações sobre o Luto
O luto se inscreve nas narrativas da morte e do culto funerário na forma de um conjunto sacrificial
dos prazeres da vida e, “sacrifica-se mais frequentemente os prazeres vestimentares” (DI FOLCO, 2010,
p. 327).12 Viúvas e órfãs, enlutadas de forma ampla, constituíram-se, temporária ou efetivamente, como
grupo socialmente diferenciado cuja condição foi, desde tempos remotos, marcada pelo uso obrigatório
de vestuário específico. Tal distinção servia para pessoas tocadas por uma morte, mas também para
denotar o status social do enlutado. A forma como o vestido de luto foi mais amplamente difundido, na
época moderna, teve sua origem no estabelecimento dos primeiros conventos cristãos na Europa. Muitos
desses espaços, fundados por viúvas ricas, comportavam mulheres que, por opção ou imposição,
passavam a levar uma existência de castidade, humildade e pureza, determinadas, por conseguinte, a
abandonar a vida social, sexual e a elegância sartorial. A ligação entre o hábito de ofício das religiosas
e o vestido de luto reside no obrigatório ocultamento do corpo e a abnegação à vida, como informa Lou
Taylor.
Se as legislações suntuárias foram codificadas primeiramente no Império Romano,
diversificando-se na Idade Média, foi somente a partir do Renascimento que passaram a normatizar
eficazmente o vestido de luto “rumo a um labirinto intrincado que cobria a escolha da fabricação, cor,
corte e acessórios” (TAYLOR, 1983, p. 65).13 Constantemente decretadas, quebradas ou burladas, as
legislações estabeleceram também o uso adequado de tais vestimentas coibindo aqueles que ousassem
usurpar os privilégios da nobreza. No entanto, a partir do século XVII, seu uso nas cortes europeias já
tinha se expandido entre as famílias endinheiradas dispostas a pagar multas elevadas para copiar a
etiqueta aristocrática. No final do século XVII, o traje de luto encontrou novas formas, com calças e
casacos pretos para os homens e vestidos de Mântua, pretos ou roxos, malvas ou cinzas para o meio-
luto das mulheres. Com sua demanda fortemente alargada, a produção de tecidos de lã, seda e crepes
pretos se intensificou e diversificou para os demais acessórios. Da burguesia mercantil para a burguesia
industrial e desta para a crescente classe média urbana, o uso do vestido de luto foi se democratizando
12 Le plus couramment sacrifie-t-on ses plaisirs vestimentaires. [Traduziu-se] 13 From de Renaissance onwards the sumptuary laws governing mourning dress in general (and widow’s weeds in particular) grew into an intricate labyrinth covering choice of fabric, colour, cut and accessories. [Traduziu-se]
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e ganhando uma nova codificação social a ponto de, na aurora do século XIX, ter se tornado
extremamente fashion, pelo menos nas grandes cidades da Europa.
Uma situação que só se processará no Brasil com a chegada da corte portuguesa e a abertura dos portos ao comercio exterior, notadamente inglês. O número 25 da Gazeta do Rio de Janeiro,14 de 27 de março de 1816, relata as honras fúnebres em memória da rainha de Portugal, Brasil e Algarves, D. Maria I, “exilada” no Rio de Janeiro desde 1808, morta aos 81 anos de idade. Dentre as inúmeras obrigações dos viventes, súditos e familiares, decretava-se o luto por um ano. É provável que a população mais humilde, impossibilitada de comprar roupas e acessórios pretos ficasse obrigada apenas ao fumo no braço, como versa a lei de agosto de 1750:
[...] O luto, que Mandei se tomasse em todo o Reino, hade ser de dous annos, o primeiro rigoroso de capa comprida, e o segundo aliviado; e as pessoas pobres, e miseráveis ao menos serão obrigadas a trazer álbum signal de luto, como sempre se praticou; e o fareis executar. (SUPPLEMENTO À COLLECÇÃO DE LEGISLAÇÃO PORTUGUESA DO DESEMBARGA-DOR ANTONIO DELGADO DA SILVA, 1842, p. 90).
