dissertação vivian batista gombi final
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
VIVIAN BATISTA GOMBI
A TEORIA CRTICA DE HERBERT MARCUSE E O ENGAJAMENTO:
OS PERCALOS NA ARTICULAO ENTRE TEORIA E PRTICA
MARING
2014
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VIVIAN BATISTA GOMBI
A TEORIA CRTICA DE HERBERT MARCUSE E O ENGAJAMENTO:
OS PERCALOS NA ARTICULAO ENTRE TEORIA E PRTICA
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Filosofia do Centro de Cincias
Humanas, Letras e Artes da Universidade Estadual de
Maring, como condio parcial para a obteno do
grau de Mestre em Filosofia sob a orientao do Prof.
Dr. Robespierre de Oliveira.
Este exemplar corresponde verso definitiva da
dissertao aprovada perante Banca Examinadora.
MARING
2014
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Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP) (Biblioteca Central - UEM, Maring PR., Brasil)
Gombi, Vivian Batista
G632t A teoria crtica de Herbert Marcuse e o
engajamento: os percalos na articulao terica e
prtica/ . - Maring, 2014.
179 f.
Orientador: Prof. Dr. Robespierre de Oliveira.
Dissertao (mestrado) Universidade Estadual de
Maring, Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes,
Programa de Ps-graduao em Filosofia, 2014.
1. Filosofia poltica. 2. Filosofia social. 3.
Herbert Marcuse. 4. Engajamento. 5. Karl Marx. 6.
Prxis. 7. Teoria crtica. I. Oliveira, Robespierre
de, orient. II. Universidade Estadual de Maring.
Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes. Programa
de Ps-Graduao em Filosofia. III. Ttulo.
CDD 22. ED.193
JLM-001646
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AGRADECIMENTOS
Registro aqui meus agradecimentos a todos aqueles que, de diferentes maneiras,
contriburam para a realizao desta pesquisa.
Ao orientador Robespierre de Oliveira pela liberdade de trabalho na conduo da
pesquisa e pelos muitos livros emprestados essenciais para a realizao do trabalho. Obrigada
por me apresentar, ainda na graduao, ao filsofo Herbert Marcuse.
banca examinadora, Prof. Dr. Antonio Oza da Silva e Prof. Dr. Rosalvo Schtz,
obrigada por suas contribuies e pela discusso honesta e instigante que carregarei como
combustvel para as minhas reflexes.
Prof. Dr. Marlia Mello Pisani pelas valiosas sugestes feitas no Exame de
Qualificao que reorientaram significativamente o direcionamento dado a este trabalho.
minha me e minha irm, Rose e Rebeca, pelo apoio e afeto de toda uma vida
tumultuada, mas cheia de alegrias e muito companheirismo. Ao esprito enrgico de vocs
duas, eu devo a minha vontade de lutar por uma vida mais digna. Obrigada por estarem
sempre ao meu lado! Amo vocs!
Ao meu pai Celso que, mesmo de longe, sem dar muito crdito s minhas escolhas
profissionais, chorou de alegria ao saber da realizao desta etapa de minha vida. A distncia
no diminui a sua importncia para mim. Te amo!
Ao Yann Ferreira Rodrigues Souza por seu grande amparo, incentivo e carinho, to
vitais para a concretizao desta dissertao. Obrigada por toda sua compreenso e
companheirismo ao compartilhar os momentos difceis e leves de minha vida. No tenho
palavras para descrever a importncia de sua doura e o tamanho do afeto que carrego por ti
em meu peito.
Em especial, gostaria de agradecer ao querido Rodrigo Bischoff Belli pela imensa
colaborao to determinante para o amadurecimento das questes expressas nestas pginas,
que so apenas uma pequena parte de problemas to graves quanto fundamentais. Obrigada
pelas inmeras discusses e por toda sua preciosa ateno para com esta pesquisa. No tenho
como retribuir tamanha amizade e cuidado seno com minha sincera determinao em lutar
pela construo de um mundo melhor. Minha grata estima, companheiro!
Aos muitos outros amigos, colegas, professores e familiares que participaram mesmo
que no to diretamente deste processo de formao, meus agradecimentos. O anonimato de
vocs aqui no reflete o carinho especial que guardo por cada um.
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O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor nos meus estudos, pode ser formulado resumidamente assim: na produo social da sua vida, os homens
contraem relaes determinadas, necessrias e independentes de sua vontade, relaes de produo que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das suas foras
produtivas materiais. A totalidade destas relaes de produo forma a estrutura econmica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurdica e poltica, e qual
correspondem formas de conscincia determinadas socialmente. O modo de produo da vida material condiciona em geral o processo de vida social, poltico e espiritual. [...] Com a
transformao da base econmica, toda a enorme superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez. Na considerao de tais transformaes necessrio distinguir sempre entre a
transformao material, que se pode constatar fielmente na cincia natural, das condies econmicas de produo e as formas jurdicas, polticas, religiosas, artsticas ou filosficas,
em resumo, as formas ideolgicas pelas quais os homens tomam conscincia deste conflito e o conduzem at o fim. Assim como no se julga um indivduo pela ideia que ele faz de si
prprio, no se pode julgar to pouco uma poca tal de transformao pela sua conscincia, mas, pelo contrrio, deve-se explicar a esta conscincia pelas contradies da vida material,
pelo conflito que existe entre as foras sociais produtivas e as relaes de produo. (Karl Marx)
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Desatai o futuro
O futuro
no vir por si s
se no tomarmos medidas.
Pega-o pelas orelhas, komsomol!
Pega-o pela cauda, pioneiro!
A comuna
no uma princesa fantstica
com quem
de noite se sonha.
Calcula,
Reflete,
mira bem
e avana!
embora sejam miudezas.
O comunismo
no reside apenas
na terra,
no suor das usinas.
Seno tambm no lar,
mesa,
nas relaes de famlia,
nos costumes.
Aquele que
no decorrer do dia
anda rangendo palavres
como um eixo de carroa
ressecado,
aquele que
fica pasmado
quando geme a balalaika,
esses
no atingiram o talhe
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do futuro.
Nas trincheiras
manejar metralhadoras,
no apenas nisso
que consiste a guerra.
O ataque
famlia,
ao lar,
no para ns
ameaa menor.
Quem no aguentou
a tarefa domstica
e dorme
no bem-bom
das rosas de papel,
esse
no atingiu o talhe
da poderosa vida
do porvir.
Qual uma pelia
o tempo tambm
rodo
por vermes cotidianos.
s vestes poeirentas
de nossos dias
cabe a ti, komsomol, sacudi-las!
(Vladimir Maiakvski)
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RESUMO
A presente pesquisa tem o objetivo de analisar a perspectiva especfica de
engajamento que nasce da teoria crtica de Herbert Marcuse. O filsofo desenvolve uma
concepo de dialtica e de revoluo, partindo de um vis marxista, com desdobramentos
tericos importantes sobre os caminhos emancipatrios para a transformao social. A
emancipao, em sua imbricada relao com o conhecimento, foi configurada por Marx de
uma maneira superadora em relao ao programa moderno do iluminismo, originando um
sentido particular de crtica pautada na noo de prxis. Esta perspectiva fulcral para a
elaborao deste trabalho na medida em que nos orienta para uma nova compreenso de teoria
que se vincula ao engajamento. Dentro deste trilho, o pensamento de Marcuse tem sua
contribuio justificada ao pautar o estreito lao entre filosofia e poltica, teoria e prtica,
auxiliando-nos na difcil compreenso da dialtica presente na categoria de prxis. Dessa
forma, o exame da questo do engajamento em Marcuse nos permite avaliar dois aspectos
principais. Primeiramente, sua interpretao especfica de Marx, permitindo-nos melhor situar
seu pensamento tanto na tradio marxista, como na histria da filosofia. O outro aspecto
que o percurso de anlise aqui traado - ao caracterizar traos fundamentais sobre a relao
entre engajamento e histria por um ponto de vista marxista -, abre espao para um enfoque
particular acerca da teoria crtica de Marcuse, permitindo um balano crtico de sua teoria no
que tange aos desdobramentos prticos que surgem de sua reflexo crtica especfica.
Palavras-chave: Herbert Marcuse. Engajamento. Karl Marx. Prxis. Teoria Crtica.
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ABSTRACT
This current research aims to analyze the specific perspective of engagement born
from the critical theory of Herbert Marcuse. The philosopher develops a conception of
dialectic and revolution, from a Marxist view, with important theoretical developments on the
emancipation paths towards social transformation. The emancipation, in their intertwined
relationship with knowledge, was configured by Marx which a surpassing way compared to
modern program of the Enlightenment, giving a particular sense of criticism guided by the
notion of praxis. This perspective is central to the development of this work in that it guides
us to a new understanding of theory that links to the engagement. Within this track, the
thinking of Marcuse has its contribution justified to abide the close link between philosophy
and politics, theory and practice, helping us in the difficult understanding of dialectic present
in the category of praxis. Thus, examining the issue of engagement in Marcuse allows us to
evaluate two main aspects. First, your particular interpretation of Marx, allowing us to better
situate your thinking as in the Marxist tradition as in the history of philosophy. The other
aspect is that the route of analysis outlined here - to characterize key features of the
relationship between engagement and history for a Marxist point of view - makes room for a
particular focus approach about Marcuse's critical theory, allowing a critical assessment of
your theory regarding the practical consequences that arise from your specific critical
reflection.
Keywords: Herbert Marcuse. Engagement. Karl Marx. Praxis. CriticalTheory.