O uso obrigatório do vestido preto para as mulheres da nobreza e da elite colonial, além de
joalheria específica era obrigação legal e moral. Seu uso pode ser confirmado nos retratos das netas de
Maria I, as princesas Maria Isabel e Maria Francisca de Bragança.15. Realizadas por Nicolas-Antoine
Taunay (1755-1830), no ano da morte da monarca, as princesas prometidas aos irmãos espanhóis,
Fernando VII e Carlos Isidro, vestem luto. As joias negras, dialogando com os vestidos idênticos – exceto
as golas − e os fundos igualmente escuros, diferem do restante da série de retratos da família real. Como
o casamento foi arranjado e efetivado durante o período de luto é provável que o pintor francês tenha
tido a preocupação de expressar a forma vestimentar como parte das obrigações legais que o momento
da morte de uma rainha exigiria.16
A abertura dos portos ao comércio exterior provocou um novo afluxo de produtos notadamente
ingleses, ampliando o comércio e os modos de consumo. Com a corte instalada na nova capital
promoveu-se uma renovação dos hábitos da elite local que, no afã de imitá-la, impõe novas formas
vestimentares aos demais setores da população. Provavelmente vigorava no Brasil a Pragmática de D.
José I, de 1751 com as posteriores modificações do Marquês de Pombal que, com as Ordenações do
Reino, legislariam sobre todos os aspectos da vida até a Independência. Em 1828, o Diccionario Juridico,
Theoretico e Practico discorria sobre o luto:
14 A Gazeta do Rio de Janeiro, fundada em setembro de 1808, foi o primeiro jornal impresso no Brasil, nas máquinas da Impressão Régia, no Rio de Janeiro, iniciativa da chegada da corte portuguesa no país. In: < http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx? bib=749664&PagFis=3984 > Acesso em 3 ago. 2014. 15 DIAS, Eliane. “Os retratos de Maria Isabel e Maria Francisca de Bragança, de Nicolas-Antoine Taunay”. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v. 19. n. 2. p. 11-43. jul.- dez. 2011. 16 Possivelmente feitas de memória ou por gravuras, segundo DIAS, E. Os retratos de Maria Isabel e Maria Francisca de Bragança, de Nicolas-Antoine Taunay. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v. 19. n. 2. p. 11-43. jul.- dez. 2011. No artigo a autora aponta o possível erro de identidade das princesas.
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Luto. he o vestido que se traz em signal de dor, quando morre alguma pessoa da nossa obrigação. Há luto pezado, e luto curto, ou alliviado, que he quando se trazem com trajos de luto outros que o não são; diz-se curto, porque os Empregados em Tribunaes nos lutos alliviados trazem capas curtas, e no pesado as trazem compridas. Não se deve trazer mais que seis mezes pelas Pessoas Reaes, pela própria mulher, pais, avós, e bisavós, e por filhos, netos, e bisnetos [...] (SOUSA, 1827, s.p.)
Os adjetivos pesado e curto, ou aliviado, aplicados ao luto e explicados pelo tamanho das capas
usadas nos tribunais como se viu, não permaneceriam por todo o século XIX. O termo ‘meio-luto’, que
virá substituir a segunda fase do ritual já é, provavelmente, uma tradução de demi-deuil, do francês,
presente nos periódicos de moda introduzidos no Brasil. Quatro anos depois de outorgada a primeira
Constituição Política do Império é que se pode discorrer efetivamente sobre o instituto do luto no Brasil.
Dois anos antes, todavia, Pedro I havia decretado um luto mais longo, de seis meses, pela morte da
Imperatriz Maria Leopoldina: “trez rigorosos, trez aliviados, cobrindo-se também de luto as mezas dos
Tribunaes”, segundo descreve o Diário Fluminense (1826, p. 1).17 Também as crianças vestiam luto, pelo
menos as imperiais, segundo Félix Émile Taunay (1795-1881), em litografia sem data.18
O ritual de luto, a partir da segunda metade século XIX, se estenderia para as elites e
posteriormente para as camadas médias urbanas. Tornando-se mais específico e mais complexo,
passava a funcionar como sinal codificado de respeitabilidade social. No Brasil do Segundo Reinado o
novo decreto, n. 1730, de 1856, resgata o de 1828 e o especifica. Esse novo decreto destaca um período
menos longo que aquele que se praticaria segundo os jornais franceses. Como tendência os
historiadores da morte apontam a segunda metade do século XIX como um período de mudanças
profundas nesse aspecto da vida.
O Luto da Viscondessa e as Mudanças na Relação com a Morte
A senhora de expressão sóbria que reaparece fora do contexto de exibição em Retratos
Modernos em nada parece com a criança Maria Amália de Mendonça Corte Real (1805-1872), fidalga
lisboeta pertencente às casas mais distintas de Portugal e Espanha quando chegou ao Brasil com apenas
três anos de idade. Seu pai, ajudante de campo de D. João VI, desembarcou com quase toda a corte
Portuguesa no Brasil, na época da invasão napoleônica. Provavelmente, doze anos depois, em razão do
regresso da corte para a Europa, é que se tenha arranjado seu casamento, aos dezesseis anos de idade
17 Rio de Janeiro, v. 8, n. 138, 14 de Dezembro de 1826. 18 Dom Pedro, Dona Francisca e Dona Januária. Félix Émilie Taunay (1795-1881), s.d., litografia colorida, 26,5 x 35cm, acervo do Museu Imperial de Petrópolis/IPHAN.
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com o jovem Manuel Antônio da Fonseca Costa, jovem oficial de dezoito anos; um casamento ‘à
capucha’, como se costumava chamar este tipo de união. O que conhecemos dessa senhora, fotografada
nos estúdio de Insley Pacheco, possivelmente entre 1860 e 1865, está descrito em artigo biográfico sobre
seu esposo no Boletim da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro.
Na condição de esposa de militar é provável que as exigências com a família, a administração
do lar e com a Igreja fossem ainda maiores para Maria Amália. Segundo BRANDÃO,19 o respeito e o
temor estavam relacionados ao nome de seu marido no seio do Exército.20 Veador da Casa Imperial,
Fonseca Costa só viria a receber o título de barão em 1871.
Talhando os homens para os aspectos da vida pública e as mulheres para os da vida privada,
as famílias da elite, burocratas e militares de altas patentes no século XIX viviam um período de
transformações das cidades e das sensibilidades. O futuro barão fazia parte da elite militar cujo mérito
superava a hereditariedade sendo, por conseguinte, candidato promissor a titulação, como acontecia
frequentemente no Segundo Reinado. Uma elite que formava a entournage da família Imperial:
Os conselheiros de Estado, fidalgos e oficiais das Casas Real e Imperial formavam, junto com a nobreza titulada, o grupo especial que durante o Segundo Reinado viveu, na América, uma nova versão da corte [...] e viviam, muitas vezes, nos paços, ao lado da família imperial, tentando seguir de perto a etiqueta europeia “atrapalhada”, ainda pela coloração diferente da corte. (SCHWARCZ, 1998, p. 161).
Não faltasse à futura baronesa educação e probidade hereditária seriam a moda ou a etiqueta
suas aliadas às pretensões nobiliárquicas? Segundo Retratos Modernos (2005, p. 14) nem Maria Amália
nem a Imperatriz pareciam se importar com a “última moda”:
Pessoas mais idosas, por vezes, exibem peças de roupas em desuso, como é o caso da mantilha – na foto da Baronesa da Gávea, de Insley Pacheco, peça que Gilberto Freire qualifica de resquício de traços orientais – e das saias rodadas, como a da Imperatriz Teresa Cristina, por Henschel & Co., em 1887. (HEYNEMANN, C. B.; RAINHO, M. C. T., 2005, p. 69)
É difícil acreditar que a futura baronesa ou a imperatriz não conhecessem as regras de luto
divulgadas minuciosamente nos jornais franceses para imitação da elite rural e das classes médias
19 BRANDÃO, P. P. O Gávea, Marechal Manuel Antônio da Fonseca Costa, Marquês da Gávea. Boletim da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. Tomo XLVII, Rio de Janeiro: 1940, p. 65-80. 20 Fonseca Costa teve foro de moço fidalgo e cavaleiro e a nomeação de Veador da Casa Imperial em 1866. Tornou-se barão em 1871, visconde em 1879 com honras de grandeza e marquês em 1888. VASCONCELLOS, barão de; SMITH DE VASCONCELLOS, barão. Archivo nobiliarchico brasileiro. Lausanne: Imprimerie La Concorde, 1918, p. 157. In: < https://archive.org/stream/archivonobili arc00vascuoft#page/156/mode/2up > Acesso em 13 jan. 2015.