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SUMRIO
INTRODUO.........................................................................................................................1
CAPTULO 1 - MARCUSE, MARX E A PRXIS: A RELAO ENTRE FILOSOFIA
E REALIDADE.........................................................................................................................5
1.1 Marcuse: a relao entre filosofia e economia em Marx............................................13
1.2 Marx: a realizao da filosofia e a necessidade da prxis..........................................26
1.3 Elementos para a compreenso de prxis em Marcuse nos anos 1930.......................40
CAPTULO 2 - REPENSAR AS ROTAS PARA O ENGAJAMENTO: MARCUSE E A
NOVA SITUAO DE CLASSE DO PROLETRIO.......................................................63
2.1 A configurao do proletariado: novos elementos histricos para a
dialtica..............................................................................................................................65
2.2 A configurao da luta de classes: alguns aspectos sobre a teoria do valor e a
tecnologia...........................................................................................................................84
CAPTULO 3 - LIBERTAO DO CONCEITO DE PRXIS? ALGUMAS
QUESTES SOBRE DIALTICA E REVOLUO EM MARCUSE..........................128
3.1 Problemas acerca da dialtica de Marx......................................................................130
3.2 Problemas acerca dos caminhos revolucionrios.......................................................141
CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................164
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................................175
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INTRODUO
Pensar em teoria e prtica no bojo da herana de Marx tratar do lao entre reflexo
crtica e ao revolucionria. A tarefa da prxis marxista deve conciliar esses dois pontos
tendo como parmetro a objetividade histrica na qual est imersa, encaminhando a crtica
para sua genuna funo prtica de transformar a realidade. Isto significa que um marxista
deve se voltar no apenas para a compreenso da histria humana que se passou, de autores
fundamentais interpretao da vida humana, mas, principalmente, para a difcil anlise do
seu momento histrico especfico, retirando desta as condies para a luta poltica. Discutir a
questo do engajamento, a partir disto, significa enfrentar os dilemas legados tanto pela
produo terica de Marx quanto pelos fatos histricos do sculo XX. No foram poucas as
elaboraes tericas sobre esse assunto, entretanto, este trabalho pretende abord-lo a partir
da compreenso do marxismo de Herbert Marcuse.
Marcuse desenvolveu sua viso crtica acerca das possibilidades e limites da luta
revolucionria de seu tempo ao examinar as transformaes no mundo do trabalho, na cultura
e na prpria base subjetiva da conscincia dos indivduos. Por isso, ao mesmo tempo em que
desenvolveu sua interpretao sobre pontos fundamentais da teoria marxista, procurou
encaminhar os desdobramentos desta interpretao: em que medida poderia se dar a luta
revolucionria dentro daquela situao histrica concreta?
Nesta pesquisa, o que norteia nossa abordagem o desenvolvimento intelectual de
Marcuse tendo como parmetro a categoria de prxis. Explicitamente referida ou no, sua
presena indubitvel nos pontos levantados aqui da teoria marcuseana: primeiro, sua
interpretao prpria de Marx em seu contato inicial com este autor, bem como sua
aproximao com alguns conceitos marxianos fundamentais sobre os quais constri sua
compreenso especfica de teoria crtica; segundo, sua tentativa em analisar, por um ponto de
vista marxista, o contexto social no qual viveu tendo em vista os caminhos possveis para a
transformao social, o que implicou numa modificao de uma srie de noes marxistas,
sobretudo, aquela que liga, de maneira fundamental, o proletariado ao mago do conceito de
revoluo; e, por ltimo, algumas de suas elaboraes tericas mais maduras realizadas com a
preocupao em adequar o sentido de dialtica e de revoluo dentro deste novo contexto de
grandes modificaes no processo de produo do capital, conduzindo Marcuse a uma
concepo particular sobre a prxis em meio a suas reconfiguraes da teoria marxista. Da
prxis enquanto conceito estudado e pensado, para o exame de suas possibilidades dentro da
avaliao das condies sociais em curso, encaminha-se para algumas construes tericas
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marcuseanas originais na qual se reconfigura o significado de dialtica e de revoluo dentro
de um novo entendimento sobre a articulao entre teoria e prtica. Ou seja, de uma
interpretao particular da teoria social de Marx, bem como da realidade que deve, a partir
desta teoria, ganhar sua significao, possvel examinar certas acepes marxistas da teoria
crtica de Marcuse que pressupem uma maneira especfica de encarar o engajamento
conectado sua orientao poltica peculiar dentro do marxismo.
No primeiro captulo deste trabalho, procuramos tematizar a relao entre filosofia e
marxismo nos pautando na discusso encaminhada por Marcuse a respeito da constituio
filosfica da dialtica de Marx em quatro textos de sua juventude: Novas fontes para a
fundamentao do materialismo histrico (1932), The Concept of Essence (1936), Filosofia e
Teoria crtica (1937) e Razo e revoluo (1941). Tambm discutimos o contedo expresso
pelo jovem Marx em sua trajetria de constituio da dialtica materialista fundamentada na
crtica da Economia Poltica, pautando nossa breve discusso sobre esse assunto em:
Contribuio crtica da Filosofia do Direito de Hegel. Introduo (1843), Glosas crticas
marginais ao artigo O rei da Prssia e a reforma social. De um prussiano (1844) e
Manuscritos econmico-filosficos (1844). Pudemos perceber como a dialtica articula
filosofia e economia em um novo compasso com a realidade primeiro em Hegel, depois de
maneira superadora em Marx. Assim como, mediante uma fundamentao filosfica precisa e
uma interpretao realmente crtica das categorias econmicas, possvel obter um novo
alcance da dialtica materialista no que se refere s possibilidades do engajamento, o que nos
levou ao conceito marxista de prxis, composto pelo vnculo fundamental entre abstratividade
e efetividade. Por fim, buscamos entender tal conceito na perspectiva dos textos de Marcuse
dos anos 1930, sobretudo, na sua formulao de teoria crtica.
No segundo captulo, encaminhamos uma avaliao das elaboraes de Marcuse sobre
o engajamento pelo vis de sua peculiar orientao marxista. Num primeiro momento,
pautando-nos principalmente em O Marxismo Sovitico (1956), abordamos sua
reconfigurao sobre o conceito marxista clssico de proletariado revolucionrio. Tal
interpretao o afasta de algumas noes, como: a concepo de Marx de transio para o
socialismo, a importncia dada s massas e ao partido revolucionrio no processo de
organizao poltica e o significado que a conscincia de classe possui para tal organizao.
Alm disso, pudemos notar o aparecimento da concepo marcuseana de racionalidade
tecnolgica, presente no apenas no capitalismo, como tambm no Estado Sovitico,
alimentando sua crtica ao regime socialista existente. Num segundo momento, procuramos
investigar a fundamentao das questes levantadas por Marcuse na primeira parte deste
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captulo, como: o tema da integrao dos trabalhadores, o tema da estabilizao do
capitalismo, o tratamento dado tecnologia, o entendimento de Marcuse sobre a teoria do
valor de Marx, assim como as transformaes da classe trabalhadora a ela relacionada.
Tivemos que retornar a dois textos marcuseanos de 1941 - Razo e revoluo e Algumas
implicaes sociais da tecnologia moderna a fim de examinar a discusso da tecnologia e
da teoria do valor. Para uma melhor anlise a esse respeito, bem como ao vnculo entre
trabalhador e processo de produo do capital, recorremos tambm a um acompanhamento
breve de certas questes das obras marxianas O Capital e Os Grundrisse. Com esta base,
discutimos a obra marcuseana de 1964 A ideologia da sociedade industrial - O Homem
Unidimensional, buscando entender as modificaes que Marcuse visualiza na configurao
das classes sociais e na situao da classe trabalhadora dentro das transformaes sociais
ocorridas em 1950 e 1960.
No terceiro captulo, pesquisamos os desdobramentos dos rumos dados ao
engajamento por Marcuse nos anos 1960, voltando-nos para a compreenso de sua crtica
negatividade da dialtica relacionada questo da transcendncia, marcante para a concepo
marcuseana de revoluo. Para tanto, apoiamo-nos, sobretudo, em seu artigo O conceito de
negao da dialtica (1966). A partir disso, abordamos os caminhos revolucionrios
indicados na obra Contra-revoluo e revolta (1972), pela qual pudemos avaliar com mais
cuidado a orientao de prxis que Marcuse termina por desenvolver em sua trajetria.
Pudemos notar o tratamento marcuseano sobre a Nova Esquerda, a importncia dada ao
vnculo entre cultura e poltica, sua compreenso de revoluo baseada na auto-determinao
de indivduos livres, alm de sua tematizao sobre novas necessidades e uma nova
sensibilidade enquanto formas de transformao social.
Na medida em que Marcuse procura refletir acerca de questes novas como
contribuio teoria marxista, ele afirma a fertilidade da concepo terica da reflexo
marxiana para o conhecimento da realidade. Sobre este ponto, importante ressaltar que a
possibilidade de conhecer o real expressa de maneira peculiar e completamente nova em
Marx, superando as posies tradicionais entre sujeito e objeto da histria do pensamento,
inaugurando uma forma original de tomar as relaes entre o homem e a realidade que o
cerca. Assim, a questo do engajamento torna-se pungente devido a uma compreenso de
cincia que no a separa do resto da sociedade, relacionando a atividade cientfica
proposio poltica. No se trata de estabelecer uma congruncia perigosa entre cincia e
poltica que ultrapasse os limites da legitimidade do discurso cientfico. Entretanto, ainda que
se deva perceber a existncia de uma diviso de funes entre cincia e poltica, a prpria
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constituio da perspectiva marxista de conhecimento se d pela compreenso da
determinao da fora material da histria no campo terico. Isto , o marxismo nasce da
crtica aos limites de uma cincia neutra, autnoma e independente ao examinar que uma
visibilidade cientfica especfica no somente fruto de configuraes polticas determinadas,
mas tambm guarda suas consequncias prticas. Portanto, necessrio se ter em mente que a
prpria metodologia cientfica de Marx herdada por ele de Hegel trata seu objeto de
anlise mediante sua consistncia interna: a partir do processo de seu prprio
desenvolvimento interno que se pode conhecer o contedo especfico de um objeto. Dessa
forma, a histria viva do objeto o instrumento terico fundamental para o mtodo cientfico
marxista, o que expressa seu distanciamento de princpios meramente gnosiolgicos apartados
dos contedos histricos.
Se por um lado, tocar neste ponto nuclear da concepo terica de Marx tem a
importncia de fundamentar nossa abordagem sobre uma noo to controversa quanto a de
engajamento em uma perspectiva cientfica precisa, por outro lado, auxilia-nos tambm no
entendimento da opo de abordagem de Marcuse escolhida por esta pesquisa. Explico: traa-
se determinado percurso de Marcuse tendo como fio a categoria de prxis - a fim de se
compreender o desenvolvimento de sua prpria construo terica, de dentro para fora. Esta
construo, entendida nesse processo, leva-nos a uma delimitao especfica sobre o
engajamento.
Este desenvolvimento compreendido pela fora de sua dinmica interior, ou seja,
mediante suas prprias fundamentaes, permite-nos avaliar a coerncia da categoria de
prxis no pensamento marcuseano tendo como referncia sua base na concepo dialtica de
Marx. O que, de maneira geral, esta pesquisa procura demonstrar como o filsofo Herbert
Marcuse carrega em sua produo terica os descaminhos de um intelectual marxista do
sculo XX que buscou a compreenso e a transformao da realidade na difcil articulao
entre teoria e prtica, trazendo elaboraes tericas importantes para os desafios daqueles que
se interessam pela prxis marxista.
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CAPTULO 1 MARCUSE, MARX E A PRXIS: A RELAO ENTRE
FILOSOFIA E REALIDADE
A relao entre filosofia e marxismo complexa. A abordagem filosfica
normalmente nos remete a uma instncia abstrata do conhecimento racional que parece no
coincidir com o interesse pelas questes histricas dadas. Pode-se recorrer ao imaginrio
coletivo lembrando-se do filsofo em sua torre de marfim para fazer meno ao desinteresse
da filosofia em relao realidade imediata. Esta falsa aparncia muitas vezes nos impede de
enxergar um fundo material das questes filosficas: a aptido da filosofia para conceber a
totalidade histrica, a importncia desta viso total para o direcionamento das questes
particulares e a prpria influncia da totalidade material para a determinao da funo da
filosofia. Essas compreenses acerca da totalidade nos remetem a uma questo de cunho
metodolgico que atestam sobre a importncia de certo procedimento ligado ao papel da
abstratividade - para o alcance de um conhecimento mais consistente sobre o real. Ao passo
que o contedo cientfico do conhecimento deriva da capacidade de apropriao abstrata do
real, a situao deste real depende, para seu aprimoramento, da apropriao concreta do
contedo cientfico. Essa mtua subordinao tem uma composio filosfica que - como
procura verificar o olhar crtico de Marcuse sobre a histria da filosofia - encontra na
perspectiva terica de Marx sua mais promissora articulao. Revela-se, ento, uma nova
metodologia cientfica que encontra no prprio desenvolvimento histrico da humanidade,
assim como na histria da filosofia em seu compasso com ele, o percurso dialtico para o qual
sntese. Resumidamente, a perspectiva marxista parte de certa negao da filosofia, para
afirm-la sobre novas formas mais revolucionrias. Isto s possvel na medida em que
conclui que, primeiramente, a processualidade do pensamento originria da processualidade
do real, e que, mais do que isso, a apropriao do real realizada pelo pensamento parte de
questes colocadas pelo prprio real.
Em sua construo de um sentido para a histria humana, a filosofia manifesta seu
compromisso com as questes concretas. Entretanto, se tomarmos como exemplo sua
tematizao a respeito do problema da universalidade, ligado diretamente questo da
transcendncia, percebe-se a dificuldade em demonstrar to prontamente tal compromisso. O
conceito filosfico de universalidade antigo e teve uma diversidade de acepes dentro da
histria da filosofia, encerradas, em grande medida, discusso epistemolgica, e afastadas,
assim, da dimenso material do conhecimento. O divrcio entre a teoria e a ao atinge seu
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mais alto grau no idealismo alemo, quando o prprio Hegel torna-se consciente do fato de
que, em filosofias centrais como a de Plato, Aristteles, Descartes e Kant -, encontram-se
nas suas classificaes ontolgicas1 uma inverso. Ainda que estas abordagens tenham se
mantido no terreno especulativo, tais classificaes guardam suas razes numa questo real.
Esta dimenso histrica oculta pode ser iluminada pela categoria de totalidade originada em
Hegel e herdada por Marx , considerando que esta exprime como condio sua ligao
indissolvel com a histria. Longe de ser seu privilgio, esta ligao se expressa tambm no
conceito filosfico de universalidade, haja vista seu vnculo com o destino da histria
humana. na apropriao indevida da universalidade por parte do filsofo, quando este no
compreende sua conscincia enquanto conscincia da prxis existente, que se d esse
afastamento enquanto uma qualidade irreversvel da especulao. Mas no por isso que
contedos filosficos fundamentais - como o de universalidade - percam sua relao basilar
com a existncia concreta. Sendo assim, os conceitos filosficos devem ser desvendados e
interpretados tendo em vista a sua dimenso histrica subjacente. Ou seja, a filosofia deve ser
criticada, mas no no sentido do menosprezo de seus contedos ou do seu simples descarte,
ela deve ser considerada mediante o exame de sua associao com a materialidade histrica.
A importncia dessa interpretao dos contedos filosficos se verifica no fato do
prprio Marx ter se valido do estudo crtico de muitos filsofos para seu amadurecimento
intelectual. A esse respeito, comum se ressaltar somente sua crtica especulao realizada
no processo de sua constituio metodolgica, desconsiderando a importncia dada por ele
capacidade abstrativa para realizar sua crtica Economia Poltica. Alis, dentro desta
discusso que se interpreta erroneamente a dialtica marxiana como uma superao do
idealismo dialtico de Hegel quando se encontra com os contedos materialistas da Economia
Poltica, como se houvesse uma simples transposio ou viragem 2 - do terreno filosfico
para o econmico. Como estudaremos neste captulo, a relao entre filosofia e economia
dentro da teoria dialtica de Marx exige uma anlise mais cuidadosa, tendo em vista que ela
muito mais complexa do que supuseram muitos marxistas. Este ponto fundamental para a
compreenso dialtica da categoria de prxis, pois no acerto de contas com a filosofia
alem, na busca da articulao entre abstrao e efetividade, que aparece este conceito
1 Em Sobre o carter afirmativo da cultura, Marcuse faz uma bela exposio desta situao contraditria do nexo entre filosofia e materialidade dentro do idealismo antigo, mostrando o desdobramento disto para a situao do idealismo dentro da cultura burguesa. 2 Ficou conhecida a frase de Engels, em seu Ludwig Feuerbach e o fim da Filosofia clssica alem, na qual coloca que existe em Hegel um materialismo colocado idealisticamente de cabea para baixo.
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marxiano, bem como, junto a ele, a perspectiva de um carter ativo de homem que renova a
prpria compreenso de filosofia.
A dificuldade em entender o vnculo entre filosofia e marxismo no s devido
controvrsia acerca do enfrentamento crtico do jovem Marx com a tradio filosfica
considerando, inclusive, a publicao tardia da maioria desses escritos de juventude -, mas
tambm s delimitaes histricas e tericas do prprio marxismo do sculo XX. A discusso
a respeito desse vnculo, da qual o Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt3 fruto4, partiu
da crise do movimento marxista europeu do incio do sculo XX, principalmente, aquele
vinculado aos partidos de esquerda europeus comunista e socialdemocrata - da poca. O
territrio clssico de influncia marxista das duas primeiras dcadas do sculo XX -
Alemanha, ustria, Hungria e Itlia, com exceo da Rssia - se abalou fortemente com as
derrotas polticas da esquerda ocorridas ao final da Primeira Guerra Mundial. Neste contexto,
a criao da Terceira Internacional (1919) foi atrasada para impactar as batalhas ocorridas na
conjuntura do ps-guerra, sem contar seu significante processo de stalinizao, ferindo ainda
mais a fertilidade do pensamento poltico da poca. Dentro dessa configurao, o movimento
marxista foi questionado por alguns de seus prprios intelectuais por abandonar a discusso
terica (filosfica) tanto na formao de quadros quanto nas discusses sobre aes polticas,
sendo este um fator importante que deveria ser considerado para avaliar essa derrota da
esquerda na Europa. Para eles5, ao tomar o emprico como fonte de conhecimento e a ao
prtica independente de qualquer reflexo, o movimento marxista do comeo do sculo XX
perdia seu potencial revolucionrio no que se refere s armas da crtica.
Em vista disso, a orientao do marxismo da Escola de Frankfurt colocava em relevo,
sobretudo depois de Horkheimer assumir a direo do Instituto de Pesquisas Sociais6, a
3 O que se convencionou chamar por Escola de Frankfurt pode ser mais bem caracterizado pelo projeto de um grupo de intelectuais vinculados alguns mais do que outros - ao Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt em desenvolver uma teoria crtica da sociedade, projeto terico este que pretendia estabelecer um vnculo entre experincia e pensamento na difcil articulao entre materialismo histrico dialtico e prxis social. 4 Vale considerar a fala de Slater de que existe uma preocupao terica encontrvel na Escola de Frankfurt desde o incio: a preocupao em defender, criticar e, em ltima anlise, materializar o legado crtico da filosofia. (SLATER, 1978: 68). Lembremos tambm que, ao assumir a direo do Instituto de Pesquisas Sociais em seu discurso oficial proferido nos anos 1930, Horkheimer explique o projeto do Instituto o vinculando a situao da histria da filosofia e a consequente configurao da filosofia naquela poca. 5 De acordo com Anderson, este grupo de marxistas - caracterizado por ele como pertencente ao que chama de marxismo ocidental -, ainda que com a inteno contrria, via-se dentro de um processo de separao paulatina entre teoria e prtica: "a unidade orgnica entre teoria e prtica realizada pelos tericos da gerao clssica de marxistas antes da Primeira Guerra [...] seria progressivamente desfeita entre 1918 e 1968, na Europa Ocidental" (ANDERSON, 1989: 48). 6 O Instituto de Pesquisas Sociais foi ligado oficialmente Universidade de Frankfurt, o que demandou um processo de institucionalizao. Os estatutos exigiam que o diretor do Instituto fosse um professor da Universidade de Frankfurt. Como em 1923-1924, poca de fundao do Instituto, nem Weil, nem Pollock e nem Horkheimer tinham qualificaes para o professorado superior, Weil terminou por indicar Carl Grnberg, um
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relao entre o materialismo dialtico e a filosofia. A recuperao da dimenso filosfica de
Marx, inicialmente empreendida por Karl Korsch Marxismo e filosofia e Lukcs
Histria e conscincia de classe nos anos 20, contribuiu para esta constituio da
perspectiva frankfurtiana da teoria marxista, especialmente, por vir ao encontro com posies
tericas do prprio Marx expressas em seus manuscritos parisienses tornados pblicos nos
anos 30. Esse interesse filosfico da teoria crtica se explica em parte, num primeiro
momento, pela constituio institucional do Instituto de Pesquisas Sociais, em parte tambm
como forma de combate a uma tendncia de marxismo cientificista em voga no comeo do
sculo XX com a Segunda Internacional (1889-1914), que acabava por retirar o carter crtico
da anlise terica da realidade social ao cair em um materialismo mecanicista redutor. Um
exemplo marcante desta limitao terica ganha expresso no debate marxista sobre a relao
entre base e superestrutura, no qual se pode enxergar o aparecimento de uma concepo
economicista7 da teoria marxista com consequncias deformadoras para a elaborao terica:
A metfora base/superestrutura sempre gerou mais problemas do que solues. Embora o prprio Marx a tenha usado muito raramente e apenas nas formas mais aforsticas e alusivas, ela passou a suportar um peso terico muito superior sua limitada capacidade. At certo ponto, os problemas j inerentes ao seu uso restrito foram agravados pela tendncia de Engels de usar uma linguagem que sugeria a compartimentao de esferas ou nveis fechados econmicos, polticos ou ideolgicos -, cujas relaes que mantinham entre si eram externas. Mas os problemas de fato comearam com o estabelecimento das ortodoxias stalinistas que elevaram ou reduziram a metfora condio de primeiro princpio do dogma marxista-leninista, afirmando a supremacia de uma esfera econmica independente sobre outras esferas passivamente subordinadas e reflexivas. Em particular, tendia-se a ver a esfera econmica mais ou menos como sinnimo para as foras tcnicas de produo, operando de acordo com leis naturais intrnsecas ao progresso tecnolgico, e assim a histria se tornou um processo mais ou menos mecnico de desenvolvimento tecnolgico. (WOOD, 2003: 51).