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urbanas preocupadas com a etiqueta e as modas na corte; ou capital econômico e cultural necessários
para aquisição de um vestuário que, conforme as publicidades veiculadas nos periódicos descreviam
tecidos e acessórios distintos para cerimônias específicas. Ou talvez não tivessem em mãos o Código
do bom tom ou Regras da civilidade e de bem viver, que desde 1845 fazia sucesso em Portugal. Seria
possível que ambas então, pouco afeitas à moda segundo Retratos modernos, não quisessem demarcar
outra preocupação, como o rigor, a contenção e a sobriedade que o luto impõe?
Possivelmente é a invisibilidade desta forma vestimentar que promove determinados equívocos.
Maria Amália não está usando uma mantilha, mas um xale, descrito para as diversas fases e tipos de
luto. Tal peça, conforme mostram diferentes ilustrações nos periódicos de moda, não decaiu no gosto
das elites (Figuras 13 e 14) e aparece vestindo inúmeras senhoras ou compondo o cenário, como no
retrato de D. Francisca (Figura 15). O conjunto de retratos brasileiros e estrangeiros da Coleção da
Princesa21 traz diferentes mulheres usando xale em distintos anos. Poderia haver, então, alguma
confusão entre a mantilha e o xale? A mantilha é “uma manta para a proteção dos ombros e da cabeça;
véu fino de seda, renda etc.”22, conforme se observa em diversas gravuras de Debret. O mantelet,
segundo dicionário Larousse,23 é uma capa feminina em tecido leve com capuz, longa na seção dianteira
e mais curta na seção traseira; enquanto mantille é uma echarpe longa de renda24 que senhoras mais
tradicionalistas usam durante as missas. É essa peça que Freyre assinala como ‘em desuso’. O
‘mantelete’, frequentemente citado no Jornal das Senhoras, é uma “pequena capa, leve e com rendas”25,
parecida com a usada pelos eclesiásticos sobre o roquete. Tudo indica que xales iguais ao de Maria
Amália compunham não apenas o vestuário cerimonial de luto, mas se mantiveram presentes no conjunto
vestimentar feminino. Foi preciso, então, procurar outro elemento no retrato que pudesse atualizar ou
não a roupa solenizada.
A futura baronesa da Gávea veste um chapéu do tipo bonnet (Figuras 18 a 21) que manteve
pouca variação pelo menos entre os anos de 1861 e 1863. Embora os exemplos selecionados não sejam
de luto servem para conferir um tipo de desenho que, inclusive, conserva flores escuras na parte superior.
O grande laço de seda amarrado no queixo é bastante próximo daquele que veste D. Francisca (Figura
15).
21 LAGO, Pedro Correia do. Coleção Princesa Isabel, fotografia do século XIX: a descoberta de um tesouro cultural inédito, composto de mais de mil imagens brasileiras. 2 ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. 22 Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa (1988, p. 414). 23 Cape de femme en tissu léger, à capuchon, à pans long devant et écourtée derrière. In: < http://www.larousse.fr/dictionnaires /francais/mantelet/49250#eEzUmkS3rZgC4LDT.99 > Acesso 12 jan. 2015. 24 Larousse de Poche (1990, p. 350). “Longue echarpe de dentele, que les femmes potente sur la tête”. 25 Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa (1988, p. 414).
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Figura 13: La Mode Illustrèe, n. 12, 23 mar. 1863, p. 90; Figura 14: La Mode Illustrèe, n. 27, 4 jul. 1869, p. 211; Figura 15: D. Francisca, Ludwig Angerer, 1867, in: LAGO, P. C. Coleção Princesa Isabel: fotografia do século XIX, 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013, p. 368.
Figura 18: La Mode Illustrèe, n. 15, 6 abr. 1861; Figura 19: La Mode Illustrèe, n. 18, 4 mai. 1863, p. 141; Figura 20: La Mode Illustrèe, n. 19, 8 mai. 1864. Figura 21: La Mode Illustrèe, n. 46, 4 nov. 1869.
A joalheria modesta e preta confirma o vestuário de luto e o cordão de contas de azeviche, em
particular, aparecem com muita frequência nos retratos indicando uma forte aceitação da peça por parte
da elite brasileira. A coloração escura dos enfeites ou das “joias de afeto”26 facilitam a definição do
vestuário de luto presente também no retrato da Baronesa de Loreto (Figura 3) e de Ana Luisa Viana
(Figura 4), ambas vestindo meio luto (o brilho do tecido denota a fase), como se supõe.