historiador com uma concepo marxista questionvel, pela qual via a transio do capitalismo para o socialismo como um fato cientfico irrefutvel, alm de no enfatizar o nexo entre teoria e prtica. A partir de 1927, Grnberg j no exercia nenhuma atividade junto ao Instituto, trazendo a necessidade da nomeao de outro diretor. Como em 1926, Horkheimer apresentara com sucesso sua tese, poderia, ento, satisfazer os estatutos. Desse modo: O impasse com o corpo docente foi resolvido mudando-se a Cadeira do diretor para Filosofia, tornando-se Horkheimer o primeiro professor de Filosofia e Filosofia social. Portanto, dever-se-ia lembrar que, quando tentamos rotular o trabalho subsequente de Horkheimer, o termo Filosofia Social no constitua um novo tipo de autocompreenso do Instituto, mas um expediente visando ter como diretor um homem em consonncia com os planos originais de Weil para seu Instituto. (SLATER, 1978: 27). 7 Esta perspectiva ganha maiores propores algum tempo depois na sofisticada elaborao terica do marxismo estruturalista de Louis Althusser. Este identificava, a partir de A Ideologia Alem, uma viragem na perspectiva terica de Marx, separando-o decididamente de seus escritos de juventude, vistos, desmerecidamente, como no-cientficos. Esta ruptura terica de Marx foi caracterizada enquanto um corte epistemolgico, em torno do qual foram travadas inmeras polmicas tericas e polticas. A esse respeito, interessa-nos apenas pontuar a no comunho da posio de Althusser, haja vista a importncia em acompanhar o itinerrio intelectual de Marx para uma compreenso dialtica de sua perspectiva terica. Tal acepo de Althusser est expressa em seu texto intitulado Querela do humanismo (ALTHUSSER, 1999).
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O determinismo econmico, ou economicismo, foi uma das tendncias que surgiram
na poca da Segunda Internacional, repercutindo fortemente ainda nas formulaes tericas
da Terceira Internacional. Esta fase do marxismo tambm trazia uma compreenso positivista
de cincia favorecida por algumas colocaes tanto de Engels, como depois de Lenin8 - que
colaboravam para o desenvolvimento de uma compreenso dogmtica da teoria marxista.
Alm disso, em termos polticos, a Segunda Internacional se caracterizou por ser uma
organizao do movimento proletrio num momento em que se visava sua expanso.
Discutia-se a importncia da conquista do poder poltico para se criar as condies para o
socialismo, o que significava a valorizao de objetivos imediatos, como reformas polticas,
econmicas e sociais dava-se, neste cenrio, a influncia de Kautsky. Dentro dessa
discusso, dividiam-se marxistas mais apegados ao radicalismo revolucionrio estes se
sobressaindo no plano terico -; e marxistas com tendncias mais reformistas como
Bernstein, com seu revisionismo-, sendo estes os que dominavam a organizao na prtica
(Cf. LOUREIRO, 2005: 34). Em meio dicotomia entre o radicalismo oficial e sua prtica,
via-se um crescimento do partido, acompanhado de sua burocratizao e oportunismo. Este
contexto complexo propiciou uma srie de graves dificuldades no plano terico do marxismo
que sofria diretamente com as desordens polticas ocorridas dentro e fora do movimento
operrio. Num ambiente poltico altamente desfavorvel, tendo em vista a trgica situao
histrica do marxismo sovitico e sua influncia nos movimentos comunistas europeus9, os
tericos marxistas enfrentavam as dificuldades em reexaminar o marxismo na dupla
esperana de explicar os erros do passado e preparar a ao do futuro. Isso deu incio a um
processo que conduziu, inevitavelmente, s regies mal iluminadas do passado filosfico de
Marx (JAY, 2008: 39).
Num contexto em que a teoria marxista se degringolava em estratgia poltica, o
estudo deste mbito terico de Marx gerou nos autores vinculados a Escola de Frankfurt uma 8 Sobre Lenin, ao pontuar as graves debilidades do marxismo-leninismo ortodoxo, Slater chama a ateno para a forma como Korsch, em sua obra de 1923, enfrenta o problema da perspectiva terica leniniana. Considerando que naquele momento histrico tal perspectiva ainda no havia se manifestado plenamente, Korsch coloca que o problema: [...] foi formulado como crtica a um grupo ainda no identificado de marxistas mais recentes, que equivocadamente interpretaram a abolio marxista da filosofia como a substituio dessa filosofia por uma srie de cincias positivas abstratas e no-dialticas. (KORSCH, 1976: 64). A esse respeito, Slater complementa que: Korsch alegava que a tendncia dominante na cincia burguesa contempornea no era idealista, mas que se inspirava numa perspectiva materialista colorida pelas cincias naturais. [...] Portanto, o marxismo-leninismo ortodoxo no adequado para a tarefa de uma crtica materialista histrica do materialismo cientfico natural e da lgica desse ltimo. (Ibid.: 65). 9 Sobre o caso alemo especificamente, Jay ressalta que: A ciso que dividiu o movimento operrio na Repblica de Weimar entre um Partido Comunista bolchevizado (o KPD) e um Partido Socialista no revolucionrio (o SPD) foi um espetculo deplorvel para os que ainda sustentavam a pureza da teoria marxista. (Ibid.: 40). Para um acompanhamento mais detido deste trgico momento poltico da Alemanha, vlido o estudo do livro A revoluo alem (1918-1923), de Isabel Loureiro.
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crescente preocupao em tematizar as questes ideolgicas10. Fugia-se, assim, de uma
interpretao marxista que separava economia e filosofia, algo que dificultava no
entendimento da influncia das foras espirituais nas condies materiais. Pelo limite desta
interpretao, os aspectos subjetivos eram mal dimensionados dentro da dialtica da dinmica
social, criando equvocos tericos que acabavam por gerar consequncias devastadoras para a
orientao de uma prtica poltica revolucionria na poca. Nesse sentido, surgia a
necessidade de um reexame do marxismo com vistas construo de uma prtica poltica
mais efetiva que alcanasse os problemas que se redesenhavam naquelas condies. Para
compreender melhor o aparecimento desta nova perspectiva terica, interessa-nos alguns
delineamentos histricos daquela situao especfica por se tratar dos frankfurtianos, faz-
se referncia aqui Alemanha - que ajudam a proporcionar o ambiente social desta discusso.
Nos anos de formao da Escola de Frankfurt, o potencial revolucionrio do
proletariado nos pases europeus era plausvel. A crise econmica na Europa aps a Primeira
Guerra Mundial se caracterizava por grandes acumulaes de capital, haja vista que empresas
de grande porte compravam as empresas menores por quantias muito baixas. Mesmo com o
crescimento do monoplio, no existia, de fato, o capital operante para garantir a base
capitalista. Nesse momento, aparecia o plano Dawes (agosto de 1924): vendo na Alemanha
devido sua alta capacidade de produo um lucrativo investimento, os EUA resolveram
entrar com capital suficiente para estabilizar a economia da Repblica de Weimar. Frente
obrigao econmica de pagar, com juros, o emprstimo Dawes, a Alemanha retomou
intensamente sua produo em massa. Para gerar os lucros necessrios, lanou altos encargos
na classe operria. No trecho a seguir, possvel conceber a situao especfica da classe
operria alem, esclarecendo o sentido da expectativa por parte dos marxistas de uma
sublevao proletria dentro destas condies histricas. Cito Slater:
A experincia dos operrios alemes pode ser reduzida basicamente ao fenmeno da racionalizao. Isso significaria a transferncia de tcnicas de produo americanas para a fbrica alem, com um aumento surpreendente na intensidade do trabalho. Houve um aumento paralelo e bastante significativo nos ndices de acidentes [...]. Estatsticas oficiais da sade mostram uma deteriorao marcante no padro geral de sade, em parte devido intensidade crescente do trabalho, e em parte ao baixo nvel salarial do trabalhador. Os salrios aumentaram nominalmente entre 1924 e 1930, mas isso enganador: primeiro, o ndice de aumento logo caiu, e segundo, os aumentos nunca foram suficientes para alcanar o mnimo de subsistncia reconhecido, quanto mais
10 A prpria inteno do projeto de uma teoria crtica da sociedade coloca em evidncia a necessidade de se opor, a partir da clara influncia de Marx, a uma concepo tradicional de teoria. Desta forma, ressaltava-se o problema dos limites de certa abordagem terica para o encaminhamento das questes materiais, explicitando uma focalizao terica preocupada em avaliar a questo da luta ideolgica, haja vista seu frequente exame do nexo entre condies objetivas e subjetivas para o encaminhamento da perspectiva revolucionria.
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ultrapass-lo. E dedues salariais sob a forma de impostos e seguros aumentaram, entre 1914 e 1927, em 200%, atingindo 300% em 1932. desnecessrio dizer que essa queda nos salrios reais levou a um aumento da extensidade do trabalho; embora os social-democratas defendessem o princpio da jornada de 8 horas, as horas extras ou um segundo emprego tornaram-se uma necessidade de todo operrio. Mas, racionalizao significava trabalho rduo para um nmero reduzido de operrios; para os demais, significa o desemprego, que de 1924 a 1932 foi maior que nos anos anteriores guerra. E junto com esse alto ndice de desemprego veio o meio-expediente, que na segunda metade da dcada de 20 absorvia um dcimo dos operrios empregados. [...] Assim, quanto esfera de produo, a pauperizao foi um fato constante, mas explosivo, na existncia da classe operria na Repblica de Weimar. [...] Governos sucessivos faziam concesses parciais s massas (taxando artigos de luxo) ou ento, como no governo de Brning, que realmente chegou a cortar despesas do setor pblico (numa poca de dificuldades sociais generalizadas), deixando a indstria intacta e mesmo fornecendo ajuda governamental, convencido de que os problemas da Alemanha s poderiam ser resolvidos com o sacrifcio da fora de trabalho. Na realidade, a soluo s veio com Hitler e o reino do terror nazista. (SLATER, 1978: 38-39)
Em meio a essa dinmica social, aparecia, ento, a necessidade em analisar o
fenmeno do fascismo para se compreender a configurao do capitalismo monopolista de
estado11 e, dentro dela, a situao da classe proletria. Com Hitler no poder, o desemprego
diminuiu rapidamente, entretanto, a intensidade e a extenso do trabalho, assim como o ndice
de acidentes aumentaram em demasia. Alm disso, a quantidade de dedues salariais
(basicamente em proveito da mquina de guerra) elevou-se bastante, a produo para
consumo pessoal caiu, e estabeleceu-se um progressivo racionamento e aviltamento de
alimentos e vestimentas. (Ibid.: 43). Esse estado desolador da vida social expressava no
apenas um empobrecimento econmico, como tambm poltico, pois o movimento trabalhista
alemo havia sido esmagado pela brutal poltica imperialista nazista.
Com a priso de todos os comunistas ativos, social-democratas e sindicalistas militantes, leis trabalhistas repressivas foram progressivamente institudas a fim de imobilizar a organizao da classe operria como um todo e de reagrupar os operrios aterrorizados em torno das necessidades da mquina da guerra. Os trabalhadores rurais foram impedidos de migrar para as cidades e, subsequentemente, as autoridades comearam a despedir inmeros colarinhos-brancos e operrios fabris que haviam chegado s reas urbanas na gerao anterior. E em 1935 comeou um recrutamento sistemtico para o trabalho, deciso que se tornou ainda mais opressiva com o cancelamento, em 1936, de todos os feriados. (Ibid.: Idem).
11 Sobretudo Pollock procura explicar essa associao entre o fascismo, o capitalismo monopolista e o capitalismo monopolista de estado, tentando desnudar a natureza especfica da economia fascista. Vendo sua posio terica como uma negao tendencial da base econmica capitalista do fascismo, Neumann era crtico da noo de Pollock de capitalismo monopolista de estado. Entretanto, as principais figuras do Instituto de Pesquisa Sociais se posicionaram a favor da compreenso de Pollock. A este respeito, alguns autores questionam sobre a possibilidade de que erros de sua leitura conjetural da economia tenham levado outros integrantes do Instituto, nela baseados, a consequncias tericas equivocadas.
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Fica evidente como a soluo nazista para a crise econmica alem tornou ainda
mais opressiva a vida dos operrios. Com os efeitos mortferos da guerra, conclua-se o
processo de pauperizao crescente na Alemanha. Entretanto, essa situao social no trouxe
como consequncia uma sublevao proletria. Neste contexto, via-se aparecer o cinismo da
ideologia nazista enquanto fator necessrio para a manuteno dessa ordem social degradante
para a maior parte da populao. De fato, o terror nazista tinha uma fora de dominao
surpreendente sobre a populao explorada. Considerando que a formulao poltica do
nazismo contava com o apoio das classes sociais dominantes - pois favorecia seus interesses -,
as contradies sociais pareciam no tornar o governo nazista to instvel. A classe realmente
oprimida sofria tanto com o esmagamento de sua organizao poltica quanto com a eficiente
manipulao da ideologia nazista. Por isso, o teor da produo terica frankfurtiana se
relacionava com essa contextualizao histrica: medida que seus membros escrevem, as
perspectivas revolucionrias diminuem de forma crescente (Ibid.: 44). O interesse pela
anlise do aparato cultural crescia na medida em que a classe proletria se resignava frente a
esse aumento substancial da opresso. Assim, para estes autores, conceber o materialismo
histrico dentro do seu contexto scio-poltico os encaminhava para reas no to exploradas,
como os problemas superestruturais. No por abrirem mo desta linha terica, mas,
justamente, por buscar retom-la.
Dentro desta tendncia, adiante, veremos como a interpretao de Marx realizada por
Marcuse em seus textos de juventude analisa a ligao basilar entre filosofia e crtica da
Economia Poltica, demonstrando a relevncia do fundamento filosfico para as
consequncias prtico-revolucionrias que Marx imprimiu em sua concepo de crtica
radical. Dessa forma, Marcuse no apenas levanta a questo da prxis, como o faz mediante a
abordagem do modo pelo qual o conceito marxiano de trabalho trata de uma situao
econmica especfica a forma de trabalho e a forma de existncia do trabalhador na
sociedade capitalista -, revelando seu verdadeiro significado atravs de uma dimenso
espiritual essencial que lhe oculta. a determinao conceitual de natureza filosfica da
categoria de trabalho - a saber, a alienao - que permite a visualizao de uma determinada
relao econmica como base para uma revoluo social.
Considerando o fato de Marcuse realizar, no momento aqui avaliado, uma abordagem
mais prxima da letra de Marx, interessa-nos tecer alguns esclarecimentos, mediante o
tratamento do pensamento deste ltimo, a respeito do controverso tema da realizao da
filosofia, haja vista seu encadeamento com a questo da prxis, ponto nuclear de nosso
interesse. A partir disso, procura-se aprofundar a compreenso do nexo entre teoria e prtica
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na teoria marxista, pontuando, especialmente, o tratamento dado por Marcuse a essa discusso
em alguns de seus escritos dos anos 1930.
1.1. Marcuse: a relao entre filosofia e economia em Marx
Todas as tentativas de negao e ocultamento envergonhado do contedo filosfico da teoria marxista demonstram um desconhecimento completo do terreno histrico
original dessa teoria; elas partem de uma separao entre filosofia, economia e prtica revolucionria que um produto da coisificao, justamente combatida por
Marx e j superada por ele no incio de sua crtica. (Marcuse)
Em seus ensaios produzidos nas dcadas de 193012 e 1940, Marcuse expressa a
influncia exercida pela teoria de Marx ao se encontrar com suas ideias, principalmente, aps
a leitura do recm-publicado Manuscritos econmico-filosficos (1844). Pode-se apontar para
quatro escritos principais do perodo de juventude de Marcuse nos quais se v sua
preocupao em discutir a constituio filosfica da teoria marxista: em 1932, em seu artigo
intitulado Novas fontes para a fundamentao do materialismo histrico; em 1936, em seu
artigo, ainda no traduzido para o portugus, The Concept of Essence; em seu importante
ensaio de 1937, Filosofia e Teoria crtica13; e em seu livro de 1941, Razo e revoluo
Hegel e o advento da teoria social. Em ambos os textos, sublinha-se a inovao terica da
crtica da Economia Poltica marxiana em sua intensa articulao com uma base filosfica
precisa. A respeito deste interesse filosfico que Marcuse nutria por Marx, Jay frisa um ponto
importante:
Num artigo com que contribuiu para Die Gesellschaft [A sociedade] de Rudolph Hilferding em 1932, Marcuse afirmou que seria um erro interpretar as preocupaes filosficas dos primeiros manuscritos de Marx como tendo sido superadas nos textos de maturidade. A revoluo comunista, assinalou, prometia mais do que a mera mudana das relaes econmicas; em um plano mais ambicioso, contemplava uma transformao da existncia bsica do homem, com a realizao de sua essncia. Mediante a revoluo, o homem realizaria sua natureza potencial na histria, o que podia ser entendido como a verdadeira histria natural do homem. (JAY, 2008: 120).
Marcuse, em seus escritos, atenta para o descuido em simplesmente se desfazer do
passado filosfico de Marx ao remeter a sua discusso de juventude a um momento j 12 Marcuse inicia sua participao no Instituto de Pesquisa Social em 1933. Fugido de Frankfurt, trabalha em sua filial em Genebra depois da ascenso de Hitler ao poder. Mas expressa seus antecedentes com o marxismo desde os anos 1920, como atesta sua participao em 1919 de um conselho de soldados, sua tese de doutorado e seus escritos durante sua orientao com Heidegger. 13 Poderia ser adicionados na mesma esteira deste ensaio dois textos de Horkheimer, um deles publicado inclusive junto com o de Marcuse no terceiro fascculo da Zeitschrift fr Sozial forschung, de 1937, e tambm chamado Filosofia e teoria crtica. Alm de outro de Horkheimer, o reconhecido Teoria tradicional e teoria crtica, tambm publicado em 1937.
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superado, sem grande relevncia para o entendimento de sua teoria. Em seu artigo de 1932,
trata especificamente dos Manuscritos, apontando para uma problemtica a seu ver central: ao
falar do fato da Economia Poltica, examinando seus conceitos tradicionais, Marx descobre
um novo fato que no est no terreno estritamente econmico, mas que, entretanto, ampara
todo o significado da Economia Poltica. Este fato o contexto do trabalho percebido
atravs das noes de alienao e exteriorizao e , a partir disso, ou melhor, mediante o seu
ocultamento, que a Economia Poltica promove sua sano cientfica da distoro do
universo histrico-social do homem em um universo do dinheiro e da mercadoria estranho e
hostil ao homem (MARCUSE, 1981a: 12).