A ausência das cores na fotografia oitocentista embora dificulte o trabalho não impede a
visualização, por exemplo, do crepe preto costurado no entorno das cartolas. Os periódicos da época
que explicavam a simbologia das cores apontam, como na ilustração (Figura 22), a dificuldade de
distinção do tipo de luto entre os homens. Menos apta que a pintura para a reprodução de cores e tons
26 SANTOS, Irina Aragão dos. Joias de afeto: um catálogo de referências. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGHC, 2009.
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− elemento destacado de configuração simbólica da civilização cortesã – a fotografia vai exigir uma leitura
conjunta para a análise da indumentária. O exemplo a seguir mostra como o brilho da cartola é
perceptível sem o fumo e com o crepe na do Visconde da Gávea (figuras 23 a 24) que porta, inclusive,
joalheria de luto, confirmando mais uma vez, de forma indireta, o luto de Maria Amália.
Figura 22: A Semana Ilustrada, 8 Nov. 1863, p. 1212. Figura 23: Homem não identificado, Paulo Robin, in: LAGO, P. C. Coleção Princesa Isabel: fotografia do século XIX, 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013, p. 421. Figura 24: Manuel Antônio da Fonseca Costa, Marquês da Gávea. Rio de Janeiro [1864-1865] Pacheco. Carte de visite. Retratos modernos (Op. Cit., p. 120)
Vestuários, cores, estúdios fotográficos, poses etc., todos os elementos perceptíveis nos retratos
tinham como objetivo distinguir a elite urbana dos demais mortais. Funcionavam para serem visíveis e
marcar diferenças, como elementos que se convertem em símbolos de status:
A etiqueta, por sua vez, transforma-se em elemento fundamental para essa coletividade da exibição, cuja influência implicava possuir uma série de privilégios. Era a etiqueta que garantia a maquinaria do cerimonial, o rigor do ritual, mas era também por meio de uma leitura dela que se identificava a intrincada hierarquia do mundo dos titulares e de fidalgos da corte (SCHWARCZ, 1998, p. 163).
As mudanças com relação à morte e todo seu ritual se processam no tempo que os historiadores
chamam de “longa duração”27, ou seja, respondem a transformações lentas, quase imperceptíveis entre
os séculos. Dentre as principais mudanças que se processavam desde o final do XVII e que culminaram
na segunda metade do século XIX está “a necessidade de exibir a dor, de mostrá-la à comunidade e o
desespero da separação que atinge dimensões inéditas no Ocidente” (RODRIGUES, 2006, p. 154).
Embora a morte familiar tenha se tornado um evento menos público que outrora, todo o cerimonial do
funeral e do luto passava a ser uma representação da tristeza dos sobreviventes para ser compartilhada
e solidarizada com a comunidade. Menor que outrora, essa comunidade viveria sob o signo do exagero,
27 ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Trad.: Priscila V. da Siqueira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977, p. 17-18.
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dos crepes e das lãs pretas, dos necrológios, dos epitáfios etc. Uma sensibilidade nova que aponta a
necessidade de distinção e de separação entre as coisas da vida e as coisas da morte, de distinção e,
portanto, de se fazer visto e percebido como diferente. Período de expansão da burguesia ávida por
copiar os rituais da corte, tudo indica, ela será protagonista das futuras mudanças no vestuário de luto.
Na primeira metade do século XIX em cidades como Salvador e o Rio de Janeiro vigorava uma
morte “barroca” onde se ressaltava um ritual “espetacular”, rico em detalhes simbólicos. Tudo mudaria
em meados do século com os frequentes surtos de febre amarela e cólera que atingiram a capital do
Império. Contraditoriamente, essa também é a época dos grandes bailes da corte que conviviam com as
notícias de mortes por todos os setores da população. Outro surto, mas do aumento de capitais, ampliou
a entrada de produtos importados destinados aos consumidores endinheirados da corte e das zonas
rurais. A população carioca aprendia a conviver com a morte crônica e epidêmica e os bens supérfluos
que aceleraram uma série de transformações em curso nas formas tradicionais de relação dos vivos com
os mortos. “As mudanças no estilo de morrer refletiram e influenciaram mudanças no modo de pensar e
sentir” (REIS, 1998, p. 141). Doravante, resultado do processo de secularização em curso, a morte e o
culto aos mortos se expressaria em novas formas, imagens e rituais.