O contedo deste contexto aparece sob a luz dessas noes abstratas, sem deixar de ser
um fenmeno concreto que se expressa nas determinaes materiais das relaes sociais. A
visualizao depende, ento, de uma perspectiva terica que retira do conhecimento das
relaes econmicas dadas sua base. No por acaso que Marx afirme, nos Manuscritos, ter
obtido seus resultados mediante uma anlise inteiramente emprica, fundada num meticuloso
estudo crtico da economia nacional (MARX, 2004: 19-20). Ainda assim, deve-se sublinhar
que a exteriorizao e a alienao do trabalho no se fazem entender pela simples descrio
de uma situao econmica e que, inclusive, sem a anlise destes pontos abstratos, Marx no
conseguiria conceber, em sua elaborao da categoria de trabalho, a sua fundamental noo de
propriedade privada ligada a necessidade de sua superao prtica mediante uma revoluo
comunista.
Mas, ento, qual a base terica de Marx, filosfica ou econmica? Sabe-se que
ambas as esferas so de extrema relevncia para a teoria marxista, o que significa no se tratar
de duas alternativas a se optar. A questo toda parece estar mais presente no embarao que as
noes de filosofia e economia ganham dentro da dialtica marxiana, intensificado pela
leitura descontnua da maturao intelectual do autor devido a suas publicaes tardias.
Talvez, por isso, dar centralidade aos Manuscritos para esta discusso seja to proveitoso,
como notou Marcuse. Ele apontou para uma dificuldade interessante dentro do movimento
argumentativo desta obra:
preciso ter em mente que, j nesta descrio do fato da Economia Poltica que o trabalho exteriorizado, o discurso meramente em termos de Economia Poltica frequentemente interrompido: a situao econmica do trabalhador referida existncia do homem que trabalha. A exteriorizao e a alienao atingem, alm da esfera das relaes econmicas, a essncia e a realidade do homem como homem, e somente por este motivo que a perda do objeto do trabalho tem uma significao to importante. (MARCUSE, 1981a: 17).
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Dentro do delineamento da obra, haveria um rompimento de sua diviso em trs partes
salrio do trabalho, lucro do capital e renda da terra em virtude da argumentao ser
tomada por uma nova faceta da problemtica em questo: o trabalho alienado. O apego de
Marx ao movimento do prprio real no deixa com isso de ser nuclear. No se deve, a partir
da observao deste movimento argumentativo, menosprezar o significado de suas anlises
acerca das relaes econmicas na sociedade capitalista em suas caracterizaes sobre as
formas de trabalho, pois nela est a verdade histrica lapidada pela operao intelectiva
marxiana. Por isso, quando fala da separao decisiva do trabalhador em relao aos meios de
produo14; do produto do trabalho15 e do prprio trabalhador16 transformado em mercadoria;
da dependncia17 que a existncia do trabalhador tem em relao ao capitalista18; da
desproporo entre produo19, salrio do trabalhador20 e lucro do capitalista21 como condio
desta dinmica econmica; da propriedade privada da terra enquanto roubo naturalizado22;
enfim, ao tratar da fora produtiva do homem manifestada, dentro destas condies, na
misria de sua existncia23, Marx desenvolve de fato seu conceito de trabalho. V-se, assim,
como a compreenso da categoria de trabalho no modo de produo capitalista uma
construo conceitual negativa, pois dentro de uma determinada relao econmica dada
que se manifesta a perda da realidade humana, a privao de suas foras essenciais. Em
Razo e revoluo, Marcuse retoma essa discusso de seu texto de 1932, sintetizando bem
essa peculiaridade da negao dentro da concepo de verdade na teoria marxista:
[...] a proposio de Marx uma proposio crtica, e indica que a relao dominante entra a conscincia e a existncia social uma relao falsa, que deve ser superada antes que uma verdadeira relao possa nascer. A verdade da tese materialista deve, pois, ser efetuada pela sua negao. (MARCUSE, 2004: 237).
O modo como Marx trata a realidade do homem no foi alcanado por seu simples
contato com o conhecimento emprico, mas sim por um tratamento crtico das categorias
econmicas na demonstrao da inverso dos conceitos tradicionais da Economia Poltica.
Por isso, a economia desde o incio no pode ser considerada como uma cincia qualquer
(...) e, desse modo, tomada como objeto de anlise, mas como expresso cientfica de uma
14 (MARX, 2004: 23). 15 (Cf. Ibid.: 37). 16 (Cf. Ibid.: 24). 17 (Cf. Ibid.: 25). 18 (Cf. Ibid.: 23). 19 (Cf. Ibid.: 47). 20 (Cf. Ibid.: 40-41). 21 (Cf. Ibid.: 47). 22 (Cf. Ibid.: 61). 23 (Cf. Ibid.: 79).
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problemtica que apreende toda a essncia humana. (MARCUSE, 1981a: 12). Mesmo em
Hegel, j possvel notar essa valorizao da cincia econmica em seu nexo com a
filosofia24.
O desvendamento da realidade no sentido da construo de uma crtica positiva
depende deste entrelaamento que a fundamentao filosfica cria com as categorias
econmicas ao lembr-las de sua verdadeira origem na realidade: so acontecimentos
histricos. No sem sentido que Marcuse veja a base da problemtica filosfica de Hegel
entrar na prpria fundamentao da teoria marxiana. Vale lembrar que, para Hegel, o
substrato da filosofia o pensamento apenas se inicia na conscincia imediata, mas se
constitui mesmo pela reflexo que destri esta percepo inicial: a anlise de um objeto
particular da experincia sensvel individual demonstra a realidade do universal, sendo ele seu
verdadeiro contedo. Dentro do pensamento hegeliano, somente atravs do movimento do
pensar - que inclui inevitavelmente esse negativo - que possvel a instaurao da verdade.
Ou seja, tanto em Marx quanto em Hegel necessria essa crtica negativa para se atingir o
ser das coisas. Sobre este aspecto, pode-se mencionar a referncia que Marcuse faz ao termo
contraconceitos: as determinaes positivas do trabalho em Marx so quase todas dadas
como contraconceitos do trabalho exteriorizado, mas o carter ontolgico desse conceito
claramente expressado nelas (MARCUSE, 1981a: 19). interessante notar que o uso do
termo ontologia feito aqui por Marcuse se d menos por sua vontade25 do que por necessidade
terica. Se por um lado isso instiga a questionar o sentido de sua resistncia no emprego dessa
palavra26, por outro, parece remeter a um momento em que Marx termina por ratificar a
importncia de uma dimenso filosfica herdada de Hegel - ao versar, nos Manuscritos,
acerca da efetivao da essncia humana. Cabe ressaltar que Marcuse, diferenciando-se da
tendncia antimetafsica de Horkheimer27, recebe os Manuscritos concordando com a posio
central que a categoria de trabalho toma no pensamento marxiano. Como expe Jay:
24 Chama-se tambm filosofia em especial cincia, que se deve aos tempos mais recentes, da economia poltica, a qual costumamos designar por economia racional dos Estados ou economia estatal da inteligncia. (HEGEL, 1969: 76). 25 Marcuse pontua: [...] evitaramos o termo to mal empregado de ontologia em relao teoria marxista se ele no tivesse sido utilizado expressamente pelo prprio Marx nesse contexto. (Ibid.: 19). 26 A passagem de Razo e revoluo citada na pgina 22 deste trabalho nos ajuda um pouco no entendimento deste ponto em Marcuse. 27Jay reconhece o afastamento de Horkheimer em relao ao tratamento desta perspectiva central que a categoria de trabalho assume nos Manuscritos ao tratar do antagonismo de Horkheimer ao que chama de fetichizao do trabalho. Acerca desse afastamento, cito: A posio central do trabalho na obra de Marx, assim como sua nfase concomitante no problema do trabalho alienado na sociedade capitalista, desemprenhou um papel relativamente pequeno nos textos de Horkheimer. Na Dmmerung, ele escreveu: Fazer do trabalho uma categoria transcendental da atividade humana uma ideologia asctica. [...] Por aderirem a esse conceito geral, os socialistas se transformam em portadores da propaganda capitalista. (JAY, 2008: 100).
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O trabalho, afirmou Marcuse, era a natureza do homem; era uma categoria ontolgica, como Marx e Hegel haviam compreendido, embora o primeiro tivesse sido mais perspicaz, ao leva-lo alm do trabalho mental. O homem, disse Marcuse, tinha de se objetivar; precisava tornar-se tanto na-sich [em si] quanto fr-sich [para si], tanto objeto quanto sujeito. O horror do capitalismo era produzido pelo tipo de objetivao que ele fomentava. Nesse aspecto, Marcuse concordou com a anlise do trabalho alienado nos Manuscritos econmico-filosfico, qual Horkheimer e Adorno raras vezes se referiram em seus escritos. (JAY, 2008: 121).
Parece haver uma ligao entre a perspectiva ontolgica de Marx e a ontologia
hegeliana. Ambos desenvolvem uma perspectiva dialtica que tem, ao menos, duas
caractersticas primordiais em comum no que tange a ontologia. Primeiro, a imanncia como
orientao metodolgica bsica: tendo em vista que o princpio do conhecimento se ampara
no ser, o objeto - para ser conhecido - deve ser analisado mediante sua consistncia interna. E,
segundo, parte-se do ponto de vista da totalidade do ser para a compreenso especfica dos
particulares: ou seja, o objeto analisado deve ser tomado dentro de um processo que abarque o
seu prprio desenvolvimento constitutivo (gnese) para que alcance sua verdade autntica.
Esses delineamentos tericos de Hegel e Marx podem ser mais bem compreendidos -
sobretudo dentro da nossa perspectiva de interesse, que a filosfica -, na discusso
promovida por Marcuse acerca do conceito de essncia, realizada de maneira central em seu
artigo de 1936, e, dentro de um escopo maior sua reviso das ideias de Hegel - em sua obra
de 1941.
Em The Concept of Essence, Marcuse empreende um exame sobre o conceito de
essncia dentro da histria da filosofia por um vis marxista. Sem abandonar as formulaes
que este conceito ganhou na histria da filosofia, sua interpretao evidencia a tenso crtica
destas elaboraes tericas com a experincia histrica da humanidade, passando por Plato,
Descartes, a fenomenologia, o positivismo, Hegel e Marx. A tradio filosfica no caminhou
pelos trilhos da superao do real. Ao se pautar na construo de conceitos atemporais, em
nome da necessidade da universalidade, acaba por desenvolver uma funo ideolgica precisa
de mistificar a conflitualidade real do campo social. Com a desqualificao da dimenso
histrica, a filosofia transformou as contraditrias relaes humanas historicamente
determinadas em postulados formais universalmente vlidos. Por esta perspectiva atemporal,
os pensadores esto objetivamente compelidos a conceber quase sempre de maneira limitada
as questes do homem sobre as quais querem refletir. Consequentemente, dentro dessa linha
terica, a filosofia dificilmente formula conceitos que esclarecem os conflitos sociais da
sociedade burguesa tendo em vista sua superao. Por ironia, o filsofo que estabeleceu a
contradio como o princpio do movimento do real, participa contraditoriamente deste
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contexto dentro da histria da filosofia. Ningum menos que o pai moderno da dialtica
inaugurou uma concepo terica que encaminhou a filosofia para o reencontro com sua
genuna capacidade crtica28.
Na elaborao de seu grande sistema filosfico da razo, Hegel lana as premissas
fundamentais para uma nova inteligibilidade do real ao configurar como funo da filosofia:
conceber a cincia como unidade entre conscincia e materialidade, fazendo com que uma e
outra se tornassem em funo de seu entrelaamento tanto objeto como agentes do
proceder do conjunto do ser social (RANIERI, 2011: 13). Haveria, ento, no modo de
atuao do homem no mundo, a possibilidade dele pensar a realidade na qual vive atravs da
anlise do seu prprio processo de constituio, compreendendo, assim, a racionalidade
intrnseca do movimento histrico da experincia externa e interna. Em vista deste
encaminhamento terico, Hegel concebe um sujeito no mais estvel como o tido pela lgica
tradicional. Diferentemente, a lgica do sistema dialtico altera a prpria estrutura da
proposio, pois nela aparece um sujeito ativo que se autodesenvolve nos seus predicados.
Assim, Hegel desfecha o golpe decisivo contra a lgica formal tradicional. O sujeito passa a
ser o predicado sem com ele, entretanto, se identificar. [...] O lugar da verdade no a
proposio, mas um sistema dinmico de proposies especulativas, [...] de modo que s o
processo total representa a verdade (MARCUSE, 2004: 97).
As mediaes entre sujeito e totalidade processual na constituio da verdade
demonstram como o contato do pensamento com a materialidade no de modo algum direto.
Afastando-se do saber imediato, a filosofia afirma sua peculiaridade ao transformar, atravs
da reflexo conceitual, os sentimentos, intuies, opinies e representaes em pensamentos.
nesse sentido que Hegel diz: chama-se irrefletidamente realidade a todo o capricho, ao
erro, ao mal e ao que se situa nesta linha, como tambm a toda e qualquer existncia atrofiada
e passageira (HEGEL, 1969: 74). Ou seja, se de fato se pretende refletir sobre o que existe,
no se pode, ento, chamar qualquer caracterizao da existncia como realidade,
considerando que muitas delas devem ser qualificadas enquanto aparncia ou propriedades
28 Marcuse, em seu artigo Sobre o carter afirmativo da cultura, afirma que a pretenso originria da filosofia a de constituir a prxis em conformidade s verdades conhecidas. Diz isso para afirmar em seguida que a concretizao desta pretenso j comea a desaparecer na prpria Grcia Antiga. Apesar de acreditar que o conhecimento e a verdade auxiliam o bem viver, considerando a mediao racional que necessitamos para alcanar o que bom, justo e benfico na vida, Aristteles estabelece uma hierarquia entre o conhecimento filosfico superior e sem um fim fora de si e o saber orientado s finalidades das coisas da existncia cotidiana inferior. Assim, mesmo que considere o carter prtico de todo conhecimento, Aristteles acaba por conceber a vida em uma distino fundamental: de um lado, o necessrio, e de outro, o belo. Marcuse questiona essa distino por consolidar uma concepo de teoria como uma atividade autnoma, pretensiosamente superior, em sua pureza, o que termina por afastar as verdades conhecidas da prxis.
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acidentais. Esta compreenso restrita de realidade29 no separa a filosofia de seu contedo
concreto. Hegel clarifica esta questo, remetendo-a a seu compasso com outros momentos da
histria da filosofia:
Visto que a reflexo contm em geral o princpio (inclusive no sentido de comeo) da filosofia, e tendo ela novamente florescido na sua independncia, nos tempos modernos (aps a poca da Reforma luterana), e uma vez que, justamente desde o incio, no se ateve simplesmente ao abstrato, como nos primrdios filosficos dos gregos, mas se arrojou ao mesmo tempo matria, aparentemente ilimitada, do mundo fenomnico, deu-se o nome de filosofia a todo saber que se ocupa do conhecimento da medida permanente e do universal no mar das individualidades empricas, e do necessrio, das leis na aparente desordem da infinita multido do acidental, e deste modo recebeu o seu contedo das prprias intuies e percepes do exterior e do interior, da natureza presente e do esprito presente, e do peito do homem. (Ibid.: 74).
Configurando uma nova articulao entre reflexo e realidade, encontra-se na
fundamentao terica hegeliana uma especificidade terica que:
[...] o distingue, certamente, dos seus contemporneos e antecessores e o coloca como autor cuja contribuio no pode ser ignorada, pois sua perspectiva exige das outras teorias a prospeco de seu prprio contedo, j que as obriga a demonstrar que o abandono vida do objeto compatvel com os instrumentos tericos usados pelas propostas analticas oriundas de seus princpios gnosiolgicos de avaliao. Categorias como conceito, essncia, mediao, negao, determinaes-da-reflexo atuam como elementos que a cada momento interagem entre si na tentativa de apresentar hierarquias lgicas como resultado de transposies ontolgicas do ser social no mundo e de como as esferas reflexivas e de atuao histrica (indivduo, conscincia e sociedade) incorporadas pelas categorias singularidade, particularidade e universalidade so aquelas que perfazem o todo, na medida em que nada da produo desse mundo no qual atuam pode ser separado de seu prprio vir-a-ser. (RANIERI, 2011: 13).
Ao pautar a importncia da inovao metodolgica de Hegel, a passagem de Ranieri
justifica30 nossa breve retomada da teoria hegeliana. Sem sair do terreno especulativo, ao
desenvolver o seu pensamento dialtico, Hegel inaugura uma nova relao com o devir
histrico que transfigura a conexo entre filosofia e mundo material: supera-se a perspectiva
gnosiolgica do conhecimento tendo em vista uma perspectiva ontolgica. Isto o permitiu
criar conceitos filosficos que, mesmo em seu carter abstrato, conseguiam colocar em
cheque problemas do mbito social, pois sua proposta analtica como pontua Ranieri no
trecho acima -, no compartilha mais de princpios gnosiolgicos de avaliao. Dessa
forma, as contradies da realidade poderiam ser, enfim, tratadas pela filosofia e o homem
29 Como acentua Marcuse: Se no for apreendida a distino entre realidade e atualidade ficam sem sentido os princpios decisivos da filosofia de Hegel (MARCUSE, 2004: 139). 30 Ao denunciar a prtica oportunista dos revisionistas que queriam se desfazer dos elementos utpicos de Marx, Marcuse tambm nos ajuda nesta justificativa: As escolas marxistas que abandonaram os fundamentos revolucionrios da teoria marxista eram as mesmas que rejeitavam abertamente os aspectos hegelianos desta teoria, especialmente a dialtica. (Ibid.: 341).
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poderia ser entendido, de maneira essencial, por sua atuao no mundo humano (produo e
reproduo da vida). Em Hegel, portanto, a natureza do conhecer redefinida, dando
centralidade ao momento negativo. O conhecimento desenreda-se das antinomias: a
contradio levada s ltimas consequncias, pois se torna doadora de identidade. No
concernente a esta questo, o autor de Razo e revoluo explica sinteticamente o conceito
hegeliano de essncia:
A essncia denota a unidade do ser, sua identidade atravs da mudana. O eu , precisamente, esta unidade ou identidade? No um substrato permanente e fixo, mas um processo, dentro do qual todas as coisas enfrentam suas contradies inerentes e se revelam como um resultado. Concebida desta maneira, a identidade contm seu oposto, sua diferena, se precipita na negatividade e permanece sendo o que unicamente pela negao desta negatividade. Ele se fragmenta em uma multiplicidade de estados e relaes a outras coisas, estados e relaes que, de incio lhe eram exteriores, mas que se tornam parte de seu prprio ser quando trazidos ativa influncia de sua essncia. A identidade , pois, o mesmo que a totalidade negativa que se revelara estrutura da realidade; ela o mesmo que a Essncia. (MARCUSE, 2004: 133).
A separao das entidades concretas prpria da percepo do senso comum se
transforma, pela razo dialtica, em identidade dos opostos. Mesmo a ciso recorrente entre
aspectos mais abstratos, como entendimento e sensibilidade, subjetividade e objetividade,
pensamento e existncia; so tomados por sua unidade e totalidade enquanto processo. Deste
modo, a filosofia se origina na destruio da estabilidade do senso comum, buscando restaurar
a desintegrao entre razo e mundo. Da a grande originalidade da concepo filosfica
hegeliana: pretende-se estabelecer uma estrutura explicativa sobre o modo de ser do mundo,
partindo-se da compreenso que a processualidade do pensamento se origina da
processualidade do real. Nesse sentido, como ressalta Marcuse, a passagem de Hegel da
lgica tradicional lgica material marca o primeiro passo em direo unificao da teoria
com a prtica (Ibid.: 98). Por isso, o autor de Razo e revoluo identifica na posio de
Hegel uma inverso das leis tradicionais do pensamento:
Na lgica de Hegel, o contedo das categorias tradicionais surge inteiramente s avessas. [...], j que as categorias tradicionais so o catecismo da prtica e do pensamento cotidianos (incluindo o pensamento cientfico comum), a lgica de Hegel, na verdade, apresenta regras e formas da ao e do pensamento falsos falsos do ponto-de-vista do senso comum. [...] a dialtica mostra que est latente no senso comum a perigosa implicao de que a forma sob a qual o mundo est dado e organizado pode contradizer seu contedo autntico, isto , que as potencialidades inerentes aos homens e coisas podem exigir a dissoluo das formas dadas. A lgica formal aceita a forma-do-mundo como ela , e dita algumas regras gerais para a orientao terica dentro dele. A lgica dialtica, ao contrrio, rejeita qualquer pretenso de sacralidade do que est dado, e no tem condescendncia para com aqueles que vivem sob sua gide. Ela sustenta que a existncia exterior nunca critrio exclusivo da verdade de um contedo, mas que toda forma de existncia
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deve provar, diante de um tribunal mais alto, se adequada ou no ao seu contedo. (Ibid.: 120-121).