Mas o processo não foi sempre pela ordem. Na Bahia em 1836, por exemplo, uma multidão
destruiu um cemitério privado, contrários à interdição dos enterramentos nas igrejas. Para aquela
população as ideias higienistas europeias não faziam eco diante da salvação da alma e do poder
eclesiástico e das irmandades. Portanto, não é possível desprezar o papel da espiritualidade e das
crenças durante o século do fugaz, do transitório da ‘modernidade’ como prerrogativa da ‘civilização’.
Segundo Corbain (2005, p. 57), o século XIX viu aprofundar, nas populações fervorosas, a espiritualidade
e a moral tridentinas. A difícil separação entre Estado e Igreja Católica, prioritária para um estado
‘moderno’, embora só se realize com a República, mostra como todas as questões relativas à morte
(gestão, espaço, ritos, símbolos etc.) foram um processo pleno se significados, na direção da
secularização e o consequente processo de laicização social. Se no mundo masculino as práticas
religiosas arrefeciam no feminino crescia o rigor e o dogma do catolicismo, expressos nas representações
e os usos do corpo. O século XIX das aceleradas transformações e dos símbolos modernos da República
que seguirá é também o da mariofania, da angelologia e do espiritismo. É possível então que o luto, mais
complexo e estendido, tenha se desenvolvido como uma reação aos movimentos seculares, em curso,
então.
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A forte ligação de Maria Amália com a igreja católica pode ser comprovada com o número de
missas pela encomenda da sua alma.28 Nada se sabe sobre sua mortalha, mas é possível que, a exemplo
da duquesa de Bragança, Amélia de Leutchemberg (1812-1873), que guardou luto por 39 anos, tenha
sido enterrada com o vestido preto que aparece no retrato.
Conclusão
O tempo moderno é o tempo dos vivos, da produção, dos prazeres mundanos, dos relógios, da
agitação das cidades. Os mortos e a morte perderiam um espaço milenar ao longo do século XIX diante
das novas prioridades coletivas, embora no espaço privado os sentimentos diante da morte familiar
tenham se extremado. O vestido cerimonial de luto demarcou para a elite mais que uma tradição ou uma
moda efêmera, mas a ligação entre as obrigações dos vivos com as necessárias obrigações com os
mortos. É na cidade que ele se incorpora mais fortemente no corpo social, fazendo-se exibir na corte, no
paço, nas igrejas, nos passeios públicos e nas visitas dominicais, formando espaços de ‘civilização’
segundo o modelo europeu. Mas há de se remarcar também que a frequência ao estúdio fotográfico,
vestindo luto cerimonial, reforça esse conjunto de códigos de conduta de forma contundente de distinção
dupla. Dessa maneira a elite faz a rua do Ouvidor corresponder ao boulevard des Italiens e por analogia
o Rio de Janeiro à Paris que se queria igualar. Com a correta observação da etiqueta, retratado pelo
fotógrafo imperial, distinguiam-se no espaço e faziam a cidade ingressar no roteiro do mundo civilizado.
Nem o clima tropical impedia que, à imitação das modas e regras europeias, “cariocas” se vestissem de
lã e veludo pretos.
Além (e aquém) dos sentimentos e expressões ligados à tristeza e ao pesar, o uso da vestimenta
de luto foi uma obrigação legal, ou seja, constituía-se na forma de leis específicas e passava ao longo
do século XIX a ser uma obrigação protocolar e moral, organizada e exigida pela etiqueta cortesã. Leis
que se transformaram em costume, costume que a modernidade parece ter enterrado, pelo menos para
amplas camadas da população urbana na atualidade. A expressão ‘coberta de pesado luto’ recorrente
na literatura e nos periódicos para descrever a indumentária feminina e tão presente nas fotografias do
período, paradoxalmente, parece invisível ao leitor contemporâneo. Embora não se possa precisar a
28 Nas igrejas de São Francisco de Paula, do Carmo, dos Capuchinhos do Castello, na matriz de Sant’Anna, segundo o Diário do Rio de Janeiro, ano 55, n. 150, 10 de Junho de 1872, capa; na matriz de Sant’Anna e na capela da Beneficência Portuguesa, segundo A República, 22 de Junho de 1872, p. 3.
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razão do luto do casal Fonseca Costa é seguro o uso do luto cerimonial embora o preto dos crepes tenha
ganhado um tom mais quente, o sépia do tempo.
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