Em sentido semelhante, em seu artigo Filosofia e teoria crtica, reportando-se a
Enciclopdia de Hegel, Marcuse coloca que:
A lgica dialtica refere-se, em primeiro lugar, falha encerrada em tal interpretao do juzo: a causalidade da predicao, a exterioridade do processo de julgar, no qual o sujeito do juzo aparece de fora para si, como subsistente, e o predicado como situado em nossas cabeas. (MARCUSE, 1997: 150).
Marcuse, aproximando-se da perspectiva hegeliana pela qual se entende que o
movimento do pensar que constitui a filosofia se manifesta em sua prpria constituio
histrica, v na dialtica o fundamento metodolgico que permite a visualizao terica de
um carter dbio da histria da filosofia. Para ele, pode-se salvar a verdade presente nas
concepes metafsicas fundamentais, mostrando como somente de forma aparente essas
categorias se distanciam da realidade concreta, sendo na verdade fortemente determinadas
pelas condies histrico-sociais. Eis a seu interesse em retomar os conceitos de essncia
dentro da histria da filosofia. Marcuse entende que mesmo conceitos de um alto carter
metafsico devem ser interpretados em seus laos com a realidade histrica dos homens31.
Alis, ele acredita que justamente nesse teor metafsico que podemos encontrar melhor o
carter contraditrio de uma teoria, isto , na medida exata de sua traio:
[...] mesmo essas concepes filosficas to sublimes esto sujeitas ao desenvolvimento histrico. No tanto o seu contedo, mas sim sua posio e funo dentro dos sistemas filosficos que muda. Uma vez isto visto, fica claro que esses vrios conceitos fornecem uma indicao mais clara da transformao histrica da filosofia do que aqueles cujos contedos so mais prximos da facticidade. Seu carter metafsico trai mais do que esconde. (MARCUSE, 1968: 43) [Traduo minha]. 32
A chave metodolgica inaugurada por Hegel pode enriquecer a filosofia na
interpretao de sua prpria histria. Para Marcuse, consequentemente, o entendimento de
qualquer corrente de pensamento no est completo somente com a anlise do seu
desenvolvimento metodolgico. Sem sua dimenso histrica, camos numa verso
epistemolgica formal que separa o reino da facticidade do reino da essncia.
31 Marcuse se refere a esse sentido negativo do contedo metafsico ao dizer em 1937: Quando a teoria crtica ocupa-se com as doutrinas filosficas, nas quais ainda se necessita falar dos homens, ocupa-se em primeiro lugar com o ocultamento e a falsa interpretao, sob as quais se faz a discusso dos homens no perodo burgus (MARCUSE, 1997: 149). 32 [...] even these loftiest conceptions of philosophy are subject to historical development. It is not so much their content as it is their position and function within philosophical systems changes. Once this is seen, it becomes clear that these very concepts provide a clearer indication of the historical transformation of philosophy than those whose contents are closer to facticity. Their metaphysical character betrays more than it conceals.
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Contudo, mesmo com toda essa inovao terica possibilitada pela dialtica hegeliana,
mantm-se nela uma concepo de filosofia que no consegue superar seu carter
especulativo. Por isso, Marcuse acredita que a compreenso correta do pensamento dialtico
s aparece sem distores com Marx. Ainda que supere Kant ao colocar a atividade racional
como componente da objetividade - ou seja, como elemento histrico que se relaciona
reciprocamente com o mundo -, Hegel, ao desenvolver um construto puramente ideacional,
compreende a razo ainda de maneira afirmativa. J Marx, utilizando o pensamento hegeliano
contra o prprio Hegel, procura a racionalidade na realidade objetiva, transferindo
completamente o trabalho da razo para a teoria e a prtica social. Portanto, em 1936, ao
apresentar essa evoluo decisiva no conceito de essncia entre Hegel e Marx33, Marcuse
constata uma transformao essencial da filosofia e do seu carter de verdade. Levado para
outra direo, o conceito dialtico de essncia deixa de pertencer teoria pura. O ser no
pode ser concebido enquanto ser da abstrao especulativa. A doutrina da essncia atinge seu
alcance mais inovador, pois o problema da relao entre essncia e aparncia tido como real.
A esse respeito, em 1941, Marcuse pontua uma diferena fundamental entre Hegel e Marx no
que tange ao conceito de totalidade:
Dissemos que para Marx, como para Hegel, a verdade est na totalidade negativa. Entretanto, a totalidade na qual a teoria marxista se move diferente da totalidade da filosofia de Hegel, e esta diferena assinala a diferena decisiva entre as dialticas de Hegel e Marx. [...] O processo dialtico de Hegel era, pois, um processo ontolgico universal no qual a histria se modelava sobre o processo metafsico do ser. Marx, ao contrrio, desliga a dialtica desta base ontolgica34. Na sua obra, a negatividade da realidade torna-se uma condio histrica que no pode ser hipostasiada como uma condio metafsica. Em outras palavras, a negatividade torna-se uma condio social, associada a uma forma histrica particular da sociedade. A totalidade que a dialtica marxista atinge a totalidade da sociedade de classes, e a negatividade que est subjacente s contradies desta dialtica e que d forma ao seu contedo todo a negatividade das relaes de classe. A totalidade dialtica novamente inclui a natureza, mas s na medida em que esta se envolve no processo histrico da reproduo social, e o condiciona. No progresso da sociedade de classes, esta reproduo assume formas diversas, em vrios nveis do seu desenvolvimento, formas que so o arcabouo de todos os conceitos dialticos. (MARCUSE, 2004: 269-270).
A partir da identificao entre ser e objetividade, a dialtica marxista se afasta da
teoria abstrata atravs de sua exigncia de verdade, pois, mediante o carter negativo da
realidade, compreendem-se as objetividades sociais no em suas determinaes absolutas,
33 A seguinte passagem esclarece este ponto: Na filosofia idealista, o passado intemporal domina o conceito de essncia. Mas quando a teoria se associa com as foras progressistas da histria, a lembrana do que pode ser autenticamente torna-se um poder que molda o futuro. (MARCUSE, 1968: 55) [Traduo minha]. 34 Este trecho parece nos ajudar a responder o questionamento da pgina 16 acerca da interpretao de Marcuse sobre o termo ontologia na teoria de Marx.
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mas sim enquanto resultantes da prxis humana. Atravs desta nova maneira de conceber a
totalidade, abordada por Marcuse no trecho acima, o problema da auto-realizao do homem
deixa de ser um problema filosfico, tendo em vista que Marx se volta para a acusao do
modo vigente de trabalho enquanto limitao da realizao da essncia humana. Sua crtica s
categorias econmicas no se pauta em um simples sentimento humanitrio (Cf. Ibid.: 243),
mas sim na demonstrao cientfica do contedo efetivo da economia no que se refere ao ser
do homem, que histrico e material. Nesse sentido, a partir da leitura que Marcuse faz de
Marx, possvel perceber a importncia da categoria de trabalho para a constituio mesma
do pensamento marxiano.
A mudana da dialtica entre Hegel e Marx no se d pela ausncia do contedo
cientfico da economia na filosofia do primeiro, como se poderia presumir a partir de algumas
interpretaes equivocadas. Leitor dos economistas clssicos, Hegel estabeleceu uma
elaborao filosfica de alto nvel sobre a relao entre abstrao e concretude, contemplando
estes contedos em sua abordagem. Na verdade, o que parece sustentar a originalidade da
perspectiva terica de Marx a categoria de trabalho tomada enquanto ndulo central de sua
dialtica, permitindo-o tomar a economia por uma perspectiva crtica inimaginvel para a
perspectiva proeminentemente lgica de Hegel. Mais do que um simples conceito pois
estabelece a ordenao de sua perspectiva cientfica -, a categoria35 de trabalho ganha uma
nova compreenso tanto a partir da decisiva influncia da relao estabelecida pela lgica
hegeliana entre determinao e negao, como, de maneira fundamental, pela maneira
original com que Marx identifica ser e objetividade. A importncia desta categoria se revela
ao perceber que, dentro da perspectiva marxiana, o entendimento da organizao do trabalho
permite o entendimento da organizao social humana. Isto , ela se torna um elemento
mediador para o esclarecimento da condio social do homem.
Este novo tratamento dado ao trabalho no pensamento marxiano s foi possvel por
suas crticas tanto filosofia dentro dela, especialmente a de Hegel -, quanto economia. E
isto sem abandonar uma caracterstica essencial da dialtica hegeliana: a tentativa dialtica
de exerccio do pensamento que busca desvendar a relao entre categorias que exprimem a
realidade a partir de sua articulao imanente (RANIERI, 2011: 72). Mesmo que a totalidade
tome novas formas, v-se ainda como se trata de uma categoria basilar para a dialtica
marxiana, agora ligada de maneira essencial categoria de trabalho. Em certo sentido, ento,
35 Marcuse tambm frisa essa mudana de conceitos para categorias em Marx, explicando o seu afastamento da terminologia filosfica em direo a suas formulaes cientficas pautadas em categorias econmicas. (Cf. Ibid.: 239).
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pode-se notar como a totalidade compreendida por Marx contem semelhanas com a de
Hegel:
[...] impossvel compreender a relao da produo do objeto por meio do trabalho sem recorrer ao princpio metodolgico que toma essa totalidade como o elemento articulador do conhecer. Aqui, novamente o exemplo est ancorado na chamada cincia hegeliana: o ser social o prprio movimento do objeto que, para Hegel, reconhecido como sendo o esprito (Geist). Curiosamente, quando afirmo que esse movimento totalidade, no estou dizendo coisa alguma. Em si mesma, a totalidade, tambm para Marx, no existe. Pelo menos, no enquanto universal abstrato isolado de mediaes. O todo s se expe enquanto natureza universal das singularidades, e cada ente existente algo determinado de forma concreta, algo particularizado. Ao mesmo tempo, porm, ser totalidade o gnero enquanto o universal pertence a cada singularidade determinada e constitui sua essencialidade determinada. Se tirssemos